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Diálogos Latinoamericanos Uma leitura antropológica de Jorge Amado: dinâmicas e representações da identidade nacional Ilana Seltzer Goldstein* 1 - Introdução: Antropologia, literatura e identidade nacional A Antropologia contemporânea, a partir de autores como Marcus & Fisher (1986) e Georges Balandier (1985), vem sendo "repatriada", passando a se ocupar também da sociedade do antropólogo, seja compreendendo-a e criticando-a à luz de outras culturas, seja para dar conta de suas alteridades e ressignificações internas. Ademais, Clifford Geertz, em "Blurred Genres" (1983), apontou a tendência atual de as diversas disciplinas emprestarem idéias e métodos umas às outras, tornando fluidas suas fronteiras. É dessa perspectiva, de uma antropologia aberta à interdisciplinaridade e que reflete sobre a sociedade do próprio antropólogo, que procuro estabelecer interfaces da Antropologia com a Literatura e a Crítica Literária. Na dissertação de Mestrado 1 que serviu de ponto de partida para o presente artigo, analisei representações do Brasil e dos brasileiros no discurso do escritor baiano Jorge Amado (1912 - 2001). Pois romances, documentos e outras representações escritas são maneiras de armazenar e perpetuar informação e memória, formando um consenso cultural amplo. Gellner (1983) já descreveu como a escrita e a leitura são a possibilidade de universalizar uma cultura e um idioma, permitindo atingir a padronização necessária para o fortalecimento da idéia de nação 2 . Jorge Amado parece intuir essa potencialidade da escrita, tendo declarado atribuir o sucesso de seus livros à "qualidade brasileira e a estar ao lado do povo" (Lispector,1975: 13). Afirmou também que "a literatura brasileira continua produzindo nossa identidade(...)" (De Franceschi,1997: 55/7). De maneira geral, os escritos e pronunciamentos de Jorge Amado fazem referência – com maior ou menor rigor – à formação histórica do país, à mestiçagem bio-cultural e às "características" do brasileiro. A região da Bahia – em todas as suas facetas, como a paisagem marítima, o cotidiano, a pobreza, as festas, a comida, a capoeira e os cultos afro-

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Diálogos Latinoamericanos

Uma leitura antropológica de Jorge Amado:dinâmicas e representações da identidade

nacional

Ilana Seltzer Goldstein*

1 - Introdução: Antropologia, literatura e identidade nacional

A Antropologia contemporânea, a partir de autores como Marcus &Fisher (1986) e Georges Balandier (1985), vem sendo "repatriada",passando a se ocupar também da sociedade do antropólogo, sejacompreendendo-a e criticando-a à luz de outras culturas, seja para dar contade suas alteridades e ressignificações internas. Ademais, Clifford Geertz,em "Blurred Genres" (1983), apontou a tendência atual de as diversasdisciplinas emprestarem idéias e métodos umas às outras, tornando fluidassuas fronteiras. É dessa perspectiva, de uma antropologia aberta àinterdisciplinaridade e que reflete sobre a sociedade do próprioantropólogo, que procuro estabelecer interfaces da Antropologia com aLiteratura e a Crítica Literária.

Na dissertação de Mestrado1 que serviu de ponto de partida para opresente artigo, analisei representações do Brasil e dos brasileiros nodiscurso do escritor baiano Jorge Amado (1912 - 2001). Pois romances,documentos e outras representações escritas são maneiras de armazenar eperpetuar informação e memória, formando um consenso cultural amplo.Gellner (1983) já descreveu como a escrita e a leitura são a possibilidade deuniversalizar uma cultura e um idioma, permitindo atingir a padronizaçãonecessária para o fortalecimento da idéia de nação2. Jorge Amado pareceintuir essa potencialidade da escrita, tendo declarado atribuir o sucesso deseus livros à "qualidade brasileira e a estar ao lado do povo"(Lispector,1975: 13). Afirmou também que "a literatura brasileiracontinua produzindo nossa identidade(...)" (De Franceschi,1997: 55/7).

De maneira geral, os escritos e pronunciamentos de Jorge Amadofazem referência – com maior ou menor rigor – à formação histórica dopaís, à mestiçagem bio-cultural e às "características" do brasileiro. A regiãoda Bahia – em todas as suas facetas, como a paisagem marítima, ocotidiano, a pobreza, as festas, a comida, a capoeira e os cultos afro-

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brasileiros – fornece a moldura para sua criação. Grosso modo, narepresentação que Jorge Amado constrói do Brasil habita a crença de que,entre nossas virtudes, estão: a grande mestiçagem cultural e biológica entreíndios, africanos e europeus; a exaltação dos cinco sentidos e dos prazeressensuais; o amor à festa e a alegria de viver3; a tolerância racial, asolidariedade; e, finalmente, a excepcional riqueza da cultura popularbrasileira, na música, no artesanato, na culinária, nas trovas populares.

Uma anedota serve como ilustração das perplexidades que uma talpesquisa, combinando etnografia e análise de textos, pode gerar, chegandoa confundir e deixar incerto o pesquisador: quando rumava de táxi para acasa do escritor baiano, a fim de entrevistá-lo, em maio de 1997, omotorista perguntou para onde eu desejava ir e se estava gostando daBahia. Em seguida, disse que "é claro" que sabia onde ficava a casa deJorge Amado, conhecido de todos em Salvador e teceu, durante grandeparte do percurso, comentários sobre como o povo baiano é "alegre","aberto" e "feliz" – conseqüência talvez do fato de que "todo mundo temsangue negro". No final da conversa, declarou que "não tem racismo aqui,só em casos isolados". Não foi muito diferente o que escutei de JorgeAmado em seguida, logo na chegada à bela casa do Rio Vermelho.Considerando que o taxista não era vidente, fica no ar uma questão: seria arepresentação da Bahia/Brasil dos romances mote pessoal do ficcionista oucrença partilhada por setores da população baiana? Talvez as duas coisas aomesmo tempo, já que a representação da identidade mestiça do Brasil e daBahia é, utilizando a terminologia durkheimiana, "efeito" e "causa" aomesmo tempo, produto e produtora da realidade. O escritor selecionaaspectos do que vê e vive para construir uma representação que,posteriormente, pode se tornar consenso e se "materializar", fazendo comque se vejam as coisas à sua imagem e semelhança. Não por acaso, nasmesas redondas realizadas como parte das comemorações do aniversário de80 anos do escritor, um dos temas do programa era exatamente: "JorgeAmado criou a Bahia ou a Bahia criou Jorge Amado?"

De qualquer maneira, a proximidade e a curiosidade pela culturapopular, constantes ao longo dos 70 anos de carreira de Jorge Amado,ganham contornos mais claros com a contextualização de sua geração. Adécada de 30 foi marcada por uma espécie de "redescobrimento do Brasil":a Constituição de 1934 instituiu o ensino elementar obrigatório,aumentando o número de alunos e escolas; floresceram a indústria gráfica,editoras4 e livrarias; foram criadas várias instituições culturais, como oInstituto Nacional do Livro; publicaram-se importantes ensaios histórico-sociológicos, entre eles Raízes do Brasil, de S. B. Holanda (1935). JorgeAmado, que estreou com O País do Carnaval (1931), aparece nos

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compêndios de literatura – e também assim se auto define – dentro do"romance de 30", em que se destacam, não as inovações formais, mas oengajamento político-social e a cultura popular de regiões distantes do eixoRio-São Paulo.5

Também na década de 30 recuperaram-se, dentro da cultura populare mestiça, elementos que diferenciavam, por meio do contraste com outrospaíses, uma identidade brasileira. É emblemático o caso dos cultos decandomblé: antes restritos às camadas marginalizadas da população,começaram a tornar-se, nessa época, atração turística (Fry,1982). O futebol,introduzido no Brasil em 1894 pelo inglês Charles Miller passou, na décadade 30, de hobby aristocrático da elite branca a esporte profissionalpraticado e acompanhado por pessoas de todas as camadas sociais. Nosanos 30 o samba, antes confinado ao subúrbio carioca, conquistou o país.Da mesma forma a capoeira – considerada crime até 1890, por oferecerperigo físico e representar a "barbárie negra" – só foi legalizada em 1937(Reis,1996: 43).

A valorização das tradições e fazeres populares como base de umacultura "genuinamente" nacional, assim como a representação da identidadenacional calcada na mestiçagem, que alimentaram a efervescência dos anos30, são igualmente matéria-prima de Jorge Amado. O candomblé, para oescritor, além de ter tido papel fundamental na resistência dos negros contraa escravidão, "é uma religião alegre, que não esmaga as pessoas; o pecadonão existe" (apud Raillard,1992: 84). O samba é um ícone da alegria e damalandragem desde a juventude do autor: em resenha de 1931, elogia o"lirismo" da "malandragem deliciosa do Rio, malandragem da favela e dossambas" (Amado,1931). Não é por acaso que vários de seus heróis sãocapoeiristas: define a capoeira como "a mais bela luta do mundo"(Amado,1945: 212).

Neste artigo, será traçado em primeiro lugar um perfil de JorgeAmado – não a partir de dados biográficos, mas ressaltando seu trânsitosocial entre elite e camadas populares. Isto é importante, uma vez que oescritor tem como mote "fiz de minha vida e minha obra uma coisa única"(pasta 17, manuscrito 482: 7). Em seguida, serão apresentados exemplos decomo o romancista baiano recria a cultura popular e, também, de como elepróprio é integrado na cultura popular. Por fim, será apontada ainterpenetração entre ficção e realidade em duas direções: de um lado, oescritor se metamorfoseia em uma de suas personagens típicas e, de outrolado, turistas e acadêmicos tentam conhecer o Brasil a partir de seusromances.

2 - Jorge Amado entre o erudito e o popular, entre a elite e o povão

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Aos 88 anos, tendo escrito cerca de 30 livros – traduzidos para 29idiomas – Jorge Amado6 havia vendido mais de 30 milhões de exemplares.Além dos livros – romances, contos, biografias, guias e infanto-juvenis –escreveu uma centena de artigos sobre temas variados. O interessante, natrajetória do escritor baiano, é perceber que o sucesso de mídia e parte dacrítica foi crescendo paralelamente à consagração popular. A título deexemplo, durante a década de 80, ganhou prêmios e condecorações oficiais,como o Prêmio Dag Hammarsk Joed (Portugal), o Prêmio Nestlé deLiteratura Brasileira, o grau de Comendador na França, o Diploma deGratidão da cidade de São Paulo, o diploma "The Hispanic of America"(EUA), entre outros. Simultaneamente, o povo o consagrava "de baixo":várias escolas de samba o escolheram como inspiração. A Vai-Vai de SãoPaulo foi campeã em 1988 com o enredo “Amado Jorge: a história de umaraça brasileira”; o Afoxé Monte Negro encenou “Bahia de Todos osSantos” no carnaval de Salvador e a Império Serrano, no Rio de Janeiro,apresentou o enredo “Jorge Amado - Axé Brasil!”.

Da mesma maneira que a aclamação do escritor, o repertório deJorge Amado é nutrido por dois pólos. Primeiramente, a vivência cotidiananas ruas de Salvador: "os anos da adolescência na liberdade das ruas daBahia, misturado ao povo do cais, dos mercados e feiras, nas rodas decapoeira e nas festas populares (...) foram minha melhor universidade"(manuscrito 482, pasta 17, 1961). Contou, em discurso na AcademiaBrasileira de Letras (id.ibid.), que freqüentara "casas de raparigas" ebotecos, que saíra de saveiro com os pescadores e, antes dos dezoito anos,já conhecera o pai-de-Santo Procópio, que lhe deu seu primeiro título nocandomblé, ogan de Oxóssi.

Paralelamente à familiaridade com a vida popular baiana, Amadodomina etnografias produzidas sobre o candomblé textos científicos sobrefolclore, história e problemas raciais. O pouco conhecido Manoel Querino,autor de A raça africana (1916) e outros estudos sobre culinária ereligiosidade popular na Bahia, inspirou-lhe a personagem Pedro Archanjo,herói do romance Tenda dos milagres (1968). Já o criminalista NinaRodrigues, do início do século, serviu-lhe de base para o vilãopreconceituoso Nilo Argolo, no mesmo livro.7 Pierre Verger, fotógrafo eetnógrafo de origem francesa, era amigo pessoal do escritor e o folcloristaÉdison Carneiro foi companheiro de juventude de Jorge Amado.

Mas, sobretudo, foram as idéias de Gilberto Freyre, autor de CasaGrande e Senzala (1933), que mais influenciaram a representaçãoamadiana do Brasil. Freyre ficou conhecido como um dos responsáveispela formulação do "mito da democracia racial brasileira".8 Ao contrário damaioria dos teóricos raciais da época, que temiam pelo futuro do Brasil,

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Freyre defendia que "a miscigenação, que largamente se praticou aqui,corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme"(Freyre,1958/1933: XXXIV). Jorge Amado considera Gilberto Freyre um"imenso escritor, de curiosidade desmedida (...) sabia tudo do Brasil e tudonos ensinou(...)" (pasta 22, manuscrito 640, 1987).

É como se Amado fosse um divulgador, um vulgarizador científico,que transita entre duas esferas, a do saber erudito e a do saber popular. Talposição intermediária e conciliadora é uma opção claramente admitida porJorge Amado em Navegação de Cabotagem (1992), um "quase livro dememórias" que lançou ao completar 80 anos: "privei com alguns dosmestres, dos verdadeiros, no universo da ciência, das letras e das artes:Picasso, Sartre, Fréderic Joliot-Curie, meu privilégio foi tê-los conhecido.Não menor o apanágio de ter merecido a amizade dos criadores da culturapopular da Bahia, de haver sido mote para trovadores populares (...)"(Amado,1992: 95).

Um dos motivos do sucesso de Jorge Amado provavelmente estejana relação com a cultura popular e mestiça em sua habilidade de participardela. Mas outro fator é seu poder simbólico na Bahia, seu excelente trânsitosocial. Existe na Bahia um círculo de intelectuais e artistas auto-referentes eprodutores de uma certa representação de "baianidade", no qual JorgeAmado toma parte, juntamente com artistas como Mestre Didi, Carybé,Floriano Teixeira, Calasans Neto, Mário Cravo e outros. Essaspersonalidades dedicam suas criações umas às outras e dizem amar o povoda Bahia. Todos publicam na Revista Exu, da Fundação Casa de JorgeAmado e são ilustradores, capistas ou personagens dos livros de Amado.As ilustrações do romance Tenda dos milagres (1968) são de Carybé, as deDona Flor e seus dois maridos (1966), de Floriano Teixeira, Calasans Netoilustrou Tereza Batista (1972) e assim por diante. Ao mesmo tempo, opintor Carybé é personagem de Dona Flor, o gravador e cenógrafoCalasans Neto é citado em Dona Flor... e Tenda dos milagres e MestreDidi, folclorista e escultor, "habita" pelo menos Dona Flor e Os pastoresda noite (1964). Esse grupo de artistas baianos – embora inspirados na epróximos da cultura popular baiana – é apoiado pela cúpula políticatradicional local9. Em Navegação de cabotagem (1992: 459), o próprioJorge Amado conta que A. C. Magalhães – membro de uma família ligadaao poder por várias gerações, que mantém relações paternalistas com oeleitorado e clientelísticas com políticos e juízes – convidou este círculo deartistas para decorar um novo edifício público.

Na restauração do bairro histórico do Pelourinho, de 1992 a 1997,foram gastos R$ 60 milhões na renovação de cerca de 400 imóveis. Ossobrados reformados foram alugados a empresas que inauguraram bares,

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restaurantes, lojas de artesanato, galerias de arte. Os antigos habitantes"abandonaram" o local após módicas indenizações e mudaram-se parasubúrbios distantes, num processo chamado por uma antropóloga norte-americana de "cleansing process" (Willson,1997: 30). O restante daarquitetura colonial que fica fora do quadrado restaurado continua nasmesmas condições precárias e insalubres, ou seja, trata-se de umPelourinho de fachada, para turistas. Mesmo assim Jorge Amado, em 1993,publicou uma carta aberta ao governador da Bahia, em tom elogioso eafetivo: "volto a escrever a meu amigo (...) para aplaudir com entusiasmo ejúbilo o milagre que me foi dado ver (...) Zélia e eu choramos de emoção"(O Globo, 12/12/93). Não causa surpresa saber que os locais principais docentro histórico limpo e restaurado para turistas levam nomes depersonagens amadianas: "Largo Tereza Batista", "Largo Pedro Archanjo"ou "Largo Quincas Berro D' água", numa paradoxal homenagem ao"escritor de putas e vagabundos" - que agora circulam bem menos por ali...

Além disso, bem no coração do centro renovado, fica a FundaçãoCasa de Jorge Amado, inaugurada em 1987, em um casarão colonial. AFundação tem uma sala para trabalhos escolares, organiza exposições –como capas e ilustrações de livros – e publica ensaios relacionados a JorgeAmado ou à cultura baiana. Conserva em seu acervo cartas de fãs,biografias, fotografias, estudos sobre Amado, vídeos, gravuras, recortes dejornal, homenagens e produtos comerciais que trazem o nome do escritor.

Os visitantes são saudados, na entrada da Fundação Casa de JorgeAmado, por uma escultura de Exu. Exu é o logotipo do escritor, aparecendona contracapa dos livros e no papel timbrado de sua correspondência.Trata-se de uma divindade da mitologia yoruba de grande poder, quesimboliza o movimento. Exu transita entre a vida e a morte, o bem e o mal,enfim, está entre hemisférios, como o mestiço e o malandro, figurasfreqüentes na obra amadiana. O autor explica a escolha do símbolo por seressa "divindade travessa, criança que adora pregar peças e não admitecensura" (De Franceschi,1997: 23). É curioso que um ex-comunista que sedeclara "materialista" (Gomes,1981: 11) eleja uma divindade comologotipo. A escolha de Exu, nesse caso, indica a filiação à cultura popularmestiça baiana - no caso, os cultos afro-brasileiros de candomblé.10

A Fundação reflete a face oficial, institucional de Jorge Amado. MasJorge Amado foi adotado igualmente pelo povo, ainda que boa parte nuncao tenha lido, inclusive porque seu universo chega às pessoas por outrosmeios - música, filmes, temas de carnaval, novelas e seriados na TV, vistospor milhões de espectadores11. Vargas Llosa afirmou que, quando esteve naBahia para a festa dos 70 anos de Jorge Amado, surpreendeu-se com o fatode o romancista conhecer toda a multidão de admiradores pelo nome e

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sobrenome e ter algo para relembrar com cada um (apud DeFranceschi,1997: 38). Por ser um obá desde 1959 – ministro, sábio docandomblé –, tem obrigações com a comunidade. Em 1989, por exemplo,uma senhora bateu à sua porta porque um motorista de táxi haviaengravidado sua filha e o escritor teve que arbitrar a questão.

Jorge Amado encarna o modelo da "cordialidade"12, baseado nasrelações pessoais e extralegais: funciona como administrador erepresentante informal da população. Disse à biógrafa Alice Raillard que érespeitado pelo povo "com um respeito marcado por conhecimento eintimidade e afeto" e explicitou: "não ocupo cargo algum, não tenhonenhuma função (...) mas as pessoas vêm me procurar e eu me sintoresponsável" (Raillard,1992: 81). Indo mais longe, a manchete de um jornalbaiano aclamou: "Jorge Amado, o imperador da Bahia" (A Tarde,29/08/1993). E um jornalista inglês concluiu: In Bahia, he has become abenign version of the feudal patriarch, a man who could, if he chose, topplethe Brazilian government tomorrow" (The Independent, 5/8/89). Érevelador um artigo publicado na imprensa pelo escritor Adinoel MottaMaia, conclamando colegas escritores e demais artistas baianos a se unireme se tornarem independentes do "cacique" Jorge Amado. "Esteja JorgeAmado consciente ou não de sua posição, o fato é que para ele correm osescritores e artistas novos, que querem um empurrãozinho (...) à sua voltae sob sua influência, uma enorme quantidade de intelectuais que secolocam à sombra" (A Tarde,17/11/85). Por tudo isso, em reportagemsobre os 80 anos de Jorge Amado, também no jornal Estado de Minas,afirmava-se que "ir a Salvador sem ir à casa de Jorge Amado é o mesmoque ir à Roma e não ver o Papa" (29/08/1992).

Conhecendo a força da imagem do escritor, empresas utilizam suaassinatura ou seu rosto como marketing para os mais diversos produtos. Aloja de material de escritório Carbex foi a primeira, em 1971, a utilizar onome de Jorge Amado, quando abriu sua filial na Bahia. Em 1978 foi a vezde a Nestlé utilizar um texto de Jorge Amado para inaugurar sua unidadeem Itabuna; trechos seus foram mais uma vez utilizados, na inauguração deuma loja paulistana da Livraria Siciliano, em 1984. Por fim, a Varig lançou,em 1988, em Lisboa, o slogan "Varig voa de e para o país de JorgeAmado". O nome do escritor vendeu, inclusive, apartamentos no bairro emque mora: "Residencial Jorge Amado" (A Tarde, 18/09/1994), o "best-seller com tiragem limitada".

O caso mais recente da apropriação de Jorge Amado fora da esferaliterária ocorreu em janeiro de 2000, num desfile da coleção de verão dagrife ModAxé – que educa e profissionaliza 1400 jovens de famíliascarentes em Salvador. Desfilaram na passarela 150 modelos, inspirados "no

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calor e na sensualidade" da obra amadiana. Em meio a Gabriela, Dona Flore Vadinho, os orixás do candomblé surpreenderam a platéia, com seusbailados e vestimentas suntuosas. Lia-se nos jornais, nos dias seguintes:"Jorge Amado é fashion. (...) Moda esportiva para dias ensolarados enoites quentes, típica da prosa do escritor" (O Estado de São Paulo,27/01/2000 e Tribuna da Bahia 27/01/2000).

É interessante também que admiradores epistolares se sintam àvontade para pedir ao escritor todos os tipos de favores e presentes. Adatilógrafa Eldenir Vargas pede, em sua carta, uma máquina elétrica IBM82 C ou 196 C, "usada ou em condições de funcionamento" (carta de19/9/85). Já Aldri Alves propõe que Jorge Amado termine o seu romance;ele escreveria até a página 100 e Jorge Amado daí em diante: "Vai ser umsucesso a obra de Aldri e Jorge Amado" (carta de 21/9/85). DulcinéiaOliveira escreve pedindo títulos de livros de Jorge Amado em dinamarquêsou outros idiomas próximos, para que ela possa presentear à família que ahospeda na Europa (carta de 13/3/74). É interessante notar que há umasegunda carta de Dulcinéia, agradecendo a remessa da edição alemã deGabriela (carta de 7/4/74). Esse aparente detalhe é, na verdade, um indíciode que a aura quase mítica de Jorge Amado não foi fruto do acaso, mas deuma intensa rede de relações e interações sociais, cultivadas com esmero –e um tanto de estratégia – ao longo de toda a vida.

Uma das cartas mais interessantes tem remetente italiano. Eugenio,nascido na Calábria, escreve para participar a Jorge Amado o papel crucialque os romances tiveram em sua vida pessoal. Nos livros de Jorge Amado,"a minha sensação era que a cultura européia estava morrendo, enquantoa da Sul-América estava nascendo". Em dezembro de 1981,repentinamente, Eugenio comprou uma passagem para Salvador. Logo noprimeiro dia, estava num ponto de ônibus, quando um fusca lhe ofereceucarona. Assim começou seu romance com Nicinha, atual esposa."Engraçado, não é? Sem você, sem seus livros, nem teria conhecido amulher da minha vida" (carta de 3/9/83).

Ficção e realidade se imbricam novamente quando Jorge Amadomistura-se com suas personagens nos gostos e atitudes e tenta configuraruma aura, para si mesmo, de entidade folclórica, inseparável da Bahia.Assim se apresentou o escritor, na França: "Je me crois semblable auxpersonnages de mes livres, ces bons Bahianais" e, despistando sua realposição social, "pareil à eux, je suis um mulâtre, un homme quelconque, unpauvre, je n'aspire pas à être plus que l' un dentre eux" (manuscrito 627,1980). Afirmou também, sobre suas criaturas: "gente simples do povo, nãosou mais do que eles, e se os criei, eles me criaram também" (manuscrito482, 1961).

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Nas recordações registradas em Navegação de Cabotagem (1992),Amado narra peças que pregou e pequenas espertezas que poderiam estarem sua ficção, além de uma quantidade considerável de capítulos tratar delembranças culinárias. O lado "Don Juan" é lembrado com orgulho : "eurosetava de leito em leito: mulheres em abundância, tantas, eu quase nãodava abasto, sobravam da agenda em grande parte ocupada pela atividadepolítica. (...) Eu apenas descansava das lides políticas no regaço decasadas e solteiras (...)" (Amado, 1992: 8). Ou seja, o escritor constrói asua própria imagem como malandro, apreciador da culinária baiana,mulherengo e mestre na arte da amizade – sem contar que antecedentesindígenas são lembrados em diversas entrevistas, legitimando a condição demestiço13. Jorge Amado-criatura é como suas personagens e também comoa representação do baiano "típico", que descreve em Bahia de Todos osSantos: "sempre que penso no mulato baiano vejo um homem gordo. Gordonão apenas fisicamente. Como caráter também: bom, amável, glutão,sensual, agudo de inteligência, bem falante, mas de fala mansa, sabendotratar tão bem os inferiores quanto os superiores. Comendo comidagordurosa, cheia de azeite, mas apimentada também" (Amado,1967: 31).

Enfim, Jorge Amado se relaciona bem com comunistas e políticosque apoiaram a ditadura; conhece etnografias mas ao mesmo tempo tem ocargo de "obá" em um terreiro de candomblé; é querido pelas camadaspopulares e também pela elite, além de alimentar uma relação bastantepróxima com seus admiradores e delinear sua imagem pública como a deum de seus heróis malandros.

3 – Diálogos com a cultura popular baiana

3a - Jorge Amado recria a cultura popularSão ricos e múltiplos os usos que Jorge Amado faz, em seus livros,

de aspectos da cultura popular baiana. Serão mencionados a seguir,principalmente exemplos de 3 livros: Jubiabá (1935), Gabriela, cravo ecanela (1958) e Tenda dos milagres (1968).

Os rituais de candomblé de Jubiabá (1935) são narrados comvivacidade, inclusive com cantos em yorubá. No capítulo "Macumba",descrevem-se sons de atabaque que fazem o corpo vibrar, a disposição emque as pessoas se sentam no centro da sala, o momento em que as iniciadasda casa começam a receber santos e assim por diante: "O orixalá eraXangô, o deus do raio e do trovão (...)A mãe do terreiro puxou um cântico(...): Edurô dêmin lonan ô yê! (...)" (p.103). Há duas outras contagiantescelebrações coletivas em Jubiabá: o samba na casa de Fabrício, em que "os

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corpos se uniam pelas cinturas e depois se soltavam (...) barriga combarriga, sexo com sexo" (p.164) e as cenas no circo.

Um dos capítulos finais de Gabriela, cravo e canela (1958) criatambém uma espécie de communitas popular, com toques de realismofantástico. Ocorre uma festa sem motivo, um animado pout-pourri defolguedos tradicionais, rituais de macumba e candomblé. Um homem setransforma em vários orixás ao mesmo tempo, é Ogun, Xangô, Oxóssi eOmolu. Outros fazem mágicas de feira, jogam capoeira e tocam berimbau.A heroína Gabriela, possuída por Iemanjá, deusa das águas, “partia porprados e montes, por vales e mares, oceanos profundos” (p.347).

A malandragem14 é um tema recorrente em muitos romances. EmJubiabá, o menino Baldo admira Zé Camarão, um desordeiro simpático,corajoso e esperto que vive sem trabalhar. O malandro Zé Camarão "eraum mulato alto e amarelado, eternamente gingando o corpo, que criarafama desde que desarmara dois marinheiros com alguns golpes decapoeira (...) Era amado pela garotada que o queria como a um ídolo"(p.26). Os malandros recriados em Jubiabá são afeitos à liberdade, alegres,versáteis e dotados musicalmente – tanto Zé Camarão, quanto AntônioBalduíno compõem sambas e tocam violão.

Já em Gabriela, cravo e canela (1958) é a culinária baiana quesobressai, ao lado de outras referências sensoriais.15 Gabriela é imbatível nofogão. Nem um chef de cuisine francês consegue fazer uma comida quechegue perto da sua: “não é que fosse má a comida. Como compará-la,porém, com os pratos da terra, cheirosos, picantes, coloridos?” (p.345).Os sentidos16 são fundamentais também em passagens pontuais deGabriela. A vizinha Arminda é caracterizada “pelo ativo cheiro de alho”(p.30) e de Gabriela “vem um perfume de cravo” (p.127). O momentoanterior ao primeiro encontro dos protagonistas Nacib e Gabriela é umaprofusão de sons: “os gritos chegavam até ali. (...) subiam sons melodiososde harmônica, uma voz de mulher cantava toadas” (p.114). O capítulo quetrata da crise do casamento de Nacib e Gabriela chama “Dos Sabores eDissabores do Matrimônio” (p.289). Mas a pior tristeza, para Gabriela, “énão ter gosto na boca” (p.348).

A literatura de cordel representa, especialmente, uma "realidadeontológica" nos livros do romancista baiano (cf. Curran,1981: 13). Em Marmorto (1936), a introdução imita contadores de história populares: "Agoraeu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia (...) Eu as ouvi nasnoites de lua no cais do Mercado, nas feiras (...)". A epígrafe de TeresaBatista cansada de guerra (1977) previne: "Peste, fome, guerra, morte eamor, a vida de Teresa é uma história de cordel".

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Em Jubiabá, o grande sonho do protagonista é ter a vida contada emversos, num folheto de cordel biográfico chamado ABC – pois cadaparágrafo inicia com uma letra do alfabeto. As aventuras de Baldo sãoapresentadas pelo narrador do livro, como num folheto de cordel, de modoa nunca cansar o leitor, com inúmeros ciclos, ápices, surpresas e efeitos desuspense. Como no cordel, vários acontecimentos são antecipados – odestino trágico da bem-amada, por exemplo, é prenunciado por uma músicatriste. Como nos folhetos populares, há um certo romantismo barato –Lindinalva, prostituída e doente, é redimida pelo amor e dedicação deBaldo – e um heroísmo exagerado – Baldo é líder desde criança até o diaem que encabeça a greve, sempre valente.

A epígrafe de Gabriela, cravo e canela revela que a inspiração doromancista proveio de uma canção tradicional da zona do cacau: “O cheirode cravo / A cor de canela / Eu vim de longe / Vim ver Gabriela (p. IX). Equando o narrador assume o fluxo de consciência da heroína, encadeia asidéias em ritmo de "redondilha", o metro popular por excelência: “Ficavasem jeito, vestida de seda, sapato doendo, em dura cadeira (...) Queria umfogão, um quintal de goiaba,mamão e pitanga, um quarto dos fundos, umhomem tão bom” (Paes,1991: 31).

Um dos recursos da literatura de cordel que Jorge Amado usa emTenda dos milagres (1968) é a hipérbole: sempre há algo "melhor","maior", "nunca visto". O narrador menciona "gente ilustre e fina,intelectuais de alta categoria, em geral sabidíssimos" (p.61) ou umapersonagem apaixonada que diz "morrer de ciúmes a cada noite". Osenormes subtítulos do romance que oferecem alternativas, sintetizam eantecipam o conteúdo são igualmente típicos do cordel: "Onde se conta delivros, teses e teorias, de catedráticos e trovadores, da rainha de sabá, dacondessa e da iaba e, em meio a tanto ipsilone, se propõe uma adivinha ese exprime ousada opinião" (p.134). O embate central da trama de Tendados milagres, entre Pedro Archanjo – defensor da mestiçagem – e NiloArgolo – racista – é ele próprio cantado em versos por seis trovadoresfictícios:

"Vou cantar em versos brancosPara evitar rimas em pretoO caso que se passou:O doutor Nilo ArgoloNosso nobre catedráticoCom preconceito de corMandou raspar os pentelhosda condessa dona Augustatão lindos, mas ai, tão negros" (p.157)

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A tenda dos milagres, que dá nome ao romance, é, aliás, umverdadeiro templo da criação popular. Lá funciona uma tipografia defolhetos de cordel. "Trovadores, violeiros, repentistas, autores de pequenasbrochuras, compostas e impressas na tipografia (...) Noticiam e comentama vida da cidade, pondo em rimas cada acontecido e as inventadashistórias (...) protestam e criticam, ensinam e divertem (...)" (p.15).

Um último aspecto a ressaltar é que, como nos folhetos populares,nos romances de Jorge Amado texto e imagem se completam. Quase todasas edições trazem ilustrações em meio à narrativa – às vezes são apenasmeia dúzia durante todo o livro, em outros casos aparecem várias porcapítulo. Mesmo quando as ilustrações têm autoria de artistas consagrados,estes se reapropriam das imagens gráficas do cordel, assim como o escritorse apropria do falar e do cantar do povo. O cordel costuma ser ilustradocom xilogravuras feitas pelos próprios autores ou artistas anônimos ou comimagens retiradas de contos de fada, da Bíblia e retratos de artistasfamosos. Os desenhos com linhas simples expressam desejo de síntese,contêm elementos demoníaco-fantásticos, têm intenção ilustrativa, fazempouco uso de cor, devido à técnica rudimentar de impressão e realizam aproeza da comunicação pelo "quase nada" (Pontual,1971).

3b – A literatura de cordel recria Jorge AmadoCuriosamente, a apropriação e a citação também ocorrem no sentido

inverso: mais de 50 trovadores de cordel fizeram rimas sobre a biografia e aliteratura de Jorge Amado. Venturas e aventuras de Jorge que é muitoAmado, gracioso livreto do autor L.V.P.Q., conta da "revelação" do talentodo pequeno escritor, quando um professor português chamado Cabral –como o "descobridor do Brasil" – elogiou a redação do menino de 11 anos:

"Todo Cabral português Tem gana de discubrimento Cum Jorge Amado, na classeDeu-se o acontecimento:Seu professô jesuítaDescobriu o seu talento. (...)"

Rodolfo Coelho Cavalcante, espécie de best seller no gênero, é autorde dois folhetos sobre o romancista baiano: um narra a vida de JorgeAmado e o outro versa sobre seus livros. No ABC de Jorge Amado, CoelhoCavalcante esbanja familiaridade com a produção de Jorge Amado edestaca o fato de ele ter se tornado um "mito" e um "herói", capaz deconstruir a realidade ao seu redor.17 Um outro folheto do mesmo autor,

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chamado Tereza Batista Cansada de Guerra, de 1973, apareceu um anoapós a primeira edição do romance homônimo de Jorge Amado. O folhetode cordel conta a sua versão da história de Tereza, prostituta corajosa,pulando alguns trechos e modificando outros. Utiliza Tereza para refletirsobre o meretrício e chega a conclusão diversa, mais moralista oupessimista que a de Jorge Amado:

"O fim de toda mulherQue se entregue ao meretrício É arrastar-se na lamaComo verme em seu ofício" (apud Curran,1981: 86).

Adolfo Moreira Cavalcante reescreveu a saga de Pedro Bala, líderdos Capitães da Areia (1937), recheada de crítica social. Explica ao leitorque "Jorge Amado baseou-se em fatos muitos reais, no menor abandonado,verdadeiros marginais". Manoel D'Almeida Filho, em seus versos, deuvida a "Gabriela, romance já televisionado". É interessante que o autor cite,tanto a telenovela da Globo, como o livro de Jorge Amado, enviando "umcaloroso abraço para personagens e atores".18

Um caso impressionante de interpenetração e reciprocidade entre aobra de Jorge Amado e o universo que pretende recriar encontra-se em umdos folhetos de cordel que se referem a Tieta do Agreste (1977). Tieta éuma pastora de cabras que, expulsa de casa pelo pai, vai para a cidadegrande e se torna uma prostituta rica. Volta ao lar após muitos anos e,chocada com o atraso provinciano, empenha-se na modernização dapequena cidade de Santana do Agreste. O folheto Tieta do Agreste noPicado é filmado romance de Jorge Amado (1995), de autoria de AurinoPimentel Ribeiro, versa exatamente sobre a transformação de uma (outra)pequena cidade por causa de (outra) Tieta: trata-se do povoado de Picado,no município de Jacuípe, onde o diretor Cacá Diegues filmou. Após asfilmagens, o próprio nome da cidade foi colocado em questão; quase queSantana do Agreste, inventada por Jorge Amado, passou a existir...

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"Hoje o povoado do PicadoTem uma nova aparênciaCom Tieta do AgresteFilme de grande concorrênciaE também tem correioPra receber correspondência(...) Os moradores do PicadoFicaram tão empolgadosQue até já pensaramEm seu nome ser mudadoPara Santana do AgesteLugar do filme afamado" (Ribeiro,1995) O autor de cordel Francisco Silva fez uma alegoria perspicaz do

encontro entre popular e erudito, povo e elite no universo de Jorge Amado,em folheto que aproxima o romancista do trovador popular Rodolfo CoelhoCavalcante. O Encontro de dois Astros Luminosos: Rodolfo e J. Amadorelaciona os dois homenageados pela fama internacional e revela que selêem e se admiram um ao outro:

"O Rodolfo sempre liaCada vez mais de bom gradoOs livros grandes em prosaEscritos por Jorge AmadoE Jorge Amado tambémQue de vez em quando liaUm livrinho de cordelCom saborosa poesia (...)"E Jorge Amado tambémQue de vez em quando liaUm livrinho de cordelCom saborosa poesia. (…)”Mesmo a ênfase de Jorge Amado no aspecto sensorial foi

reconhecida por um autor de cordel: "Pra intendê sua obraÉ preciso muito orfatoModi senti o cheirinhoDi cabruca, estufa e matoPatichuli e canelaCôco, dendê e mulato". (L.V.P.Q., 1995)

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4 – Trabalhos de campo na aldeia imaginária de Jorge AmadoA tentação de confundir a representação que Jorge Amado constrói

da Bahia e do Brasil com a realidade baiana e brasileira propriamente ditadeve ser grande. Primeiro devido à impressão de autenticidade e a posturade "nativo" pregadas pelo escritor, que assim define seu processo decriação: "escrevo sobre aquilo que vivi, aquilo que conheço" (apud DeFranceschi,1997: 45) e "o importante é (...) criar sobre a vida vivida e nãosobre um jogo de palavras" (apud Clemente,1975: 152). Segundo porque,muitas vezes, Amado transforma em personagens pessoas que realmenteconheceu.19

O sociólogo africano Komoe Gaston Yao (1996), por exemplo,seleciona, na obra de Jorge Amado, trechos que ratifiquem a presença, noBrasil, da "força vital" – energia que, para muitas sociedades africanas,determina as capacidades ou insucessos das pessoas. Yao cita a passagemque valoriza a coragem de Guma, em Mar morto, ao socorrer um navionaufragado. Retira outros exemplos diretamente dos romances, paraconfirmar a importância da atribuição de nomes à maneira africana, nasociedade brasileira como um todo. Yao percorre descrições da iniciaçãoreligiosa na África e no Brasil e cita Jorge Amado ao lado de estudiosos dareligião. Lê-se, por exemplo: "Manoel Querino (1955) entende que logoapós esse primeiro ato - o banho de folhas da noviça seguido de umaincisão para permitir a penetração do orixá na pessoa - o iniciando passapela cerimônia do efun, como também menciona Jorge Amado"(Yao,1996: 118, grifo meu).

A ficção de Jorge Amado é considerada pelo sociólogo africano umadescrição "verdadeira", a ponto de os romances servirem como fonte decomparação entre Brasil e África. Da mesma maneira, Joseph Page, em Thebrazilians (1995), refere-se a sete romances de Jorge Amado. Opersonagem Nacib, de Gabriela, ilustra a presença de imigrantes do OrienteMédio no Brasil (Page,1995: 117); os três volumes de Subterrâneos daliberdade são usados para retratar a repressão ao Partido Comunista duranteo Estado Novo (idem, ibidem: 205); O País do carnaval abre o capítuloacerca da força desta festa no Rio de Janeiro (id.,ibid.: 466); Tenda dosmilagres é utilizado como registro da repressão ao candomblé nos anosvinte (id.,ibid.: 70) e, finalmente, O sumiço da santa é indicado pelobrasilianista a quem quiser ler uma descrição da sincrética festa do Bonfim.20

O antropólogo sueco Ulf Hannerz (1997) abre um artigo sobreantropologia transnacional citando Amado. Em Tenda dos milagres, aspersonagens Pedro Archanjo (brasileiro) e Kirsi (sueca) comunicam-se

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apenas por gestos. Mesmo sem palavras, entendem-se muito bem e Kirsiaprende danças baianas. Hannerz serve-se da comunicação entre PedroArchanjo e Kirsi, no romance, como ponto de partida para tratar defronteiras, fluxos e hibridismos no mundo contemporâneo. Aproveita aindao debate entre o saber local de Archanjo e as teorias acadêmicasinternacionais personalizadas pelo vilão Nilo Argolo, um teórico racial,como ponto de partida para discorrer sobre interconexões culturais nomundo globalizado e a reorganização assimétrica da diversidade cultural.

É verdade que Bahia de todos os santos, guia de Salvador escrito em1945, talvez tenha o tom de uma etnografia: descreve bairros da cidade, atradicional Festa de Iemanjá em fevereiro, cataloga 117 terreiros decandomblé, explica comidas típicas e personagens populares. Mas,excetuando-se esse guia, todo o restante da produção do romancista não sepretende documental. Recria e aproveita tanto a cultura popular, comoautores acadêmicos, sem preocupação com fidelidade e a exatidão. Comoafirmou Antonio Candido, "achar que basta aferir a obra com a realidadeexterior para entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificaçãocausal" (Candido, 1965: 14). O trabalho artístico necessariamenteestabelece uma relação arbitrária e deformante com a realidade. Inclusive, oantropólogo Trindade-Serra (1996) ressalva que, se não se tratasse deficção, poder-se-ia dizer que o romancista cometeu alguns erros em suasdescrições do candomblé. Como em Jubiabá, quando duas personagens emtranse salivam muito, "espumam pela boca e pelo sexo", situação incomum.Mesmo assim, vários autores – sobretudo estrangeiros – tomam o universoficcional de Jorge Amado como campo etnográfico, onde as personagensequivaleriam aos "brasileiros".

5 – Considerações finaisAo cabo do percurso, impressiona a retroalimentação entre o

universo dos romances de Jorge Amado, o cotidiano de Salvador e aimagem do próprio escritor. Símbolos nacionais eleitos nos anos 30aparecem em seus romances e discursos. Sua identificação com algumasdas personagens fica patente, assim como as interfaces entre seu universoficcional e o universo social a que pertence. É como se Jorge Amadosentisse que tem uma missão e utilizasse sua vida, sua obra e suas relaçõespara concretizá-la: a missão de construir uma representação de Brasil queacabe por moldar a realidade como ele acredita ou gostaria que fosse –simples, alegre, sensual, solidária, mestiça etc.

O antropólogo Roberto DaMatta indagou certa vez se o mundoficcional de Jorge Amado é aquele em que os brasileiros gostariam deviver. Ele mesmo respondeu: "o sucesso dos livros parece atestar que a

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resposta é positiva" (Da Matta,1993). Faço minhas as suas palavras: "oproblema sociológico não estará somente em ver isso como umamistificação, mas em atinar para a verdade parcial (...) tratando das coisasque todos nós conhecemos, experimentamos". Por isso, também concordocom Duarte (1991), que questiona o porquê de a Academia no Brasildesprezar seu escritor mais importante, do ponto de vista da recepção: "essepreconceito é um sinal do elitismo da universidade brasileira que, via deregra, só lê os autores que só ela lê. (...) Jorge Amado é duplamenteestigmatizado: por ser comunista e por ser um escritor best seller" (OEstado de S. Paulo, 22/7/96).

A princípio, pensei que as razões do sucesso de Jorge Amadoestivessem vinculadas só ao marketing: um produto ao gosto do público demassa e uma rede de boas relações pessoais – com outros artistas e comuma parcela da elite nordestina. Aos poucos fui me convencendo de que,para além das manipulações, oportunismos e facilidades lingüísticas, oescritor soube tocar as pessoas de duas maneiras: por conseguir transporpoeticamente para a literatura formas populares de viver e de narrar e porsaber manipular e recriar representações identitárias da Bahia e dosbaianos.

Vale a pena precisar, mesmo que brevemente, os conceitosnorteadores do trabalho de mestrado que antecede o presente artigo. Emlinhas gerais – e deixando de lado uma longa reflexão, iniciada porDurkheim (1963/ 1989) – uma representação social constitui uma forma deconhecimento prático socialmente elaborado, uma construção simbólicapartilhada por um conjunto social ou cultural. As representações sociaisorientam nossas relações com os mundos físico e social e – de maneiraanáloga às representações pictóricas – restituem para nós uma totalidadeausente, distante ou inexistente (Mannoni,1998). Elas são instrumentos deapreensão de uma parcela da realidade e, portanto, necessariamenteredutoras; ademais, existem em meio a uma pluralidade de outrasinterpretações e discursos, traduzindo apenas uma versão entre muitas.

No entanto, apesar das eventuais distorções e simplificações quecontêm, não se trata de mentira ou de ilusão enganosa, diferentemente doconceito de ideologia que, em várias interpretações do materialismohistórico, corresponde à inversão e ao mascaramento da realidade por parteda classe dominante. A noção de representação parece interessante,justamente, por nos redimir de separar o simbólico do "real", mesmoporque "a materialidade não pode ser tomada em si mesma, devendonecessariamente passar pela subjetividade - idéias, representações,referências culturais" (Penna,1992: 59).

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Dentre os diversos valores e conteúdos que podem ser veiculados pormeio de representações sociais, estão o senso de pertencimento a um grupo,as fronteiras das identidades e os estereótipos. É aí que o conceito derepresentação social se imbrica ao de identidade. Grosso modo – e maisuma vez saltando uma ampla discussão teórica 21 – a identidade de umatribo, um grupo social ou uma nação é pautada pela alteridade, pelocontraste com o Outro; em segundo lugar, a identidade é algo plástico,criado e modificado contextualmente, mesmo que se auto-proclame comoantiga e autêntica. No caso específico das identidades nacionais, opolitólogo Benedict Anderson (1985) acredita ser a nação uma"comunidade imaginada", capaz de resgatar eventos gloriosos do passado eprojetá-los num futuro comum, fornecendo assim um sentido à vida dosindivíduos. O historiador Eric Hobsbawm (1983 e 1990) enfatiza o fato dea nação ser uma novidade histórica do século XIX e analisa o processo deinvenção de tradições, elemento crucial na construção das hegemoniasculturais nacionais. É interessante observar que, para ambos os autores, alíngua e a literatura são os principais vetores de consolidação de umaidentidade nacional.

É por isso que trabalhar com Jorge Amado, no âmbito daantropologia, significou, não desmenti-lo politicamente, nem tampoucoquestionar seus méritos literários, mas levar a sério as razões de seu enormeeco, sua "eficácia simbólica". Inclusive porque a relação entrerepresentações e objetos representados é mais complexa do que podeparecer à primeira vista, chegando a lembrar a questão de saber "quem veioprimeiro, o ovo ou a galinha"...

Jorge Amado inventou os estereótipos e imagens dabaianidade/brasilidade ou usou-os para ter sucesso? Ambos. Na Bahia nãoexistem Gabrielas, só no livro, certo? Errado, um leitor italiano encontrousua Gabriela na Bahia. Nina Rodrigues foi um cientista do final do séculoXIX, não? Não apenas: ele vive hoje em Tenda dos Milagres, com opseudônimo de Nilo Argolo. Quem é alegre, sensual e mestiço, algumpersonagem de Jorge Amado? Sim, vários deles, mas também seu criador eos brasileiros de "carne e osso" que se identificam com aquelas imagens.Santana do Agreste é uma cidadezinha inventada em Tieta e cenografada naadaptação cinematográfica de Cacá Diegues, que talvez passe a existir, seder certo o plano do trovador de cordel de Picado, que gostaria de mudar onome do povoado, inspirado pela realização do filme.

Como escreveu Ricardo Oiticica, "um país é feito de homens e livrosde Jorge Amado" (Verve,12/88). E assim vai se construindo o Brasil bestseller de Jorge Amado nas bibliotecas, na televisão, no Pelourinho, no

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cinema, no teatro, em casamentos italianos, em folhetos de cordel, emmaterial turístico, no carnaval e em artigos acadêmicos...

Notas

* mestre em Antropologia Social na Universidade de São Paulo e mestre em MediaçãoCultural na Université Paris 3- Sorbonne Nouvelle, autora de O Brasil best seller deJorge Amado, São Paulo, Editora do SENAC, no prelo

1 Literatura e identidade nacional: o Brasil best -seller de Jorge Amado. Dissertação deMestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social daUniversidade de São Paulo, em 2000, sob orientação da profa. dra. Lilia MoritzSchwarcz.2 Gellner é apenas um dos "clássicos" no estudo de nações e nacionalismos, ao lado demuitos outros, como Raoul Girardet (1965), Benedict Anderson (1985), Eric Hobsbawm(1983 e 1990) e Ernest Renan (1882).3 Jorge Amado, diga-se de passagem, parece desvincular a idéia de estado – enquantoentidade política que engloba a máquina burocrática, as instituições oficiais, as leis esua aplicação – da idéia de nação – produzida por meio da comunhão de valores, dasfestas, enfim, no plano cultural. A partir desta fratura simbólica entre nação (louvada) eestado (criticado), o romancista se permite exaltar a "riqueza" e a "beleza" da naçãobrasileira imaginada, sem negar os – ou sem entrar no mérito dos - problemas sócio-econômicos do Brasil real, do Brasil-estado.4 Com a queda nas exportações de café e a desvalorização da moeda nacional, o livrobrasileiro passou a custar mais barato que o importado.5 Alguns outros "romancistas de 30": Érico Veríssimo, José Lins do Rego, GracilanoRamos e Raquel de Queiroz (ver Bosi,1965; Candido e Castello ,1964;Coutinho(org.),1970).6 Nascido em 1912, Amado cresceu na cidade provinciana de Ilhéus, sul da Bahia, ondeseu pai plantava cacau. Fez o colegial em Salvador, quando diz ter convivido de pertocom o povo da Bahia. Estudou Direito no Rio de Janeiro e, ainda na faculdade,aproximou-se do Partido Comunista. Em 1946, elegeu-se deputado federal, mas, devidoa prisões políticas durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945) e após o PCB tersido declarado ilegal, partiu com sua esposa para a Europa, por 4 anos. De volta aoBrasil e já desligado do PC, lançou Gabriela, cravo e canela (1958), um divisor deáguas em sua produção, que se tornou, segundo ele próprio e a crítica, menos engajada,mais leve e bem humorada.7 Manoel Querino era pobre e mulato, obteve pouca notoriedade durante a vida,escreveu livros sobre culinária baiana e sobre homens negros "notáveis" na Bahia, tudoexatamente como Jorge Amado descreve para a personagem Pedro Archanjo, em Tendados milagres. Por outro lado, o título fictício da obra do vilão Nilo Argolo é idêntico aode um tratado real sobre a desigualdade mental entre brancos e negros, escrito por NinaRodrigues, o primeiro professor da Faculdade de Medicina da Bahia: As raças humanase a responsabilidade penal no Brasil (1894).

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8 O “mito” da democracia racial vem sendo problematizado por vários pesquisadores.Florestan Fernandes (1972), considera-o uma "consciência falsa", que permite àscamadas dominantes manter seus privilégios. Kabengele Munanga (1996) acredita quenosso "mito fundador" é prejudicial por dificultar a formação de consciência eidentidade dos grupos oprimidos. No entanto, o olhar estrangeiro de Bourdieu eWacquant (1998) percebe que a estigmatização no Brasil é de fato menos irreversívelque em outros países e que aqui a categoria de mestiço tomou o lugar de um sistema de"castas" definidas. É por isso que Lilia Schwarcz (1997) propõe que, sem naturalizar o"mito da democracia racial" brasileira, procure-se um modelo local diverso do norte-americano, levando em conta as especificidades das relações raciais e sociais no Brail –flexíveis e personalistas.9 Dos anos setenta até metade dos anos oitenta, o regime militar consolidou suahegemonia através do controle do processo cultural, incentivando a criação de centrosde folclore e casas de cultura, do tombamento de monumentos e assim por diante. NaBahia, este movimento levou à apropriação de elementos cotidianos da cultura"afrobaiana" para construir uma imagem de baianidade singular e exótica, acionada napublicidade turística do "viver baiano". Daí o interesse do governo baiano em patrocinare promover manifestações populares e permitir a participação de representantes dosmeios intelectuais e artísticos em cargos de direção (ver Santos, 1997).10 Os orixás são entidades que intermedeiam os humanos e Olorum - a maior divindadeno panteão - assim como os anjos católicos intermedeiam os homens e Deus. Acoincidência da relação pessoal, supersticiosa e de proteção que os africanos guardavamcom seus orixás e os portugueses com seus santos católicos facilitou a coexistência dosdois sistemas simbólicos, durante os 3 séculos de escravidão. O culto yourubá do Sudãofoi o que deixou marca mais forte nos ritos afrobrasileiros – candomblé, umbanda emacumba.11 Terras do sem fim virou telenovela na TV Tupi, em 1966; em 1969, Capitães de areiafoi filmado por Hall Barthet; em 1977 estreou o filme de Nelson Pereira dos Santos,Tenda dos milagres; Dona Flor e seus dois maridos foi encenada na Broadway em 1979,mesmo ano em que estreou no cinema sob direção de Bruno Barreto; em 1982 Barretodirigiu Gabriela Cravo e Canela; em 1989, a Rede Globo exibiu a novela Tieta doAgreste; finalmente, o filme Tieta, dirigido por Cacá Diegues, veio a público em 1997(cf. Rubim,1992).12 O historiador Sérgio Buarque de Holanda cunhou o termo "homem cordial" emRaízes do Brasil (1936), onde descreve os efeitos decisivos do núcleo familiar desde ostempos da colonização e a predominância dos "laços de sangue e de coração" nodesenvolvimento da sociedade brasileira (Holanda,1995/1936:146). Para o historiador,esse tipo de sociabilidade dificulta a separação necessária entre Estado e círculofamiliar; para Jorge Amado, ao contrário, é desprovido de conseqüências políticas,constitui apenas um traço simpático - que ele parece, inclusive, incorporar em sua vidaprivada.13 Em discurso na Universidade da Bari, escreveu: "sou um velho brasileiro, de sanguesindígena - minha mãe era uma pequena índia cheia de sabedoria - africano eportuguês, quem sabe de sangue judeu, de sangue árabe" (pasta 17, manuscrito 500). Já

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no vídeo de J. M. Salles, feito para a Arte (1997), declarou que tem "todos os sanguesmisturados. Bisavó índia caçada no mato".14 O malandro ganhou popularidade no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do séculoXX, com a imigração intensa do campo para a cidade. O malandro era o desempregadoque não perdia o humor, vivendo de pequenos expedientes e usando a criatividade e ofavor para sobreviver. Desde então, aparece com freqüência na música popular e naliteratura e é, no folclore, apresentado com simpatia.15 A importância da comida nos romances de Jorge Amado foi crescendo com o tempo(cf. Costa,1994). Em Cacau (1932), as personagens comem carne-seca, feijão, farinha efruta colhida no pé e bebem também muita cachaça. Jubiabá (1935) descreve ascomidas rituais, feitas para cumprir obrigação com os santos no candomblé. Em MarMorto (1936) e Capitães da Areia (1937), o prato mais saboreado é a moqueca depeixe. O Capitão de Longo Curso (1961) traz a primeira receita completa para o leitor.Dona Flor (1966) ensina a preparar diversos pratos: comida especial para velórios,merendas para a tarde, alimentos preferidos e proibidos para os santos. E assim pordiante.16 Os odores, as cores, os sabores são simbolicamente empregados por muitas culturas,como marcas de identificação das várias categorias de seres. Os sentidos - valorizados,reprimidos, hierarquizados - dizem muito sobre a maneira de apreender o mundo deuma sociedade e de uma época: "Sensory values not only frame a culture´s experience,they express its ideals, its hopes and its fears. (...) When sensory orders express cosmicorders, cosmologies are not only read about or heard of, but lived through one´s body"(Classen,1993:136/7).17 "Escreveu umas 30 obras /Todas elas conhecidas / Em temas mais variados, Fixandomuitas vidas: (...) / É ele o escritor do século / Virou lenda, virou mito / Virou gênio,Virou fábula / Por tudo que tem escrito / Por tudo que ele constróe, / Já virou atéherói".

18 " (...)A todas as personagens / Às atrizes e aos atores / Nosso afetuoso abraço, /Com parabéns e louvores -/ Que façam outras novelas,/ Em cenários multicores(...)".

19 Dona Flor, por exemplo, surgiu de um caso relatado pelo poeta Álvaro Moreyra, em1933, sobre o problema da irmã de um amigo seu: viúva de um jornalista boêmio,casou-se com um comerciante português. Sendo, porém, de religião espírita, via o ex-marido querendo deitar-se com ela toda noite. Deste antigo caso surgiu, em 1966, onúcleo da trama de Dona Flor e seus Dois Maridos (Santos,1993:110).20 Discordo de Yao e Page em um ponto fundamental: não parto de Jorge Amado paraconhecer efetivamente os brasileiros, mas sim para desvendar uma construçãosimbólica, uma representação particular dos brasileiros.21 Eis alguns autores em que me apóio, quanto à discussão da identidade: Barth (1976),Oliveira (1976), Assmann (1988), Brandão (1986), Cunha (1985 e 1986), Schwarcz(1993 e 1996) e Wurgaft (1995).

Bibliografia

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