a teoria geral do direito e o marximo fichamento

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FICHAMENTO LITERAL POR TEMA João Guilherme A. de Farias e Willians Meneses da Silva 1 Direito e Marxismo: considerações sobre o pensamento de Stutchka e Pachukanis PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Soveral Martins. 2. ed. Centelha. Coimbra, 1977. O que historicamente foi inevitável, não tem necessariamente de ser metodologicamente correto. 1 João é estudante de Direito e pesquisador da PUC-SP. Integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC) da USP. Colaborador do jornal Diário da Liberdade. Willians é graduado em Direito pela PUC-SP. Pós-graduado em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Coordenador-adjunto do grupo de Estudos sobre Direitos Humanos do IBCCRIM. Monitor do Núcleo de Educação Popular 13 de maio.

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Fichamento da obra de Evgeni Pachukanis A Teoria Geral do Direito e o Marxismo

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Page 1: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

FICHAMENTO LITERAL POR TEMA

João Guilherme A. de Farias e Willians Meneses da Silva1

Direito e Marxismo: considerações sobre o pensamento de Stutchka e Pachukanis

PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Soveral

Martins. 2. ed. Centelha. Coimbra, 1977.

O que historicamente foi inevitável, não tem necessariamente de ser metodologicamente

correto.

1 João é estudante de Direito e pesquisador da PUC-SP. Integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e

Capital (GPTC) da USP. Colaborador do jornal Diário da Liberdade. Willians é graduado em Direito pela

PUC-SP. Pós-graduado em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra/IBCCRIM. Coordenador-adjunto do grupo de Estudos sobre Direitos Humanos do IBCCRIM.

Monitor do Núcleo de Educação Popular 13 de maio.

Page 2: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

2

Sumário do fichamento por temas

Sobre o Método ................................................................................................................3

Ideologia, Superestrutura e Concepções Psicológicas do Direito ................................4

O Caráter Objetivo (Real) do Direito ............................................................................6

Crítica ao Normativismo e Kelsen (e à Teoria Pura Do Direito) ................................9

Indivíduo, Sociedade Burguesa e Sujeito de Direito ..................................................11

Sujeito Egoísta, Direito e Capitalismo .........................................................................15

Mercadoria e Direito .....................................................................................................19

Propriedad, Propriedade Feudal e Propriedade Burguesa .......................................20

A Forma na Economia Política e no Dirito .................................................................22

Crítica às Demais Escolas do Direito ...........................................................................24

Forma Embrionária do Direito ....................................................................................25

Capitalismo, Estado E Direito ......................................................................................26

Direito e Sociedeade Burguesa .....................................................................................29

Direito Público e Direito Privado .................................................................................31

Sobre a União Soviética e a Transição .........................................................................32

A Respeito de Piotr Stutchka e do Direito Proletário ................................................34

Relação Jurídica ............................................................................................................35

Sobre a Obra e a Proposta de Pachukanis ..................................................................38

Sobre o estado da Crítica Marxista do Direito ...........................................................39

A Regulação Externa e Fora do Indivíduo na Esfera Coativa Estatal .....................40

Percepção Unilateral do Direito Enquanto Conteúdo ...............................................41

A Respeito do Conceito de “Direito” e Seus Desdobramentos ..................................42

O Direito Privado: Direito Romano, Direito Civil e Comercial ................................43

Direito Penal, Capitalismo, Pena e Princípio da Equivalência .................................45

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3

Sobre o Método A teoria geral do direito pode ser definida como a explanação dos conceitos

jurídicos fundamentais, ou seja, dos mais abstratos. (p. 39)

A crítica da jurisprudência [...] deve, antes de tudo, bater-se no terreno do

inimigo, ou seja, deve pôr de parte as generalizações e as abstrações que foram

elaboradas pelos juristas burgueses, partindo das necessidades do seu tempo e de sua

classe, mas analisar essas categorias abstratas [...]. (p. 63).

[...] toda a ciência constrói a realidade concreta, com toda a sua riqueza de

formas, de relações e de conexões, como resultado da combinação de abstrações mais

simples. (p. 65).

[...] não se pode decompor a realidade nos seus elementos mais simples, a

abstração vem em nosso auxílio. (p. 66).

[...] a totalidade concreta, ou seja, a sociedade, a população, o Estado, deve ser o

resultado e a meta das nossas reflexões, não o ponto de partida. (p. 67).

Page 4: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

4

Ideologia, Superestrutura e Concepções Psicológicas do Direito [...] o significado da análise de Marx era, por um lado, restrito a um domínio

especial do direito e aos seus resultados e, por outro lado, só era utilizada para

desmascarar a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade, para criticar a

democracia formal, mas não para explicar as particularidades fundamentais, primárias

da superestrutura jurídica enquanto fenômeno objectivo. (p. 29). Nota: as consequências

foram duas, segundo Pachukanis: a negligência no que diz respeito ao princípio da

subjetividade jurídica não apenas enquanto “meio dissimulatório e produto da hipocrisia

burguesa”, mas como princípio atuante na sociedade burguesa; também restou

negligenciada a compressão deste princípio enquanto fenômeno objetivo, um processo

real de transformação da natureza humana, tendo-lhe a corrente tradicional atribuído

apenas uma vitória ideológica deste princípio, isto é, de representações. p. 29-30.

[...] Desde que as relações humanas são constituídas como relações entre

sujeitos, surgem as condições para o desenvolvimento de uma superestrutura jurídica,

como suas leis formais, os seus tribunais, os seus processos, os seus advogados, etc. (p.

30-31)

As teorias jurídica sociológicas e psicológicas [...] operam com conceitos de

ordem extra-jurídica e quando por vezes tomam em consideração definições jurídicas,

fazem-no apenas para apresentar como ficções, fantasmas ideológicos, projeções, etc.

(p. 46-47).

A muitos marxistas [como Vinchinsky e até mesmo Stutchka] pareceu suficiente

introduzir nas teorias supracitadas [subjetiva e ideológica] o momento da luta de

classes, para que se obtivesse uma teoria do direito verdadeiramente materialista [...].

Contudo, daí não resulta mais do que uma história das formas econômicas com matizes

jurídicos. (p. 47).

A escola picológica na economia política [e] escola psicológica do direito [...]

esforçam por transpor o objecto da sua análise para a esfera da consciência [...] e mão

vêem que as categorias abstractas correspondentes exprimem [...] relações sociais que se

ocultam por trás dos indivíduos e que ultrapassam o quadro da consciência individual.

(p. 72).

Não podemos [...] contestar o facto de que o direito é para os homens uma

experiência psicológica vivida, particularmente sob a forma de regras, de princípios ou

Page 5: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

5

de normas gerais. No entanto, o problema não está de modo algum em admitir ou

contestar a existência da ideologia jurídica (ou da psicologia), mas em demonstrar que

as categorias jurídicas não têm outra significação para além da sua significação. (p. 77).

[…] o que importa demonstrar não é que os conceitos jurídicos gerais possam

entrar […] nos processos […] ideológicos – o que de modo algum é contestável – mas

sim que a realidade social, em certa medida encoberta por um véu místico, não pode ser

descoberta através destes conceitos. (p. 79).

A contestação da natureza ideológica de um dado conceito não nos dispensa de

modo algum da obrigação de estudar a realidade objetiva. (p. 79-80).

[…] se se fica no plano psicológico perde-se simplesmente qualquer razão para

falar do Estado como de uma unidade objectiva. É somente quando se considera o

Estado como uma organização real do domínio de classe […] que nos situamos em

terreno sólido e podemos […] estudar o Estado tal como ele é na realidade e não apenas

as formas subjectivas […]. (p. 83).

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O Caráter Objetivo (Real) do Direito Do exposto de modo algum deriva [...] que eu considere a forma jurídica como

um simples reflexo de uma pura ideologia [...] a forma jurídica, expressa por abstrações

lógicas, é produto da forma jurídica real ou concreta [...] um produto da mediação real

das relações de produção. (p. 33-34).

[...] a gênese da forma jurídica está por encontrar nas relações de troca [...], o

momento que [...] representa a realização completa da forma jurídica: o tribunal e o

processo. (p. 34).

A mediação jurídica só se conclui no momento do acordo. Porém, um acordo

comercial já não é um fenômeno psicológico; já não é uma ideia, uma forma de

consciência, é um fato econômico objetivo, uma relação econômica indissociavelmente

ligada à sua forma jurídica que também é objetiva. (p. 35).

O objetivo prático da mediação jurídica é o de garantir a marcha, mais ou menos

livre, da produção e da reprodução sociais. (p. 35).

[...] o ponto de vista jurídico é comparativamente mais estranho à consciência do

indivíduo médio, do que o ponto de vista económico; porque, mesmo quando a relação

económica se realiza simultaneamente como relação jurídica, é precisamente o aspecto

económico que, na maioria dos casos, é actualizado pelos protagonistas desta relação,

enquanto que o momento jurídico permanece num segundo plano e só em casos

excepcionais se revela claramente (processos, litígios jurídicos). (p. 56).

[...] por exemplo, o conceito de energia [cuja] investigação [...] não está

limitadapor qualquer espécie de marco cronológico. A lei da transformação da energia

já actuava muito antes do aparecimento do homem sobre a terra [...]. Ela situa-se fora do

tempo, é uma lei eterna [...]; para as ciências sociais [...] conceitos fundamentais [como]

o do valor [...] é um conceito não só histórico mas igualmente se torna patente que,

como substracto da história deste conceito, como parte da história da teoria da economia

política, nós temos uma história real do valor. (p. 68).

O direito igualmente [...] tem uma história real, paralela que não se desenvolve

como um sistema particular de pensamento mas antes como um sistema particular de

relações que homens realizam em consequência não de uma escolha consciente, mas

sob pressão das relações de produção. O homem torna-se sujeito jurídico com a mesma

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necessidade de transformar o produto natural numa mercadoria dotada das propriedades

enigmáticas do valor. (p. 69).

A relação jurídica [é] uma relação abstrata [...] que não aparece [...] como

resultado do trabalho conceitual de um sujeito pensante mas como o produto da

evolução social [...]. o sujeito, neste caso, a sociedade burguesa moderna, é um dado

existente tanto na realidade como no pensamento. (p. 72).

As categorias da mercadoria, do valor e do valor de troca são, sem qualquer

dúvida, formações ideológicas, representações deformadas, mistificadas (segundo

expressão de Marx) […]; basta passar a outras estruturas económicas para que estas

categorias […] percam todo o seu significado […]. Porém, […] não significa que as

categorias […] tenham exclusivamente uma significação psicológica […]; a categoria

da mercadoria, por exemplo […] reflecte uma relação social objectiva. (p. 78).

O Estado não é apenas uma forma ideológica, mas também, e simultaneamente,

uma forma de ser social. (p. 81).

Mesmo Hans Kelsen, o mais coerente partidário do método puramente

normativo, teve de reconhecer que era necessário conferir, de uma maneira ou de outra,

à ordem normativa ideal, um elemento de vida real, isto é, de conduta humana efectiva

[...]. Na realidade material a relação prevalece sobre a norma. Se nenhum devedor

pagasse as suas dívida, então, a regra correspondente deveria ser considerada inexistente

de facto. (p.96-97).

É preciso ter em conta que as leis apenas geram o Direito, na medida em que se

realizem e que as normas saiam da existência da papelada para se afirmarem na vida

humana como poder. (FERNECK apud PACHUKANIS, 1977, p. 97).

O direito, enquanto fenómeno social objectivo, não pode esgotar-se na norma ou

na regra, que ela seja ou não escrita. A norma como tal, isto é, o seu conteúdo lógico, ou

é deduzida directamente das relações já existentes ou então, representa quando é

promulgada como lei estadual apenas um sintoma que permite prever com certa

probabilidade o futuro nascimento da relações correspondentes [...]. Quando o jurista

dogmático tem de decidir se uma determinada forma jurídica está ou não em vigor, ele

não procura geralmente determinar a existência ou não existência de um determinado

fenómeno social objectivo, mas apenas a presença, ou não presença, de um vínculo

lógico entre a proposição normativa dada e as premissas normativas mais gerais. (p. 98).

O teórico máximo do normativismo, Kelsen, conclui daí que o Estado em geral

só existe como objecto do pensamento, como sistema fechado de normas ou de

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obrigações. Uma tal imaterialidade do objecto da teoria do direito público deve,

certamente, horrorizar os juristas prácticos [que] compreendem o valor [...] dos seus

conceitos não apenas no reino da pura lógica [...]. O Estado dos juristas, não obstante a

sua natureza ideológica, está ligado a uma realidade objectiva. (p. 189).

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Crítica ao Normativismo e Kelsen (e à Teoria Pura Do Direito) No plano do dever ser jurídico, nada mais existe do que a passagem de uma

norma a outra segundo os degraus de uma escala hierárquica, no cimo da qual se

encontra a autoridade suprema que formula ass normas e que engloba o todo – um

conceito limite de que a jurisprudência parte como de um dado. (p. 45).

Uma tal teoria geral do direito, que nada explica, que, à-priori, volta as costas às

realidades de facto, isto é, à vida social, e que se preocupa com normas sem se

preocupar com sua origem ou das suas relações com quaisquer interesses materias, não

pode ter pretensões a título de teoria [...] não pretende de modo algum estudar a

realidade [...]. Não há muito que se possa tirar dela. (.46).

O extremo formalismo da escola normativa (Kelsen) exprime, sem sombra de

dúvida, a decadência geral do mais recente pensamento científico burguês, o qual,

glorificando o seu total afastamento da realidade, se evai em estéreis artifícios

metodológicos e lógicos-formais. (p. 72).

[...] nos ocuparmos da opinião daqueles para quem o direito deve ser concebido

exclusivamente como uma norma objectiva [...]. Se se parte desta concepção, então, de

um lado, temos como norma a regra imperativa, autoritária e, do outro lado, a obrigação

subjectiva que corresponde a essa regra e foi criada por ela. (p. 114).

[sobre o direito subjetivo] se a tentativa para reduzir o direito de propriedade a

uma série de interdições dirigidas a terceiras pessoas é apenas um procedimento lógico,

uma construção mutilada e deformada, a representação do direito de propriedade

burguês como uma obrigação social não passa então, além disso, de hipocrisia. Duguit

[...] afirma que o possuidor o capital só deve ser juridicamente protegido porque exerce,

através de justas colocações do seu capital, funções socialmente úteis. Estas

considerações [...] são os sintoma do declínio da época capitalista. Mas a burguesia, por

outro lado, tolera tais considerações acerca das funções sociais da propriedade, apenas

porque elas em nada a comprometem [...]; a antítese real da propriedade não é a

propriedade concebida como função social, mas a economia planificada socialista, ou

seja, a supressão da propriedade [...]. A explicação de Duguit, segundo a qual o

proprietário não deve ser protegido senão quando cumpre as suas obrigações sociais,

não tem, sob esta forma geral, qualquer sentido [...]. Seria uma ilusão afirmar que

qualquer indivíduo que, dentro das fronteiras da União Soviética, tenha acumulado uma

certa quantidade de dinheiro, só é protegido pelas nossas leis e pelos nossos tribunais

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porque ele encontrou ou encontrará uma utilização social proveitosa para o dinheiro

acumulado. (p. 115-116).

A tendência para fazer da ideia de regulamentação externa o momento lógico

fundamental do direito conduz a identificar o direito com a ordem social estabelecida

autoritariamente [...]. O capital financeiro aprecia muito mais um poder forte e a

disciplina do que os direitos eternos e intocáveis do homem e do cidadão. (119).

[...] a ideia de submissão incondicional a uma autoridade normativa externa não

tem a mínima relação com a forma jurídica. Basta, para isso, tomar como exemplos

casos limites que por esse facto são mais claros. Consideramos o exemplo de uma

formação militar onde numerosos homens se encontram subordinados, nos seus

movimentos, a uma única ordem comum e onde o único princípio activo e autónomo é a

vontade do comandante [ a partir daí pode-se] concluir que quanto mais o princípio da

regulamentação autoritária, que exclui qualquer referência a uma vontade particular

autónoma, é aplicado de maneira coerente, mais se restringe o campo de aplicação da

categoria do direito. Isto é particularmente perceptível na esfera do direito público. (p.

119-120) [ isso porque a vontade é o elemento essencial à atividade mercantil]

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Indivíduo, Sociedade Burguesa e Sujeito de Direito O sujeito como portador e destinatário de todas as pretensões possíveis, a cadeia

de sujeitos ligados uns aos outros por pretensões recíprocas, tal é a estrutura económica,

isto é, às relações de produção de uma sociedade assente na divisão do trabalho e na

troca. (p. 117).

O sujeito como portador e destinatário de todas as pretensões possíveis, a cadeia

de sujeitos ligados uns aos outros por pretensões recíprocas, tal é a estrutura económica,

isto é, às relações de produção de uma sociedade assente na divisão do trabalho e na

troca. (p. 117).

Toda a relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da

teoria jurídica, o seu elemento mais simples, indecomponível. Eis porque igualmente

iniciaremos a nossa análise pelo sujeito. (p. 131).

[...] a propriedade só se torna o fundamento da forma jurídica enquanto livre

disponibilidade dos bens no mercado. A categoria de sujeito serve então precisamente

como expressão geral desta liberdade. (p. 132).

[...] o capitalismo transforma [...] a propriedade fundiária feudal em propriedade

fundiária moderna justamente ao libertá-la totalmente das relações de domínio e

servidão. O escravo está totalmente subordinado ao seu senhor e é precisamente por esta

razão que esta relação de exploração não carece de qualquer construção jurídica

particular. O trabalhador assalariado, pelo contrário, aparece no mercado como livre

vendedor da sua força de trabalho e esta é a razão pela qual a relação de exploração

capitalista se mediatisa sob a forma jurídica do contrato. (p. 133).

As premissas materiais [...] das relações entre os sujeitos jurídicos foram

definidas pelo próprio Marx no primeiro tomo do Capital, muito embora só de

passagem, sob a forma de anotações muito gerais [...]. A análise da forma do sujeito

deriva, em Marx, imediatamente da análise da forma da mercadoria. (p. 135).

A sociedade capitalista é, antes de tudo, uma sociedade de proprietários de

mercadorias. Isto significa que as relações sociais dos homens no processo de produção

revestem uma forma coisificada nos processos do trabalho que surgem, uns em relação

aos outros, como valores. A mercadoria é um objecto no qual a diversidade concreta das

propriedades úteis se torna simplesmente a envoltura coisificada da propriedade

abstracta do valor, que se exprime como capacidade de ser trocada numa determinada

proporção por outras mercadorias. Esta propriedade exprime-se como uma qualidade

inerente às próprias coisas em virtude de uma espécie de lei natural que age nas costas

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dos homens de maneira totalmente independente da sua vontade. Mas se a mercadoria

adquire o seu valor independentemente da vontade do sujeito que a produz, a realização

do valor no processo de troca pressupõe, pelo contrário, um acto voluntário, consciente,

da parte do proprietário de mercadorias; ou, como diz Marx: “as mercadorias não

podem, de modo algum, ir, por elas próprias, ao mercado, nem trocar-se, elas próprias,

entre si. Necessitamos assim de voltar os nossos olhares para os seus guardiões e

condutores, isto é, para seus possuidores. As mercadorias são coisas e,

consequentemente, não opõem ao homem qualquer resistência. Se elas carecem de boa

vontade ele poderá entregar por força, por outras palavras, poderá apoderar-se delas”.

Deste modo, o vínculo social entre os homens ao processo de produção, vínculo que se

coisifica nos produtos do trabalho, e que reveste a forma de uma legalidade elementar,

exige, para a sua realização, uma relação particular entre os homens, enquanto

indivíduos que dispõem de produtos, enquanto sujeitos cuja “vontade habita nas

próprias coisas”. “O facto de os bens económicos conterem trabalho constitui uma

propriedade que lhes é inerente; o facto de eles poderem ser trocados constitui uma

segunda propriedade, que apenas depende da vontade dos seus proprietários, sob a única

condição de tais bens serem apropriáveis e alienáveis”. Eis porque, ao mesmo tempo

que o produto do trabalho reveste as propriedade da mercadoria e se torna portador de

valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos. “A pessoa, cuja vontade

é declarada, é o sujeito de direito. A vida social desintegra-se simultaneamente, por um

lado, numa totalidade de relações coisificadas [...], isto é [...], onde os homens [são]

coisas, e, por outro lado, numa totalidade de relações onde o homem se determina tão só

quando é oposto a uma coisa, isto é, onde é definido como sujeito. [Estas] duas formas

fundamentais [...] se distinguem [e] ao mesmo tempo, se condicionam mutuamente e

estão ligadas entre si. Deste modo, o vínculo social enraizado na produção, apresenta-se

simultaneamente sob duas formas absurdas [...], como valor de mercadoria e [...] como

capacidade do homem para ser sujeito de direito. (p. 135-137).

“Todos devem ser livres e ninguém deve entravar a liberdade dos outros. Cada

um possui o seu corpo como livre instrumento da sua vontade” [...]. Esta condição

jurídica, ela própria, ou para empregar as palavras do mesmo autor, “a existência

simultânea de numerosas criaturas livres, que devem todas ser livres e cuja liberdade

não deve entravar a liberdade dos outros”, mais não é do que o mercado idealizado,

transposto para as nuvens da abstração filosófica e liberto da grosseira empírica, onde se

encontram os produtores independentes, - pois como nos ensina um outro filósofo: “no

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contrato comercial, as duas partes fazem o que querem e cada parte não exige para si

própria mais liberdade do que aquela que concede à outra, (p. 140).

Dernburg tem tendência em tratar o sujeito jurídico como “personalidade em

geral”, isto é, como uma categoria eterna [..]. Na realidade, a categoria de sujeito

jurídico é, evidentemente, abstraída do acto de troca que ocorre no mercado. (p. 143).

É somente na econômica mercantil que nasce a forma jurídica abstracta, por

outras palavras, que a capacidade geral de ser titular de direitos se separa das pretensões

jurídicas concretas. Só a contínua mutação dos direitos que ocorre no mercado cria a

ideia de um portador imutável destes direitos. No mercado, aquele que obriga alguém

obriga-se simultaneamente [...]. Assim se cria a possibilidade de abstrair das diferenças

concretas entre os sujeitos jurídicos e de os reunir num único conceito genérico. (p.

144).

Assim como os actos de troca da produção mercantil evoluída foram precedidos

por actos [...] e formas primitivas de troca [...], o sujeito jurídico [foi] precedido pelo

indivíduo armado [...]. Esta íntima relação morfológica cria uma clara ligação entre o

tribunal e o duelo, entre as partes de um processo e os protagonistas de uma luta

armada. Mas, como o aumento das forças sociais disciplinadoras, o sujeito perde a sua

concretização material. Em vez da sua energia pessoal surge o poder da organização

social, isto é, da organização da classe, que encontra a sua expressão mais elevada no

Estado [...]. A partir deste momento a figura de sujeito jurídico começa já a não se

revelar o que é na realidade, isto é, o reflexo de uma relação que nasce nas costas dos

homens, mas parece ser uma invenção artificial da razão humana. (p. 145).

No mundo feudal cada direito era um privilégio [...], cada cidade, cada estado

social, cada corporação viva segundo o seu próprio direito, que acompanhava o

indivíduo onde quer que ele fosse. Nesta época, faltava completamente a ideia de um

estatuto jurídico formal comum a todos os cidadãos, a todos os homens [...]. A

igualdade dos sujeitos era pressuposta apenas no concernente a relações compreendidas

numa esfera relativamente limitada [...]; o sujeito jurídico só aparece como o portador

geral abstracto de todas as pretensões jurídicas concebíveis na qualidade de titular de

privilégios concretos [...]; na Idade Média [...], a ideia de uma norma objectiva, dirigida

a um círculo indeterminado e alargado de pessoas, confundia-se igualmente com a

instituição de privilégios e de liberdades concretas. No séc. XIII ainda não se encontra

[uma] diferença existente entre o direito objectivo e o direito subjectivo. (p. 146-148).

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Naturalmente que os possuidores de mercadorias, mesmo antes de se

reconhecerem mutuamente como proprietários, já eram também proprietários, mas num

sentido diferente, orgânico, extra-jurídico. (p. 150).

Para que os produtos do trabalho humano possam entrar em contacto uns com os

outros como valores, devem os homens comportar-se reciprocamente como pessoas

independentes e iguais. Quando um homem se encontra sujeito ao poder de outrem, isto

é, quando é escravo, o seu trabalho deixa de ser criador de substancia de valores. (p.

193).

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Sujeito Egoísta, Direito e Capitalismo [...] o Homem, enquanto sujeito moral, isto é, enquanto pessoa igual às outras

pessoas, não é mais do que a condição prévia da troca com base na lei do valor. O

homem enquanto sujeito jurídico, isto é, enquanto proprietário, representa igualmente

semelhante condição. Estas duas determinações estão, finalmente, muito intimamente

ligadas a uma terceira onde o homem figura como sujeito económico egoísta. Estas três

determinações [...] exprimem o conjunto das condições necessárias à realização do

valor. (p. 194).

[...] o agente da troca incarna o princípio da igualdade fundamental das pessoas

humanas dado que na troca todas as variedades do trabalho são assimiladas umas às

outras e reduzidas ao trabalho humano abstracto. (p. 195).

O sujeito egoísta, o sujeito jurídico e a pessoa moral são as três principais

máscaras sob as quais aparece o homem na sociedade de produção mercantil [...], a

chave para compreender a estrutura jurídica e moral, não no sentido do conteúdo

concreto da norma jurídica ou moral, mas no sentido da própria forma do direito e da

moral. (p. 195).

O conceito de pessoa moral ou o de pessoa igual é, sem qualquer dúvida, uma

construção ideológica que, como tal, não é adequada à realidade. Também o conceito de

sujeito económico egoísta é, em igual medida, uma deformação ideológica da realidade.

(????????)

Se a pessoa moral mais não é do que o sujeito da sociedade de produção

mercantil, então a lei moral deve manifestar-se como regra das relações entre os

proprietários de mercadorias. (p. 197).

O universalismo da forma ética (e, por consequência, também da forma jurídica)

– todos os homens são iguais, todos possuem uma mesma alma, todos podem ser

sujeitos jurídicos, etc. – foi imposta aos Romanos pela práctica das relações comerciais

com os estrangeiros. [...] o próprio jus gentium constituía uma consequência do

desprezo que os Romanos votavam a todo o direito estrangeiro e da sua hostilidade em

conferir aos estrangeiros os privilégios do jus civile do seu país. (p. 201).

[...] a ética racionalista da sociedade de produção mercantil foi posteriormente

apresentada como uma grande conquista e como um valor cultural muito elevado. (p.

202).

[...] Kautsky observa muito corretamente que a regra: “considera o teu próximo

como um fim em si” só ganha sentido aí onde o homem possa, na práctica ser

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convertido num meio ao serviço de outro homem. O pathos moral está

indissoluvelmente ligado à imoralidade da prática social e alimenta-se dela. As

doutrinas morais têm a pretensão de modificar o mundo ou de melhorá-lo mas, na

realidade, mais não são do que um reflexo deformado, do que um aspecto deste mundo

verdadeiro, aspecto que precisamente mostra as relações humanas sujeitas à lei do valor.

(p. 202).

[...] o homem como fim em si é apenas um outro aspecto do sujeito económico

egoísta. Uma acção [...] real [...] do princípio ético engloba também a negação deste

princípio. O grande capitalista arruína de “boa fé” o pequeno capitalista sem que por

isso se preocupe com o valor absoluto da pessoa. A pessoa do proletário é “igual em

princípio” à pessoa do capitalista; isso exprime-se no “livre” contrato de trabalho. Mas

desta mesma “liberdade materializada” resulta para o proletário a possibilidade de

morrer tranquilamente à fome [...]. A supressão desta duplicidade da forma ética

significa a passagem à economia socializada e planificada [...]; a supressão dos fetiches

éticos não podem realizar-se na prática senão com a supressão simultânea do fetichismo

mercantil e do fetichismo jurídico. (p. 203).

[...] poderão retorquir-me dizendo que, actualmente, a moral de classe do

proletariado se liberta de todos os fetiches [...]. É indubitável que a moral do

proletariado ou, mais exatamente, a moral da sua vanguarda perde o seu duplo carácter

fetichista ao purificar-se, por exemplo, dos elementos religiosos. Porém, mesmo uma

moral liberta de qualquer impureza, nomeadamente dos elementos religiosos,

permanece mesmo assim uma moral, isto é, uma forma das relações sociais onde ainda

nem tudo é referido ao próprio homem. Efectivamente logo que o vínculo vivo que liga

o indivíduo à classe seja tão forte que os limite do seu Eu como que por assim dizer se

apaguem e logo que, efectivamente, o interesse da classe se torna idêntico ao interesse

pessoal, então será absurdo falar do cumprimento de um dever moral e seja como for o

fenômeno da moral será inexistente. (p. 205).

[...] “age de tal maneira que isso aproveite, no máximo, à tua classe [...]”.

Resulta por si que, numa sociedade dilacerada por lutas de classes, uma ética sem

conteúdo de classe só pode existir não na prática mas apenas na imaginação. O operário,

que apesar das privações a que se expõe, se decide a participar num greve, pode

certamente formular a sua decisão como um dever moral que lhe prescreve a

subordinação dos seus interesses privados ao interesse geral. Porém, é inteiramente

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claro que este conceito de interesse geral não pode englobar igualmente os interesses do

capitalista contra os quais a luta operária é conduzida. (p. 205).

[...] as condições de vida do proletariado constituem as premissas do

desenvolvimento de uma forma nova, superior e mais harmoniosa, das relações entre o

indivíduo e a colectividade [...]. Mas ao lado do novo, continua a subsistir também o

antigo. Ao lado do homem social do futuro [...], continua a existir igualmente o homem

moral que carrega sobre os ombros o fardo de um dever mais ou menos abstracto. A

vitória da primeira forma equivale à libertação completa do homem de todos os

resquícios das relações jurídico-privadas e à transformação definitiva da humanidade na

senda do comunismo [...]; certamente que esta tarefa não contitui, de modo algum, uma

tarefa puramente ideológica ou pedagógica. O novo tipo de relações humanas necessita

da criação e da consolidação de uma nova base material, económica. (p. 206).

[...] a Moral, o Direito e o Estado constituem formas da sociedade burguesa.

Ainda que o proletário seja forçado a utilizar estas formas, isso de modo algum significa

que elas possam continuar a desenvolver-se integrando um conteúdo socialista. Elas[...]

deverão perecer à medida que tal conteúdo se vá concluindo. Todavia, no actual período

de transição, o proletariado deve utilizar, em proveito dos seus interesses de classe, estas

formas herdadas da sociedade burguesa, esgotando-se assim completamente. [...] por

isso o proletariado deve [...] ter uma representação muito clara, liberta de qualquer véu

ideológico, da origem histórica estas formas [...], deve ter uma atitude friamente crítica

não apenas face à Moral e ao Estado burguês, mas também face ao seu próprio Estado e

À sua própria Moral [...], ele deve estar consciente da necessidade histórica da sua

existência mas também do seu desaparecimento. (p. 206-207).

[...] Marx indica que [a] justiça não é, de modo algum, um critério absoluto e

eterno, a partir do qual se possa edificar uma relação de troca ideal, isto é, justa [...], a

justiça é a via que conduz da ética ao direito. A conduta moral deve ser “livre”,

enquanto a justiça pode ser obtida pela força. A coacção que compele à conduta moral

conduz a negar a própria realidade desta; a justiça em contrapartida “cabe” claramente

em partilha ao homem [que] autoriza a realização externa e uma actividade egoísta

interessada. Aí residem os mais importante pontos de contacto e de discordância entre a

forma ética e a forma jurídica. (p. 207-208).

Uma vez que a relação jurídica pode constituir-se de maneira puramente teórica

como o reverso da relação de troca, então a sua realização prática exige a presença de

modelos gerais, mais ou menos fixos, uma elaborada casuística e [...] que garanta a

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execução coactiva das decisões. Estas necessidades são satisfeitas, da melhor forma,

pelo poder do Estado embora frequentemente a relação jurídica se realize também sem

sua intervenção graças ao direito consuetudinário, à arbitragem voluntária, à justiça

pessoal. (p. 209).

[...] contrariamente à exigência moral, a exigência jurídica não se revela sob a

forma de uma “voz exterior” mas sim como uma exigência exterior, procedente de um

sujeito concreto que, em regra, é também o titular de um interesse material

correspondente. (p. 210).

No primeiro caso [a relação entre o direito e a moral], quando é afirmada a

autonomia do direito em relação à moral, o direito confunde-se com o Estado, em

virtude da forte acentuação do momento da coacção externa. No segundo caso quando o

direito é oposto ao Estado, isto é, à dominação de facto, o momento do dever entra

inevitavelmente em cena [...], temos [...] uma frente única do direito e da moral. (p.

212).

[...] o direito tem um carácter bilateral imperativo-atributivo enquanto que a

moral tem um carácter unicamente obrigatório ou imperativo. (p. 2012).

A contradição entre o individual e o social, entre o privado e o público que a

filosofia burguesa do direito, apesar de todos os seus esforços, não pode suprimir,

constitui o fundamento real da sociedade burguesa enquanto sociedade de produtores de

mercadorias. Esta contradição é aqui incarnada pelas relações reais dos homens, que não

podem considerar as suas actividades privadas sociais senão sob a absurda e mistificada

forma do valor mercadoria. (p. 213-214).

Page 19: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

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Mercadoria e Direito [...] a apropriação de um produto, no interior de uma dada formação social [é]

uma lei fundamental. Mas esta relação só reveste a forma jurídica da propriedade

privada num determinado estádio de desenvolvimento das forças produtivas e da divisão

do trabalho que lhe está ligada. (p. 132).

Se a coisa domina economicamente o homem, visto que coisifica, a título de

mercadoria, uma relação social que não está subordinada ao homem, em contrapartida,

o homem reina juridicamente sobre a coisa [...]. As relações dos homens, no processo de

produção, revestem assim, num certo estádio de desenvolvimento, uma forma

duplamente enigmática. (p. 138-144).

A esfera do domínio, que reveste a forma do direito subjectivo, é um fenómeno

social que é atribuído ao indivíduo da mesma maneira que o valor, outro fenómeno

social, é atribuído à coisa, enquanto produto do trabalho. O fetichismo da mercadoria é

completado pelo fetichismo jurídico. (p. 143).

A formação de um mercado estável cria a necessidade de uma regulamentação

do direito de dispor das mercadorias e, por consequência, do direito de propriedade. (p.

151).

Page 20: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

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Propriedad, Propriedade Feudal e Propriedade Burguesa É preciso procurar a explicação da contradição existente entre a propriedade

feudal e a propriedade burguesa nas suas respectivas relações com a circulação. Aos

olhos do mundo burguês, o defeito principal da propriedade feudal não reside na sua

origem (espoliação, violência, etc.) mas na sua imobilidade, na sua incapacidade de se

tornar o objecto de uma garantia recíproca passando de uma mão para outra no acto de

alienação e de aquisição. A propriedade feudal ou corporativa viola o princípio

fundamental da sociedade burguesa: “igual oportunidade de aceder à desigualdade”. (p.

153).

A luta de classe provocou, muitas vezes, na história uma redistribuição dos

usurários e dos grandes proprietários fundiários [...]. Os mesmos homens que se

insurgiram contra a propriedade acabaram por afirmá-los quando no dia seguinte se

encontraram no mercado como produtores independentes. (p. 153).

A propriedade em sentido jurídico nasceu, não porque tenha surgido aos homens

a ideia de se atribuírem reciprocamente tal qualidade jurídica, mas porque só podiam

trocar mercadorias revestindo-se da máscara do proprietário. O poder ilimitado de

dispor da coisa é apenas o reflexo da circulação ilimitada das mercadorias. (p. 155).

A relação do homem com uma coisa, que ele próprio produziu [...] representa

[...] historicamente um elemento do desenvolvimento da propriedade privada [...].

Porém, a propriedade privada só reveste um carácter acabado e universal com a

passagem à economia mercantil [...] capitalista [que] rompe todos os vínculos com as

sociedades orgânicas [...]. Ela aparece, na sua significação universal como [...]

realização prática da capacidade abstracta de ser um sujeito de direitos. (p. 157).

A propriedade fundiária capitalista não pressupõe qualquer espécie de ligação

orgânica entre a terra e o seu proprietário [...]. Os fundos de terra comuns [..] não eram

[...] propriedade de uma pessoa jurídica [...] mas eram utilizados pelos membros [...]

enquanto pessoa colectiva [...]. A propriedade capitalista é, no fundo, a liberdade de

transformação do capital de uma forma para outra [...] com vista a obter o maior lucro

possível sem trabalhar. Esta liberdade de dispor da propriedade capitalista é impensável

sem a existência de indivíduos carecidos de propriedade, isto é, de proletários. A forma

jurídica da propriedade não está, de modo algum, em contradição com o facto da

expropriação de um grande número de cidadãos, pois a qualidade de ser sujeito jurídico

é uma qualidade puramente formal. Ele define todas as pessoas como igualmente

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“dignas” de serem proprietários, mas não as torna, outrossim, proprietários. (p. 158-

159).

Em virtude da evolução do modo de produção capitalista, o proprietário liberta-

se progressivamente da funções técnicas de produção e perde assim igualmente o

domínio jurídico total sobre o capital. Numa empresa de acionistas, o capitalista

individual possui apenas a titularidade de uma quota-parte determinada do rendimento

que obtém sem trabalhar [...]. A massa mais importante do capital torna-se inteiramente

uma força de classe impessoal [...]. Na realidade, é um grupo, relativamente restrito de

grandes capitalistas, que dispõe de grande massa do capital e que, além disso, actua não

directamente mas por intermédio de representantes ou de procuradores com poderes

estipulados. A forma jurídica distinta da propriedade privada já não refecte mais a

situação real das coisas, sendo um dado o de que a dominação efectiva se estende

através de métodos de participação, de controle, etc., muito para lá do quadro puramente

jurídico. Aproximamo-nos então do momento em eu a sociedade capitalista se encontra

já amadurecida para se transformar no seu contrário [...]. Porém, muito antes desta

mutação, o desenvolvimento do modo de produção capitalista, edificado sobre o

princípio da livre concorrência, transforma estre princípio em seu contrário. (p. 160-

161).

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A Forma na Economia Política e no Dirito Marx mostra [...] o profundo vínculo interno que existe entre a forma jurídica e a

forma mercantil. Uma sociedade que é constrangida, pelo estado das suas forças

produtivas, a manter uma relação de eqiuvalência entre o dispêndio de trabalho e a

remuneração sob uma forma que lembra, mesmo de longe, a troca de valores-

mercadorias, será igualmente constrangida a manter a forma jurídica. (p. 62).

A evolução histórica não implica apena uma mudança no conteúdo das normas

jurídicas e uma modificação das instituições jurídicas, mas também um

desenvolvimento da forma jurídica como tal. Esta [...] permanece, durante longo tempo,

num estado embrionário com uma fraca diferenciação interna e sem delimitação

relativamente às esferas próximas (costume, religião). (p. 74).

A este dois cilos de desenvolvimento correspondem duas épocas de

desenvolvimento superior dos conceitos jurídicos gerais: Roma e o seu sistema de

direito privado e, os séculos XVII e XVIII, na Europa, quando um pensamento

filosófico descobriu a significação universal da forma jurídica como potencialidade que

a democracia burguesa era chamada a realizar. (p. 74-75).

[…] Engels examina o problema das relações entre o conceito e o fenómeno

[ele] demonstra precisamente que o feudalismo nunca correspondeu ao seu conceito

sem, no entanto, deixar de ser feudalismo. O conceito de feudalismo, é ele próprio, uma

abstracção que se baseia em tendências reais deste sistema social a que chamamos

feudal […]; a unidade do conceito e do fenómeno é no fundo um processo infinito. (p.

83-84).

[…] se observamos, digamos na esfera da pequena produção, uma passagem

progressiva do trabalho destinado ao cliente consumidor para o trabalho destinado ao

comerciante, nós constatamos que as relações correspondentes se revestiram de uma

forma capitalista. (p. 85).

Uma vez que ele próprio [o direito] é uma relação social pode comunicar-se

mais ou menos a outras relações sociais ou transferir para elas a sua forma. Porém,

jamais poderemos abordar o problema sob esta perspectiva, deixando-nos guiar por uma

representação confusa do direito como forma em geral, tal como a economia vulgar não

pôde captar a essência das relações Capitalistas, partindo do conceito de capital como

trabalho acumulado em geral. (p. 85)

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[…] evitaremos esta contradição aparente se chegarmos a demonstrar, através da

análise das definições fundamentais do direito, que […] este representa a forma […] de

uma relação social específica. (p. 85).

A norma jurídica deve a sua especificidade [...] precisamente ao facto de

pressupor uma pessoa munida de direitos fazendo valer através deles, activamente,

pretensões. (p. 119).

Page 24: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

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Crítica às Demais Escolas do Direito A escola do direito natural não foi somente a expressão mais saliente da

ideologia burguesa [...] mas legou-nos também o mais profundo e claro modelo para a

compreensão da forma jurídica. (p. 70). – II (Ver citação de Bergbohm na mesma

página).

[...] na segunda metade do séc. XIX, se extinguiu definitivamente a chama

revolucionária da burguesia [que agora] aspira a uma estabilidade e aum poder forte. Eis

porque já não é a análise da forma jurídica que se encontra no centro dos interesses da

teoria jurídica mas antes o problema do fundamento da força coactiva dos preceitos

jurídicos. Daí resulta [o] positivismo jurídico, que se reduz à negação de todo o direito

que não seja o direito oficial. (p. 71).

[...] esta teoria [o direito natural] foi a bandeira revolucionária sob a qual a

burguesia conduziu as suas lutas revolucionárias contra a sociedade feudal. Eis o que

igualmente determina o destino da doutrina. Desde que a burguesia se tornou uma

classe dominante, o passado revolucionário do direito natural começa a despertar nela

apreensões e as terias dominantes apressaram-se a pôr de lado esta doutrina [...], a teoria

jurídica do Estado, que substituiu a teoria do direito natural e que repudiou a teoria dos

direitos inatos e inalienáveis do homem e do cidadão, ao denominar-se teoria “positiva”,

não menos deforma a realidade efectiva. (p. 184).

O essencial da doutrina do direito natural consistia, com efeito, em admitir ao

lado das diferentes espécies de dependências de um homem em face de outro [...] ainda

um outro tipo de dependência, dependência em face da vontade geral, impessoal, do

Estado [...], esta construção precisamente constitui também o fundamento da teoria

jurídica do Estado como pessoa. O elemento de direito natural [...] reside no próprio

conceito de poder público, ou seja, de um poder que não pertence a ninguém em

particular, que se situa acima de todos e a todos se dirige. (p. 185-186).

Page 25: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

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Forma Embrionária do Direito [...] uma forma desenvolvida e acabada, verdadeiramente não exclui formas

embrionárias e rudimentares; pelo contrário, pressupõe-nas. (p. 36).

A forma mais desenvolvida permite-nos compreender os estados anteriores onde

ela surge unicamente de forma embrionária. (p. 73).

[…] a disciplina das relações sociais, em certas condições, reveste um carácter

jurídico […]. Se passarmos aos povos primitivos vemos aí certamente o embrião de um

direito, mas a maior parte das relações é disciplina extra-juridicamente, nomeadamente

sob a forma de preceitos religiosos. (p. 86).

Os direitos públicos do senhor feudal perante os seus camponeses eram ao

mesmo tempo os seus direitos como proprietário privado; inversamente, os seus direitos

privados podem ser interpretados, se assim se quiser, como direitos políticos, isto é,

públicos [...]. Na realidade, nós cuidamos de uma forma jurídica embrionária que ainda

não desenvolveu nela própria as determinações opostas e correlactivas de direito

privado e de direito público. Eis porque qualquer poder que possua os traços das

relações patriarcais ou feudais é, simultaneamente, caracterizado pela predominância do

elemento teológico sobre o elemento jurídico [que] só se torna possível com o

desenvolvimento da economia monetária e do comércio. (p. 172).

Page 26: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

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Capitalismo, Estado E Direito O Estado moderno, no sentido burguês da palavra, nasce no momento em que a

organização do poder de grupo ou de classe engloba relações mercantis suficientemente

extensas. (p. 173).

O domínio da burguesia revela-se tanto na dependência do governo em face dos

bancos e dos grupos capitalistas, como na dependência de cada trabalhador particular

em face da entidade que o emprega. (p. 175).

Engels [...] considera o Estado como expressão do facto de a sociedade se achar

dilacerada por insolúveis contradições de classes [e] para que [...] as classes com

interesses económicos opostos não se destruam entre si e à sociedade numa luta estéril,

impõe-se a necessidade de um poder que, colocado aparentemente acima da sociedade,

deva atenuar o conflito, mantê-lo dentro dos limites da ordem [...]. Sabemos que o

aparelho do poder de Estado foi sempre criado pela classe dominante. Cremos que o

próprio Engels teria repudiado uma tal interpretação das suas palavras. Mas, de qualquer

modo, a sua formulação não é muito clara. De acordo com ela o Estado surgiu porque,

se assim não fosse, as classes aniquilar-se-iam [...]. Neste caso, de duas uma: ou bem

que o Estado alcança esta relação de equilíbrio e será então uma fora situada acima das

classes, o que não podemos admitir; ou bem que ele é o resultado na vitória de uma das

classes [...], neste caso, a necessidade do Estado para a sociedade desaparece visto que,

com a vitória decisiva de uma classe, de novo se restabelece o equilíbrio e se salva a

sociedade [...]. Porque é que ele [o domínio de classe] assume a forma de um domínio

estadual oficial ou, o que vem a dar no mesmo, porque é que o aparelho de coacção

estadual não se constitui como aparelho privado da classe dominante, porque é que ele

se separa desta última e assume a forma de um aparelho de poder público impessoal,

destacado da sociedade? Não podemos contentar-nos com a explicação segundo a qual é

vantajoso para a classe dominante erigir um cenário ideológico e esconder o seu

domínio de classe por trás do guarda-vento do Estado [embora], uma tal explicação seja

sem dúvida correcta [...]. Se quisermos pôr a nu as raízes de uma ideologia, devemos

procurar as relações reais que ela exprime. (p. 174-178).

[...] a sujeição dos camponeses ao senhor feudal foi a consequência directa e

imediata do facto de o senhor feudal ser um grande proprietário fundiário e dispor de

uma força armada [...], esta relação de domínio de facto, assumiu progressivamente um

véu ideológico: o poder do senhor feudal foi deduzido progressivamente a partir de uma

autoridade divina supra-humana: toda a autoridade dimana de Deus. A subordina

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do operário assalariado ao capitalista e a sua dependência perante ele existe

igualmente sob a forma imediata: o trabalho morto acumulado domina aqui o trabalho

vivo. Porém, a subordinação deste mesmo operário ao Estado capitalista não é idêntica à

sua dependência em face do capitalista individual, que se encontra simplesmente

disfarçada sob a forma ideológica desdobrada [...], aqui há um aparelho particular

separado dos representantes da classe dominante, situado acima de cada capitalista

individual e que figura como força impessoal [...], esta força impessoal não mediatiza

cada uma das relações de exploração [...], o assalariado não é compelido, política e

juridicamente, a trabalhar para um determinado empresário [...]. A livre concorrência, a

liberdade da propriedade privada, “a igualdade dos direitos” no mercado e a garantia da

existência da classe unicamente como tal criam uma nova forma de poder de Estado, a

democracia, que permite, o acesso de uma classe colectivamente. (p. 178-180).

Na medida em que a sociedade representa um mercado, a máquina do Estado

realiza-se efectivamente como a vontade geral impessoal, como a autoridade do direito,

etc. Como já vimos, no mercado, cada adquirente e cada vendedor é um sujeito jurídico

por excelência. Aí, onde entram em cena as categorias de valor e do valor de troca, a

vontade autónoma dos que trocam é uma condição indispensável. O valor de troca deixa

de ser valor de troca, a mercadoria deixa de ser mercadoria quando as proporções da

troca são determinada por uma autoridade situada fora das lei imanentes ao mercado

quando as proporções da troca são determinadas por uma autoridade situada fora das

leis imanentes ao mercado. A coação, enquanto imposição baseada na violência e

dirigida por um indivíduo contra outro indivíduo, contradiz as premissas fundamentais

das relações entre os proprietários de mercadorias. Eis porque numa sociedade de

proprietários de mercadorias e dentro dos limites do acto de troca, a função de coação

não pode surgir como impessoal. Na sociedade de produção mercantil a subordinação a

um homem como tal, enquanto indivíduo concreto, significa a subordinação a um

arbítrio, visto que isso equivale à subordinação de um proprietários de mercadorias

perante outro. Eis porque também a coacção não pode aparecer aqui sob a forma não

mascarada, como um simples acto de oportunidade. Ela deve aparecer antes como uma

coacção que provém de uma pessoa colectiva abstracta e que é exercida não no interesse

do indivíduo donde provém – porque numa sociedade de produção mercantil cada

homem é um homem egoísta – mas no interesse de todos os membros que participam

nas relações jurídicas. O poder de um homem sobre outros exprime-se na realidade

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como o poder do direito, ou seja, como o poder de uma norma objectiva imparcial. (p.

181-182).

O Estado jurídico constitui uma miragem que convém bastante bem à burguesia,

visto que substitui a ideologia religiosa em decomposição e esconde aos olhos das

massas a realidade o domínio da burguesia. [Não obstante] ela não reflecte

completamente a realidade objectiva muito embora se apoie nela. (p. 186).

uma realidade objectiva. (p. 189).

Na época feudal, as funções administrativas e judiciárias era desempenhadas

pelos servidores do senhor feudal. Pelo contrário, os serviços públicos no sentido

próprio do termo, só aparecem nas comunidades urbanas; o carácter público da

autoridade encontra, então, a sua incarnação material. A procuração, no sentido do

direito privado, como mandato dado para conclusão de negócios jurídicos, destaca-se do

serviço público. Então, a monarquia absoluta só teve de apossar-se desta forma de

autoridade pública que tinha nascido nas cidades e aplica-la a um território mais vasto.

Todo o posterior aperfeiçoamento do Estado burguês, que se operou quer através de

explosões revolucionárias, quer através de uma adaptação pacífica aos elementos

monárquicos feudais, pode ser relacionado com um único princípio, no mercado pode

regulamentar a relação de troca. (p. 190).

A burguesia colocou este conceito jurídico de Estado na base das suas teorias e

tentou transpô-lo para a prática. (p. 191).

[...] a burguesia jamais perdeu de vista [...] que a sociedade de classe [é] o

campo de batalha de uma encarniçada guerra de classes, na qual o aparelho do Estado

representa uma arma muito poderosa. Neste campo de batalha as relações não se

formam de modo algum dentro do espírito da definição Kantiana do direito como a

restrição mínima à liberdade da pessoa, indispensável à coexistência humana.

Gumplowwicz tem inteira razão quando explica que uma tal espécie de direitos jamais

existiu porque “o grau de liberdade de uns depende apenas do grau de domínio de

outros. A norma da coexistência não é determinada pela possibilidade da coexistência

mas pelo domínio de uns sobre os outros” [...]. Quanto mais o domínio da burguesia foi

sacudido, mais estas correções se tornaram comprometedoras e mais depressa “o Estado

jurídico” se transformou numa sobre imaterial [...]. (p. 192).

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Direito e Sociedeade Burguesa [...] é apenas na sociedade burguesa capitalista, onde o proletariado surge como

sujeito que dispõe da sua força de trabalho como mercadoria, que a relação econômica

da exploração é juridicamente mediatizada sob forma de um contrato. (p. 36).

[...] a forma jurídica adquire um significado universal. (p. 36).

Enquanto a relação entre os produtores individuais e a sociedade continuar a

manter a forma de troca de equivalentes, esta relação manterá igualmente a forma do

direito. (p. 60).

[as categorias jurídicas] na sua aparente universalidade [...] exprimem um

determinado aspecto da existência de um determinado sujeito histórico: a produção

mercantil da sociedade burguesa. (p. 73).

De um modo geral, um mesmo e único fenômeno, que Marx caracterizava como

a separação do Estado político da sociedade civil, reflecte-se na teoria geral do direito

sob a forma de dois problemas distintos [...]. O direito subjectivo é a característica do

homem egoísta membro da sociedade burguesa, do indivíduo voltado para si, para o seu

interesse provado e para a sua vontade privada e isolado da comunidade. O direito

objectivo é a expressão do Estado burguês como totalidade que se revela como Estado

político e que apenas faz valer a sua generalidade por oposição aos elementos que o

compõem. O problema do direito subjectivo e do direito objectivo, formulado de

maneira filosófica, é o problema do homem como indivíduo burguês privado e do

homem como cidadão do Estado. (p. 120-121).

A forma jurídica, como o seu aspecto de autorização subjectiva, nasce numa

sociedade composta de titulares de interesses privados egoístas e isolados. Quando toda

a vida económica se edifica sobre o princípio do acordo entre vontades independentes,

cada função social reveste, de uma maneira mais ou menos reflectora, um carácter

jurídico, isto é, torna-se simplesmente não apenas uma função social mas também um

direito pertencente a quem exerce estas funções sociais [...]. Qualquer tentativa que vise

apresentar a função social pelo que ela é, isto é, simplesmente como função social e que

vise apresentar a norma simplesmente como regra organizatória significa a morte da

forma jurídica. (p. 122-123).

“Todos devem ser livres e ninguém deve entravar a liberdade dos outros. Cada

um possui o seu corpo como livre instrumento da sua vontade” [...]. Esta condição

jurídica, ela própria, ou para empregar as palavras do mesmo autor, “a existência

simultânea de numerosas criaturas livres, que devem todas ser livres e cuja liberdade

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não deve entravar a liberdade dos outros”, mais não é do que o mercado idealizado,

transposto para as nuvens da abstração filosófica e liberto da grosseira empírica, onde se

encontram os produtores independentes, - pois como nos ensina um outro filósofo: “no

contrato comercial, as duas partes fazem o que querem e cada parte não exige para si

própria mais liberdade do que aquela que concede à outra, (p. 140).

A propriedade burguesa capitalista [...] transforma-se num direito absoluto [...];

é protegida em todo o mundo pelas leis, pela polícia e pelos tribunais [...]. O

desenvolvimento do pretenso direito de guerra não é outra cosa senão uma consolidação

progressiva do princípio da inviolabilidade da propriedade burguesa. (p. 140-141).

Foi somente quando se desenvolveram totalmente as relações burguesas que o

direito se revestiu de um carácter abstracto. Cada homem converte-se num homem em

geral, cada sujeito converte-se em sujeito jurídico abstracto. Simultaneamente reveste-se

igualmente da forma lógica acabada de lei geral e abstracta. Daí que, o sujeito jurídico

seja um proprietário de mercadorias abstracto e transposto para as nuvens. A sua

vontade, em sentido jurídico, tem o seu fundamento real no desejo de alienar, na

aquisição, e de adquirir, na alienação. Para que esse desejo se realiza é indispensável

que haja acordo recíproco entre os desejos dos proprietários de mercadorias.

Juridicamente esta relação exprime-se como contrato, ou como acordo, entre vontade

independentes. É por isso que o contrato é um conceito nuclear do direito [como] um

dos meios de manifestação concreta da vontade com o auxílio do qual o sujeito age

sobre a esfera jurídica que o cerca. (p. 148-149).

O estado de paz [que] ao pensamento jurídico abstracto parece ser contínuo e

uniforme de modo algum existia [...] nos primeiros estádios do desenvolvimento do

direito. O antigo direito germânico conhecia diferentes graus de paz [o qual] exprimia-

se através do grau de gravidade da pena que atingia quem o violasse [...]. O estado de

paz torna-se uma necessidade quando a troca se torna um fenómeno regular [...]. Os

comerciantes, que se dirigiam ao mercado, obtiveram salvos-condutos e a sua

propriedade foi protegida contra apreensões arbitrárias, enquanto que juízes especiais

asseguraram a execução dos contratos [...]. Originalmente, os centros de feiras e os

mercados constituíam partes integrantes os domínios feudais [...]. Quando a paz do

mercado era concedida a uma localidade qualquer, isso visava apenas encher os cofre do

senhor feudal e, por consequência, servir os seus interesses privados. (p. 170-172).

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Direito Público e Direito Privado O conceito de direito público não pode, ele próprio, ser desenvolvido senão no

seu movimento: aquele através do qual ele é continuamente repelido do direito privado,

à medida que tende a determinar-se como o seu oposto e através do qual regressa a ele

como o seu centro de gravidade. A tentativa inversa, isto é, a tentativa para encontrar as

definições fundamentais do direito privado – que ouras não são senão as definições do

direito em geral – partindo do conceito de norma, apenas pode gerar construções inertes

e formais que, ainda por cima, não estão isentas de contradições internas. O direito,

como função, deixa de ser direito, assim como a autorização jurídica sem o interesse

privado que lhe serve de sustentáculo se transforma em qualquer coisa de incaptável, de

abstracto que facilmente se transforma no seu contrário, isto é, em obrigação (todo o

direito público é, com efeito, ao mesmo tempo, uma obrigação). (p. 126-127).

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Sobre a União Soviética e a Transição [...] as sobrevivências da troca de equivalentes na esfera da distribuição, que

subsistirão igualmente numa organização socialista da produção (até a passagem para o

comunismo evoluído) constrangerão a sociedade socialista a encarar-se,

momentaneamente, no limitado horizonte do direito burguês, tal como Marx havia

igualmente previsto. (p. 31) Nota: entre o estágio primitivo do direito, encontrado nas

“leis bárbaras”, e o comunismo evoluído é que se desenvolveu a forma jurídica, sendo o

seu ápice o surgimento da sociedade burguesa.

O aniquilamento de certas categorias [...] do direito burguês, em caso algum

significa a sua substituição pelas novas categorias do direito proletário. (p. 58).

[...] o período de transição [...] é caracterizado pelo facto de as relações humanas

permanecerem, durante um certo período [...] no horizonte limitado do direito burguês.

(p. 59).

A transição para o comunismo evoluído não se apresenta, sgundo Marx, como

uma passagem para novas formas jurídicas mas como um aniquilamento da forma

jurídica enquanto tal [...]. (p. 61).

[...] a experiência mostrou que a produção e a distribuição, organizadas e

planificadas, mão podiam substituir, de um dia para o outro, as trocas de mercadorias e

a ligação entre as diferentes unidades económicas através do mercado. (p. 163).

Ora, enquanto não estiver resolvida a tarefa da edificação de uma economia

planificada única, enquanto se mantiver entre as diferentes empresas e grupos de

empresas a ligação do mercado, igualmente se manterá em vigor a forma jurídica. (p.

163-164).

Na medida em que as empresas estaduais estão sujeitas às condições da

circulação, as suas interrelações revestem não a forma de uma coordenação técnica mas

a forma de contratos. E então a regulamentação puramente jurídica das relações, isto é,

judiciária torna-se igualmente possível e necessária. (p. 164).

[...] na medida em que a nova sociedade seja edificada com base em elementos

da antiga sociedade, isto é, a partir de homens que concebem os vínculos sociais

somente como meios para os seus fins privados, as simples directivas técnicas racionais

revestirão igualmente a forma de um poder estranho ao homem e situado acima dele. O

homem político será ainda um “homem abstracto, artificial”, segundo a expressão de

Marx. Mas, quanto mais as relações mercantis e o incentivo do lucro forem sendo

Page 33: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

33

radicalmente suprimidas da esfera da produção, mais depressa soará a hora dessa

libertação definida de que Marx falou [...]. (p. 165-166).

No que diz respeito ao nosso período de transição, devemos referir o que segue.

Se na época do capital financeiro [...] subsistem as oposições de interesses [...], no

capitalismo do Estado proletário, e não obstante a sobrevivência da troca de

mercadorias, as oposições de interesses são suprimidas no interior da indústria

nacionalizada, e a separação ou autonomia dos diferentes organismos económicos [...] é

mantido apenas como método. (p. 166).

[...] a forma jurídica como tal não contém, no nosso período de transição, essas

ilimitadas possibilidades que se lhe ofereciam nos primórdios da sociedade burguesa

capitalista. Pelo contrário, ela apenas temporariamente nos encerra no seu horizonte

limitado; ela apenas existe para se esgotar definitivamente. (p. 167).

[...] as empresas pertencentes ao Estado Soviético desempenham, na realidade,

uma tarefa colectiva; mas, como no seu trabalho têm de observar os métodos do

mercado, cada uma delas tem interesses particulares. Elas opõem-se umas às outras

como comprador e vendedor, actuam por seus próprios riscos e perigos e, por

consequência, devem necessariamente encontrar-se reciprocamente em relação jurídica.

A vitória final da economia planificada fará de sua ligação recíproca uma ligação

exclusivamente técnica, racional e matará assim a sua personalidade jurídica. (p. 170).

Page 34: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

34

A Respeito de Piotr Stutchka e do Direito Proletário O desenvolvimento histórico da regulamentação jurídica, sob o ponto de vista de

seu conteúdo de classe, é, na sua exposição, posto em primeiro plano relativamente ao

desenvolvimento lógico e dialético da própria forma [...]; Stutchka procedeu [...] em

função de uma concepção do direito que faz dele essencialmente um sistema de relações

de produção e de troca [...]. Se, à primeira vista, se considera o direito com a forma de

toda e qualquer relação social, então pode dizer-se à-priori que as suas características

específicas passarão desapercebidas. (p. 47-48).

O direito proletário, dizem-nos, deve encontrar outros conceitos gerais e a tarefa

da teoria marxista do direito deveria consistir na procura de tais conceitos [...]; ao exigir

para o direito proletário novos conceitos [...] na realidade [...] proclama a imortalidade

da forma jurídica. (p. 58).

Para nós, o camarada Stucka equacionou corretamente o problema jurídico, ao

considera-lo como um problema de relações sociais. Porém, em vez de se pôr a

investigar a objectividade social específica destas relações, regressou à definição formal

habitual [...] de classe [...]. Na fórmula geral dada por Stucka, o direito já não figura

como relação social específica, mas como o conjunto das relações em geral, como um

sistema de relações que corresponde aos interesses das classes dominantes e

salvaguarda estes interesses através da violência organizada. (p. 92).

A definição de Stucka, talvez porque proveniente do Comissariado dos Povos

para a Justiça, é adequada às necessidades dos juristas práticos. [Ela] desvenda o

conteúdo de classes das formas jurídicas, mas não nos explica a razão porque este

conteúdo reveste semelhante forma. (p. 93).

Quando o direito tornou-se aquilo que é [...]? Segundo ele [Stucka], o direito

como particular sistema de relações sociais, caracteriza-se pelo facto de assentar sobre a

violência organizada, isto é, estadual, de uma classe. Naturalmente, eu conhecia este

ponto de vista; porém, após uma segunda explicação, mantenho ainda que num sistema

de relações correspondentes aos interesses da classe dominante os assentes na violência

organizada, podem e devem ser extraídos momentos que fundamentalmente oferecem

matéria ao desenvolvimento da forma jurídica. (p. 93).

Page 35: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

35

Relação Jurídica A relação jurídica é a célula nuclear do tecido jurídico e é unicamente nela que o

direito realiza o seu movimento real. Em contrapartida o direito, enquanto conjunto de

normas, é apenas uma abstracção sem vida. (p. 96).

Se certas relações foram efectivamente constituídas, tal significa que nasceu um

direito correspondente; porém, se uma lei ou um decreto foram somente promulgados

sem que na prática tivesse aparecido qualquer relação correspondente, então, tal

significa que foi feita uma tentativa para criar um direito mas sem sucesso [...]. A acção

política revolucionária pode vencer muitas dificuldades; ela pode realizar amanhã aquilo

que hoje não existe ainda; mas não pode repentinamente dar existência àquilo que

efectivamente não existiu no passado. (p. 99). [ver exemplo do edifício].

Com efeito, não pode afirmar-se que a relação entre o credor e o devedor seja

criada pelo sistema coactivo de cumprimento de dívidas existentes no Estado em

questão. Esta ordem, existente objectivamente, garante certamente a relação, preserva-a

mas em caso algum a cria. (p. 100).

Podemos igualmente imaginar um caso limite onde não exista, ao lado das duas

partes que mutuamente entram em relação, uma terceira força capaz de estabelecer uma

norma e de garantir a sua observância [...]. Todavia [...] a relação subsiste [...], basta

imaginar o desaparecimento de uma das partes [...] para que imediatamente desapareça

também a possibilidade da própria relação. (p. 101).

Todo o sistema jurídico feudal assentava sobre tais relações contratuais não

garantidas por qualquer terceira força [...], a estabilidade das relações jurídicas privadas,

no Estado burguês moderno bem organizado, de modo algum assenta apenas na polícia

e nos tribunais. As dívidas não são pagas pelos indivíduos apenas porque elas de

qualquer modo seriam pagas, mas também para que eles possam conservar o seu crédito

no futuro. (p. 101).

É pois a necessidade natural, são as propriedades essenciais do homem, por

muito alienados que pareçam, é o interesse que mantem unidos os membros da

sociedade burguesa cujo vínculo real é, portanto, constituído pela vida civil e não pela

vida política. O que assegura a coesão dos átomos da sociedade burguesa não é, pois, o

Estado, mas o facto de tais átomos serem átomos apenas na representação [...] e o de

[...] serem homens egoístas . Nos nossos dias, apenas a superstição política imagina que

a coesão da vida civil é produto do Estado, quando, pelo contrário, é a coesão do Estado

Page 36: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

36

que, na realidade, é mantida como facto da vida civil. (MARX apud PACHUKANIS,

1977, p. 104-105).

O homem que produz em sociedade é o pressuposto de que parte a teoria

económica. A teoria geral do direito, na medida em que cuida de definições

fundamentais, deveria partir igualmente dos mesmos pressupostos fundamentais. Assim,

por exemplo, é preciso que a relação económica da troca exista para que possa nascer a

relação jurídica do contrato de compra e venda. O poder político pode, com a ajuda das

leis, regular, modificar, determinar, concretizar do modo mais diversa, a forma e o

conteúdo deste contrato jurídico. A lei pode determinar, de forma muito precisa, o que

pode ser comparado e vendido, como também sob que condição e por quem. A

jurisprudência dogmática conclui daí que todos os elementos existentes da relação

jurídica, inclusive, também, o próprio sujeito, são gerados pela norma. Na realidade, a

existência de uma economia mercantil e monetária é, naturalmente, a condição

fundamental, sem a qual todas estas normas concretas carecem de qualquer sentido. É

unicamente sob esta condição que o sujeito jurídico tem na pessoa do sujeito económico

egoísta um substracto material que não é criado pela lei, mas que ela encontra perante

si. Aí, onde falte este substracto, é à-priori inconcebível a relação jurídica

correspondente. (p. 106-107).

[...] a relação económica é, no seu movimento real, a fonte da relação jurídica, a

qual nasce somente no momento do litígio. É precisamente o litígio, a oposição de

interesses, que produz a forma jurídica, a superestrutura jurídica. No litígio, isto é, no

processo, os sujeitos económicos privados aparecem já como partes, quer dizer, como

os protagonistas da superestrutura jurídica. O tribunal representa, mesmo na sua forma

mais primitiva, a superestrutura jurídica por excelência. Pelo processo judicial, o

momento jurídico separa-se do momento eocnómico e aparece como momento

autónomo. Historicamente, o direito começou com o litígio [...]. (p. 107-108).

[...] a lógica dos conceitos jurídicos corresponde à lógica das relações sociais de

uma sociedade de produção mercantil. É precisamente nestas relações, e não na

autorização da autoridade pública, que é preciso procurar a raiz do sistema do direito

privado [...], a relação jurídica é directamente gerada pelas relações materiais de

produção existentes entre os homens onde quer que se encontre uma camada primária

da superestrutura jurídica. (p. 11-112).

[...] a relação jurídica não nos mostra só o direito no seu movimento real, mas

igualmente descobre as propriedades características do direito como categoria lógica

Page 37: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

37

[...]. Nós mostraremos nas páginas seguintes que, para a ordem jurídica, o fim em si é

apenas a circulação de mercadorias. (p. 119).forma

Page 38: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

38

Sobre a Obra e a Proposta de Pachukanis [...] não pensava que fosse necessária uma segunda edição [...], isso se deve ao

fato de esse trabalho [...] ter sido utilizado como manual, coisa com que eu nunca

contei. (p. 25).

[...] foi escrito com o fim de clarificação pessoal [...]. Daí a sua abstração [...], o

seu aspecto unilateral. (p. 25).

O meu livro, que põe à discussão algumas questões da teoria geral do direito,

tem por tarefa principal a de preparar todo esse trabalho [profundo estudo dos ramos do

direito para uma resistente crítica marxita]. (p. 26).

[...] uma tentativa para aproximar a forma do direito da forma mercadoria [...].

Na literatura marxista e, em primeiro lugar, no próprio Marx, é possível encontrar

bastantes elementos para uma tal aproximação [...] Aquela filosofia do direito [...],

verdadeiramente mais não é do que a filosofia da economia mercantil, que estabelece as

condições mais gerais, mais abstractas, sob as quais se pode efectuar a troca de acordo

com a lei do valor e ter lugar a exploração sob a forma de “contrato livre”. (p. 27-28).

Como marxista não me dei por tarefa construir uma teoria da jurisprudência pura

e, como marxista, não podia sequer fixar-me semelhante tarefa. [Meu] objectivo

consistia em dar uma interpretação sociológica da forma jurídica e das categorias

específicas que exprimem esta forma jurídica. Foi precisamente por isso que eu dei o

meu livro o subtítulo Ensaios de crítica dos conceitos jurídicos fundamentais.

Page 39: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

39

Sobre o estado da Crítica Marxista do Direito [...] a crítica marxista da teoria geral do direito está ainda no início [...]

conclusões definitivas [...] terão de apoiar-se num profundo estudo de cada ramo da

ciência do direito. (p. 26).

Page 40: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

40

A Regulação Externa e Fora do Indivíduo na Esfera Coativa Estatal O principal obstáculo [ao estudo da superestrutura jurídica como fenômeno

objetivo] [é que] consideram sem dúvida alguma o momento da regulamentação

coactiva social (estadual) como a característica central, fundamental e a única típica dos

fenômenos jurídicos. (p. 28).

Em vez de nos proporem o conceito de direiteo na sua forma mais acabada e

clara [...], oferecem-nos unicamente um lugar comum, deveras vazio, o de uma

regulamentação autoritária externa que convém indiferentemente a todas as épocas e a

todos os estádios de desenvolvimento da sociedade humana. (p. 52).

A teoria lógico-formal do positivismo jurídico assenta no facto empírico de as

relações, que se encontram sob a proteção do Estado, serem as que são melhor

garantidas. A questão examinada por nós reduz-se [...] ao problema das relações

recíprocas entre a superestrutura jurídica e a superestrutura política. Se consideramos

[...] a norma como o momento primário [...], temos de pressupor a existência de uma

autoridade [...]; uma superestrutura jurídica é uma consequência da superestrutura

política. (p. 103).

Estamos em face de uma estranha dualidade do conceito, cujos dois aspectos,

conquanto situados em planos diferentes, se condicionam reciprocamente. O direito é

simultaneamente, sob um aspecto, a forma da regulamentação autoritária externa e, sob

outro aspecto, a forma da autonomia privada subjectiva. Num caso, é a característica da

obrigação absoluta, da coacção externa pura e simples, que é fundamental, num outro, é

a característica da liberdade garantida e reconhecida dentro de certos limites [...]. Num

caso o direito funde-se [...] com a autoridade externa, no outro, opõe-se, também

totalmente, a qualquer autoridade externa que o não reconheça. (p. 112-113).

Page 41: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

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Percepção Unilateral do Direito Enquanto Conteúdo [...] os marxistas [...] acabam geralmente por nada dizer acerca da definição

formal da teoria geral do direito e dedicam toda a sua atenção ao conteúdo concreto das

normas jurídicas e à evolução histórica das instituições jurídicas. (p. 48).

[...] os marxistas [...] acabam geralmente por nada dizer acerca da definição

formal da teoria geral do direito e dedicam toda a sua atenção ao conteúdo concreto das

normas jurídicas e à evolução histórica das instituições jurídicas. (p. 48)

[...] a teoria marxista não deve apenas examinar somente o conteúdo material da

regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma

explicação materialista da regulamentação jurídica como forma histórica [como, o que

regula e por que regula tal ou qual comportamento?]. Se se renuncia à análise dos

conceitos jurídicos fundamentais, apenas se obtem uma teoria que explica a origem da

regulamentação jurídica a partir das necessidades materiais da sociedade e,

consequentemente, o facto de as normas jurídicas corresponderem aos interesses

materiais de uma ou outra classe social [é o caso de Stutchka]. (p. 49).

Page 42: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

42

A Respeito do Conceito de “Direito” e Seus Desdobramentos [...] as definições do direito não nos ensinam grande coisa acerca do que ele é

realmente [...]; um conceito tão complexo como o do direito não pode ser captado

exaustivamente por meio de uma definição obtida segundo as regras da lógica

escolástica. (p. 50-51).

Todas as definições salientam o vínculo existente entre o conteúdo concreto da

regulamentação jurídica e a economia [e] tentam axplanar a análise do direito como

forma, caracterizando-o através do constrangimento exterior estadualmente organizado

[...], não vão além dos processos grosseiramente empíricos dessa mesma jurisprudência

prática ou dogmática que, precisamente, o marxismo deveria considerar como sua tarefa

superar. (p. 52).

Qualquer tentativa para encontrar uma definição do direito [...] conduz,

inevitavelmente, a fórmulas verbais vazias e escolásticas. (p. 53).

[...] por exemplo, normalmente só depois de ter aceite uma definição geral do

direito, se aprende que, corretamente falando, existem duas espécies de direito: um

direito subjectivo e um direito objectivo, um jus agendi e uma norma agendi. Porém, a

possibilidade de semelhante dicotomia não está, de modo algum, prevista na própria

definição; deste modo, somos coagidos ou a negar uma das duas espécies do direito e a

concebê-la como uma ficção, uma quimera, etc., ou então a admitir um vínculo

puramente exterior entre o conceito geral de direito e suas duas modalidades. (p. 54).

Foi apenas graças à abstração que se pôde formar, a partir da concepção dos

direitos subjectivos existentes, progressivamente o conceito da ordem jurídica. A

concepção segundo a qual os direitos, em sentido subjectivo, são apenas a emanação do

direito em sentido objectivo é, pois, não-histórica e falsa. (DERNBURG apud

PACHUKANIS, 1977, p. 142).

Page 43: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

43

O Direito Privado: Direito Romano, Direito Civil e Comercial [...] O direito comercial exerce, relativamente ao direito civil, a mesma função

que o direito civil exerce relativamente a todos os outros domínios do direito, isto é,

indicando-lhes as vias de desenvolvimento. (p. 32)

[…] o núcleo mais sólido da brumosa esfera jurídica […] situa-se, precisamente,

no domínio das relações do direito privado. É justamente aí que o sujeito jurídico, a

pessoa, encontra uma incarnação, totalmente adequada à personalidade concreta do

sujeito económico egoísta, do proprietário, do titular de interesses privados. É

precisamente no direito privado que o pensamento jurídico se move com a maior

liberdade e segurança e onde as suas construções revestem a forma mais acabada e

harmoniosa. (p. 87).

Por detrás de cada parágrafo deste sistema esconde-se o cliente abstracto,

invisível, pronto a utilizar as teses em conflito como conselhos jurídicos […]. Uma das

premissas fundamentais da regulamentação jurídica, é, assim, o antagonismo dos

interesses privados [que] é tanto condição lógica da forma jurídica como causa real de

evolução da superestrutura jurídica […]; o momento jurídico desta regulamentação

inicia-se onde começam […] as oposições de interesses […]. A unidade de fim, pelo

contrário, represente a condição da regulamentação técnica. (p. 88-89)

A sua tarefa [do jurista] começa quando se é forçado a abandonar um outro

ponto de vista, o ponto de vista de sujeitos distintos que se opõem e dos quais cada um é

titular dos seus próprios interesses privados. O doente e o médico transformam-se,

então, em sujeitos com direitos e deveres [...]. (p. 91)

[...] por mais racionalizada e irreal que possa aparecer esta ou aquela construção

jurídica, ela assentará sobre uma base sólida enquanto se mantiver dentro dos limites do

direito privado, principalmente do direito de propriedade. Sem o que seria impossível

compreender o motivo pelo qual as ideias fundamentais dos juristas romanos

mantiveram a sua significação até aos nossos dias e permaneceram como o direito

escrito de toda a sociedade de produção mercantil. (p. 91).

A enorme influência da ideologia jurídica sobre todo o modo de pensamento dos

membros [...] da sociedade burguesa assenta no enorme papel que a ideologia jurídica

desempenha na vida dessa sociedade. A relação de troca realiza-se sob a forma de actos

jurídicos de compra e venda, de obtenção de crédito, de mútuo, de locação, etc. E o

homem que vive na sociedade burguesa é considerado constantemente como sujeito de

Page 44: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

44

direitos e obrigações [...]. Eis porque nenhuma sociedade tem tanta necessidade da ideia

do direito [...]. (ADORACKI apud PACHUKANIS, 1977, p. 91-92).

Se é certo que as instituições do direito civil romano representam, efectivamente,

uma mistura de momentos jurídicos públicos e privados [...] também o é que elas

contêm, em igual medida, elementos religiosos e, no sentido lato do termo, elementos

rituais. Por consequência, neste nível de evolução, o momento puramente jurídico ainda

não podia distinguir-se dos restantes [...]. (p. 109-110).

O direito e o arbítrio, estes dois conceitos aparentemente opostos, estão na

realidade estreitamente ligados [seja] no direito romano [seja nos] períodos ulteriores.

(p. 169).

Page 45: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

45

Direito Penal, Capitalismo, Pena e Princípio da Equivalência Mesmo a criminologia burguesa progressista, chegou teoricamente à convicção

de que a luta contra a criminalidade pode ser considerada em si mesma como uma tarefa

médica e pedagógica [...]. (p. 62).

Em regra quanto mais velho é um código tanto mais detalhada e completa é a

parte penal. (MAINE apud PACHUKANIS, 1977, p. 216).

A não-submissão à norma, a violação da norma [...] constituem o ponto de

partida e o conteúdo principal da legislação arcaica [...]. A necessidade de fixar e de

determinar de maneira precisa a extensão e o conteúdo dos direitos e dos deveres

recíprocos surge apenas quando a existência calma e pacífica é perturbada [...]; a lei cria

o direito quando cria o delito (Bentham). (p. 216).

Se [...] o direito privado reflecte [...] as condições gerais de existência da forma

jurídica como tal, o direito penal representa a esfera onde a relação jurídica atinge a

maior tensão [...]. De todos os ramos de direito é precisamente o direito penal aquele

que tem o poder de atingir mais directa e mais brutalmente a pessoa individual. Daí [...]

o maior interesse prático. A lei e a pena que pune a sua transgressão estão [...]

intimamente ligadas entre si [...]; o direito penal desempenha [...] o papel de um

representante do direito: é uma parte que substitui ao todo. (p. 217).

[...] a origem do direito penal está ligada [à] vingança de sangue [que] só começa

a ser disciplinada [...] quando começa a consolidar [...] o sistema da composição ou das

reparações em dinheiro [...] O delito pode ser considerado como uma particular

modalidade da circulação na qual a relação de troca, isto é, a relação contratual, é fixada

imediatamente [...] através da acção arbitrária de outra parte [...]. A sanção aparece,

então, como um equivalente que compensa os danos sofridos pela vítima.(p. 217-219).

[...] a ideia de justiça, isto é, a ideia de equivalência (Aristóteles), só se exprime

nítida e claramente e só se realiza objectivamente naquele estádio de desenvolvimento

económico onde tal forma e equivalência se torna costumeira como igualação na troca

[...]. (p. 220-221).

[...] ao lado da pena pública [...] surge muito cedo a pena como meio de manter a

disciplina e defender a autoridade do poder clerical e militar. Sabe-se que na Roma

antiga a maior parte dos delitos graves eram, ao mesmo tempo, delitos contra os Deuses

[...]: o deslocamento mal intencionado dos marcos dos terrenos pelo proprietário

fundiário, era considerado, em toda a antiguidade, como um delito religioso, sendo a

cabeça do culpado oferecida aos Deuses. A casta dos sacerdotes, que surgia como

Page 46: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

46

guardiã da ordem, não prosseguia no entanto unicamente num interesse ideológico mas

também um interesse material muito sólido visto que, em tais casos, os bens do culpado

eram confiscados em seu benefício. (p. 223).

[...] a igreja quer associar ao momento material da indenização o motivo

ideológico da expiação (expiatio) e fazer assim do direito penal, construído sobre o

princípio da vingança privada, um meio eficaz de manutenção da disciplina pública, isto

é, do domínio de classe. [...] Esta situação modifica-se com o desenvolvimento e a

estabilização das divisões da sociedade em classes e em estados. O nascimento de uma

hierarquia eclesiástica e de uma hierarquia laica faz da proteção dos seus privilégios e

da luta contra as classes inferiores e oprimidas da população, uma tarefa prioritária. A

desagregação da economia natural e a consequente intensificação da exploração dos

camponeses, o desenvolvimento do comércio e a organização do Estado baseado na

divisão em estados e em classes, colocam a jurisdição penal à frente de todas as outras

tarefas. Nesta época, a justiça penal não é já, para os detentores do poder, um simples

meio de enriquecimento, mas um meio de repressão impiedosa e brutal, sobretudo dos

camponeses que fugissem à exploração intolerável dos senhores e do seu Estado, assim

como dos vagabundos pauperizados, dos mendigos, etc. O aparelho da polícia e da

inquisição começa a ocupar uma função proeminente. [...] É a época da tortura, dos

castigos corporais, das mais bárbaras execuções capitais. (p. 225-226).

Assim se constitui progressivamente a complexa amálgama do direito penal

moderno. [...] do ponto de vista puramente sociológico, a burguesia garante [...] o seu

domínio de classe através do seu sistema de direito penal, oprimindo as classes

exploradas. [...] Considerando as coisas sob este ponto de vista, a jurisdição penal não é

senão um apêndice do aparelho de polícia e de instrução criminal. (p. 226).

As teorias do direito penal, que deduzem os princípios da política penal dos

interesses da Sociedade no seu conjunto, são deformações, conscientes ou

inconscientes, da realidade. “A Sociedade no seu conjunto” não existe senão na

imaginação dos juristas; de facto, apenas existem classes que têm interesses opostos,

contraditórios. Qualquer determinado sistema histórico da política penal caracteriza-se

pelos interesses de classe que haja realizado. O senhor feudal fazia executar os

camponeses insubmissos e os citadinos que se opunham ao seu domínio. As cidades

aliadas enforcavam o os cavaleiros salteadores e destruíam os seus castelos. Na Idade

Média, todo o indivíduo que quisesse exercer um ofício sem ser membro da corporação

era considerado violador da lei; a burguesia capitalista mal tinha nascido, declarou

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47

delituoso os esforços dos operários com vista ao seu agrupamento em associações. O

interesse de classe imprime, assim, a cada sistema penal a marca da concretização

histórica. No que diz respeito em particular aos métodos próprios da política penal é

corrente pôr em relevo os grandes progressos alcançados pela sociedade burguesa,

desde a época de Beccaria e de Howard, através da adopção de penas mais humanas

[...]. Tudo isso representa sem qualquer dúvida um grande progresso. Porém, é preciso

não esquecer que a abolição das penas corporais não foi concluída em toda parte. [...] É

preciso notar, além disso, que os últimos decênios do séc. XIX e os primeiros decênios

do séc. XX viram justamente nascer num certo número de Estados burgueses uma

tendência característica no sentido da restauração das penas aflitivas, cruéis e

infamantes. O humanismo da burguesia cede lugar aos apelos à severidade e a uma

aplicação mais ampla da pena de morte. (p. 227-228).

Somente o completo desaparecimento das classes permitirá criar um sistema

penal do qual será excluído todo o elemento antagônico. Entretanto [...], em tais

circunstancias ainda será necessário um tal sistema penal. (p. 229).

[...] a luta aberta pela existência assume, com a introdução da equivalência, uma

forma jurídica. O acto de legítima defesa e perde o seu carácter de simples acto de

legítima defesa e torna-se uma forma de troca, um modo especial de circulação, que se

situa ao lado da circulação comercial “normal”. Os delitos e as penas [...] revestem um

carácter jurídico. [...] Enquanto se conservar esta forma, a luta de classes efectiva-se

através da jurisprudência. Inversamente, se este princípio da relação de equivalência

desparece , a própria denominação de “direito penal” perde todo o significado. (p. 229).

Quanto mais aguda e encarniçada se torna a luta de classes, tanto mais o domínio

de classe tem dificuldades em se realizar no interior da forma jurídica. Neste caso, o

tribunal “imparcial”, com as suas garantias jurídicas, cede lugar a uma organização

directa da violência de classe, cujas acções são guiadas exclusivamente por

considerações de oportunidade política. (p. 230).

[..] Estado se revela tanto no papel de parte judiciária (procurador) como no

papel de juiz, mostra que o processo penal, como forma jurídica, é inseparável da figura

da vítima que exige “reparação” é, por consequência, da forma mais geral do contrato.

O procurador público reclama, como convém a uma “parte”, um preço “elevado”, isto é,

uma pena severa. O acusado solicita indulgência, “uma redução”, e o tribunal

pronuncia-se “toda a equidade”. (p. 231).

Page 48: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

48

O direito penal arcaico conheceu apenas o conceito de dano. As noções de

negligência e de culpabilidade que ocupam no direto penal moderno um lugar tão

importante faltavam totalmente neste estádio de desenvolvimento. [...] de modo algum

resulta daí que o conceito de responsabilidade, em si, tivesse sido estranho ao direito

antigo. Porém, ele era, então, determinado de modo diferente. No direito penal moderno

nós cuidamos do conceito de responsabilidade estritamente pessoal em conformidade

com o individualismo burguês. O direito antigo, pelo contrário, estava imbuído do

princípio da responsabilidade colectiva. Puniam-se os filhos pelas faltas dos seus pais e

a gens era responsável por cada um dos seus membros. A sociedade burguesa, em

contrapartida, dissolve todos os laços primitivos e orgânicos que preexistem entre os

indivíduos. Ela proclama o princípio: “cada um por si”. (p. 222-223).

A privação de liberdade por um tempo determinado através da sentença do

tribunal é a forma específica pela qual o direito penal moderno, isto é, burguês-

capitalista, realiza o princípio da reparação equivalente. Esta forma está inconsciente

mas profundamente ligada à representação do homem abstracto e do trabalho humano

abstracto mensurável pelo tempo. Não foi por acaso que esta forma de pena foi

introduzida e foi considerada como natural precisamente no século XIX, ou seja, numa

época em que a burguesia pôde desenvolver e afirmar todas as suas características. As

prisões e os calabouços também existiram na Antiguidade e na Idade Média ao lado de

outros meios de exercício da violência física. Porém, os indivíduos estavam geralmente

detidos ai até a sua morte ou até que pudessem pagar o seu regate. Para que a ideia da

possibilidade de repara o delito através de um quantum de liberdade tenha podido

nascer foi preciso que todas as formas concretas da riqueza social tivessem sido

reduzidas à mais abstracta e mais simples das formas, ao trabalho humano medido pelo

tempo. [...] a Declaração dos Direitos do Homem, a economia política de Ricardo e o

sistema da detenção temporária são fenômenos que pertencem a uma só e mesma época

histórica. (p. 236-237).

[...] esta forma absurda de equivalência [é] uma consequência das relações

materiais da sociedade de produção mercantil de que ela se alimenta. [...] Se,

efectivamente a pena fosse considerada apenas sob o ponto de vista do seu fim, a própria

execução da pena e, particularmente os seus resultados, deveriam suscitar o maior

interesse na vida social [mas na verdade nada é maior que] o interesse suscitado pelo

impressionante momento em que é pronunciada a sentença e determinada a “medida

penal”. (p. 238).

Page 49: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

49

“A execução da sentença, diz Krohne [...], é, na prática do direito penal, o ponto

delicado”, isto é, relativamente negligenciado. “Se vós possuis [...] as melhores leis, os

melhores juízes, as melhores sentenças, mas se os funcionários encarregados da

execução das penas são incompetentes, então podeis lançar as leis para o cesto dos

papeis e queimar as sentenças”. (KROHNE apud PACHUKANIS, 1977, p. 238).

[Dessa forma] não pode manifestamente falar-se nem de uma função de defesa

nem de uma função de reeducação. É o princípio formal da equivalência que triunfa

aqui: a igual culpabilidade, igual pena.(p. 239-240).

Ele [o tribunal] não pode esperar corrigir, em 3 semanas de detenção, um

reincidente impenitente, mas também não pode encerrar por toda a vida o sujeito em

questão por causa de uma simples ofensa a um funcionário. Nada mais lhe resta do que

obrigar o delinquente a pagar a sua moeda de trocos (algumas semanas de privação de

liberdade). Além disso, a justiça burguesa vela cuidadosamente a fim de que o contrato

com o delinquente seja cumprido segundo todas as regras da arte, isto é, que cada um

possa ser convencido e possa controlar que o pagamento seja determinado

equitativamente (publicidade do processo judiciário), que o delinquente possa negociar

livremente a sua liberdade (processo sob a forma de debates) e possa utilizar os serviços

de um procurador judiciário habilitado (admissão de advogados de defesa), etc. Numa

palavra, as relações entre o Estado e o delinquente situam-se inteiramente no quadro de

um leal negócio comercial. (p. 240).

Enquanto a fórmula mercantil e a forma jurídica que dela resulta continuarem a

imprimir à sociedade a sua marca, a ideia de que a gravidade de cada delito pode ser

calculada e expressa em meses ou anos de prisão, e que no fundo, isto é, sob o ponto de

vista não jurídico, é absurda, conservará, na prática judiciária, a sua força e a sua

significação reais. (p. 242).

A modificação terminológica nada muda à essência da coisa. O Comissariado do

Povo para a Justiça da R. S. F. S. R. publicou, a partir de 1919, princípios directivos de

direito penal em que o princípio da culpabilidade como fundamento da pena é repudiado

e em que a própria é caracterizada não como a reparação de um falta mas

exclusivamente como uma medida de defesa. O Código Penal de R.S.F.S.R. de 1922

prescinde igualmente do conceito de culpabilidade. Finalmente, “os princípios

fundamentais da legislação penal da União Soviética” excluem em absoluto a

denominação “pena” para a substituir pela seguinte denominação: “medidas judiciário-

correctivas de defesa social”. Uma tal modificação da terminologia tem,

Page 50: A teoria geral do direito e o marximo fichamento

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indubitavelmente, um certo valor demonstrativo. Mas não será por meio de

demonstrações que a questão será resolvida. A transformação da pena de reparação em

adequada medida de defesa social e de reeducação dos indivíduos socialmente perigosos

exige a solução de uma enorma tarefa de organização que permanece não só fora da

alçada da actividade puramente judiciária, mas que, em caso de êxito, torna o processo e

a sentença judicial perfeitamente inúteis. [...] tornar-se-á uma função perfeitamente

autónoma, de natureza médica e pedagógica. O nosso desenvolvimento caminha e, sem

dúvida, prosseguirá ainda caminhando nesse sentido. [...] a pena supõe um tipo legal

fixado com precisão enquanto que a medida de defesa social não tem necessidade dele.

[...] A coacção, enquanto medida de defesa social, é um acto de pura oportunidade,

adequada a um fim e pode, como tal, ser determinada por regras técnicas. (p. 242-245).

[Na sociedade burguesa] o indivíduo que é submetido a uma coacção de

reeducação é posto na situação de um devedor que tem de reembolsar as suas dívidas.

Não é por acaso que o termo “execução” é empregado tanto para o cumprimento

forçado das obrigações. [...] O direito penal, tal como o direito em geral, é uma forma de

relação entre sujeitos egoístas isolados, titulares de um interesse privado autónomo, ou

entre proprietários ideais. (p. 246).