fichamento - bourdieu1

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BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 152 p. Ao leitor MOTIVOS DA ESCRITA DO TEXTO (...) os perigos contra os quais forma acesos os contrafogos cujos efeitos eles queriam perpetuar não são nem pontuais nem ocasionais. P.7 (...) poderão fornecer armas úteis a todos aqueles que tentam resistir ao flagelo neoliberal. P. 7 INTELECTUAL COLETIVO – (...) sempre o fiz com a esperança, se não de desencadear uma mobilização ou até um desses debates sem objeto nem sujeito que surgem periodicamente no universo da mídia, pelo menos de romper a aparência de unanimidade que constitui o essencial da força simbólica do discurso dominante. P. 8 CAPITAL SIMBÓLICO – (...) eles (jornalistas, jornais) não gostam de papéis assinados com uma sigla ou com vários nomes – esse é um dos obstáculos, e não dos menores, à constituição de um intelectual coletivo –, preferindo eliminar, seja depois de alguma negociação, seja, como aqui, sem consulta, os nomes que eles conhecem pouco. P. 8 A mão esquerda e a mão direita do Estado (...) O Sr. Pensa que esses depoimentos individuais e episódios podem levar à compreensão de um mal-estar coletivo? P. 9 MÃO ESQUERDA – MÃO DIREITA (...) Eles (trabalhadores sociais: assistentes sociais, educadores, magistrados e também, cada vez mais, docentes e professores primários) constituem o que eu chamo de mão esquerda do Estado, o conjunto dos agentes dos ministérios ditos “gastadores”,

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BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 152 p.

Ao leitor

MOTIVOS DA ESCRITA DO TEXTO (...) os perigos contra os quais forma acesos os contrafogos cujos efeitos eles queriam perpetuar não são nem pontuais nem ocasionais. P.7(...) poderão fornecer armas úteis a todos aqueles que tentam resistir ao flagelo neoliberal. P. 7

INTELECTUAL COLETIVO – (...) sempre o fiz com a esperança, se não de desencadear uma mobilização ou até um desses debates sem objeto nem sujeito que surgem periodicamente no universo da mídia, pelo menos de romper a aparência de unanimidade que constitui o essencial da força simbólica do discurso dominante. P. 8CAPITAL SIMBÓLICO – (...) eles (jornalistas, jornais) não gostam de papéis assinados com uma sigla ou com vários nomes – esse é um dos obstáculos, e não dos menores, à constituição de um intelectual coletivo –, preferindo eliminar, seja depois de alguma negociação, seja, como aqui, sem consulta, os nomes que eles conhecem pouco. P. 8

A mão esquerda e a mão direita do Estado

(...) O Sr. Pensa que esses depoimentos individuais e episódios podem levar à compreensão de um mal-estar coletivo? P. 9

MÃO ESQUERDA – MÃO DIREITA (...) Eles (trabalhadores sociais: assistentes sociais, educadores, magistrados e também, cada vez mais, docentes e professores primários) constituem o que eu chamo de mão esquerda do Estado, o conjunto dos agentes dos ministérios ditos “gastadores”, que são o vestígio, no seio do Estado, das lutas sociais do passado. Eles se opõem ao Estado da mão direita, aos burocratas do ministério das Finanças, dos bancos públicos e privados e dos gabinetes ministeriais. Muitos movimentos sociais a que assistimos (e assistiremos) exprimem a revolta da pequena nobreza contra a grande nobreza do Estado. P. 10

ESTADO – (...) o Estado se retirou, ou está se retirando, de um certo número de setores da vida social que eram sua incumbência e pelos quais era responsável: a habitação pública, a televisão e a rádio públicas, a escola pública, os hospitais públicos, etc. (...) já que se trata de um Estado socialista do qual se podia esperar pelo menos a garantia do serviço público, assim como do serviço aberto e oferecido a todos, sem distinção... O que se descreve como uma crise do político, um antiparlamentarismo, é na realidade um desespero a propósito do Estado como responsável pelo interesse público. P 10 – 11

SOCIALISTAS – Que os socialistas não tenham sido tão socialistas quanto apregoavam, isso não chocaria ninguém: os tempos são duros e a margem de manobra

não é grande. Mas o que surpreende é que tenham contribuído a tal ponto para a depreciação da coisa pública (...) por todo tipo de medidas ou políticas (citarei apenas a mídia) (...) P. 11

(...) resta um campo em que os governantes dispõem de toda a latitude: o campo do simbólico. P. 12

Sem falar dos lucros simbólicos. A televisão contribui sem dúvida, tanto quanto as propinas, para a degradação da virtude civil. P. 12

(...) Em suma, a grande corrupção, cujo desvelamento provoca escândalo porque revela a defasagem entre as virtudes professadas e as práticas reais, é apenas o limite de todas as pequenas “fraquezas” comuns, ostentação de luxo, aceitação açodada dos privilégios materiais ou simbólicos. P. 13

(...) (Egito Antigo) entre os dominados, a religiosidade pessoal (...) P. 13

(...) Do mesmo modo, tem-se a impressão, hoje, de que o cidadão (...) repele o Estado, tratando-o como uma potência estrangeira que ele utiliza do melhor modo para os seus interesses. P.13

(...) Campo simbólico (...) não se refere apenas às condutas dadas como exemplo. Trata-se também das palavras, dos ideais mobilizadores (...) Falou-se muito do silêncio dos intelectuais. O que me impressiona é o silêncio dos políticos. Eles carecem tremendamente de ideais mobilizadores. P. 13

(...) era melhor falar de gestão do que de autogestão e que era preciso, de qualquer forma, assumir a aparência (isto é, a linguagem) da racionalidade econômica. P. 14

Emparedados pelo economismo estreito e de curto alcance da visão-de-mundo-FMI, que também faz (e fará) tantos estragos nas relações Norte-Sul (...) Mais uma vez, a mão direita, obcecada com a questão do equilíbrio financeiro, ignora o que faz a mão esquerda, confrontada com as consequências sociais frequentemente muito dispendiosas das “economias orçamentárias”. P. 14

INTELECTUAIS – A opinião de todo mundo é a opinião de quem? Das pessoas que escrevem nos jornais, dos intelectuais que pregam “menos Estado” e que enterram depressa demais o público e o interesse do público pelo público... PARA ELABORAR A PERGUNTA DA MINHA TESE (...) põe imediatamente fora de discussão teses que deveriam ser discutidas a valer. Seria preciso analisar o trabalho coletivo dos “novos intelectuais”, que criou um clima favorável ao retraimento do Estado e, mais amplamente, à submissão aos valores da economia. Cf. P. Bourdieu et. AL, L’économie de La Maison” P. 15

(...) O retorno ao indivíduo é também o que permite “acusar a vítima”, única responsável por sua infelicidade, e lhe pregar a “auto-ajuda”, tudo isso sob o pretexto da necessidade incansável reiterada de diminuir os encargos da empresa. P. 15

(...) revolução simbólica (crise de 68) que abalou todos os detentores de capital intelectual (...) P. 15

(...) O mundo intelectual é hoje o terreno de uma luta visando produzir e impor “novos intelectuais”, portanto, uma nova definição do intelectual e do seu papel político, uma nova definição da filosofia e do filósofo, doravante empenhado nos vagos debates de uma filosofia política sem tecnicidade, de uma ciência social reduzida a uma politologia de sarau eleitoral e a um comentário descuidado de pesquisas comerciais sem métodos. P. 15

(O sociólogo) (...) questiona as evidências e sobretudo as que se apresentam sob a forma de questões, tanto as suas quanto as dos outros. P 17

ARISTÓTELES: (...) noções e teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não se argumenta. P17

O que defendo acima de tudo é a possibilidade e a necessidade do intelectual crítico, e principalmente crítico da doxa intelectual que os doxósofos difundem. (...) O intelectual é um contra-poder, e de primeira grandeza. É por isso que considero o trabalho de demolição do intelectual crítico, morto ou vivo – Marx, Nietzche, Sartre, Foucault, e alguns outros classificados em bloco sob o rótulo de “pensamento 68” -, tão perigoso quanto a demolição da coisa pública e inscrevendo-se no mesmo empreendimento global de restauração. P. 17-18

Eu preferiria, evidentemente, que os intelectuais tivessem estado, (...) à altura da imensa responsabilidade histórica que lhes cabe e que sempre tivessem empregado em suas ações não apenas a sua autoridade moral, mas também a competência individual (...) p. 18

Se não tenho nenhuma indulgência para com os intelectuais “irresponsáveis”, gosto ainda menos desses responsáveis “intelectuais”, polígrafos polimorfos, que expelem sua produção anual entre dois conselhos de administração, três coquetéis para a imprensa e algumas participações na televisão. P.18

PROPOSTAS – Desejo que os escritores, os artistas, os filósofos e os cientistas possam se fazer ouvir diretamente em todos os domínios da vida pública em que são competentes. Creio que todo mundo teria muito a ganhar se a lógica da vida intelectual, da argumentação e da refutação, se estendesse à vida pública. Hoje, é lógica da política, da denúncia e da difamação, da “sloganização” e da falsificação do pensamento do adversário que se estende muitas vezes à vida intelectual. P18

(...) No momento em que as grandes utopias do século XIX revelaram toda a sua perversão, é urgente criar as condições para um trabalho coletivo de reconstrução de um

universo de idéias realistas, capazes de mobilizar as vontades, sem mistificar as consciências. P19

Sollers tel quel

(...) essas máscaras são montadas para enganar os verdadeiros destinatários do seu discurso (...) p21

(...) a crítica da sociedade do espetáculo e o vedetismo da mídia (...) p22

(...) foi tragado por todas as ilusões e desilusões políticas e literárias do tempo. (...) p23

O destino dos estrangeiros como schibboleth

DEMAGOGIA ELEITORAL P. 27

FRANÇA – (...) julgar a capacidade que os candidatos têm de tomar partido, em todas as suas escolhas, entre a França mesquinha, regressiva, medrosa, protecionista, conservadora, xenófoba, e a França aberta, progressista, internacionalista, universalista. (...) p 28.

Os abusos de poder que se armam ou se baseiam na razão

(...) O racionalismo científico, o dos modelos matemáticos que inspiram a política do FMI ou do Banco Mundial, o das Law firms, grandes multinacionais jurídicas que impõem as tradições do direito americano ao planeta inteiro (...) p. 30

(...) A coerção econômica se disfarça muitas vezes de razões jurídicas. O imperialismo se vale da legitimidade das instâncias internacionais. (...) Também faz parte da defesa da razão os seus abusos de poder, ou se servem das armas da razão para fundamentar ou justificar um império arbitrário. P31

Com a palavra, o ferroviário

Essa declaração singular era a prova de que se pode resistir à violência que se exerce cotidianamente, com toda a tranqüilidade, na televisão, no rádio ou nos jornais, através dos automatismos verbais, das imagens banalizadas, das falas batidas, e à insensibilização que a violência produz, elevando pouco a pouco, em toda uma população, o limiar de tolerância ao insulto e ao desprezo racistas, minando as defesas críticas contra o pensamento pré-lógico e a confusão verbal (entre islã e islamismo, entre muçulmano e islamista, ou entre islamista e terrorista, por exemplo), reforçando sub-repticiamente todos os hábitos de pensamento e de comportamento herdados de mais de um século de colonização e lutas coloniais. P34

(...) combater resolutamente todos aqueles que, no desejo de simplificar todas as coisas, mutilam uma realidade histórica ambígua para reduzi-la às dicotomias tranqüilizadoras do pensamento maniqueísta que a televisão, inclinada a confundir um diálogo racional com uma luta livre, instituiu como modelo. É infinitamente mais fácil tomar posição a

favor ou contra uma idéia, um valor, uma pessoa uma instituição ou uma situação, do que analisar em que consistem na verdade, em toda a sua complexidade. P35

As realidades históricas são sempre enigmáticas e, sob sua aparente evidência, difíceis de decifrar; e certamente não existe nenhuma que apresente essas características em tão alto grau quanto a realidade argelina. É por isso que ela representa, para o conhecimento e para a ação, um extraordinário desafio: prova definitiva para todas as análises, ela é também, e principalmente, uma pedra de toque para todos os engajamentos. P35

(...) a análise rigorosa das situações e das instituições é sem dúvida o melhor antídoto contra as visões parciais e contra todos os maniqueísmos – (...) p35

Contra a destruição de uma civilização

Estou aqui para oferecer nosso apoio a todos que lutam, há três semanas, contra a destruição de uma civilização, associada à existência do serviço público, a da igualdade republicana dos direitos, direito à educação, à saúde, à cultura, à pesquisa, à arte, e, acima de tudo ao trabalho. P37

Essa oposição entre a visão a longo prazo da “elite” esclarecida e as pulsões a curto prazo do povo ou de seus representantes é típica do pensamento reacionário de todos os tempos e de todos os países; mas ela assume hoje uma forma nova, com a nobreza do Estado, que respalda a convicção da sua legitimidade no título escolar e na autoridade da ciência, sobretudo da ciência econômica: para esses novos governantes de direito divino, não só a razão e a modernidade, mas também o movimento e a mudança estão do lado dos governantes, ministros, patrões ou “especialistas”; a desrazão e o arcaísmo, a inércia e o conservadorismo do lado do povo, dos sindicatos, dos intelectuais críticos. P37-38

NEOLIBERALISMO – Essa nobreza de Estado, que prega a extinção do Estado e o reinado absoluto do mercado e do consumidor, substituto comercial do cidadão, assaltou o Estado: fez do bem público um bem privado, da coisa pública, da República, uma coisa sua. O que está em jogo hoje é a reconquista da democracia contra a tecnocracia: é preciso acabar com a tirania dos “especialistas”, estilo Banco Mundial ou FMI, que impõem sem discussão os vereditos do novo Leviatã, “os mercados financeiros”, e que não querem negociar, mas “explicar”; é preciso romper com a nova fé na inevitabilidade histórica que professam os teóricos do liberalismo; é preciso inventar as novas formas de um trabalho político coletivo capaz de levar em conta necessidades, principalmente econômicas (isso pode ser tarefa dos especialistas), mas para combatê-las e, se for o caso, neutralizá-las. P 38-39

(...) problemas absolutamente fundamentais, importantes demais para serem relegados a tecnocratas tão presunçosos quanto limitados (...) p39

Como lutar contra a precarização que atinge todo o pessoal dos serviços públicos e que acarreta formas de dependência e de submissão, particularmente funestas nas empresas

de difusão cultural, rádio, televisão ou jornalismo, pelo efeito de censura que exercem, ou mesmo no ensino? P40

No trabalho de reinvenção dos serviços públicos, os intelectuais, escritores, artistas, eruditos etc. têm um papel determinante a desempenhar. Primeiro, podem contribuir para quebrar o monopólio da ortodoxia tecnocrática sobre os meios de comunicação. Mas também podem lutar de maneira organizada e permanente, e não só nos encontros ocasionais de uma conjuntura de crise, ao lado daqueles que podem orientar eficazmente o futuro da sociedade, associações e sindicatos principalmente, e trabalhar para elaborar análises rigorosas e propostas inventivas sobre as grandes questões que a ortodoxia midiático-política proíbe apresentar: (...) p40

O que eu quis expressar, de qualquer forma, talvez sem muita habilidade – e pelo perdão aos que possa ter chocado ou entediado –, é uma solidariedade real para com os que hoje lutam para mudar a sociedade: penso efetivamente que só se pode combater eficazmente a tecnocracia, nacional e internacional, enfrentando-a em seu terreno privilegiado, o da ciência, principalmente da ciência econômica, e opondo ao conhecimento abstrato e mutilado de que ela se vale um conhecimento que respeite mais os homens e as realidades com as quais eles veem confrontados. P41

O mito da “mundialização” e o Estado social europeu

Ouve-se dizer por toda a parte, o dia inteiro – aí reside a força desse discurso dominante - que não há nada a opor à visão neoliberal, que ela consegue se apresentar como evidente, como desprovida de qualquer alternativa. Se ela comporta esse espécie de banalidade, é porque há todo um trabalho de doutrinação simbólica do qual participam (...) um certo número de intelectuais. (...) parece-me que os pesquisadores têm um papel a desempenhar. (...) eles podem analisar a produção e a circulação desse discurso (...) essa visão de mundo é produzida, difundida e inculcada. P42

(...) um trabalho constante foi feito, associando intelectuais, jornalistas, homens de negócios, para impor como óbvia uma visão neoliberal que, no essencial, reveste com racionalizações econômicas os pressupostos mais clássicos do pensamento conservador de todos os tempos e de todos os países. (...) A mesma coisa ocorreu na Inglaterra, e o thatcherismo não nasceu com a sra. Thatcher. Ele foi longamente preparado por grupos de intelectuais que dispunham, em sua maioria, de espaço nos grandes jornais. Uma primeira contribuição possível dos pesquisadores poderia ser trabalhar na difusão dessas análises, sob formas acessíveis a todos. P43

Esse trabalho de imposição, começado há muito tempo, continua hoje. P43

GOTA-A-GOTA SIMBÓLICO. P43

(...) É assim que, no fim das contas, o neoliberalismo se apresenta sob aparências da inevitabilidade. P44

É todo um conjunto de pressupostos que são impostos como óbvios: (...) a produtividade e a competitividade, é o fim último e único das ações humanas; ou que não se pode resistir às forças econômicas. (...) Outro pressuposto importante é o léxico comum que nos invade, que absorvemos logo que abrimos um jornal, logo que escutamos o rádio, e que é composto, no essencial, de eufemismos. p44

(...) “cortar gorduras”, utilizando uma analogia esportiva (um corpo vigoroso deve ser esbelto). p44

(...) Há também todo um jogo com as conotações e as associações de palavras como flexibilidades, maleabilidade, desregulamentação, que tendem a fazer crer que a mensagem neoliberal é uma mensagem universalista de libertação. p44

ATENÇÃO – Nos Estados Unidos, assiste um desdobramento do Estado: (...) um Estado que mantém as garantias sociais, mas para os privilegiados, suficientemente cacificados para que possam dar segurança, garantias; de outro, um Estado repressor, policialesco, para o povo.(...) P45

(...) um Estado (...) reduz cada vez mais à sua função policial. P46

Nos Estados Unidos (...) é um processo de involução (...) p46

GLOBALIZAÇÃO – MITO: Falei da “globalização”: é um mito no sentido forte do termo, um discurso moderno, uma “idéia-força”, uma idéia que tem força social, que realiza a crença. É a arma principal das lutas contra as conquistas do welfare state; os trabalhadores europeus, dizem, devem rivalizar com os trabalhadores menos favorecidos do resto do mundo. PRECARIZAÇÃO - Para que isso aconteça, propõe-se como modelo, para os trabalhadores europeus, países em que o salário mínimo não existe, onde operários trabalham 12 horas por dia por um salário entre ¼ e 1/15 do salário europeu, onde não há sindicatos, onde crianças são postas para trabalhar etc. E é em nome desse modelo que se impõe flexibilidade (...) p49

(...) De modo geral, o neoliberalismo faz voltar, sob as aparências de uma mensagem muito chique e muito moderna, as idéias mais arcaicas do patronato mais arcaico. (...) p49

(...) tenta assim tachar de arcaísmo o pensamento e a ação progressistas. Ela constitui como normas de todas as práticas, logo como regras ideais, as regularidades reais do mundo econômico entregue à sua lógica, a alegada lei do mercado, isto é, a lei do mais forte. Ela ratifica e glorifica o reino daquilo que se chama mercados financeiros (...) cuja lei é a do lucro máximo, capitalismo sem freio e sem disfarce, mas racionalizado (...) p50

(...) revolução conservadora pode enganar (...) p50

(combater) uma volta ao capitalismo selvagem (...) é preciso revoltar aos fatos. (...) p50

Há também todos os efeitos (...) da política neoliberal. P51

Observa-se exatamente a mesma coisa nos Estados Unidos, onde se assiste à multiplicação dos empregos precários e sub-remunerados (que fazem baixar artificialmente as taxas de desemprego) (...) p51

(...) a proporção dos trabalhadores temporários cresce em relação à população dos trabalhadores permanentes. A precarização e a flexibilização acarretam a perda das insignificantes vantagens (muitas vezes descritas como privilégios de “marajás”) (...) A privatização, por sua vez, acarreta a perda das conquistas coletivas. p 51-52

A isso se acrescenta, hoje, a destruição das bases econômicas e sociais das conquistas culturais mais preciosas da humanidade. A autonomia dos universos de produção cultural em relação ao mercado, que não havia cessado de crescer graças às lutas e aos sacrifícios dos escritores, artistas e intelectuais, está cada vez mais ameaçada. (...) p52

(...) sem falar das ciências sociais, condenadas a submeter-se às encomendas diretamente interessadas das burocracias de empresas ou de Estado, ou a morrer pela censura dos poderes (representados pelos oportunistas) ou do dinheiro. P53

Se a globalização é antes de tudo um mito justificador; há um caso em que ela é bem real; é o dos mercados financeiros. (...) O mercado financeiro é um campo no qual os dominantes, os Estados Unidos nesse caso particular, ocupam uma posição tal que podem definir em grande parte as regras do jogo. (...) p53

RESUMO DO CAPITULO – Em suma, a globalização não é uma homogeneização... p54

(...) A política de um Estado particular é largamente determinada pela sua posição na estrutura da distribuição do capital financeiro (que define a estrutura do campo econômico mundial). P54-55

Diante desses mecanismos, o que se pode fazer? Seria necessário refletir primeiro sobre os limites implícitos que a teoria econômica aceita. A teoria econômica não leva em conta, na avaliação dos custos de uma política, o que se chama de custos sociais. (...) p55

(...) Os crimes são impunes porque são esquecidos. Seria necessário que todas as forças sociais críticas insistissem na incorporação aos cálculos econômicos dos custos sociais das decisões econômicas. (...) coisas que custam caro em dinheiro, mas também em sofrimento? (...) é necessário questionar de forma radical a visão econômica que individualiza tudo, tanto a produção como a justiça ou a saúde, os custos como os lucros, esquecendo que a eficiência – da qual ela dá uma definição estreita e abstrata, identificando-a tacitamente coma rentabilidade financeira para os acionistas e investidores como hoje, ou satisfação dos clientes e usuários, ou, mais amplamente, satisfação e concordância dos produtores, dos consumidores, e, assim, sucessivamente, da maioria. (...) a violência estrutural exercida pelos mercados financeiros, sob forma de desemprego, de precarização etc., tem sua contrapartida em maior ou menos prazo, sob

forma de suicídios, de delinquência, de crimes, de drogas, de alcoolismo, de pequenas ou grandes violências cotidianas. P56

No Estado atual, as lutas críticas dos intelectuais, dos sindicatos e das associações devem se fazer prioritariamente contra o enfraquecimento do Estado. (...) p56

Historicamente, o Estado foi uma força de racionalização, mas que foi posta a serviço das forças dominantes. (...) É preciso, portanto, tentar criar as bases organizacionais de um verdadeiro internacionalismo crítico, capaz de se opor verdadeiramente ao neoliberalismo. p57-58

SUPOSTO BÁSICO (...) Por que os intelectuais são ambíguos em tudo isso? P58

(...) a força da ideologia neoliberal se apoia a uma espécie de neodarwinismo social: (...) Por trás da visão mundialista da internacional dos dominantes, há uma filosofia da competência, segundo a qual são os mais competentes que governam, e que têm trabalho, o que implica que aqueles que não têm trabalho não são competentes. p58

(...) fazendo com que as desigualdades de inteligência sejam desigualdades sociais. p59

SÍNTESE – (...) A ideologia da competência convém muito bem para justificar uma oposição que se assemelha um pouco à dos senhores e dos escravos: de um lado, os cidadãos de primeira classe, que possuem capacidades e atividades muito raras e regiamente pagas, que podem escolher o seu empregador (enquanto os outros são escolhidos por seu empregador, no melhor dos casos), que estão em condições de obter altos salários no mercado de trabalho internacional, que são super-ocupados, homens e mulheres (li um belo estudo inglês sobre esses casais de executivos loucos que corre o mundo, pulam de um avião para outro, têm salários alucinantes que nem conseguem sonhar em gastar durante quatro vidas etc.), e depois, do outro lado, uma massa de pessoais destinadas aos precários ou ao desemprego. P 59

Max Weber dizia que os dominantes têm sempre (...) uma justificação teórica para o fato de serem privilegiados. (...) 59

(...) Por que se passou do intelectual engajado ao intelectual “descolado”? Em parte porque os intelectuais são detentores de capital cultural e porque, mesmo que sejam dominados pelos dominantes, fazem parte dos dominantes. É um dos fundamentos de sua ambivalência, de seu tímido engajamento nas lutas. Eles participam confusamente dessa ideologia da competência. Quando se revoltam, é ainda, como em 33 na Alemanha, porque julgam que não recebem tudo o que lês é devido, dada a sua competência, garantida por seus diplomas. P60

O pensamento Tietmeyer

(...) A ruptura dos laços de integração social que se pede à cultura para reatar é a consequência direta de uma política, de uma política econômica. P62

Que absurdo! – Eis que diz o “sumo-sacerdote do marco alemão”: “A questão, hoje, é criar as condições favoráveis para um crescimento duradouro e a confiança dos investidores. É preciso controlar os orçamentos públicos”. P63

(...) Logo, é esse sistema que é preciso reformar urgentemente, porque os ganhos econômicos dos investidores não poderiam esperar. (...) “É preciso portanto controlar os orçamentos públicos, baixar o nível das taxas e impostos até chegarem a um nível suportável a longo prazo, reformar o sistema de proteção social, desmatelar a rigidez do mercado de trabalho, de modo que uma fase de crescimento só será atingida outra vez se nós fizermos um esforço” – o “nós fizermos” é magnífico – “se nós fizermos um esforço de flexibilização do mercado de trabalho”. (...) p64

(...) trabalho noturno, o trabalho nos fins-de-semana, as horários irregulares, pressão aumentada, estresse etc. (...) p66

(...) “A questão, hoje, é criar condições favoráveis a um crescimento duradouro e à confiança dos investidores; é preciso portanto...” – observem o “portanto” – “... controlar os orçamentos públicos, baixar o nível das taxas e impostos até chegarem a um nível suportável a longo prazo, reformar os sistemas de proteção social, desmantelar a rigidez dos mercados de trabalho, de modo que uma nova fase de crescimento só será atingida outra vez se nós fizermos um esforço de flexibilização dos mercados de trabalho”. (...) p67

Esse discurso de aparência econômica só pode circular além do círculo de seus promotores com a colaboração de uma multidão de pessoas, políticos, jornalistas, simples cidadãos que têm um verniz de economia suficiente para poder participar da circulação generalizada dos termos canhestros de uma vulgata econômica. (...) se impondo uma visão dita neoliberal, na verdade conservadora, repousando sobre uma fé de outra era na inevitabilidade histórica fundada na primazia das forças produtivas, sem outra regulação a não ser as vontades concorrentes dos produtores individuais. P68

Atenção – (...) a palavra “reforma”, por exemplo – visando apresentar uma restauração como uma revolução, segundo uma lógica que é a de todas as revoluções conservadoras. P69

(...) palavra-chave do discurso (...) a confiança dos mercados. P 69

(...) fracasso de toda política que não tenha outro fim senão a salvaguarda da “ordem e da estabilidade econômicas”, esse novo Absoluto do qual o Sr. Tietmeyer se fez o piedoso servidor, fracasso a que leva a cegueira política de alguns e pelo qual todos nós pagamos. P 70

Os pesquisadores, a ciência econômica e o movimento social

(...) um verdadeiro projeto de sociedade, coletivamente afirmado e capaz de se opor ao que era imposto pela política dominante, pelos revolucionários conservadores que estão

atualmente no poder, nas instâncias políticas e nas instâncias de produção de discursos. P71

(...) dimensão propriamente cultural e ideológica dessa revolução conservadora. (...) P71-72

(...) Há razões históricas. (...) O movimento francês pode ser considerado a vanguarda de uma luta mundial contra o neoliberalismo e contra a nova revolução conservadora, na qual a dimensão simbólica é extremamente importante. Ora, penso que uma das fraquezas de todos os movimentos progressistas está no fato de que eles subestimaram a importância dessa dimensão e nem sempre forjaram armas adaptadas para combatê-la. Os movimentos sociais estão com um atraso de várias revoluções simbólicas em relação a seus adversários, que utilizam assessores de comunicação, assessores de televisão etc. 72-73

Atenção - A revolução conservadora revindica o neoliberalismo, assumindo assim uma roupagem científica, e a capacidade de agir como teoria. Um dos erros teóricos e práticos de muitas teorias – a começar pela marxista – foi esquecer de considerar a eficácia da teoria. Não devemos mais cometer esse erro. Lidamos com adversários que se armam com teorias, e trata-se, ao que me parece, de enfrentá-los com armas intelectuais e culturais. Para conduzir essa luta, em virtude da divisão do trabalho, alguns estão mais bem armados que outros, pois esse é o seu ofício (...) p73

(...) A força da autoridade científica (...) das consciências dos trabalhadores, é muito grande. – (...) o consenso é, em geral um indício de verdade. P73

(...) O papel daquilo que se chama ideologia dominante é talvez desempenhado hoje por um certo uso da matemática (é claro que é um exagero, mas é um modo de chamar a atenção para o fato de que o trabalho de racionalização – o fato de dar razões para justificar coisas muitas vezes injustificáveis – encontrou hoje um instrumento muito poderoso na economia matemática) Diante dessa ideologia, que reveste de razão pura um pensamento simplesmente conservador, é importante contrapor razões, argumentos, refutações demonstrações, e isso implica fazer um trabalho científico. P 74

(...) vocabulário técnico. Essa cadeia muito poderosa exerce um efeito de autoridade. (...) p74

(...) Nós sociólogos, sem fazer denúncias, podemos empreender o desmonte dessas redes e mostrar como a circulação das ideias é lastreada por uma circulação de poder. Há pessoas que trocam serviços ideológicos por posições de poder. (...) ligações ocultas entre as pessoas (...) p75

Essas pessoas elaboram coletivamente, sob a forma de consenso, um discurso fatalista que consiste em transformar tendências econômicas e destino. (...) p75

PROPOSTAS - (...) perguntamos imediatamente aos intelectuais que se associam ao movimento social: “ Mas o que vocês propõem?” (...) O que podemos fazer é criar não

um contra-programa, mas um dispositivo de pesquisa coletivo, interdisciplinar e internacional, associando pesquisadores, militantes, representantes de militantes etc., tendo os pesquisadores um papel bem definido; eles podem participar de maneira particularmente eficaz, pois é sua profissão, de grupos de trabalho e de reflexão, em associação com pessoas que estão no movimento. P76

(...) poderes de aparência intelectual (...) p76

É preciso inventar novas formas de comunicação entre os pesquisadores e os militantes, ou seja, uma nova divisão do trabalho entre eles. (...) “aldeia planetária”, de mundialização etc. São palavras que parecem inocentes, mas através das quais passa toda uma filosofia, toda uma visão do mundo, que gera fatalismo e a submissão (...) municiarem de armas de resistência específicas, para combater os efeitos de autoridade, o domínio da televisão, que desempenha um papel absolutamente capital. (...) Nessa luta, o combate contra os intelectuais da mídia é importante. (...) é desejável que uma fração dos pesquisadores aceite abrir mão de uma parte de seu tempo e de sua energia, à maneira militante, para contra atacá-las. p77-78

Outro objetivo, inventar novas formas de ação simbólica (...) p78

(...) Aquilo que nós pesquisadores poderíamos sonhar é que uma parte de nossas pesquisas pudesse ser útil ao movimento social, ao invés de perder-se, como acontece frequentemente hoje (...) p78-79

(...) luta contra o imperialismo neoliberal (...) É preciso reinventar o internacionalismo, que foi captado e desviado pelo imperialismo soviético. Isto é, inventar formas de situar ao nível em que deve se dar o combate. (...) p79

Por um novo internacionalismo

Os povos da Europa vivem hoje uma virada de sua história, porque as conquistas de vários séculos de lutas sociais, combates intelectuais e políticos pela dignidade dos trabalhadores estão diretamente ameaçadas. (...) são revoltas contra uma política que assume formas diferentes segundos os domínios e segundo os países e que, todavia, se inspira sempre pela mesma intenção, isto é, destruir as conquistas sociais (...) p81.

(...) Condenaríamos como conservadora a defesa das conquistas culturais da humanidade, Kant ou Hegel, Mozart ou Beethoven? As conquistas sociais de que falo, direito do trabalho, previdência social, pelas quais homens e mulheres sofreram e combateram, são conquistas igualmente importantes e preciosas e que, além disso, não sobrevivem apenas nos museus, bibliotecas e academias, mas estão vivas e atuantes na vida das pessoas, comandando a sua existência de todos os dias. (...) P82

(...) Em outros termos, defende-se que a integração política da Europa decorrerá necessariamente, inevitavelmente, da integração econômica. (...) P82

(...) segundo a filosofia neoliberal que pretende apagar todos os vestígios do Estado (social) como obstáculos ao funcionamento harmonioso dos mercados. P 84

A coordenação europeia das lutas está muito atrasada. As organizações sindicais deixaram passar ocasiões importantes, como a greve alemã pelas 35 horas, que não repetida em nível europeu, ou as grandes mobilizações levadas a cabo, na França e em vários países europeus, no fim de 95 e no começo de 96, contra a política de austeridade e de desmantelamento dos serviços públicos. Os intelectuais – sobretudo na Alemanha – ficaram silenciosos, ou então agiram como intermediários do discurso dominante. P 87

Como criar as bases de um novo internacionalismo, no nível sindical, intelectual e popular?

PROPOSTAS – contribuição específica dos intelectuais, na medida em que a desmobilização resulta em parte da desmoralização determinada pela ação permanente de “propaganda” dos ensaístas e dos jornalistas, propaganda que não se reconhece nem é percebida como tal. As bases sociais para o sucesso de tal mobilização existem: citarei apenas os efeitos das transformações das relações no sistema escolar, com, em especial, a elevação do nível de instrução, a desvalorização dos títulos escolares e a consequente desclassificação estrutural, e também o enfraquecimento da distância entre os estudantes e os trabalhadores braçais (subsiste a distância entre os velhos e os moços, entre os titulares e os precarizados ou proletariados, mas foram se criando laços reais, por exemplo, através do filhos de operários educados atingidos pela crise). (...) P 88

(...) a massa global das remunerações do capital tendo aumentado em 60%, enquanto a remuneração do trabalho assalariado ficava estável. Essa ação de mobilização internacional supõe que se dê um lugar importante ao combate pelas idéias (rompendo com a tradição “obreirista” persistente nos movimentos sociais, sobretudo na França, e que impede que se dê o justo lugar às lutas intelectuais nas lutas sociais), e particularmente à critica das representações que produzem e propagam continuamente as instâncias dominantes e seus pensadores de plantão, falsas estatísticas, mitologias referentes ao pleno emprego na Inglaterra ou nos Estados Unidos, etc. P88

Segunda forma de intervenção em favor de um internacionalismo capaz de promover um Estado social transnacional, a ação sobre e através dos Estados nacionais que, na conjuntura atual, e na falta de visão global do futuro, são incapazes de administrar o interesse geral comunitário. É preciso atuar sobre os Estados nacionais, por um lado para defender e reforçar as conquistas históricas associadas ao Estado nacional (e muitas vezes tanto mais importantes e tanto mais enraizadas nos “habitus” quanto mais forte é o Estado, como na França) (...) p89

MAIS PROPOSTAS, DENTRE OUTRAS – (...) a definição de salários mínimos (diferenciados por zonas, para levar em conta as disparidades regionais); a elaboração de medidas contra a corrupção e a fraude fiscal, (...) a diminuição dos encargos que incidem sobre o trabalho, o desenvolvimento de direitos sociais, como a formação, a

elaboração de um direito ao emprego, à habitação e a invenção de uma política externa em matéria social, visando difundir e generalizar as normas sociais europeias (...) P90

O que se pode parecer um simples catálogo de medidas disparatadas se inspira, de fato, na vontade de romper com o fatalismo do pensamento neoliberal, de “desfatalizar” politizando, substituindo a economia naturalizada do neoliberalismo por uma economia da felicidade que, fundada nas iniciativas e na vontade humanas, abre lugar em seus cálculos aos custos em sofrimento e aos lucros em realização pessoal, que o culto estritamente economicista da produtividade e da rentabilidade ignora. P91

(...) contra todos os profetas da infelicidade que querem convencê-los de que o seu destino está nas mãos de potências transcedentes, independentes e indiferentes, como os “mercados financeiros” ou os mecanismos da “mundialização”, quero afirmar, com a esperança de convencê-los, que o futuro, o seu futuro, que também é o nosso, o de todos os europeus, depende muito dos senhores, como alemães e como sindicalistas. P92.

A televisão, o jornalismo e a política

Nega os mecanismos invisíveis (...) p94

LUGAR DA POLÍTICA NA TV - Em um universo dominado pelo temor de ser entediante e pela preocupação (quase pânico) de divertir a qualquer preço, a política está condenada a aparecer como um assunto ingrato, que se exclui tanto quanto possível dos horários de grande audiência, um espetáculo pouco excitante, ou mesmo deprimente, e difícil de tratar, que é preciso tornar interessante a qualquer preço. Daí a tendência que se observa por toda parte, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, a sacrificar cada vez mais o editorialista e o repórter-investigador em favor do animador-comendiante, a informação, análise, entrevista aprofundada, discussão de conhecedores ou reportagem em favor do puro divertimento e, em particular, das tagarelices insignificantes do talk shows (...) P95

(...) eles (os jornalistas) tendem, com efeito, a levar tudo para um terreno em que são peritos, interessando-se mais pelo jogo e pelos jogadores do que por aquilo que está em jogo, mais pelas questões de pura tática política do que pelas substâncias dos debates (...) P97

Todos esses mecanismos concorrem para produzir um efeito global de despolitização ou, mais exatamente, de desencanto com a política. Sem que haja necessidade de que tal ocorra explicitamente, a busca do divertimento acaba por desviar a atenção para um espetáculo (ou um escândalo) (...) um processo sensacionalista), que reduzimos ao absurdo reduzindo-os ao que se dá a ver no instante, no atual, e separando-os de todos os seus antecedentes ou de suas consequências. P 100

(...) por todos os processos que, à maneira da deriva dos continentes, permanecem desapercebidos e imperceptíveis no instante, e apenas revelam plenamente seus efeitos com o tempo, vem redobrar os efeitos da amnésia estrutural favorecida pela lógica do pensamento no dia-a-dia (...) p100

Essa visão des-historicizada e des-historicizante, atomizada e atomizante, encontra sua realização paradigmática na imagem que dão do mundo as atualidades televisivas, sucessão de histórias aparentemente absurdas que acabam todas por assemelhar-se, desfiles ininterruptos de povos miseráveis, sequencias de acontecimentos que, surgidos, sem explicação, desaparecerão sem solução (...) p101

A concorrência leva a televisão a produzir (...) uma sucessão absurda de desastres sobre os quais não se compreeende nada e nada pode se fazer. Insinua-se assim, pouco a pouco, uma filosofia pessimista da histórica que encoraja a desistência e a resignação em lugar de estimular a revolta e a indignação. Ao invés de mobilizar e de politizar, uma tal filosofia acaba contribuindo para avivar os temores xenófobos, assim como a ilusão de que o crime e a violência não param de crescer (...) P102

(...) o jogo político é um assunto de profissionais, para encorajar, sobretudo entre os menos politizados, um desengajamento fatalista evidentemente favorável à manutenção da ordem estabelecida. P 103

(...) cinismo manipulador dos produtores de televisão (...) p103

A precaridade está por toda parte

(...) de que servem todas essas discussões intelectuais (realizadas nas reuniões eruditas)? Paradoxalmente, são os pesquisadores que se preocupam mais com essa questão, ou aqueles a quem essa questão mais preocupa (...) (pouco representativos de uma profissão (economistas) na qual são muito raros os que se preocupam com a realidade social ou mesmo com a realidade propriamente dita), e que se fazem diretamente essa pergunta (e sem dúvida é muito bom que seja assim). Ao mesmo tempo brutal e ingênua, ela lembra aos pesquisadores suas responsabilidades, que podem ser muito grandes, ao menos quando, por seu silêncio ou cumplicidade ativa, eles contribuem para a manutenção da ordem simbólica que é a condição do funcionamento da ordem econômica. P 119-120.

O intelectual negativo

Ação dos intelectuais com os refugiados argelinos – (...) levar o socorro e a proteção possíveis, mas também para tentar informar, compreender e fazer compreender uma realidade complexa, e que lutaram incansavelmente por meio de intervenções públicas, entrevistas coletivas, artigos nos jornais, para desvincular a crise argelina das análises unilaterais, todos esses intelectuais de todos os países que se uniram para combater a indiferença ou a xenofobia, para lembrar o respeito pela complexidade do mundo desfazendo as confusões deliberadamente mantidas por alguns, descobriram subitamente que todos os seus esforços podiam ser destruídos, aniquilados em dois tempos e com três movimentos. P 132-133

INTELECTUAL NEGATIVO – (...) O intelectual negativo cumpriu sua missão: quem dirá que é solidário dos estripadores, dos estupradores e dos assassinos – principalmente quando se trata de gente que é chamada, sem outra consideração histórica, de “loucos do

islã”, envolvidos sob o rótulo infame de islamismo, resumo de todos os fanatismos orientais, feito para dar desprezo racista o álibi indiscutível da legitimidade ética e leiga? P133

Para situar o problema em termos tão caricaturais, não é preciso ser um grande intelectual. Mas é o que faz o responsável por essa operação de baixa polícia simbólica – antítese absoluta de tudo o que define o intelectual, a liberdade em relação aos poderes, a crítica das idéias prontas, a demolição das alternativas simplistas (...) p 133

O neoliberalismo, utopia (em vias de realização) de uma exploração sem limites

(...) através do seu braço armado, o FMI ou a OCDE, e das políticas drásticas que eles impõem, redução do custo da mão-de-obra, corte das despesas públicas e flexibilização do trabalho? E se fosse apenas, na realidade, a prática de uma utopia, o neoliberalismo, assim convertida em programa político, mas uma utopia que, com a ajuda da teoria econômica a que se filia, consegue se pensar como a descrição científica do real? P135

(...) (e em particular da disposição calculadora aplicada às coisas econômicas, que está na base da visão neoliberal) e das estruturas econômicas e sociais (...) omissão, no sistema de ensino, que nunca é levado em conta enquanto tal, numa época em que ele tem um papel determinante tanto na produção dos bens e dos serviços quanto na produção dos produtores. (...) a obstinação fatal com a qual ela se apega à oposição arbitrária que faz existir apenas com a sua própria existência, entre a lógica propriamente econômica, fundada na concorrência e portadora de eficiência, e a lógica social, submetida à regra da equidade. P136

(...) o discurso neoliberal não é um discurso como os outros. (...) sobretudo orientando as escolhas econômicas daqueles que dominam as relações econômicas e acrescentando assim a sua força própria, propriamente simbólica, a essas relações de força. Em nome desse programa cientifico de conhecimento convertido em programa político de ação, cumpre-se um imenso trabalho político (renegado, pois aparentemente puramente negativo) que visa criar as condições de realização e de funcionamento da “teoria”; um programa de destruição metódica dos coletivos (a economia neoclássica querendo lidar apenas com indivíduos, mesmo quando se trata de empresas, sindicatos ou famílias). P137

O movimento, que se tornou possível pela política de desregulamentação financeira, em direção à utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito se realiza através da ação transformadora e, devemos dizer, destruidora de todas as medidas políticas (das quais a mais recente é o AMI, Acordo Multilateral sobre o Investimento, destinado a proteger contra os Estados nacionais as empresas estrangeiras e seus investimentos) colocando em risco todas as estruturas coletivas capazes de resistirem à lógica do mercado puro: nação, cujo espaço de manobra não pára de diminuir; grupos de trabalho, com, por exemplo, a individualização dos salários e das carreiras, em função das competências individuais e a resultante atomização dos trabalhadores; coletivos de defesa dos direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas; até a família que, através da

constituição de mercados por classes de idade, perde uma parte dos seu controle sobre o consumo. O programa neoliberal extrai sua força social da força político-econômica daqueles cujos interesses ele exprime – acionistas, operadores financeiros, industriais, políticos conservadores ou social-democratas convertidos às desistências apaziguadores do laisser-faire, altos funcionários das finanças, tanto mais obstinados em impor uma política pregando sua própria extinção porque, ao contrario dos executivos das empresas, eles não correm nenhum risco de pagar eventualmente por suas consequências. O programa neoliberal tende assim a favorecer globalmente a ruptura entre a economia e as realidades sociais, e a construir desse mundo, na realidade, um sistema econômico ajustado à descrição teórica, isto é, uma espécie de máquina lógica, que se apresenta como uma cadeia de constrangimentos enredando os agentes econômicos. P137-138

(...) mundialização dos mercados financeiros (...) As próprias empresas, defrontando-se com tal ameaça permanente, devem se ajustar, de modo cada vez mais rápido às exigências dos mercados (...) P138

(...) reino absoluto da flexibilidade; (...) prática de entrevistas individuais de avaliação; (...) P139

(...) mundo darwiniano (...) 139

CORPO – (...) exército de reserva de mão-de-obra docilizada pela precarização (...) Nem se trata a rigor de um exército, pois o desemprego isola, atomiza, individualiza, desmobiliza e rompe com a solidariedade. P 140

Essa violência estrutural também pesa sobre o que se chama contrato de trabalho (...) a parcelo de empregos temporários não para de crescer, (...) os dominados estão numa posição das criaturas num universo cartesiano; estão paralisados pela decisão arbitrária de um poder responsável pela “criação continuada” de sua existência – como prova e lembra a ameaça do fechamento da fábrica, do desinvestimento e do deslocamento. P 140-141

(...) A generalização da eletrônica, da informática e das exigências de qualidade, que obriga todos os assalariados a novas aprendizagens (...) Mais talvez do que as manipulações tecnocráticas das relações de trabalho e as estratégias especialmente armadas a fim de obter a submissão e a obediência, objeto de uma atenção incessante e de uma reinvenção permanente (...) crença na hierarquia das competências escolarmente garantidas que funda a ordem e a disciplina na empresa privada e também, cada vez mais, na função pública: obrigados a pensar-se em relação à elite detentora dos títulos escolares mais cobiçados, destinada às tarefas de comando, e à pequena classe dos empregados e dos técnicos restritos às tarefas de execução e sempre em situação de risco (...) outrora objeto de orgulho, enraizado em tradições e em toda uma herança técnica e política, o grupo operário, se é que existe ainda enquanto tal, está fadado à desmoralização, à desvalorização e à desilusão política, que se exprime na crise da

militância ou, pior ainda, na adesão desesperada às teses do extremismo fascitóide. P 141-142

(...) utopia neoliberal (...) efeitos destruidores do domínio que eles exercem (...) P142

(...) os altos funcionários e os políticos (...) que exigem a suspensão de barreiras administrativas ou políticas capazes de incomodar os detentores de capitais na busca puramente individual da maximização do lucro individual instituído como modelo de racionalidade, que querem bancos centrais independentes, que pregam a subordinação dos Estados nacionais às exigências da liberdade econômica para os donos da economia, com a supressão de todas as regulamentações sobre todos os mercados, a começar pelo mercado de trabalho, a proibição dos déficits e da inflação, a privatização generalizada dos serviços públicos, a redução das despesas públicas e sociais. P143

INTELECTUAIS LIBERAIS – (...) formação intelectual, em geral puramente livresca e teoricista, eles são, como outros em outros tempos no campo da filosofia, particularmente inclinados a confundir as coisas da lógica com a lógica das coisas. (...) eles participam e colaboram para uma formidável mudança econômica e social. P144

Efeitos imediatos da utopia neoliberal (...) o agravamento extraordinário das diferenças entre as rendas, o desaparecimento progressivo dos universos autônomos de produção cultural, cinema, dos próprios produtos culturais, (...) E a nova ordem moral, fundada na inversão de todas as tábuas de valores, se afirma no espetáculo, prazerosamente difundido pela mídia, de todos esses importantes representantes do Estado, que rebaixam a sua dignidade estatutária ao multiplicar as reverências diante dos patrões de multinacionais, Daewoo ou Toyota, ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante de um Bill Gates. P 144-145

RESISTÊNCIA – Mas essas mesmas forças de “conservação”, frequentemente tratadas como forças conservadoras, são também, sob outro aspecto, forças de resistência à instauração da ordem nova, podendo se tornar subversivas nas seguintes condições: sob a condição prévia de que se saiba conduzir a luta propriamente simbólica contra o trabalho incessante dos “pensadores” neoliberais, para desacreditar e desqualificar a herança de palavras, tradições e representações associadas às conquistas históricas dos movimentos sociais (...) toda a página fala sobre o tema RESISTÊNCIA P147

BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2: Por um movimento social europeu. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

Prefácio

Por razões que provavelmente devem-se a mim, mas sobretudo à situação do mundo, cheguei a pensar que aqueles que têm a oportunidade de dedicar sua vida ao estudo do mundo social não podem ficar neutros e indiferentes, distanciados das lutas das quais o resultado será o futuro desse mundo. Essas lutas são, em parte essencial, lutas teóricas,

nas quais os dominantes podem contar com milhares de cumplicidades, espontâneas ou remuneradas (...) P7

ATENÇÃO! A vulgata neoliberal (...) não resulta de uma geração espontânea. É produto do trabalho prolongado e constante de uma imensa força de trabalho intelectual, concentrado e organizado em verdadeiras empresas de produção, difusão e intervenção (...) P 7-8

É preciso reatar hoje com a tradição consolidada no século XIX no campo científico que, recusando-se entregar o mundo às forças cegas da economia, queria estender ao conjunto do mundo social os valores de um mundo científico sem dúvida idealizado. P8

CAPES – (...) Mas estou convencido de que é preciso, custe o que custar, introduzir no debate público, de onde estão tragicamente ausentes, as conquistas da ciência – e de passagem chamar à prudência os ensaístas loquazes e incompetentes que ocupam ao longo do tempo os jornais, rádios e televisões – liberando assim a energia crítica que permanece aprisionada dentro dos muros da cidade erudita, em parte por uma virtude científica mal comprometida, que proíbe ao homo academicus misturar-se aos debates plebeus do mundo jornalístico e político, em parte pelo efeito dos hábitos de pensamento e de escrita que fazem com que os especialistas achem mais fácil e também mais bem remunerado, do ponto de vista dos lucros propriamente acadêmicos, reservar os produtos de seu trabalho para publicações científicas que não são lidas senão por seus pares. P9

Mas através de que a ação fazer com que os saberes deixem a cidade erudita ou, mais difícil, fazer com que os pesquisadores intervenham no universo político? (...) intelectual peticionário e solidário (...) inventar uma nova relação entre pesquisadores e os movimentos sociais, que poderia se fundar na recusa da separação, mas sem concessão à ideia de uma “fusão”, e na recusa da instrumentalização, mas sem concessão aos devaneios antiinstitucionais?P 10

A política não parou de se afastar dos cidadãos. P 11

(...) Não se pode esperar uma verdadeira transformação dessas instituições, cada vez mais submissas às diretrizes de organismos internacionais que visam liberar o mundo de todos os obstáculos pelo exercício de um poder econômico cada vez mais concentrado (...) P12

(...) incitar todos os pesquisadores competentes a unir seus esforços àqueles dos responsáveis militantes para discutir e elaborar coletivamente um conjunto de análises e propostas de progresso (...) P12-13

(...) projeto de sociedade (...) P13

Por um movimento social europeu

CAPES – CORPO - (...) Não existe com efeito precondição mais absoluta para a construção de um movimento assim do que o repúdio de todas as maneiras habituais de pensar o sindicalismo, os movimentos sociais e as diferenças nacionais nesses domínios; nem uma tarefa mais urgente do que a criação de novas maneiras de pensar e agir impostas pela precarização. P25

NOVA FORMA DE DISCIPLINA SOCIAL – Precarização. (...) e o novo sindicalismo deverá saber se apoiar sobre as novas solidariedades entre vítimas da política de precarização, quase tão numerosas hoje em profissões de forte capital cultural como o ensino, as profissões da saúde e os ofícios de comunicação (como os jornalistas) quanto nos empregados e operários. (...) P 25

(...) as estratégias ambíguas do novo modo de dominação são elas próprias muito frequentemente exercidas, em todos os níveis da hierarquia social, por vítimas de estratégias similares, instrutores precários encarregados de acompanhar e assistir populações das quais estão bem próximos por sua condição etc., todos levados a ingressar nas ilusões partilhadas e por elas arrebatados. (...) P26

(...) necessidade vital do internacionalismo ou, mais precisamente, da internacionalização dos modos de pensamento e das formas de ação. (...) P27

A imposição do modelo americano e seus efeitos

TESE – As políticas econômicas aplicadas em todos os países da Europa, e que as grandes instâncias internacionais – Banco Mundial, OMC e FMI – impõe por toda a parte no mundo, invocam a autoridade da ciência econômica. (...) P 28

(...) Primeiro postulado: a economia seria um domínio autônomo governado por leis naturais e universais que os governos não devem contrariar; segundo postulado: o mercado seria o meio ótimo de organizar a produção e as trocas de maneira eficaz e equânime nas sociedades democráticas; terceiro postulado: a “globalization” exigiria a redução das despesas do Estado, especialmente no domínio dos direitos sociais em matéria de emprego e de segurança social, tudo ao mesmo tempo por dispendiosos e disfuncionais. P30

(...) o Estado desertou de qualquer função econômica, vendendo as empresas que possuía, convertendo bens públicos como a saúde, a habitação, a segurança, a educação e a cultura – livros, filmes, televisão e rádio – em bens comerciais e os usuários em clientes, subcontratando os “serviços públicos” no setor privado, renunciando a seu poder de fazer a desigualdade recuar (a qual tende a crescer de maneira descontrolada) e delegando a níveis inferiores de autoridade (região, cidade etc.) as funções sociais, tudo isso em nome da velha tradição liberal de self help (herdada da crença calvinista de que Deus ajuda aqueles que ajudam a si próprios) e da exaltação conservadora da responsabilidade individual (...) P31

Em terceiro lugar, o culto do individuo e do “individualismo”, fundamento de todo o pensamento econômico neoliberal, é um dos pilares da doxa sobre a qual, segundo

Dorothy Ross, foram construídas as ciências sociais americanas. A ciência econômica repousa em uma filosofia da ação, o individualismo metodológico, que não quer e não pode conhecer senão as ações ciente e conscientemente calculadas de agentes isolados, visando fins individuais e egoístas ciente e conscientemente determinadas. (...) P32

(...) conservadorismo, e isso com a cumplicidade dos próprios europeus, em uma lógica que não deixa de lembrar a da colonização. P35

Por um conhecimento engajado

TESE - MUITO BOM - Como não disponho de muito tempo e gostaria que meu discurso fosse tão eficaz quanto possível, irei diretamente à questão que desejo colocar diante dos senhores: os intelectuais e, mais precisamente, os pesquisadores, e mais precisamente ainda, os especialistas em ciências sociais podem e devem intervir no mundo político e sob que condição podem fazê-lo eficientemente? Que papel podem desempenhar no movimento social, em escala nacional e sobretudo internacional, isto é, no nível mesmo em que atualmente se joga o destino dos indivíduos e das sociedades? Como podem contribuir para a criação de uma nova maneira de fazer política? P36

TESE - (...) os intelectuais (sempre entendendo por isso os artistas, escritores e cientistas que se engajam numa ação política) são indispensáveis à luta social, hoje muito particularmente, considerando as formas absolutamente novas assumidas pela dominação. (...) devemos opor as produções de redes críticas, reunindo “intelectuais específicos” (no sentido de Foucault) num verdadeiro intelectual coletivo ele próprio capaz de definir os objetos e os fins de sua reflexão e de sua ação, em suma autônomo. Esse intelectual coletivo pode e deve cumprir primeiramente funções negativas, críticas, trabalhando para produzir e disseminar instrumentos de defesa contra a dominação simbólica armada atualmente, o mais das vezes, pela autoridade da ciência; forte pela competência e autoridade do coletivo reunido, ele pode submeter o discurso dominante a uma crítica lógica que se atenha sobretudo ao léxico (“globalização”, “flexibilidade” etc.) (...) P 39

(...) Todo pensamento crítico está portanto para ser reconstruído, e ele não pode, como acreditava-se em outros tempos, ser obra de uma pessoa só, mestre-pensador entregue apenas aos recursos de seu pensamento singular ou porta-voz autorizado por um grupo ou instituição a transmitir a suposta palavra das pessoas sem palavras. P40

É aí que o intelectual coletivo pode desempenhar seu papel, insubstituível, contribuindo para criar as condições sociais de uma produção coletiva de utopias realistas. Pode organizar ou orquestrar a pesquisa coletiva de novas formas de ação política, de novas maneiras de mobilizar e fazer trabalhar conjuntamente as pessoas mobilizadas, de novas maneiras de elaborar projetos e realizá-los em comum. Pode desempenhar um papel de parteiro dando assistência à dinâmica dos grupos de trabalho em seu esforço para exprimir, e ao mesmo tempo descobrir, o que são e o que poderiam ou deveriam ser e contribuindo na coleta e acumulação do imenso conhecimento social sobre o mundo social de que o mundo social está carregado. (...) P 40

A tarefa (acima) é ao mesmo tempo extremamente urgente e extremamente difícil. (...) P 41

(...) combinação improvável, mas indispensável: o conhecimento engajado, scholarship with committment, ou seja, uma política de intervenção no mundo político que obedeça, na medida do possível, às regras em vigor no campo científico. (...) só é verdadeiro e plenamente possível para e por uma organização capaz de orquestrar o trabalho coletivo de um conjunto internacional de pesquisadores, artistas e cientistas. Nesse empreendimento coletivo, é sem dúvida aos cientistas que cabe o papel primordial, em um momento em que as forças dominantes não cessam de invocar a autoridade da ciência, sobretudo econômica. P44

Contra a política de despolitização

(...) De fato, muitas forças progressistas, estruturas de resistência, a começar pelos sindicatos, estão ligadas ao Estado nacional. E tanto as estruturas institucionais quanto as estruturas mentais. As pessoas estão habituadas a lutar no âmbito nacional. A questão é saber se as novas estruturas de mobilização transnacionais conseguirão absorver as estruturas tradicionais, que são nacionais. O que é certo é que esse movimento social deve se apoiar no Estado mas mudando o Estado, se apoiar nos sindicatos mas mudando os sindicatos, ao preço de um trabalho enorme e, em grande parte, intelectual. Uma das funções dos pesquisadores poderia ser (idealmente) desempenhar o papel de consultores em organização do movimento social ajudando os diferentes grupos a superar suas diferenças. P 66-67.

(...) A política neoliberal contribui também para o enfraquecimento dos sindicatos. (...) P69

PROPOSTAS - Associar os pesquisadores e os militantes – (...) reunir todas as forças disponíveis (...) contra uma outra divisão igualmente funesta, a que separa os pesquisadores e os militantes (...) o trabalho dos pesquisadores é indispensável para descobrir e desmontar as estratégias elaboradas e aplicadas pelas grandes empresas multinacionais e os organismos internacionais que, como a OMC, produzem e impõem regulamentações à pretensão universal capaz de paulatinamente conferir realidade à utopia neoliberal de desregulamentação generalizada. (...) diferentes por sua formação e sua trajetória social, os pesquisadores engajados num trabalho militante e os militantes ligados a um empreendimento de pesquisa devem aprender a trabalhar em conjunto, superando todas as prevenções negativas que podem ter uns a respeito dos outros e desprezando as rotinas e os pressupostos associados ao pertencimento a universos submetidos a leis e lógicas diferentes, isso graças a instauração de modos de comunicação e de debate de um tipo novo. Essa é uma das condições para que se possa criar coletivamente, no e pelo confronto crítico das experiências e das competências, um conjunto de respostas que deverão sua força política ao fato de que serão ao mesmo tempo sistemáticas e enraizadas em aspirações e convicções comuns. P 70-71

Só um Movimento Social Europeu fortalecido por todas as forças acumuladas nas diferentes organizações dos diferentes países e instrumentos de informação e crítica elaborados conjuntamente em lugares específicos de informação e de discussão como os estados gerais será capaz de resistir às forças ao mesmo tempo econômicas e intelectuais das grandes empresas internacionais e de seus exércitos de consultores, especialistas e juristas reunidos em suas agências de comunicação, seus gabinetes e suas consultorias em lobbying. Capaz também de substituir os fins cinicamente impostos por instâncias orientadas pela busca do lucro máximo a curto prazo por objetivos econômica e politicamente democráticos de um Estado social europeu dotado dos instrumentos políticos, jurídicos e financeiros necessários para eliminar a força bruta e brutal dos interesses estritamente econômicos. (...) P71

(A proposta acima) (...) quer contribuir para fazê-lo existir na prática trabalhando incessantemente por uma conjunção das forças sociais da resistência à altura das forças econômicas e culturais hoje em dia mobilizadas a serviço da política de “globalização”. P72

(...) atraem a atenção dos cidadãos para alvos fictícios (...) P74

CAPES - (...) umas das questões mais importantes e difíceis é saber para que nível convém trazer a ação política: para o nível local, ou nacional, ou europeu, ou mundial? De fato, os imperativos científicos se associam com os imperativos políticos para impor que se remonte na cadeia das causas até a causa mais geral (...) em se tratando da emigração não há dúvida de que, no âmbito nacional, somente é possível apreender fatores que, como a política do Estado nacional, além de flutuarem em função dos interesses dos dominantes, deixam escapar o essencial, ou seja, os efeitos da política neoliberal, ou, mais precisamente, das políticas ditas de ajuste estrutural, em especial das privatizações: estas têm como consequência, em muitos países, a derrocada da economia e, com isso, as demissões em massa, o que favorece um vasto movimento de emigração forçada e a constituição de um exército de reserva mundial, que coloca todo seu peso (como os sem-documento clandestinos) sobre a mão-de-obra nacional, ela mesma precarizada, e sobre suas reivindicações salariais. P 75

(...) as instâncias dominantes exprimem sem maquiagem (sobretudo nos textos da OMC) a nostalgia de uma emigração à antiga, isto é, feita de trabalhadores descartáveis, temporários, solteiros, sem família e sem proteção social (como os sem-documento), destinados a oferecer aos quadros estafados da economia dominante os serviços baratos (em boa parte femininos) de que precisam. Poder-se-ia fazer uma demonstração análoga a propósito das mulheres de que são vítimas (...) P76

(...) as ações (...) contra as instâncias do governo mundial invisível, são mais difíceis de organizar e também mais efêmeras, ainda que, mesmo apoiando-se em redes e organizações, são antes o fato de uma agregação de forças individuais. (...) 76-77

(...) Essas ações coletivas realizadas graças à coordenação de coletivos devem, apoiando-se num trabalho teórico que vise formular objetivos políticos e sociais para

uma verdadeira Europa social (...) capaz de dar vida, apenas por sua vigência, a um espaço político europeu que, no momento atual, não existe. 77

A cultura está em perigo

(...) creio necessário difundir o mais amplamente possível o que me parece ser o ponto de vista da pesquisa mais avançada sobre os efeitos que os processos ditos de globalização podem ter em matéria de cultura. 80

(...) Os microcosmos relativamente autônomos no interior dos quais a cultura produzida devem garantir, junto com o sistema escolar, a produção dos produtores e consumidores. 86

(...) é tudo isso que se vê ameaçado atualmente através da redução da obra a um produto e a uma mercadoria. (...) 88

(...) grande público, pouco preparado para apreciar experiências específicas, sobretudo formais. (...) 88

Essa tradição de internacionalismo específico, propriamente cultural, opõe-se radicalmente, apesar das aparências, ao que se chama de “globalization”. Palavra que funciona como uma senha e uma palavra de ordem, é com efeito a máscara justificadora de uma política que visa universalizar os interesses e a tradição particulares das potências econômicas e politicamente dominantes (...) 90

(...) Os campos de produção cultural, instituídos apenas muito progressivamente e ao preço de imensos sacrifícios, são profundamente vulneráveis diante das forças da tecnologia aliadas às forças da economia (...) 91

(...) eu poderia parecer exagerado – profeta da desgraça – tão enormes são as ameaças que as medidas neoliberais impõem a cultura. (...) abertura de todos os serviços às leis de livre comercio, tornando assim possível a transformação de todas as atividades de serviço, inclusive aquelas que correspondem a direitos fundamentais como a educação e a cultura, em mercadorias e fontes de lucro (...) 91-92

A extraordinária perversidade dessa política deve-se a dois efeitos que se acumulam: primeiro, é protegida contra a crítica e a contestação pelo sigilo de que cercam aqueles que a produzem; depois, é carregada de efeitos, às vezes propositais, que passam desapercebidos, no momento de sua realização, àqueles que irão sofrê-los, e os quais só surgirão com um atraso mais ou menos longo, impedindo as vítimas de denunciá-la imediatamente (...) 93

(...) todas as realidades correspondentes, comissões e comitês de tecnocratas não eleitos, pouco conhecidos do grande público, constituem um verdadeiro governos mundial invisível, em todo caso desapercebido e desconhecido da maioria, cujo poder é exercido sobre os próprios governos nacionais. (...) 95

(...) os grandes grupos de comunicação contribuem decisivamente para a circulação quase universal da doxa intrusiva e insinuante do neoliberalismo (...) 95

Aqueles que se empenham em combatê-las não contam, no próprio seio dos campos de produção cultural, nem com um jornalismo estruturalmente solidário (o que não exclui exceções) das produções, ou dos produtores mais diretamente orientados para a satisfação direta do público mais vasto, nem, tampouco, com os “intelectuais midiáticos”, que preocupados antes de tudo com sucessos imediatos, devem sua existência à sua submissão às expectativas do mercado (...) Isso significa que a posição dos produtores culturais mais autônomos, pouco a pouco desapossados de seus meios de produção e sobretudo de distribuição, provavelmente nunca esteve tão ameaçada e tão frágil, mas nunca tão rara, útil e preciosa. 97

Unificar para melhor dominar

(...) a unificação beneficia dos dominantes, cuja diferença está constituída como capital apenas pelo fato de instituírem essa relação. (...) 99

(...) Assim, vê-se favorecida a formação de um capo econômico mundial, sobretudo do domínio financeiro (em que os meios informáticos de comunicação tendem a acabar com as distancias temporais que separavam os diferentes mercados nacionais). 100

É preciso voltar à palavra “globalization” (...) passando sub-repticiamente do sentido descritivo do conceito normativo, ou melhor, performativo: a “globalization” designa então uma política econômica que visa unificar o campo econômico por todo um conjunto de medidas jurídico-políticas destinadas a suprimir todos os limites a essa unificação, todos os obstáculos, em sua maioria ligados ao Estado-nação, a essa extensão. Isso define, com precisão, a política neoliberal, inseparável da verdadeira propaganda econômica que lhe confere uma parte de sua força simbólica através da ambiguidade da noção. 101

(...) E essa política, assim como, em sua escala própria, aquela que dera origem aos mercados nacionais, tem por efeito (...) criar as condições de dominação confrontando brutalmente agentes e empresas até então encerrados nos limites nacionais com a concorrência de forças produtivas e modos de produção mais eficientes e poderosos. 101

(...) Sabemos que, de maneira geral, a igualdade formal dentro da desigualdade real é favorável aos dominantes. 102

A palavra “globalization” é, como veremos, um pseudoconceito ao mesmo tempo descritivo e prescritivo que ocupou o lugar da palavra “modernização”, (...) 102

(...) através dessa palavra, é o processo de unificação do campo mundial da economia e das finanças, quer dizer, a integração de universos econômicos nacionais até então estanques e doravante organizados com base no modelo de uma economia enraizada nas particularidades históricas de uma tradição social particular (...) 103

(...) a política de “globalization” é sem dúvida em si mesma a melhor ilustração dessa dessimetria, uma vez que visa estender ao conjunto do mundo, mas sem reciprocidade, em mão única (quer dizer, em associação com um isolacionismo e um particularismo), o modelo mais favorável aos dominantes. 106

A unificação do campo econômico mundial pela imposição do reino absoluto do livre comercio, da livre circulação do capital e do crescimento orientado para a exportação apresenta a mesma ambiguidade que a integração no campo econômico nacional em outros tempos (...) esse “projeto de sociedade” serve aos dominantes (...) 107

(...) Elas vêm reforçar no plano simbólico a ação quase mecânica da competição econômica imposta aos Estados nacionais, qual seja, a de jogar o jogo da concorrência no terreno da fiscalidade (permitindo exonerações) ou das vantagens competitivas (oferecendo infra-estruturas gratuitas). 108

Esses diferentes campos estão hoje estruturalmente submetidos ao campo financeiro mundial. (...) 109

(...) as taxas de juros a longo prazo tendem doravante a serem fixadas não mais por instancias nacionais, mas por um pequeno número de operadores internacionais que comandam as tendências dos mercados financeiros. (...) 110

(...) a integração no campo econômico mundial tende a enfraquecer todos os poderes regionais ou nacionais (...) desacreditando todos os modelos de desenvolvimento (...) deixa os cidadão impotentes diante das potências transnacionais da economia e das finanças. As políticas ditas de “ajuste estrutural” visam garantir a integração dentro da subordinação das economias dominadas. (...) 111

Essa unificação, diferentemente daquela outrora operada, na Europa, na escala do Estado nacional, é feita sem Estado – contra o desejo de Keynes de criação de um banco central mundial produzido uma moeda de reserva neutra capaz de garantir intercâmbios iguais entre todos os países – e apenas a serviço dos dominantes (...) É a lógica do campo e a força própria do capital concentrado que impõem relações de força favoráveis aos interesses dos dominantes. Estes detêm os meios de transformar essas relações de força em regras do jogo aparentemente universais através das intervenções falsamente neutras das grandes instancias internacionais (FMI, OMC) por eles dominadas ou sob o véu das representações da economia e da política que estão em condições de inspirar e impor e que tinham encontrado sua formulação mais bem acabada no projeto do AMI (...) 114

(...) sem dúvida não é insensato esperar que os efeitos da política de uma pequena oligarquia atenta apenas a seus interesses econômicos a curto prazo possam favorecer o surgimento progressivo de forças políticas, elas também mundiais, capazes de impor pouco a pouco a criação de instancias transnacionais encarregadas de controlar as forças econômicas dominantes e subordiná-las a fins realmente universais. 115