fichamento feudalismo.docx

29
A ESTRUTURA “Por volta de fins do século IX ou princípios do X, as estruturas feudais já se encontravam montadas.” Pag. 29 “Assim, é preferível falarmos em estrutura (no singular) para indicar o caráter coeso daqueles elementos e para marcar bem seu caráter constitutivo visceral, definidor — e não apenas externo e de sustentação — do Feudalismo.” Pag. 29 “Economicamente, o Feudalismo estava centrado na produção do setor primário (agricultura), hegemônico em relação ao secundário (indústria) e ao terciário (comércio e serviços). Era claramente uma sociedade agrícola pelo fato de essa atividade envolver a grande maioria da população e por quase todos, direta ou indiretamente, viverem em função dela.” Pag.29-30 “De qualquer forma, isso não significa que outras atividades econômicas não fossem praticadas e não tivessem mesmo um peso considerável.” Pag. 30 “Além de artesãos ambulantes que iam de região em região manufaturando a matéria-prima local em troca de casa, comida e umas poucas moedas, quase todo senhorio tinha sua própria produção artesanal. Os trabalhadores eram os camponeses, com os mais hábeis sendo utilizados nas tarefas que requeriam mais cuidados e qualidade (armas, por exemplo). As matérias-primas a serem transformadas eram quase sempre produzidas no local, fossem de origem animal (leite, carne, couro, lã, ossos), vegetal (fibras têxteis, madeira) ou mineral (ferro, chumbo, carvão).” Pag. 30 “O comércio, ao contrário do que os historiadores pensavam até há algum tempo, mantinha mesmo certo porte, apesar de irregular e de intensidade muito variável conforme as

Upload: demetrios-dias-de-oliveira

Post on 25-Nov-2015

51 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A ESTRUTURA

Por volta de fins do sculo IX ou princpios do X, as estruturas feudais j se encontravam montadas. Pag. 29Assim, prefervel falarmos em estrutura (no singular) para indicar o carter coeso daqueles elementos e para marcar bem seu carter constitutivo visceral, definidor e no apenas externo e de sustentao do Feudalismo. Pag. 29Economicamente, o Feudalismo estava centrado na produo do setor primrio (agricultura), hegemnico em relao ao secundrio (indstria) e ao tercirio (comrcio e servios). Era claramente uma sociedade agrcola pelo fato de essa atividade envolver a grande maioria da populao e por quase todos, direta ou indiretamente, viverem em funo dela. Pag.29-30De qualquer forma, isso no significa que outras atividades econmicas no fossem praticadas e no tivessem mesmo um peso considervel. Pag. 30Alm de artesos ambulantes que iam de regio em regio manufaturando a matria-prima local em troca de casa, comida e umas poucas moedas, quase todo senhorio tinha sua prpria produo artesanal. Os trabalhadores eram os camponeses, com os mais hbeis sendo utilizados nas tarefas que requeriam mais cuidados e qualidade (armas, por exemplo). As matrias-primas a serem transformadas eram quase sempre produzidas no local, fossem de origem animal (leite, carne, couro, l, ossos), vegetal (fibras txteis, madeira) ou mineral (ferro, chumbo, carvo). Pag. 30O comrcio, ao contrrio do que os historiadores pensavam at h algum tempo, mantinha mesmo certo porte, apesar de irregular e de intensidade muito varivel conforme as regies. Certas mercadorias imprescindveis em todos os locais, mas encontrveis apenas em alguns caso do sal, por exemplo eram objeto de trocas comerciais constantes e importantes. Mais do que esse comrcio inter-regional, as trocas locais desempenhavam papel de primeira ordem, com os camponeses levando feira seu pequeno excedente produtivo e podendo, por sua vez, comprar algum artesanato urbano. Pag. 30-31Portanto, uma economia agrria, mas no exclusivamente. Devemos abandonar a imagem, exagerada, de uma agricultura feudal fechada, isolada e autossuficiente. verdade que a pequena produtividade fazia com que qualquer acidente natural (chuvas em excesso ou em falta, pragas) ou humano (guerras, trabalho inadequado ou insuficiente) provocasse perodos de escassez. Desta forma, sempre assustados com a possibilidade da fome, cada senhorio procurava suprir suas necessidades, produzindo para seu consumo tudo que ali fosse possvel. Pag. 31Mas ter sido essencialmente agrrio no diferencia o Feudalismo das demais sociedades pr industriais. O elemento central, aqui, reside no tipo de mo de obra feudal. Como j vimos, as transformaes pelas quais passava o escravo da Antiguidade e o trabalhador livre acabaram por criar um tipo intermedirio, o colonus romano, antepassado direto do servo feudal. Da mesma forma, o latifndio romano acabou com o decorrer dos sculos por gerar a tpica unidade de produo feudal, o senhorio. E com a profunda e total interligao servo senhorio,chegamos ao que h de mais essencial no componente econmico do Feudalismo. Pag. 32De fato, os senhorios estavam divididos em trs partes, todas trabalhadas e exploradas (ainda que no exclusivamente) pelos servos. A reserva senhorial, com 30 ou 40% da rea total do senhorio, era cultivada alguns dias por semana pelos servos em funo da obrigao conhecida por corvia. Todo o resultado desse trabalho cabia ao senhor, sem qualquer tipo de pagamento ao produtor. Os lotes (mansi) camponeses ocupavam no conjunto de 40 a 50% do senhorio. Cada famlia cultivava o seu lote, dele tirando sua subsistncia e pagando ao senhor pelo usufruto da terra uma taxa fixa conhecida por censo. O servo devia, ademais, uma parte do que produzia (talha), um pequeno valor anual para marcar sua condio de dependncia (chevage), uma taxa para se casar cora pessoa de outra condio social ou submetida a outro senhor (formariage), um presente ao senhor para poder transmitir o lote hereditariamente a seu filho (mo-morta). Como todos os habitantes do senhorio, pagava tambm, as chamadas banalidades pelo uso do moinho, do forno e do lagar monopolizados pelo senhor. A terceira parte do senhorio, ocupando 20 ou 30% dele, eram as terras comunais (pastos, bosques, baldios) exploradas tanto pelo senhor (atravs de seus servidores domsticos) quanto pelos camponeses. Pag. 32-33Contudo, preciso colocar essa relao no seu devido lugar, lembrando a forte conotao religiosa que eia possua, que fazia o senhor ser visto tambm como um patrono, um propiciador de fertilidade, e no simplesmente um explorador. Pag. 33As obrigaes morais que, em tempo de fome, levavam todo senhor a abrir seus celeiros aos pobres, vinham de fato materializar uma generosidade permanente que, no invisvel, fazia fluir das mos dos poderosos os princpios da fertilidade e da abundncia. Pag. 33Socialmente, o Feudalismo era uma sociedade de ordens, isto , estratificada em grupos de relativa fixidez. Nas palavras de um bispo do sculo XI, Adalberon de Laon, o domnio da f uno, mas h um triplo estatuto na Ordem. A lei humana impe duas condies: o nobre e o servo no esto submetidos ao mesmo regime. Os guerreiros so protetores das igrejas. Eles defendem os poderosos e os fracos, protegem todo mundo, inclusive a si prprios. Os servos por sua vez tm outra condio. Esta raa de infelizes no tem nada sem sofrimento. Pag. 33-34Fornecer a todos alimento e vestimenta: eis a funo do servo. Pag. 34A casa de Deus que parece una portanto tripla: uns rezam, outros combatem e outros trabalham. Pag. 34Como toda construo ideolgica, esse esquema tripartido no era uma descrio do real, mas uma representao mental, um sonho, um projeto de agir sobre o real. No por acaso, ele de comeo do sculo XI, quando o Feudalismo provocava transformaes sociais aparecimento dos cavaleiros, total sujeio do campesinato que geravam tenses. Da a necessidade de um reacomodamento dos quadros sociais, do estabelecimento de um sistema estrita e definitivamente hierarquizado. Portanto, a ideologia das trs ordens funcionava para a elite, e sobretudo para a elite clerical elaboradora do modelo, como um sonho e tambm como uma arma para manter seus interesses. Pag. 34-35De fato, a ordem terrestre baseia-se na ordem celeste, que imutvel. Por isso, a humanidade, feita imagem do Criador tambm deve ser una e trina. Como n Cidade de Deus existe a desigualdade, uma hierarquia de mritos, assim deve ser tambm na Cidade do Homem. Desigualdade e portanto obedincia, mas atenuada pela idia de todos os cristos terem um s corao, formarem um s corpo, com cada membro tendo uma funo. Pag. 35Portanto, no se negava a desigualdade, mas ela era justificada atravs da reciprocidade, da troca equilibrada de servios. Uns rezando para afastar as foras do Mal e trazer os favores divinos para o homem: os clrigos ou oratores na linguagem da poca. Outros lutando para proteger a sociedade crist dos infiis (muulmanos) e dos pagos (vikings, hngaros, eslavos): os guerreiros ou bellatores. Outros ainda produzindo para o sustento de todos: os trabalhadores ou laboratores, termo que expressava no s o trabalho em si mas tambm o esforo, a fadiga, o sofrimento como forma de penitncia, a dor corporal trocada pelo pecado. Pag. 36Os clrigos, especialistas da orao, desempenhavam papel central por deterem o monoplio do sagrado. Pag. 36Portanto, eles exerciam poderoso controle sobre a conduta dos homens, elaborando o cdigo de comportamento moral, de ao social e de valores culturais. As esmolas e doaes recebidas pela Igreja faziam do clero um grupo possuidor de extensos domnios fundirios e portanto de poder econmico e poltico. Assim, os oratores estavam naturalmente muito prximos da aristocracia laica tambm detentora de terras. E nela o clero requisitava seus elementos. Pag. 36Os guerreiros, detentores de terras e do monoplio da violncia, isto , da fora militar, tinham dupla origem. O estrato mais alto dos bellatores era constitudo por indivduos pertencentes a antigas linhagens. Muitas vezes essas famlias remontavam a grandes servidores, importantes personagens da poca carolngia. Assim, a verdadeira nobreza feudal era um pequeno grupo de pessoas com descendentes importantes e conhecidos. O segundo nvel da camada dos bellatores era formado por elementos de origem humilde, armados e sustentados por um poderoso senhor, que geralmente lhes cedia uma certa extenso de terra com os correspondentes trabalhadores. Assim surgiram os cavaleiros. Pag. 37Acompanhando a tendncia da poca, os cavaleiros acabaram, nas terras recebidas, por se apossar de poderes polticos e por ter domnio sobre os camponeses. Assim, seu estilo de vida tendia a imitar o da velha nobreza a quem servia. A superioridade da tcnica de combate a cavalo aumentava seu prestgio e poder. Pag. 37-38Os trabalhadores apresentavam uma grande diversidade de condies, desde camponeses livres at escravos. As pequenas propriedades rurais no ligadas a um grande domnio, conhecidas por aldios, eram cultivadas pelo proprietrio e sua famlia. Contudo, a partir do sculo XI, fosse em virtude de doaes Igreja, de endividamento ou de presses dos aristocratas, os aldios desapareceram em grande nmero. Seus antigos proprietrios ou entraram ento em algum tipo de dependncia ou, apesar da perda da terra, mantiveram-se livres mas trabalhando num grande domnio. Esta foi uma das origens do vilo, campons livre que recebera um lote de terra de um senhor, mas em troca de obrigaes e limitaes relativamente leves, podendo deixar a terra quando quisesse. Pag. 38Os escravos, ainda numericamente importantes at o sculo VIII, passaram desde ento a se fundir, sob modalidades diversas, sobretudo como servos, na massa de trabalhadores dependentes detentores de um lote de terra. Em parte, isso se deveu s transformaes econmicas da poca, que com sua tendncia autarcia tornavam desinteressante a um senhor fiscalizar e alimentar bandos de escravos geralmente pouco produtivos. Em parte, Igreja, que apesar de ser grande proprietria de escravos e considerar a escravido um meio de expiao do pecado original, admitia-os aos sacramentos e assim recuperava sua dignidade humana. De qualquer forma, os escravos jamais desapareceram na poca feudal, mantendo mesmo certa importncia nas regies meridionais. Pag. 38-39Sem dvida, porm, o principal tipo de trabalhador no Feudalismo eram os servos. Contudo, no fcil acompanhar a passagem da escravido para a servido. Ela se deu lentamente, com variaes regionais, mas sempre acompanhando o carter cada vez mais agrrio da sociedade ocidental. De fato, com a atrofia da economia mercantil era mais difcil recorrer-se mo-de-obra escrava (caso em que o trabalhador mercadoria) ou assalariada (caso em que a fora de trabalho mercadoria). Assim, apresentava-se como soluo natural a mo-de-obra servil, isto , produtores dependentes, sem liberdade de locomoo (de que goza um assalariado), mas que escapavam arbitrariedade de um senhor (que atingia o escravo). A servido tinha uma dupla origem. De um lado, os servi casati da poca carolngia (sculos VIII-IX), escravos que haviam recebido uma casa e terra para cultivar. De outro, colonos e demais homens livres, submetidos, espontaneamente ou no, ao poder de grandes proprietrios rurais. Pag. 39-40Portanto, para se pensar a mecnica das relaes sociais, podemos considerar a existncia de duas camadas bsicas: senhores de terra e poder poltico (oratores e bellatores), e despossudos, geralmente dependentes (laboratores). Assim, eram possveis trs tipos de relaes sociais: duas horizontais (uma intra camada dominante e outra intracamada dominada) e uma vertical (intercamadas). No primeiro tipo a relao se dava, como veremos algumas pginas adiante, atravs do contrato feudo-vasslico. No segundo tipo, os camponeses se organizavam para empreender em conjunto certas tarefas (arar um campo, desmatar uma rea) ou resistir a presses senhoriais (por exemplo, para privatizar as terras comunais). O terceiro tipo de relao social constitua-se por sua vez num elemento central do Feudalismo. Ele era a razo de ser do primeiro, na verdade forma de a aristocracia dividir o produto do trabalho campons, e do segundo, forma de os camponeses resistirem a abusos aristocrticos. As relaes verticais implicavam, como j vimos, diversas obrigaes em servio, em produtos e em dinheiro devidas pelos trabalhadores aos seus senhores. Pag. 40-41Politicamente, ocorria uma fragmentao do poder central, uma debilidade do poder pblico que resultava na transferncia das atribuies do Estado para mos de particulares. Ou melhor, com a fraqueza da prpria concepo de Estado e com o desenvolvimento de particularismos regionais (influncias germnicas), com a decadncia do Imprio Carolngio e a apropriao de poderes rgios por seus representantes, com a crescente importncia da terra na vida econmico-social, os detentores de terra passaram a exercer nos seus senhorios poderes polticos. Pag. 41O processo poltico centrfugo que vinha desde os ltimos tempos de Roma, foi expressado e acelerado pelo desaparecimento do Imprio Carolngio. Surgiram ento grandes principados territoriais, ducados e condados, cujos titulares deixavam cada vez mais de representar o poder monrquico e passavam a agir de forma independente. Pag. 41Em funo das transformaes que ocorriam, o rei passava a ter um duplo e contraditrio carter. Porum lado, continuava a ser o soberano, a ter teoricamente poderes bastante extensos sobre seus sditos. relao com estes era unilateral, pois o soberano tinha carter sagrado que originrio do Antigo Oriente passara para o Imprio Romano e fora reforado pelo cristianismo. Ele era Rex Dei Gratia, "rei por graa de Deus". Como ocorria no Antigo Testamento, sua sacralidade era confirmada pela uno, pelo rito de o bispo passar-lhe leos santos. Pag. 42Por outro lado, contudo, o rei era suserano. Isto implicava uma relao bilateral entre ele e seus vassalos, com direitos e obrigaes recprocos. Assim, como suserano ele no tinha poder poltico direto sobre o conjunto da populao, exercendo-o apenas, e de forma muito limitada, atravs de inmeros intermedirios, seus prprios vassalos e os vassalos destes. Portanto, em termos prticos, o rei era um senhor feudal como os demais, mandando efetivamente apenas nos seus senhorios, e vivendo daquilo que estes produziam. Pag. 42-43Institucionalmente, diante da fraqueza do Estado e da necessidade de segurana, desenvolviam-se as relaes pessoais, diretas, sem intermediao do Estado. Estreitaram-se assim os laos de sangue, as relaes dentro das famlias, das linhagens, grupos cuja solidariedade interior podia melhor proteger os indivduos em relao ao exterior. Pag. 43Este forte sentimento grupai, o que naturalmente no exclua desentendimentos internos, existia tanto no seio da aristocracia quanto no do campesinato. Contudo, os laos de sangue eram claramente insuficientes para as necessidades sociais: da a formao de vnculos fora do parentesco. Pag. 43-44Por sua vez, a relao entre nobres, baseada na igualdade, fundamentava-se no contrato feudo-vasslico. Pag. 44Este era criado por trs atos, realizados diante de testemunhas mas poucas vezes colocados por escrito. O primeiro ato era a homenagem, pela qual um indivduo (o futuro vassalo) se ajoelhava diante de outro (que se tomava o senhor feudal), colocava suas mos nas dele e se reconhecia como "seu homem". O segundo ato, logo a seguir, era o juramento de fidelidade: depois de se pr em p, o vassalo jurava sobre a Bblia ou relquias de santos. Pag. 44O terceiro ato era o da investidura, pelo qual o senhor entregava ao vassalo um objeto (ramo, punhado de terra etc.) simbolizador do feudo ento concedido. Pag. 44Esta cerimnia feudo-vasslica possua forte carga simblica, muito bem estudada por Jacques Le Goff. Como ele mostrou, as trs fases do ritual formavam um todo, um conjunto coerente, que expressava simbolicamente a relao vassalo-senhor feudal baseada na desigualdade-igualdade-reciprocidade. Pag. 44-45Mais ainda, o contrato feudo-vasslico estava bem de acordo com dois elementos importantes da poca, os laos familiares nas relaes sociais e a complementaridade das funes sociais. De fato, quando pela homenagem algum se tornava "moo" (vassalus) de um "ancio" (senior), estabelecia-se um pseudoparentesco entre fUho e pai. Entre eles, como nas relaes patemais-fUiais biolgicas, devia haver respeito e fidelidade, um devia servir, outro sustentar. Pag. 45Enfim, quais eram as obrigaes recprocas? Elas foram definidas em princpios do sculo XI pelo bispo Fulbert de Chartres: Aquele que jura fidelidade ao seu senhor deve ter sempre presente na memria seis palavras: so e salvo, seguro, honesto, til, fcil, possvel. So e salvo, para que no cause qualquer prejuzo ao corpo do seu senhor. Seguro, para que no prejudique o seu senhor divulgando os seus segredos ou dos castelos que garantem sua segurana. Honesto para que no prejudique os direitos de justia do seu senhor ou outras prerrogativas que interessem honra a que pode pretender. til, para que no case prejuzo aos bens do seu senhor. Fcil e possvel, para que no torne difcil ao seu senhor o bem que este poderia facilmente fazer e para que no torne impossvel o que teria sido possvel ao seu senhor. Pag. 46O auxilium era o servio militar prestado sempre que requisitado pelo senhor, desde que no ultrapassasse certo nmero de dias anuais, geralmente quarenta. Pag. 47Ao lado do aspecto militar, o auxilium implicava ajuda econmica em quatro casos: pagamento de resgate do senhor se ele fosse aprisionado, da cerimnia em que se armava cavaleiro o primognito do senhor, do casamento da filha mais velha do senhor, da partida do senhor para uma cruzada. Pag. 47Proteger o vassalo implicava defend-lo de seus inimigos, fosse militarmente, fosse judicialmente. Sustentar o vassalo, significava ou aloj-lo e aliment-lo no castelo senhorial, ou conceder-lhe um feudo do qual ele tiraria sua subsistncia. Na essncia, o feudo termo surgido em fins do sculo IX e vulgarizado no XI equivalia ao velho beneficium carolngio, palavra que alis continuou a ser usada ainda por bastante tempo (como no texto de Fulbert de Chartres citado acima). Naquela sociedade agrcola, naturalmente o feudo era quase sempre uma certa extenso de terra, englobando um ou mais senhorios. Era, portanto, terra com camponeses, pois sendo o vassalo um homem livre pertencente camada dos guerreiros, nc se dedicava a tarefas produtivas. Vivia, assim, das prestaes era servio, em produtos e em dinheiro devidas pelos camponeses daquela terra recebida como feudo. Mas o feudo no era necessariamente um bem imvel, podendo ser um direito, como cobrar pedgio numa ponte, numa estrada ou num rio. Pag. 47-48De qualquer forma, o contrato feudo-vasslico implicava direitos e obrigaes recprocos, de maneira que o rompimento do acordo por uma das partes era considerado felonia ("traio"). Disso decorria a quebra da fidelidade e o confisco do feudo. Nada disso ocorrendo, o pacto seria vitalcio, rompendo-se apenas pela morte de uma das partes. Pag. 48Contudo, a relao direta era apenas com o indivduo colocado um degrau acima na hierarquia e com o outro um degrau abaixo. Prevalecia a regra "o vassalo do meu vassalo no meu vassalo" Pag. 50Militarmente, o Feudalismo baseava-se na superioridade de um guerreiro altamente especializado, o cavaleiro. Esta superioridade vinha se firmando aos poucos e parece ter-se concretizado, no Ocidente, com o incio da utilizao do estribo, no sculo VIII. Importante inovao; somente a partir de ento, o cavaleiro com sua pesada armadura, com uma mo segurando as rdeas do animal e o escudo e com a outra empunhando a lana poderia se manter firme sobre o cavalo. Como j se disse, o estribo "tornava solidrios homem e cavalo, uma unidade de combate eficaz. 51Contudo, para utilizar tal tecnologia militar, era preciso recursos econmicos abundantes para adquirir s valiosas armas e o caro . cavalo e para o constante treinamento que o uso de todo aquele equipamento requeria. O custo desse equipamento equivalia a 22 bois, animais de que cada famlia camponesa no contava com mais de dois, para ajudar nos servios agrcolas. Ou seja, os bens mobilirios de um cavaleiro correspondiam aos de onze camponeses reunidos. Entende-se, portanto, que o detentor de terras precisava ser (ou ter) cavaleiro para defend-las e portanto no perd-las, e o cavaleiro precisava ter terras para manter seu equipamento e treinamento militares, enfim, sua prpria condio de cavaleiro.Desta forma, a condio de guerreiro era intrnseca ao aristocrata feudal, pois o poder militar desempenhou papel fundamental no Feudalismo. Nos seus primeiros tempos, a defesa da Cristandade contra os muulmanos ou pagos dava aos guerreiros crescente prestgio e poder. Depois, passada aquela fase, a guerra revelou-se a forma de revigorar, manter ou alterar os laos hierrquicos dentro da aristocracia atravs de uma nova distribuio das terras, motivadora e mantenedora daquela constante atividade militar. Por fim, e sobretudo, o monoplio da violncia permitia aos bellatores manterem o domnio sobre o campesinato e assim se apropriarem de grande parte de sua produo. Pag. 51-52Por isso mesmo, a condio socialmente importante dos cavaleiros s se firmou a partir do comeo do sculo XI. At ento, eles eram elementos de origem humilde, geralmente sados do campesinato livre que ainda existia, sendo armados e sustentados por um senhor na sua prpria casa (vassalos domsticos). Como porm seu nmero crescia e sua manuteno era custosa, preferiu-se cada vez mais remuner-los com terras. Mas assim, diante da fraqueza dos poderes pblicos, eles ganhavam certa autonomia, que redundava em constantes combates entre eles e em expedies destrutivas contra os feudos inimigos. Assim, a anarquia dos primeiros tempos feudais levou a Igreja a lanar em fins do sculo X o movimento da Paz de Deus. Pag. 54Por ela, tentava-se obter um juramento dos guerreiros no sentido de respeitarem no curso de suas lutas os clrigos, os mercadores e os camponeses, assim como seus bens. Esse movimento se ampliou com a Trgua de Deus, de princpios do sculo XI, que proibia lutas alguns dias por semana (da quinta de tarde segunda de manh) e em certos perodos do ano (Pscoa, as semanas que precedem o Natal etc.). Desta maneira comeava um processo de cristianizao da cavalaria, pois, ao se proibir as lutas em certos momentos, automaticamente elas estavam justificadas no resto do tempo. Mais ainda, criou-se uma cerimnia para transformar o guerreiro anrquico e destrutivo em um miles Christi, um cavaleiro de Cristo, a servio da Igreja, o que desembocaria,em fins do sculo, nas Cruzadas. Portanto, Paz de Deus e Guerra Santa foram concepes complementares, que permitiam aos oratores manterem certo controle sobre os bellatores. Pag. 54-55Clericalmente, havia no Feudalismo um papel de primeira ordem desempenhado pelo grupo eclesistico. Papel que extravasava, em muito, sua atividade sacerdotal. Sendo a Igreja a nica instituio organizada da poca, de atuao realmente catlica, quer dizer, universal, a ela cabia a funo cimentadora, unificadora, naquela Europa fragmentada em milhares de clulas. Por outro lado, a Igreja, naturalmente, no escapava s caractersticas bsicas do perodo: muito de seu poder temporal derivava da fragmentao dos Estados, o prestgio social do clero estava ligado sua origem nobilirquica, sua imensa riqueza assentava-se na posse de terras e no trabalho de servos, suas relaes com a elite laica davam-se atravs de laos feudo-vasslicos, a proteo dos bens e pessoas da Igreja era realizada pelos cavaleiros. Pag. 55-56Entre os mosteiros da Ordem havia uma rgida hierarquia, que tinha no cume a abadia-me, por sua vez submetida Santa S, como que numa extensa cadeia de vassalagem. No havia relaes horizontais entre unidades de igual categoria, reportando-se todas ao nvel hierrquico superior. Pag. 56Na verdade, a sociedade feudal (agrria, militarista, localista, estratificada) era ao mesmo tempo uma sociedade clerical (controle eclesistico sobre o tempo, as relaes sociais, os valores culturais e mentais). De fato, a Igreja, ao determinar rigorosamente o uso do tempo, interferia no mais profundo e cotidiano da ao dos homens. Tempo histrico: intervalo entre a Criao e o Juzo Final, tendo como grande linha divisria a encarnao de Cristo, a partir da qual se passa a contar os anos. Tempo natural: os ciclos das estaes e os fenmenos meteorolgicos, to importantes numa sociedade agrria, lembravam a onipotncia de Deus e deixavam aos homens uma nica possibilidade de interveno, realizada atravs do clero: as oraes. Tempo social: festas litrgicas, determinando para certos momentos certas formas de agir e de pensar, de trabalhar ou repousar, de se alimentar ou de jejuar. Tempo poltico: a Paz de Deus fixando onde e quando se poderia combater. Tempo pessoal: o cristo nascia com o batismo, reproduzia no casamento (desde que fora dos momentos de abstinncia), morria aps a extrema-uno e era enterrado no espao sagrado do cemitrio da igreja de sua localidade. Pag. 57 No que dizia respeito s relaes sociais, o papel da Igreja no era menos decisivo. O carter do casamento ocidental, diferenciado do de outras sociedades, foi fixado por ela; monogmico, indissolvel, exogmico (isto , entre no-familiares, estando proibido at o 7 grau de parentesco), pblico (a relao homem-mulher deixava de ter carter pessoal e privado, passando a ter normas controladas pela sociedade). Consequentemente, todas as relaes familiares (adoo, desero, herana, divrcio, adultrio, incesto etc.) passavam para a alada da Igreja. Entre os clrigos as relaes baseavam-se num parentesco espiritual, pois todos eram vistos como "irmos em Cristo". Da mesma forma, a Igreja procurava transferir esse pseudoparentesco para as relaes entre clrigos "e leigos, extraindo delas certa posio de domnio; o clrigo o padre, "pai" dos cristos. Pag. 57-58

O controle eclesistico sobre os valores culturais e mentais era exercido atravs de vrios canais. O sistema de ensino, monopolizado pela Igreja at o sculo XIII, permitia a reproduo do corpo de ideias que ia sendo selecionado e formulado por ela. Pag. 58A prtica da confisso individual, cada vez mais adotada a partir do sculo VIII, permitia ao clero penetrar profundamente na conscincia de seus paroquianos e assim orientar seu pensamento e comportamento. Pag. 59Em suma, a clericalizao da sociedade que, j vimos, ocorria desde os ltimos tempos do Imprio Romano, atingiu seu auge nos sculos X-XIII. Pouca coisa naquele momento escapava Igreja. Pag. 59Psicologicamente, o homem da poca feudal era to complexo quanto seus antepassados ou seus descendentes, mas talvez possamos, para os nossos objetivos, destacar trs traos, profundamente interligados. O primeiro deles a supranaturalidade, isto , a tendncia a interpretar todos os acontecimentos como manifestao divina. Portanto, a compreenso dos objetos e dos fenmenos deveria se dar atravs da f e da sensibilidade mais do que da inteligncia. Deste ponto de vista, o mundo terrestre seria apenas um reflexo deformado do mundo celeste, imagem que o homem deveria se esforar por entender olhando para alm das aparncias materiais. A realidade estava no invisvel, por detrs das mscaras visveis mas ilusrias. Identificadas as foras sobrenaturais, benficas ou malficas, responsveis por determinados acontecimentos, o homem poderia tentar intervir atravs de preces, jejuns, peregrinaes, exorcismos, amuletos etc. Pag. 59-60Portanto, o mundo terrestre era visto como palco da luta entre as foras do Bem e as do Mal, hordas de anjos e demnios. Disso decorria o segundo grande trao mental da poca: a belicosidade. Na sua manifestao mais concreta, tratava-se de enfrentar as foras demonacas dos muulmanos, vikings e hngaros. Mais perigosas e difceis de serem vencidas, contudo, eram as foras malficas que no se encarnaram. Para isso era preciso outro tipo de guerreiros especializados: os clrigos, com suas armaduras sinablicas (batinas) e suas armas espirituais (sacramentos, preces, exorcismos). Sob seu comando, todos os homens enfrentavam o Diabo, vassalo de Deus que praticara felonia ao quebrar sua fidelidade. Pag. 60A DinmicaGestao, nascimento, crescimento, reproduo, morte. Tambm as sociedades passam por este ciclo vital. E com o Feudalismo no poderia ser diferente. Mal estava completada sua estruturao, o Feudalismo j comeava a sofrer transformaes. Era a dinmica feudal, isto , o prprio movimento do corpo social, a vida enfim da sociedade, que desencadeava uma srie de mutaes que de um lado expressavam a vitalidade do Feudalismo na sua maturidade, mas de outro levavam-no sua velhice e decadncia. Nascido em fins do sculo IX ou princpios do X aps centenas de anos de gestao o Feudalismo conheceu seu perodo de mais intenso crescimento de meados do sculo XI a meados do XIII. Pag. 62Isso foi possvel porque o Feudalismo significara uma reorganizao da sociedade ocidental em novos moldes, mais de acordo com as condies decorrentes do fracasso do Imprio Carolngio e com as profundas transformaes que ocorriam h sculos. Contudo, tal reorganizao (estrutura) provocava um movimento geral de renovao e expanso (dinmica) que trazia em si os germes que acabariam por abalar seus prprios fundamentos (crise). Aquela revitalizao da sociedade crist ocidental expressou-se num triplo crescimento, demogrfico, econmico e territorial. Sendo partes de um mesmo fenmeno, esses crescimentos ocorreram paralela e interligadamente, com cada um deles agindo sobre os demais. Pag. 62-63O primeiro deles, o crescimento demogrfico, ocorreu como resposta lgica a uma sociedade que no encontrava obstculos tendncia natural que toda espcie tem para se multiplicar. Pag. 63Outro fator era o tipo de guerra da poca feudal, constante mas pouco destruidora. Isso se devia ao fato de ela no envolver grandes tropas de combatentes annimos, como nas legies romanas ou nos exrcitos nacionais modernos, mas apenas pequenos bandos de guerreiros de elite, os cavaleiros. O equipamento desses era sobretudo defensivo (especialmente a armadura, que protegia praticamente todo o corpo), minimizando nos combates o nmero de mortes. Pag. 64Um terceiro demento a ser considerado a abundncia de recursos naturais existente na poca feudal. De fato, o recuo demogrfico dos sculos III-VIII fizera com que extensas reas anteriormente cultivadas fossem abandonadas e ocupadas por bosques e florestas. Assim, o homem podia obter ali frutos silvestres e caa para sua alimentao, e sobre tudo madeira, o principal material de construo e combustvel de que dispunha. Mais ainda, a maior produtividade agrcola que ento ocorria devi-se em parte ao cultivo de zonas desmatadas e portanto de solo virgem e de grande fertilidade. Pag. 65A passagem da escravido para a servido tambm teve influncia positiva no incremento populacional. O comportamento demogrfico do escravo geralmente pouco propcio ao crescimento. De um lado, em funo da alta mortalidade decorrente de um baixo padro de vida (m alimentao, maus tratos, ignorncia). De outro, em funo de uma baixa natalidade resultante de sua condio psicolgica: no desejando a mesma m sorte para os filhos e tambm como forma de protesto e oposio escravido, recorria-se muito a prticas contraceptivas, abortivas e infanticidas. Assim., a melhoria do estatuto jurdico do escravo incentivava sua reproduo: ele passava a ter um lote de terra para cultivar, tinha obrigaes fixas e limitadas e no mais arbitrrias, no podia ser separado da famlia. Pag. 65-66As inovaes tcnicas beneficiaram a produo agrcola, mas no se sabe qual o ponto de partida: foram elas que ao aumentarem a produo possibilitaram o crescimento demogrfico, ou este que tornou necessrio o progresso tcnico? De qualquer forma, trs aperfeioamentos exerceram ao direta sobre o desenvolvimento agrcola e assim num primeiro ou num segundo momento, no nos importa da populao. Um foi a charrua, tipo de arado mais eficiente por penetrar profundamente no solo, revivendo-o e aumentando sua fertilidade. Outro foi o novo sistema de atrelar os animais, possibilitando utilizar mais eficientemente nos trabalhos do campo a fora-motriz cavalar e bovina. Outro ainda foi o sistema de rodzio das terras, pelo qual ocorria uma alternncia de cultivos (cereais, leguminosas) sobre uma mesma rea, impedindo que ela se esgotasse. Pag. 66-68O crescimento econmico manifestou-se sobretudo atravs de trs fenmenos: maior produo, progresso do setor urbano, acentuada monetarizao. Apesar de a elevao da produtividade ter ocorrido em todos os setores, naturalmente numa economia agrria o processo foi desencadeado pelo setor primrio. De fato, foram os excedentes gerados pela agricultura que forneceram as matrias-primas bsicas para a indstria artesanal e assim permitiram a intensificao do comrcio. Esse incremento da produo agrcola teve como ponto de partida as inovaes tcnicas e a melhoria climtica de que falamos mais acima. Pag. 68Contudo, como o ritmo de crescimento populacional era mais intenso, desde meados do sculo XI verificava-se uma alta nos preos de cereais. Isso incentivava os arroteamentos, ou seja, a procura de novas reas para a agricultura atravs do recuo das florestas, dos terrenos baldios e das zonas pantanosas. Foi desta forma que a rea cultivvel da Europa Ocidental estendeu-se bastante. Pag. 68-69Portanto, tambm no setor secundrio a produo conhecia claros progressos. Desenvolveram-se especialmente a indstria txtil e a de construo, como resultado das necessidades impostas pelo crescimento demogrfico. S na Frana, por exemplo, de 1050 a 1350 foram erguidas 80 catedrais, 500 grandes igrejas e algumas dezenas de milhares de pequenas igrejas paroquiais. Pag. 69Se esse desenvolvimento do artesanato atestava o progresso urbano dos sculos XI-XIII, r importante lembrar contudo que a sociedade ocidental permanecia essencialmente agrria. De fato, apenas 10 ou 20% da populao total moravam em cidades. Pag. 69-70No entanto, isso se tornaria claro somente a partir de meados do sculo XII, quando o conjunto de transformaes sadas da prpria dinmica feudal comeava a comprometer o Feudalismo. At aquele momento, os senhores feudais viam com bons olhos a formao ou o desenvolvimento de cidades nas suas terras. Elas lhes pareciam boas fontes de taxas e impostos, e locais prximos e cmodos para vender os excedentes produtivos dos seus senhorios. Mesmo depois de obter sua autonomia (comprando-a ou lutando por ela), a cidade no podia naturalmente desligar-se do mundo feudal, do qual recebia reforos populacionais e matrias-primas, e para o qual vendia seus produtos manufaturados. Pag. 70De qualquer forma, o progresso urbano era parte do crescimento econmico global do Feudalismo. Sem a maior produo agrcola no teria sido possvel alimentar a crescente populao urbana: por volta do ano 1000 no havia no Ocidente cristo nenhuma cidade de 10000 habitantes, mas em 1300 existiam 55 delas. Sem o excedente demogrfico rural, alis, a populao urbana no teria atingido os nveis que atingiu. Sem o campo fornecer matrias-primas, o artesanato urbano no poderia expandir sua produo. Sem a maior capacidade de compra por parte do campo, as cidades no venderiam sua crescente produo. Sem a exportao de trigo, vinho, madeira, ferro e tecidos no se desenvolveriam o comrcio internacional e a importao de mercadorias orientais (especiarias, seda, produtos de luxo). Sem essa intensificao do comrcio no haveria condies para as atividades bancrias. Pag. 71O revigoramento do artesanato e do comrcio implicava, claro, uma ativao da economia monetria. Ao contrrio do que pensavam tempos atrs, os historiadores sabem hoje que jamais o Feudalismo foi uma economia natural, isto , sem moeda, porm no negam que ela era pouco utilizada at fins do sculo XI. Desde ento, contudo, o aumento da produo, tornando necessrio vender o excesso e criando oportunidades de compras, levou a se recolocar em circulao moedas e metais preciosos entesourados. Alm disso, o progresso da minerao e os metais trazidos do Oriente pelo comrcio permitiam a cunhagem de mais moedas. Essa monetarizao da economia feudal, ao mesmo tempo que expressava o vigor do Feudalismo, contribua para que nele ocorressem importantes transformaes. Pag. 71-72Por exemplo, a comutao das obrigaes servissem pagamentos em moeda. Como a maior produtividade permitia aos camponeses ficarem com um excedente, eles o vendiam na feira local e obtinham assim uma certa renda monetria. Pag. 72Tambm no plano institucional a monetarizao da economia provocava mudanas. J em fins do sculo XI era conhecido em algumas regies o feudo de bolsa ou feudo-renda, pelo qual o senhor comprometia-se a remunerar o vassalo no com terras, mas com uma quantia, geralmente em moeda, paga periodicamente. Pag. 72 O crescimento territorial terceiro aspecto da dinmica feudal foi o resultado lgico da necessidade de exportar os excedentes de populao e de mercadorias, decorrentes do crescimento demogrfico e econmico. Nesse sentido, representou uma tentativa instintiva de sobrevivncia, que expulsava do corpo social um excesso de vitalidade que poderia sufoc-lo. Mas desta forma tornou-se um fenmeno de grande alcance: a penetrao, o domnio e a fixao de grupos feudais em outras reas significou a prpria expanso do Feudalismo, a reproduo do sistema. Pag. 73Assim, limitado originalmente aos territrios do antigo Imprio Carolngio (grosso modo, atuais Frana, Blgica, Sua, Itlia do Norte, Alemanha Ocidental), desde a segunda metade do sculo XI o Feudalismo penetrou tambm na Inglaterra, Oriente Mdio e Pennsula Ibrica. Naturalmente, em cada um desses locais o Feudalismo, sem se descaracterizar, assumiu feies prprias, ligadas s condies preexistentes e de implantao. Pag. 73Em suma, como toda sociedade pr-industrial, o Feudalismo pde manter sua capacidade de expanso enquanto houve certo equilbrio entre os trs elementos bsicos, capital, natureza e trabalho. Ou seja, enquanto o crescimento econmico, o crescimento territorial e o crescimento demogrfico puderam ocorrer de forma complementar um aos outros. Contudo, aquele era um equilbrio precrio, no qual o fator capital tendia a crescer pouco, de forma que a manuteno e a expanso do sistema dependiam da constante incorporao de novas reas produtivas e de mais mo-de-obra. Pag. 77A CRISEDesde as ltimas dcadas do sculo XIII, assistia-se a uma perda da vitalidade que caracterizara o Feudalismo nos duzentos anos anteriores. A origem disso estava li-a sua dinmica, que levara o Feudalismo a atingir ento os limites possveis de funcionamento de sua estrutura. Em outros termos, a crise resultava das caractersticas do prprio Feudalismo. Assim, ao longo dos sculos XII-XII j vinham ocorrendo profundas transformaes, que se revelaram com toda a fora a partir de princpios do sculo XIV. Esta crise foi global, com todas as estruturas feudais sendo fortemente atingidas. Pag. 78No seu aspecto econmico, a crise derivava da explorao agrcola predatria e extensiva que fora tpica do Feudalismo. De fato. na poca de expanso, o aumento da produo fora conseguido mais com a ampliao da rea cultivvel do que com a utilizao de tecnologia mais avanada. Assim, aquele incremento produtivo era frgil e apresentava claros limites, pois s poderia se manter com a anexao constante e indefinida de novas reas cultivveis. Quando em algumas regies o cultivo de cereais precisou crescer roubando terras da pecuria, a mdio prazo a produtividade agrcola baixou devido menor disponibilidade de esterco. E naturalmente caiu a produo de carne, leite e derivados. Pag. 79A busca desordenada de terras para a agricultura parece mesmo ter provocado importantes alteraes ecolgicas. O desmatamento em 1300 as florestas da Frana cobriam um milho de hectares a menos que atualmente talvez tenha sido o responsvel pelas mudanas no regime pluvial e pelo resfriamento do clima ento ocorrido. As violentas e constantes chuvas que atingiram a maior parte da Europa em 1314-1315 provocaram colheitas desastrosas: de fins de 1315 a meados de 1316 os preos de trigo mais que triplicaram. A fome abriu caminho vrias epidemias, a mortalidade cresceu. Como cada indivduo gastava mais com alimentao, consumia menos bens artesanais, o que levou retrao desse setor e consequentemente tambm do comrcio. Pag. 79Essa retrao estava tambm ligada aos problemas monetrios, pois a extrao de minrios, como a agricultura, atingira seus limites tecnolgicos. Ou seja, esgotados os veios superficiais e mais facilmente explorveis, seria necessrio cavar poos profundos e possuir sistemas de drenagem mais eficientes. Ora, a queda na produo de metais preciosos e o entesouramento de moedas devido menor oferta de mercadorias levariam s constantes desvalorizaes monetrias. Pag. 79-80 A crise demogrfica j se anunciava em fins do sculo XIII quando o intenso ritmo de crescimento anterior comeou a diminuir. Com a crise agrcola de 1315-1317, a fome e a subnutrio foram acompanhadas por epidemias e a mortalidade elevou-se rapidamente. Pag. 80Contudo, os problemas daquele momento no chegaram a atingir todo o Ocidente e as perdas populacionais poderiam ser recuperadas em pouco tempo. Mas tal no aconteceu, e a crise demogrfica agravou-se drasticamente, devido peste negra. Pag. 80Como todas as demais manifestaes da crise geral do Feudalismo, a peste deve ser vista como um fator interno a ele. verdade que ela atingiu a Europa Ocidental levada da regio do mar Negro por comerciantes genoveses. Mas esse fato decorreu em ltima anlise da expanso ocidental, que criara colnias comerciais em locais onde a peste sempre existira em. forma endmica. Alm disso, se a peste se propagou to rapidamente na Europa, e fazendo to grande nmero de vtimas, foi devido superpopulao gerada pela prpria dinmica feudal. Pag. 81Apesar de sensveis desigualdades regionais, no conjunto a peste negra de 1348-1350 eliminou de 25 a 35% da populao europeia. Esta perda demogrfica foi to grande, que os nveis anteriores a ela seriam alcanados apenas no sculo XVII. Naturalmente, as repercusses de um fenmeno como esse se revelaram bastante amplas. Por exemplo, a servido recebeu um golpe profundo. De fato, ao diminuir significativamente a quantidade de mo de obra dos senhorios, a peste obrigava os senhores a recorrerem a assalariados e a amenizarem a dependncia dos servos sobreviventes. Ademais, a desorganizao social que seguiu a peste e a crescente procura por mo de obra facilitava e incentivava a fuga de servos. Assim, no s a mo de obra assalariada tornava-se mais comum, como tambm beneficiava-se de uma elevao salarial. Pag. 81-82A aristocracia laica e clerical, que tinha sido a grande beneficiada pelo crescimento econmico, desde ento tendia a comutar as obrigaes camponesas em produtos e servios por rendas monetrias. Contudo, desta forma, com a desvalorizao da moeda a aristocracia perdia seu poder aquisitivo: 50% no caso da importante abadia de Saint Denis apenas no curto perodo de 1337-1342. Agravando a situao, depois das dificuldades de-1315-1317, quando os preos de cereais subiram, eles caram e se mantiveram baixos devido retrao demogrfica e consequente menor procura. Portanto, as rendas senhoriais se encolhiam ainda mais. Paralelamente, os salrios subiam e os senhores, para terem recursos, trocavam obrigaes servis por dinheiro: em meados do sculo XIV cerca de 50% das corveias haviam sido substitudas por rendas monetrias em vrios locais da Inglaterra. Pag. 83-83Assim, atingida pelas dificuldades econmicas, pela peste e pela resultante mudana psicolgica, a aristocracia viu sua taxa de natalidade cair. Muitas famlias nobres desapareceram. Nos sculos XIV-XV, a cada seis geraes, em mdia, extinguia-se uma linhagem. Pag. 83Concretamente, as transformaes sociais mais importantes deram-se entre os laboratores. A burguesia, nascida da prpria dinmica feudal, mas elemento desestruturador daquela sociedade, continuava a ganhar terreno. verdade que as cidades tambm foram atingidas pela crise econmica e demogrfica, porm proporcionalmente menos que o campo. Pag. 83Assim, a burguesia revelava-se um elemento dissolvente do Feudalismo em vrios aspectos. Por suas atividades comerciais, artesanais e bancrias, rompia aos poucos o predomnio absoluto da agricultura. Pag. 84Em relao aos camponeses, a crise econmica e demogrfica apresentou dois resultados diferentes. Por um lado, surgiu um campesinato livre e que se enriquecia, formando uma verdadeira elite camponesa. Desde a poca de expanso econmica, muitos servos se beneficiavam da substituio de suas obrigaes por pagamentos em dinheiro. Assim, eles vendiam seu excedente produtivo nas feiras locais, pagavam seu senhor e economizavam mesmo algumas moedas. Desta forma, era possvel com o tempo comprar sua liberdade ao senhor, cada vez mais interessado em rendas monetrias. As dificuldades da aristocracia nos sculos XIV-XV permitiram em alguns locais a difuso desse processo. Estes camponeses, aproveitando-se do surgimento de reas despovoadas pela peste, conseguiam ter suas prprias terras. Pag. 84Por outro lado, em certas regies os senhores procuraram fazer frente s suas dificuldades revigorando os laos de dependncia camponesa. Um caminho para isso era renunciar s taxas monetrias fixas pagas pelos trabalhadores e reimpor as antigas obrigaes em produtos e servio. Essa "reao senhorial" no foi muito difundida no Ocidente, tendo sido significativa apenas na Inglaterra e especialmente nos senhorios monsticos. Pag. 85A crise poltica do Feudalismo foi representada pela reconstituio dos poderes pblicos, ou mais especificamente pela centralizao monrquica. Como j vimos, os reis feudais tinham sido inicialmente muito mais suseranos que soberanos, ou seja, seu poder se efetivava fundamentalmente pelos laos vasslicos. Mas era tambm limitado por eles. Contudo, medida que os poderes regionais detidos pela aristocracia entravam em crise, o rei podia extrair das prprias relaes vasslicas elementos que faziam dele cada vez mais soberano que suserano. Pag. 85-86Recorrendo ao apoio da burguesia, favorecendo as comunas urbanas, incentivando a libertao de servos, constituindo tropas mercenrias, revigorando o direito romano, a monarquia desde o sculo XIII ia reagrupando em suas mos os fragmentos de poder anteriormente detidos pela aristocracia. Por outro lado, esse processo era acompanhado por uma recuperao do prestgio da funo monrquica. Pag. 86 significativo que a primeira grande guerra nacionalista tenha ocorrido nessa fase da Idade Mdia: a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Pag. 87Tanto no lado francs quanto no ingls, a guerra favoreceu a centralizao poltica. Na verdade, esta era a nica forma de se mobilizar tropas por uma rea geogrfica bem mais ampla que nos combates feudais; de se obter nos vrios cantos do pas os recursos econmicos necessrios para a luta; de se negociar tratados e restabelecer a paz. A centralizao decorreu ainda das importantes perdas na nobreza dos dois pases. Alm disso, a guerra agravou a crise demogrfica, contribuindo para a baixa da taxa de natalidade e o despovoamento de regies arrasadas. Pelas migraes que provocou, a guerra favoreceu a mobilidade social, o empobrecimento de uns e o enriquecimento de outros, a ruptura de laos de dependncia pessoal, enfim, a crise social. A devastao de muitos territrios franceses, a perda de colheitas e de rebanhos, os emprstimos feitos pelas monarquias junto a banqueiros italianos foraram a alta dos preos e a desvalorizao monetria, agudizando a crise econmica. Pag. 87A cavalaria feudal, contudo, tornou-se definitivamente ultrapassada com o surgimento das armas de fogo. Na Europa Ocidental elas foram usadas pela primeira vez no cerco de uma fortaleza em 1324 e em batalha campal em 1346. Nessas oportunidades, verdade, pouco influram no resultado da luta. Pag. 89A crise clerical tinha suas razes no papel central desempenhado pela Igreja no Feudalismo. Era clara a contradio entre a instituio "que no deste mundo" e por isso mesmo recebia respeito, obedincia e bens mas que agia cada vez mais nele. Pag. 89Da para a frente o choque entre o poder temporal dos imperadores e o poder espiritual dos papas tornou-se comum. Pag. 90Por muitos anos, de 1309 a 1378, os papas deixaram de residir em Roma, fixando-se em Avignon, prximo ao reino francs, e inevitavelmente sendo envolvidos nos seus negcios. Cativeiro da Babilnia: o nome dado quele perodo define bem o exlio e a dependncia do Papado. Pag. 90Colocado entre os interesses nacionais franceses de um lado e os diversos e s vezes contraditrios interesses italianos de outro, o Papado tornou-se um joguete poltico. Em funo disso, de 1378 a 1417 desapareceu a unidade da Igreja, existindo um papa em Roma e outro em Avignon. Em determinado momento surgiu mesmo um terceiro pontfice. Ora, essa diviso no topo da hierarquia eclesistica naturalmente se refletia em todos os escales. Acompanhando a tendncia lgica da poca, tanto o clero quanto os fiis, desiludidos com a Igreja universal, passavam a pensar em termos de igrejas nacionais. Pag. 90-91Desde o sculo XII as heresias ganhavam terreno como movimentos de contestao social que justificavam suas crticas e suas propostas religiosamente. Ou seja, produto de seu tempo, a oposio ao statu quo somente poderia combater o discurso ideolgico dominante atravs de um discurso formalmente semelhante e que correspondesse mentalidade da poca. Pag. 91

A crise espiritual provinha de duas fontes. Uma, o misticismo, tivera suas primeiras manifestaes no sculo XII e seu grande momento no XIV. Se ele est presente embrionariamente no cristianismo, sem dvida desenvolveu-se naquele momento como uma resposta espontnea religiosidade formal que prevalecia. Ou seja, diante de atitudes religiosas mecnicas, exteriores, muitos indivduos procuravam suprir suas necessidades espirituais pela interiorizao. Pag. 91-92Outra, a angstia coletiva que perturbava os homens dos sculos XIV e XV. Depois de sculos de relativa tranquilidade, voltavam os grandes inimigos: a guerra, a fome, a peste, a morte. Tudo isso era interpretado como castigo divino aos pecados humanos, como resultado do afastamento dos homens em relao a Deus. Pag. 92Diante da crise agrria fazia-se necessria a conquista de novas reas produtoras. Diante da crise demogrfica fazia-se necessrio o domnio sobre populaes no-europias. Diante da crise monetria fazia-se necessria a descoberta de novas fontes de minrios. Diante da crise social fazia-se necessrio um monarca forte, controlador das tenses e das V lutas sociais. Diante da crise poltico-militar fazia-se necessria uma fora centralizadora e defensora de toda a nao. Diante da crise clerical fazia-se necessria uma nova Igreja. Diante da crise espiritual fazia-se necessria uma nova viso de Deus e do homem. Comeavam novos tempos. Pag. 93Por fim, sempre preciso recordar que o Feudalismo apresentava uma dinmica que explica as etapas seguintes da histria europia, no essencil diferente da dos locais de pretensos "feudalismos". Nessa direo que preciso ver a lenta desfigurao do Feudalismo desde seus primeiros tempos. Na verdade, medida que ele reorganizava a sociedade crist ocidental, que ele alcanava seu objetivo, ia perdendo sua razo de ser: sua realizao representava sua superao. De fato, ao permitir a sobrevivncia da Cristandade, absorvendo outros povos e culturas, aliviando as tenses-sociais, reestruturando a economia, permitindo a recuperao, demogrfica, ele automaticamente criava novas tenses e oposies. verdade que o Feudalismo procurou limitar (Paz de Deus), canalizar (Cruzadas, Reconquista Ibrica), absorver (Franciscanismo) ou reprimir (Inquisio) tais manifestaes. Mas isso significava tentar negar suas prprias foras vitais. E o Feudalismo no poderia ser mais forte que si mesmo. Portanto, ele se autodestrua, como na imagem muito pintada e esculpida na poca, de uma serpente que para viver ia aos poucos devorando o prprio corpo. Pag. 98-99