entrevista com boaventura de sousa santos
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Entrevista com Boaventura de Sousa SantosTRANSCRIPT
O agregador da advocacia6 Agosto de 2011
www.advocatus.ptEntrevista
Boaventura de Sousa Santos, coordenador do Observatório da Justiça
“Precisamos de um pacto de cidadania para a criação de uma agenda estratégica de transformação da justiça”. Só assim, defende Boaventura de Sousa Santos, 70 anos, coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça, será possível reformar um sector que devia estar ao serviço da democracia e do desenvolvimento económico mas que tem vivido de contradições e desperdícios
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Precisamos de um pacto nacional
humanos, sociais e económicos. O acesso, a qualidade e a eficiência da justiça são variáveis centrais para avaliar essa condição, testa-da, em especial, em momentos de crise social e política. Uma justiça eficiente, de qualidade, consciente do seu mandato constitucional e atenta aos direitos humanos e de cidadania pode contribuir, de for-ma decisiva, para densificar junto
advocatus | em 37 anos de demo-cracia, que balanço faz do sistema judicial?BSS | É difícil fazer um balanço histórico sobre a justiça no Portugal democrático sem analisar as contra-dições de um processo que articula mudanças com muitas continuida-des. Por exemplo, se olharmos para a justiça de família e menores, tanto identificamos mudanças qualitativas
de cidadãos frustrados, vulnera-bilizados e empobrecidos o valor efectivo dos direitos e da democra-cia. Quem conhece minimamente o desempenho funcional da justiça portuguesa facilmente conclui que Portugal tem ainda um longo cami-nho a percorrer. Tenho defendido uma revolução democrática da jus-tiça se queremos uma democracia de alta intensidade.
advocatus | Defende que a Justiça deve estar ao serviço da democra-cia. é assim em Portugal?Boaventura de Sousa Santos | A justiça é uma das áreas da gover-nação que melhor reflecte a qua-lidade da democracia e que mais pode contribuir para o aprofunda-mento dessa qualidade, dada a sua função instrumental de mobili-zação e de efectivação de direitos
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muito significativas nas leis substan-tivas e da organização do sistema, como atavismos vários na cultura e práticas judiciárias, o que leva a que reformas qualitativas acabem por ter um potencial reduzido de mudança na resposta efectiva do sistema de justiça. Várias políticas da justiça ti-veram trajectórias contraditórias que é fundamental analisar. Por exemplo, a criação do Centro de Estudos Ju-diciários introduziu uma mudança muito positiva no recrutamento e formação das magistraturas. Mas, manteve-se a convergência com as políticas mais progressistas nesta matéria? Conseguiu-se efectiva-mente mudar a cultura judiciária no sentido de colocar os tribunais ao serviço da cidadania? As respostas são negativas. Uma medida de enor-me potencial transformador não foi capaz de mudar a face da justiça. O mesmo acontece com outras polí-ticas, como o acesso à justiça. Ape-sar de a democracia ter ampliado a possibilidade de mobilização dos tribunais pelos cidadãos, as políticas restritivas mais recentes (aumento dos custos da justiça e alteração dos critérios de apoio judiciário) e a qualidade de resposta do patrocínio oficioso assinalam uma política com muitas deficiências. Contudo, penso que deve ser assi-nalado o facto de a democracia ter permitido uma maior mobilização dos tribunais por parte dos cidadãos e uma maior proximidade. Os cida-dãos têm mais consciência dos seus direitos, mais vontade de os mobili-zar e defender e menos receio dos tribunais e estes são ganhos enor-mes a assinalar. Mas, estas expec-tativas positivas aumentam a frustra-ção sempre que não são satisfeitas. A morosidade e a ineficiência da justiça são os principais factores negativos do sistema judicial. O sis-tema judicial não conseguiu respon-der satisfatoriamente à pressão da sociedade, elevando as percepções negativas a seu respeito.
advocatus | Justiça tardia é justiça negada?BSS | Uma justiça atrasada é uma justiça negada, sem dúvida. Mas também é importante ressalvar que a justiça tem de ter um tempo pró-
prio, que não corresponde ao da comunicação social ou mesmo das expectativas pessoais dos cidadãos. O tempo dos procedimentos neces-sários funciona como importante garantia das partes. O que é impor-tante é que se consiga um equilíbrio óptimo entre essas garantias pro-cessuais e a eficácia do sistema. Se é verdade que nem sempre a justiça muito célere é melhor justiça, é igual-mente verdade que muitas vezes a justiça quando chega, chega tarde demais. O sistema de justiça tende a ser rotineiro, indiferente às urgências sociais. As vítimas são sobretudo os cidadãos desprovidos de recursos económicos, institucionais e jurídi-cos, pelo que a morosidade na jus-tiça é também um espelho da desi-gualdade social. É muito importante inverter esse processo e pensar a justiça na óptica dos cidadãos e da sua função primacial.
advocatus | a justiça também de- ve estar ao serviço do desenvolvi-mento económico. está? BSS | Deve estar ao serviço do de-senvolvimento económico, tal como ao serviço da cidadania. O desenvol-vimento económico não pode desli-gar-se da justiça na economia e da democracia na justiça. A necessida-de de um forte combate à corrupção é disso exemplo: favorece a transpa-rência e o equilíbrio na concorrên-cia empresarial e dá cumprimento aos princípios democráticos. Todos os estudos e indicadores mostram que há ainda muito por fazer, neste campo, em Portugal. A morosidade da justiça está a desviar, cada vez mais, os litígios empresariais dos tri-bunais judiciais para outros meios de resolução de conflitos, em especial a arbitragem, deixando àqueles a cobrança de dívidas. Mas, a inefici-ência da acção executiva e dos tri-bunais que lidam com litígios socie-tários tem reflexos muito negativos nas dinâmicas empresariais, como, aliás, foi evidenciado pela troika.
Advocatus | A ineficiência da justi-ça fomenta a corrupção?BSS | O combate à corrupção não passa apenas por medidas no âm-bito do judiciário. Exige um forte compromisso dos poderes político
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Precisamos de um pacto nacional
“Uma justiça eficiente, de qualidade,
consciente do seu mandato constitucional
e atenta aos direitos humanos e de
cidadania pode contribuir, de forma
decisiva, para densificar junto de
cidadãos frustrados, vulnerabilizados e
empobrecidos o valor efectivo dos direitos
e da democracia”
“Sempre que o judiciário levou a cabo o combate à corrupção
foi posto perante uma situação quase
dilemática: se, por um lado, esse combate
contribuiu para a maior legitimidade
social dos tribunais, por outro, aumentou exponencialmente
a controvérsia política à volta deles”
“Se é verdade que nem sempre a justiça muito célere é melhor justiça, é igualmente verdade que muitas vezes a justiça quando
chega, chega tarde demais”
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e judicial e da sociedade na defini-ção e execução de políticas fortes, tanto de prevenção, como de per-seguição judicial. Por exemplo, tanto as parcerias público-privadas como as privatizações são negócios, con-sensualmente reconhecidos, com alto potencial de práticas corrupti-vas, exigindo medidas que evitem que tal ocorra. Mas, ainda que haja medidas fortes de prevenção, não evitarão muitos casos de corrupção. Ora, quando tal ocorre, a eficiência da acção judicial é crucial. E, em Portugal, não apenas a economia, mas, sobretudo, a qualidade da de-mocracia têm sido fortemente desa-fiadas pela criminalidade económica – corrupção, tráfico de influências e abuso de poder –, que encontra na ineficiência dos tribunais um auxílio objectivo para a sua perpetuação.A verdade é que sempre que o ju-diciário levou a cabo o combate à corrupção foi posto perante uma situação quase dilemática: se, por um lado, esse combate contribuiu para a maior legitimidade social dos tribunais, por outro, aumentou expo-nencialmente a controvérsia política à volta deles. Porquê? Porque os tribunais não foram feitos para jul-gar para cima, mas sim para julgar os de baixo. É crucial alterar o papel dos tribunais enquanto agentes acti-vos de combate à corrupção, o que requer que a definição clara desse combate seja uma das grandes prio-ridades da justiça criminal. Os pode-res, político e judicial, devem tomar a justiça como um dos grandes pilares da democracia e do desenvolvimen-to social e económico. Não foi ainda possível criar na sociedade portu-guesa um pacto político mais amplo que permita reformas estruturais e eficazes do sistema judicial. Esse pacto é essencial para a definição de políticas consequentes e eficazes no combate à corrupção.
advocatus | Que papel está reser-vado à justiça no actual momento de crise económica?BSS | Convivemos, cada vez mais, no interior de Estados democráticos, com dinâmicas de desenvolvimento assentes em gritantes situações de vulnerabilidade, risco e exclusão so-cial. O neoliberalismo revelou as suas
“Os tribunais não foram feitos para julgar para cima, mas sim para julgar os de baixo”
debilidades. Não garantiu o cresci-mento, aumentou tremendamente as desigualdades, a insegurança e a incerteza na vida das classes médias e populares, para além de fomentar uma cultura de fatalidade perante as medidas de austeridade, sem ques-tionarmos as opções políticas, a re-partição dos sacrifícios e as determi-nações sistémicas. É sobretudo num contexto de grave crise económica e social que os tribunais devem constituir uma reserva de confiança material e simbólica dos cidadãos. Se o seu contributo é fundamental para a segurança dos investimentos, melhorando as condições para o crescimento económico, é também crucial o seu papel e a sua eficácia enquanto instrumentos de correcção das desigualdades e das injustiças sociais. Se não estiverem atentos à relevância e à centralidade deste seu papel, correm um forte risco de caírem numa profunda crise de legi-timação.
advocatus | temos um novo go-verno. acredita que as reformas irão para além da legislatura?BSS | A prevalência da ideia de crise da justiça empurrou o poder político para uma situação de permanente reforma, muitas vezes com sentidos divergentes e impulsionada por di-ferentes diagnósticos. Mais do que reclamar reformas na justiça que perdurem para além de uma legis-latura, é necessário reclamar do poder político e judicial uma política pública de justiça consequente. É fundamental que se combata o des-perdício de reformas sobre reformas. Precisamos de orientação estratégi-ca, de planificação das reformas e da sua execução, de recusar refor-mas avulsas, sem uma perspectiva integrada de todo o campo ao qual se dirigem. Sem que seja assumida esta cultura reformista, não con-seguimos ultrapassar a percepção de que, depois de tantas reformas, tudo está por fazer, o que leva a que a força política que chega ao poder, confrontada com a ineficiência das reformas anteriores, queira desen-volver a sua própria agenda. É um problema complexo, que não é de agora, e cuja responsabilidade não pode ser assacada apenas ao poder
“é fundamental que se combata o desperdício
de reformas sobre reformas. Precisamos
de orientação estratégica, de
planificação (…), de recusar reformas
avulsas. Sem que seja assumida esta cultura reformista, não conseguimos
ultrapassar a percepção de que, depois de tantas
reformas, tudo está por fazer”
“é sobretudo num contexto de grave crise
económica e social que os tribunais devem constituir uma reserva de confiança material e simbólica dos cidadãos.
(…) É crucial o seu papel e a sua eficácia
enquanto instrumentos de correcção das
desigualdades e das injustiças sociais”
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“não podemos continuar a fazer uma
subutilização dos procedimentos rápidos para o tratamento das pequenas infracções, das pequenas causas,
que mobilizam, proporcionalmente,
cada vez mais recursos”
“uma das maiores debilidades do sistema
judicial sempre foi a sua incapacidade
de encontrar um meio autónomo e eficaz de comunicação com o público, o que coloca
em evidência tanto a sua vulnerabilidade
como a sua dependência face
à comunicação social”
executivo. A governação do sistema de justiça, em graus e responsabili-dades diferentes, depende do poder político (executivo e legislativo) e do judicial. Precisamos de um pacto de cidadania para a criação de uma agenda estratégica de transforma-ção da justiça. Os compromissos assumidos com a troika e um novo ciclo político podem constituir novos contextos propícios a esse entendi-mento.
advocatus | o que falta para uma justiça que sirva os cidadãos? BSS | Em época de grave crise finan-ceira e económica, a justiça é certa-mente um dos sectores atingidos. Mas, este momento pode também ser visto como uma oportunidade de racionalização. Os nossos estudos mostram que há muitos desperdí-cios. Por exemplo, não podemos continuar a fazer uma subutilização dos procedimentos rápidos para o tratamento das pequenas infrac-ções, que mobilizam, proporcio-nalmente, cada vez mais recursos. Serve os interesses da justiça e da cidadania que um processo de con-dução com excesso de álcool, um furto de reduzido valor, umas ofen-sas corporais leves, uma dívida de poucas centenas de euros, litigação que constitui a grande maioria dos processos que entram nos tribunais portugueses, ocupe largos meses, e mesmo anos, recursos humanos altamente qualificados (polícias, fun-cionários judiciais, magistrados do Ministério Público, juízes da primeira instância e dos tribunais da relação, além de outros técnicos fora do sis-tema de justiça)? A resposta só pode ser não.
advocatus | Qual é a causa desse desperdício?BSS | Prevalece no sistema de jus-tiça, apesar das muitas reformas, uma cultura burocrática, em que todos os agentes “colaboram”, que não permite que inovações com alto potencial frutifiquem. Podemos transformar este tempo de crise num tempo de oportunidades, de comba-te às muitas ineficiências. Para tal, é necessário, em primeiro lugar, uma nova cultura jurídica, não tecnocráti-ca, orientada para a cidadania, para
a eficiência e qualidade da justiça e para melhor servir os cidadãos. É preciso também acabar com o des-perdício das experiências adquiri-das. O conhecimento adquirido não pode ser sucessivamente desvalo-rizado, como se o sistema judicial não tivesse história. Por outro lado, temos um claro problema de orga-nização e gestão, de desperdício de espaço, de tempo e de meios. As deficiências de organização e ges-tão dos tribunais são responsáveis por grande parte da sua ineficiência. É fundamental investir nas reformas gestionárias da justiça. A reforma do mapa judiciário tem, nesta matéria, um claro objectivo estratégico com a previsão de um novo modelo de gestão dos tribunais, que é necessá-rio desenvolver e aprofundar.
advocatus | a justiça é cada vez mais mediatizada. é positivo ou negativo?BSS | A justiça tornou-se num conte-údo apetecível: os casos da justiça, as reformas, os problemas, os seus agentes fazem parte do quotidiano mediático. A comunicação social teve, assim, um papel fundamental na visibilidade social dos tribunais e, de certa forma, na sua aproximação social. Mas, essa visibilidade tem vários perigos. Em primeiro lugar, é selectiva. Ocorre sobretudo no âm-bito de determinados processos, o que significa uma pequeníssima parte do trabalho jurídico. Tende, por isso, a ocultar todo o resto. Em se-gundo lugar, acentua a morosidade da justiça. A lógica da acção medi-ática e a da acção judicial são muito distintas. Esta última exige a verifi-cação de procedimentos rigorosos para a decisão final, mais morosos. Os tempos e as retóricas discursivas da comunicação social e dos tribu-nais estão em diametral oposição e esta disjunção ajuda a acentuar as percepções negativas a respeito da ineficiência funcional dos tribunais. Uma das maiores debilidades do sistema judicial sempre foi a sua in-capacidade de encontrar um meio autónomo e eficaz de comunicação com o público, o que coloca em evi-dência tanto a sua vulnerabilidade como a sua dependência face à co-municação social.
“O sistema judicial não conseguiu responder satisfatoriamente à pressão
da sociedade, elevando as percepções negativas a seu respeito”