a questão do desenvolvimento na regulação do investimento ... · a introdução de institutos...

18
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 A questão do desenvolvimento na regulação do investimento estrangeiro na América do Sul: novos institutos normativos no setor energético de Brasil e Bolívia Olegário Franco dos Santos Neto 1 Edna Aparecida da Silva 2 Resumo: A comunicação analisa as estratégias de regulação do investimento estrangeiro no setor de energia no contexto da integração regional na América do Sul, destacando seu papel legitimador para a política doméstica e seu impacto no debate político. A introdução de institutos normativos nos contratos de concessão, como as condições de entrada e requisitos de desempenho e conteúdo local, determinantes das estratégias de captura de benefícios para os países hospedeiros, são indicativos de uma perspectiva desenvolvimentista dissonante com a natureza dos acordos bilaterais e das reformas liberais empreendidas outrora. A introdução, nas recém-aprovadas legislações setoriais de Bolívia e Brasil, de institutos normativos resgata um importante papel para o Estado na gestão do investimento direto estrangeiro com vistas ao desenvolvimento econômico. Palavras-chave: regulação de investimento, políticas de desenvolvimento, integração regional INTRODUÇÃO A comunicação analisa as estratégias de regulação do investimento estrangeiro no setor de energia no contexto da integração regional na América do Sul, contrapondo as diretrizes subjacentes às políticas de energia adotadas na década de 90 ao esforço de concertação energética, de traço nacionalista, em curso nos anos mais recentes. Procuramos entender como a recente introdução de institutos normativos nos contratos de concessão, como as condições de entrada e exigências de desempenho e conteúdo local, indicaria a retomada do controle político sobre os recursos energéticos e sua instrumentalização em prol da captura de benefícios econômicos para os países. Adicionalmente, procuramos destacar que tais iniciativas apoiam-se no deslocamento verificável nas proposições de integração regional no mesmo período. 1 Mestre em Desenvolvimento Econômico pelo IE/UNICAMP. A comunicação é parte do trabalho de pesquisa desenvolvido sobre o tema da integração energética regional e a regulação do investimento no setor de energia, como bolsista da Capes, no programa de Doutorado em Ciência Política do IFCH/UNICAMP. [email protected] 2 Mestre em História pela UNESP. A comunicação resulta de trabalho de pesquisa concluída sobre multilateralismo e relação entre questões regulatória, soberania, investimento estrangeiro, como bolsista do CNPq, no programa de Doutorado em Ciência Política do IFCH/UNICAMP. [email protected]

Upload: hadat

Post on 23-Jun-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

A questão do desenvolvimento na regulação do investimento estrangeiro na

América do Sul: novos institutos normativos no setor energético de Brasil e

Bolívia

Olegário Franco dos Santos Neto 1

Edna Aparecida da Silva 2

Resumo:

A comunicação analisa as estratégias de regulação do investimento estrangeiro no setor de energia

no contexto da integração regional na América do Sul, destacando seu papel legitimador para a

política doméstica e seu impacto no debate político. A introdução de institutos normativos nos

contratos de concessão, como as condições de entrada e requisitos de desempenho e conteúdo local,

determinantes das estratégias de captura de benefícios para os países hospedeiros, são indicativos de

uma perspectiva desenvolvimentista dissonante com a natureza dos acordos bilaterais e das

reformas liberais empreendidas outrora. A introdução, nas recém-aprovadas legislações setoriais de

Bolívia e Brasil, de institutos normativos resgata um importante papel para o Estado na gestão do

investimento direto estrangeiro com vistas ao desenvolvimento econômico.

Palavras-chave: regulação de investimento, políticas de desenvolvimento, integração regional

INTRODUÇÃO

A comunicação analisa as estratégias de regulação do investimento estrangeiro no setor de

energia no contexto da integração regional na América do Sul, contrapondo as diretrizes subjacentes

às políticas de energia adotadas na década de 90 ao esforço de concertação energética, de traço

nacionalista, em curso nos anos mais recentes. Procuramos entender como a recente introdução de

institutos normativos nos contratos de concessão, como as condições de entrada e exigências de

desempenho e conteúdo local, indicaria a retomada do controle político sobre os recursos

energéticos e sua instrumentalização em prol da captura de benefícios econômicos para os países.

Adicionalmente, procuramos destacar que tais iniciativas apoiam-se no deslocamento verificável

nas proposições de integração regional no mesmo período.

1 Mestre em Desenvolvimento Econômico pelo IE/UNICAMP. A comunicação é parte do trabalho de pesquisa

desenvolvido sobre o tema da integração energética regional e a regulação do investimento no setor de energia, como

bolsista da Capes, no programa de Doutorado em Ciência Política do IFCH/UNICAMP.

[email protected] 2 Mestre em História pela UNESP. A comunicação resulta de trabalho de pesquisa concluída sobre multilateralismo e

relação entre questões regulatória, soberania, investimento estrangeiro, como bolsista do CNPq, no programa de

Doutorado em Ciência Política do IFCH/UNICAMP. [email protected]

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Na América do Sul, uma das dimensões do processo de integração foi aquela das

interconexões de infraestrutura, inspiradas na ideia de eixos de desenvolvimento. Nesse

entendimento, o desenvolvimento seria alcançado como desdobramento dos investimentos

promovidos na infraestrutura local, pelos quais os países se beneficiariam dos ganhos de sua maior

inserção nos fluxos do comércio internacional. No setor de energia, a busca pela

complementaridade entre oferta e demanda nos mercados nacionais, num movimento de integração

energética, foi tributário do processo de reformas setoriais nos países da região. Nos anos 1990, tais

processos abriram a possibilidade de participação de companhias estrangeiras em mercados outrora

fechados.

No quadro da reformulação da política de segurança americana pós-11 de setembro e da

crise que se seguiu ao colapso do modelo de desenvolvimento liberal, os países sul-americanos

dispuseram de um grau maior de liberdade para os países sul-americanos empreenderem suas

políticas, dentre as quais a de integração regional. Tal movimento, como o “nacionalismo de

recursos” (FUSER: 2008), expressa a defesa do controle soberano do Estado sobre os recursos

energéticos com a apropriação pelo Estado de uma fatia maior dos ganhos da exploração de seus

recursos naturais, como no caso emblemático da Bolívia. Antes associadas subordinadamente ao

capital estrangeiro na exploração de petróleo e gás, as estatais têm assumido uma função mais ativa

na indução do desenvolvimento, visível em sua política de promoção de uma cadeia de

fornecedores domésticos.

Em que pese a importância dessa inflexão nas políticas setoriais domésticas, o espaço para o

exercício da soberania, nos marcos de uma ordem internacional francamente assimétrica, foi

restringido, e sendo atributo do sistema (VELASCO E CRUZ, 2004, p. 205), a soberania só poderia

ser “resgatada” neste plano. Por esse prisma, os entendimentos encetados na I Cúpula Energética

Sul-americana3 pareciam traduzir um esforço dos Estados nacionais em busca de graus maiores de

autonomia no exercício de sua soberania. Mais do que enfatizar o vínculo indiscutível entre a

construção de um espaço econômico regional e seu provimento estável de energia, nada inédito, a

declaração produzida no encontro, no contexto em que foi efetivada, pôs em destaque o papel da

3 Estiveram presentes na reunião, ocorrida nos dias 16 e 17 de abril de 2007 na Ilha de Margarita, Venezuela, os

seguintes chefes de Estado: da Argentina, Néstor Kirchner; da Bolívia, Evo Morales; do Brasil, Luiz Inácio Lula da

Silva; do Chile, Michelle Bachelet; da Colômbia, Álvaro Uribe; do Equador, Rafael Correa; do Paraguai, Nicanor

Duarte e da Venezuela, Hugo Chávez. Também participaram o vice-presidente do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa,

representando o presidente Tabaré Vázquez, os primeiros ministros da Guiana, Sam Hinds, e de Suriname, Gregory

Rusland, bem como os ministros peruanos de Relações Exteriores, José Antonio García Belaúnde, e de Energia e

Minas, Juan Valdivia, representando o presidente Alan García.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

segurança energética na conformação daquilo que chegou a ser denominado bloco de poder sul-

americano (VADELL E ZAHREDDINE, 2006).

O texto divide-se em quatro seções, além desta introdução e de suas notas finais. Na

primeira, apresenta-se alguns aspectos da institucionalidade do mercado regional de energia

efetivado no Cone Sul na década final do século XX. Na segunda seção, delimita-se o papel que,

historicamente, as políticas do setor de energia cumpriram na consecução do desenvolvimento. A

terceira seção põe em relevo a reversão das políticas liberais, particularmente na Bolívia e no que se

refere ao alcance da intervenção do Estado no domínio econômico. Finalmente, a quarta seção

considera os desenvolvimentos políticos em escala regional, dimensão essencial na legitimação das

políticas domésticas.

I.

O movimento de integração energética da América do Sul, levado a cabo nos idos de 1990,

articulou-se proximamente com o processo de constituição de uma institucionalidade regional

inspirada nos princípios do livre comércio. Veremos como os empreendimentos estiveram

fortemente atrelados aos instrumentos de cooperação econômica bilateral, firmados pelos países

envolvidos, em sua interação com instâncias reguladoras domésticas. De nosso ponto, a consecução

da integração energética é tributária do processo de reformas setoriais empreendidas nos países da

região no mesmo período, que concorreram para o desenho de instituições sem as quais a realização

dos projetos de integração não teria tido lugar.

A relação que se pode estabelecer entre as reformas econômicas e os processos de

integração não é unívoca. No que tange ao objeto de nossa análise, o mesmo pode ser afirmado. Se

é verdade que foram vãs as expectativas de que as reformas aprofundariam necessariamente os

processos de integração, que exigiriam graus maiores de convergência regulatória, nunca

alcançados por aqui (GHIRARD, 2008), também é verdade que a expansão das oportunidades de

negócios, permitidas pelas reformas setoriais, garantiram graus maiores de interconexão dos

mercados nacionais de energia.

O desenvolvimento da indústria de gás natural foi historicamente dependente da

comprovação da existência de aproveitamentos gasíferos próximos aos centros de consumo, e

mesmo nestes casos, a constituição de redes de transporte envolvia elevados custos. A

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

possibilidade de se explorar mercados nacionais em expansão, vislumbrado por brasileiros e

chilenos, garantiu condições para a exploração das reservas de gás nos países limítrofes, sobretudo

na Bolívia e Argentina.

Em agosto de 1992, depois uma primeira Carta de Intenções firmada ainda em 1991, foram

assinados dois importantes instrumentos para a consecução do gasoduto Bolívia-Brasil. O primeiro,

de caráter intergovernamental, foi o Acordo de Alcance Parcial sobre a Promoção de Comércio, no

âmbito da ALADI, e o segundo, novo instrumento firmado entre as empresas Petrobrás e YPFB, o

Contrato Preliminar de Compra e Venda de Gás. As Notas Reversais, de 17 de agosto, formalizaram

os acordos, alçando-os à condição de compromissos entre governos. De acordo com a Mensagem

com a Mensagem Oficial Conjunta emitida pelos ministros da área econômica do governo

brasileiro, em 11 de novembro do mesmo ano, o Acordo, para além da diversificação das fontes de

energia e da redução da dependência do petróleo importado de regiões de conflito. No espírito do

processo de reformas setoriais que então se avizinhavam, o Acordo permitiria: 1) elevar os níveis de

eficiência energética na geração termelétrica; 2) reduzir os riscos de falha na oferta de eletricidade,

pela complementação da base hidrelétrica com a geração a gás; e 3) estimular os projetos de auto-

produção de energia elétrica e co-geração pelo setor privado.

Em fevereiro de 1993, as negociações empresariais prosseguiram com a assinatura do novo

acordo entre a Petrobrás e a YPFB, o conhecido GSA4. Formalizado em Nota Reversal de 10 de

março de 1993, o acordo estabelecia questões triviais em tratativas do gênero, como seu período de

vigência, o volume de gás a ser transacionado e o traçado do duto, bem como compromissos para

garantir a exequibilidade do projeto, como medidas de desoneração fiscal, constituição de empresas

de transporte e negociações junto à comunidade financeira internacional. Dentre estas destacamos o

comprometimento dos países com as questões que se tornariam traços definidores dos setores de

energia liberalizados. Na antessala do processo de abertura do setor, o governo boliviano permitia

pelas Notas Reversais de março de 1993, mas em conformidade com a legislação vigente, que a

Petrobrás viesse a atuar nas atividades de exploração, produção, comercialização e transporte de

hidrocarbonetos no país e também na distribuição de petróleo e gás natural no mercado interno

boliviano.

4O Gas Supply Agreement estabelecia, dentre outras disposições, o compromisso do Brasil em comprar 8 milhões de

metros cúbicos de gás diários por oito anos, com previsão de dobrar este volume pelos 12 anos seguintes e que a

validade do acordo e o andamento do projeto dependeriam de sua viabilização financeira.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Em 1996, as reformas promovidas sob o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada abriram

caminho para a consecução do projeto. A nova Lei de Hidrocarbonetos (Lei nº1689) então

promulgada estabelecia em seu Art. 1º que a estatal boliviana YPFB deveria “necessariamente”

estabelecer contratos com empresas nacionais ou estrangeiras para a exploração do gás. Ademais,

em seu Art. 24, a Lei estipulava que, aos contratantes, era concedido o direito de realizar a

prospecção, exploração, extração, transporte e comercialização interna da produção obtida. Neste

sentido, a provisão constitucional5 que assegurava a propriedade do Estado sobre os

hidrocarbonetos tornava-se letra morta6.

De outra parte, a proposição de que os países deveriam envidar esforços para que o preço do

gás refletisse seu valor econômico de livre competitividade, garantindo eficiência econômica nas

diferentes fases da cadeia, dá igualmente o tom das reformas que, mais adiante, seriam

empreendidas. Pelo disposto no Art. 5º da Lei, os hidrocarbonetos foram declarados livres para

comercialização interna e internacional.

Resta claro, então, que as disposições dos artigos 5º e 24º da Lei nº 1689 asseguraram às

contratantes estrangeiras, sob a forma de contratos de serviço, amplo direito à comercialização

interna e externa dos hidrocarbonetos por elas produzidos, sem restrições de volume. Em novo

marco legal instituído em 4 de agosto de 1996, por Decreto Supremo, reconhecia-se aos

contratantes a propriedade dos hidrocarbonetos na boca do poço. Tratou-se, aqui, de um

aprofundamento da reforma ou o desnudamento de sua natureza: se antes parcela do gás extraído

era revertida à contratante na forma de pagamento por seus serviços, agora admitia-se claramente

ser sua propriedade.

A proposição, inscrita nos instrumentos de cooperação bilateral para o comércio de gás, de

que os países deveriam envidar esforços para que o preço do insumo refletisse seu valor econômico

de livre competitividade nos diferentes mercados também se refletiu nas reformas empreendidas em

solo brasileiro.

5O Art. 139° da C.P.E. estabelece que as reservas de hidrocarbonetos, qualquer que seja seu estado ou a forma em que

se apresentem, “son del domínio directo, inalienable e imprescriptible del Estado”. 6Neste sentido, antes mesmo da ascensão de Evo Morales ao poder, foram interpostas demandas de nulidade dos

contratos firmados pela YPFB e as empresas petrolíferas sob a alegação de inconstitucionalidade. Cf. “La demanda de

nulidad de las en Bolivia”, apresentada por Juan Carlos Lazcano Henry, Roberto Fernández Orosco, Miguel Álvarez

Delgado, Gildo Angulo Cabrera e Jorge TéllezSasamoto.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

No Brasil, o marco inicial7 do processo de desregulamentação do setor de petróleo e gás foi

a aprovação da Emenda Constitucional nº9, de novembro de 1995, que pôs fim ao monopólio da

Petrobrás nas atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e seus derivados,

permitindo, assim, a atuação de empresas privadas em todos os elos desta cadeia produtiva. A

despeito da perda do monopólio, como a cadeia produtiva estava, na prática, em suas mãos, a

introdução do regime de “concorrência” no setor só se faria por intermédio da Petrobrás.

Também por isso, e diferentemente do que ocorria em parte dos países latino-americanos, a

reforma no setor de petróleo e gás natural, no Brasil, não contemplou a privatização de sua principal

estatal. A Lei nº 9478, a chamada Lei do Petróleo, de 1997, que definiu o novo marco regulatório

do setor e criou a ANP (Agência Nacional do Petróleo) e o Conselho Nacional de Política

Energética (CNPE), estabeleceu que a Petrobrás permanecesse sob o controle acionário da União,

mas liberando-a para agir ainda mais autonomamente. À Petrobrás foi permitido criar subsidiárias

ou se associar com outras empresas, nacionais e estrangeiras, majoritária ou minoritariamente, bem

como constituir subsidiária para construir e operar dutos, terminais marítimos e embarcações para

transporte de petróleo, seus derivados e gás natural.

Permanecendo estatal, a Petrobrás passaria, contudo, a atuar sob a lógica das firmas

privadas, num processo denominado marketization, o que estaria demonstrado pelo movimento de

internacionalização de suas operações. De fato suas aquisições e permutas de ativos, principalmente

na Argentina e Bolívia, respondiam à mesma lógica – a da convergência gás / eletricidade – que

guiava a indústria naquele momento: a ênfase do processo permanece nos ativos à jusante na cadeia,

ou seja, no elos mais próximos ao consumidor, em especial no segmento de geração de energia

elétrica.

A ampliação do número de empresas atuantes no mercado, em especial pela incorporação de

grandes grupos internacionais, foi igualmente verificável no subsetor de gás natural. O processo de

privatização das distribuidoras locais de gás do Rio de Janeiro e de São Paulo promoveu o aumento

do número de agentes no mercado e a incorporação de grandes empresas com experiência

internacional na indústria8. A despeito disto, a participação da Petrobrás neste subsegmento não foi

7 Em verdade, as primeiras medidas deste processo visaram a eliminação gradual do tabelamento, “desequalização”

regional dos preçose e dos subsídios, e a flexibilização dos requisitos de entrada na distribuição e revenda. 8 Segundo Menardi (2004:248) “no Rio de Janeiro, a Companhia Estadual de Gás (GCEG) foi adquirida por R$464

milhões pelo consórcio liderado pela espanhola Gas Natural e norte americana Enron em 1997, enquanto um outro

consórcio com participação majoritária das duas empresas citadas, acompanhadas pela Petrobras, arrematou a

concessão da CEG-Rio (Rio-gás) por R$ 167 milhões. Em abril de 1999, o controle acionário da distribuidora

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

menor, tendo em vista sua condição de acionaista em de 18 das 24 distribuidoras presentes no país.

Assim, coube à Petrobrás a tarefa de desenvolver o mercado de gás natural no Brasil,

comercializando todo o produto de origem nacional e 85% das importações da Argentina e da

Bolívia.

Neste sentido, o governo FHC fez passar, por intermédio da ANP (Agência Nacional do

Petróleo) a devida regulamentação para a importação de gás natural e para a construção de novos

gasodutos9. A liberação das importações e a flexibilização na formação dos preços dos derivados

de petróleo e gás natural resultantes das disposições normativas reguladas pela ANP conformaram

paulatinamente, um mercado aberto para o insumo recém-alçado à condição de protagonista na

matriz energética brasileira.

Não obstante as disposições sobre a abertura do mercado nacional de gás, a Petrobrás, como

vimos, continuou a exercer amplo controle sobre o mercado doméstico, também porque o sustentou,

já que sem Petrobras o processo tal como se verificou não teria ocorrido. Em 1994 e 1995 foram

assinados os Termos Aditivos nº 1 e nº 2, alterando a quantidade de gás transacionada e o prazo de

vigência do acordo, para que, em 17 de agosto de 1996, o contrato definitivo fosse firmado entre as

empresas Petrobrás e YPFB. No decurso desses anos, foi crescente a importância da Petrobrás nas

tratativas para a integração energética, constituindo-se, desde a assinatura do GSA, o executor

principal do empreendimento10

.

Essas disposições, em seu teor e implicações, são reveladoras da natureza da “integração

energética” que se promoveu e introduzem importante questão, a saber, a conflituosa relação entre o

Companhia de Gás de São Paulo Comgás foi arrematado por R$ 1,6 bilhão pelo consórcio liderado pela British Gas,

contando com a presença da Shell e da CPFL. Em novembro de 1999, o grupo italiano ENI, através de suas

controladas AGIP, Italgas e Snam, adquiriu por R$ 275 milhões a concessão para atuar na região noroeste de São

Paulo, criando a Gas Brasiliano. O direito de exploração de uma terceira área de gás canalizado, a região sul de São

Paulo, foi concedida por R$534 milhões ao grupo Gas Natural durante leilão realizado em abril de 2000”. 9 A ANP aprovou, em 1998, a Portaria nº147 que definiu as normas para a importação de petróleo, permitindo que

qualquer agente, mediante autorização da Agência, viesse a ser um importador de óleo e gás natural. Também neste

ano, por intermédio da portaria nº 44, regulou as atividades de construção e operação de instalações de transporte de gás

natural. Essa portaria foi ampliada pela portaria nº 170, que estendeu sua abrangência para construção, ampliação e

operação de instalações de transporte ou de transferência de petróleo e gás natural. Nesta mesma data, através da

portaria nº 169, a ANP aprovou as regras de acesso para que terceiros utilizassem os dutos e as instalações de

transporte, definindo também os princípios gerais pelos quais seriam determinadas as tarifas de transporte do gás

(MENARDI, 2004, p. 247) 10

Uma questão que se nos impõe é aquela da transição das tratativas do nível interestatal para o âmbito das empresas.

O que a teria determinado? A resposta passa, de um lado, pela compreensão do papel que assumiu a Petrobrás nas

políticas de energia e externa do governo brasileiro. Tratava-se, em suma, de um braço do aparelho de Estado. De outro

lado, desenvolvia-se, dentro do governo brasileiro, uma disputa entre diferentes posições quanto à natureza e a

profundidade das reformas em marcha. Esta problemática, a enfrentamos em outro lugar.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

bem público localmente disponibilizado e a commodity energética resultante dos processos de

reforma e interconexão, isto é, do gás como um tradable. Na sequência, nos dedicaremos a

descrever brevemente a trajetória da crise do modelo liberal na Bolívia, em que se revelou a

rationale dos negócios em energia levados a cabo naquele período.

Diante do tom indignado assumido pelo mainstream do noticiário brasileiro em sua

cobertura da nacionalização do gás e petróleo bolivianos pelo governo de Evo Morales11

, a posição

do governo brasileiro pareceu contrastante: o presidente Lula reconheceu a decisão da Bolívia como

um ato soberano, afastando, de saída, o risco de uma divisão mais profunda entre os dois países,

num discurso que reiterava as diretrizes da alta prioridade dada à America do Sul na política externa

brasileira de seu governo (MENEZES, 2015). A questão em pauta não é outra senão a da soberania,

e a decisão boliviana de nacionalizar seu gás nos remete particularmente àquela concepção

subjacente à NOEI (Nova Ordem Econômica Internacional), completamente démodé na quadra em

que os projetos de interconexão foram empreendidos.

II.

A construção de um mercado regional de energia esteve, como se viu, conectada ao processo

de reformas liberais e, como tal, não poderia deixar de expressar a perspectiva liberal acerca das

prerrogativas para a obtenção do desenvolvimento. Embora muito já tenha sido dito acerca do

alcance da intervenção do Estado e da participação do setor privado, o que destacamos como

particularmente importante, contudo, é a configuração das relações que se estabelecem entre os

atores privados e o Estado. Ou seja, entender a sujeição dos atores privados aos projetos políticos

concebidos pelo Estado. A questão para a qual nos voltamos, portanto, é a das implicações, em

termos de desenvolvimento, da alteração na lógica de operação do setor de energia como

consequência das reformas.

A fórmula de Nehru, pela qual o desenvolvimento econômico seria produto de “engenharia,

máquinas e equipamentos, institutos de pesquisa e energia elétrica” dá a dimensão não apenas da

crença no investimento em energia como condição necessária para o desenvolvimento, mas sugere

11

Medida em quase nada inédita, como vimos, haja vista a nacionalização do petróleo mexicano, iniciada com a

estatização do subsolo em 1917 e completada com a expropriação das empresas estrangeiras em 1938; a nacionalização

do petróleo brasileiro em 1953, quatro anos depois do ocorrido na Argentina; a nacionalização dos mesmos recursos na

Venezuela em 1975, além dos episódios nacionalizantes ocorridos na Bolívia sob regimes autoritários.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

igualmente a relevância dos encadeamentos que o liga ao setor de bens de capital e o papel do

Estado na tarefa de promovê-los (YERGIN, 1994). Contrariamente, as sucessivas crises no setor de

energia enfrentadas pelos países da região puseram em relevo as limitações da concorrência como

princípio ordenador da indústria, evidenciando, principalmente, as contradições de comportamentos

empresariais pautados pela gestão de ativos financeiros, pela administração de riscos, num setor que

tradicionalmente se caracterizou por relações cooperativas intraindústria, em particular nos países

em desenvolvimento, onde este comportamento esteve vinculado a políticas de corte

desenvolvimentista.

O desafio de estabelecer uma esfera político-institucional no setor de energia esteve

vinculado a duas questões nada triviais. A primeira refere-se à complexidade de se definir um

conjunto de regras acerca da exploração de recursos naturais, tornando-os bens econômicos cujo

valor torna-se, portanto, passível de apropriação privada. Mas o fato de implicar, muitas vezes, o

esgotamento de um recurso não-renovável, a cuja utilização não raramente se associou a

possibilidade de desenvolvimento econômico, determinou as condições para que tais recursos

fossem admitidos como propriedade coletiva e nacionalizada e não como um bem privado e

individual de uma empresa. A segunda característica, que distingue a intervenção do Estado no

setor de energia daquela efetivada sobre a maioria das demais atividades econômicas, está vinculada

ao entendimento do produto destas atividades em energia como um bem público. Como qualquer

interrupção no abastecimento de combustíveis ou de eletricidade deve apresentar um custo muito

alto pela paralisia total ou parcial que pode provocar na atividade econômica ou na condução das

rotineiras atividades da vida urbana, o Estado impõe, dentre outros requerimentos, sua garantia de

abastecimento.

Não foi por acaso, portanto, que a maioria dos Estados que perseguiu a construção de seus

projetos nacionais a partir de uma posição de atraso, no que o setor de energia era essencial, o fez

por empresas estatais. Reconhecidas como a modalidade de intervenção predominante no pós-

guerra, as estatais se destacaram porque, diferentemente dos investimentos públicos, geralmente

limitados pelas transferências do orçamento, gozavam de certa liberdade na consecução de seus

investimentos.

Nos países importadores de petróleo, como o Brasil, a nacionalização e a criação de

empresas estatais estiveram fortemente conectadas à necessidade de intervenção do Estado num

setor estratégico para o desenvolvimento. Nesses casos, submetidas a um projeto estratégico

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

próprio, às estatais cabiam administrar as restrições a que estava submetido o setor petrolífero em

condições de subdesenvolvimento, garantindo continuidade ao projeto estatal no quadro das

transformações na indústria mundial de petróleo. Paralelamente, a ação das estatais no segmento de

petróleo e gás descortinou importantes oportunidades de valorização do capital ao setor privado,

constituindo, deste ângulo, um relevante instrumento na promoção do desenvolvimento. Como

mecanismo indutor de investimentos privados em setores distantes dos complexos exportadores

tradicionais, a presença das estatais firmou-se como um instrumento de negociação e barganha com

as empresas transnacionais do setor de bens de capital sobre a difusão tecnológica (EVANS, 1995).

Para um outro conjunto de países, como a Bolívia, detentores de importantes reservas de

hidrocarbonetos, a concessão para exploração em moldes tradicionais, pela renda petrolífera que

gerava, não se mostrou suficiente para assegurar o desenvolvimento de suas economias. Neste

sentido, para esses países, era fundamental estabelecer o exercício pleno de direitos de propriedade

sobre o patrimônio natural do subsolo, suposto alcançável pela atuação das empresas estatais.

Assim que a opção pela intervenção do Estado no segmento relacionou-se historicamente a

fatores estruturais e conjunturais presente nos países e setores econômicos particulares, como o

descompasso entre o ritmo de acumulação e o crescimento das demandas sociais, a influência e

aversão ao risco dos capitais privados, a tradição institucional da esfera pública e privada e a

importância atribuída à garantia de propriedade nacional sobre os recursos nacionais e atividades

estratégicas (FREIRE, 2001). A lenta construção da institucionalidade setorial refletiu, então, os

descompassos de um processo de industrialização tardio e a disputa, sempre renovada, em torno da

soberania sobre os recursos “nacionais”. Por fim, não se pode ignorar que a maior, ou menor,

participação do Estado na economia resulta da aceitação mais geral de um projeto de

desenvolvimento nacional, o qual, por sua vez, tem lugar dentro de um certo arranjo social somente

passível de ser compreendido no quadro maior do sistema internacional.

III.

Num setor caracterizado por fortes encadeamentos, como é o de energia, a recente revisão

das políticas liberais esteve condicionada, portanto, à redefinição do papel das estatais. Antes

associadas subordinadamente ao capital estrangeiro na exploração de petróleo e gás, as estatais

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

passaram a assumir função mais ativa na indução do desenvolvimento, visível em sua política de

promoção de uma cadeia de fornecedores domésticos.

Essa mudança evidencia-se, no âmbito da regulação, na presença de institutos normativos

que tinham sido construídos no longo processo de afirmação e reconhecimento do direito dos

Estados de controlar a entrada de investimento estrangeiro. Esse esforço dos países em

desenvolvimento, que ganha densidade e legitimidade a partir dos anos setenta com a Nova Ordem

Econômica Internacional, constitui um approach normativo específicamente orientados para captura

de benefícios do investimento externo direto para as economias hospedeiras. Estes elementos, como

as exigências de conteúdo local, exigências de exportações, transferência de tecnologias entre

outras, supõem que a contribuição que o investimento externo pode aportar para o desenvolvimento

depende da natureza das políticas e de regulações do Estado, não decorrem da mera presença do

investidor. Essa regulação que normatiza as condições de entrada do investimento, diversa do foco

sobre proteção do investidor que marca o modelo regulatório proposto pelos países desenvolvidos e

organizações como a OCDE e Banco Mundial, enfatiza sua natureza política na esfera do exercício

do poder soberano. (SORNARAJAH, 1994)

É neste quadro que se insere a nova legislação regulatória para a exploração das reservas da

camada pré-sal, pela qual se determina a substituição do regime de concessão pelo regime de

partilha, em que o Estado brasileiro, além de receber mais pelos recursos naturais explorados,

interpõe “novos” institutos normativos, como requisitos de conteúdo local aos consórcios

vencedores das licitações promovidas pela ANP (SILVA, 2014). Na Bolívia, a empresa estatal do

setor, que havia sido esvaziada de suas funções no processo de reformas institucionais, é refundada.

Destacamos-se, in verbis, do marco legal que precede a nacionalização dos hidrocarbonetos, Lei

3.058/2005, o artigo que explicita a recuperação da participação do Estado boliviano na cadeia

produtiva da energia:

Artículo 6º (refundación de Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos – YPFB). Se

refunda Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), recuperando la propiedad

estatal de las acciones de los bolivianos en las empresas petroleras capitalizadas, de manera

que esta Empresa Estatal pueda participar en toda la cadena productiva de los hidrocarburos,

reestructurando los Fondos de Capitalización colectiva y garantizando el financiamiento del

Bonosol.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

O processo de revisão das reformas na Bolívia, representado pela nacionalização dos

hidrocarbonetos, é, contudo, o ponto culminante de uma trajetória em que se manifestam claramente

as contradições intrínsecas do projeto neoliberal. Entre 2000 e 2005, diante da dissonância entre o

discurso liberal e seus resultados, movimentos sociais, em cuja vanguarda estavam grupos étnicos e

de culturas tradicionais, protagonizaram conflitos políticos de grandes dimensões, produzindo

eventos marcantes denominados “Guerra da Água” e “Guerra do Gás”. Em suma, posicionavam-se

criticamente ao uso e à posse da água e do gás natural como mercadorias e o saldo de sua

mobilização constitui importante vitória dos movimentos sociais, haja vista seu sucesso em se

contrapor à perspectiva de comercialização dos bens públicos (ROCHA, 2007).

Nesse sentido a reversão das políticas neoliberais cumpriu um script algo inédito neste país.

Tendo uma história marcada pela sucessão de golpes militares ao longo do período republicano, a

Bolívia foi palco, agora, de intensa sublevação social. Após a derrubada dos presidentes Gonzalo

Sánchez de Lozada e Carlos Mesa em 2003 e 2005, os movimentos sociais alçaram à presidência,

em eleições realizadas neste último ano, o líder cocaleiro aimará Evo Morales. Cumprindo

promessas eleitorais, em 1º de maio de 2006, o presidente Morales baixou o Decreto Supremo de

Nacionalização dos Hidrocarbonetos (DS 28.701) em que, pelo Art. 6º, dispôs a transferência de

propriedade para a YPFB, a título gratuito, das ações dos cidadãos bolivianos que formavam parte

do Fundo de Capitalização Coletiva (FCC) nas empresas capitalizadas Chaco S.A., Andina S.A. e

Transredes S.A., acionistas do trecho boliviano do gasoduto Gasbol, assegurando, dessa forma, a

maioria acionária para o Estado de algumas empresas que haviam sido “capitalizadas”

(privatizadas) na gestão de Sánchez de Lozada. Pelo mesmo decreto, igualmente, estabeleceu o

controle estatal sobre refinarias além de alterar as condições de exploração e produção de

hidrocarbonetos e a tributação incidente12

. Ancorado no art. 139 da Constituição Política do Estado

Boliviano13

, o decreto de nacionalização, chamado de “Heróis do Chaco”, estipulava que os

contratos de concessão só poderiam conter cláusulas que facultassem de forma limitada a operação

de risco compartilhado nas atividades de exploração, comercialização e transporte dos

12

Campos cuja produção ascendesse a mais de 100 milhões de pés cúbicos diários de gás passariam a contribuir com

um somatório de impostos e outros direitos da ordem de 82%. 13

“As jazidas de hidrocarbonetos, qualquer que seja o estado em que se encontrem ou a forma que apresentem, são de

domínio direto, inalienável e imprescritível do Estado. Nenhuma concessão ou contrato poderá conferir a propriedade

das jazidas de hidrocarbonetos. A exploração, explotação, comercialização e transporte dos hidrocarbonetos e de seus

derivados, cabem ao Estado. Este direito será exercido mediante entidades autárquicas ou através de concessões ou

contratos por tempo limitado, a sociedades mistas de operação conjunta ou a pessoas de direito privado, conforme a

lei.”

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

hidrocarbonetos e de seus derivados, com a entrega dos resultados da operação à YPFB, vedando,

portanto, o exercício privado de disposição dos hidrocarbonetos e de seus derivados.

Tendo em vista a magnitude dos investimentos efetivados pela Petrobrás no decorrer da

década anterior, seu caráter de vetor da política de aproximação com os países vizinhos e o impacto,

sobre o mercado consumidor brasileiro, das medidas do decreto de nacionalização boliviano, o

conflito que então se originou ganharia, necessariamente, contornos de crise diplomática.

Diferentemente do que apontava a opinião pública brasileira, não houve dissonância entre a

posição da Petrobras e a do governo brasileiro. Dentro do processo de negociação, mas no plano das

relações bilaterais, o governo brasileiro trabalhou para manter fluidas as relações entre os dois

países. No plano das negociações empresariais, a Petrobras buscou defender suas posições com

mais firmeza diante do Ministério de Hidrocarbonetos e da YPFB. Tendo se estendido até o último

dia do prazo de 180 dias, as negociações chegaram a bom termo, sendo firmados contratos de

produção compartilhada que, em princípio, atendiam a ambas as partes, afinal permitiam maior

participação do governo boliviano nas receitas dos campos produtores ao passo que preservavam as

condições para remuneração de novos investimentos que viessem a ser realizados pela estatal

brasileira.

Para os nossos propósitos neste texto, recobre-se de especial importância a natureza da

atuação diplomática brasileira durante as negociações, a refletir o esforço de construção de um

projeto de integração regional constituído sobre novas bases. Durante todo o pedregoso caminho, o

Brasil manifestou apoio irrestrito às decisões soberanas da Bolívia e ao processo democrático que as

inspiravam14

.

IV.

Como vimos, no decurso da crise do modelo liberal, os países da região passaram a dispor

de graus maiores de liberdade para empreender suas políticas. Num contexto de desafio à

14

Em setembro de 2008, em reunião da UNASUL, no Chile, convocada para discutir o agravamento dos distúrbios

sociais bolivianos, o governo brasileiro novamente reiterou seu apoio ao processo democrático na Bolívia. O Presidente

Lula, em sua fala, buscou reforçar dois conceitos: o respeito às urnas bolivianas, que elegeram Evo Morales e o

mantiveram no cargo em referendo, e o aprofundamento de uma negociação franca entre Evo e seus opositores. A

Declaração de La Moneda, documento resultante da reunião, reafirmou, igualmente, o respeito à soberania, à não

ingerência em assuntos internos, à democracia e suas instituições e aos direitos humanos, psosições consoante com a

prioridade dada a América do Sul na agenda externa do país no Governo Lula e, em perspectiva histórica, com a

trajetória da política externa brasileira (VIGEVANI, 2014; MENEZES, 2013).

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

hegemonia dos EUA, redobrou-se a capacidade de ação dos Estados nacionais, redefinindo-se seus

espaços e os graus de autoridade no exercício de seu poder regulador. Assim colocada, a noção de

regulação comporta dois entendimentos distintos, de um lado, assumida como intervenção do

Estado no domínio econômico, o relançamento de estratégias de viés desenvolvimentista nas áreas

de comércio e investimento e de outro lado, entendida como expressão do exercício legítimo da

soberania na última década, a ampliação da margem de regulação dos Estados. A maior liberdade

para administrar suas regras nacionais passava, necessariamente, pelo bloqueio, ainda que parcial,

da influência emanada dos centros de poder do sistema internacional. (STRANGE, 1997, p. 184, p.

189). Desta forma, o resgate da autonomia na execução de políticas nacionais, como as que tiveram

lugar no setor de energia, não pode ser compreendido senão como parte de um movimento maior de

reconstituição, ainda em curso, da ordem normativa internacional pós-liberal15

.

Neste sentido, o desenrolar da crise energética apontava claramente para a constituição de

uma nova convenção acerca dos instrumentos legítimos de promoção do desenvolvimento. Diante

da importância do setor de energia, redefinia-se o papel que caberia ao Estado em sua tarefa de

coordená-lo. As mudanças normativas promovidas na Bolívia buscaram resgatar um importante

papel para o Estado na gestão do investimento direto estrangeiro, com vistas à redistribuição dos

frutos da exploração de seus recursos naturais. De outra parte, a sustentação no plano regional das

aspirações bolivianas reflete a rejeição da visão de integração setorial inspirado nos princípios do

livre comércio e limitado à promoção dos fluxos de intercâmbio de energia, posto que instituía

como linhas mestras a preocupação com a segurança energética regional, mas sujeitando as

prerrogativas do direito de propriedade àquelas da defesa do interesse público.

Por esse prisma, os entendimentos alcançados na I Cúpula Energética Sul-americana,

ocorrida em abril de 2007 na ilha venezuelana de Margarita, afiguravam-se uma resposta aos

conflitos energéticos que, nos anos anteriores, opunham os países da região, traduzindo-se num

esforço conjunto dos Estados em busca de graus maiores de autoridade no exercício de sua

soberania. Ratificando os princípios orientadores da integração energética regional indicados na

Declaração da I Reunião de Ministros de Energia da Comunidade Sul-Americana de Nações16

e na

15

Neste sentido, conforme Silva (2006, 104), o fracasso, em 2003, da Conferência de Cancún da Organização Mundial

de Comércio, em que os impasses da discussão sobre regulação multilateral de investimento gravitaram em torno da

noção de “espaço político”, prenunciava a trincheira em que se consolidaria a defesa, pelos países em desenvolvimento,

de suas prerrogativas na determinação de objetivos de desenvolvimento. 16

De 26 de setembro de 2005, em Caracas, Venezuela.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Declaração Presidencial sobre Integração Energética Sul-Americana17

, o encontro na ilha

venezuelana produziu mais do declarações genéricas bem intencionadas, como as de que a

integração energética “deve ser usada como um instrumento importante para promover o

desenvolvimento econômico e social e erradicação da pobreza”, e deve também “envolver

principalmente o Estado, a sociedade e as empresas relacionadas com o setor da energia”.

O debate sobre o processo de regulação do setor, nos marcos da integração regional, buscou

enfrentar diretamente o problema do conflito de perspectivas entre os países em desenvolvimento,

hospedeiros do investimento externo direto (IED), que procuram assegurar a autonomia na

definição das políticas de desenvolvimento, e aquela dos países desenvolvidos, exportadores de

capital, cuja proposição visa assegurar mercados seguros a suas empresas. A Declaração de

Caracas, referência pretérita do encontro de Margarita, estipulava, a sua vez, “o direito soberano a

estabelecer os critérios que assegurem o desenvolvimento sustentado na utilização dos recursos

naturais renováveis e não-renováveis, assim como a administrar a taxa de exploração dos recursos

naturais não-renováveis” e “o respeito às formas de propriedade que cada Estado adota para o

desenvolvimento de seus recursos energéticos”. O encontro de cúpula de 2007 avançou

substantivamente ao propor a criação do Conselho Energético da América do Sul, composto pelos

Ministros da Energia dos países envolvidos. Sua atribuição abrangeria a elaboração de uma

estratégia continental, um plano de ação e uma proposta concreta para estabelecer um Tratado

Energético Sul-Americano. Nos termos deste tratado é que, eventualmente, encontraríamos a recusa

das premissas liberais que inspiraram o Tratado da Carta de Energia, modelo de integração

energética que tem sido utilizada, um tanto irrefletidamente, como padrão a ser replicado18

.

No mesmo contexto político, ocorre a saída da Bolívia do sistema representado pelo ICSID,

tribunal de arbitragem do Banco Mundial. Em maio de 2007, o Banco Mundial recebeu documento

boliviano informando a renúncia ao ICSID e a sua saída do acordo, ao qual havia aderido 1994.

Diante da publicidade do gesto político, os meios de comunicação e organizações civis se

envolveram na discussão das causas e consequências desta retirada (JIMENEZ, 2010, p. 249).

Muito embora não tivesse contra si elevado número de demandas, esse rompimento igualmente

guardou conteúdo simbólico importante. Se nos anos 90 houve crescimento no uso de BITs

17

Assinada no dia 9 de dezembro de 2006, em Cochabamba, Bolívia. 18

Típico tratado que recusa o padrão dos acordos de comércio internacional ao tornar os governos diretamente

accountables a tribunais internacionais para importantes obrigações nele especificadas, estendendo, portanto, o conceito

de responsabilidade estatal.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

(Bilateral Investment Treaties), com ênfase na segurança e procedimentos de resolução de disputas

(WAELDE, s/d), atualmente, momento chamado pós-liberal, tal gesto demarcaria uma inflexão na

regulação de investimento19

. Refletiria, enfim, o repúdio ao viés pró-business do órgão e indicando

a necessidade de um caminho alternativo no tratamento do tema do investimento estrangeiro.

NOTAS FINAIS

Procuramos neste trabalho oferecer uma análise da reintrodução, pelos países sul-

americanos em destaque, de institutos normativos clássicos na persecução de políticas de

desenvolvimento. Buscamos explicitar, por meio de uma abordagem que permitisse identificar os

fatores históricos bem como as influências da dimensão regional na compreensão das ações dos

atores domésticos, que o alcance das políticas nacionais de desenvolvimento segue condicionado

pela legitimidade que logra obter nos tabuleiros da política internacional.

Em contraposição à perspectiva desenvolvimentista que marcara as décadas anteriores, no

quarto final do século XX, tomava forma uma “nova” convenção do desenvolvimento. No setor de

energia, em particular, transitava-se do reconhecimento de seu caráter estratégico, manifesto nas

diversas formas de intervenção de traço desenvolvimentista, a uma orientação que se amparava na

promoção da participação privada e na introdução da concorrência como vetores da competitividade

e do desenvolvimento, cujo traço peculiar era a crença no poder auto-regulatório das forças de

mercado. A integração energética que se promoveu na mesma quadra histórica não poderia deixar

de refletir estes mesmos princípios.

Acordos na área energética podem contribuir decisivamente na constituição de bases para

uma integração mais profunda. Contudo, há que se considerar o princípio que os orienta. A

perspectiva da integração esteve, pois, orientada para a construção de um mercado regional nos

moldes liberais, natureza posta em evidência pela crise do gás boliviano. No rescaldo da crise, era

imperativo extirpar a rationale privada que norteara as decisões de investimento no setor, bem

como assegurar o controle sobre os ganhos decorrentes das atividades de exploração dos recursos

naturais energéticos, ela própria sujeita à mesma lógica.

19

Uma inflexão nas politicas de regulação de investimento também se verificou nos países desenvolvidos, em

particular nos Estados Unidos, com a securitização do investimento externo direto, chamado “protecionismo de

investimento”, dirigido particularmente ás fusões e aquisições nos setores classificados como “infraestrutura crítica”

monitorados pelo Committee on Foreign Direct Investment on United States (CFIUS) (SILVA, 2011)

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

O desenlace do conflito envolvendo o Brasil e a Bolívia quando da nacionalização dos

hidrocarbonetos, a sua vez, demonstrou que, na contramão da perspectiva de juridicização

(KRAJEWSKI, 2012), a solução diplomática passava a prevalecer (SHIHATA, 1994). O apoio do

governo brasileiro, manifestado em mais de uma ocasião e instância, à prática da democracia na

Bolívia, em que pese seus efeitos sobre os direitos de propriedade, é apenas um dos reflexos de uma

nova orientação que conecta a necessidade de proteção aos direitos dos investidores e a necessidade

dos países em desenvolvimento por espaço político que lhes assegure o desenvolvimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EVANS, Peter. Embedded Autonomy, States & Industrial Transformation. Princeton

University Press, 1995.

FREIRE, Alexandre de Figueiredo. Análise comparativa da evolução política e institucional da

indústria de petróleo na América Latina. Dissertação (Mestrado em Ciências do Planejamento

Energético) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2001.

FUSER, Igor. Os recursos energéticos e as teorias das Relações Internacionais. In: HAGE, Jose

Alexandre. A energia, a política internacional e o Brasil. São Paulo: Instituto Memória, 2008.

GHIRARDI, André Garcez. Estabilidade de contratos na indústria de energia: uma visão sul-

americana. Lugar Comum, n. 27, pp. 151-185. Rio de Janeiro: Laboratório Território e

Comunicação – UFRJ, 2009.

JIMÉNEZ, Sonia Rodríguez. “El Ciadi frente a Argentina, México, Ecuador y Bolívia. Una

actualización. In: JIMÉNEZ, S. R.; WÖSS, H. (coord.) Arbitraje en Materia de Inversiones.

México: Instituto de Investigaciones. Jurídicas – UNAM, 2010.

KRAJEWSKI, Markus. The Impact of International Investment Agreements on Energy Regulation.

In: HERRMANN, C.; TERHECHTE, J.P. European Yearbook of International Economic Law

(EYIEL), Berlim, vol. 3, 2012, pp. 343-369.

MENEZES, Roberto Goulart. Crise na integração sul-americana: o governo Lula da Silva e os casos

de Itaipu e do gás boliviano.In: SALATINI, R. PRADO, H. S. A. (Org.) Pacifismo e cooperação

nas relações internacionais: teoria e prática. Dourados-MS: Ed. UFGD, 2013, pp. 125-150

ROCHA. Maurício Santoro. A outra volta do bumerangue: Estado, Movimentos Sociais e Recursos

Naturais na Bolívia (1952 – 2006). In: Bolívia: de 1952 ao século XXI. Brasília: Fundação

Alexandre de Gusmão / Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2007.

SHIHATA, Ibrahim. “Towards a greater depoliticization of investment disputes: the roles of

ICSID and MIGA”. In: FATOUROS, A. A. (ed.) Transnational corporations: codes of conduct.

New York: Routledge, 1994. pp. 461-492

SILVA, Edna Aparecida da. “Leilão de Libra: as exigências de conteúdo local”. Revista D Marília,

n. 41dez./fev.2014, p. 52.

SILVA, Edna Aparecida da. “A política de investimento estrangeiro dos Estados Unidos: conflito

de princípios da reforma do CFIUS”. Revista Tempo do Mundo, v. 3, n. 1, abril 2011, pp. 31-68

SILVA, Edna Aparecida da. “O investimento nas negociações comerciais internacionais: entre

estratégias e princípios”. Cena Internacional, v. 08, n. 02, 2006. pp.84-123.

SMYTHE, Elizabeth. Your place or mine? States, international organizations and the investment

rules. Transnational corporations, 1998, v. 7, n. 3, pp. 85-120.

I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

SORNARAJAH, Muthucumaraswamy The international law on foreign investment. Cambridge:

Cambridge University Press, 1994.

STRANGE, Susan. “The future of global capitalism; or, will divergence persist forever?” in

CROUCH, C.; STREECK, W. (eds.) Political economy of modern capitalism – mapping

convergence and diversity. London: Sage, 1997, pp. 181-191.

VADELL, Javier, ZAHREDDINE, Danny A dinâmica regional na América do sul, o ocaso do

neoliberalismo e as respostas nacionais. 3º Congresso Latino-Americano de Ciência Política –

Democracia e Desigualdades. Campinas, 2006.

VELASCO e CRUZ, Sebastião Carlos. Globalização, democracia e ordem internacional:

ensaios de teoria e história. São Paulo: Ed. Unesp, Campinas: Ed. Unicamp, 2004.

VIGEVANI, Tullo., RAMANZINI, Haroldo. Autonomia, integração e polítia externa brasileira:

Mercosul e Unasul. DADOS Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 57, n. 2, 2014, pp.

517-552

WÄELDE, Thomas W. The role of arbitration in the globalization of energy markets. s/d.

Disponível em: www.dundee.ac.uk/cepmlp/journal/html Acesso em: 20/09/06

YERGIN, Daniel. O petróleo: uma história de ganância, dinheiro e poder. São Paulo: Seritta,

1994.