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1 A IMAGEM DA CRUCIFICAÇÃO: UMA ANÁLISE DO AFRESCO DE GIOTTO NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. 1 doi: 10.4025/XIIjeam2013.pelegrinelli.visalli39 PELEGRINELLI, André Luiz Marcondes 2 VISALLI, Angelita Marques 3 Uma nobre matrona romana como de costume rezava em seu quarto, frente a um quadro com a imagem de Francisco de Assis, seu patrono. Em meio a sua oração, e olhando atentamente a imagem, afligiu-se ao descobrir que na imagem faltavam-lhe as chagas de Francisco. A mulher guardou para si essa aflição, e dias depois ao olhar novamente a imagem descobre que nela surgiram impressas as chagas que lhe faltavam. Intrigada com o acontecido pede a sua filha que confirme a aparição milagrosa das chagas, a mesma confirma, mas a dúvida sobre se aquilo seria mesmo uma manifestação divina permanece. Em resposta a dúvida humana dessa mulher, Deus acrescenta um segundo milagre, fazendo desaparecer novamente as chagas que agora eram visíveis. “Assim, mercê de um novo prodígio, foi confirmado o prodígio anterior. Eu mesmo conheci esta dama, que era casada e senhora de grande virtude. Mais: sob as vestes seculares, nela reconheci uma alma verdadeiramente consagrada ao Cristo Senhor” (CELANO, 10). É assim que o hagiógrafo Tomás de Celano, em seu “Tratado dos Milagres” se refere a um milagre atribuído a Francisco. Neste milagre, a matrona romana não teve contato com Francisco, ela não o conheceu, não o viu em sonho, mas somente sua imagem, uma imagem aparentemente comum, assim como tantos outros retábulos, afrescos etc, mas que aqui se tornou milagrosa. Relatos como esse nos revelam o quão diferente era a concepção de imagem para os homens do medievo. Longe do conceito de “arte” forjado principalmente pela Estética a 1 Pesquisa resultante de participação no projeto: “ILUMINURAS FRANCISCANAS: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM E HERANÇA DE FRANCISCO DE ASSIS NA FRANCESCHINA (1474)” (apoio financero del CNPQ/Brasil). 2 Graduando em História da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] 3 Professora doutora adjunta ao departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

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A IMAGEM DA CRUCIFICAÇÃO: UMA ANÁLISE DO AFRESCO

DE GIOTTO NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS.1 doi: 10.4025/XIIjeam2013.pelegrinelli.visalli39

PELEGRINELLI, André Luiz Marcondes2

VISALLI, Angelita Marques3

Uma nobre matrona romana como de costume rezava em seu quarto, frente a um

quadro com a imagem de Francisco de Assis, seu patrono. Em meio a sua oração, e

olhando atentamente a imagem, afligiu-se ao descobrir que na imagem faltavam-lhe as

chagas de Francisco. A mulher guardou para si essa aflição, e dias depois ao olhar

novamente a imagem descobre que nela surgiram impressas as chagas que lhe faltavam.

Intrigada com o acontecido pede a sua filha que confirme a aparição milagrosa das chagas,

a mesma confirma, mas a dúvida sobre se aquilo seria mesmo uma manifestação divina

permanece. Em resposta a dúvida humana dessa mulher, Deus acrescenta um segundo

milagre, fazendo desaparecer novamente as chagas que agora eram visíveis. “Assim, mercê

de um novo prodígio, foi confirmado o prodígio anterior. Eu mesmo conheci esta dama,

que era casada e senhora de grande virtude. Mais: sob as vestes seculares, nela reconheci

uma alma verdadeiramente consagrada ao Cristo Senhor” (CELANO, 10).

É assim que o hagiógrafo Tomás de Celano, em seu “Tratado dos Milagres” se

refere a um milagre atribuído a Francisco. Neste milagre, a matrona romana não teve

contato com Francisco, ela não o conheceu, não o viu em sonho, mas somente sua imagem,

uma imagem aparentemente comum, assim como tantos outros retábulos, afrescos etc, mas

que aqui se tornou milagrosa.

Relatos como esse nos revelam o quão diferente era a concepção de imagem para

os homens do medievo. Longe do conceito de “arte” forjado principalmente pela Estética a

1 Pesquisa resultante de participação no projeto: “ILUMINURAS FRANCISCANAS: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM E HERANÇA DE FRANCISCO DE ASSIS NA FRANCESCHINA (1474)” (apoio financero del CNPQ/Brasil). 2 Graduando em História da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] 3 Professora doutora adjunta ao departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

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partir do século XVIII (BASHET: 2006, p. 481), ao contrário, a imagem medieval não

possuía finalidade estética autônoma, embora não esquecesse ou tivesse preocupação

menor com a esteticidade.

Imagens que por vezes falam, realizam milagres, surgem em sonhos. Imagens que

legitimam poder, fazem referências à memória, podem ser didáticas ou ainda tendo como

objetivo a comoção e a conversão, entre outros usos que ainda podemos atribuir.

As imagens religiosas medievais não são e não podem ser pensadas somente como

representações, mas implicam “no reconhecimento de uma força esperada, possível ainda

que não constante. A presença milagrosa não é, mas pode estar. Presentificação em lugar

de presença tem sido a expressão mais felizmente empregada” (VISALLI: 2013, p. 97.) É

através de uma imagem que Francisco se converte; uma outra provoca a morte de Santa

Catarina de Sena; através das imagens os fiéis exprimiam seu sentimento religioso.

Nesse estudo, pretendemos entrar nesse mundo de imagens medievais. Analisamos

aqui um afresco produzido por Giotto (1267-1337), e que está na Igreja Inferior da Basílica

de Francisco, em Assis. O mesmo retrata a crucificação, momento emblemático da história

da salvação cristã. Refletiremos sobre o papel dos afrescos no uso cristão, o artista criador

da imagem e a Basílica que a abriga. Em seguida realizaremos a análise dessa imagem,

atentando-se à influência dos textos bíblicos sobre a mesma e considerando o relevante

papel que Maria, Cristo e Francisco de Assis possuem na composição.

Diferentemente do tipo de imagem apresentada no relato de Tomás de Celano, uma

imagem de culto particular, aqui estamos diante de um afresco. Técnica valiosa, a pintura

sobre o gesso úmido garantiu a boa conservação de muitas imagens, ao contrário da pintura

a seco, de que também contém exemplares a Basílica de Assis, mas que estão em um

processo de degradação muito mais acelerado.

Os afrescos, pintados sobre as paredes, tetos ou outros lugares imóveis, não tinham

como função o culto (como o era, por exemplo nos retábulos e estatuetas), o que não quer

dizer que estas estavam limitadas somente a função decorativa. Por exemplo, Santa

Catarina de Siena (1347-1380), ao contemplar o mosaico “Navicella” de Giotto, em São

Pedro do Vaticano, sente-se esmagada pelo barco dos apóstolos retratado na imagem, e

permanece paralisada até a morte (BASCHET: 2006, p. 498). A imagem aqui não se

manifestou de forma extraordinária, mas comoveu Catarina, fazendo-a sentir-se dentro da

imagem a ponto de sofrer em seu corpo físico os sentimentos provocados por ela.

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Por outro lado, as imagens pintadas nas paredes, imóveis, podem ter função de

memória ou mesmo funções didáticas. Sem reduzi-las ao conceito de “Bíblia dos

iletrados”, as consideramos úteis, sim, para a catequese dos não letrados, mas não

limitando-as a isso. Sem deixar de lembrar que são objetos de memória: a Igreja relembra e

revive o Batismo de Cristo frente a uma cena do mesmo, a imagem ilustra e completa a

mensagem de conversão do clérigo ao mostrar o Purgatório e suas danações etc.

Importante papel tem os afrescos e todas as outras imagens que fazem parte de

uma igreja. As imagens aderem a um lugar que tem função própria, a casa de Deus, e

sendo casa de Deus, sua principal função era “oferecer aos mistérios divinos um cenário

digno da sua grandeza” (VAUCHEZ: 1995, p. 166), o edifício sagrado precisava fazer com

que os fiéis se sentissem entrando na própria esfera celeste (BASCHET: 2006, p. 508).

Assim, a sacralidade de um afresco, ou de qualquer outra imagem que adere o

edifício santo, estaria muito mais no seu uso enquanto parte desse edifício sagrado do que

pela imagem em si própria. A “Navicella” de Giotto, era parte do edifício sagrado, assim,

era ela própria sagrada.

O abade cluniacense Suger no século XII, possuía grande preocupação pela

ornamentação do lugar santo, dos vasos sagrados, etc. A abadia para ele “devia fazer

irradiar os esplendores para a maior glória de Deus” (DUBY: 1978, 104). Da mesma forma

os vasos sagrados e tudo o que devesse servir a liturgia deveria ser o mais ricamente

ornamentado. Para ele a imagem possuía além das funções já destacadas, a de

ornamentação.

Francisco foi chamado pelos habitantes de Assis como Poverello ou seja,

pobrezinho, coitado, em italiano, andava vestindo trapos e recusava qualquer posse de

bens, pregando um evangelho de penitência. Em 1228, dois anos após sua morte, foi

canonizado e a pedra fundamental para a construção da Basílica de Francisco foi posta.

O ideal de pobreza absoluta no molde próprio do pensamento de Francisco não foi

mantido após sua morte. Os que estavam à frente da ordem precisaram forjar a teoria de

que os bens recebidos pelos franciscanos são de seu uso deles, mas de propriedade do papa

(BASCHET: 2006, 213).

A Basílica de São Francisco, então, vai ser tratada com o mesmo cuidado e

luxuosidade com que Suger tratou sua abadia. Não que houvesse diálogo entre estes, mas

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não foram poupados esforços na construção da segunda, que recebeu grandes nomes da

pintura italiana: Cimabue, Giotto etc.

A Basílica Franciscana foi o primeiro grande investimento na construção da

imagem de Francisco (VISALLI: 2011, p. 206.), para tal, utilizando-se da versão presente

na Legenda Maior de Boaventura para a criação e identificação das imagens,

principalmente aquelas que se referem ao ciclo da vida de Francisco, também executada

por Giotto para a Igreja superior. A Basílica consiste de dois grandes complexos: a Igreja

Superior, com o mesmo funcionamento de qualquer outra igreja, aberta aos fiéis, etc, e a

Igreja Inferior, de uso particular dos religiosos e que tinha sua maior importância por

abrigar o túmulo do santo de Assis.

O afresco de Giotto aqui estudado está na Igreja Inferior, mais especificamente, faz

parte do ciclo de imagens que se encontram no transepto norte da Igreja Inferior, ciclo

composto de seis imagens maiores (imagem I): “Visita de Isabel”, “Nascimento de Cristo”,

“Adoração dos Reis Magos”, “Apresentação do menino no Templo”, “Crucificação” e

“Maria entronizada junto a Francisco”. As cinco primeiras são de Giotto, a última de

Cimabue, a qual se afasta das demais pelo estilo próprio do pintor e por não se tratar de

uma cena bíblica, mas baseada na tradição segundo a qual Maria foi entronizada. Cimabue

e Giotto trabalharam juntos em afrescos da Igreja Inferior. É importante perceber o

conjunto de imagens, pois, estas precisam ser vistas dentro de seus respectivos ciclos.

Nesse caso, Giotto valoriza em quatro de suas cinco obras, a infância de Jesus; valoriza

Maria, que tem destaque em todas e aparece com um manto azul; na “Crucificação” a

mesma recebe um papel diferente, e logo o veremos. Wolf acredita que estes afrescos de

Giotto datem por volta de 1320.

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Imagem 1 – Vista do transepto norte da Igreja Inferior da Basílica de São Francisco em Assis.

Aqui nos debruçamos sobre o afresco “Crucificação” (Imagem II).

Imagem II – Afresco “Crucificação”, Igreja Inferior da Basílica de São Francisco, Assis.

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Tratando-se de uma imagem que descreve uma cena bíblica, sem dúvida a maior

base de inspiração para ela foi o próprio relato bíblico. A crucificação é a cena protagonista

do Novo Testamento.

A Crucificação é descrita pelos quatro evangelhos canônicos. No Antigo

Testamento, encontramos referências proféticas como o livro de Isaías e o Salmo 22. São

narrativas dramáticas, com forte tom emocional, ricas em detalhes e fatos extraordinários.

John Crossan (CROSSAN: 1995, p. 155) identifica três estágios nas descrições da

Paixão: um histórico, outro profético e por último um narrativo. O primeiro refere-se aos

acontecimentos da primeira metade do século I em Jerusalém, posteriormente descrito

pelos evangelistas; o segundo preocupa-se em identificar nos acontecimento da Paixão as

profecias do Antigo Testamento; e, por fim, o último insere detalhes menores à narrativa.

Partindo desse pressuposto, são estes estágios proféticos e narrativos que inserem na

Paixão detalhes de sofrimento, forte emoção, etc, característicos de alguns trechos do

Antigo Testamento.

O livro do profeta Isaías e o Salmo 22 são ricos em explorar a comoção. O

primeiro coloca na boca do “servo de Deus”, reconhecido pelos evangelistas como o

próprio Cristo (GINZBURG: 2001, p. 109): “Ofereci o dorso aos que me feriam e as faces

aos que me arrancavam os fios da barba; não ocultei o rosto às injúrias e aos escarros”

(Isaías 50, 6). E continua, falando do “servo de Deus”:

“Era desprezado e abandonado pelos homens, Homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, Como pessoa de quem todos escondem o rosto; Desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si. Nossas dores que ele carregava.” (Is 53, 3-4a)

O Salmo 22 se pergunta “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22,

2a), ou ainda “Quanto a mim, sou verme, não homem, riso dos homens e desprezo do

povo” (Sl 22, 7). O Salmo 22 não possui um personagem definido, como o era o “servo de

Deus” para Isaías, mas canta a lamentação e prece de um inocente perseguido.

Os Evangelhos são a principal referência, e tendo a preocupação em demonstrar a

missão messiânica de Jesus, oferecem longos e detalhados relatos sobre a Crucificação. Os

evangelhos de Mateus e Marcos são muito semelhantes, inclusive na organização dos fatos.

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A descrição do primeiro estende-se dos versículos 34 à 56 do capítulo 27, já a descrição

dada pelo Evangelho de Marcos estende-se do versículo 23 ao 41 do capítulo 15.

Seguem a seguinte narrativa: os soldados oferecem vinho misturado a fel para

Jesus, mas ele não bebe; em seguida, os mesmos repartem as vestes de Cristo. Após ser

mencionada a repartição das vestes, os autores citam o letreiro “INRI” - Iesus Nazarenus

Rex Iudaeorum, colocado na cruz. Após ser pregado na cruz, Jesus é caçoado por

transeuntes, pelos chefes dos sacerdotes, e pelos crucificados junto a ele. Jesus exclama

“Deus meu, Deus meu, porque me abandonastes? (uma clara referência ao Sl 22, 2a), em

seguida lhe é oferecido vinagre em uma esponja, morrendo em seguida. Após sua morte,

manifestações extraordinárias ocorreram: Mateus diz que “o véu do templo se rasgou”,

houve um terremoto e vários mortos ressuscitaram. Aqui é marcada uma diferença entre os

dois evangelistas: Marcos apenas menciona o véu do templo que se rasga. Os dois

evangelistas atribuem estas manifestações ao reconhecimento da filiação divina de Cristo

por parte dos soldados. Após narrar estes eventos, os autores mencionam as mulheres

presentes durante a crucificação: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, Salomé,

a “outra Maria”, entre outras.

Lucas, por sua vez, dedica o trecho dos versículos 33 à 49 do capítulo 23 de seu

livro para narrar o evento da Crucificação. O autor começa narrando que após Jesus chegar

ao lugar onde foi crucificado junto aos malfeitores, pediu o perdão para aqueles que o

torturavam, pois eles “não sabiam o que faziam”, depois repartiram e sortearam suas

vestes. Em seguida o autor relata que, tal qual Mateus e Marcos, os transeuntes, sacerdotes

e soldados caçoavam de Cristo. Lucas menciona um episódio importante também: um dos

malfeitores reconhece Jesus como justo e Cristo diz que naquele mesmo dia ambos

partilhariam o Paraíso. Jesus entrega seu espírito ao “Pai” e expira. Em seguida o centurião

reconhece Cristo como “o justo”, a multidão percebe ter sacrificado um inocente. Por fim,

Lucas menciona a presença de todos os amigos de Cristo e das mulheres que o

acompanhavam desde a Galiléia.

A narrativa de Lucas (Lc 23, 33-49) acrescenta um importante episódio: do ladrão

preso à cruz que se arrepende, reconhece a sacralidade de Jesus e, pedindo-lhe perdão,

recebe a informação de que estará salvo no Paraíso Celeste. Os outros eventos

acompanham descrições próximas dos outros dois evangelhos. Lucas não menciona

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nenhuma mulher específica na Crucificação, apenas menciona a existência de mulheres

que acompanhavam Jesus desde a Galiléia.

O Evangelho de João escolhe, ao longo de todo o livro, episódios diferentes dos

outros três para descrever a vida de Jesus. A Crucificação está narrada no capítulo 19, ao

longo dos versículos 18 a 37. O autor inicia mencionando que Jesus foi crucificado em

meio a outros dois condenados e que sua cruz era identificada com um letreiro com os

dizeres “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Em, seguida, em uma clara alusão ao Sl 22, 19,

os soldados partilham as vestes de Cristo. Os versículos 15 a 27 são essenciais para o culto

mariano:

“Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena. Jesus, então, vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis teu filho!’ Depois disse ao discípulo: ‘Eis tua mãe!’ E a partir dessa hora, o discípulo a recebeu em sua casa.” (Jo 19, 25-27)

A exegese bíblica relaciona esse “discípulo a quem amava” ao discípulo João e, a

partir da tradição, a toda a humanidade representada no discípulo. Este é o principal trecho

legitimador quanto à questão da maternidade de Maria sobre a humanidade.

Após, Jesus pede água, referindo-se ao Sl 69, 22 e ao Sl 22, 16, recebe vinagre e

“entrega o espírito”. A versão de João também acrescenta a perfuração feita no flanco de

Cristo para averiguar sua morte. Assim, justifica não terem quebrado os ossos de Cristo,

pois segundo a ordem para comer o cordeiro pascal dada por Moisés em Ex 12, 46, o

cordeiro não deveria ter os ossos quebrados. Outras referências dadas por João estão

presentes em Sl 34, 21 e Zc 12, 10.

As descrições bíblicas, tanto do evento da Crucificação em si, tanto das profecias

que culminam nela possuem forte caráter emocional. Cremos que é essa visão dramática

inicial que possibilita interpretações posteriores, como a de Giotto, que elevam a um

caráter maior essa dramaticidade.

No ciclo em que se encontra a imagem da Basílica de São Francisco, as únicas

imagens referentes ao momento da Crucificação são estas aqui estudadas. Sendo assim,

Giotto precisou escolher eventos da narrativa da Crucificação que representassem todos os

outros ocorridos no mesmo episódio. Desse modo, ele demonstrava o que não só ele, mas a

espiritualidade do período mais valorizava no episódio da Crucificação.

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Quanto aos elementos que, na imagem, contém embasamento bíblico mais

explícito, a imagem da Basílica de São Francisco retrata: a) o Cristo preso à Cruz; b) Maria

e os outros personagens (Mt 27, 55-56; Mc 15, 40-41; Lc 23, 49; Jo 19, 25-27).

Detendo-nos na imagem em si mesma. Parte considerável da imagem é preenchida

por anjos, e esses apresentam uma interessante simetria: todos os que estão ao lado

esquerdo possuem um correspondente na mesma posição do lado direito. Entre os anjos

percebe-se o apelo emocional: enquanto um anjo ao lado esquerdo de Cristo se incumbe de

coletar o sangue sagrado que jorra de seu flanco, o anjo correspondente deste, ao lado

direito, rasga suas vestes expressando seu luto. Mais do que se responsabilizar por coletar o

sangue de Cristo, o que é praticado por três anjos, eles tem um papel fundamental na trama

de dor que envolve a cena.

Consideramos três principais “núcleos” na imagem: à esquerda Maria como centro

de atenção dos personagens; ao centro o Cristo crucificado, em torno do qual gira toda a

imagem; e à direita os franciscanos, os quais embora voltem sua atenção em Cristo,

desenvolvem um papel à parte e particular, o que chama a atenção para os mesmos. Vamos

analisar cada um destes núcleos e as ligações que estabelecem entre si.

No lugar nobre da imagem, no centro, está Cristo preso à cruz. Já está morto, os

relatos evangélicos dizem que ele foi perfurado em seu flanco após sua morte, e aqui o

sangue proveniente do mesmo já escorre.

A imagem de Cristo crucificado reúne dois elementos que por muito tempo

caminharam separados na iconografia cristã: Cristo e a Cruz. Desde a Alta Idade Média, a

representação de Cristo é majoritariamente enquanto Pantokrator, palavra grega para

“Todo Poderoso”, comumente associado à imagem em que Cristo aparece fazendo o sinal

de benção com a mão direita e um livro na mão esquerda. Ou seja, um Cristo em glória, em

majestade, divino, que mesmo que fugisse dessa representação clássica, em representações

de cenas do evangelho, por exemplo, ainda assim tendia a ser caracterizado pela

pomposidade e poder. Esse leque de figurações de Cristo tende a aumentar com a

espiritualidade advinda e influenciada pelas ordens mendicantes (WARNER: 1976, 211).

Um dos primeiros relatos que temos de devoção a imagem do crucificado é com

relação ao culto a imagem do Cristo crucificado seminu na cidade de Narbonne, no século

VI (SCHMITT: 2007, p. 168), onde a população contemplava uma imagem até antes

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praticamente desconhecida, só vai se popularizar muito mais tarde com essa nova forma de

ver o Evangelho.

Na imagem, há algo que merece destaque no núcleo em torno de Cristo: a cruz tem

a forma de um tau. A parte de cima do tau não é a sua continuação, apenas sustenta o

letreiro. Uma imagem buscava por vezes na intenção de quem a encomendava suas

inspirações, assim, buscamos dentro da imagem produzida de Francisco pelas hagiografias

oficiais a inspiração para a representação do tau no lugar da cruz clássica.

A cruz em forma de tau, letra do alfabeto grego, é significativa na vida e na

espiritualidade advinda de Francisco. Na Legenda Maior (LM), São Boaventura nos diz

que Francisco tinha uma predileção especial pelo tau por ser próxima à representação da

cruz, que o mesmo queria fazer como o profeta Ezequiel (Ez 9, 4) e imprimir este símbolo

em todos aqueles que sofrem e gemem, e de todos os que sinceramente se converterem

(LM, Cap IV, 9). Em outra passagem de sua obra, São Boaventura relata que Francisco

apareceu em visão a um doente, e este com um graveto em forma de tau tocou o enfermo,

fazendo com que esse ficasse curado, e no lugar da enfermidade esta foi gravada. (LM,

Cap. X, 6).

A percepção nova a respeito do divino, sua humanização, produz um Cristo

sofredor. A intenção de quem encomenda, o lugar onde está, produz um Cristo sobre o

TAU, um “Cristo franciscano”.

O núcleo à esquerda gira em torno de Maria. Ela aparece apoiada por três

personagens, dos quais dois aureolados. Maria não só é apoiada, mas desfalece, a cabeça

pendendo em sinal de sofrimento. Ela não está acompanhada de João, este está em pé, com

as mãos próximas ao rosto tendo seu olhar fixo no crucificado.

Maria aparece nas imagens de Giotto deste ciclo (Imagem I) vestida de azul,

sempre com o mesmo manto. Ela se apresenta na cena da Crucificação diferente, um manto

pálido, cabelos soltos, distanciando-se das outras representações. O que nos permite então,

identificar esse personagem como a Virgem Maria? Essa personagem é a que mais se

sensibiliza com o acontecimento, em sua expressão de dor, corpo desfalecendo etc, se

exprime um grande drama, tal como aquele que os anjos passam. O estudo do culto à

Maria em dor nos permite identificá-la como tal em várias referências culturais.

O hino Stabat Mater, do século XIII, reflete sobre as dores de Maria ao ver o filho

sendo crucificado. O culto à Maria em dor começa a crescer na Itália, França, Inglaterra,

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Países Baixos e Espanha, para, até ao final do século XIV, ser popularizado (WARNER:

1976, 210). Este toma maior robustez com o culto às sete dores de Maria, as representações

de espada em torno de seu coração, conforme a profecia de Simeão.

Nas laudas, o objetivo da atenção dada às dores tem como objetivo comover o

laudantes (VISALLI: 2004, 241), seu sofrimento é sempre acompanhado do sofrimento de

Cristo. Para Marina Warner (WARNER: 1976, 223), a Mater Dolorosa consola o sofrido

porque ela partilha seu sofrimento, e mais que isso, satisfaz a necessidade de ver que seus

sofrimentos estão em uma linguagem universal.

Por fim, encontramos no núcleo em torno de Francisco de Assis, um importante

item a ser estudado. Ao lado direito da cruz estão alguns soldados e civis em pé, ajoelhados

estão os irmãos franciscanos.

São claramente visíveis três franciscanos. À esquerda Francisco, à direita Santo

Antonio e um outro franciscano sem auréola no meio. Giotto utiliza de sua técnica para

retratar mais dois franciscanos que, se não forem observados bem atentamente, poderiam

ser menosprezados: suas silhuetas surgem atrás de Santo Antonio e do outro franciscano.

Essa técnica dá volume, Giotto não quis representar cinco franciscanos, mas toda a Ordem

dos Frades Menores é liderada por Francisco que está à frente, mas todos estão enquanto

grande ordem diante do Cristo crucificado.

Francisco tinha uma predileção especial pelo Cristo crucificado: é através da

imagem do crucifixo que escuta por três vezes a ordem “Francisco, vai e repara a minha

casa, que como vês está toda a cair” (LM, Cap. II, 4). Numa manhã na Festa da Exaltação

da Santa Cruz, Francisco rezava em uma montanha quando viu um serafim descendo do

céu, e nessa criatura Francisco pôde observar um corpo humano crucificado. Boaventura

nesse trecho da narrativa diz que “Esta aparição deixou-o profundamente assombrado,

enquanto no coração se lhe misturava a tristeza com a alegria: alegria pela expressão

benigna com que se via observado por Cristo no Serafim – tristeza, porque ao ver o

sofrimento de Cristo pregado à cruz, uma espada de dor lhe trespassava a alma com

dolorosa compaixão” (LM, XIII, 5-6)4. Com essa visão, Francisco recebe as marcas em seu

próprio corpo e torna definitiva a relação do Santo – e da ordem – com o Cristo

crucificado. Como já dissemos, foi a espiritualidade do pobre de Assis que colaborou com

4 Lc 2, 35. Trecho da Profecia de Simeão sobre Maria, é o mesmo trecho que mais tarde fará surgir na iconografia da Mater Dolorosa pequenas espadas ao redor de seu coração.

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emergência desse culto ao Cristo humano, sofrido e morto. Converteu-se pelo crucifixo,

seu manto tinha forma de cruz e, por fim, recebeu as marcas dessa mesma cruz,

Mas, podemos nos perguntar se a presença destes franciscanos na cena da

crucificação ocorre somente pelo apreço da ordem pelo tema. Cremos que não. A ordem

franciscana expandiu-se rapidamente, em poucos anos dominava toda a Europa. Setenta

anos depois da fundação da Ordem, o papa (Nicolau VI) era franciscano. A ordem

precisava de uma constante reafirmação: diante dos próprios franciscanos e de toda Igreja.

Reafirmação dos ideais evangelísticos e condutores da ordem, reafirmação frente à Igreja

de uma forma de cristianismo que se diferenciava radicalmente de outras formas de vive-

lo, mais próxima ao monaquismo de séculos anteriores e a não preocupação com a

pobreza.

A crucificação é o momento auge do Novo Testamento, e consequentemente de

todo o cânon. Assim, percebemos um importante papel das imagens, que não foi destacado

anteriormente, e não se limitam somente ao medievo. Elas legitimam poder.

A imagem da corte celeste foi por diversas vezes ao longo do medievo associado

ao poder temporal dos monarcas (KLANOVICZ: 2009), legitimando-o. A imagem da

Corte Celestial dentro da sala de um governante legitimava o poder deste, seu poder

temporal era reflexo do poder espiritual de Cristo. Seguindo a mesma linha de pensamento,

os franciscanos da crucificação de Giotto legitimam e reafirmam os ideais da ordem. Além

disso, recordava a espiritualidade advinda da mesma e que logo se espalhou pelo

cristianismo de fins do medievo.

Os dois núcleos, de Maria e de Francisco dependem do Cristo crucificado, os dois

chamam a atenção para si, mas apontam para o centro da imagem. Giotto não inovou, não

foi o único a fazê-lo, Cimabue pintou uma cena da crucificação na Igreja Superior em 1280

e apresentava todos os elementos aqui estudados, ainda que com uma menor

dramaticidade, mas a imagem aqui estudada bem traduz os valores de um cristianismo que

passava por mudanças, vinda da inspiração do próprio pintor, Giotto, ou ainda sob ordem

direta dos franciscanos, a imagem vem legitimar aquela que mais tarde seria uma das mais

importantes ordens e que teve papel essencial na evangelização do novo mundo

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REFERÊNCIAS:

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KLANOVICZ, J. (et al.). “Venha a nós o Vosso reino”: a legitimação da Corte Medieval através da imagem da Corte Celestial. In: Mirabilia, 9, 2009, pp. 133-147.

SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

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VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

VISALLI, Angelita Marques. Cantando até que a morte nos salve: estudo sobre laudas italianas dos séculos XIII e XIV. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2004.

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________; OLIVEIRA, Terezinha (orgs.) Leituras e imagens da Idade Média. Maringá: EDUEM, 2011.

WARNER, Marina. Alone of All her Sex. The myth and the cult of the Virgin Mary. New York: Vintage Books, 1976.

Legenda Maior de São Boaventura. Introduções: Frei David de Azevedo, OFM; Tradução: Frei José Maria da Fonseca Guimarães, OFM. Disponível em: http://www.editorialfranciscana.org/files/5707_1_S_Boaventura_Legenda_Maior_(LM)_4af84ffa4a4a6.pdf, acesso em 30/08/2012.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.

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Crédito das imagens

Imagem I – Vista do transepto norte da Igreja Inferior da Basílica de São Francisco, Assis. Disponível em: http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/lower/ceiling/00ceili3.jpg, acesso em 10/03/2012.

Imagem II – Afresco “Crucificação”, Igreja Inferior da Basílica de São Francisco, Assis. Disponível em: http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/lower/ceiling/09christ.jpg, acesso em 10/03/2012.