boaventura souza santos rodaviva

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  • 8/8/2019 Boaventura Souza Santos Rodaviva

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    Boaventura de Souza Santos

    8/4/2002

    Os problemas da globalizao neoliberal e o outro mundo possvel da globalizao alternativa no discurso inspirador do

    socilogo portugus

    Herdoto Barbeiro: Ol, boa noite! Ele um dos principais tericos da globalizao alternativa e vem pregando ao mundo anecessidade de uma resistncia coletiva ao modelo atual, que o da globalizao neoliberal. O Roda Viva entrevista esta noiteo socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

    Cludia Tavares: [voz em off, enquanto passam imagens sobre Boaventura de Sousa Santos] O nome conhecido e reconhecidonos principais ambientes acadmicos do mundo. Boaventura de Sousa Santos, especializado em sociologia do direito, um dosmais respeitados socilogos de Portugal e foi uma das personalidades estrangeiras que mais atraram a ateno no Frum SocialMundial de Porto Alegre de 2002 [ocorrido entre 31 de janeiro e 5 de fevereiro]. Aos 61 anos de idade, ele a encarnao domovimento de resistncia globalizao neoliberal. Teoriza a busca de uma globalizao alternativa, dentro da idia de que noexiste apenas um caminho nico para o mundo, que possvel encontrar outras sadas sem a excluso social que o atual modelo

    vem impondo a uma grande parcela da humanidade. Pelos clculos do Banco Mundial, dos pouco mais de seis bilhes dehabitantes da Terra, quase trs bilhes vivem, cada um, com menos de dois dlares por dia. Entre ns, a Fundao GetlioVargas calcula que trinta por cento dos brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza. O impacto do atual modelo de economiamundial na vida dos pases emergentes e pobres tem sido o tema central dos estudos e dos livros de Boaventura de Sousa Santos.Ele acaba de organizar e publicarA globalizao e as cincias sociais. O livro rene textos prprios e de outros quinzeintelectuais portugueses. Como outros pensadores de outros pases, eles tambm esto envolvidos nos questionamentos polticos,econmicos e sociais do momento e buscam as bases das mudanas que possam abrir os caminhos para a "globalizaoalternativa".

    Herdoto Barbeiro: Bem, eu vou apresentar agora os nossos convidados para a entrevista com o professor Boaventura. Ao meulado est o socilogo Emir Sader, que professor doutor e coordenador do Laboratrio de Polticas Pblicas da UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro; a arquiteta Regina Meyer, doutora professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo daUniversidade de So Paulo; Teresinha Rios, doutora em educao e professora da PUC [Pontifcia Universidade Catlica] de

    So Paulo; a vereadora Aldaza Sposati, do PT [Partido dos Trabalhadores], que tambm professora doutora e professora deps-graduao da PUC; Francisco Withaker, que o secretrio executivo da Comisso Brasileira de Justia e Paz e membro doComit de Organizao do Frum Social Mundial; o cientista Carlos Novaes, aqui da TV Cultura de So Paulo; e o economistaLuiz Gonzaga Beluzzo, que editor da revista Carta Capital e tambm professor da Unicamp [Universidade Estadual deCampinas]. O programa Roda Viva transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e tambm para Braslia,mas hoje no vai ser possvel a sua participao por fax, por telefone ou por e-mail, como voc est acostumado a fazer, porqueo nosso programa est gravado. Professor Boaventura. Boa noite, professor.

    Boaventura de Sousa Santos: Boa noite.

    Herdoto Barbeiro: Professor, eu gostaria de fazer uma pergunta ao senhor, recm-participante do Frum Social de PortoAlegre, na condio de estrangeiro, uma vez que ns estamos j imerso na campanha poltica eleitoral no nosso pas. Algumaspessoas acusaram o Frum Social de Porto Alegre de ter se transformado em um imenso palanque do PT. Como o senhor esteve

    l e eu gostaria de comear com um tema polmico, eu gostaria de saber se o senhor concorda com essa afirmao, se realmenteo Frum Social de Porto Alegre foi um imenso palanque do PT.

    Boaventura de Sousa Santos: A, eu pergunto: o PT... mas o PT demasiado pequeno para o que ns vimos em Porto Alegre. Efoi um frum, realmente foi um palanque, mas um palanque do mundo, que uma coisa muito mais ampla. E, portanto, eu pensoque as milhares organizaes que l estiveram presentes, os movimentos sociais de tantas dezenas de pases, realmente so agarantia de que o Frum no poderia ser apropriado politicamente por nenhuma organizao. evidente que, tendo que divulgarna cidade de Porto Alegre, que est sediada no estado do Rio Grande do Sul, ambos com... onde est o PT, natural que osgovernos, quer o municipal, quer o governo estadual, tivessem uma presena nesse frum, uma vez que sobre ele caiu tambmparte do trabalho organizativo. Mas penso: no, no me dei conta desse tipo... no penso - se houve alguma tentativa deaproveitamento, penso que ela foi irrelevante, porque a maioria das pessoas que estavam presentes no se davam conta dessaluta poltica, nem das lutas internas dentro do PT, nem das lutas presidenciais deste momento. Penso que foi relativamenteirrelevante; seria a minha leitura.

    Herdoto Barbeiro: Carlos Novaes.

    Carlos Novaes: Professor, quem foi ao Frum Social Mundial pde ver uma diversidade enorme, uma pluralidade enorme dediagnsticos e de alternativas e de agentes sociais. Eu lhe perguntaria o seguinte: como que o senhor v a possibilidade de

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    construo de sujeitos, de atores polticos que transformassem essas diferentes vozes em veios de ao prtica e detransformao? Porque a globalizao altamente complexa, como o senhor mostra no seu livro - o senhor pretende, inclusive,que se fale de "globalizaes" e no apenas de "globalizao" -, o adversrio, digamos, muito poderoso e o que se nota aindauma desarticulao. Pelo menos para aqueles acostumados s formas de ao poltica e de ao estratgica do passado, se notauma desarticulao dos atores. Como que o senhor v, se que necessria, a superao dessa desarticulao para que seobtenha, realmente, resultados?

    Boaventura de Sousa Santos: Eu penso que tem razo, sobretudo se ns olharmos para esse movimento luz do que foram osmovimentos anteriores. evidente que a sensao que ns temos de fragmentao, de desarticulao, de incapacidade da ao,

    exatamente porque no configura... Estamos esperando um fato poltico novo que exija uma anlise poltica e uma teoria polticanova. Todos ns estvamos habituados a ter um sujeito histrico relativamente definido, quer fosse em termos de classes ou emoutros que tinham uma forma organizativa - no caso da classe operria, era o partido comunista ou socialista, consoante oscontextos, e, naturalmente, o movimento sindical, que veiculava, por sua vez, um conhecimento considerado cientfico domarxismo, da cincia moderna, qual tinha, digamos, uma dimenso do nvel de oficialidade que, com o tempo, iria se impor atodo o mundo. Da, estamos em um mundo completamente distinto: centenas de organizaes so sujeitos; realmente, todos elesso sujeitos histricos; mas no h "um" sujeito histrico, porque o problema que estas organizaes e movimentos queestiveram presentes - evidente que esto a fazer um trabalho concreto -, provavelmente, no esto a trabalhar numa alternativacomo a "grande". Mas esto a trabalhar em alternativa como a "pequena". Venham da ndia, de Moambique, de qualquer pas daEuropa, dos Estados Unidos, eles esto envolvidos em lutas concretas que representam alternativas globalizao neoliberal. Eque so uma forma alternativa de globalizao, na medida em que elas j esto, digamos assim, interligadas, a constituir umarede que ainda embrionria. E j responde, exatamente, por que penso que... tenho isso em mente: ainda embrionria, umarede que tem que se consolidar, que tem que se fortalecer, mas que existe j e, portanto, neste momento ainda o sujeito... Como

    eu costumo dizer: em Porto Alegre, no Frum Social Mundial, so sujeitos todos aqueles que se recusam a ser objetos. No hum sujeito histrico privilegiado de fato, e no h sequer um movimento que possa desmoralizar todos os outros. Pode havertentativas, mas no h... e, portanto, ns estamos em um movimento novo, em um fato poltico novo. Penso que, efetivamente, notenha ainda eficcia, que tenha que ganhar fora, e at bom que tenhamos conscincia de que no temos a fora que aquelesdias exultantes de Porto Alegre fazem crer. evidente que h muito trabalho a fazer - h um trabalho de rede, h um trabalho deorganizao -, mas que, se notarmos, do ano passado para este, ns j notamos um avano extraordinrio. E, depois, se quiser,podemos detalhar em que termos que eu vejo esse avano.

    Herdoto Barbeiro: Professor Almir Sader.

    Almir Sader: Professor Boaventura, considero que o senhor representa de maneira mais expressiva o esprito de Porto Alegre,esse espao de criao de alternativas. Depois de ter terminado o Frum passado, o presidente da Repblica do Brasil disse quea alternativa Davos-Porto Alegre [referncia oposio entre o Frum Social Mundial e o Frum Econmico Mundial, este

    realizado anualmente em Davos, na Sua, e que tem, para muitos, a imagem de um difusor das idias neoliberais] falsa ou nod conta das coisas. Eu queria que o senhor expressasse em que medida essa polarizao, esse Frum Econmico, que continuatendo o nome de Davos, e o Frum Social, que continuar tendo o nome de Porto Alegre, do conta das grandes alternativas domundo hoje.

    Boaventura de Sousa Santos: Com todo o respeito que tenho pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, eu acho que ele seequivocou. Eu acho que h, realmente, uma alternativa. Eu acho que essa alternativa hoje muito mais criativa do que era no anopassado e temos uma srie de sinais disso, mesmo. Veja em que medida, quanto tempo se ocupou em Davos - e, agora, em NovaIorque - a falar de Porto Alegre. Ou seja, de alguma maneira, ns contribumos para uma mudana da agenda da prpriadiscusso daqueles que estavam do "outro lado", digamos, do "muro", quando isso tudo se comeou com as demonstraesanti-globalizao. Por outro lado, ns assistimos a vrios ministros, membros do governo etc que optaram ou por vir aqui, oualguns at pretenderam ir a Nova Iorque e vir aqui - evidente, no como prolongamento, porque, se fosse prolongamento, ou seno houvesse aqui uma clivagem, eles no iriam fazer, no iam dar-se ao trabalho de vir aqui. Portanto, eu penso que, hoje, est

    consolidada no mundo - e isso um grande fator poltico que o Frum constituiu -, est consolidada a idia de que h umaglobalizao alternativa, a de solidariedade, e [a idia de] que vamos passar por um perodo de confrontao que vai ter,naturalmente, diferentes nuances, que vai ter diferentes meios de diferentes pases, que vai ser lutada a nvel global, local etambm nacional; mas que est a ser consolidada no sentido de que, como aconteceu historicamente, evidente que osenfrentamentos e as confrontaes podem vir a dar origem a dilogos quando houver, realmente, essas condies. Agora, asalternativas esto constitudas, o mundo j as viu e, portanto, penso que, nesse sentido, no h dvida nenhuma de que ns, hoje,temos duas globalizaes que se enfrentam, que disputam, digamos assim, at a ateno dos meios de comunicao mundial. E,de alguma maneira, parece que o tempo corre a favor do Frum Social Mundial, na medida em que os problemas que nsidentificarmos - e que identificamos j h bastante tempo - [aos quais] o Frum foi dando voz ao longo dos tempos, essesproblemas adensaram-se extraordinariamente nos ltimos tempos. A questo da fome, da misria, da desigualdade social, dadestruio do meio ambiente... De tal maneira que os arautos da globalizao neoliberal, podemos dizer que perderam um poucoa confiana epistemolgica, quer dizer: continuam a dominar o mundo, mas j no tm a confiana que tinham e, por isso,naturalmente esto curiosos, querem saber o que, afinal, essas pessoas pensam, por que pensam. Porque, se no folclore, foi um

    debate, um debate srio, um debate vivo, um debate com razes. E eu penso que, realmente, essas alternativas esto hoje maisconsolidadas do que estavam anteriormente.

    Herdoto Barbeiro: Governadora [vereadora] Aldaza Sposati.

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    Aldaiza Sposati: Bem, professor Boaventura, eu queria perseguir um pouco a linha de reflexo que o Novaes trouxe aqui.Porque eu acho que, para mim, marcou muito neste Frum Social, exatamente, essa presena de mltiplos atores; eu acho quemuito mais que no Frum anterior, em que eu estive tambm - esta complexidade de mltiplos atores. E, numa das mesas em queestive acompanhando os debates, por exemplo, houve um certo grau de censura, digamos, a um novo ator empresarial que, aoassumir a responsabilidade social, atua de um outro modo em relao ao mercado. Ento, aparecendo um processo tambmseletivo nessa sociedade de solidariedade. Mas eu levanto essas questes at para lhe ouvir um pouco, e ouvir um pouco assim:nessa complexidade, [sobre] o novo papel do Estado ao se colocar neste conjunto de atores - digamos, o grau de presena,partilha, que o Estado deve ter nessa sociedade complexa e nessa rede complexa.

    Boaventura de Sousa Santos: Pois , evidente que essa... A primeira questo, no que diz respeito quilo que chamam hoje deempresariado socialmente responsvel, e que tem no Brasil, alis, uma dimenso bastante interessante... Alis, um dospromotores e organizadores do Frum tem sido uma figura de proa nesse movimento [refere-se a Oded Grajew, fundador doInstituto Ethos]. Alis, na altura, ainda agora em Porto Alegre, me convidaram para um encontro que vo ter em maio, em SoPaulo. Bem, o que eu lhe diria que um problema extremamente complexo e ns temos feito j alguns estudos e at um outroprojeto sobre a dimenso da emancipao social em que estou a trabalhar e em que, alis, colaborou tambm aqui o professorEmir Sader. Ns estamos a analisar essas formas alternativas de responsabilidade social, que representam, realmente, um novopadro de regulao social e das polticas sociais. E analisamos... Alis, uma colega nossa, uma professora aqui da USP, umaquerida amiga, Maria Clia Paoli, que fez um estudo exatamente sobre o empresariado e a questo da responsabilidade socialcom muita entrevista, com muitos dados [esse estudo deu origem ao captulo "Empresas e responsabilidade social: osenredamentos da cidadania", de autoria de Maria Clia Paoli, no livro organizado por Boaventura de Sousa Santos,Democratizar e democracia: os caminhos da democracia participativa, publicado em 2002]... Bem, a imagem que emerge uma imagem extremamente complexa, ou seja, no podemos, realmente, generalizar com grande facilidade. Por qu? Bem,

    primeiro, porque detectamos que todas essas atividades de responsabilidade social esto muitas vezes no balano das empresas,no item de marketing ou de relaes pblicas, o que significa que as empresas buscam transformar a sua imagem, no buscamoutra coisa. No estamos a generalizar, estamos a falar de alguns casos. Por outro lado, alguns dos empresrios socialmenteresponsveis so tambm aqueles que com mais veemncia, talvez, criticam as polticas pblicas do Estado e so adeptos daprivatizao. E, portanto, de alguma maneira parecem, os prprios, coniventes com a idia dos desmantelamentos dos direitossociais e econmicos, na base dos quais sempre estiveram as polticas pblicas. [...] que se entenda que esse empresariadosocialmente responsvel no pode de modo nenhum substituir ao Estado, no tem possibilidade de garantir direitos. Nopodemos substituir uma cultura de cidadania, de direitos, por uma cultura de filantropia. Porque demasiado tarde, penso eu, nonosso tempo, para que isso possa ser aceito e possa ser, digamos assim, passado despercebido. As pessoas hoje tm uma grandeconscincia j dos seus direitos e tambm tm muita conscincia da falta que esses direitos lhe fazem quando no soefetivamente cumpridos. Portanto, eu penso que esse movimento deve ser analisado igual[mente] aos movimentos deorganizaes no-governamentais. Tambm hoje no podemos passar um cheque em branco s organizaes no-governamentais.Eu tive ocasio, alis, de dizer isso mesmo no painel sobre a democracia participativa. Ento, h que analisar, h que estudar,

    porque h realmente empresas que esto decididamente a transformar-se em novos atores, na medida em que chegaram concluso de que o mercado democratizado... Eu penso que a melhor maneira de democratizar o mercado reduzi-lo. Em grandemedida... h reas para onde ele no foi pensado, digamos assim: na rea das polticas sociais, neste momento. E da que eu memanifesto contra a privatizao. Agora, penso que esses novos atores vo criar nova complexidade. Ns temos hojecomplexidade na regulao do Estado. Eu penso que ilusrio pensar que o Estado deixou de ser um ator importante. E ele notem hoje o monoplio da regulao social, mas detm o monoplio daquilo que eu chamo "a meta-regulao social", ou seja, eletem que regular o regulador porque, se no for o Estado a regular o regulador - naturalmente com conceitos, com a participaoda cidadania, que tem que ser cada vez mais intensa -, evidente que, se essa regulao no tiver lugar, aqueles que hoje esto frente da prestao dos servios pblicos podem pr a lgica do lucro acima de todas as outras - e, nesse caso, naturalmente, osdireitos sociais e econmicos e at os mais bsicos estaro em risco. Ento, eu penso que estamos para um movimento maiscomplexo em que o Estado, de fato, vai ser muito mais contraditrio. E, talvez por isso tambm, um campo de anlise, deestudo e tambm de interveno muito importante.

    Herdoto Barbeiro: Professor Beluzzo.

    Luiz Gonzaga Beluzzo: Professor Boaventura, vamos continuar no tema do Estado, porque eu acho que ele central, digamos,para a compreenso, exatamente, das correntes de complexidade que movem hoje o mundo moderno, o seu enfraquecimento ou asua fora. No caso, por exemplo, americano, est claro que o Estado foi um ator importante no perodo recente de globalizao,sobretudo apanhando as suas empresas e, na verdade, aceitando a exposio, a explicitao de relaes incestuosas entre opoder privado e o pblico - no caso americano. O jornalista William Pfaff, que americano, disse que, nos Estados Unidos, nsestamos diante de uma plutocracia [sistema poltico no qual o poder exercido pelos mais ricos]. Essa nova instrumentalizaodo Estado pelo mercado - que um dos fenmenos mais marcantes, eu diria, do processo atual e que eu tambm entendo quetenha a ver com a sua expresso feliz, que do "fascismo societal" - e, ademais, a perda de percepo dos agentes individuais arespeito do que lhes acontece e dos processos sociais e polticos que os submetem, isso coloca para ns outros - que,supostamente, somos observadores crticos sem nenhuma pretenso da globalizao - a questo das relaes que ns propomosentre Estado, sociedade e economia. Porque essas relaes no so fceis de se encaminhar, dado o fato de que o avano, por

    exemplo, da concentrao capitalista, do despotismo do capital financeiro, do comando... Porque o capital financeiro - paramim, sobretudo - o comando e a regulao da concorrncia hoje em dia; ento, ns temos que ter propostas claras, porque oEstado j foi, digamos, apanhado, j, por esse sistema econmico, as relaes j esto muito ntimas, para no dizer incestuosas.

    Boaventura de Sousa Santos: Pois eu acho que essa uma questo tambm fundamental. Exatamente porque, se ns olharmos a

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    histria do capitalismo - sobretudo do capitalismo que dominou nos pases do norte e que, de alguma maneira, foi o queestabeleceu o tom, quer no perodo colonial quer no perodo do imperialismo -, esse capitalismo foi um capitalismo em quehouve realmente uma disputa entre, digamos, um princpio de Estado que comeou a querer regular a economia socializando aeconomia, mostrando que o trabalho no era apenas uma fora produtiva, era tambm relaes sociais, eram homens e mulheres,eram famlias que queriam levar os seus filhos escola e que deveriam ter direito a comprar os produtos que os prpriosproduziam e que no podiam ficar fora desse mercado. E foi a que se gerou uma tenso entre o mercado que, por sua vez,pensava que se podia auto-regular, o que, obviamente, no era verdade, porque esse mercado exigia uma presena do Estadopara todos nveis, nomeadamente ao nvel da represso, porque era importante que o Estado assegurasse a explorao, digamosassim, do trabalho. E o Estado, de alguma maneira, sobre a [...] das classes populares e nomeadamente da classe operria, foi,

    realmente, regulando esse mercado. E, portanto, a tenso foi entre o Estado e o mercado. E criou-se, a certa altura, uma idia quefoi a idia do mirante da social-democracia, [de] que uma economia de mercado seria at aceitvel - dentro do seu limite: desdeque o mercado fosse regular -, mas uma sociedade de mercado seria eticamente repugnante. E, portanto, o Estado teve comofuno histrica criar interaes no-mercantis. Um operrio, uma famlia quer mandar seu filho escola; bem, se no temdinheiro, h uma escola pblica onde ele pode ir. Se estiver sujeito interao mercantil, no tendo dinheiro, no podia mandaro filho escola. O operrio ou a sua mulher est doente e no tem dinheiro: se houver um sistema pblico de sade, naturalmenteque poder curar-se; se no houver e ele no tiver dinheiro, no pode de modo nenhum e ele morre. E era a situao que ocorriade fato no sculo XIX. De maneira que o Estado foi criando essas interaes no-mercantis e foi assim que se criou o tal modelosocial-democrata. evidente que, na origem desse modelo, a idia de que seria uma via possvel para o socialismo - no foi,mas foi uma forma de tornar o capitalismo e a democracia de alguma maneira compatveis. E ns estamos nesse momento numasituao totalmente outra e que...

    Herdoto Barbeiro: Oposta...

    Boaventura de Sousa Santos: ...oposta; o mercado, de alguma maneira, agora canibalizou o Estado. Em vez de ser o Estado aregular o mercado, aparece o mercado a regular o Estado. Foi assim que se chamou desregulamentao - que no foi nenhumadesregulamentao, foi uma re-regulamentao, foi uma regulamentao diferente; e a prova que ns passamos de um Estado debem-estar para os cidados para um Estado de bem-estar para as empresas. Nunca houve tanto subsdio a fundo perdido, nuncahouve tanto incentivo, nunca houve tanto apoio s empresas quando esto em situao, digamos assim, de insegurana, que eraexatamente o que o Estado de bem-estar tinha feito para os cidados. Portanto, isso um modelo novo e um modelo realmenteque tem que ser analisado por todos ns [...]. E por isso que eu digo que seria um erro enorme para as foras progressistaspensarem que o Estado deixou de ser importante, um grande equivoco desse livro da...

    Herdoto Barbeiro: O imprio [livro de Antonio Negri e Michael Hardt, publicado em 2001].

    Boaventura de Sousa Santos: ...O imprio, que realmente um grande equvoco, exatamente por isso: porque seria um

    equvoco pensar que o Estado no importante. Porque ele at, inclusivamente, importante sobretudo porque ele quedecide a sua no-importncia. Portanto, importante que a gente tome conta nessa medida. Portanto, e acho que, nessa medida,as lutas tm que ser - talvez no sejam s as lutas dentro do Estado, digamos assim, mas tambm no so as lutas fora do Estado,como se quis durante, digamos, alguns dos campos de esquerda. Ns hoje no nos podemos dar... digamos, a ter o privilgio deter lutas fora do Estado ou dentro do Estado, temos que juntar todas com o mesmo entusiasmo e com a mesma dignidade e amesma seriedade e tambm a mesma idia de no-violncia. Eu penso que importante.

    Luiz Gonzaga Beluzzo: O capitalismo produz seus corretivos?

    Boaventura de Sousa Santos: Como?

    Luiz Gonzaga Beluzzo: O capitalismo produz seus corretivos?

    Boaventura de Sousa Santos: Exatamente, sem dvida, sem dvida.

    Herdoto Barbeiro: Chico, sua pergunta, por favor.

    Francisco Withaker: Pois no. Boaventura, eu vou passar para o outro plo, do Estado para a pessoa, no o indivduo, mas apessoa nas suas relaes diversas. Ns temos, no Brasil, uma realidade que o senhor, inclusive, conhece bem e j citou emmuitos dos seus trabalhos: o problema da desigualdade social insuportvel, um nvel... Inclusive, provavelmente, no mundo uma dos mais fortes. Que tem um outro aspecto trgico para ns, que a banalizao dessa desigualdade, isto , ela aceita -aceita como fato da realidade. Tanto assim que ela continua e se aprofunda; no se desenvolvem polticas diretamentevinculadas para esses problemas, s indiretamente. Agora, no Frum, veio uma, alm daquele encantamento que ele produziu emtodos ns... que, inclusive, torna difcil para quem no esteve l e [para] ns, que estivemos, traduzir aquela intensidade, aquelevolume, aquele sopro de esperana que nos percorreu a todos. Inclusive a Susan George [cientista poltica, ento vice-presidenteda Attac France (Associao para a Taxao das Transaes e para a Ajuda aos Cidados), uma das oito organizaes queconstituam o Secretariado Executivo do Frum Social Mundial de 2002], saindo, ela falou: "Ganhei energia para um ano detrabalho nesse Frum!" Realmente, foi uma coisa muito forte. Na verdade, para mim pareceu - e para quem no esteve l, queficou com as notcias insuficientes, distorcidas - [que] difcil transmitir tudo o que aconteceu. Mas, para mim, surgiu umanovidade importante nesse Frum, exatamente relacionada com a pessoa, quer dizer, a questo da mudana interior comocondio para mudar o mundo. Alm das mudanas de estruturas, haveria necessidade que, no objetivo, tambm houvesse uma

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    mudana no subjetivo, tanto no aspecto da no banalizao como no aspecto das prprias prticas dos que lutam - por exemplo,passar efetivamente da competio para a cooperao. Para quem luta na poltica isso um esforo muito muito forte. Agora,houve uma oficina especfica trazida por um dos grupos franceses sobre transformaes estruturais e transformaes pessoais.Houve uma conferncia que me impressionou. Eu tive oportunidade de ter sido facilitador dessa conferncia, que era sobre princpios e valores. Essa conferncia reunia um telogo cristo, um pesquisador marxista, uma feminista espanhola oupesquisadora e dois indianos ps-gandhianos. Era um leque realmente interessante. E havia nada mais, nada menos que duas milpessoas do Frum, uma das maiores presenas foi nessa conferncia. O tema atraiu. E para mim, inclusive, a coisa ficou muitoclara como proposta de mudana interior. At, um dos palestrantes disse: "Tudo bem, temos que mudar por dentro, ns todos,mas ns nos mudaremos por dentro tentando mudar a estrutura." Ou seja, no uma coisa antes da outra, mas uma coisa junto

    com a outra. Mas me impressionou muito, no final, na sesso do fechamento do Frum, aquele colombiano que trouxe aquelaconcha da qual ele tirava um som lancinante e, na fala dele, ele falava "mudana interior". Eu gostaria que o senhor dissessealguma coisa sobre essa questo.

    Boaventura de Sousa Santos: Obrigado por me dar a oportunidade de faz-lo, porque eu penso que estas transformaes pelasquais ns lutamos, elas tm que passar por essa transformao interior. Eu costumo dizer que no faz nenhum sentido criarmosmapas emancipatrios se no tivermos viajantes que os vo ler, que os vo usar. E, exatamente, a subjetividade da modernidadepouco a pouco desinteressou-se da emancipao, porque a prpria criao da subjetividade inconformista, rebelde, digamosassim. Ela foi, de alguma maneira, atravs de muitos sistemas, desde a sociedade de consumo, do sistema educativo e outrosgrandes instrumentos da modernidade, esse inconformismo que passou pela banalizao do horror e da violncia que nsassistimos todos os dias nos prprios meios de comunicao social - ou "nos mdia", como dizeis aqui... evidente que o quens temos realmente, hoje, como grande tarefa, penso eu, criar outra vez o inconformismo. muito importante que no nosdeixemos banalizar. Portanto, h um aspecto de pedagogia muito forte. Alis, um dos atrativos de Frum, e a razo por que ele

    produz esse encantamento, porque ele uma macia manifestao de pedagogia, onde todos aprendem sem que ningum ensine.E exatamente isso - que vem at da melhor tradio do Paulo Freire [(1921-1997), grande educador brasileiro, que sepreocupava com uma educao conscientizadora e libertadora] - uma pedagogia nova, onde muitas pessoas... Por exemplo,at com uma pequena idia simples - por exemplo, se ns, ao invs de construirmos um submarino, dedicssemos aqueledinheiro do submarino, quantas casas de habitao social poderamos construir na Amrica Latina? E as pessoas ficamabsolutamente espantadas. esta pedagogia, digamos assim, que tem que ser feita e essa, sim, que vai criar as taissubjetividades que se movem por causas e no por interesses. Veja que, mesmo quando se [...] todas as sociedades que lutarampelas grandes transformaes sociais... Houve realmente, por vezes, muita diviso de fracionalismo e etc. Por qu? Porque essasforas lutavam por causas e no apenas por interesses. A direita sempre se moveu por interesses e por isso que mais fcil elapr-se de acordo do que a esquerda, digamos assim. Ora, no mundo dos princpios que ns hoje devemos pr as nossascomplacncias. Sobretudo, por qu? Porque os princpios no tm fim, ou seja, so princpios que ns, durante muito tempo, namodernidade ocidental, pensamos que eram esses os nicos que existiam e esses eram os nicos valores; e, de fato, nosequivocamos completamente. Com base nesses princpios universais muita gente foi liqidada, muitos dos povos indgenas

    foram liqidados. Ora, hoje h, por um lado, um apelo a esses princpios, que so, no fundo, aqueles que podem mover a partirde dentro das pessoas, por ter que haver uma relao. E eu tenho discutido isso muito com militantes e com meu prprio trabalhodos direitos humanos: que no basta ter uma teoria dos direitos humanos, ela tem que ser uma relao que comea aqui dentrodo nosso corpo, para que a pessoa possa sujeitar-se aos riscos que normalmente essas lutas envolvem. Eu terminei recentementeum projeto na Colmbia e durante quatro anos estive a fazer esse projeto, pois entre cinco e dez - por no sabermos todos oscasos - dos meus melhores amigos foram assassinados, eram lutadores ativistas dos direitos humanos. Portanto, a subjetividadetem que ser mudada a partir de dentro. Mas como que se cria essa subjetividade? No pode ser imagem e semelhana doOcidente. Porque, veja, porque ns, a idia de pessoa... mesmo a Igreja, muitas vezes, deixou que a pessoa fosse absorvida ecanibalizada pela idia do individualismo. No pode ser. E at uma grande lio dos gandhianos [relacionados com as idiasdo Mahatma Gandhi (1869-1948), idealizador do moderno Estado indiano e que pregou a presso por mudanas polticas deformas no-violentas]: a grande lio das culturas orientais exatamente que a pessoa tem no s direitos, mas tambm deveres.Ela est em harmonia ou em desarmonia, no apenas consigo, mas com seus antepassados, com a sua famlia, com o cosmos e essa viso que nos pode dar, digamos assim, um outro interesse no mundo. Porque s quando o que acontece no mundo, essa

    desigualdade social [de] que falava, for algo que nos diz respeito - porque ns somos tambm vtimas dessa desigualdade e nopodemos ser parasitas dela -, s nesse momento que ns podemos ter essa transformao. E da que tem toda a razo e nstemos que encontrar formas de pedagogia onde se treine as subjetividades rebeldes, as subjetividades inconformistas. O Frum uma delas, muitas outras tero que ser criadas.

    Herdoto Barbeiro: Professor Boaventura, o senhor usou um termo...

    Boaventura de Sousa Santos: Como?

    Herdoto Barbeiro: O senhor usou um termo na resposta ao Chico Withaker, foi "direita". Aqui no Brasil, a imprensa tembatido muito nessa expresso, ao dizer: "No h mais direita e no h mais esquerda." E eu ouo muitos liberais e os sociais-democratas dizerem isso: "No h esquerda e no h mais direita." H ou no h esquerda e direita?

    Boaventura de Sousa Santos: Ah, claro que h.

    Herdoto Barbeiro: Claro?

    Boaventura de Sousa Santos: Claro que h, mais do que nunca. O que eles esto a referir... Ou seja, eu penso que, no modelo

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    de sociedade em que a gente vive, desde que ela se constituiu historicamente, no houve nenhuma mudana estrutural que fizessecom que essa esquerda e essa direita deixassem de existir. Como sabe, a esquerda e a direita constituram-se sobre as... A suadisposio foi no prprio parlamento. Depois da Revoluo [Francesa, de 1789], os lugares que ocupavam dentro do parlamento- a idia fundamental era de saber se efetivamente havia foras que estavam do lado, digamos, do status quo que ainda existia -porque os processos revolucionrios transformaram, alis, muito pouco, como, alis, por vezes, se sucede - e aqueles que, aocontrrio, tinham uma idia de transformao. E os prprios [que queriam as transformaes] totalmente divididos, porque haviaaqueles que entendiam que teria de haver uma transformao muito mais forte do que outros pretendiam... e a criamos dois tiposque seriam, poderiam, na [...] do seu nome, digamos assim: aqueles que eram a favor do status quo foram os conservadores e,mais tarde, ns comeamos a chamar de direita; por outro lado, aqueles que eram adeptos das transformaes. Que

    transformaes eram? Eram concesses, concesses que se deveriam fazer s classes populares, s classes que estavamexcludas, que no votavam, que no tinham nenhum tipo de poltica social, essas concesses poderiam ser maiores ou menores.E, ento, se eram menores, eles foram chamados os "demo-liberais"; se eram maiores, eram os "demo-socialistas". Mas todoseram a favor dessas concesses. Naturalmente que havia uma esquerda, digamos assim, extra-parlamentar, aquela que noacreditava de modo nenhum no jogo parlamentar, como um jogo suscetvel de poder levar a uma transformao na sociedade.Bem, neste momento, essas divises continuam, exatamente... Alis, um dos grandes equvocos do neoliberalismo intitular-seneoliberal, porque ele no realmente liberal nem neoliberal em relao ao liberalismo clssico. Ele uma outra verso doconservadorismo, porque o conservadorismo era, exatamente, hostil s concesses. S que o conservadorismo do sculo XIXtinha dois grandes princpios: por um lado, era hostil s concesses; por outro lado, defendia a soberania nacional. A idia danacionalidade, do nacionalismo, era muito forte. Bem, o neoliberalismo, o que faz transformar estas duas bandeiras numa s e,portanto, continua a ser bastante hostil s concesses. Por outro lado, abandonou, digamos assim, a idia da soberania, porque,entretanto, a economia globalizou-se muito mais do que j, altura, estava, embora na altura ela tambm j fosse uma economiaglobal. E, portanto, a bandeira da nacionalidade passou a ser usada mais relativamente. usada, alis, muito mais do que se

    pensa. Agora, essa diferena entre aqueles que esto do lado dos excludos e aqueles que esto do lado dos includos, no fundo,afinal, a grande diferena de esquerda e direita essa. A nossa sociedade cada vez produz mais excludos. J viu que seriaestranho que, se ns estivssemos a produzir cada vez mais os processos que justificaram a esquerda e a direita e elasdesaparecessem como por encanto... No, essa idia do fim da esquerda e da direita uma idia que vigorou e que tem vindo avigorar fundamentalmente por predomnio das teorias centristas, que exatamente eram teorias em que... J no sculo XIX, osliberais tambm, muitas vezes, tendiam a privilegiar a idia de que no h esquerda ou direita. Por qu? Porque eles erampressionados pela direita, pelo lado dos conservadores, e eram pressionados a partir da esquerda por demo-socialistas. Ento,estavam empacados no meio e, por isso, tendiam a dar a idia de que sua posio era a melhor, porque nem era de esquerda, nemde direita. Mas obviamente que, ao fazerem esta afirmao, eles estavam posicionados num centro que tinha uma esquerda e quetinha uma direita. E eu penso que ns nunca tivemos tanta densidade, nunca foi to visvel a clivagem entre esquerda e a direitacomo hoje. S que elas, hoje, j no so lutas nacionais apenas; ns, hoje, temos lutas globais. O Frum Social Mundial umaexpresso disso. Ou seja, ns comeamos hoje a ver que essas bandeiras da incluso social, no fundo, tudo [...] diferena; naesquerda tambm modificou-se muito isso. Veja que a esquerda, durante muito tempo, foi identificada at com o movimento

    sindical, por exemplo. Mas o movimento sindical aturou crimes ecolgicos tremendos, o movimento sindical aturou crimessexistas tremendos. Por qu? Porque no era considerada a luta fundamental, a luta fundamental era a luta contra a explorao. evidente que essa luta hoje muito importante. E longe de ns pensarmos que ela deixou de ser importante, mas h todas essasoutras lutas e, por isso, hoje, a luta contra o sexismo, a luta contra o racismo, fundamental na nossa sociedade. Portanto, hoje, aesquerda, digamos assim, aquela que luta pela igualdade, mas tambm por direito diferena. J no apenas uma luta pelaigualdade e pela incluso, tambm uma luta pelo reconhecimento da diferena, dentro de certos parmetros que, naturalmente,tm que ser os prprios objetos de negociao, de argumentao e de dilogo democrtico.

    Herdoto Barbeiro: Professora Regina.

    Regina Meyer: Eu vou continuar com o tom provocativo do primeiro bloco, dentro do segundo. Em seus textos, aparececonstantemente o adjetivo "neoliberal" para definir um tipo de globalizao. E eu acho que a adjetivao que os textos trazemmostra o quanto a opo segundo o que se est procurando com a globalizao sobredeterminada pela primeira. Porque eu

    sinto muito mais fora no seu texto quando o senhor define atravs desses adjetivos o processo que est ocorrendo do que asalternativas apresentadas. As alternativas, elas esto ainda, elas flutuam, do ponto de vista conceitual. Ento, eu acho, porexemplo, que o neoliberal forte, ele se explica, o senhor explica bem, mesmo os pases semi-perifricos que, para mim... Porque no se fala mais em pases subdesenvolvidos? A gente fala "pases semi-perifricos", o que j mostra que no h mais averticalidade. uma espcie de... um "dentro" e um "fora", estar no centro ou na periferia, que est contando.

    Boaventura de Sousa Santos: Ah, professora, eu acho que as alternativas tm um problema: que so "alternativas". H umanorma, por isso que a gente fala da alternativa. O fato de falarmos de alternativas tem uma armadilha a si mesmo: que ela, aoformular-se como alternativa, j est, de alguma maneira, a conceder que existe uma norma que dominante, em relao qualela se desvia. E, portanto, ns, no estado em que nos encontramos de fato, temos que definir como alternativa aquilo que ainda uma aspirao, exatamente porque estamos em um mundo onde no parece haver lugar para ela. Nem tal [...] me surpreende quens sejamos mais eloqentes a analisar exatamente essa realidade dominante e menos eloqentes ao vermos essas emergncias.Eu costumo dizer que, hoje, os socilogos precisam de uma sociologia de emergncia, ou seja: ns temos que, cada vez mais,

    atender aos sinais, aos traos, s pistas das coisas que so meramente embrionrias. Essas alternativas que ns vimos no Frume que vemos em muitos outros lugares, que podem ser completamente descredibilizadas... muito fcil [serem]descredibilizadas: "No, porque um pequeno grupo de homens", "No, porque um pequeno grupo de mulheres", " um grupode moradia naquela cidade"... Fceis de descredibilizar. Agora, verdade que elas hoje so menos fceis de serdescredibilizadas do que antes. Claro que o discurso da globalizao neoliberal hegemnica, ele mais denso na medida em que

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    ele fato, em que ele foi se instituindo no nosso mundo presente. No entanto, ele tem fraturas e comeamos a analisar as suasfraturas. Veja que, por simplicidade do nosso prprio discurso, por vezes falamos de "globalizao neoliberal". Mas evidenteque h diferenas. Por exemplo, entre a Unio Europia e os Estados Unidos. A Unio Europia tem uma presena macia aqui[no FSM] em termos relativos, mas uma presena macia para quem era, de alguma maneira, um dos grandes pilares daglobalizao hegemnica, juntamente com o Japo e os Estados Unidos. Os Estados Unidos, teve, sim, mas por um outro lado dasociedade civil, digamos assim, no pelo seu lado oficial. Por outro lado, sabemos que existem guerras enormes comerciaisentre a Europa e os Estados Unidos. E, alis, so essas guerras, de alguma maneira, que justificam um pouco a outra guerramilitar que os Estados Unidos, neste momento, esto a empreender a nvel global [desde 2001, a "guerra contra o terror", comonomeada pelo presidente estadunidense George W. Bush]. Portanto, a prpria globalizao hegemnica hoje mais internamente

    diversificada, mas evidente que a sua fora ainda torna um pouco visveis, para muitos, as alternativas. Simplesmente, elasesto a constituir-se. um processo histrico. E naturalmente que a histria tem mais pacincia que ns, porque ns temosidades limitadas, ns estamos sempre com aquela preocupao que o mundo mude durante o nosso prprio futuro. Da a nossaimpacincia. Agora, que os avanos... Veja, h quatro, cinco anos, ningum falava realmente que h uma alternativa, toda a gentepensava que a globalizao neoliberal no s era irreversvel como era nica, como no tinha nada diferente. Hoje....

    Regina Meyer: A nica racionalidade possvel, no ?

    Boaventura de Sousa Santos: A nica racionalidade.

    Regina Meyer: A sua questo com o [Manuel] Castells [socilogo espanhol], que aparece logo...

    Boaventura de Sousa Santos: Exato.

    Regina Meyer: ...no incio do trabalho... exatamente o que o Castells fala: trata-se de um processo objetivo e no de umaideologia e est sendo tratada como uma nica finalidade, nesse sentido.

    Boaventura de Sousa Santos: Exato, e por isso que ns tambm falamos dos "pases semi-perifricos". dentro de umcontexto do sistema mundial, que est, obviamente, em transio. E h alguns autores que pensam - o Castells exatamente umdeles - que hoje j no faz sentido falar de pases mais desenvolvidos e paises menos desenvolvidos, ou pases centrais e pasesperifricos ou pases semi-perifricos, que so aqueles pases em desenvolvimento intermdio, como , de alguma maneira,Portugal, como o Brasil, como a China neste momento, talvez como o Mxico, como a Colmbia, como a frica do Sul,dentro dos diferentes continentes. Bem, ns temos vindo a usar essa designao exatamente porque eu penso que esses pasessemi-perifricos, sobretudo os que tm grandes populaes, como o caso do Brasil, tm um papel enorme em transformar asregras do jogo e podem faz-lo. E, quando tentam, como ainda agora se viu na reunio da Organizao Mundial do Comrcio,ainda hoje no Catar [a quarta Reunio Ministerial da OMC, em Doha, no Catar, em novembro de 2001, que lanou a "Rodada

    Doha" de negociaes para aberturas comerciais], o caso da ndia e o caso do Brasil, foi possvel mudar as regras das patentesno que diz respeito aos retrovirais do HIV e Aids. Portanto, essa possibilidade de juno desses pases que nos faz sentir, falardesses pases de desenvolvimento intermdio. S que eles tm que unir-se, no podem ser cada um procura, digamos assim,como eu costumo chamar, da migalha de reconhecimento que vem de Washington. Porque, se cada um procurar essa migalha custa dos outros, ento, evidente que nada vai mudar.

    Regina Meyer: uma "internacional dos semi-perifricos"?

    Boaventura de Sousa Santos: Eu acho que, de alguma maneira, eles no tm a conscincia da fora que tm.

    Herdoto Barbeiro: Professor, a Terezinha Rios.

    Terezinha Rios: Professor, eu quero retomar algo que o senhor colocou a partir da proposta do Chico [Francisco Withaker]. Osenhor falava em um carter pedaggico das discusses do encontro do Frum e, como sou uma profissional da educao,gostaria de estar puxando um fio a, a partir dessa idia da pedagogia, do trabalho da educao, que um trabalho desocializao de conhecimentos, de valores etc. E a gente tem uma preocupao com a formao dos profissionais da educaopara formar sujeitos que possam estar atuando nessa perspectiva da tica. Acho que o miolo a o da tica mesmo, o dovoltar-se para si mesmo na perspectiva do reconhecimento do outro. E eu gostaria de ouvi-lo a propsito disso, dessa tarefa quecabe, que pedaggica, de todos ns, nas nossas relaes, mas que cabe de uma maneira peculiar escola e formao dosprofessores para esse debate.

    Boaventura de Sousa Santos: Pois claro que uma questo importante e acho que a educao, se ela se limitar a reduzir arealidade ao que existe, ela vai ser a grande projetora do conformismo. E o grande problema dos sistemas educativos nacionaisfoi que, exatamente, reduziram a realidade ao que existe. E ns no podemos fazer isso precisamente porque hoje h muitarealidade que desperdiada, muita experincia que desperdiada; exatamente porque h realidades que so ativamenteproduzidas para no existirem, para serem desqualificadas ou porque so ignorantes. o conhecimento do campons ou docandeiro que no se aprecia porque ignorante; ou o conhecimento do indgena, que um outro conhecimento que no tem nada aver; ou o inferior, porque de uma raa ou de uma etnia inferior, ou o residual, porque o atrasado, ou o preguioso,porque no produz segundo a norma capitalista porque est numa economia solidria que no tem os mesmos critrios, digamosassim, da avareza e do lucro. Portanto, a nossa sociedade produz ativamente realidades que desqualificam. E, como desqualifica,no entram no sistema de ensino. E, como no entram no sistema de ensino, a educao, por mais progressista que sejam os seus

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    profissionais, acaba por ser sempre agente do conformismo. E exatamente o grande desafio que eu penso que a educao tem:, realmente, ver como que hoje, na nossa sociedade, a gente produz duas grandes realidades que no existem e que sofundamentais: uma aquilo que eu chamo de a "sociologia das ausncias", esta ausncia, a ausncia do discriminado, aausncia do inferior, a ausncia do residual, a ausncia do atrasado, e poderamos falar de milhes de pessoas. E precisotrazer essa ausncia, digamos assim, torn-la presente, transformar essa ausncia numa carncia e, portanto, em um desejo depreenchimento. Por outro lado, o que no existe como pista, como eu dizia, a tal indigncia, aquilo que apenas um sinal, queno est credibilizado, que no tem os grandes meios ao seu dispor mas que, no entanto, uma semente, uma semente que estinscrita dentro das subjetividades, dentro das prticas de pequenos grupos, de movimentos sociais, de pequenas organizaes. Eessa semente tem que ser acarinhada, essa semente deve ser tratada e deve ser desenvolvida. E a educao tem esse potencial e,

    infelizmente, da forma como ela foi institucionalizada, na forma como ela quis criar currculos nicos, da forma como ela seoficializou, de alguma maneira, ao oficializar-se, perdeu, realmente, essa tenso perante o emergente, perante o novo, perante oinconformismo, que eu penso que acabou por perpassar todo o sistema educativo. E penso que ns temos de comear desde abase, desde a educao popular, exatamente porque h boas tradies na Amrica Latina e em outros continentes para tentarrealmente transformar o mundo novo numa comunidade educativa. Porque nunca tivemos tantas condies de fazer... Hoje, comas novas tecnologias de informao e comunicao, evidente que isso, hoje, muito mais possvel de fazer do que era h dezou quinze anos.

    Terezinha Rios: Claro, acho que o senhor aponta a uma perspectiva utpica, mesmo, deste "ainda no", quando fala noinexistente, um "ainda no" que tenha uma dimenso de esperana, porque ainda no existe - mas pode ser construda, essa aoeducativa.

    Boaventura de Sousa Santos: Exatamente. to utpica quanto realista.

    Terezinha Rios: Exato. Obrigada.

    Emir Sader: Professor, o seu grande projeto dos ltimos anos trata da temtica da emancipao, que, ao mesmo tempo, umacrtica s formas clssicas de emancipao e s propostas diversificadas. Do qual o senhor est publicando os dois primeiroslivros agora. Queria que o senhor falasse sobre, tematizasse um pouco a idia das novas concepes de emancipao ouemancipaes, e tambm voltasse um pouco a essa idia de por que elas se encontrariam nos pases semi-perifricos, em umlugar desprivilegiado.

    Boaventura de Sousa Santos: Olha, eu penso, realmente, que ns temos que reinventar a emancipao social, exatamenteporque os esquemas de emancipao que ns tivemos no passado no funcionaram. At, alguns transformaram-se em um grandepesadelo, nomeadamente... enfim, h diferenas dentro das esquerdas, assim como no comunismo sovitico, mas evidente queno foi de modo nenhum - pelo menos a haver acordo - o tal "momento de libertao e de emancipao do mundo". Portanto,

    muitas idias emancipatrias transformaram-se em pesadelos. Portanto, hoje estamos em um processo de reinventar essaemancipao social. E como que ela se reinventa? Bem, ela reinventa-se exatamente de uma maneira nova e por isso que oFrum, de novo, tem muita importncia aqui: porque ns tivemos sempre um pensamento ocidental. Ao contrrio dopensamento oriental, foi um pensamento sempre legislativo-produtivo, isto , isto j vem de [Georg] Hegel [(1770-1831),filsofo alemo]: Hegel j dizia que a histria vem de l do Oriente para o Ocidente - at as grandes idias, os grandes tempos eas grandes densidades filosficas estavam no Oriente, civilizaes muito mais antigas que a nossa ocidental; e, depois delas, foinaturalmente constitudo o Ocidente, o ocidental, e este constituiu-se por sua capacidade, por sua eficcia na sua produtividade -foi assim assegurada, talvez muito mais eloqente em relao sua capacidade de transformar o mundo do que sua capacidadede entender o mundo. E por isso que temos hoje as catstrofes ecolgicas produzidas por essa cincia moderna e, por outrolado, um pensamento do legislativo, da lei, da coero, que imps outra forma de racionalidade que no essa da argumentao edo ideal. E exatamente esse pensamento emancipatrio que agora tem que ser reinventado. Para o reinventarmos, temos quecriar aquilo que eu chamo "as epistemologias do sul", isto , temos que ir exatamente a esses sujeitos, a essas subjetividades, aessas culturas que ficaram completamente suprimidas, marginalizadas pela cultura europia. Da qual, nacionalmente, eu me

    orgulho bastante, porque no quero de modo nenhum ser um especialista em cultura oriental nem da cultura africana. O que euquero que a gente tenha um dilogo mais equilibrado nessas formas de emancipao que essas outras culturas tm. Formas dedignidade humana. No somos s ns, com a cultura ocidental, com os direitos humanos: o conceito de [...] do isl um conceitode dignidade humana; o conceito de dharma, no hindusmo, um conceito de dignidade humana; h outros conceitos. Agora, oque curioso que essas outras culturas, de fato, nunca tiveram uma idia de transformao, nunca tiveram muito uma idia deprogresso e nunca tiveram tambm aquela idia de que " o capitalismo agora e socialismo amanh" e que o socialismo tem umprograma completamente definido; nunca pensaram em um mundo assim. O melhor exemplo o Gandhi, quando ele dizia: "No,ns temos a nossa prpria verso do futuro da sociedade, ns respeitamos muito os anarquistas" - ele tinha uma predileo pelosanarquistas - "e os socialistas europeus, mas ns temos outras concepes de desenvolvimento da dignidade humana". Que erammuito mais, digamos, mais ricas, talvez. E a que est a idia: que, enquanto ns ficamos muito presos numa alternativa comoaquela, exatamente eles foram criando alternativas. O projeto que estou a fazer, exatamente, onde est, alm de Portugal e doBrasil, a Colmbia, a ndia, Moambique e frica do Sul - so pases em desenvolvimento intermdio, onde esto vindo adesenvolver-se, dentro de diferentes culturas, alternativas em diferentes reas. Que no so muito visveis, porque estavam fora

    do discurso, que era um discurso dominante, que era um discurso dominante da esquerda, digamos assim. E a que eu penso que o novo clculo do mundo: so as experincias de democracia participativa, so as experincias de economia solidria, so asexperincias do multiculturalismo, so as experincias da defesa da biodiversidade, o novo internacionalismo operrio. Eesses so os cinco primeiros volumes. So exatamente, cada um deles, sobre cada um desses temas, onde, desses pases, nsestamos a identificar essas diferentes alternativas. Que esto no terreno, so concretas, no so utpicas no sentido antigo da

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    palavra. o oramento participativo de Porto Alegre, o planejamento centralizado de Kerala e da Bengala Ocidental, na ndia,[ a] Comunidade da Paz de San Jos de Apartad na Colmbia, so as formas de democracia participativa das townships[cidades e bairros para onde os no-brancos eram segregados na poca do regime racista na frica do Sul] de Joanesburgo, sotodas as formas cooperativas de economia solidria e que, onde eu, com meu querido amigo Paul Singer [economista brasileironascido na ustria], fizemos ligaes com as cooperativas dos recicladores de papel em Bogot, e com as mulheres daAhmedabad [cidade da ndia], que tm uma grande cooperativa de desempregadas, com as cooperativas das mulheres deMoambique, no Maputo, que produzem hoje j sessenta por cento dos frangos que so consumidos em Maputo - economiasolidria eficiente, mas que, ao mesmo tempo, criou um outro estilo de vida para aquelas populaes. No esto a construir osocialismo no sentido de uma grande alternativa, esto a lutar pela dignidade humana, esto a tentar ter um mundo mais

    solidrio...Carlos Novaes: Essa...

    Boaventura de Sousa Santos: ...e esse no fundo o meu projeto. Desculpe?

    Carlos Novaes: Essa, essa abordagem de novos... uma nova maneira de enxergar novas emancipaes e enxergar umaemancipao, ela tem um forte acento moral.

    Boaventura de Sousa Santos: Aham. [aquiescendo]

    Carlos Novaes: [vai ficando exaltado medida que fala] Para aqueles que foram formados na tradio anterior da esquerda eque ainda dialogam mais fortemente com ela, esse acento moral s vezes pe problemas. E eu vou dar um exemplo para a gente

    poder discutir. O Chico ainda h pouco mencionava aqui, no Brasil, o problema da desigualdade social. E esse problema realmente grave e ns temos 14% da renda aprisionada por 50% da populao; na outra ponta, outros 14% aprisionados por 1%.Ento, voc tem 28% da renda que so aprisionados por 51% e 49% das pessoas aprisionam os outros 72% da renda. Bom, noobstante essa distribuio, a discusso do Brasil acentuadamente moral com respeito ao problema. Por qu? Porque seinventou essa histria de que aqui tem excludos. E, do meu ponto de vista, isso uma capitulao, porque excludo no tem noBrasil, o que tem no Brasil ... porque falar de excluso no Brasil fazer uma concesso - porque, ao dizer que tem um Brasilque funciona, para dentro do qual voc tem que botar aqueles que esto fora, perde-se a radicalidade da crtica. As pessoas noesto excludas, elas esto includas de uma maneira absolutamente inaceitvel. [continua se exaltando] E a a questo no moral. Tem que entender por qu, a despeito de todo escndalo, voc consegue ter 50% da populao com apenas 14% da renda,por que voc tem 49% da populao que tem 72% da renda. Na hora em que voc vai enfrentar essa discusso no Brasil, meparece que o acento moral mais prejudica do que ajuda. E a idia de que tem dois Brasis, a Belndia [Blgica mais ndia,representando a juno de um pas rico com um pobre], como um economista brasileiro falou no passado, mais desarma do quearma para a luta. Por qu? Porque fica[-se] insistindo na idia de ter que botar dentro do sistema quem est fora! A verdade est

    - pelo menos no Brasil, no estou falando da frica, mas, pelo menos no Brasil, est todo mundo dentro do sistema e o sistemaque tem que ser criticado. [volta a subir o tom gradualmente] Nesse sentido, talvez o vocbulo "globalizao" tenha ajudado umpouco a perda da radicalidade da crtica ao capitalismo. A idia de novas globalizaes, outras globalizaes, talvez estejajogando fora boa parte da crtica consistente ao capitalismo. [baixa novamente o tom] E, finalmente, bom, ento eu queria que osenhor reagisse a essa histria da excluso, que eu acho, realmente, que indevida e tal. E uma, eu queria acrescentar algo apartir da resposta que o senhor deu ao Emir e que o seguinte: est no seu artigo na Folha de S.Paulo, o senhor menciona aIndonsia, o senhor menciona a China, a ndia, o Paquisto, o Brasil, que so pases de grandes populaes, que so sociedades,ento, que, articuladas, poderiam oferecer uma alternativa. E por que a Rssia est de fora? A Rssia tem uma populao igual brasileira, com uma populao mais escolarizada do que a nossa, tem uma inventividade formal maior do que a nossa, no sentidode que eles sabem mais matemtica, sabem mais engenharia, sabem mais economia do que ns, no sentido da populao. Por que ento que a sociedade russa no mencionada como parte desse esforo e por que ela aparece to pouco em articulaes comoessa do Frum Social Mundial? So duas questes.

    Boaventura de Sousa Santos: H duas questes, qualquer delas merece uma reflexo. A primeira, obviamente, moral. Semeconomia, h [...]. E tem toda a razo, evidente que ns no podemos querer um discurso moralista que, de algum maneira, nosfaa perder de vista quais so as formas de poder que dominam na nossa sociedade. E evidente que o poder da explorao...Por isso, [...] diz que o trabalho, por parte do capital, uma forma central, ainda hoje, de poder, e deve... Ela no nica,digamos assim, no meu entendimento, mas ela deve ser trazida coleo. Agora, por que razo que hoje podemos ter umdiscurso at mais moral e tico - e importante que tenhamos? que a economia j no o que era tambm, que a economiatransformou-se numa cultura. A luta desradicalizou-se porque houve transformaes fundamentais na fragmentao do trabalho,porque, exatamente, ns... O capitalismo global, nos ltimos vinte anos, conseguiu fazer uma coisa espantosa: foi transformar otrabalho em um recurso global, mas sem deixar que se criasse um mercado global de trabalho. Porque, se ns tivssemos ummercado global de trabalho, as lutas sindicais continuariam a ter eventualmente essa centralidade que agora tm. Mas no: orecurso global, mas no h mercados realmente globais de trabalho, esto completamente seccionados, mesmo dentro dosdiferentes pases - os que so das zonas francas etc etc. Portanto, a economia transformou-se numa cultura, transformou-se numasociedade de consumo, transformou-se na ideologia do consumo. Ns temos hoje, por exemplo, que a Coca-Cola gasta mais

    dinheiro em publicidade na frica, onde a produo efetiva, o consumo de Coca-Cola, nfimo, comparado com os padresocidentais. Ou seja, a ideologia do consumo vai sempre na frente da prtica de consumo - e totalmente desproporcional,portanto, em relao a essa prtica. E por essa ideologia que ela se transformou numa cultura, num valor. E, portanto, nstemos que julgar a questo dos valores exatamente para resgatarmos o que genuno nesses valores, nesses princpios, que noso apenas interesses mascarados. Agora, tem toda a razo em que a prpria excluso social tem que ser reanalisada. O

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    problema o seguinte: que ns temos que ver quais so as relaes sociais. Porque eu no sou to contra a idia da exclusosocial. Se ns pensarmos que "os excludos" realmente um modo especfico atravs do qual a globalizao inclui alguns, incluipor excluso - por exemplo, a frica nunca foi to includa no sistema mundial.

    Carlos Novaes: por isso que eu disse que no estava falando da frica.

    Boaventura de Sousa Santos: Mas h muita gente na nossa sociedade que est na mesma situao: no esto includos pelaforma especfica pela qual esto excludos. Do consumo, por exemplo. Esto includos na ideologia do consumo, mas no estona prtica do consumo; esto includos inclusivamente numa ideologia de trabalho, mas no conseguem trabalho, tm que estar no

    trabalho informal, no trabalho, hoje, sem qualquer dignidade, sem quaisquer direitos. Portanto, a nossa sociedade, de fato, hoje,tem razo, ela realmente desradicalizou as lutas, exatamente porque a economia se transformou em um modo de vida, numacultura, e desarmou de alguma maneira muitas das lutas. Da que eu penso que seja necessrio revalorizar a idia da tica, aidia da moral, sem moralismos e, portanto, sem pensarmos que as lutas econmicas, por exemplo, deixaram de ter valor, comomuitos pensam que isso aconteceu. No. A concentrao do poder uma concentrao econmica, tem lugar a nvel global; oproblema saber como que a ela se combate. E a ela, hoje, se combate no terreno econmico, no terreno cultural, no terrenopoltico, porque ela usa exatamente as mesmas armas, ela fez do consumidor um indivduo que quer... Veja como que justificado o desmantelamento das polticas do Estado do bem-estar: porque os indivduos devem ter direitos de escolha,devem ser autnomos, no devem ter sempre o mesmo sistema de sade, podem escolher os seus mdicos. Ou seja, foi pelaideologia de autonomia que, realmente, vendemos o desmantelamento das polticas sociais. Se no estivermos atentos a isso, nsno trazemos a tal subjetividade da pessoa que no o indivduo, uma pessoa agregrria e solidria, e isso que realmentenovo. A ltima questo, quanto questo da Rssia, no, nos meus trabalhos... e a pode ter sido naFolha de S. Paulo que notenha sido feita a meno Rssia. Mas no, dentro da teoria, alis, de [...], a Rssia foi sempre um pas semi-perifrico e,

    portanto, um pas bastante importante, tambm se quiser assumir o seu papel. O que acontece? que, neste momento, a Rssia um pas onde o Estado no tem ainda uma consistncia, um pas onde as mfias que se constituram, enfim, nas runas doEstado sovitico, e continuam a ter um poder imenso; e, por outro lado, h uma Rssia oficial que corre a vantagem de ser,digamos, acolher o mundo desenvolvido, exatamente com aquela caricatura do G8 [grupo formado pela adio da Rssia ao G7,este formado pelos sete pases mais industrializados do mundo: Estados Unidos, Canad, Frana, Reino Unido, Alemanha, Itliae Japo], exatamente para tentar entrar no clube dos ricos, no sendo... tendo muitos recursos naturais que so absolutamenteestratgicos e nos quais, evidente, vo ter uma importncia geopoltica muito importante. Em termos econmicos, neste momento,concretizados, no tem, mas h uma potencialidade geopoltica muito grande. A, realmente, a Rssia tambm est, nestemomento pelo menos, como vejo por vezes no Brasil, no sentido de ter uma relao privilegiada com os pases centrais e noprocurar, ao contrrio, unir os tais pases em desenvolvimento intermdio. Porque esses no esto totalmente desunidos, tmgrandes populaes, tm poder de negociao e, sempre que pensam em negociar, eles at tm, por vezes, xito. No entanto,simplesmente, at agora, no conseguiram fazer.

    Herdoto Barbeiro: Professor Boaventura, mais um esclarecimento. Depois dos atentados de 11 de setembro [de 2001] nosEstados Unidos, a imprensa foi invadida por uma poro de artigos e eu at mesmo li, num, escrito o seguinte: "O mundomudou." O senhor falava agora h pouco que a mudana da histria no aquela que ns queremos, que a histria tem o seuprprio andar, que faz parte de um processo, de uma transio, como o senhor nos descreveu agora h pouco. Afinal, o mundomudou s por causa dos atentados de 11 de setembro, j vinha mudando, ou no mudou exatamente como a imprensa insiste emdizer que mudou?

    Boaventura de Sousa Santos: Bom, a h que se fazer uma reflexo, porque evidente que, sempre que algo importante ocorrea pessoas importantes, vai ter importncia no mundo. Porque, exatamente as pessoas importantes - nesse caso, os nova-iorquinos,que foram vtimas desse trgico acontecimento - so pessoas que so cidados do pas mais importante e mais hegemnico domundo. a primeira vez na histria em que alguma vez houve um ataque, digamos assim, dentro do centro do poder. NuncaLisboa, no perodo colonial, recebeu um ataque desses, nunca Londres sofreu um ataque desses, nunca Paris recebeu um ataquedesses nos perodos anteriores, do colonialismo ou do imperialismo. Portanto, evidente que tem o seu significado e mudou

    exatamente pela maneira como ele foi utilizado, como que este acontecimento foi utilizado. E, a, eu penso que no houve umamudana dramtica. Alis, muita gente pensou que, por exemplo, o Frum Social Mundial talvez nem se devesse se realizarporque o contexto internacional lhe era hostil, porque, neste momento, a questo de segurana, do terrorismo, era muito maisimportante que a questo da globalizao neoliberal, contra a qual o Frum tinha a realizar-se. No significou isso exatamentepor qu? Porque o Frum teve essa maneira de interpretar produtivamente o novo contexto. H um novo contexto, mas ele nomodificou totalmente; o que aconteceu foi o seguinte: para mim - esta a minha leitura -, que, realmente, os Estados Unidostenha vindo a ter alguns declnios e algumas debilidades na sua economia desde a dcada de 1970. E no esto, digamos, a tercondies de agentar a hegemonia do sistema mundial como j o fizeram no ps-guerra. E essa situao agudizou-setremendamente na dcada de 1990. E eu penso que, neste momento - no estou a falar dos trgicos acontecimentos, estou a falarno modo de como eles foram aproveitados para lanar uma guerra global, potencialmente sem fim, contra um inimigo totalmentedifuso - uma tentativa dos Estados Unidos para compensarem a sua relativa debilidade de nvel econmico quando comparada,por exemplo, com a Unio Europia, para compens-la por uma supremacia onde so inquestionavelmente [superiores], asupremacia militar e a de guerra. E, como v, efetivamente, essa supremacia militar est de alguma maneira a fazer recentrar

    todo o mundo de novo nos Estados Unidos. Para aqueles que pensavam que no havia soberanos e que, realmente, no haviamais o Estado nacional, ns temos agora um super-Estado. Que, alis, , talvez, o Estado do sistema capitalista global nestemomento, que tem esse carter de agora ter uma grande dimenso e uma grande fase militar e de guerra, que so os doiscomponentes da globalizao neoliberal. , realmente, a globalizao econmica e a guerra e o militarismo, sempre que osmercados no so suficientes para assegurar a hegemonia dos Estados Unidos, neste momento, como grandes lderes desta forma

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    de globalizao. E a que o Frum interpretou bem, criando o Frum da Paz, por exemplo, trazendo realmente para o Frum...E foi realmente o nico acontecimento poltico - veja que isso significativo -, o nico acontecimento poltico internacional dostempos recentes que no se realizou dentro da hegemonia dos Estados Unidos, que se realizou sem diretivas dos Estados Unidos.Isto, em si mesmo, significativo. Portanto, eu penso que as coisas mudaram. No mudaram radicalmente, mas naturalmente quemudaram alguma coisa. E ns vamos ver, certamente, as conseqncias dessas mudanas nos prximos tempos.

    Herdoto Barbeiro: Vereadora, por favor.

    Aldaiza Sposati: Professor, eu queria voltar um pouco discusso da desigualdade, mas sob um ngulo em que o senhor insiste,

    tambm, em vrios dos seus trabalhos: sobre a questo de uma nova retrica. Ento, veja, tanto o que falou o Chico Withaker dabanalizao, e a retomada da questo da desigualdade h pouco pelo Novaes. A questo da banalizao, ela passa... Porexemplo, o programa foi aberto falando da desigualdade, dizendo assim: 30% dos brasileiros esto na linha de pobreza. Veja,comea com nmeros... H pouco, o Novaes falava: tantos por cento esto nesta ponta, tantos por cento... Estas formas soenigmticas, do ponto de vista da construo concreta da tica. Por qu? evidente que, se ns falarmos de uma linha depobreza que j , exatamente, miservel, de dois dlares dia, evidente que, no Brasil, no h s 30% que ganham cerca de 140reais por ms comoper capita, certo? Evidente que tem muita gente abaixo disso num pas de 180 reais o salrio mnimo. Maseu acho que ns, pesquisadores, analistas, ns usamos de uma retrica que encobre e que no permite a formulao dessa tica.Ento, por exemplo, a presena da excluso, eu acho que ela indicativa, exatamente, para a discusso da no-excluso. Euconcordo plenamente que, na forma brasileira... at alguns dizem que no se pode dizer que tem a excluso: porque nunca esteveincludo, ento no tem nem excluso, porque nunca esteve includo. Mas concordo que uma das formas essa: de estar presentenuma condio de apartao - acho que esse o diferencial - numa condio de descartvel, de incerteza, acho que esse ,realmente, o diferencial. Estou fazendo essas consideraes porque eu acho que como seu pensamento sempre fortemente

    dialtico e pe essa nova retrica, eu acho que essa chamada para o dizer de um novo modo, para construir uma forma tica,acho fundamental. E s uma segunda questo. O seu pensamento tambm insiste fortemente no confronto entre democracia edominao. Seu pensamento crtico coloca nessas alternativas todas as experincias da democracia participativa, da democraciadireta. Agora, uma provocao: suas anlises tm feito a demonstrao de uma outra forma de ser do Estado, mas um Estado quereflete o executivo, e sua anlise toda da desmontagem do judicirio e do sistema de Justia. A pergunta essa: ser que o parlamento, o legislativo ou a democracia representativa, ela est um tanto vencida como forma nesse processo dedemocratizao e nessa nova a, nova globalizao, essa forma alternativa de globalizao? Sem nenhum corporativismo, porfavor, sem nenhum corporativismo. [risos] uma provocao que eu acho que interessante.

    Boaventura de Sousa Santos: Aldaiza, minha querida amiga, so muitas questes numa s.

    Aldaiza Sposati: Eu sei.

    Boaventura de Sousa Santos: evidente que houve um perodo em que ns usvamos os nmeros como uma forma derevolucionar o mundo. Eu ainda vivi bastante tempo na ditadura fascista em Portugal [1926-1974], onde divulgar nmeros erauma coisa extremamente revolucionria. Por qu? Porque eles eram ocultados e, portanto, no estavam ainda banalizados. Euconcordo que evidente que ns usamos as estatsticas muitas vezes, entramos numa retrica que abstratiza o mal e que,portanto, de uma maneira, desradicaliza a luta contra ele. E da que eu procuro dentro do modelo da anlise, procuro ser objetivomas no neutro, que sempre a minha grande referncia, digamos, metodolgica. Eu quero ser objetivo, no sentido em que uso asmelhores tecnologias da sociologia e das cincias sociais para no cometer excesso realidade da maneira como eu penso queela construda, digamos, perante mim. Mas no quero ser neutro, quero saber de que lado estou e, para isso, uso termos eprocuro, atravs das anlises, criar essa idia da radicalidade que esses dados, por si s, podem no dar. Por [essa] razo queeu uso a palavra "fascismo social" e digo, por exemplo, que ns vivemos hoje em sociedades que so politicamentedemocrticas e socialmente fascistas. Porque, exatamente, a democracia que se criou nessa tenso com o capitalismo... porque ademocracia na Europa e no Atlntico Norte, quando ela se constituiu efetivamente como regime poltico, ela foi, digamos assim,uma conquista, o Estado liberal no era democrtico, no incio. uma conquista atravs de polticas redistributivas. Que,

    naturalmente, atravs das quais, o Estado cria as tais interaes no-mercantis. E esse carter redistributivo que cria umatenso entre a democracia e capitalismo. Porque evidente que o capital no quis ser tributado, e era atravs da tributao, entreoutra coisas, que o Estado poderia obter esses meios que depois se transformavam em polticas sociais. Portanto, essa idia deque h uma redistribuio e essa tenso democrtica que foi fundamental, exatamente, democracia. Ora bem, o que eu pensohoje que, efetivamente, a democracia est, efetivamente, a perder a sua virtualidade redistributiva, na medida em que as forasconservadoras tm vindo a lutar contra os princpios redistributivos. E a que, medida que o Estado deixa de ter esse papelregulador - e no h um papel democrtico, digamos, ou supernacional, ou outro -, o que ns estamos a assistir que,efetivamente, as relaes sociais desiguais em que h a possibilidade de veto, onde h possibilidade de tortura, onde h apossibilidade da censura, no ocorrem dentro do espao pblico e do Estado, ocorrem dentro dos atores econmicos, porexemplo, muito poderosos. E, ento, o fascismo deixou de ser produzido politicamente para ser produzido socialmente. E asociabilidade que fascista. E isso que desradicalizar a luta, porque, como estamos em um Estado democrtico, no temosque fazer uma luta anti-fascista, que era uma luta radical, era uma luta onde muita gente morreu se envolvendo exatamente emnome da liberdade [como na Segunda Guerra Mundial (1939-1945)]. Ora bem, eu quero radicalizar a luta dizendo que as

    sociedades so hoje politicamente democrticas e socialmente fascistas. E a questo da excluso social, para mim, exatamenteporque eu nunca uso o conceito de sociedade civil, seno com adjetivo: a sociedade civil "ntima", a sociedade civil"estranha", a sociedade civil "incivil", como chamo, que este estado de natureza em que ns hoje estamos a fazer lanar empopulaes que nunca estiveram em algum contrato social. o que eu chamo de "populaes pr-contratuais", ou aquelas queestiveram em um contrato social, tiveram trabalho com carteiras assinadas e, agora, esto absolutamente informalizadas e,

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    portanto, no tm a [...]. So as populaes ps-contratuais: essas pessoas vivem num Estado democrtico, mas vivem numasociabilidade fascista. E a mesma polcia que muito democrtica nas zonas civilizadas de So Paulo, nas zonas, realmente, queso as zonas de incluso, a mesma polcia que pode atuar fascisticamente nas zonas realmente de periferia, os mesmospoliciais treinados nas mesmas academias militares. Portanto, no um regime poltico, um regime social na qual o Estadocolabora, mas no o principal ator. Portanto, eu penso que isto o que nos obriga a levar a questo da radicalidade dademocracia a srio: que a democracia sempre levada a srio s pode ser, do nosso contexto, radicalizada. E como que elapode ser radicalizada? realmente transformada em relaes de autoridade partilhada as diferentes relaes de poder queexistem na nossa sociedade. No s o poder de dominao do Estado contra o cidado, ou com o cidado, no: na famlia, na comunidade, no mercado, na fbrica. Portanto, a democracia tem que ser, realmente, uma democracia que vai

    redemocratizando exatamente todas essas formas de poder. E por isso que eu chamo e digo que, se o socialismo hoje tem umnome, s pode ser um: a democracia sem fim. Democratizando todas essas relaes de poder e no ficar... Foi a grandearmadilha do liberalismo: foi expandir a democracia, mas limitando a um espao pblico, alis, muito discretamente definido eidentificado com o Estado. Essa que foi a grande armadilha. Portanto, no meu modo de ver, a democracia representativa, aocontrario, , atualmente, absolutamente fundamental. Simplesmente, ela s fundamental na medida em que continuar a asseguraro papel redistributivo que a democracia j teve. Ora, ela, hoje, no pode, por si s... A democracia representativa hoje, sem umapresso de uma democracia direta, pode levar s situaes de catstrofe que temos na Argentina [referncia crise argentina de2001-2002]. No foi um sistema de ditatorial que provocou diretamente o colapso da Argentina. evidente que ele [o sistemaditatorial ocorreu na Argentina entre 1976 e 1983] fez quase tudo para que realmente ocorresse, mas evidente que temos maisde dez anos de regime democrtico. Portanto, ns precisamos criar uma nova forma de criao de complementaridade. Deconfrontao, se for possvel - ou se for necessrio -, mas de complementaridade, como vemos... at em Porto Alegre podemosver isso, e podemos ver em muitos outros lugares em que... Em Kerala h um outro exemplo dos meus tais estudos que tenhovindo a fazer: complementaridade entre a democracia representativa e a democracia direta ou a participativa. esse o novo

    modelo poltico para o qual temos que encontrar...

    Herdoto Barbeiro: Luiz.

    Luiz Gonzaga Beluzzo: Professor, muito difcil a gente fazer pergunta quando a gente concorda, mais fcil fazer quando agente no concorda. Mas eu no concordo com algumas coisas que o senhor falou. Sobretudo, quando o senhor colocou a questodo neoliberalismo: que ele no "neo"; na verdade, um conservadorismo. Agora, h uma questo: porque h um interregno nops-guerra em que, de fato, a democracia se expandiu no sentido de que as classes subalternas conquistaram os direitos - e osdireitos no so apenas, na verdade, retribuies que voc obtm do Estado, mas so, na verdade, consolidaes de posiessociais. Quer dizer, hoje, na Frana ningum tem dvida de que um direi to se aposentar dignamente, ou um direito receber umtratamento em um hospital gratuitamente do Estado. No toa que em 1995 o governo foi derrubado [os socialistas franceses,no poder com a presidncia de Franois Mitterrand e representados pelo candidato Lionel Jospin, foram derrotados nas eleiespresidenciais de 1995 por Jacques Chirac, da direita] porque tentou invadir essa esfera no-mercantil, como o senhor disse

    muito bem. Mas como ns dois somos de origem do direito, o senhor ...?

    Boaventura de Sousa Santos: Sim, sem dvida, tenho o direito como formao.

    Luiz Gonzaga Beluzzo: Eu vejo, na verdade, nesse neoliberalismo, uma diferena em relao ao anterior: que a violaoexplcita da regra pelos poderosos, pelo poder, pelo poder disseminado na sociedade. Isto , os direitos garantidos so,substancialmente, os direitos de propriedade. O que me espanta, por exemplo, na crise Argentina, a idia daqueles quedepositaram os pesos e acharam que tinham dlares, e ns sabemos que, tecnicamente, os dlares no existem - numa crisemonetria como essa, simplesmente o sistema bancrio iria a bancarrota se ele fosse responder a essa demanda. Por isso que ogoverno teve que fazer o corralito. E os demais aposentados, que esto fraudados no seu direito, h tempos que no recebem aaposentadoria. Ento o Estado da exceo permanente, quer dizer, a idia de que o capitalismo no tem mais regras e ele norespeita sequer as regras que ele coloca. Assim, a questo da hegemonia americana a partir de 1973, digamos, quando... doponto de vista econmico, que o senhor falou - do ponto de vista militar, perfeito; mas, do ponto de vista econmico tambm,

    hoje o padro dlar uma imposio de poder, no nasce de nenhum sistema internacional de reservas, nasce do poderioamericano de confrontar as outras economias e impor o dlar como padro. E quem no se submete a essa regra - a essa regraque no uma regra, na verdade uma no-regra, porque, do ponto de vista da teoria monetria internacional tradicional opadro dlar viola todas as regras. Ento, isso que eu queria lhe perguntar, por isso que eu insisto no "neo". O "neo" porquedepois da experincia da conquista dos direitos ns estamos numa etapa regressiva, numa etapa de voltar para trs, de destruir oespao de direito, aquela esfera no-mercantil que foi conquistada pela luta social. Ento, eu insisto na questo de que se trata deum "neo" liberalismo e que, curiosamente, nos coloca, ou coloca as foras progressistas na defensiva, porque ns somosobrigados a dizer no queremos isso, no queremos aquilo, no queremos aquilo outro, e to avassaladora que ns temosdificuldade de dizer: olha, aquilo que foi conquistado, ns queremos que se mantenha, ns queremos partir daqui, e nsqueremos, na verdade, suprimir as outras relaes de poder". E acho que o senhor bastante foucaultiano nisso [referncia aMichel Foucault (1926-1984), socilogo, historiador e pensador francs], as outras relaes de poder que esto metidas no meioda sociedade e que no so aquelas estabelecidas pela relao jurdico-poltica do Estado, no isso que a [...] dademocracia?

    Boaventura de Sousa Santos: Eu acho que talvez ns estejamos em desacordo na idia de que, quando eu falo que oneoliberalismo no um liberalismo de tipo novo, mas um novo conservadorismo, que exatamente nessesdesmantelamentos dos direitos - porque os conservadores no eram hostis - que as pessoas pudessem ser alimentadas quandoestavam com fome. O que no queriam que eles tivessem direito a isso, porque o sistema os inclui.

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    Luiz Gonzaga Beluzzo: Perfeito, perfeito.

    Boaventura de Sousa Santos: Ora, podia dar para eles poderem ser alimentados cabalmente ou no. O direito tem uma rigidez:quando se tem um direito, no segundo o ciclo econmico; eu quero me aposentar, quero ter a minha aposentadoria, no vaidepender do ciclo econmico; eu posso mandar o meu filho para a escola pblica, no vai depender do ciclo econmico. Isto que foi a grande revoluo dos direitos. Ora, exatamente isto que, neste momento, est em causa. Porque, exatamente, na lutacontra os direitos, transformar, realmente, os direitos em questo de solvncia. Portanto, se eu estou bem empregado agora, omeu ciclo econmico permite-me que eu leve o meu filho a uma escola particular, onde pago xis reais por ms, muito bem. Se

    amanh eu no puder, no o posso fazer. Portanto... e nesse sentido. Agora, h regras, evidente que h regras, quer dizer: nospases, hoje, o que ns temos uma situao nova, que quem impe as regras no se sente obrigado a obedecer as mesmasregras. hipocrisia absolutamente generalizada neste momento. Alis, isso aplica-se prpria Unio Europia, que extremamente protecionista no que diz respeito, fundamentalmente, aos produtos agrcolas - embora tenha tomado algumasmedidas de proteo aos movimentos sociais, na Europa, significativas - no sentido da abertura dos mercados do TerceiroMundo, muito mais [protecionista] que os Estados Unidos. Mas evidente que o que estamos atualmente que, nessa situao degrandes assimetrias entre os Estados realmente poderosos e aqueles que no tm poder, que h pases, realmente, que sabembem que h regras. Por exemplo, veja, os ltimos pacotes do Equador e da Bolvia do Fundo Monetrio Internacional: um tem140 regras e outro tem 200 regras. Isto , as condicionalidades so 140 para receber um emprstimo, mas tem que seguir letraaquelas regras. Ento, h regras, s que essas regras no so as regras. So, primeiro, ditadas unilateralmente, no foram asNaes Unidas, no foi nenhum frum democrtico. Por outro lado, os Estados Unidos no as cumpriram. Os Estados Unidos,depois do 11 de setembro, por exemplo, tornaram-se protecionistas na indstria do ao e talvez at da indstria txtil,exatamente por obterem o consenso parlamentar no Congresso exatamente para o novo oramento de guerra que eles queriam

    fazer e a promoo da prpria guerra e depois, tambm, para ofast track, como se chama essa legislao que o presidente [dosEstados Unidos, George W. Bush] hoje tem privilgio de poder hoje realizar. Ora, bem, para isso, aumentou o protecionismotxtil. E sabe o que isso significa? So milhares de trabalhadores da Guatemala e das Honduras que vo ficar ser emprego. Orabem, essa a hipocrisia do sistema que ns temos que denunciar.

    Francisco Withaker: Professor, tem uma questo.

    Regina Meyer: Agora acho que a minha vez.

    Francisco Withaker: Pois no.

    Regina Meyer:No , Herdoto? Ou no ?

    Francisco Withaker: Por favor, professora.

    Herdoto Barbeiro: sua. [risos]

    Regina Meyer: Pois no. Eu sou arquiteta e trabalho com as questes urbanas. No seu livro, elas aparecem de maneira, eu diriaassim, ligeiramente na borda das questes. Muitas vezes, mas sempre na borda, no h uma presena clara. Mas encontrei umaentrada muito interessante para pensar na cidade de So Paulo, que o senhor agora est visitando e conhece. O senhor diz oseguinte: que a globalizao de uns resulta na localizao de outros. O que isso? A globalizao identificada como amodernizao e a localizao identificada com o atraso - a precariedade, melhor dizendo. Numa cidade como Lisboa, o senhorcita Lisboa, ela viveu o processo de globalizao simultaneamente entrada do Mercado Comum Europeu [precursor do pilareconmico da Unio Europia] no cenrio portugus [em 1986]. E, com isso, Lisboa sofreu um processo de modernizaobastante grande. E bem visto, pelo que eu entendi pelo seu texto e por outros textos seus, que a modernizao em Lisboa se deuatravs da forma como o Mercado Comum Europeu lidou com as cidades. A cidade fundamental para a nova economia e oMercado Comum lidou com as cidades melhorando as suas condies, criando situaes novas. Numa cidade como So Paulo -nenhuma cidade totalmente global, no sentido de ter uma... s estar identificada com o que tem de moderno e de resolvido -,ento, numa cidade como So Paulo, o local e o global esto claramente definidos espacialmente: onde existe modernizao eonde existe precariedade. Essas duas instncias nos colocam diariamente: arquitetos tm que trabalhar objetivamente com acidade; ns temos uma tarefa propositiva dentro da cidade, que como lidar com essa permanente dualidade que se apresenta -modernizao versus precariedade, global versus local - diante do fato de que a cidade de So Paulo hoje, ela precisa ganharuma melhor condio de desempenho e que as duas pontas tm fora e nos pressionam. Como que o senhor v isso?

    Boaventura de Sousa Santos: Olha, realmente, talvez no nestes livros, mas em outros, a questo urbana muito forte na minhapresena, at no meu trabalho. At porque eu comecei o meu trabalho de doutoramento vivendo na favela do Jacarezinho, no Riode Janeiro, exatamente a trabalhar sobre a questo urbana e sobre as frmulas de resoluo das disputas e conflitos dentro dasfavelas. Nesse caso, no Jacarezinho. Portanto, para mim, a cidade foi sempre uma incidncia enorme do meu trabalho e eu pensoque hoje, efetivamente, ela ainda mais importante. Por qu? Porque so as cidades... Alis, ns vimos isso no Frum dasAutoridades Locais em Porto Alegre [ocorrido nos trs dias que antecederam o Frum Social Mundial de 2002], onde,efetivamente, foi claro que esses fenmenos de excluso que a globalizao est a criar, eles so, realmente, fenmenos urbanoshoje em dia, porque muita gente obrigada, expulsa de suas terras, da agricultura, como a gente est a ver, por exemplo, nestemomento, no Mxico. E, naturalmente, essas so as cidades que agentam e que sofrem as conseqncias de toda essaglobalizao. E, portanto, elas so o retrato em ponto pequeno, embora muitas sejam grandes metrpoles, de todas essas

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    contradies e as contradies esto escritas numa nova re-significao das cidades. Veja, 70% do fluxo eletrnico do Brasilcorre numa nica avenida de So Paulo, que a Avenida Paulista. No na cidade de So Paulo, na Avenida Paulista, ondeela est muito mais conectada com o resto do mundo do que com as ruas transversais ao lado da Avenida Paulista. E essadesigualdade que muito grande hoje. E eu gostaria de chamar a ateno exatamente para o trabalho da professora AldazaSposati, que o Mapa da Excluso Social, que, exatamente, [usou] uma tecnologia que ns, alis, em Portugal, estamos nestemomento a adotar tambm, que permite ver como que est territorializada a diferenciao do investimento social. E, portanto,os graus de incluso. A gente pode ter uma mancha hoje em So Paulo em que v claramente onde que os investimentos soaplicados, onde que est a qualidade de vida, onde que est a qualidade de educao, onde que est a qualidade do servio.E isso , hoje, que ns temos que ter em mente na anlise e tambm na luta, para evitarmos essa situao que eu chamo o

    "fascismo do apartheidsocial", que exatamente as cidades cada vez mais divididas entre as zonas civilizadas e as zonasselvagens. As zonas civilizadas so os condomnios fechados que se defendem por todos os meios, os muros j estoeletrificados e so, alis, mor