a pesquisa antropológica com populações urbanas - eunice durham - fichamento
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A pesquisa antropológica com populações urbanas - Fichamento do cap 14 do livro A Dinâmica da Cultura: ensaios de antropologia - Eunice DurhamTRANSCRIPT
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PPGI – ECOLOGIA APLICADA - ESALQ – USP
DISCIPLINA: Questões Ambientais em Antropologia
DOCENTE: Profª. Dra. Maria Elisa de Paula Eduardo Garavello
ALUNA: Mirian Stella Rother DATA: 17 / 01 / 14
FICHAMENTO: A pesquisa antropológica com populações urbanas DURHAM, Eunice R. A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia – Cap. 14
Eunice Durham inicia o capítulo afirmando que a popularidade recente da
antropologia deve-se ao fato de suas pesquisas estarem centrando atualmente em
temas de interesse geral e imediato, do que é familiar e cotidiano nas sociedades
urbanas. Como diz a autora, “uma nova e intrigante etnografia de nós mesmos”. Este
prestígio é surpreendente, visto que a antropologia sempre foi considerada uma
ciência menor, e agora vem ganhando respeito dentre as ciências sociais.
A autora afirma que esse caráter marginal da antropologia no Brasil, e no
mundo, deveu-se ao fato de seu interesse pelas minorias, que sempre estiveram à
margem das correntes políticas e de forças sociais que modelam as transformações
nas sociedades. Assim, atribui o sucesso recente da antropologia, ao fato de estarem
emergindo dessas minorias desprivilegiadas novos atores políticos, que organizam a
movimentos e exigem a participação na vida nacional, da qual estiveram
historicamente excluídos, o que tornou os estudos da antropologia, que têm tradição
na pesquisa junto dessas populações, politicamente relevantes.
Por outro lado, os esquemas globalizadores com os quais a sociologia e a ciência
política interpretaram a sociedade brasileira no passado, têm se mostrado inapropriados.
Estão numa crise explicativa que está provocando uma revisão de suas premissas teóricas e
metodológicas. Neste sentido, os trabalhos descritivos e a capacidade de detectar perspectivas
divergentes e interpretações alternativas, próprias da antropologia, tornaram-se um material
fértil para a reflexão sobre a realidade social.
Por outro lado, à medida que os temas e populações estudadas pela antropologia se
politizam, a reflexão antropológica vem dando sinais de estar desarmada para entender a nova
posição do seu objeto de estudo nesta sociedade em constantes transformações.
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O que se segue, é uma reflexão sobre a produção antropológica recente do Brasil,
principalmente com as pesquisas que envolvem as populações urbanas.
Durham nos coloca que a antropologia urbana que se desenvolveu no Brasil, é
diferente da que foi iniciada pela Escola de Chicago, que tratava do fenômeno urbano em si
mesmo, ou seja, uma antropologia da cidade, que é o objeto da pesquisa. Aqui, se faz a
antropologia na cidade, voltada ao estudo das populações que nela vivem, portanto a cidade
passa a ser apenas o lugar da pesquisa.
Esta tradição inicia-se com Nina Rodrigues, autora de estudos sobre o negro, o
mestiço, criminalidade e marginalidade que assolam as populações urbanas menos
favorecidas. O conceito-chave desta interpretação é a raça.
Nestes estudos, as populações urbanas são tomadas como objeto de estudo apenas
como exemplos relevantes para a descrição ou interpretação da sociedade brasileira.
Com Arthur Ramos permanecem os mesmos focos, porém com a substituição lenta
das interpretações raciais pelas culturais. Na mesma linha segue Gilberto Freyre, agora com os
elementos raciais subordinados à elaboração cultural, numa ótica regional e de classe para
caracterizar a cultura brasileira no seu conjunto.
Sob a égide do funcionalismo, o tradicional estudo do negro transformou-se na
pesquisa sobre relações raciais. Surgiram então pesquisas sobre as relações de trabalho no
campo e seu perfil exploratório, introduziram-se novos problemas como a imigração
estrangeira no sul do país, mas o centro do movimento era os estudos de comunidade, que ao
integrar o rural e o urbano, permitiam conceber uma projeção da sociedade em seu conjunto.
Neste contexto, ou seja, investigando as comunidades como “pedaços da sociedade”,
era possível utilizar os métodos da observação participante, histórias de vida, entrevistas entre
outros para a formulação de um quadro multidimensional da vida social e o estudo das
manifestações culturais integradas ao seu substrato socioeconômico.
A autora entende que neste momento, teoria, métodos e técnicas de investigação
estavam completamente integrados e internamente coerentes. O motivo de tal coerência
tomando por base o funcionalismo, que foi desenvolvido para o estudo das sociedades tribais
consiste em construir sistemas a partir de uma realidade aparentemente fragmentada e
destituída de significação, que assim parece ao observador por ser externo a ela. A construção
de sistemas coerentes na antropologia deve corresponder a uma total integração realizada
pelos membros da sociedade portadores da cultura, através de processos, em sua grande
maioria, inconscientes. Esse tipo de pesquisa pressupõe uma noção de totalidade integrada,
cuja reconstrução deve ser o objeto do pesquisador.
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A construção pelo antropólogo de uma “teoria nativa” da sociedade em questão é
parte fundamental deste procedimento, através da descoberta e análise de categorias
fundamentais por meio das quais os “nativos” operam e reproduzem a sua sociedade. As
diferentes categorias bem como suas articulações internas são estabelecidas em função de sua
relevância (funcional) para a reprodução de um sistema de relações sociais.
Deste modo, “sociedade” e “cultura” aparecem como conceitos gêmeos, e
correspondem à forma e conteúdo de uma mesma realidade.
O culturalismo americano e o grupo filiado a Malinowski na Inglaterra tomaram
outro caminho. O conceito de sociedade não é utilizado como armação estruturante, estando
incluído no conceito de cultura. Os fenômenos culturais encontram-se dispersos e sem
critérios de relevância diferencial, problema que Malinowski tentou resolver através do
conceito de instituição, que integraria essa realidade dispersa. Já a antropologia americana
procurou soluções diferentes: de um lado, procurou desenvolver uma hierarquia dos traços, o
que conduziu a classificações empíricas sem valor generalizante; e por outro, o historicismo
conduziu a uma integração no nível de significados buscando padrões que incluíssem aqueles
que pudessem ser detectados no nível da conduta. Em ambos os casos, a integração buscada
levou a enfatizar a especificidade e a unicidade da cada cultura.
Nas diferentes vertentes do funcionalismo, a comunidade mantém com a sociedade
uma relação metonímica (a parte pelo todo, inclusive o indivíduo pela parte), e é por isso
extremamente relevante para o entendimento da sociedade ou da cultura, mesmo que o
conhecimento produzido seja considerado incompleto.
No Brasil, as críticas aos estudos de comunidade e ao funcionalismo positivista, feitas
por sociólogos e antropólogos, deveu-se ao pressuposto da integração cultural ou social e seu
efeito (supostamente) inibidor no tratamento do conflito social, incapacidade de aprender a
mudança e sua consequente visão imobilista (por isso conservadora) da realidade social. O
problema a ser posto em questão não seria a prática de um funcionalismo ingênuo, mas o de
confundir, através da vinculação aos métodos de pesquisa etnográfica, o modo como uma
sociedade se representa com a explicação sobre o modo como ela se constitui e se reproduz.
Paralelamente, a relação sujeito-objeto não é questionada, e a construção do investigador é
tomada como totalmente correspondente ao comportamento e representações dos grupos
estudados.
Na sociologia, o abandono do funcionalismo é atribuído à aproximação do marxismo.
Na antropologia, foi diferente, pois o marxismo é privado de uma teoria do simbolismo e
voltado aos problemas macroestruturais das sociedades capitalistas, adequados apenas
quando captados na sua dimensão histórica. O problema dos antropólogos que caminharam
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em direção ao marxismo, era integrar os métodos funcionalistas com uma teoria explicativa,
pela qual fosse possível interpretar resultados valendo-se de conceitos como “modo de
produção”, “relações de trabalho” e “luta de classes”.
A autora coloca que boa parte destas pesquisas acabavam por mostrar a
funcionalidade de certas instituições, como por exemplo, a família para a acumulação
capitalista. Sociólogos parecem também incorrer neste “hibridismo estranho”.
Os historiadores também têm dificuldades de integrar pesquisas detalhadas em
grandes esquemas explicativos como o marxismo. Entretanto, menos que os antropólogos,
pois costumam remeter as investigações parciais a séries históricas que fornecem padrões
explicativos. Os antropólogos já não dispõem de parâmetros análogos e se veem obrigados a
aventurar-se em outras disciplinas, que além de dominarem mal, são inadequadas às
perspectivas de seu trabalho de campo, produzindo desta forma, um conhecimento
fragmentado, cuja relevância poderá ser ou não incorporada por outras ciências sociais.
A outra perspectiva que se abriu aos antropólogos foi o estruturalismo, que
recolocou a importância da dimensão simbólica da vida social. Entretanto, mesmo o
estruturalismo se orienta em rumo diverso daquele que organiza o trabalho de campo, cujo
rigor formal sacrifica o particularismo e a multidimensionalidade revelados pela pesquisa
empírica voltada para grupos em ação.
Durham apresenta então, o que chama de “deslizes semânticos”, que são cometidos
por antropólogos na tentativa de contornar (não de enfrentar) problemas metodológicos de
difícil solução.
Na produção recente de pesquisas antropológicas nas cidades, nota-se a
predominância de estudos detalhados de grupos, categorias ou situações sociais delimitadas,
com ampla utilização da observação participante. O primeiro deslize apontado pela autora
reside no fato de estar havendo uma valorização crescente da subjetividade do observador, e
ao mesmo tempo, um esforço consciente de identificação do antropólogo com o grupo
estudado, privilegiando a participação, sendo que a técnica inicialmente enfatiza a observação
objetiva e ampla, e a participação era apenas uma condição necessária para permitir que a
observação acontecesse.
A questão da identificação subjetiva possui raízes no terreno político. Esta politização
crescente de nosso universo social incide na situação sobre a pesquisa de duas formas: por um
lado, a crítica ao isolamento político da academia convoca os cientistas ao engajamento
político e à responsabilidade social, por outro lado, os próprios objetos da pesquisa, cobram
do pesquisador essa identificação política e reivindicam o retorno dos resultados. Os
antropólogos acabam por se empenhar numa aplicação imediata dos resultados de sua
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pesquisa, e quando não conseguem, tendem a compensar o grupo social estudado com uma
ação que o beneficie. É o que a autora descreve como passagem da observação participante à
participação observante. Se existem aspectos positivos nesta mudança na natureza do
trabalho de campo, também existem problemas com a reflexão teórica e metodológica, que
têm se mostrado omissa aos problemas epistemológicos envolvidos.
Neste sentido, os deslizes no campo conceitual estabelecem desvios da prática de
pesquisa. Ao examinar a produção antropológica com influências marxistas mais recentes,
nota-se a ausência do conceito de classe. Os recortes empíricos realizados pelos antropólogos
mostram a tendência de isolar grupos sociais cuja posição de classe não é nítida e nem sequer
relevante. Ressalva feita a alguns poucos casos como o dos estudos voltados exclusivamente
aos operários. Nos demais, a relevância dos resultados para a problemática das classes não é
direta e depende de uma reflexão teórica que se processa em outro nível, e a partir de outros
dados.
Por isto, termos clássicos da conceituação marxista, como “burguesia” e
“proletariado” têm sido substituídos por termos descritivos como “classes populares” e
“classes trabalhadoras”, ou seja, preserva-se uma referência à problemática das classes sem
entretanto enfrentar a questão da relevância específica dos resultados da pesquisa para esta
problemática.
Atualmente, com a crise do marxismo, a problemática da classe foi deixada de lado. A
essa ausência foram somadas conceitos como ideologia, identidade, pessoa, indivíduo,
individualismo, hierarquia, holismo, e raramente ethos, o que denota a valorização da
dimensão simbólica de tendência culturalista. Exceção feita ao conceito de hierarquia, ligado
ao conceito de status, que remete diretamente a problemática sociológica da estratificação
social. Entretanto, trata-se de uma exceção aparente, pois o que costuma ser focado por meio
do conceito é a presença da hierarquia como valor nas representações coletivas, num outro
claro deslizamento da conceituação sociológica para uma conotação culturalista.
Semelhante ao que acontece com o conceito de ideologia. O termo de clara
inspiração marxista liga-se à oposição entre infraestrutura e superestrutura e à questão da
determinação em última instância pelo econômico. Já na antropologia a conceito se
despolitiza, e é empregado simplesmente como sistema de ideias e valores, perdendo a
complexidade teórica que lhe é própria.
A utilização do conceito de pessoa também acontece dentro de um campo
derrapante, como descreve a autora. Toda a antropologia brasileira tende a adotar esta
definição mais culturalista de Gertz, e aparece como uma categoria universal, e caberia ao
antropólogo identificar o modo pelo qual ela é constituída em cada sociedade. Entretanto, o
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conceito pode ser lido às avessas: ao invés do modo pelo qual a sociedade constrói sua versão
de ser humano, ler como as concepções do ser humano são reveladoras da natureza da cultura
daquela sociedade, o que neste caso transforma a pessoa numa metáfora da sociedade, o que
neste caso implica num outro deslizamento: um reducionismo psicologizante no qual olhando
a pessoa, vê-se toda a sociedade.
Já o termo indivíduo, carrega duas conotações: a de seres humanos individualizados,
organismos biológicos que são suportes empíricos da sociedade, e a outra, a que carrega a
noção individualista que permeia nossa concepção de pessoa. Forma-se aí novo desvio
conceitual. A oposição indivíduo-pessoa passa a significar a oposição entre individualismo e
todas as outras formas de elaboração do ser humano, em especial na suas concepções
hierárquicas.
Deste modo o problema do invidualismo traspassa toda a problemática da pessoa,
fazendo que o conceito seja utilizado de formas não só diferentes, mas antagônicas.
O conceito do individualismo tem origem na ciência política e está ligado à análise do
liberalismo político e econômico. Seu campo semântico inclui os conceitos de igualdade e
liberdade política e se coloca no desenvolvimento da cidadania na sociedade de classes.
Entretanto o conceito de individualismo penetrou na antropologia brasileira pelas mãos de
Louis Dumont e não pela ciência política, ou pela leitura do Homo hierarchicus , obra na qual o
individualismo é utilizado para caracterizar a sociedade ocidental moderna como recurso
contrastivo que tem por objeto iluminar a sociedade de castas na Índia. Na obra de Dumont, o
efeito de comparação contrastiva sofre uma redução. Toda a questão da oposição entre
hierarquia e igualitarismo desaparece. Agora, utiliza-se na investigação de uma sociedade
ocidental moderna um conceito de individualismo desistoricisado e despolitizado. O conceito
se culturalizou e corre-se o risco, ao empregá-lo, de criar uma visão homogênia da sociedade
brasileira, na qual valores culturais opostos (individualismo-hierarquia) são considerados
equivalentes.
Outro conceito tem ganhado muita popularidade: o de identidade. O conceito de
identidade étnica como identidade grupal contrastiva é construído no contexto das relações e
conflitos intergrupais. Deslocado desta característica contrastiva, passa a ser concebido apenas
como uma propriedade do grupo projetada na pessoa. Deste modo, através do deslize
semântico, o estudo de identidade acaba por se sobrepor às análises efetuadas com o conceito
de pessoa, e enfatizar as dimensões psicológica e cultural, em detrimento da política.
Finalmente a autora chega a uma conclusão que classifica como desconcertante: a de
que ao mesmo tempo em que os antropólogos se politizam na prática de campo, despolitizam
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os conceitos com os quais operam projetando-os no campo não histórico da cultura, como
forma de evitar o enfrentamento da problemática social e política que neles está contida.
Os “deslizes semânticos” apontados como uma característica da produção
antropológica recente indicam a procura de novos caminhos a partir de uma alteração no
significado de conceitos tradicionais. Seria o primeiro passo para uma construção teórica mais
adequada aos problemas que a antropologia está estudando, finaliza Durham.