administracao de justica e controle da criminalidade

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    A administrao da justia e o controle da criminalidade no Mdio Serto do So Francisco, 1830-1880.

    Dimas Jos Batista

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social, do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    Orientadora: Profa. Dra. Laima Mesgravis

    SO PAULO 2006

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    A administrao da justia e o controle da criminalidade no Mdio Serto do So Francisco, 1830-1880.

    Dimas Jos Batista

    SO PAULO 2006

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    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho a meus pais Djanira Lopes de Moura e Jos Batista de Moura Sobrinho, minha esposa Izabel Oliveira de Moraes e meus filhos Joo Pedro e Marcus Vinicius para recompens-los, se que seja possvel, pela ausncia e pelos meus variveis estados de humor suportados com muita pacincia e compreenso. Amo vocs.

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    AGRADECIMENTOS

    H tantas pessoas a agradecer que, fatalmente, cometerei alguma injustia. Uma tese

    escrita individualmente, mas sempre ser uma obra coletiva. Nos caminhos e descaminhos de sua

    elaborao foi imprescindvel o apoio, a orientao generosa e sempre atenta de minha amiga, muito

    mais que orientadora, a professora Dra. Laima Mesgravis. Desde o primeiro momento ela acreditou na

    realizao desta tese, foram horas e horas de inesquecveis dilogos e reflexes sobre a histria do

    Brasil e da justia, ensinamentos impagveis. Bom foi o mestre, o discpulo nem tanto.

    Representaram uma contribuio imensa confeco deste trabalho diretamente, a

    minha assistente de pesquisa, Clelma Rodrigues Martins e Filomena Luciene Cordeiro Reis, chefe da

    Diviso de Pesquisa e Documentao Regional da Universidade Estadual de Montes Claros em Minas

    Gerais, minhas amigas muito obrigado. Agradeo especialmente aos incentivos de Regina Clia Lima

    Caleiro e de Mrcia Pereira da Silva que sempre reergueram minha auto-estima com palavras e gestos.

    Este trabalho fruto da crena e dos estmulos de vocs. Quero agradecer ao meu irmo do peito

    Reverson Pantaleo, por todas as acolhidas na Vila dos Ingleses em So Paulo, jamais vou poder pagar

    seu carinho, sua fraternidade e sua amizade sincera, foi bom caminhar ao seu lado nesta jornada.

    Agradeo tambm a Mauricio Del Nero Jorge que sempre me conseguiu informaes valiosas, e me

    guiou nas tortuosas ruas e vielas da grande metrpole, Mau voc est guardado comigo onde quer

    que eu v muito obrigado amigo.

    preciso agradecer s dicas, sugestes e os incentivos de alguns amigos novos e

    antigos. Quero agradecer ao amigo novo Tarcisio Rodrigues Botelho por disponibilizar a sua tese para

    mim, ela representou uma excelente contribuio a este estudo. A Eduardo Frana Paiva pelos textos

    de Roberto Borges Martins que, durante muito tempo, tive dificuldades em obter. Eduardo, curta

    muito Paris, voc merece. Ao professor Luciano Galdino da Silva pelo livro sobre histria

    demogrfica de Minas Gerais com que me presenteou, oportunamente, um novo amigo. Aos amigos

    antigos Jonice dos Reis Procpio Morelli, Alysson Luiz Freitas de Jesus e a Ricardo Alexandre

    Ferreira por dicas e textos, e pela amizade claro. Preciso dizer um muitssimo obrigado Valria

    Monteiro que traduziu para mim alguns textos em ingls que, por estrita falta tempo, no tinha a

    agilidade para faz-lo eu mesmo, Valria muito obrigado. Ao professor Vasni de Almeida que

    acompanhou e leu os originais deste trabalho com uma pacincia terrvel, suportando os meus erros e a

    minha impacincia, Vasni serei sempre muito grato. Registro aqui um agradecimento especial a todas

    as pessoas que leram trechos avulsos deste estudo e sugeriram alguma modificao, de fundo ou de

    forma, sempre com a boa vontade em contribuir e ajudar na inteligibilidade do texto. Gostaria de

    registrar um agradecimento especial ao meu amigo tocantinense Aurivan de Castro que,

    pacientemente, tabulou e quantificou todas as tabelas e grficos da tese, furtei-lhe horas preciosas de

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    seu convvio familiar que foram cedidas com gentileza, serenidade e seriedade. Muitssimo obrigado

    amigo.

    Registro com satisfao, um distinto agradecimento ao meu amigo Braz Batista Vas,

    Coordenador do Curso de Licenciatura Plena em Histria da Universidade Federal do Tocantins, pelo

    empenho com sempre militou por mim para conseguir a famigerada flexibilizao e outras tantas

    gentilezas, sem as quais este trabalho virtualmente seria impossvel. Braz valeu amigo. Estendo

    tambm um agradecimento a todos os meus colegas de Colegiado que souberam compreender e apoiar

    esta pesquisa.

    Nunca demais agradecer queles, que estando ao lado de um ausente, bem ou mal,

    sabem compreender as dificuldades de planejar, elaborar e escrever uma tese em famlia. Agradeo a

    Izabel Oliveira de Moraes, Bel, muito obrigado mesmo quando voc ficou irritada comigo sabia o

    quanto era importante o que eu estava fazendo. A jornada est apenas comeando, quero continu-la

    ao seu lado tropeando, caindo, levantando e caminhando com tranqilidade.

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    RESUMO

    O poder judicirio ocupava, como ainda ocupa, uma posio privilegiada na estrutura

    de poder do Estado como executor de normas e leis, ou seja, estava encarregado de aplicar a lei e a

    justia. Isto , o poder judicirio era o poder do Estado que vigiava, controlava e punia ricos e pobres,

    senhores e escravos, brancos e mulatos, homens e mulheres; em suma, era uma extenso do Estado

    nos sertes do Brasil. Este um estudo das prticas da justia no mdio serto do Rio So Francisco,

    no qual procuramos evidenciar que se formou no norte de Minas Gerais durante o sculo XIX uma

    sociedade civil orientada por valores e normas de condutas que nem sempre correspondiam quelas

    preconizadas pelo poder judicirio. Nele analisamos a estrutura e a organizao do poder judicirio

    estudando processos-crime de homicdio perpetrados pelos moradores dessa regio sofranciscana. A

    cidade de Montes Claros e a microregio circunvizinha apresentou regularidades e padres scio-

    histricos comuns ao caipira do interior paulista, estudado com rigor e brilhantismo por Antonio

    Candido. Os crimes de homicdio praticados nesta regio revelaram os limites e as possibilidades do

    Imprio da Lei. Ao interpretarmos as prticas criminais dos moradores da regio constatamos,

    porm, que h diferenas importantes em relao ao caipira. O estudo assinala os aspectos similares e

    os dissonantes entre os dois tipos humanos dos sertes.

    Apontamos tambm as continuidades, as permanncias e as rupturas nas praticas de

    organizao e funcionamento do poder judicirio. Neste estudo os agentes e seus procedimentos, as

    unidades prisionais e de reabilitao, os discursos dos gestores e administradores, enfim, vrios

    aspectos de planejamento, administrao e gesto da justia so analisados. Por um lado, fazemos isso

    para mostrar o poder judicirio em ao, em movimento e em funcionamento. Por outro, o prprio

    funcionamento do poder explicita os seus limites, contradies e ambivalncias. Todo esse processo

    ocultava o baixo nvel de penetrao do Estado em Montes Claros e regio. claro que a presena

    cada dia mais marcante do poder judicirio na vida cotidiana do sertanejo se tornaria uma realidade.

    Mas, a penetrao do aparato da justia na regio engendrou momentos distintos entre 1830 e 1880.

    Procuramos destacar esses momentos e avaliar o grau de amadurecimento do ordenamento jurdico-

    politico brasileiro e mineiro.

    Discutimos as limitaes das interpretaes que opem sociedade civil e Estado; e

    aquelas que opem litoral e interior. Fizemos uma interpretao das reas de serto procurando no

    cair nas armadilhas que associam serto barbrie e litoral civilizao, interior arcaico e litoral

    civilizao. Este estudo busca entender as conformaes scio-histricas e civilizacionais do Brasil.

    Ao apresentarmos essa verso da histria da justia no serto norte-mineiro, durante o sculo XIX,

    pretendemos ir um pouco mais alm, se alcanamos o intento, somente estudos e interpretaes mais

    detalhadas podero dizer.

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    ABSTRACT

    The judicial power took up, as it still does, a privileged position in the State power structure

    as the executor of rules and laws, that is, it was in charge of putting law and justice into practice. Thus,

    the judicial power was effectively the State power that watched, controlled and punished the rich and

    the poor, masters and slaves, whites and mulattoes, men and women; to sum up, it was a branch of the

    State in the Brazilian sertes. The present thesis is a study of the practices of justice in the serto in

    which we intend to emphasize that in the nineteenth century northern Minas Gerais a civil society,

    oriented by values and rules of conduct that did not always correspond to those commended by the

    judicial power, was formed.

    We also analize the structure and the organization of the judicial power through the study of

    homicide charges pressed by the inhabitants of So Francisco region. The city of Montes Claros and

    its surrounding microregion showed social and historical patterns as well as regularities usually

    associated with the caipira from the interior of So Paulo who, on his turn, has been rigourously and

    brilliantly studied by Antonio Cndido. The homicides commited in this region revealed the limits and

    possibilities of the Empire of the Law. As we interpret the criminal practices among the inhabitants

    of the formerly mentioned region we verify that there are significant differences in relation to the

    caipira. This study points out the similar and the dissonant aspects concerning these two human types

    of the sertes.

    Also, we point out the continuities, permanences and ruptures in the practices of organization

    and functioning of the judicial power. Agents and their proceedings, prisons and reinstatement units

    and the discourse of the managers are analized, that is, the distinct aspects of the planning and the

    administration of justice. On the one hand, we aim at showing the judicial power put into full practice.

    On the other hand, the very running of power displays its limits, contradictions and ambivalences. The

    whole process hid the low level of penetration of the State in Montes Claros and surroundings.

    Obviously, the striking and evergrowing presence of the judicial power in the everyday life of the

    sertanejo would become a reality. However, the penetration the State apparatus in that region

    engendered distinct moments between 1830 and 1880 which we aim at highlighting and evaluating the

    level of maturity of the judicial and political ordinance in Brazil and Minas.

    Finally, we discuss the restraints of the interpretations that oppose civil society against State,

    coast against interior. An interpretation of the serto areas has been carried out avoiding the usual

    misleading comparisons that associate serto with barbarism, interior with archaic and coast with

    civilization, since we assume that in order to understand the Brazilian social and historical

    conformation it is necessary to go beyond that. This study is our version of the history of justice in the

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    serto of northern Minas in the nineteenth century. Only more detailed studies or interpretations will

    tell if it is appropriate or not.

    PALAVRAS-CHAVE/KEY-WORDS(5) Sculo XIX, Administrao, Justia, Controle da Criminalidade, Norte de Minas Gerais. 19th. Century, Administration, Justice, Criminality Control, North of Minas Gerais.

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    Sumrio ndice.............................................................................................................p. 11

    ndice Abreviaturas........................................................................................p. 13

    ndice de Tabelas..........................................................................................p. 14

    ndices de Figuras.........................................................................................p. 15

    Resumo.........................................................................................................p. 06

    Abstract.........................................................................................................p. 07

    Introduo.......................................................................................................p.16 Captulo 1. O Estado, a sociedade civil e a justia nas Comarcas do Serto mineiro do mdio So Francisco...................................................................p. 31 1.1. Os clssicos da teoria penal: trabalho e misericrdia, a filantropia penal 1.2. O ordenamento jurdico brasileiro no sculo XIX: fora, consenso e consentimento. 1.3. A justia fragilizada, os problemas da ordem civil. 1.4. A responsabilidade do poder: indecises e ambigidades do judicirio. Captulo 2. A organizao e a administrao do poder judicirio: os limites do Imprio da Lei.............................................................................................p. 66 2.1. O problema da organizao da ordem jurdica no Brasil do sculo XIX. 2.2. A ordem em construo e os agentes locais: Juizado de Paz 2.3. Os agentes da justia: de juizes a oficiais de quarteiro. 2.4. Juizes Municipais, Chefes de Polcia e Delegados: defensores da ordem. 2.5. Os aparelhos da condenao: casas de correo, cadeias e prises. 2.6. Os mapas estatsticos das sesses do Tribunal do Jri: as iluses da ordem. 2.7. Os Ministros de Justia e os Presidentes de Provncia: sustentculos do Estado 2.8. A segurana pblica: questo social e razo de Estado? Captulo 3. Montes Claros de Formigas e regio: o cenrio.......................p. 106 3.1. A geografia do Serto: o homem e a terra. 3.2. Mercados locais e regionais: a economia no serto norte-mineiro nos sculos XVIII e XIX 3.3. A populao no Brasil e em Minas Gerais nos sculos XVIII e XIX. 3.4. A populao livre e cativa em Montes Claros e seus Termos.

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    Captulo 4. A justia e os crimes no mdio serto do So Francisco, a eficcia da lei: homicdios de livres e escravos........................................................p. 138 4.1 Os sertanejos: simetrias e assimetrias sociais no universo do crime 4.2. A Justia, o crime e a lei no serto norte-mineiro: limites e possibilidades de anlise. 4.3. O crime e os criminosos: tipologia e categoria social de anlise. 4.4. Violncia cotidiana, enredos de muitas histrias de livres e cativos. 4.5. Crimes planejados: emboscadas, tocaiais e encomendas. 4.6. As Testemunhas: o avano da percia criminal. 4.7. Solidariedade, conflito e consenso nas comarcas do serto. 4.8. As armas e armadilhas do crime e da justia. Consideraes finais...................................................................................p. 182 Fontes..........................................................................................................p. 185 Referncias Bibliogrficas...........................................................................p. 187 Anexos.........................................................................................................p. 199

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    ndice Introduo....................................................................................................p. 16

    Captulo 1. O Estado, a sociedade civil e a justia nas Comarcas do Serto mineiro do mdio So Francisco...................................................................p. 31 1.1. Os clssicos da teoria penal: trabalho e misericrdia, a filantropia penal 1.2. O ordenamento jurdico brasileiro no sculo XIX: fora, consenso e consentimento. 1.3. A justia fragilizada, os problemas da ordem civil. 1.4. A responsabilidade do poder: indecises e ambigidades do judicirio. Captulo 2. A organizao e a administrao do poder judicirio: os limites do Imprio da Lei.............................................................................................p. 66 2.1. O problema da organizao da ordem jurdica no Brasil do sculo XIX. 2.2. A ordem em construo e os agentes locais: Juizado de Paz 2.3. Os agentes da justia: de juizes a oficiais de quarteiro. 2.4. Juizes Municipais, Chefes de Polcia e Delegados: defensores da ordem. 2.5. Os aparelhos da condenao: casas de correo, cadeias e prises. 2.6. Os mapas estatsticos das sesses do Tribunal do Jri: as iluses da ordem. 2.7. Os Ministros de Justia e os Presidentes de Provncia: sustentculos do Estado 2.8. A segurana pblica: questo social e razo de Estado? Captulo 3. Montes Claros de Formigas e regio: o cenrio.......................p. 106 3.1. A geografia do Serto: o homem e a terra. 3.2. Mercados locais e regionais: a economia no serto norte-mineiro nos sculos XVIII e XIX 3.3. A populao no Brasil e em Minas Gerais nos sculos XVIII e XIX. 3.4. A populao livre e cativa em Montes Claros e seus Termos. Captulo 4. A justia e os crimes no mdio serto do So Francisco, a eficcia da lei: homicdios de livres e escravos........................................................p. 138 4.1 Os sertanejos: simetrias e assimetrias sociais no universo do crime 4.2. A Justia, o crime e a lei no serto norte-mineiro: limites e possibilidades de anlise. 4.3. O crime e os criminosos: tipologia e categoria social de anlise. 4.4. Violncia cotidiana, enredos de muitas histrias de livres e cativos. 4.5. Crimes planejados: emboscadas, tocaiais e encomendas.

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    4.6. As Testemunhas: o avano da percia criminal. 4.7. Solidariedade, conflito e consenso nas comarcas do serto. 4.8. As armas e armadilhas do crime e da justia. Consideraes finais...................................................................................p. 182 Fontes..........................................................................................................p. 185 Referncias Bibliogrficas...........................................................................p. 187 Anexos.........................................................................................................p. 199

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    ndice Abreviaturas DPDOR Diviso de Pesquisa e Documentao Regional da UNIMONTES

    AFGC Arquivo do Frum Gonalves Chaves

    APM Arquivo Pblico Mineiro

    RPP/MG Relatrios dos Presidentes de Provncia de Minas Gerais

    RMJI Relatrios dos Ministros de Justia do Imprio

    CLIB Coleo das Leis do Imprio do Brasil

    CDGIB Coleo das Decises do Imprio do Brasil

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    ndice de tabelas Tabela 1 Fora Policial Militar de Minas Gerais, 1835-77 p. 86 Tabela 2 Numero dos Membros da Guarda Nacional de Minas Gerais em Servio, 1836-58 p. 87 Tabela 3 Destacamentos da Guarda Nacional por Municipalidade, 1833, 1857 p. 87 Tabela 4 Crimes julgados nas Sesses dos Tribunais do Jri da Provncia de Minas Gerais,

    1836-1845 e 1851-1855 p. 89

    Tabela 5 Crimes julgados nas Sesses dos Tribunais do Jri da Provncia de Minas Gerais, 1865-1870

    p. 90

    Tabela 6 Exportaes, Rio Pardo Bovinos, 1815-1883 p. 118 Tabela 7 Populao de Distritos Selecionados, 1838. p. 134 Tabela 8 Populao de Distritos Selecionados, 1872 p. 134 Tabela 9 Variveis analisadas nos Processos-crimes de homicdio, rus, 1833-1873 - Montes

    Claros e regio p. 145

    Tabela 10 Processos-crimes de homicdio, rus e vtimas, 1833-1873 - Montes Claros e regio p. 145 Tabela 11 Processos-crimes de homicdio sexo dos rus, 1833-1873 Montes Claros e

    regio p. 146

    Tabela 12 Status dos rus nos processos-crimes, 1833-1873 p. 146 Tabela 13 Estado civil dos rus nos Processos-crimes, 1830-1873 p. 147 Tabela 14 Faixa etria dos rus nos Processos-crimes, 1833-1873 p. 147 Tabela 15 Ocupaes dos rus nos Processos-crimes, 1833-1873 p. 147 Tabela 16 Localidades onde ocorreram os homicdios, 1833-1873 p. 148 Tabela 17 Tipos de armas utilizadas pelos rus, processos-crimes 1833-1873 p. 149 Tabela 18 Sentenas proferidas contra os rus, processos-crimes 1833-1873 p. 149

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    ndice de Figuras

    Mapa 1 Povoaes Antigas do Norte de Minas Gerais, 1804. p. 108 Mapa 2 Distritos do Norte de Minas e as Rotas de Comercio entre os sculos XVIII e XIX. p. 136

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    Introduo

    Este trabalho analisa os crimes de homicdio praticados, durante o sculo XIX, por

    homens pobres livres e escravos na regio de Montes Claros, norte de Minas Gerais com o intuito

    bsico de discutir a administrao da justia nesta regio. Busca entender a atuao do poder judicirio

    na execuo da justia e os mecanismos de funcionamento do aparato jurdico durante o transcorrer

    dos processos criminais. Examina como a justia condenava ou absolvia os envolvidos em crimes de

    morte, especialmente, como eram tratados livres e cativos no interior da trama judicial nos sertes do

    Brasil. Visa, essencialmente, compreender as permanncias e rupturas ocorridas nas prticas da justia

    no interior do Brasil e aquilatar em que medida o Estado nacional conseguiu se fazer valer por meio da

    ao judicial, tendo em vista que ao poder judicirio cabia mediar e conter os conflitos entre os

    membros da sociedade brasileira, prescrevendo os comportamentos aceitos e aqueles que eram

    julgados intolerveis.

    O territrio mineiro, fonte de eterna disputa poltica e econmica, pode ser dividido

    respectivamente em trs grandes reas de colonizao, ocupao e povoamento, e estas reas

    divergiam entre si, material e culturalmente, quanto formao histrico-social. De modo geral, a

    Provncia de Minas Gerais e, especificamente, o norte da provncia forjou tipos humanos que se

    relacionaram com o meio ambiente quer no mbito da agricultura, do comrcio, do artesanato ou

    quaisquer outras atividades econmicas, de modo muito peculiar, configurando um espao social

    complexo de convivncia, onde viviam os grupos socialmente marginalizados pelo sistema escravista.

    O estudo da justia, do crime e da criminalidade na regio enquadra-se na crescente preocupao dos

    historiadores e cientistas sociais em conhecer as formas de organizao, as relaes e os processos de

    coexistncia social dos grupos marginalizados das comunidades rurais escravistas e seus processos de

    interao com a ordem estabelecida.

    Para captar toda a densidade social da vida sertaneja nesta localidade tivemos que

    precisar o que vem a ser as reas de Serto. As reas, geralmente, denominadas serto tm seu

    contraponto historiogrfico e conceitual nas reas litorneas. A historiografia frequentemente associa

    as regies/reas de serto barbrie e as regies/reas de litoral civilizao. Essa viso dicotmica,

    presente em boa parte da literatura histrica do sculo XIX, e mesmo do sculo XX, no obstante a

    variabilidade dos termos em que apresentada, requer uma reviso urgente. Essa dicotomia reduz a

    compreenso da histria do Brasil e de suas regies, e mais ainda, oculta um sempre renovado

    discurso elitista e conservador sobre a capacidade de autonomia das populaes residentes no interior

    do pas para contribuir efetivamente na construo de um projeto nacional. Ultrapassar essa viso

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    dicotmica entre serto/litoral, civilizao/barbrie, arcaico/moderno, enfim, a viso dos muitos e

    inconciliveis Brasis um passo inadivel para a compreenso do pas.1

    O serto tem sido entendido de duas formas principais pela historiografia brasileira:

    como meio fsico e como espao poltico-ideolgico. Alguns autores focalizaram o serto enfatizando

    o seu carter fsico como elemento determinante nas relaes sociais. Outros analisaram o serto como

    um espao geopoltico de dominao econmica, ideolgica e social. Estas duas concepes do serto

    no so excludentes, s vezes, apresentam-se no discurso histrico e sociolgico, acerca das reas

    interioranas e afastadas do territrio, de modo complementar. Aqueles que enfocaram o serto como

    meio fsico predominante geogrfica, geolgica, mesolgica e climaticamente geralmente, pendem

    para um determinismo geogrfico, em que, o homem do campo, especialmente, o sertanejo estaria

    atado natureza. O sertanejo se amoldaria natureza muito mais do que a adaptaria aos seus

    interesses econmicos, polticos, ecolgicos, ideolgicos, culturais e sociais. Para esses autores a

    organizao societria seria dependente e no interdependente da natureza, e isto resultaria em atraso,

    arcasmo e formas tradicionais de explorao do meio ambiente. Sob essa tica a integrao pressupe

    a submisso do sertanejo ao meio ambiente.2

    A preocupao em estudar o processo de colonizao e povoamento de extensas regies

    do territrio brasileiro, os desertos de homens, pode ser verificada em autores fundadores da

    historiografia nacional.3 Podemos colher inmeros exemplos na historiografia colonial brasileira deste

    tipo de enfoque sobre o serto. A anlise de Joo Capistrano de Abreu em seus Captulos de Histria

    Colonial, com propriedade e, em conformidade com vrios especialistas coloniais, evidencia que o

    devassamento de nosso territrio se dera em razo da explorao de riquezas minerais, do apresamento

    de escravos nativos e do comrcio de gneros alimentcios e das chamadas drogas do serto. Estas

    foram as razes fundamentais para a colonizao e o povoamento do serto. No havia uma atitude

    planejada de povoar com vistas ao estabelecimento de domicilio e de residncia. Tais motivaes para

    a penetrao no serto foram enfatizadas pela maioria dos estudiosos coloniais brasileiros e

    1 O serto tem sido analisado sob diversas perspectivas. Para uma concepo historiogrfica e ideolgica do serto confira: LIMA, Nsia Trindade. Um Serto chamado Brasil: intelectuais e representaes geogrficas da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan; IUPERJ: UCAM, 1999. Para uma concepo etimolgica, ideolgica e geogrfica do termo serto confira: SILVA, Moacir M. F. A propsito da palavra serto. So Paulo: Boletim Geogrfico, s/d. 2 Um exemplo clssico de determinismo geogrfico, ou, pelo menos, de construo desse imaginrio acerca do serto e das relaes entre o sertanejo e a natureza, encontra-se na obra de CUNHA, Euclides da. Os Sertes (Campanha de Canudos). So Paulo: Editora Martin Claret, 2005. pp. 120-121. 3 Acreditamos que desnecessrio mencionar para a discusso em foco uma extensa bibliografia. Basta para o entendimento da questo aludirmos a autores como: ABREU, Capistrano de. Captulos de Histria Colonial (1500-1800). 7. ed., rev. anotada e prefaciada por Jos Honrio Rodrigues. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro). Especialmente o captulo IX. O Serto. pp. 127-205. HOLANDA, Srgio Buarque de. Mones So Paulo: Brasiliense, 2000. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime da economia patriarcal. Ilustrao em cores de Ccero Dias, desenhos de Antonio Montenegro. 30. ed., Rio de Janeiro: Record, 1995. PRADO JUNIOR, Caio. 1907-1990. Formao do Brasil contemporneo: Colnia. So Paulo: Brasiliense, 2004.

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    estrangeiros e, como decorrncia desses empreendimentos aventureiros4, teria resultado uma

    populao mestia, pobre, errtica, desconfiada e arredia, vivendo sempre nos limites da sobrevivncia

    como salienta Capistrano: os primeiros ocupadores do serto passaram vida bem apertada; no eram

    donos das sesmarias, mas escravos e prepostos.5

    A dependncia e, em menor medida, a interdependncia da natureza so elementos

    norteadores na narrativa dos analistas coloniais que estudaram o Brasil dos sculos XVI ao XIX. Claro

    que, o homem dos tempos coloniais, abandonado sua prpria sorte nos rigores da mata teria que

    recorrer aos meios ecolgicos existentes ou disponveis para a sua sobrevivncia e dos seus, somente

    depois de garantida esta que ele poderia se dedicar a produzir um excedente qualquer para o

    comrcio, desde que houvesse como fazer escoar essa produo econmica excedente rumo aos

    centros consumidores. Tal no era o caso dos sertanejos, nem o objetivo dos sertanistas que

    desbravavam o serto. A produo atendia ao estrito objetivo da empresa exploratria. queles que se

    deixavam ficar restava o sistema de trocas, ou o cultivo das roas para o abastecimento das expedies

    oficiais ou particulares que demandavam ao serto. As rotinas econmicas eram as mais simples

    possveis. Capistrano de Abreu deixa isso bem claro quando trata da dieta alimentar, da moradia, da

    vestimenta e dos apetrechos de trabalho dos sertanejos.6

    Realizaram-se muitas expedies oficiais e particulares ao interior do pas, desde

    meados do sculo XVI. Muitas rotas terrestres e fluviais foram sendo abertas em busca de riquezas e,

    nestes caminhos, foram sendo semeados pousos que serviam para o abastecimento e suprimento das

    expedies, alguns se tornariam importantes arraiais, vilas e cidades com o avanar do povoamento.

    Essa foi a primeira experincia de fixao dos habitantes nos sertes do Brasil-Colnia. Na maioria

    dos autores que estudaram esses empreendimentos coloniais, nota-se que eles definem as expedies

    coloniais como exploratrias, de apresamento e guerreiras. Exceo feita ao trabalho de Srgio

    Buarque de Holanda Mones. Neste ensaio sobre o processo de colonizao da regio sul do pas o

    autor destaca o carter comercial da empresa colonizadora, fazendo uma distino fundamental entre

    as bandeiras e as mones7.

    4 O termo aventureiro no utilizado de modo pejorativo pela maioria dos estudiosos coloniais. Na narrativa de diversos autores assume um carter laudatrio, herico, de bravura, destemor, honradez e coragem. Veja: LIMA JUNIOR, Augusto. 1889-1970. A Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte; Itatiaia; So Paulo: Edusp, 1978; CALMON, Pedro. Histria do Brasil. vols. 1, 2 e 3. 4. ed., Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1981. 5 ABREU, Capistrano de. Captulos de Histria Colonial (1500-1800). 7. ed., rev., anotada e prefaciada por Jos Honrio Rodrigues, Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro), p. 153. 6 Idem, ibidem, pp. 153 e ss. 7 Sobre a distino entre bandeiras e mones diz o autor: No s o emprego de meios de locomoo diversos, , tambm, e principalmente, o complexo de atitudes e comportamentos, determinados por cada um desses meios, o que far compreender a distino essencial entre a primitiva bandeira e a mono de povoado. Naquela, os rios constituem, efetivamente, obstculos marcha, e as embarcaes so apenas o recurso ocasional do sertanista, utilizvel onde a marcha se tornou impossvel. Nas mones, ao contrrio, a navegao, disciplinadora e cerceadora dos movimentos, que se torna regra geral, e a marcha a p, ou a cavalo, ou em carruagem(...) constitui exceo a regra. HOLANDA, S. B. de. Mones. op. cit. p. 72-73.

  • 19

    De qualquer modo, fosse por terra ou pelos rios as expedies assumiram quatro

    caractersticas fundamentais: explorar, apresar, guerrear e comercializar. A fase da minerao em

    Minas Gerais somente acentuou o ritmo de penetrao no territrio promovendo sua ocupao,

    primeiramente, provisria e precria e, em seguida, de modo planejado e sistemtico. o que

    evidenciamos na historiografia colonial. Fosse a p ou em canoas essa ocupao semeou ao longo de

    seus trajetos pequenos povoados com caractersticas muito semelhantes: abastecimento, repouso e

    suprimento para os viandantes. Logo, temos que concordar com Sergio Buarque de Holanda que, a

    empresa colonizadora realizada por via terrestre assim como por via fluvial, forjou um complexo de

    atitudes e comportamentos, determinados por cada um desses meios de locomoo. Forjaram tipos

    humanos caractersticos em cada regio ocupada. 8

    O meio fsico, nas comarcas do serto, teria desempenhado um papel significativo na

    formao dos tipos humanos e de uma cultura sertaneja especfica como se pretende demonstrar neste

    estudo. Ao que se sabe, a penetrao no territrio mineiro foi realizada essencialmente por vias

    terrestres, fato que surpreende, pois a Capitania, depois Provncia possui grandes bacias hidrogrficas.

    Foram bandeirantes e sertanistas baianos e paulistas os primeiros desbravadores do territrio mineiro.

    E, se possvel falar de uma cultura sertaneja forjada a partir desse tipo de penetrao com suas

    vantagens e limitaes, ela derivou de um processo de aprendizagem e adaptao de mtodos

    largamente praticados pelos nativos do territrio, mas ela derivou essencialmente da inter-relao

    entre o meio ambiente e o homem, por tal razo que este aspecto est sendo apreciado.9 A cobertura

    vegetal do territrio de Minas Gerais dos tempos coloniais ou da poca imperial pode-se pressupor era

    bem mais exuberante do que aquela que hoje existe no Estado. Graas ao processo de devastao e

    degradao ambiental essa vegetao foi radicalmente modificada. Porm, a estrutura ecolgica

    essencial permaneceu a mesma, ou seja, podemos encontrar cobrindo o territrio manchas de caatinga,

    mata atlntica e extensas faixas de cerrado. A regio sofranciscana, objeto deste estudo, e mais

    particularmente, Montes Claros e povoaes circunvizinhas situam-se nas reas de cerrado. A vida de

    seus habitantes e suas condies de alimentao, vesturio, habitao e convivncia nesta rea foram

    afetadas pelo relacionamento com esse meio ambiente.10

    O solo, as bacias e micro-bacias hidrogrficas, as estaes climticas e outros aspectos

    ligados ao meio ambiente afetaram a vida e as condies de vida dos sertanejos naquela regio,

    impedindo ou facilitando seu processo de adaptao. As atividades produtivas ali desenvolvidas

    tiveram que se adequar a essas peculiaridades geogrficas e ecolgicas. E assim ocorreu. Tanto que

    8 Idem, ibidem, p. 72. 9 HOLANDA, Srgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 2. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1975. 10 Neste sentido a dieta alimentar assumiu importncia capital para a permanncia no territrio. Quanto a esse aspecto confira ALMEIDA, Semrames Pedrosa de. Frutas nativas do cerrado: caracterizao fsico-qumica e fonte potencial de nutrientes. In SANO, Sueli Matiko, ALMEIDA, Semrames Pedrosa de. (Ed.) Cerrado: ambiente e flora. Planaltina/ Braslia: EMBRAPA, 1998.

  • 20

    houve na regio do mdio So Francisco a explorao do salitre retirado do solo. Houve o

    aproveitamento de arvores e frutos nativos, uns para a fabricao das casas de adobe, outros para o

    enriquecimento da dieta alimentar do sertanejo, assim como o Rio So Francisco e seus afluentes

    forneciam pesca abundante aos moradores das localidades ribeirinhas Em suma, a utilizao dos

    recursos naturais tornou-se uma alternativa essencial para a permanncia na regio. Havia uma forte

    integrao com o meio ambiente.

    Por outro lado, durante o imprio a populao brasileira crescera significativamente,

    mas o territrio continuava despovoado. Havia a necessidade de perpetuar o domnio sobre o

    territrio, mas agora sob uma nova conjuntura, a de formao do Estado nacional. O projeto, no de

    todo claro e bem definido, constitua no apenas em ocupar, mas fixar; povoar para constituir

    residncia e domicilio. Era necessrio assegurar a unidade territorial e poltica da nascente nao por

    meio de um povoamento estvel, coibir ou limitar a fluidez e mobilidade espacial dos moradores das

    antigas capitanias, agora provncias. Visava-se fixar de modo mais exato possvel os limites e as

    fronteiras do Brasil. No apenas conhecer o serto, mas mape-lo, circunscrev-lo e domin-lo por

    meio do povoamento fixo e estvel. As inmeras mudanas ocorridas na colnia para adequ-la

    instalao de todo o aparato institucional trazido do Reino, so por demais conhecidas, faamos

    apenas um esboo rpido, para os fins a que nos propomos nesta introduo.

    Com a chegada da Famlia Real ao Brasil seriam produzidas as condies necessrias

    para a superao do exclusivismo colonial11, em parte, responsvel pelo isolamento e abandono de

    extensas faixas do territrio do pas consideradas pouco atrativas do ponto de vista fiscal, tributrio e

    militar. Abertura, inovao e mudana caracterizam o perodo de 1808 a 1822. Foram criadas

    instituies administrativas, artsticas, cientficas, financeiras. Facilitou-se a entrada de pessoas, bens e

    capitais estrangeiros. Expedies cientficas foram encorajadas para o conhecimento e difuso das

    riquezas e potencialidades do pas. Os testemunhos dos viajantes so os exemplos eloqentes desse

    novo momento do Brasil. A elevao do Brasil condio de Reino em 1815 assume importncia

    capital para a compreenso desse momento de modernizao da sociedade civil e das instituies

    existentes ao tempo da colnia. Era preciso dotar o reino de estruturas e infra-estruturas legais e

    legtimas para a imposio do poder do Estado, obviamente, esse processo profundamente denso no

    foi percebido e entendido da mesma maneira de norte a sul do pas. A criao de instituies e de

    aparatos administrativos pr-estatais e estatais estava sujeita s injunes da vida concreta. As antigas

    capitanias, os seus mandatrios e potentados ora aceitavam certas medidas poltico-administrativas,

    11 Para uma discusso mais aprofundada sobre o exclusivismo colonial e sua superao indicamos: HOLANDA, Srgio Buarque de. Herana Colonial sua desagregao. In HOLANDA, S. B. de. Histria Geral da Civilizao Brasileira: O Brasil Monrquico: o processo de emancipao. Tomo II, vol. 1., 6. ed., So Paulo: Difel, 1985; NOVAIS, Fernando Antonio. Portugal e Brasil na crise do Antigo sistema colonial (1777-1808). 6. ed., So Paulo: Hucitec, 1995; Para uma reviso da tese acerca do exclusivismo colonial ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formao do Brasil no Atlntico sul. So Paulo: Cia das Letras, 2000.

  • 21

    ora a elas se opunham num intenso processo de conflito, negociao e acomodao. Os homens

    freqentemente tm resistncia mudana de suas rotinas e hbitos longamente estabelecidos, como

    salientou Srgio Buarque de Holanda, especialmente aqueles que se encontram mais deslocados das

    regies de poder direto do Estado poca como os homens dos sertes do Brasil.12

    O serto assume um novo significado, se antes era o refgio, o espao de

    desregramento, o lugar ignorado, agora ser o lcus, onde a lei e a ordem devem se fazer valer, pois

    todos os sditos do imprio pertencem a uma e mesma nao. Nesse contexto que se torna

    compreensvel a insistncia dos agentes da burocracia do Estado em elaborar censos, listas

    nominativas e mapas de populao, enfim, as estatsticas populacionais. Era preciso saber quantos

    eram, em que lugares domiciliavam e com o que se ocupavam os habitantes das provncias. Isso era

    imprescindvel tanto para o controle social como para a formulao de polticas pblicas de

    administrao dos cidados do Imprio. Desta forma, o serto passa a ser um espao de dominao

    geopoltica. Nesta tarefa teria um papel fundamental o poder judicirio.

    O serto da poca colonial e imperial que foi delineado pela historiografia apresenta

    alguns elementos constitutivos que permitem, por um lado, entrever permanncias e mudanas no

    modo de organizao e estruturao da vida no serto brasileiro e, por outro, as especificidades que

    queremos demarcar. Neste estudo verificamos, entre outras coisas, em que medida as comunidades

    rurais ali conformadas se assemelhavam ou se distinguiam daquelas engendradas em reas litorneas,

    rurais e urbanas do Brasil da poca. Embora no existam muitas pesquisas acerca de Montes Claros e

    regio que focalizem como objeto especfico de estudo a criminalidade e a justia naquela rea, e

    mesmo em reas semelhantes, em que pudssemos nos apoiar, este trabalho pretende fornecer uma

    contribuio emprica e historiogrfica ao entendimento das relaes sociais sertanejas.

    Procuramos mapear o modo de vida e de organizao social de parcela da populao

    que vivia naquela localidade e que esteve envolvida com a justia como rus, vtimas, testemunhas ou

    informantes em crimes de homicdio. Para isso, tivemos que caracterizar, definir e diferenciar, mesmo

    que em linhas gerais, a economia, a poltica, a cultura, a sociedade, os valores, os padres e estruturas

    de sociabilidade da populao rural que habitava essa vasta extenso do territrio da Provncia

    mineira. Os processos-crime nos permitiram penetrar o universo dos comportamentos, valores e

    atitudes, s vezes, surpreendentes dos grupos marginais da sociedade sertaneja norte-mineira.

    Toda essa reflexo a respeito dos aspectos fsicos e geopolticos do meio ambiente

    serve para demonstrar que a penetrao do aparelho judicirio, e indiretamente, do Estado e suas

    rotinas, valores e princpios passaram por adaptaes e tiveram que responder s expectativas de uma

    realidade radicalmente diferente daquela pensada e forjada pelos agentes e funcionrios da burocracia

    12 HOLANDA, S. B. de. Herana Colonial sua desagregao. In HOLANDA, S. B. de. Histria Geral da Civilizao Brasileira: O Brasil Monrquico: o processo de emancipao. Tomo II, vol. 1., 6. ed., So Paulo: Difel, 1985.

  • 22

    do poder judicirio. Nos sertes, a estrutura e o funcionamento do poder de vigiar e punir, de controlar

    e coagir teria que se adequar a um modo de pensar, sentir e agir diverso daquele para o qual a lei e a

    justia tinham sido projetadas. Os homens pblicos do imprio, em particular, os agentes burocrticos

    da justia tiveram que operar correes na aplicao das normas e leis s comarcas do serto mineiro,

    se quisessem fazer valer os princpios fundamentais do ordenamento jurdico do Imprio. Por tais

    razes, os conceitos de local, de regional e de nacional passaram a ser reavaliados para os fins deste

    trabalho. Assim, historiograficamente, as comunidades isoladas geograficamente foram enfocadas em

    seus aspectos negativos a precariedade, o isolamento e a pobreza material eram entendidos, a priori,

    como ausncia de civilizao e de padres de sociabilidade. Tais deficincias impediriam ou

    limitariam a integrao das comunidades sertanejas aos processos mais amplos da sociedade brasileira.

    Os dois objetivos primordiais dos homens pblicos, durante o sculo XIX, eram povoar

    o territrio e consolidar a ordem. Ou seja, realizar um povoamento de modo ordeiro e civilizado. Esses

    objetivos enfrentaram muitos obstculos para se realizar, especialmente em reas como o termo de

    Montes Claros de Formigas, na comarca do Rio So Francisco. A instabilidade de residncia e

    domicilio dos moradores, foi um dos srios transtornos enfrentados para vigiar e controlar os

    comportamentos da populao. Embora, esse no seja um estudo de populao, somente possvel

    compreender o modelo de vida sertanejo a partir da fluidez e mobilidade espacial.13 Povoar, habitar e

    morar no possuam os mesmos significados para homens e mulheres, livres e escravos, ricos e pobres

    nos sertes do mdio So Francisco. Entre essas trs dimenses de pertencimento h uma diferena

    sutil que tem sido pouco considerada nos estudos sobre os sertes. Ento foi necessrio precisar

    tambm essas dimenses de sociabilidade para compreender a vida e a organizao social sertaneja

    naqueles confins.

    Havia, segundo a pesquisadora Izabel Marson, uma forte disputa entre dois projetos

    polticos para o pas, durante o sculo XIX. Os liberais realizaram algumas reformas no ordenamento

    jurdico com objetivos explcitos de descentralizar o poder poltico e administrativo fortalecendo cada

    vez mais a esfera local e regional. Por seu turno, os conservadores especialmente aps a ascenso de

    Arajo Lima, em 1837, iriam imprimir um direcionamento poltico mais centralizado para a

    organizao das instituies e do prprio Estado. Eles realizaram algumas reformas neste sentido

    como a Lei de 3 de dezembro de 1841 que reformou o Cdigo do Processo Criminal diminuindo o

    poder dos juizes de paz.14

    13 Para um excelente e sistemtico estudo acerca da populao da provncia de Minas Gerais confira: BOTELHO, Tarcisio Rodrigues. Populao e nao no Brasil do sculo XIX. Tese. So Paulo: FFLCH/USP, 1999. Especialmente a Parte II De Provncias a Nao: os levantamentos censitrios no Brasil do sculo XIX. pp. 75-78. Veja tambm o trabalho pioneiro de: COSTA, Iraci del Nero da. Populaes Mineiras sobre a estrutura populacional de alguns ncleos mineiros no alvorecer do sculo XIX. So Paulo: IPE/USP, 1981. 14 Coleo das Leis do Imprio do Brasil. N. 261. Lei de 3 de Dezembro de 1841. Reformando o Cdigo do Processo Criminal, pp. 101-122.

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    Tanto o projeto liberal como o conservador visava modernizar o Brasil. A diferena

    estava no ritmo que cada projeto queria imprimir a essa modernizao e aos processos civilizatrios.

    Enquanto para os liberais os juizes de paz e o jri eram considerados a pedra de toque do poder

    judicirio, pois permitiam uma maior autonomia na administrao da justia e uma interferncia mais

    sensvel da sociedade civil nos negcios judiciais, para os conservadores os mesmos eram vistos como

    viciosos e comprometidos com as oligarquias, as faces e os poderes dos coronis locais. Os

    conservadores entendiam que os juizes paz eram despreparados, ineptos e que entravavam o

    aprimoramento da administrao da justia.15 Havia outros pontos controversos entre o projeto

    conservador e o liberal que iremos explorar com mais detalhes nos captulos deste estudo.

    A resposta dada pelas elites locais aos projetos modernizadores e civilizatrios de

    liberais e conservadores foi a sabotagem e a tentativa de desmontagem das novas instituies jurdicas.

    O juiz de paz criao liberal foi no transcurso do sculo tendo suas atribuies esvaziadas pela

    reao de outras instncias de poder, principalmente pelos juizes municipais, pelos chefes e delegados

    de policia. Os juizes de direito e municipais criao do projeto conservador ao tentarem impor as

    normas civilizatrias do poder central foram desmoralizados agredidos e at mortos, o que, em alguns

    casos, tambm ocorreu com os juizes de paz. Em geral, nas duas situaes as elites locais recorreram

    cooptao pela presso para garantir os cargos aos seus apaniguados parentes, eleitores, clientes,

    amigos, etc por meio do apoio eleitoral, nomeao para cargos pblicos e incluso nas famlias por

    meio de casamentos vantajosos. Dessa maneira, o mpeto modernizador foi amenizado, diludo ou

    colocado a servio dos interesses tradicionais com a excluso ou quando muito com a participao

    marginal de outras classes sociais.

    O estudo da atuao do poder judicirio numa comunidade rural destaca os elementos

    essenciais tanto da estrutura societria dessas comunidades como os elementos fundamentais para

    compreender a organizao do poder judicirio na localidade, perceptveis no curso de atos violentos.

    Levando em considerao que o poder judicirio, e toda a historiografia que trata do tema o confirma,

    exercia funes circunscritas ao controle, vigilncia, represso do povo e dos cidados, ou melhor,

    dos sditos do Imprio brasileiro. Estas funes institucionais j eram exercidas nos tempos coloniais

    e, por certo, no deixaram de ser exercidas pelo poder judicirio durante o Imprio to somente se

    diversificaram e especializaram. Elas se transformaram vigorosamente no transcurso do sculo XIX,

    pode-se dizer que o judicirio passou por subseqentes processos de rupturas e de evolues.16

    15 MARSON, Izabel Andrade. O imprio do Progresso: a Revoluo Praieira em Pernambuco (1842-1855). So Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 16 A natureza do bacharelismo brasileiro foi estudada por VENNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino jurdico no Brasil. 2. ed. So Paulo: Editora Perspectiva, 1982. O autor analisa a formao jurdica brasileira destacando predominncia do academicismo, em detrimento do pragmatismo que imperava em outros paises como os Estados Unidos da Amrica do Norte. Traz um excelente resumo da evoluo do ensino do Direito no Brasil e a importncia que os magistrados tiveram nos rumos polticos do pas.

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    Este trabalho demonstra as evolues, rupturas, continuidades, descontinuidades e

    contradies do poder judicirio no Brasil, destacando os matizes que, os homens e mulheres

    socialmente marginalizados, foram assumindo para os dirigentes do Estado e para os agentes da justia

    no pas. Mostra que noes como justia, lei, direito, crime, povo e cidadania tiveram que ser

    adaptadas s crescentes exigncias sociais das classes perigosas. Evidencia que ocorreu uma

    inverso nas premissas do direito no transcorrer do sculo XIX. Entre a segunda metade o sculo

    XVIII e os anos de 1850, categorias scio-histricas, ou conceitos como povo e cidado e, mais

    extensivamente, sociedade civil, que apareciam submetidas aos interesses do Estado, e mais tarde,

    do Estado-nao, aps 1830, nacional e internacionalmente, o direito sofre uma significativa mutao:

    aquelas categorias tornar-se-iam mais precisas, e particularmente, o Estado comearia a reconhecer as

    demandas sociais, da parcela pobre livre da populao, e nalguns casos at da parcela liberta e cativa,

    sob pena de tornar-se obsoleto e ultrapassado.

    No obstante essas mudanas, houve grande dificuldade em aplicar a justia, inspirada

    nos moldes liberais, predominantes na primeira metade do sculo XIX, na regio em estudo. As

    dificuldades de acesso justia e o relativo isolamento da regio possibilitaram a manuteno de

    padres tradicionais e criaram cdigos baseados nos costumes que se sustentavam em relaes

    pessoais, em um forte sistema cornelstico local e em relaes patrimonialistas. Isso implicava, s

    vezes, em baixos ndices de punio e condenaes dos delitos praticados na localidade fosse por

    homens livres ou cativos. Este fato mais sensvel quando se trata de assassinatos, tendo em vista que,

    supostamente, este seria o delito que mais despertaria a vigilncia e a represso por parte da justia

    institucionalizada e uma sensvel condenao social.

    A imposio dos valores burgueses e liberais como razo, ordem, nao, civilizao e

    progresso no penetraram na cultura local de modo incisivo, no foram introjectados pelos sertanejos

    do mdio serto do So Francisco exatamente como haviam sido idealizados. A anlise e interpretao

    dos processos de homicdio revelaram a impercia processual na montagem dos processos e a

    insuficincia de instrumentos para a imposio de princpios caros aos homens pblicos do perodo

    como a racionalidade, o carter abstrato da lei e a imparcialidade da justia. Esses princpios

    fundadores do Estado moderno no conseguiram atingir a populao sertaneja e se sobrepor ao cdigo

    do serto.17 evidenciando os limites do Imprio da Lei. Este estudo no pretende ser simplesmente

    mais uma narrativa da histria dos vencidos. Ele verifica em que medida o Estado nacional,

    orquestrado pelas elites polticas, econmicas, administrativas e judicirias, conseguiu ou no moldar

    17 Segundo a pesquisadora Maria Sylvia de Carvalho Franco esse cdigo implicava num carter hbrido de manuteno de padres tradicionais e de incorporao de valores modernizantes. Veja discusso mais adiante.

  • 25

    as atitudes e comportamentos da populao aos interesses da razo nacional,18 em que medida

    obteve sucesso ou fracassou na modelagem do povo e do cidados. Ao abarcar o perodo

    regencial (1831-1840) e o segundo reinado (1840-1889) analisa as polticas modernizadoras das

    faces liberais e conservadoras que governaram o Brasil.

    O trabalho discute a evoluo do Direito, do ordenamento jurdico, nos moldes liberais,

    como principio de manuteno da autoridade do Estado frente a uma sociedade tradicional. Mas,

    quando esse fenmeno: a evoluo, as reformas internas do poder judicirio, no respondia s

    necessidades de conservao e imposio do prprio poder judicirio; ele colocava em funcionamento

    um outro fenmeno: a fora. O poder judicirio utilizava-se de seus mecanismos tradicionais: a

    vigilncia, o controle, a coero e a represso que, por meio do monoplio do uso legitimo da fora,

    garantiam a autoridade do Estado. Obviamente, estamos diante de trs estratgias bsicas de

    manuteno do poder dos grupos/classes dominantes encastelados no Estado: a persuaso, o consenso

    e a fora. Este estudo procura mostrar a dinmica destas estratgias utilizadas pelos poderes judicirio

    e executivo. No entanto, essas no foram as nicas estratgias que o poderes judicirio e executivo

    utilizaram para a manuteno da ordem e da segurana pblica. Os homens pblicos do sculo XIX

    usaram e abusaram das reformas. No entanto, o que se observa que em todos os planos reformistas

    do poder judicirio os vencidos tornaram-se o centro das atenes dos governantes e homens pblicos

    do Imprio. Era necessrio forjar a nao, posto que no existiria nao sem cidados. Procuramos

    mostrar essencialmente como o judicirio atuava para exercer as suas funes normalizadoras e

    regulatrias na sociedade norte-mineira.

    Esta histria lida com acomodaes, conflitos e resistncias de livres e escravos, que

    certamente no atuaram da mesma maneira, por isso, procuramos verificar como a justia tratou cada

    grupo/classe socialmente marginalizada. Para conhecer e entender as condies de vida e de

    dominao dos grupos socialmente marginalizados escolhemos como caminho privilegiado a

    compreenso do poder judicirio e da criminalidade. A anlise de fontes jurdicas, administrativas e

    parlamentares permitiram acompanhar um outro aspecto fundamental da montagem do Estado

    nacional e a constituio dos poderes estruturantes do Estado o judicirio e suas interdependncias.

    Neste caminho evidenciamos que a sociedade civil servia ao Estado no sculo XIX e no o

    contrrio, como ocorre hoje. A sociedade devia se adaptar ao Estado e no o Estado aos interesses e

    demandas da sociedade civil. Este o primeiro fato relevante deste estudo.

    Abordamos a problemtica relao entre o poder judicirio e os elementos sociais

    marginalizados, partindo do principio de que o Estado, a todo o tempo, procurou deixar bem claro o

    papel que lhes cabia na ordem social, ou seja, partindo da premissa de que Estado nacional brasileiro, 18 Relatrio da Repartio dos Negcios da Justia apresentado Assemblia Geral Legislativa na 1. Sesso da 5. Legislatura pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Paulino Jos Soares de Sousa. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1843. p. 3.

  • 26

    clientelstico e patrimonial, tentou criar e organizar uma sociedade hierarquizada, mais

    extensivamente, buscou criar uma sociedade civil baseada na existncia de uma suposta ordem

    natural nas relaes sociais. O pacto social aps a Independncia do Brasil alterou-se, precria e

    provisoriamente, mas estruturalmente as relaes de mando autoritrias perdurariam durante todo o

    sculo XIX afora, espraiando-se inclusive pelo seguinte, como se pode observar na atuao do

    judicirio durante a primeira fase Repblica.19

    Este estudo no sobre a histria do direito, nem tampouco das instituies ou rgos

    do poder judicirio. Tambm no uma histria do poder executivo stritu sensu. No entanto, trata de

    alguns aspectos considerados fundamentais, tanto do primeiro como do segundo, que permitiram a

    compreenso da organizao do Estado nacional. No se trata de uma histria do Estado-nao, mas

    necessrio ter em mente que era nesse perodo que se modelava a nova nao e o novo homem civil.

    Por um lado, esta investigao, trata dos crimes e da criminalidade praticada pelos moradores da

    regio do mdio serto do So Francisco, no norte de Minas Gerais. Por outro, trata das prticas de

    conteno do crime e da violncia entre os homens e mulheres sertanejos e engendra a compreenso

    do modus vivendi e operandi dos criminosos e suas prticas delituosas ocorridas naquela localidade e a

    atuao do poder judicirio como mediador dos conflitos. Em resumo, analisa o carter mediador e

    repressor do poder judicirio diante dos confrontos sociais sertanejos.

    Para compreenso desse universo peculiar necessrio analisar como o Estado, via

    judicirio, se imps quela populao e como esses habitantes, objetivamente atingidos, sentiram o

    peso da mquina estatal na sua vida cotidiana. Mas necessrio que se diga que no nos ocupamos da

    histria da vida cotidiana da populao socialmente marginalizada do serto norte-mineiro. Contudo,

    analisamos, em casos especficos, aspectos relacionados vida cotidiana dessa populao rural. Esta

    introduo procura deixar explcito que para compreender as mutaes do Estado nacional brasileiro

    necessrio esmiuarmos o funcionamento de um de seus poderes o Judicirio observando como ele

    atuava sobre a populao de Montes Claros e regio e como essa populao atingida pela justia

    relacionava-se com o avano do Estado sobre suas vidas, enfim necessrio esmiuarmos as relaes

    entre o pblico e o privado na sociedade das comarcas do serto.

    Esta pesquisa assemelha-se muito mais com uma histria do processo de dominao

    senhorial e estatal, uma histria dos mecanismos de dominao da elite local e regional. Uma histria

    das prticas de vigilncia, controle, coero e represso dos grupos/classes socialmente

    marginalizadas. Escolhemos esse caminho para discutir a criminalidade. Ele no o nico, mas

    permite entrever as estratgias concretas e discursivas postas em prtica para o exercer o domnio

    efetivo. Assemelha-se muito mais com a histria dos embates entre faces e subgrupos de elite, e

    19 RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade: estudo e anlise da justia no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.

  • 27

    entre a elite imperial e o denominado povo, e entre a elite dirigente e o informe cidado. Por meio

    de diversos documentos oficiais legislativos, executivos, judicirios e administrativos penetramos

    neste universo de discursos sobre a ordem e a desordem, a civilizao e a barbrie, a razo e desrazo,

    o povo e o cidado.

    O corpus documental compe-se de vrios materiais do legislativo, executivo e

    judicirio. Em relao ao material legislativo foram consultadas as Colees das Leis do Imprio do

    Brasil e a Coleo das Decises do Governo do Imprio de 1830 a 1880 disponveis no site da

    Cmara dos Deputados, consultamos e analisamos os Cdigos Criminal de 1830 e de Processo

    Criminal de 1832, e a reforma realizada no cdigo do processo em 1841 e em 1871. Para a anlise do

    executivo recorremos aos Relatrios dos Ministros de Justia e aos Relatrios dos Presidentes da

    Provncia de Minas Gerais, um volume expressivo de relatrios que abragem de 1825 a 1880.

    Consultamos tambm aproximadamente 40 correspondncias de juizes de paz, algumas da Cmara de

    So Romo e algumas de chefes de policia da Provncia. Um volume restrito de documentos da

    Cmara Municipal de Montes Claros tambm foi compulsado para esta pesquisa. Todo esse corpus

    legislativo e executivo permitiu uma abordagem do poder judicirio nos trs nveis nacional, regional

    e local. Estas fontes foram analisadas qualitativamente, visto que muitas delas so discursivas, mas

    elas constituem-se em materiais subsidirios investigao.

    O corpus documental principal deste estudo so Processos Criminais que cobrem o

    perodo de 1832 a 1880. Foram analisados seletiva e qualitativamente aproximadamente 60 processos

    crimes, mas efetivamente foram quantificados 117 processos de homicdio referentes perodo de 1833-

    1873. Mesmo analisando qualitativamente sessenta processos no foram citados ou mencionados

    todos esses processos. Por um lado, porque a anlise visou apreender as regularidades e padres, por

    meio dos dados estatsticos e, por outro lado, a anlise qualitativa visou apreender as singularidades e

    especificidades das prticas da justia e da criminalidade na regio norte de Minas Gerais. Ao

    buscarmos apreender esses padres, regularidades e especificidades acreditamos que seria

    desnecessrio, e se tornaria enfadonho, apresentar uma sucesso de casos, s vezes, muito semelhantes

    em sua essncia. Com a anlise deste material foi possvel configurar o Estado nacional brasileiro.

    Como falar do Estado sem falar de seus poderes, como falar das elites sem falar do

    povo, como falar de povo sem falar de cidados, como falar de Minas Gerais sem falar do Brasil,

    como falar de poltica sem falar de economia, cultura e sociedade? Esta uma histria social das

    prticas judicirias e da construo do Estado nacional, mas tambm a histria de como os sujeitos

    histricos elites, cidados e povo consolidaram o que hoje ns chamamos de Brasil. Escolhemos

    analisar a sociedade de Minas Gerais porque essa era um das provncias mais populosas e influentes,

    bem representada junto ao governo central, provncia rica, politicamente importante para o Imprio,

  • 28

    culturalmente diversa, que forneceu inmeros quadros polticos e administrativos para o

    establishment.20

    No entanto, a provncia de Minas Gerais no era homognea geogrfica, ideolgica,

    cultural, administrativa, econmica e juridicamente ela estava dividida em zonas fronteirias de poder.

    A diversidade emerge no estudo do controle da criminalidade e das prticas de administrao da

    justia em Montes Claros e regio. Verificamos que as regies sul e centro-sul da provncia mineira

    eram ricas e prsperas e que as regies norte, noroeste e nordeste eram remediadas, pobres e

    abandonadas. Isso teve um impacto na forma de organizao histrico-social, na forma de penetrao

    e imposio do Estado-nao e seus valores nessas regies da provncia de Minas Gerais. A maioria

    dos homens pblicos que exerceram cargos e funes de Estado relevantes foi extrada da regio sul,

    sudoeste, sudeste e centro-sul da provncia. Compreender que existiam, e ainda existem, vrias Minas

    Gerais o primeiro passo para entender a importncia do papel desempenhado pelo judicirio naquela

    regio e do problema que iremos aprofundar mais adiante.

    O trabalho est divido em quatro captulos. Estes captulos estruturam-se em ordem

    crescente de complexidade. Partindo de problemas gerais sobre a organizao do Estado nacional para

    aspectos mais especficos de organizao do poder judicirio. Discutem o Estado no Brasil, em Minas

    e no norte de Minas Gerais. Discutem a violncia de um modo geral at chegar ao crime e a

    criminalidade na regio de Montes Claros. Analisam a criminalidade de modo amplo at chegar aos

    crimes de homicdio no mdio serto do So Francisco.

    No Captulo 1 O Estado, a Sociedade Civil e a Justia nas Comarcas do Serto

    mineiro do mdio So Francisco discutimos as concepes de Estado e sociedade dos cientistas

    polticos, antroplogos, socilogos e historiadores que analisaram a formao implantao,

    organizao, consolidao e imposio do Estado nacional no pas sob dois eixos principais: tradio e

    modernidade. Realizamos uma discusso historiogrfica avaliando, em que medida, o Estado se imps

    no territrio e perante a populao. Procuramos demonstrar que a consolidao do Estado-nao no

    Brasil, apesar do projeto saquarema21, de sua tendncia liberal-conservadora e burguesa no

    conseguiu fazer valer os seus princpios e premissas nas comarcas do serto mineiro e, de um modo

    geral, nos sertes do Brasil. Demonstramos que as caractersticas da sociedade civil, do Estado e da

    criminalidade destoavam entre sul, centro e norte. Aqui destacamos conceitualmente os principais

    elementos constitutivos da sociedade civil, do Estado e da justia na regio. Abordamos os principais

    caracteres da justia formal na regio e suas praticas administrativas, com vistas a compreender a

    distancia entre o ideal e o concreto na pratica da justia na sociedade mineira e norte-mineira.

    20 Veja: SISSON, S. A. Galeria dos brasileiros ilustres. 2v. Braslia: Senado Federal 1999. Aqui pode-se encontrar a trajetria dos principais polticos da Provncia mineira como o Marques de Paran, Bernardo Pereira de Vasconcellos e tantos outros que provinham das regies mais prsperas da provncia. 21 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994.

  • 29

    A seguir, no Captulo 2 A organizao e a administrao do poder judicirio: os

    limites do Imprio da Lei caracterizamos o crime e a criminalidade naquela regio; apresentamos e

    discutimos as especificidades dos documentos judicirios, da Justia, da Lei numa regio dinmica,

    embora isolada da Provncia de Minas Gerais. Traamos uma srie de distines entre a justia como

    prtica e dever do Estado e como prtica e costume dos poderosos locais. Em suma, discutimos o

    aparelho judicirio e como ele serviu de instrumento de dominao e controle social, embora nem

    sempre eficaz e organizado. Analisamos inclusive as tentativas de organizao do ordenamento

    jurdico oitocentista, os aparelhos e rgos de represso e punio, a atuao dos agentes da justia e

    os princpios de governabilidade buscados pelo poder judicirio.

    O captulo 3 Montes Claros de Formigas e regio: o cenrio trata especificamente da

    sociedade norte-mineira, de Montes Claros e regio e das prticas criminais ocorridas entre a

    aprovao do cdigo criminal e a abolio da escravatura. Dividimos esta discusso em dois

    momentos: antes e depois do fim do trafico internacional de escravos em 1850. Procuramos

    demonstrar quais as peculiaridades da localidade e regio estudadas, as caractersticas geogrficas,

    climticas, agrrias, comerciais, econmicas, polticas, demogrficas e sociais, em que se

    desenrolaram as prticas criminais dos grupos/classes socialmente marginalizadas do sculo XIX.

    Desenhamos um perfil esquemtico, mas necessrio dos moradores da regio e seu modo de vida,

    evidenciando uma significativa diferena entre os moradores de zonas urbanas e rurais, camponeses e

    citadinos, caiaras e sertanejos, enfim, mostramos que existia um modo de ser sertanejo que foi

    moldado e moldou a realidade agreste. Retomamos neste capitulo alguns aspectos essenciais do

    quadro scio-histrico de formao do Estado nacional brasileiro para mostrar que, embora certos

    princpios e valores tenham sido preconizados pela burocracia estatal, eles no se encaixavam

    realidade monteclarense, e mais extensivamente, a regio do mdio So Francisco. Traamos um

    quadro o mais detalhado possvel da conformao social da regio para distinguir as prticas criminais

    e de controle da criminalidade comum s zonas rurais daquelas ocorridas em zonas urbanas, para

    evidenciar que existia um modo de vida prprio e prevaleceram formas tradicionais de relaes sociais

    na regio.

    No Captulo 4 A justia e os crimes no mdio serto do So Francisco, a eficcia da

    lei: homicdios de livres e cativos exemplificamos tudo o que viemos demonstrando sobre o papel

    desempenhado pelo Judicirio e pelo Estado na regio e o comportamento da populao em contato

    com os tribunais. Apresentamos as fontes, em especial, as judicirias e executivas, as principais

    caractersticas dos criminosos, as armas utilizadas, as cenas dos crimes. Comentamos e analisamos

    incidentalmente a vida cotidiana, as prticas da justia pblica e privada, as formas de resistncia ao

    controle exercido pelo Estado e pelos poderosos locais.

  • 30

    Avanamos neste captulo muito mais com a certeza de que a implantao, formao,

    organizao, consolidao e imposio do Estado nacional brasileiro naquela regio no se

    assemelhavam atuao do Estado em outras partes do pas. Aproveitamos para mostrar, por meio dos

    processos-crimes, que os nveis de condenao eram muito aqum dos esperados pelos agentes da

    justia e os almejados pelos administradores do governo imperial. Evidenciamos que a eficcia do

    poder judicirio em conter, os crimes e a criminalidade, nos momentos mais difceis e instveis da

    organizao do Estado brasileiro ficara muito aqum do preconizado pelos homens pblicos da poca.

    Sintetizamos toda a discusso procurando demonstrar os obstculos que o Estado e, especialmente, o

    poder judicirio enfrentaram para fazer valer as normas e leis, para impor o seu poder sobre a

    populao sertaneja do mdio serto do So Francisco.

  • 31

    Captulo 1 - O Estado, a sociedade civil e a justia nas Comarcas do Serto mineiro do mdio So Francisco.

    De acordo com esses doutrinadores, o Estado e suas instituies descenderiam em linha reta, e por simples evoluo, da famlia. A verdade, bem outra, que pertencem a ordens diferentes em essncia. S pela transgresso da ordem domstica e familiar que nasce o Estado e que o simples individuo se faz cidado, contribuinte, eleitor, elegvel, recrutvel e responsvel, ante as leis da Cidade. (Holanda, 1995, p.141)

    Nesta discusso historiogrfica abordamos alguns autores, nacionais e estrangeiros, que

    lidaram diretamente com a formao, constituio, natureza, organizao e implantao do Estado e

    da nao no mundo ocidental, em geral e, em particular, no Brasil. No entanto, no pretendemos

    esgotar o assunto, to somente buscamos traar as linhas mestras de organizao e constituio do

    Estado para que fique bem claro o tipo de Estado que foi construdo no pas poca do Imprio. H

    uma slida literatura que trata do tema. Neste momento, estabelecemos um dilogo com os clssicos

    da histria poltica brasileira por duas razes: em primeiro lugar, para deixar bem claro que neste

    trabalho no discorremos nem nos concentramos em histria poltica do imprio e, em segundo lugar,

    para que possamos demarcar as especificidades da discusso travada sobre a estrutura, organizao e

    funcionamento do poder judicirio, um dos poderes constitutivos do Estado Imperial brasileiro.

    oportuno lembrar as palavras de Norberto Bobbio que marca as diferenas entre a

    historia das instituies polticas e a histria das doutrinas polticas, pois neste captulo tratamos

    muito mais do primeiro tipo de histria do que do segundo, sem prescindir das idias e das doutrinas

    acerca do Estado e da nao, ao contrrio, pretendemos deslindar o desempenho de um dos poderes do

    Estado e de suas instituies, rgos e unidades componentes o poder judicirio sem descuidar que

    ele ancora-se em larga tradio ideolgica. Assim, devemos ter sempre em mente a lio do eminente

    jurista italiano:

    Hoje, a histria das instituies no s se emancipou das histria das doutrinas como tambm ampliou o estudo dos ordenamentos civis para bem alm da formas jurdicas que os modelaram; dirige suas pesquisas para a anlise do concreto funcionamento, num determinado perodo histrico, de um especfico instituto, atravs dos documentos escritos, dos testemunhos dos atores, das avaliaes dos contemporneos, progredindo do estudo de um instituto fundamental como, por exemplo, o parlamento e suas vicissitudes nos diversos paises, ao estudo de institutos particulares como o secretrio de Estado, o superintendente, o gabinete secreto, etc., atravs dos quais torna-se possvel descrever a passagem do Estado feudal monarquia absoluta, ou a gradual formao do aparato administrativo, atravs do qual pode-se reconstruir o processo de formao do Estado moderno e contemporneo.22

    22 BOBBIO, N. O conceito de sociedade civil. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1982.. p. 54.

  • 32

    A partir dessa reflexo surgem, ento, trs preocupaes iniciais: o que vem a ser o

    Estado nacional, durante o sculo XIX, como os autores discutiram a formao do Estado no Brasil, e

    mais, como se organizou o poder judicirio no interior do ordenamento jurdico-poltico. O tema

    polmico e os autores o abordaram segundo perspectivas tericas e metodolgicas nem sempre

    consensuais, e as discrepncias mais salientes mereceram aqui o comentrio devido. Em linhas gerais,

    pode-se dizer que a formao do Estado nacional ser problematizada a partir da compreenso da

    organizao e da administrao do poder judicirio no Brasil. Posto que, foram os membros do poder

    judicirio que corroboraram ou contestaram as medidas e atos legais emanados do poderes legislativo

    e executivo. Eram e, em certa medida, ainda so, os advogados, magistrados e juristas que

    questionavam os atos dos representantes da nao, que os culpabilizavam, que os isentavam ou os

    responsabilizavam pelas guerras, rebelies ou qualquer outro problema que o Imprio enfrentasse,

    fossem eles de pequenas ou grandes propores.

    Entre os autores mais influentes que discutiram a implantao do Estado nacional no

    Brasil temos Jos Murilo de Carvalho. Este autor enfatiza que a homogeneidade da elite poltica

    brasileira possibilitou enfrentamento dos problemas de organizao do ordenamento jurdico e de

    estruturao de sua burocracia, i.e, a elite poltica brasileira contou com esse fator unificador para a

    sua hegemonia, apesar das diferentes fases de implantao do Estado, das diversas composies e

    organizaes dos grupos de poder existentes, durante o sculo XIX. O autor compara e discute a

    principal tese existente no campo de estudos polticos de formao do Estado na Amrica Latina: a de

    unidade do Imprio brasileiro em contraposio com a de fragmentao dos pases da Amrica

    Espanhola.23

    Jos Murilo de Carvalho, assim como outros autores brasileiros, assenta suas reflexes

    em dois grandes analistas do Estado nacional no mundo europeu Benedict Anderson e Eric

    Hobsbawm.24 Para Carvalho, a obra de implantao do Estado foi realizada pelas elites polticas e

    econmicas, as nicas capazes de execut-la e que detinham os recursos necessrios para a

    concretizao dessa obra. Por isso em seu A construo da Ordem e Teatro das Sombras, Carvalho

    procura mostrar que uma srie de condies favorveis facilitaram a hegemonia poltica da elite

    brasileira permitindo a construo do Estado segundo os moldes de paz, tranqilidade e ordem

    pblicas. Mas, a pergunta ainda permanece: o que define e caracteriza um Estado e uma nao? E

    mais, o que seria um projeto nacional para os liberais e para os conservadores do perodo imperial? A

    resoluo dessas duas questes, os especialistas admitem, muito complexa. Mas uma coisa certa: a

    23 CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial; Teatro de sombras: a poltica imperial. 2. ed., Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, Relume-Dumar, 1986. 24 ANDERSON, Benedict. Nao e conscincia nacional. trad., Llio Loureno de Oliveira. So Paulo: Editora tica, 1989. Veja tambm: HOBSBAWM, Eric J. Naes e nacionalismo desde 1780. trad. Maria Clia Paoli e Anna Maria Quirino. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

  • 33

    historiografia enfatiza que essas questes foram enfrentadas e parcialmente equacionadas pelas elites

    por meio de um processo de excluso social, isto , o povo ou as classes sociais no-proprietrias

    pouco teriam participado da efetivao do Estado nacional tanto na Europa como no Brasil.25

    A professora Izabel Marson opera um deslocamento neste debate ao discutir os

    acontecimentos da Revoluo Praieira verificados em Pernambuco entre 1842-1855. O deslocamento

    se d na medida em que procura demonstrar que o projeto de construo do Estado nacional brasileiro,

    intentado pelas foras liberais naquela provncia, visava incorporar, de modo conservador, as

    demandas e anseios das camadas mais pobres da sociedade pernambucana. Embora, como j

    dissemos, coloque em primeiro plano as disputas entre os membros da elite da provncia. A tentativa

    de incorporar as demandas sociais das classes/camadas/grupos marginais provocaram um turbilho de

    agitaes na sociedade pernambucana. Marson evidencia tambm as disputas internas entre as elites

    liberais e conservadoras demonstrando que do incio ao trmino dos embates foram sendo construdas

    verses, nem sempre consensuais e muitas vezes contraditrias, acerca da participao de praieiros e

    defensores da ordem na consolidao do Estado.26

    H um importante trabalho acerca da organizao do Estado nacional brasileiro

    produzido por Raimundo Faoro: Os donos do poder27 O autor procura construir um arcabouo terico

    e metodolgico para explicar a implantao de um Estado nacional particularista, patrimonial e

    clientelista no pas, pontuando a sua obra com exemplos, fatos e acontecimentos que demonstram a

    tradio herdada de Portugal. Para Faoro as relaes clientelsticas, patrimoniais e estamentais no

    Brasil configuraram e definiram a natureza do Estado brasileiro desde o perodo colonial. Essas

    relaes podem ser caracterizadas como elementos constitutivos do Estado brasileiro. Embora, tenha

    apontado muitos aspectos importantes acerca da organizao do Estado nacional, particularmente o

    aspecto clientelstico da poltica nacional, foi Maria Isaura Pereira de Queirs quem mais

    detalhadamente analisou as relaes de mando e submisso entre as elites locais/regionais/nacionais e

    a populao em geral.28

    O Estado no Brasil oitocentista para uns era considerado, como vimos, onipotente,

    onisciente e onipresente. O estamento burocrtico seria a pedra de toque deste Estado centralizado que

    produziria a legislao e aplicaria as normas e leis aos membros da sociedade, tudo ordenando e

    regulando. Para outros, a estrutura burocrtica do Estado imperial seria uma mera reproduo dos

    padres e modelos portugueses, franceses, ingleses ou americanos. Ainda, para alguns, o Estado

    brasileiro teria promovido um processo de adaptao dos modelos estrangeiros s condies tropicais. 25 CARVALHO, Jos Murilo de. op. cit. pp. 209-216 26 MARSON, Izabel Andrade. O Imprio do Progresso: a Revoluo Praieira em Pernambuco (1842-1855). So Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 27 FAORO, Raimundo. Os donos do Poder: formao do patronato poltico brasileiro. 2 vols. 5. ed., Porto Alegre: Globo, 1979. 28 QUEIRZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida poltica brasileira e outros ensaios. So Paulo: Alfa-Omega, 1976.

  • 34

    Procuramos verificar em que medida essas tipificaes e paradigmas de Estado construdos pela

    historiografia compreendem as situaes concretas de atuao do Estado no Brasil.

    Raimundo Faoro desenha um Estado com as seguintes caractersticas: centralizado,

    burocrtico, estamental, clientelstico e patrimonial. Um Estado nacional brasileiro todo-poderoso. Por

    outro lado, observamos que Jos Murilo de Carvalho fundamenta sua analise do Estado brasileiro em

    pressupostos mais flexveis, embora considerando o Estado como um dos elementos ordenadores das

    relaes sociais. Carvalho, entende o Estado nacional brasileiro como burocrtico retardatrio, herana

    colonial; clientelstico e patrimonial, com uma burocracia e seus agentes que vo progressivamente se

    tornando mais competentes e eficientes na gesto dos negcios do Estado. Ou seja, o Estado nacional

    brasileiro, no era e no teria, antes do final do sculo XIX, condies de uniformizar e aplicar todos

    os procedimentos organizacionais de gesto ao territrio brasileiro porque havia limites estruturais, de

    recursos e de competncia tcnica para esse projeto centralizador.29

    Keila Grinberg em Liberata a lei da ambigidade situa a discusso travada acerca do

    Estado brasileiro em outro plo, propondo uma interpretao em que, o Estado nacional brasileiro, no

    seria todo-poderoso, no seria apenas um importador de modelos, no seria tambm um Estado

    ausente que deixava vontade e iniciativa particular, sociedade civil a conduo e organizao das

    relaes sociais. O Estado nacional brasileiro comportava uma ambigidade e convivia com ela

    adaptando-se e modelando-se de acordo com as situaes concretas. Isto , ora aceitava e aplicava os

    pressupostos agrrio-escravistas, quando era necessrio decidir um problema pratico, por exemplo, as

    demandas por liberdade de escravos. Ora, no aceitava nem aplicava esses pressupostos. O Estado

    nacional brasileiro no seria um mero executor dos interesses da elite escravista e agrcola do pas.30

    A partir de 1970 e 1980 h uma profunda reviso na anlise do Estado nacional

    brasileiro. perceptvel que h historiografias do Estado nacional brasileiro. perceptvel tambm

    que h pontos de confluncia e de divergncia entre os inmeros autores que escreveram acerca do

    tema. Estamos demonstrando os pontos de aproximao entre autores que, muitas vezes, no partem

    dos mesmos pressupostos, no utilizam os mesmos suportes tericos e metodolgicos. Um outro fato

    importante que os estudos sobre o Estado nacional, especialmente, a partir de 1980 passaram a

    utilizar um conjunto de fontes, tcnicas e mtodos mais sofisticados, incorporando as contribuies da

    sociologia, da cincia poltica, da antropologia e da estatstica para melhor compreender o Estado, seus

    rgos e instituies.

    Dois trabalhos pioneiros na discusso sobre o papel desempenhado pelo Estado, e

    naturalmente, sobre a sua organizao e implantao no Brasil so os trabalhos de Suely Robles Reis

    de Queirz e Maria Sylvia de Carvalho Franco. O primeiro se detm na questo da introduo, da 29 CARVALHO, Jos Murilo de. op. cit. pp. 214-215. 30 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigidade, as aes de liberdade na Corte de Apelao do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994.

  • 35

    formao e da utilizao da mo-de-obra escrava em So Paulo, e extremamente valioso para a

    compreenso do papel do Estado nacional brasileiro escravista. Queirz caracteriza o sistema de

    explorao da mo-de-obra escrava evidenciando e provando o carter repressivo e tutelador do

    Estado que, embora transigisse nas questes da explorao da mo-de-obra, foi um poderoso auxiliar

    da classe senhorial na extrao da mais-valia absoluta e relativa potencial do trabalho escravo. Isto , o

    Estado nacional brasileiro escravista foi, progressivamente, intervindo nessa relao, ainda que

    colaborasse e facilitasse a explorao dos escravos, fornecendo o aparato repressivo e de controle da

    mo-de-obra escrava. Mostra ainda que todo um aparelho legislativo nos trs nveis municipal,

    regional e central foi sendo constitudo para reprimir, controlar, vigiar e intimidar a escravaria. As

    posturas municipais, a legislao aprovada pela Assemblia Legislativa da Provncia e, sobretudo, as

    leis aprovadas pela Cmara e pelo Senado na Corte, foi uma das muitas formas que o Estado

    encontrou para colaborar com a manuteno do sistema escravista em So Paulo a escravido

    acompanharia as caractersticas vigentes em regies mais antigas, visvel a violncia na legislao e na

    vida prtica.31

    A anlise de Queiroz vai descortinando os agentes e os mecanismos da represso

    utilizados pelo Estado Imperial brasileiro. Este utilizou-se de capites do mato, foras policiais, guarda

    nacional, e at do exrcito, para manter os escravos sob controle. A legislao ocupava um lugar de

    destaque, visto que ela fornecia legitimidade aos atos de represso. Durante o sculo XIX h uma

    abundncia de atos normativos e legais que visavam manter o controle da escravaria, porm deve-se

    registrar que nem sempre essas aes estatais tiveram ou atingiram o efeito desejado. Vale dizer, a

    mera existncia da lei no implicava na sua efetiva aplicao. Tanto assim que, a autora, procurou

    demonstrar que os escravos tambm reagiam e se insubordinavam, apesar e talvez, devido ao alto grau

    de violncia do sistema, caracterizando o sistema repressivo estatal escravista da seguinte forma:

    Qualquer infrao que mesmo de leve pusesse em risco o sistema era punida com penas severas e procurava-se antecip-la, impedir-lhe a concretizao, atravs de legislao intimidativa. (...) Assim, o que se pode concluir que a prpria legislao, sendo altamente repressiva j caracterizava a violncia de um sistema que na prtica se mostraria ainda mais atuante.32

    A violncia, o carter repressor da legislao e da atuao de agentes estatais e

    paraestatais era um fenmeno inerente ao sistema de explorao escravista. Obviamente, os escravos,

    no todos, deram uma resposta violncia do Estado e violncia privada. A autora se detm nas

    reaes dos cativos demonstrando que eles souberam encontrar mecanismos para resistir e afrontar o

    sistema escravista brasileiro. O trabalho de Queirz foi um dos primeiros a destacar, entre ns, o

    31 QUEIRZ, Suely R. Reis de. A escravido negra em So Paulo: um estudo das tenses provocadas pelo escravismo no sculo XIX. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora; Braslia: INL, 1977. p. 49 e ss. 32 QUERZ, Suely R. Reis de. op. cit. pp. 49 e 57.

  • 36

    binmio resistncia/acomodao. Embora a acomodao e a insubmisso assumissem, em sua

    anlise da escravido, um carter de enfrentamento consciente e fosse, geralmente, uma resposta

    violenta e de rebeldia, e a acomodao envolvesse a idia de fingimento devemos destacar que ela

    foi uma das primeiras a dizer que o escravo resiste mesmo quando no provoca ou entra em conflito

    aberto com o sistema escravista. Nas palavras da autora:

    A ordem social que se estabeleceu no Brasil com a escravido no permitiu o uso de tcnicas sociais de distenso de emoes ou sentimentos e de solues de conflitos que se baseassem no respeito pessoa do escravo. A insatisfao provocada levaria a uma resposta em geral mais violenta do que se poderia supor numa sociedade escravista em que a represso era ferozmente exercida.33

    Porm, preciso dizer que as emoes ou sentimentos fizeram parte do cotidiano

    escravista, como alertou Ligia Bellini num misto de amor e interesse entre senhores e escravos, posto

    que se a historiografia recupera o carter humano do escravo quando resiste, negocia ou acomoda-se,

    no seria possvel negar que os sentimentos, emoes e a afetividade estivessem presentes nas relaes

    soci