boaventura de sousa santos-parte1

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    SANTOS, Boaventura de Souza. Introduo. In: ________ . Conhecimentoprudente para uma vida decente: um discurso sobre as cincias revisitado.2. ed. So Paulo: Cortez, 2006. p.17-59

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    Boaventura de Sousa Santos

    Introduo

    Este livro pretende contribuir para o aprofundamento do debate sobre a cinciaenquanto forma de conhecimento e prtica social. O conhecimento cientfico hoje a forma oficialmente privilegiada de conhecimento e a sua importnciapara a vida das sociedades contemporneas no oferece contestao. Namedida das suas possibilidades, todos os pases se dedicam promoo da

    cincia, esperando benefcios do investimento nela. Pode dizer-se que, desdesempre, as formas privilegiadas de conhecimento, quaisquer que elas tenhamsido, num dado momento histrico e numa dada sociedade, foram objecto dedebate sobre a sua natureza, as suas potencialidades, os seus limites e o seucontributo para o bem-estar da sociedade. De uma forma ou de outra, a razoltima do debate tem sido sempre o facto de as formas privilegiadas doconhecimento conferirem privilgios extracognitivos (sociais, polticos, culturais)a quem as detm. S assim no seria se o conhecimento no tivesse qualquerimpacto na sociedade, ou, tendo-o, se ele estivesse equitativamente distribudona sociedade. Mas no assim.

    Por um lado, s existe conhecimento em sociedade e, portanto, quanto maiorfor o seu reconhecimento, maior ser a sua capacidade para conformar asociedade, para conferir inteligibilidade ao seu presente e ao seu passado e darsentido e direco ao seu futuro. Isto verdade qualquer que seja o tipo e oobjecto de conhecimento. Mesmo que a natureza no existisse em sociedade eexiste - o conhecimento sobre ela existiria. Por outro lado, o conhecimento, emsuas mltiplas formas, no est equitativamente distribudo na sociedade etente a estar tanto menos quanto maior o seu privilgio epistemolgico.Quaisquer sejam as relaes entre o privilgio epistemolgico e o privilgiosociolgico de uma dada forma de conhecimento - certamente complexas e, elas

    prprias, parte do debate -, a verdade que os dois privilgios tendem aconvergir na mesma forma de conhecimento. Esta convergncia faz com que a

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    justificao ou contestao de uma dada forma de conhecimento envolvamsempre, de uma maneira mais ou menos explcita, a justificao ou contestaodo seu impacto social.

    Desde o sculo XVII, as sociedades ocidentais tm vindo a privilegiarepistemolgica e sociologicamente a forma de conhecimento que designamospor cincia moderna. Quaisquer que sejam as relaes entre esta cincia eoutras cincias anteriores, ocidentais e orientais, a verdade que esta nova

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    forma de conhecimento se autoconcebeu como um novo comeo, uma rupturaem relao ao passado, uma revoluo cientfica, como mais tarde viria a sercaracterizada. Desde ento, o debate sobre o conhecimento centrou-se nacincia moderna, nos fundamentos da validade privilegiada do conhecimentocientfico, nas relaes deste com outras formas de conhecimento (filosfico,

    artstico, religioso, etc.), nos processos (instituies, organizaes,metodologias) de produo da cincia e no impacto da sua aplicao. O quedistingue o debate moderno sobre o conhecimento dos debates anteriores ofacto de a cincia moderna ter assumido a sua insero no mundo maisprofundamente do que qualquer outra forma de conhecimento anterior oucontempornea: props-se no apenas compreender o mundo ou explic-lo,mas tambm transform-lo. Contudo, paradoxalmente, para maximizar suacapacidade de transformar o mundo, pretende-se imune s transformaes domundo.

    Nos termos da conscincia de si prprios que a cincia e os cientistas

    tenderam, dominantemente, a formar desde os tempos da revoluo cientficaat um perodo muito recente, o privilgio epistemolgico que a cinciamoderna se arroga pressupe que a cincia feita no mundo, mas no feitade mundo. A cincia intervm tanto mais eficazmente no mundo quanto maisindependente dele. A cincia opera autonomamente segundo as suas prpriasregras e lgicas para produzir um conhecimento verdadeiro ou to prximo daverdade quanto humanamente possvel. A verdade consiste na representaofiel ou, pelo menos, o mais aproximada possvel da realidade que existe,independentemente das formas que assume e dos processos atravs dos quais produzido o conhecimento que se tem dela. Uma vez criadas e estabilizadas as

    condies institucionais que garantem a autonomia da cincia, tal verdade e talrepresentao no estariam sujeitas ao condicionamento ou manipulao porparte do mundo no cientfico.

    Ao longo dos ltimos trs sculos, os debates sobre a cincia tiveram sempreestas duas vertentes: a natureza e o sentido das transformaes do mundooperadas pela cincia; a natureza e a validade do conhecimento cientfico queproduz e legitima essas transformaes. Em alguns perodos, dominou uma dasvertentes e noutros, a outra. Os debates comearam por ser entre cientistas e

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    titulares de outros conhecimentos - filsofos, telogos, artistas, etc. -, mas, medida que a cincia se expandiu e diversificou, passaram a travar-seigualmente entre cientistas, ainda que, por vezes, o debate tenha sido sobre oque ser cientista e sobre quem o .

    A evoluo dos debates tem a ver com uma pluralidade de fatores: com ocrescimento exponencial da produo cientfica e a conseqente proliferao dascomunidades cientficas; com o extraordinrio aumento da eficcia tecnolgicapropiciada pela cincia, uma eficcia posta tanto ao servio da guerra como dapaz; com as transformaes na prtica cientfica medida que o conhecimentocientfico foi transformado em fora produtiva de primeira ordem e a questodas relaes entre a cincia e o mercado se transmutou na questo da cincia

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    como mercado.Os debates tm assumido muitas formas. A mais recente ficou conhecida por

    "guerras da cincia" e incidiu preferencialmente sobre a natureza e validade doconhecimento que produz e legitima as transformaes do mundo atravs dacincia. Foi um debate essencialmente entre cientistas, ainda que o estatuto de

    cientista tenha sido, ele prprio, parte do debate, e de tal modo que se, paraalguns dos participantes, o debate era entre cientistas, para outros tratava- sede um debate entre cientistas e intelectuais estranhos ao mundo da cincia. Foi,acima de tudo, um debate entre cientistas em geral e cientistas cujo objeto deinvestigao a prpria cincia enquanto fenmeno social. Eis algumas dasquestes que dominaram debate: qual a relao entre conhecimento cientficoe a realidade que ele pretende conhecer? O conhecimento cientfico representa,descobre, cria ou inventa a realidade que pretende conhecer? Quais os critriospor que se afere a adequao ou a correo dessas relaes? O conhecimentocientfico aspira verdade, eficcia, verossimilhana, coerncia,

    referencialidade? Se as verdades cientficas de um dado momento histrico tmsido refutadas em momentos posteriores, h algo mais na verdade do que ahistria da verdade? O modo como a cincia est organizada e o modo como serealiza na prtica interfere no tipo e na validade do conhecimento que seproduz? Quais as relaes entre a cincia e outras formas de conhecimento?Qual o verdadeiro papel do conhecimento cientfico? Como devem interagir oscientistas com o resto da sociedade nos processos de deciso?Este ltimo debate eclodiu no incio dos anos 1990 no Reino Unido e nos EUA e

    alastrou a outros pases. Um dos seus momentos mais intensos foi constitudopelo caso Sokal. Eis, sucintamente, aquilo em que ele consistiu e o contexto em

    que ocorreu.At dcada de 1990, os debates sobre o estatuto epistemolgico das cinciasmodernas estavam confinados aos domnios especializados da filosofia

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    das cincias e da histria das cincias. A publicao em 1992, em Inglaterra, deThe Unnatural Nature of Science, do embriologista Lewis Wolpert, significou umaimportante inflexo nos temas e nos protagonistas desses debates. O alvo deWolpert era o conjunto das correntes de investigao na sociologia conhecidas

    por sociologia do conhecimento cientfico, incluindo, nomeadamente, a chamadaEscola de Edimburgo e o seu "Programa Forte" da Sociologia do Conhecimento ea corrente associada a Harry Collins, o "Programa Emprico do Relativismo",tambm conhecida por Escola de Bath. O livro de Wolpert consagrava um modode argumentao caracterizado pela referncia seletiva e parcial aos trabalhosdaqueles que tomava como alvo, e pela estigmatizao de qualquer forma deinvestigao que tomasse o conhecimento cientfico e as controvrsiascientficas como processos sociais, denunciando-a como um ataque prpriacincia e uma tentativa deliberada de minar a autoridade cultural destaenquanto forma de produo de enunciados verdadeiros. O ataque no deixou,como seria de esperar, de suscitar respostas por parte dos visados, queprocuraram clarificar as suas posies e as orientaes de pesquisa que

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    propunham. O debate, na altura, tinha toda a aparncia de um remake dadiscusso sobre as "duas culturas" - a humanstica e a cientfica - suscitada emfinais da dcada de 1950 pela conferncia com o mesmo ttulo de C.P.Snow.

    Mas se as primeiras escaramuas das "guerras da cincia" dos anos 1990tiveram origem no Reino Unido, as batalhas maiores viriam a ser travadas nos

    Estados Unidos, logo seguidas de uma tentativa de as fazer regressar aterritrio europeu. Em 1994, o bilogo Paul Gross e o matemtico Norman Levittpublicavam uma violenta denncia dos alegados ataques sistemticos cinciae racionalidade perpetrados nas Universidades americanas por uma "esquerdaacadmica" que, atravs de uma crescente influncia - em boa parte apoiada narecepo das obras de intelectuais franceses -, teria transformado um conjuntoheterogneo de reas acadmicas, tais como os estudos culturais, os estudosfeministas, os estudos sobre raa e etnia ou os estudos sobre a cincia, emplataformas de denncia e descredibilizao da cincia e da Razo. HigherSuperstition tornar-se-ia a principal inspirao para muitos dos violentos

    ataques que vieram a seguir, os quais, enfiando no mesmo saco as disciplinas ereas de investigao referidas e todo um conjunto de prticas rotuladas de"anticincia" (astrologia, diferentes correntes New Age, terapias alternativas),as responsabilizava pela perda de influncia cultural e social da cincia e pelodeclnio do apoio poltico e pblico investigao cientfica. Tal perda e taldeclnio derivariam do impacto das prticas e disciplinas que negavam acapacidade de a cincia produzir um conhecimento verdadeiro e objetivo sobre omundo.

    Episdios subseqentes incluram a retirada do apoio da American ChemicalSociety exposio "Science in American Life", no Museu de Hist-

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    ria Natural de Washington, sob a alegao de que a influncia de posies"psmodernistas" entre alguns dos seus organizadores teria levado a conferir exposio um tom hostil cincia. De facto, a exposio propunha, demaneira ) equilibrada, uma interpretao da histria da cincia que, ao lado dosbenefcios da cincia e da tecnologia, focava tambm os perigos, as incertezas eos impactos negativos destas sobre a sade, o ambiente e a segurana. Outromomento alto das "guerras da cincia" foi a organizao pela Academia das

    Cincias de Nova Iorque, na Primavera de 1995, do congresso "The Flight fromScience and Reason", o qual, reunindo especialistas das cincias naturais, dascincias sociais e das humanidades, procuraria apresentar uma frente comumdos autoproclamados defensores da racionalidade e dos ideais das Luzes contraas alegadas correntes "anticincia" que estariam a corroer a Razo, a Verdade ea Objetividade.

    A primeira resposta coletiva, da parte de investigadores dos campos dascincias sociais, das cincias naturais e das humanidades, apareceria em 1996,atravs de um nmero da revista Social Text, precisamente dedicado ao tema"Science Wars". O nmero inclua um conjunto de discusses e refutaes dasalegaes e acusaes provindas dos "guerreiros da cincia". Entre ascontribuies contava-se o texto "Transgressing the boundaries: towards a

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    transformative hermeneutics of quantum gravity", da autoria do fsico AlanSokal, que viria a dar origem a um dos mais ruidosos episdios das guerras dacincia" (Sokal, 1996a) [nota: 1]. Apresentando-se como uma reinterpretaops-moderna do domnio dos estudos sobre a gravidade quntica, o textoapoiava-se num extenso rol de citaes de autores invariavelmente associados

    s correntes rotuladas de "anticincia". Nesse texto, Sokal faz duas refernciasa dois dos meus trabalhos epistemolgicos - Um Discurso sobre as Cincias, naverso inglesa publicada em Review, 15(1) (1992: 9-48), e a Introduo a umaCincia Ps-moderna (Porto: Afrontamento, 1989) - que indica comorepresentativos da cincia ps-moderna (1997, 235 e 236). Logo a seguir, oprprio Sokal viria a revelar, num texto publicado na revista Lngua Franca, queseu artigo era um embuste, e que a sua inteno havia sido apenas a demostrar a facilidade com que um texto com todos os sinais exteriores prpriosdo que escreviam os "ps-modernistas" podia ser aceite para publicao,independentemente do seu contedo e da sua coerncia, em revistas por eles

    dirigidas (Sokal, 1996b).

    Nota 1 Pgina 21. Uma verso ampliada do nmero temtico de Social Textviria a ser publicada no mesmo ano, sem o texto de Sokal e com a adio detextos no includos na publicao original (Ross, 1996). Este volume seria umadas respostas mais importantes aos ataques dos "guerreiros da cincia".

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    No sendo de todo original o "embuste" de Sokal no deixou de suscitar

    alguma confuso e embarao, mistura com muita indignao por aquilo que osresponsveis editoriais de Social Text consideraram ser uma violao da ticaacadmica. O episdio alimentaria um debate que prosseguiu durante vriosanos e que viria a conhecer, em 1997, novo desenvolvimento. Sokal, emcolaborao com outro fsico, Jean Bricmont, publicava nesse ano, em Frana,um livro que tomava por alvo os intelectuais "ps-modernos" franceses que,alegadamente, teriam tido uma influncia decisiva na eroso da crena naRazo e na Objectividade (Sokal e Bricmont, 1997). De Bergson a Lacan,passando por Kristeva, Baudrillard, Latour, Irigaray, Deleuze, Guattari e Virilio -e com algumas misteriosas ausncias, como a de Jacques Derrida que, contudo,

    havia sido um dos autores mais salientes das citaes includas no "embuste" deSokal-, Sokal e Bricmont procediam a uma denncia do que descreviam comoos abusos que esses autores faziam de referncias cincia para fins delegitimao da sua autoridade intelectual. A tcnica seguia de perto a que jhavia sido usada por Gross e Levitt: citaes escolhidas, retiradas dos contextosde argumentao em que elas tinham lugar, de forma a transformar esseconjunto escolhido de citaes em amostra do conjunto da obra e, dessamaneira, desacreditar intelectualmente esta e o seu autor ou autora. Como seriade esperar, o livro suscitou um vivo debate em Frana, e foi atravs da suatraduo em vrias lnguas que os "guerreiros da cincia" procuraram exportarum debate muito vinculado ao meio acadmico americano para o continenteeuropeu [nota: 2]. Em Portugal, e num ambiente consideravelmente diferente, a

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    publicao de Imposturas Intelectuais apareceu num momento em que estavaem processo de construo um sistema nacional de cincia e tecnologia, com aconstituio e consolidao de centros e institutos de investigao apoiados porfinanciamentos pblicos e sujeitos a avaliao internacional, e com um grandeinvestimento na formao de jovens investigadores altamente qualificados. Esse

    processo abrangia todas as reas cientficas - incluindo as cincias naturais, asreas tecnolgicas, as cincias sociais e as humanidades - e caracterizou-se porexperincias, extremamente produtivas, de dilogo e colaborao entreinvestigadores nas cincias naturais e cientistas sociais que se dedicavam aos

    Nota 2 Pgina 22. A principal resposta ao livro de Sokal e Bricmont foi ovolume organizado por Baudoin Jurdant, com o ttulo Impostures scientifiques(1998). O "caso Sokal" e as "guerras da cincia", os seus antecedentes eimplicaes foram objeto de anlises mais aprofundadas em Jeanneret (1998) eGieryn (1999: 336-362). A reorientao para o debate epistemolgico original

    foi tentada por Harry Collins e Jay Labinger, dando origem a um volumecolectivo que reuniu alguns dos principais protagonistas do debate do lado dascincias naturais, da sociologia do conhecimento cientfico e da histria dascincias (Labinger e Collins, 20011.

    Pgina 23.

    estudos sociais das cincias. De facto, a importao das "guerras da cincia"aparecia, nestas circunstncias, como uma polemica fora do lugar, estranha

    dinmica especfica da construo do espao das cincias em Portugal. Alis, emMaro de 1999, quando visitou Portugal para lanar a verso portuguesa deImpostures intellectueles, Sokal, convidado pelo jornalista a comentar o facto deno seu embuste da Social Text estar mencionado um nome portugus, o meu,respondeu assim:

    Ah, sim! O seu caso mais delicado. Na pardia liguei muitas coisas distintaso parodista tem a liberdade de ligar coisas fracamente relacionadas, desde quesejam sociologicamente compatveis. Ao mesmo tempo que parodiei ospalavrosos autores franceses, critiquei idias extremas da sociologia da cincia.

    Mas, no livro, onde h um raciocnio cuidado, tratamos de separar essascoisas. Os escritos de Boaventura de Sousa Santos "pertencem corrente ps-moderna que encara certos avanos recentes da cincia - em especial, a teoriado caos como uma mudana epistemolgica importante para as cincias sociais.Mas isto no tem nada a ver com o abuso grosseiro de outros autores. Trata-se,no mximo, de erros subtis, feitos de boa-f. (Pblico, 5 de Maro, 1999, p. 22).

    Em Janeiro de 2002, foi publicado o livro O Discurso Ps-Moderno contra aCincia: Obscurantismo e Irresponsabilidade (Lisboa: Gradiva), da autoria deAntnio Manuel Baptista (AMB), em que feita uma crtica virulenta, bem noestilo das guerras da cincia, ao meu livro Um Discurso sobre as Cincias(Porto: Afrontarnento). Neste livro, publicado quinze anos antes, prossegui os

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    seguintes objetivos: em primeiro lugar, mostrar que, no incio da dcada de1980, o debate epistemolgico sobre as condies de validade e de rigor doconhecimento cientfico deixara de ser um debate entre filsofos e cientistas,como fora antes, para passar a ser um debate entre cientistas, o que era, em simesmo, o resultado do avano extraordinrio da cincia desde o incio do sculo

    XX. Da que nesse livro cite muito poucos filsofos da cincia e quase nenhumsocilogo da cincia. A minha argumentao construda com base emreflexes de cientistas, na grande maioria fsicos, dado que nessa poca a fsicaquase monopolizava o interesse pela epistemologia. Em segundo lugar, procureimostrar que o realismo e o positivismo cientficos entravam em crise no mesmoprocesso em que a contingncia, a incerteza, a complexidade, a irreversibilidadee, com esta, a histria faziam a sua entrada nas teorias cientficas, no comocorpos estranhos, mas como produtos do prprio desenvolvimento cientfico.Finalmente, tentei mostrar que o debate epistemolgico abria novasperspectivas s relaes entre as cincias fsico-naturais e as cincias sociais e

    criao de novas configuraes do saber mais aptas a serem apropriadas peloscidados.

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    O livro uma verso ampliada da Orao de Sapincia, proferida na aberturasolene das aulas na Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86.Publicado em 1987, teve uma recepo que me surpreendeu. Foi adotado emcursos de filosofia e de cincias no ensino secundrio e no ensino universitrio efoi publicado em ingls e em espanhol, e a verso portuguesa foi reeditada

    vrias vezes, encontrando-se atualmente em 14 edio. Ao longo de todo estetempo, o livro foi objeto de vrias recenses, todas elas positivas. Causou-me,pois, alguma estranheza que s ao final de tanto tempo e de um percurso tolongo e to pacfico o meu livro se tornasse objeto de polemica.

    Estranhei ainda mais que o meu antagonista se refira exclusivamente ao UmDiscurso sobre as Cincias e omita os trabalhos posteriores que dediquei aotema e em que reelaborei, aprofundei e expandi os argumentos apresentadosem Um Discurso sobre as Cincias. Refiro-me, por exemplo, a Introduo a umaCincia Ps-moderna, publicada em 1989 (Porto: Afrontamento, hoje em 6edio; Rio de Janeiro: Graal, hoje em 3 edio) e A Critica da Razo

    Indolente: Contra o Desperdcio da Experincia, publicada em 2000 (Porto:Afrontamento, hoje em 2 edio; So Paulo: Cortez, hoje em 2 edio),especialmente os captulos 1 e 4. Curiosamente Alan Sokal refere no s UmDiscurso sobre as Cincias como a Introduo a uma Cincia Ps-moderna (p.235-236).

    Mas a maior estranheza decorreu de o estilo incendiado do livro de AntnioManuel Baptista fazer supor que nos encontramos em plena guerra da cincia,quando, de facto, mesmo nos pases onde ela foi mais intensa, no Reino Unido enos EUA, evidente uma certa acalmia nos ltimos anos. Efetivamente, forampublicados recentemente vrios livros cujo tema ir "para alm das guerras dacincia": trocar idias em vez de insultos; descobrir reas de consenso sobre alegitimidade e a autoridade da cincia enquanto modo de compreenso do

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    mundo. Dois livros podem ser referidos a ttulo de exemplo: llica Segerstraile(org.), Beyond the Science Wars: The Missing Discourse about Science andSociety (Albany NY: State University of New York Press, 2000) e Jay A. Labingere Harry Collins (orgs.), The One Culture? A Conversation about Science(Chicago: University of Chicago Press, 2001). A idia geral que o ltimo

    episdio das guerras da cincia chegou ao fim, sem que tenha havidodeclarao formal de trguas ou de rendio. A sensao que se tem que ofim desta guerra to misterioso quanto o seu comeo. Naturalmente que osgrandes debates epistemolgicos permanecem, mas parecem ter deixado de sercampos de batalha para se acolherem no mbito e no estilo de discussesacadmicas, sem dvida intensas, mas pacficas e com respeito mtuo pelasdiferenas. A explicao, pelo menos para o caso desta guerra da cincia nosEUA, reside, em meu entender, no facto de, apesar de ter sido travada entrecientistas, ela ter tido motiva-

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    es mais polticas e culturais do que cientficas. Refiro-me poltica em geral, poltica cientfica e cultural, em particular. No fundo, o que esteve em causaforam diferentes concepes quanto ao papel da cincia e das diferentesconcepes de cincia na transformao poltica da sociedade; foram tambmdiferenas sobre o impacto dessas concepes no financiamento pblico dacincia, sobretudo quando se trata de financiamentos muito avultados, como osque so exigidos pela Big Science; e foram ainda vises antagnicas sobre o

    significado da diversidade cultural e, portanto, do reconhecimento domulticulturalismo no ensino superior.Porque se tratava de uma mobilizao poltica e porque os cientistas no so

    polticos profissionais, a mobilizao para a guerra no foi duradoura e, mais oumenos rapidamente, os cientistas regressaram aos seus gabinetes e laboratriose continuaram a fazer o que sempre tinham feito. Talvez ningum tenhaconvencido ningum, o que no significa que este episdio das guerras dacincia no tenha tido impacto. Teve-o naturalmente no prestgio e at nacarreira profissional dos seus principais protagonistas. Mas teve-o muito paraalm disso e no foi de todo negativo. Pelo contrrio, penso que contribuiu para

    aprofundar a auto-reflexividade das cincias e dos cientistas, tornando maisexplcitos os pressupostos e as crenas metacientficas em que assenta oconhecimento cientfico. O decorrer da "guerra" tornou ainda mais claro que asdiferenas epistemolgicas no ocorriam apenas entre cientistas naturais ecientistas sociais, mas tambm entre cientistas naturais e entre cientistassociais, e que tais diferenas se articulavam de modo complexo com diferenasculturais e polticas, com diferentes concepes sobre a relao entreconhecimento cientfico e outras formas de conhecimento. Em suma, tornaram-se mais claras as divergncias e as suas causas, e, se no aumentou atolerncia, aumentou, pelo menos, o conhecimento da diversidade deperspectivas.

    Foi, pois, num perodo de relativo apaziguamento que surgiu o livro de AMB.

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    Este descompasso torna-o algo anacrnico, no s no contedo como no estilo.A crtica de AMB segue a linha de Sokal, ainda que sem a erudio e atualizaodeste ltimo. Socorre-se de alguns dos textos esgrimidos no ltimo episdio dasguerras da cincia, que usa freqentemente a partir de fontes secundrias e,por vezes, descuidadamente, o que o faz incorrer em erros de interpretao que

    uma leitura mais atenta facilmente preveniria. Para alm do seu estilotruculento, o texto est investido de um carter de urgncia, bem evidente logona nota de abertura, que parece deslocado, se se tiver em mente que o seu alvoprivilegiado, o meu livro, fora publicado quinze anos antes. A assimetria entreos dois textos no apenas a distncia temporal que os separa. tambm ofacto de o meu livro no ter sido escrito com intuitos polmicos,

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    antes apenas com o objetivo de dar conta dos debates epistemolgicos mais

    recentes, ao tempo quase desconhecidos entre ns, e de tomar posio neles apartir da minha rea cientfica, as cincias sociais e especificamente asociologia. publicao do livro de AMB seguiu-se um debate curto e azedo nosjornais mas, curiosamente, poucos mais cientistas intervieram nele, ainda quealguns lhe tenham feito referncia indireta ou acidental.Apesar do seu tom precipitado e exagerado e da falta, por vezes clamorosa, de

    informao atualizada, e apesar de uma pulso descontextualizante algodescontrolada, o livro de AMB levantava muitas das questes que tinham sidosuscitadas no ltimo episdio das guerras da cincia, e essas questes soimportantes e devem ser debatidas. Como tal debate no poderia ser conduzido

    com a mnima profundidade nos jornais, dispus-me a preparar uma resposta. Aresposta, tal como a imaginei, teria que ter em conta dois factos. Por um lado, omeu livro fora publicado numa altura em que os debates epistemolgicos eramdistintos dos que vieram a ter lugar mais tarde. Basta lembrar que, no incio dadcada de 1980, a discusso sobre os limites da validade e do rigor doconhecimento cientfico era liderada pela fsica - uma liderana que s anosmais tarde comearia a perder a favor da biologia e das cincias da vida emgeral - e que a sociologia do conhecimento cientfico e os estudos sociais eculturais da cincia tinham ento um desenvolvimento muito incipiente. Poroutro lado, o debate epistemolgico tem estado quase totalmente ausente em

    Portugal e a nossa comunidade cientfica tem exgua participao nas discussesinternacionais.Em face destas duas consideraes, decidi que s uma interveno coletiva e

    internacional poderia, por um lado, dar conta da grande diversidade dos temasem debate e das posies assumidas e, por outro lado, mostrar o mbitointernacional e transdisciplinar dos debates. Admiti tambm que, com isso,poderia contribuir para dar a conhecer entre ns a riqussima reflexo sobre oconhecimento cientfico hoje em curso, e faz-lo a propsito de um debate emque poucos participaram ativamente, mas em que muitos se interessaram, aavaliar pela venda dos livros em causa.

    Com estes objetivos em mente, dirigi um convite a colegas de diferentespases e de diferentes formaes disciplinares, com quem dialoguei nos ltimos

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    vinte anos sobre questes de epistemologia e de sociologia da cincia, paracolaborarem comigo num livro em que partilhassem com a comunidadecientfica de lngua portuguesa as suas mais recentes reflexes sobre os debatesepistemolgicos, filosficos, sociolgicos e culturais sobre a cincia e oconhecimento em geral em que tm participado. Expliquei-lhes o contexto em

    que tinha surgido em Portugal o debate sobre "as guerras da cincia" de todosbem conheci-

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    do. Sugeri-lhes que, sempre que possvel, se referissem a alguns dos temasabordados no meu livro. Indiquei-lhes explicitamente que no se tratava decoligir contribuies com posies concordantes com as minhas, mas antes deestabelecer um dilogo crtico que tornasse possvel identificar, de modofundamentado e sereno, as nossas convergncias e as nossas divergncias.

    Alis, dada a longevidade do meu livro e a sua reduzida extenso, pedi-lhes quese centrassem nos temas da sua preferncia e nas questes por elesconsideradas mais importantes, a esmagadora maioria das quais, por certo, notinha sequer sido abordada por mim. Aos colegas estrangeiros capazes de lerportugus foi enviado o livro de AMB sempre que solicitado.

    A resposta ao meu convite foi a melhor possvel e est contida neste livro.Nele convergem contribuies de uma enorme variedade de disciplinas - filosofia(8), sociologia (9), histria (1), fsica (7), biologia (4), antropologia (3), estudosculturais (1), economia (1), cincia poltica (1), psicanlise (1), matemtica (2)- de um conjunto variado de pases e comunidades cientficas: Alemanha,

    Argentina, Blgica, Brasil, Colmbia, Estados Unidos da Amrica, ndia,Inglaterra, Mxico, Moambique e Portugal. No conjunto, so um mosaico muitorico, denso e variado, da reflexo contempornea sobre a cincia. Nopretendem ser uma amostra representativa dessa reflexo e muito menostransmitir uma viso ecltica ou exaustiva dos debates. Constituem uma visopossvel dessa reflexo, no a viso global; so representativos de muitas dasposies nos debates, no de todas. Como acontece em geral nas nossasinteraes, cientficas e outras, os dilogos intensificam-se quando asdivergncias ocorrem sobre um lastro de crescentes convergncias. No desurpreender que me reveja em muitas das posies aqui apresentadas, mas

    to-pouco pode surpreender que de outras divirja mais ou menos intensamente.Alis, em vrias das contribuies so explicitadas divergncias em relao sminhas posies. este o nosso modo de fazer avanar o debate.

    O livro est dividido em quatro partes. Nas pginas seguintes farei um breveresumo descritivo de cada um dos captulos do livro. Seria de todo impraticvelentrar em dilogo com os diferentes autores nesta introduo ou mesmoidentificar todos os pontos em que estou em acordo ou em desacordo com eles.Esse dilogo teve lugar por correspondncia eletrnica medida que os autoresforam preparando os seus textos, por vezes em vrias verses. E certamenteser reatado no futuro sob outras formas. Aqui apenas sumario as posies dosautores, utilizando inclusive a sua terminologia, com a qual por vezes noconcordo.

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    A primeira parte, intitulada "Nem Trguas nem Rendies: Depois das Guerrasda Cincia", rene os textos que mais especificamente se articulam

    Pgina 28.

    com os debates no mbito do ltimo episdio das "guerras da cincia", Como ottulo indica, a idia central nesta seco que o episdio mais recente das"guerras da cincia" parece ter-se exaurido medida que foram sendoconhecidas as motivaes especficas que o tinham alimentado, como mencioneiatrs. Permaneceram os debates, mas num tom menos aguerrido e talvez maisesclarecedor.

    No captulo I, Joo Arriscado Nunes faz uma anlise do contexto sociolgico eepistemolgico em que surgiu Um Discurso sobre as Cincias e procede a umaavaliao dos argumentos nele defendidos luz do desenvolvimento cientficonas quase duas dcadas seguintes e dos debates que ele suscitou, e tambm

    luz da evoluo da minha reflexo epistemolgica que, em trabalhosposteriores, se orientou para os temas da diversidade dos modos deconhecimento e das condies sociais da sua produo, apropriao, circulaoe articulao. Analisa especificamente cada uma das quatro teses prospectivasapresentadas no livro: todo o conhecimento cientfico-natural cientfico-social;todo o conhecimento autoconhecimento; todo o conhecimento local e total;todo o conhecimento cientfico visa transformar-se em senso comum. Carreiauma srie de argumentos novos que confirmam as teses e mostra a inflexo dosdebates epistemolgicos ocorrida com o crescente protagonismo das cincias davida. Salienta, em particular, o modo como as orientaes reducionistas foram

    suplantadas pelas orientaes para a complexidade e pelos processos detransversalizao interdisciplinar associados a ela. Apresenta, finalmente, umaproposta de interpretao para uma polemica que considera "anacrnica e forado lugar", contrapondo-a aos progressos recentes na criao em Portugal deuma cultura cientfica inclusiva, aberta, crtica e cosmopolita.

    No captulo 2, Richard Lee faz uma anlise detalhada dos debates maisrecentes sobre a cincia e, especificamente, da ltima guerra da cincia,centrando a sua anlise nos EUA, mas estendendo-a s guerras da cincia emPortugal atravs de uma leitura crtica do meu livro e do de AMB. Lee mostraque a compreenso das guerras da cincia, sobretudo no modo como ocorreram

    nos EUA, exige que as contextualizemos no mbito de guerras culturais epolticas bem mais amplas. O que esteve em jogo nas controvrsias foi, por umlado, o cnone cultural dominante na sociedade americana e a ameaa que paraele constituiu a emergncia dos estudos culturais e a reivindicao domulticulturalismo e, por outro lado, a luta pelo controlo das polticas educativase, nomeadamente, da reforma da universidade. A um nvel mais profundo, oque esteve, est e estar em causa nos prximos tempos a quebra do muroentre as duas culturas, ou seja, a separao entre cultura cientfica e culturahumanstica, entre o estudo dos factos e o estudo dos valores, e o desafio quetal queda pe s estruturas de produo e de distribuio de conhecimento.

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    O captulo 3 da autoria de Peter Wagner. Wagner comea por perguntar-seporque que o episdio da guerra da cincia ocorreu em Portugal, numcontexto totalmente distinto do que sustentou a polmica nos EUA e a partir de

    um livro que tinha sido publicado quinze anos antes. E, tal como os autoresanteriores, procede a uma leitura crtica, tanto do meu livro como de AME. Noque respeita ao meu livro, Wagner entra em linha de conta com outros textosposteriores a Um Discurso sobre as Cincias, nomeadamente com AEpistemologia da Cegueira" (captulo 4 de A Crtica da Razo Indolente) que elej comentara aquando da sua publicao em ingls no European Journal ofSocial Theory ("Toward an Epistemology of Blindness: Why the New Forms of'Ceremonial Adequacy' neither Regulate nor Emancipate", The European Journalof Social Theory, VoI. 4(3), Agosto de 2001).

    A partir de um conhecimento muito slido da histria, da filosofia e da poltica

    do conhecimento cientfico, Wagner oferece uma leitura nova dos recorrentesdebates sobre a cincia, vendo-os como o desdobrar de uma tenso inerente relao entre o conhecimento e o mundo. No caso da cincia, a tenso decorrede uma contradio interna entre a pretenso de neutralidade e dedistanciamento do mundo e a legitimao pela utilidade e eficcia natransformao do mundo. Wagner d um relevo especial filosofia da cincia deJohn Dewey, que argutamente identifica como uma das fontes de inspirao daminha reflexo.No captulo 4, Immanuel Wallerstein prope-se analisar as guerras da cincia

    luz da longue dure do sistema mundial moderno, de que o principal

    teorizador. Mostra como a cincia se foi divorciando da filosofia para alcanaruma posio dominante na hierarquia do conhecimento, e problematiza, luzdos acontecimentos contemporneos, a separao que, no processo, ocorreuentre a busca do bem e a busca da verdade. Remetendo para os trabalhos daComisso Gulbenkian sobre as cincias sociais, que dirigiu, e para o livro emque foram publicados os principais resultados (Para Abrir as Cincias Sociais:Relatrio da Comisso Gulbenkian sobre a Reestruturao das Cincias Sociais.Mem-Martins: Publicaes Europa-Amrica, 19961, Wallerstein refere aemergncia das trs culturas - cincias naturais, cincias sociais e humanidades- que nos ltimos cem anos estruturaram o nosso conhecimento, e detm-se no

    questionamento a que foi sujeita em tempos recentes esta diviso tripartida doconhecimento por parte dos estudos da complexidade, por um lado, e dosestudos culturais, por outro.

    O captulo 5 da autoria de Isabelle Stengers. Comea por discutir a minhaassero de que no h razes cientficas para que a explicao cientfica tenhaprioridade em relao a outras explicaes alternativas (Um Discurso

    Pgina 30.

    sobre as Cincias, 52) e parte dela para questionar o que designa por "agrande separao" - entre cincia e filosofia, entre factos e valores - que tem

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    caracterizado o conhecimento ocidental. Segundo ela, o "conhecimento queconta" numa dada comunidade um hbrido de factos e valores, dando oexemplo da reivindicao da autonomia da cincia como condio da suautilidade pblica. Socorre-se de Bruno Latour e da distino por ele propostaentre humanos e no humanos - em substituio da distino entre sujeito e

    objeto - para justificar o papel das cincias sociais em mostrar como se produzo "conhecimento que conta", a importncia dos empreendedores, das redes decientistas e de no cientistas. Da que a deciso sobre o conhecimento queconta e o que no conta seja uma questo iminentemente poltica e, portanto,refratria ao pensamento totalizante e a perspectivas privilegiadas a priori. Noseguimento de Bruno Latour, Stengers prope o conceito de ecologia polticapara significar a exigncia radical de democratizao neste domnio. No adesignando como "revoluo cultural", mostra, no entanto, como esta exignciarompe com as concepes assentes na "grande separao".

    O captulo 6, da autoria de Joan Fujimura, visa contextualizar a recente guerra

    das cincias portuguesas num campo de disputa terico- epistemolgicatemporal e tematicamente amplo, constitudo por mltiplos episdios deconfrontao em torno de propostas consideradas transgressivas. Tal como ocaptulo anterior, procura trazer luz aos debates mais recentes, invocando ahistria da cincia. O "caso" analisado por Fujimura ocorreu em meados dosculo XIX, com a controvrsia sobre a emergncia da geometria no-euclidiana. Com a anlise deste caso, Fujimura pretende mostrar que as guerrasda cincia no se travam em torno da oposio entre cincia e anticincia, nemda oposio entre objetividade e subjetividade. Travam-se, sim, em torno daautoridade cientfica para definir o tipo de cincia que deve ser feito. Depois de

    uma anlise sinttica mas esclarecedora do caso Sokal, Fujimura parte do queSokal parodicamente afirma sobre a historicidade do pi, no seu embustepublicado em Social Text, para mostrar que, ao contrrio do que ele pensa, ovalor de pi tem de fato uma histria, a qual est registrada na histria damatemtica. Mostrar isso mesmo o objetivo da sua anlise sobre acontrovrsia gerada em redor da geometria no euclidiana e as lutas renhidaspela autoridade do cnone matemtico que ocorreram no seu seio. De talanlise sai evidenciada a importncia da perspectiva histrica nos debatesmetodolgicos e epistemolgicos contemporneos.

    No captulo 7, Joo Caraa procede a uma anlise sucinta, mas muito

    esclarecedora, da evoluo histrica dos contextos sociais e polticos da cincia.Considera que, no incio do sculo XXI, estamos perante um novo regime desaberes, uma organizao em arquiplago, reticular, que no postula umagnese

    Pgina 31.

    comum a todos os saberes, nem aceita uma hierarquia natural ou funcionalentre eles. Tal como John Dewey, Joo Caraa entende que a validade doconhecimento cientfico est tanto mais garantida quanto melhor foremconhecidos e aceites os limites do mbito deste. Segundo ele, a cincia possui omonoplio da verdade apenas no que toca descrio dos fenmenos que

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    ocorrem na natureza. Em todos os outros domnios de atividade, do mercado poltica, da cultura aos media, outros saberes verdadeiros permitem definir asmais adequadas estratgias de interao com o real. Termina apelando necessidade de um novo discurso sobre as' cincias que acolha perspectivasinternas, externas e comunicacionais da atividade cientfica e que privilegie o

    encontro inter- e intradisciplinar.No captulo 8, Germinal Cocho, Jos Gutierrez e Pedro Miramontes procedem a

    uma crtica veemente, tanto dos usos imperiais e destrutivos da cincia como dademonizao irracional da cincia. Fazem uma distino entre a cincia em si ea sua aplicao, e submetem esta ltima a um juzo muito severo, dando comoexemplo paradigmtico a tecnologia da guerra. Consideram que o conflito entrecientistas e humanistas tem aqui a sua origem e que a sua superao deveassentar numa ao concertada, altamente poltica, no sentido de eliminar opotencial blico da cincia e de, pelo contrrio, p-la ao servio de um projetosocial em que os homens e as mulheres comuns sejam donos do seu prprio

    destino. Quanto cincia, centram-se, seguindo a sua prpria formao, nafsica e na matemtica. Partindo do colapso do reducionismo mecanicista, quedominou durante muito tempo a fsica clssica, mostram como as teorias dacomplexidade vieram enriquecer a fsica e como foi decisivo o papel damatemtica nessa viragem. Os sistemas dinmicos complexos enriqueceram acincia com novos conceitos e ferramentas decorrentes das suas propriedades,como auto-organizao, zona crtica, frustrao, emergncia.

    O captulo 9 da autoria de Jorge Dias de Deus. O autor comea poresclarecer que concorda comigo no reconhecimento da validade de umasociologia crtica da cincia, mas discorda da minha idia de que a cincia est

    sujeita aos limites da condio humana e da sociedade em que produzida. Ofato de a cincia moderna ser parte de um processo social em que os valores datradio foram substitudos pelos valores da eficcia, da competncia e dasregras tcnicas ligadas ao tcnica, e o fato de a cincia ter sempreacompanhado o capitalismo apenas mostra que essas transformaes sociaisreclamaram, como mais adequada, a forma de conhecimento cientfico, umconhecimento concebido como universal e objetivo. Com base na idia de que acincia feita por homens, Jorge Dias de Deus analisa criticamente as teoriasde Popper, Merton e Kuhn, distinguindo entre normatividade metodolgica eprtica cientfica. Conclui, sugerindo a necessidade de uma terceira posio

    entre,Pgina 32.

    por um lado, a idia de uma lgica imutvel, inerente cincia e imune sociedade, e, por outro, a idia de que s nos resta o mtodo histrico-sociolgico para validar a cincia.

    O captulo 10 de Roberto Follari. Follari faz uma anlise sistemtica dosprincipais argumentos de Um Discurso sobre as Cincias e da Introduo a umaCincia Ps-moderna luz da reflexo terica e epistemolgica que ele prpriotem vindo a elaborar ao longo dos anos. Ao faz-lo, no s desenvolve muitosdos temas apenas referidos no meu trabalho, como acrescenta muitos outros

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    que emergiram ou se tornaram importantes nas duas ltimas dcadas. Para ele,a imanncia da cincia s condies sociais um fato inquestionvel eestrutural. O que caracteriza a cincia no a observao dos fatos, mas antesa construo metdica e controlada de um conhecimento que estabelece aprevisibilidade como necessidade central. Manifesta as suas reservas em relao

    eroso da causalidade nos modelos explicativos e teme o subjectivismohermenutico. Dvida que as cincias sociais possam liderar o paradigmaemergente, mas considera que o seu papel ser cada vez mais importante paraa auto - reflexividade da cincia no seu conjunto. Suspeita, alis, que algumasdas tendncias por mim apontadas como prometedoras possam ter conduzido aresultados perversos. Conclui o captulo com a anlise da minha concepo dadupla ruptura epistemolgica desenvolvida com base nas teses de Um Discursosobre as Cincias, mas apenas formulada na Introduo a uma Cincia Ps-moderna. Tambm aqui, Follari, ao mesmo tempo que partilha as minhaspreocupaes (aproximar a cincia dos cidados I, acautela-nos contra o perigo

    da perverso.No captulo 11, Marcos Barbosa de Oliveira comea por afirmar que no se

    identifica com nenhum dos campos entre os quais recentemente se travaram asguerras da cincia, considerando, alis, que as discusses geraram mais calorque luz [nota: 3]. Prope-se, assim, tentar aproximar os dois campos,procurando um terreno comum que possa tornar mais proveitosa a discusso. Eesse terreno comum o das prticas tcnico-cientficas. A tese que defendeneste captulo que uma discusso sria sobre os rumos do desenvolvimento datecnocincia incompatvel com a forma mercantilizada de insero das prticastecno-cientficas na sociedade que se vem fortalecendo na presente fase

    neoliberal da histria do capitalismo. Marcos Barbosa parte do conceito detecnocincia - com que pretende significar a indissociao entre cincia etecnologia - para questionar o processo acelerado de mercantilizao da cinciae da tecnologia

    Nota 3 Pgina 32. Neste como nos restantes captulos de autores brasileirossegui a norma ortogrfica brasileira.

    Pgina 33.

    (o sistema de patentes) sob a gide do neoliberalismo, um processo toavassalador que implica a prpria reforma da universidade. Procede ento auma anlise sistemtica da reforma neoliberal da cincia e da tecnologia emostra em que medida ela inviabiliza uma discusso sria sobre as prticastecnocientficas. Termina com um apelo luta pela desmercantilizao datecnocincia e a advertncia de que esta luta bem mais importante do que asque constituram as guerras da cincia.

    Na parte II, intitulada "Os Grandes Temas:Algumas Abordagens Possveis",incluo textos em que mais tnue o eco dos debates do episdio mais recenteda guerra da cincia. So abordados aqui alguns dos temas que maisrecorrentemente tm estado presentes na reflexo epistemolgica e sociolgicasobre a cincia moderna. Isto no significa que esses temas no sejam

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    abordados nos restantes captulos. Trata-se, antes, de uma questo de nfase.To pouco significa que, luz de outros critrios, outros "grandes temas" nopudessem ser selecionados. Poderiam; trata-se de uma questo de escolha.

    No captulo 12, Stephen Toulmin, depois de se referir na Introduo ao dilogoque temos travado nos ltimos vinte anos, analisa, com a erudio que lhe

    caracterstica, o processo histrico, da reduo do objeto da filosofia no bojo doqual emerge um conceito estreito de racionalidade. Enquanto, desde aantiguidade, a filosofia consistia no tratamento sistemtico e metdico dequalquer assunto, a partir do sculo XVII opera-se uma clivagem e umahierarquia entre formas de argumentao e pensamento, privilegiando-se algica e os argumentos formais e demonstrativos em detrimento da retrica edos argumentos substantivos. A filosofia ficou confinada aos primeiros e aretrica, expulsa da filosofia, foi "despromovida" a tema de estudos literrios.Isto leva a que seja adotada uma concepo duplamente estreita deracionalidade, porque expulsa do seu mbito a razoabilidade da argumentao

    substantiva e porque, para vingar, exige uma focalizao estreita em matria decontedo. Toulmin prope um regresso ao holismo da filosofia grega, onde ologos inclua o conjunto da argumentao e do pensamento, tanto argumentosformais como argumentos substantivos, tanto a lgica como a retrica. Nosendo possvel fazer uma separao total entre a lgica e a retrica, j quetodos os discursos esto mais ou menos situados, prope a adoo de umconceito de racionalidade onde caiba a razoabilidade, que afinal o tipo depensamento que mais diz respeito conduo da nossa vida quotidiana.

    A este texto, que reproduz o captulo 2 do seu livro Return to Reason(Cambridge MA: Harvard University Press, 2001), Toulmin acrescenta, em

    excursus, um texto original sobre "os usos humanos das cincias tcnicas", emque estende o argumento anteriormente apresentado ao conhecimento

    Pgina 34.

    tcnico, apelando a um maior equilbrio entre conhecimento terico econhecimento prtico, entre a ao tcnica e as suas conseqncias nasociedade e nos indivduos.

    O captulo 13 da autoria de Anna Carolina Regner. Entre este captulo e ocaptulo anterior, de Stephen Toulmin, h uma notvel convergncia, na medida

    em que ambos apelam a uma concepo de racionalidade mais ampla, assentenuma nova viso das relaes entre retrica e cincia, em que a distino entreargumentao cientfica e argumentao retrica colapsa. Anna Regner comeapor perguntar-se se a viso tradicional da racionalidade cientfica baseada nadistino estrita entre demonstraes que conduzem a verdades necessrias euniversais e argumentos persuasivos e contextuais que conduzem a conclusesverosmeis - est preparada para dar conta das questes levantadas pelasanlises mais recentes da cincia. A resposta negativa. E, para afundamentar, socorre-se da anlise de um "caso exemplar" de argumentaocientfica, a Origem das Espcies, de Charles Darwin. Procede a umareconstruo sistemtica das estratgias argumentativas de Darwin, luz daRetrica de Aristteles. Na narrativa darwiniana, observao e experimento, a

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    subsuno dos fatos regra e o estudo de casos exemplares surgem de par como uso da imaginao, o recurso metfora e analogia, a invocao do pesodas razes, o apelo ignorncia, aos hbitos mentais e, em geral, s condiese valores psicolgicos e sociolgicos da investigao cientfica. O cotejosistemtico do dispositivo argumentativo de Darwin com a Retrica de

    Aristteles leva Regner a concluir que, numa viso aristotlica, as estratgiasargumentativas de Darwin so "retricas". Longe de enfraquecer o discursocientfico, os recursos retricos so-lhe constitutivos e o reconhecimento dissomesmo abre novas possibilidades ao discurso racional, assente numa concepomais ampla da racionalidade.

    O captulo 14 da autoria de Miguel Baptista Pereira. Parte da anlisesemntica do conceito de preciso, tal como usado na filosofia e na cincia,mostrando que lhe est associada a idia de corte, de violncia, de reduoradical da facticidade da existncia como condio da pureza e do rigor dosaber. Traa as origens clssicas e medievais deste conceito e descreve o modo

    como ele passou a ser central na filosofia moderna como expresso deautonomia da razo e como condio do mtodo cientfico, especialmente sob aforma da preciso matemtica. Permanece, no entanto, uma tenso entre ocorte redutor e a unidade integradora. Segundo Miguel Baptista Pereira, estatenso est presente na fsica moderna: comparada com a fsica clssica, afsica quntica evita a diviso cartesiana do mundo, substituindo a preciso quecorta pela distino que une. Este tema desenvolvido ao longo do texto porreferncia obra de W Heisenberg e de C.F.Weizscker e ao dilogo entre eles es suas reflexes sobre

    Pgina 35.

    as relaes entre a linguagem matemtica e a linguagem natural, os limites daaxiomatizao, a idia heisenbergiana da teoria conclusa (abgeschlosseneTheorie), a ideia de von Weizscker e de Heidegger de que a cincia deve o seutriunfo ao facto de ter renunciado s perguntas pelos fundamentos. Da fsica scincias da vida, de von Weizscker a Heidegger, Miguel Baptista Pereiraidentifica os limites da razo analtica, redutora e fragmentadora ante acomplexidade do ser e do acontecer.

    O captulo 15 da autoria de Joo Maria Andr. Deve-se ao autor a primeira

    recenso de Um Discurso sobre as Cincias, publicada no Jornal de Letras, aindaem 1987. Como ele prprio refere, este captulo a continuao de um dilogoque temos vindo a manter nos ltimos dezasseis anos. E o dilogo no se limitaa Um Discurso sobre as Cincias, englobando tambm os meus trabalhosposteriores, nomeadamente A Critica da Razo Indolente. Andr comea porinserir Um Discurso sobre as Cincias num movimento epistemolgico deresistncia ao empirismo e positivismo que, sados do Crculo de Viena,dominaram todo o sculo XX. So constitutivos desse movimento no s oreconhecimento do pluralismo metodolgico e axiolgico, mas tambm, esobretudo, uma viso transdisciplinar e holstica da prtica cientfica no contextode outras prticas humanas e, tal corno essas prticas, vinculada a valoresepistmicos e outros. Para Joo Maria Andr, h uma assimetria em Um

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    Discurso sobre as Cincias, na medida em que a crtica do paradigma dominanteno seguida de uma formulao alternativa dos critrios epistmicos deverdade e de objectividade, abrindo assim o flanco acusao de relativismo.Tal alternativa est apontada em Introduo a uma Cincia Ps-moderna, mas,segundo ele, de uma forma demasiado abreviada. Acresce que a introduo do

    conceito de cincia ps-moderna em Introduo a uma Cincia Ps-modernaacabou por inserir as propostas epistemolgicas de Um Discurso sobre asCincias no debate mais amplo sobre a modernidade/ps-modernidade. Adissoluo da distino entre cincias naturais e cincias sociaisprospectivamente apontada como caracterizando o paradigma emergente tambm questionada por Andr.

    O captulo 16 da autoria de Hermnio Martins. Utilizando como estratgianarrativa a fbula de um visitante de outro planeta s nossas instituiescientficas e ao conhecimento nelas produzido, Hermnio Martins percorre asgrandes linhas dos debates epistemolgicos do ltimo sculo e mostra a

    estranheza que a um observador externo - que ele no mas em cuja pele sepe - pode causar a discrepncia entre os avanos cientficos e aproblematizao epistemolgica que eles suscitam. Comeando pelas cinciassociais e humanas e passando depois s cincias exatas e naturais, o visitanteextraterrestre estranhar a prevalncia, nas ltimas dcadas, do cepticismo,niilismo e relati-

    Pgina 36.

    vismo epistemolgicos (e as reaes fundamentalistas cientificistas militantes

    que eles provocam em aparente contraste com a pujana da civilizao tcnico-cientfica). Martins considera que o cepticismo inseparvel da filosofiamoderna e analisa as suas diferentes formas, distinguindo vrias fases dorelativismo epistemolgico. Percorre com grande detalhe a querela do realismoe a crise da concepo da verdade como correspondncia realidade, e mostracomo a grande capacidade de interveno (e de resoluo de problemas) e demanipulao experimental, por parte da cincia, convive com teoriasminimalistas de verdade (por exemplo, o realismo referencial em vez dorealismo da verdade). Segundo Martins, tais teorias e o cepticismo que veiculamdecorrem da necessidade de defender a autonomia da cincia. Enquanto para

    Popper, Polanyi e Merton, a defesa da autonomia foi acionada contra o poderpoltico e a ideologia totalitrios - o que os levou a ver a coerncia essencialentre cincia, democracia e capitalismo -, nos nossos dias ela ter de seracionada contra a mercantilizao da cincia e converso desta na empresa-cincia e na tecnocincia empresarializada.

    No captulo 17, Francisco Gutirrez aborda dois temas que, apesar deconstitutivos da cincia moderna, tm vindo a assumir uma renovada premnciaem face da crescente dissonncia entre as brilhantes promessas da cincia e aconscincia cada vez mais aguda dos limites do seu rigor. Os dois problemasso, precisamente, os limites da cincia e da razo, em geral, e a questo deuma racionalidade mais ampla, assente na bricolage de racionalidades e dedisciplinas cientficas. No tratamento do primeiro tema, Gutirrez socorre-se de

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    Pascal e da distino por ele formulada entre limites cognitivos e limites morais.Os primeiros dizem respeito impossibilidade de mtodos irrefutveis, enquantoos segundos tm a ver com o que Pascal designa por "vaidade das cincias", aidia de um pensar refratrio experincia vital que no reconhece a validadedos saberes centrados na prtica e nos costumes. Os limites morais esto

    relacionados com o tema, abordado em Um Discurso sobre as Cincias, dasrelaes entre cincia e senso comum e tambm com o segundo tema tratadopor Gutirrez. Para Gutirrez, se verdade que toda a ordem vulnervel, nose pode deduzir dessa constatao a renncia ordem. Toda a ordem sensata bricolage, e nesta que Gutirrez v a superao da distino entre cinciasnaturais e cincias sociais, proposta prospectivamente em Um Discurso sobre asCincias. Gutirrez d trs exemplos recentes de bricolage: o estilo cognitivo damecnica quntica, a lingstica e os autmatos celulares e programascomputacionais de Wolfram.

    O captulo 18, da autoria de Carlos Plastino, comea por salientar que a

    proposta de Um Discurso sobre as Cincias menos uma crtica doessencialismo ou da teoria representacional da verdade do que uma crtica dacincia enquan-

    Pgina 37.

    to nica modalidade vlida de apreenso do real. A reivindicao da pluralidadede modalidades de apreenso do real vai de par com a crtica do dualismosujeito/objeto impregnado na modernidade ocidental muito para alm dacincia. Daqui parte Plastino para propor que, aos quatro rombos por mim

    identificados no paradigma clssico da cincia moderna - a teoria darelatividade, a mecnica quntica, o teorema de Gdel e as estruturasdissipativas de Prigogine -, deve acrescentar-se um quinto rombo: a psicanlisede Freud. Freud confronta-se com uma variante do dualismo sujeito / objetoespecialmente insidiosa, o dualismo corpo/psiquismo, que reduz o corpo condio de mquina determinada e o psiquismo conscincia. Para o superar,Freud prope uma experincia de conhecimento que opera de sujeito a sujeito,uma experincia de apreenso do embate dos corpos e dos afetos. Plastinoanalisa os obstculos identificao da psicanlise como um saber crtico doparadigma moderno, de algum modo relacionados com a prpria evoluo do

    pensamento de Freud at valorizao plena do inconsciente - ou seja, deexperincias no mediadas pela conscincia e pela linguagem - e do psiquismocorporal/unidade corpo/Id).

    O texto centra-se ento na construo do saber psicanaltico - e dadescoberta" fundamental do inconsciente - enquanto saber metapsicolgicoassente na interseco de instrumentos tericos e prtica clnica. A crescenterelevncia dada ao inconsciente vai de par com a contestao do monoplio daconscincia e da razo postulada pelo paradigma da modernidade.

    No captulo 19, Hugo Zemelman questiona o dualismo sujeito/objeto a partirde um ngulo diferente: a relao da exterioridade do sujeito de conhecimentoao seu prprio conhecimento. A partir de onde conhecemos? Para queconhecemos? O conhecimento enriquece-nos enquanto sujeitos? Segundo

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    Zemelman, estas questes so fundamentais e no podem ser respondidas - e,alis, nem sequer formuladas - enquanto o sujeito for exterior ao seuconhecimento e utilizar os mtodos e os dispositivos lgico-epistemolgicos paragarantir essa exterioridade. Para isso, Zemelman prope uma outra atitude, noapenas epistemolgica, mas tambm existencial, que vincula o sujeito ao seu

    prprio conhecimento, e no apenas por via das suas capacidades racionais,mas antes de todas as suas faculdades. Prope que a "hospitalidade" de Levinasseja assumida como condio epistmica que permite ao sujeito colocar-seperante as circunstncias, abrir-se ao indito e saber pensar a partir dodesconhecido. S a incorporao do sujeito no conhecimento permite dar contada complexidade do real existencial e resistir contra a dominao que se exerceatravs do conhecimento. O envolvimento torna possvel uma capacidade deespanto e de argumentao que no se deixa enredar nos conhecimentos jcodificados e permite situar o sujeito num momento aberto a mltiplas opesde apropriao e de interveno.

    Pgina 38.

    A Parte III, intitulada "Interrogaes Complexas, Criativas e Situadas: ACincia em Ao", inclui os captulos que incidem mais especificamente sobre asprticas cientficas, sobre os problemas tericos, metodolgicos eepistemolgicos que se levantam ou esto presentes no dia-a-dia da atividadecientfica.

    O captulo 20 da autoria de Hugh Lacey. Embora o livro de AMB seja referidoem vrios captulos, neste captulo que ele mais detalhadamente discutido.

    Este texto que, por esta razo, poderia ser inserido na Parte I, includo aquipara salientar a sua reflexo sobre as prticas cientficas concretas. Reportando-se questo rousseauniana (h alguma relao entre a cincia e a virtude?),mencionada em Um Discurso sobre as Cincias, Lacey prope-se responder auma questo afim: como deve a cincia proceder de modo a promove" o bem-estar humano? Comea por problematizar a relao entre cincia e valores e,para isso, distingue entre imparcialidade, autonomia e neutralidade da cincia, eidentifica trs momentos ,decisivos da atividade cientfica - o momento dadeterminao das prioridades e da orientao da pesquisa e metodologiasapropriadas; o momento da avaliao das teorias ou hipteses; e o momento da

    aplicao do conhecimento cientfico - e avalia luz deles as teses de AMB sobrea relao entre cincia e valores. Apresenta um modelo de atividade cientficaassente no conceito de estratgia, atravs do qual se especificam aspossibilidades que podem ser exploradas no decurso de uma dada investigao.Distingue entre estratgias materialistas e estratgias alternativas. As primeirasso esmagadoramente dominantes pela sua identificao com valoresespecificamente modernos, que privilegiam o controlo dos objetos naturais. Daque, na sua terminologia, a imparcialidade no implique neutralidade. Terminacom uma avaliao crtica de Um Discurso sobre as Cincias, apresentando umconjunto de teses sobre as relaes entre cincias sociais e cincias naturais.

    O captulo 21 da autoria de Miguel Ramalho Santos. O autor d conta da suainvestigao sobre as clulas estaminais (clulas indiferenciadas que tm

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    capacidade de se auto-renovarem e de darem origem a clulas especializadas),geralmente considerada uma rea de investigao de grande potencial peloscontributos revolucionrios que pode trazer para a medicina e especificamentepara as terapias de substituio e para os transplantes. Miguel Ramalho Santosapresenta neste texto o quadro terico da sua investigao, em que so

    utilizados dois dos conceitos discutidos em Um Discurso sobre as Cincias, oconceito de autopoiese e o conceito de complementaridade. Partindo dostrabalhos de Humberto Maturana e Francisco Varela, o autor distingue entresistemas autopoiticos de primeira ordem e de segunda ordem, e mostra que asclulas estaminais desempenham um papel essencial entre a autopoiese de pri-

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    meira ordem e a de segunda ordem. Mostra tambm as vantagens daconcepo das clulas estaminais em termos de autopoiese em relao a outras

    concepes alternativas, como o conceito de homeostase. No entanto, amesma investigao sobre as clulas estaminais que leva o autor a criticar ofechamento organizacional e a estrutura determinista da teoria de autopoiese deMaturana e Varela, propondo, em alternativa, uma teoria de sistemasautopoiticos sem fronteiras absolutas e com alguma abertura organizacionalque d conta do fato de a maioria das unidades individuais na biologia, se notodas, terem fronteiras que no podem ser totalmente definidas. MiguelRamalho Santos considera igualmente frutfera a importao para a biologia doconceito de complementaridade da fsica quntica por permitir umacompreenso mais aprofundada do comportamento probabilstico das clulas

    estaminais.O captulo 22 da autoria de Olival Freire Jnior. As idias do fsico EugeneWigner sobre o processo de medio em fsica quntica, mencionadas em UmDiscurso sobre as Cincias e criticadas por AMB, so o tema central destecaptulo. Olival Freire, profundo conhecedor das posies de Wigner e dacontrovrsia que elas geraram, pretende, com a sua anlise, contribuir parauma imagem realista da cincia, uma imagem que, em seu entender, permitaum melhor relacionamento entre a cincia e a sociedade e constitua um antdotocontra as tendncias irracionalistas. O autor percorre em detalhe a controvrsiaque ops Wigner interpretao da complementaridade defendida pela Escola

    de Copenhaga e o modo como ele e os que o acompanhavam quebraram umconsenso que parecia indestrutvel. A tese principal de Olival Freire que,apesar de as conjecturas de Wigner sobre o papel da conscincia nos fenmenosfsicos no se terem revelado frutferas e terem sido abandonadas - e seremhoje, por isso, parte da histria da fsica e no da fsica -, o fato que, aoformul-las contra a "monocracia de Copenhaga" sobre a complementaridade,Wigner abriu uma importante problemtica terica, experimental e filosfica,com repercusses significativas nas ltimas dcadas. No reconhecer isto ejulgar Wigner pelo que sabemos hoje, mas no se sabia ao tempo em que eleformulou as suas idias, significa incorrer no erro de anacronismo, um erro queOlival Freire atribui a AME. Da a importncia da histria da cincia para, contrao anacronismo, fundar uma compreenso ampla da cincia em que caiba a

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    cientificidade da prpria histria.O captulo 23 da autoria de Samuel MacDowell. Muitas das ideias e

    argumentos de Um Discurso sobre as Cincias foram pela primeira vez"testadas" em longas conversas com Samuel MacDowell, fsico terico daUniversidade de Yale, entre 1970 e 1973, quando preparava o meu

    doutoramento naquela universidade. As nossas cumplicidades polticas eideolgicas cruzavam-se

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    de modo complexo com as nossas diferentes formaes cientficas e, ao fim dedebates vivos e inesquecveis, resultavam em convergncias e divergnciasterico-epistemolgicas intensas e vincadas. Essa intensidade e esse vincotransparecem de modo sinttico e cristalino neste captulo.

    MacDowell concorda com a minha crtica ao determinismo mecanicista e com o

    meu propsito de ver superada a separao entre "as duas culturas".Discorda, no entanto, de que seja possvel uma sntese entre as cinciasnaturais e as cincias sociais. Discorda tambm do meu questionamento dacausalidade e da interpretao que fao do teorema de Gdel. Terminamencionando um tema no abordado por mim e que, em seu entender, fundamental: a questo da determinao dos sistemas inerciais em relao aosquais as leis de movimento se aplicam.

    O captulo 24 da autoria de Joo Ramalho Santos, e, tal como o captuloanterior, adota a perspectiva da cincia como se faz na prtica e enquanto sefaz, para captar os complexos processos de criao cientfica e as controvrsias

    que gera. As problemticas discutidas neste captulo mostram bem como eporqu a biologia (sobretudo a biologia da reproduo e do desenvolvimento)tem vindo a assumir, desde a dcada de 1990, o lugar de destaque nos debatesepistemolgicos e sociolgicos sobre a cincia que, nas dcadas anteriores, foraocupado pela fsica. Comea com uma narrativa da reproduo, das suasperipcias, das suas dificuldades e das muitas tcnicas de reproduo assistidadesenvolvidas para as superar. A polemica causada por estas tcnicas depoisanalisada, conjuntamente com outras polemicas noutras reas cientficas, combase na tese central do autor de que a reconstruo das transformaescientficas e das controvrsias que suscitam deve incidir sobre o momento em

    que tiveram lugar e luz dos dados que, altura, estavam disponveis. Analis-los luz dos resultados a que conduziram ou do modo como, a longo prazo, osmecanismos de validao cientfica funcionaram elimina a complexidade dosprocessos de criao cientfica e pouco til para os cientistas, j que estesvivem e trabalham hoje, com os dados e tcnicas hoje disponveis e sempre nafronteira entre o que hoje conhecido e desconhecido. Tal como Olival Freire,Joo Ramalho Santos adverte contra o erro do anacronismo e sugere que, se taladvertncia for tomada em conta, ser possvel manter controvrsias para almdas guerras da cincia que sejam verdadeiramente enriquecedoras para oscientistas e para os cidados em geral.

    O captulo 25 da autoria de Peter Taylor. Taylor relata a sua trajetriaintelectual desde os anos 1970, altura em que decidiu dedicar-se ecologia

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    enquanto cincia. Ao longo do texto mostra como foi desenvolvendo umaconscincia crtica e uma atitude reflexiva sobre os conceitos e modelosutilizados

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    na sua disciplina cientfica para definir os sistemas ecolgicos e as suastransformaes. Central nesse desenvolvimento foi a idia da complexidadedesses sistemas e a conseqente dificuldade ou mesmo impossibilidade emestabelecer fronteiras bem definidas entre os fatores considerados relevantespara a definio dos sistemas e os processos subjacentes. Simultaneamente,refletindo sobre os desenvolvimentos da ecologia e sobre a sua prpria prticacientfica, chegou concluso de que havia uma tenso (no necessariamentenegativa) entre a pretenso da auto-referencialidade da cincia e o impacto dascondies de investigao e das preocupaes sociais dos cientistas no contedo

    do conhecimento cientfico (aquilo a que chama a socialidade da cincia).Paulatinamente, d-se conta de que tal socialidade pode transformar-se numrecurso para a conquista de novos conhecimentos, designando esse processo deconstruo heterognea. Apercebeu-se, assim, dos processos intersectantes ecomplexos presentes nas dinmicas ambientais, difceis de investigar (e maisainda de comunicar) e insusceptveis de ser captados numa teoria geral. Concluireferindo como chegou idia do planejamento participativo" e doenvolvimento flexvel" do cientista a partir da identificao do tipo de reflexoque leva o cientista a modificar (reflexivamente) os sistemas ecolgicos sobreos quais produz conhecimento.

    O captulo 26 da autoria de Maria da Conceio Ruivo. O tema central destecaptulo a questo da linguagem na produo e na comunicao da cincia enos debates sobre a cincia. Segundo 3; autora, muitas das polemicas arespeito da cincia so causadas pelo desconhecimento mtuo das linguagensusadas. Trata-se de um problema complexo, porque a linguagem com que sefaz a cincia ela prpria tambm um elemento da prpria produo cientfica,e a linguagem com que se fala da cincia uma nova linguagem. Oreconhecimento desta complexidade leva a autora a defender uma atitude detolerncia e de respeito mtuo que permita a partilha de pontos de vista porparte de cientistas de diferentes reas, sem pretenses de monoplio. Atravs

    de exemplos da mecnica clssica, da teoria da relatividade e da mecnicaquntica, Conceio Ruivo ilustra as dificuldades na comunicao do sabercientfico. Acresce que os resultados cientficos raramente so comunicados demaneira que se faa justia aos complexos processos de criao cientfica. Paraa autora, a criao no se faz segundo um manual de instrues, e os modelos,as metforas, os saberes de outros campos e o prprio senso comum estoentre os meios de que a criao cientfica vorazmente se alimenta. A terminar, aautora questiona o modo como em Um Discurso sobre as Cincias e naIntroduo a uma Cincia Ps-moderna imaginado o paradigma emergente.

    O captulo 27, da autoria de Jos Mariano Gago, aborda um temaescassamente tratado: a teoria da apropriao social da cincia e da culturacientfica

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    em situaes museolgicas, de exposio ou, em geral, educativas. A tesecentral que o museu ou a exposio cientfica, longe de serem a mera

    apresentao ao pblico de processos acabados ou da materialidade inerte dosinstrumentos cientficos, envolvem um trabalho cientfico prprio e uma reflexocomplexa, orientados para o que est envolvido na passagem de situaesexperimentais tcnico-profissionais a situaes museolgicas, expositivas eeducativas. Tal passagem, para ter xito e ser um fator de apropriao social dacincia, pressupe um projeto de museu que tematize o potencial deinteratividade, a relao entre cientistas, o pblico e at outros atoresrelevantes (como, por exemplo, astrnomos amadores) e a criao de espaosde dilogo e de comunicao incorporados na prpria concepo e execuo dosmdulos expositivos. Ao contrrio do que freqentemente se cr, Mariano Gago

    acha possvel conceber com xito a passagem de situaes profissionais paraambientes expositivos orientados para o grande pblico, nomeadamente atravsde instalaes materiais do pensamento cientfico em ao abertas manipulao e observao sensorial e ativa dos utilizadores. As dificuldadesem promover tal modelo de proximidade derivam de um modelo retrico deensino das cincias de que est excluda a apropriao da cultura cientfica poraqueles que no so cientistas.

    A Parte IV; intitulada "Injustia Cognitiva Global: Para Reconstruir osConhecimentos e o Mundo", rene os captulos em que as relaes entre acincia e a sociedade so o tema central da reflexo. Este tema desdobra-se

    convencionalmente em dois subtemas: a impregnao social e cultural dacincia, uma actividade especfica mas no menos social por isso, e atransformao social e cultural produzida pela cincia (a questo do impacto"enquanto sistema de conhecimentos que veicula uma viso do mundo e dasociedade e enquanto aplicao tecnolgica desses conhecimentos. Na ltimadcada, a estes dois subtemas juntou-se, com crescente premncia, um terceirosubtema: o reconhecimento de outros conhecimentos geralmente designados deno cientficos, alternativos cincia, e as relaes entre esses conhecimentos ea cincia. Este tema tem vindo a adquirir particular acuidade nos domnios dabiodiversidade e do regime dos direitos de propriedade intelectual sado do

    Uruguay Round do GATT. As discusses no mbito deste tema tm vindo amostrar que as hierarquias entre conhecimentos so simultaneamente produtose produtoras de hierarquias sociais e, portanto, das desigualdades que ocorremde par com elas. A injustia social traduz-se frequentemente em injustiacognitiva. Esta injustia ocorre no interior das sociedades e nas relaes entreelas (as relaes Norte/Sul, entre o centro e a periferia do sistema mundial).

    O captulo 28 da autoria de Francisco Lou. Este texto poderia ter sidoincludo na parte anterior, sobre os temas da cincia em aco. Incluo-o, contu-

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    do, nesta parte para salientar a reconstruo da teoria crtica na economia,proposta pelo autor, com o objectivo de restituir cincia econmica avinculao aos objectivos da transformao social progressista que teveanteriormente, mas que, entretanto, "misteriosamente" perdeu. Francisco Loufaz uma eloquente anlise da evoluo da cincia econmica nos ltimos cem

    anos e mostra como o objectivo de melhoria da sociedade (combate aodesemprego, recesso e desigualdade), partilhado por muitos doseconomistas que protagonizaram as transformaes tericas e metodolgicasmais importantes, acabou por ser boicotado ou neutralizado pelos pressupostosde que partiam, pelo modo como cederam ortodoxia dominante paramaximizar a sua capacidade de influenciar as decises polticas. Foramobjectivos sociais que levaram adopo na economia dos princpios da fsica e,com isso, naturalizao e matematizao da economia. Esta naturalizaoacabou, no entanto, por no acompanhar as transformaes entretantoocorridas nas cincias naturais.

    O autor analisa as sucessivas geraes de economia matemtica e astrajectrias que as levaram abdicao crtica, mesmo quando os desgnios dosseus cultores iam em sentido contrrio. Segundo o autor, dado que a crise desteparadigma evidente, necessrio que a economia recupere a sua vocao decincia social crtica e se proponha conhecer a realidade e no as abstracesem que se transformaram, para os neoclssicos, os agentes e o mercado.

    O captulo 29 da autoria de Arturo Escobar. O autor comea por avaliar astendncias analisadas e as teses propostas em Um Discurso sobre as Cincias luz dos desenvolvimentos epistemolgicos e polticos das duas ltimas dcadas,considerando que, em larga medida, foram confirmadas. Ressalva o caso das

    relaes entre as cincias sociais e as cincias naturais, em que hoje identifica orecuo das primeiras ante a investida das segundas, ao contrrio do que seprevia em Um Discurso sobre as Cincias. Centra-se na primeira e na quartatese caracterizadoras do paradigma emergente ("todo o conhecimentocientfico-natural cientfico-social" e "todo o conhecimento cientfico visaconstituir-se em senso comum"), analisando, luz delas, a produo deconhecimento levada a cabo pelos movimentos sociais que na ltima dcadatm vindo a confrontar a globalizao neoliberal e a contrapor-lhe a ideia deuma globalizao alternativa, solidria. Recorre s teorias da complexidade e daauto-organizao, desenvolvidas na biologia, para caracterizar estes

    movimentos, que concebe como organizaes horizontais estruturadas em redescuja malha se constri com elementos (lutas e locais) heterogneos e se adensaem direces imprevistas em funo das interaces que abrange e doscatalisadores que nela interferem. Os movimentos so produtores deconhecimento e, de facto, de um novo senso comum, cujo impactoepistemolgico na transio paradigmtica deve ser reconhecido.

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    Escobar ilustra a sua tese com o movimento social das comunidades negras doPacfico colombiano que, desde a dcada de 1990, tm vindo a produzir um

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    conhecimento ecolgico e cultural autnomo a partir da ideia da regio-territrioconcebida como construo poltica e cultural capaz de sustentar uma defesaeficaz dos recursos naturais, da biodiversidade. Tal conhecimento , em ltimaanlise, um novo senso comum construdo a partir das necessidades prticas domovimento.

    O captulo 30, de Walter Mignolo, trata da injustia cognitiva global produzidadesde o sculo XVII pela cincia moderna ocidental, concebida como umaconstelao epistmica e poltica constituda pela modernidade e pelacolonialidade do poder. Prope uma nova concepo de modernidade enquantolado visvel de um processo histrico que no pode ser compreendido sem o seuoutro lado, at h pouco invisvel a diferena colonial enquanto diferena depoder que tambm uma diferena epistmica e ontolgica. Esta concepoleva Mignolo a concluir que a revoluo cientfica do sculo XVII menos umaruptura do que uma continuidade com a teologia do sculo anterior, na medidaem que o desconhecimento ou a marginalizao de outras formas do

    conhecimento escala do planeta comum a ambos os paradigmas. Segundoele, a partir da diferena colonial que se deve criticar e superar amodernidade, e no o inverso. Nela reside a base do duplo discurso damodernidade, proclamando simultaneamente o avano da humanidade e a suasubjugao. Mignolo concorda com a minha caracterizao do paradigmaemergente enquanto "conhecimento prudente para uma vida decente", masentende que o seu horizonte no a ps-modernidade, mas sim atransmodernidade (Enrique Dussel), a passagem da uni-versalidade para apluri-versidade do conhecimento e da compreenso. A concluir, analisa ocontributo dado a esse novo paradigma pelas "epistemologias feministas" e

    pelas "epistemologias etno-raciais" a partir da dcada de 1970.O captulo 31 da autoria de Orlando Fals Borda e Luis E. Mora-Osejo. Noconjunto dos contributos que integram este livro, este tem a especificidade deser de co-autoria entre um cientista social e um cientista natural e de assumir aforma de manifesto. Fals Borda internacionalmente conhecido pelametodologia que desenvolveu, a investigao-aco participativa, para superaras dicotomias discriminatrias que, em seu entender, caracterizam a cinciaeurocntrica, entre o saber cientfico e o saber popular e entre o cientista e opoltico. Neste manifesto, os autores partem da ideia de que todo oconhecimento contextual e de que, portanto, a cincia moderna - to social

    como natural-, tendo sido desenvolvida nos pases da Europa e do AtlnticoNorte, reflecte as realidades destas regies do mundo e o modo como elas serelacio-

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    nam com as outras regies. A cincia eurocntrica produz assim um efeitoduplamente negativo nestas ltimas regies: refora a hierarquia entre pasesdesenvolvidos e pases menos desenvolvidos e as relaes de colonialismointerno e impede a construo de um conhecimento cientfico ancorado nasrealidades dessas regies. Para caracterizar as diferenas geogrficas, histricas

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    e culturais entre as vrias regies do mundo, os autores recorrem distinogeoclimtica entre zonas tropicais e zonas temperadas. A cincia moderna,criada nestas ltimas regies, desconhece a complexidade e a fragilidade dasregies tropicais, os seus ecossistemas, a sua riqussima biodiversidade, as suascomunidades pluritnicas e multiculturais como formas muito prprias de

    relacionamento entre natureza e cultura. Sem negar a importncia destacincia, propem o desenvolvimento de uma cincia contextualizada, umparadigma cientfico endgeno, uma soma de saberes que valorize osconhecimentos populares e permita fundar o desenvolvimento sustentvel dasregies tropicais. S assim ser possvel superar a injustia cognitiva global efundar novas e equitativas alianas entre cientistas do Norte e cientistas do Sul.

    O captulo 32 da autoria de Maria Paula Meneses. O tema central destecaptulo, tal como nos anteriores, a injustia cognitiva global assente nahierarquia entre cincia moderna e conhecimentos locais e nas que se articulamcom ela, a hierarquia entre o Norte e o Sul, entre desenvolvido e

    subdesenvolvido, entre doador e recipiente da filantropia internacional. Talcomo em Mignolo, a origem destas hierarquias est na colonialidade de poder,mas esta agora analisada no contexto africano e, especificamente,moambicano. Usando como exemplos a medicina e a biologia, Paula Menesesmostra como a cincia moderna impe padres eurocntricos (de sade, porexemplo), de que decorre a equivalncia entre a distino tradicional/moderno ea distino selvagem/civilizado. A colonialidade do saber cientfico consiste emconceber o Norte como tendo conhecimento e solues e o Sul como tendoinformaes e problemas. Esta colonialidade do saber acaba por infiltrar-se naselites moambicanas, sendo exemplo disso a proposta de lei de cincia e

    tecnologia apresentada pelo Governo Moambicano. Paula Meneses ilustra osseus argumentos com as consultorias, que considera serem um caso extremo deconhecimento descontextualizado que ignora ou exotiza as prticas e os sabereslocais. O captulo assume ento um carcter auto-reflexivo, em que a autoraidentifica os dilemas que ela prpria enfrentou enquanto consultora. Termina ocaptulo defendendo a ideia da pluralidade de saberes assente na multi-situacionalidade da sua criao.

    O captulo 33, de Shiv Visvanathan, retoma o tema da injustia cognitivaglobal e, tal como Paula Meneses, aborda-o atravs do impacto nos pases do

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    Sul, neste caso a ndia, da cincia hegemnica e do conhecimentodescontextualizado em que ela se traduz. Para Visvanathan, as guerras dacincia nos pases do Norte tm um carcter ldico porque, apesar de tudo,ocorrem entre cientistas e filsofos. H, no entanto, uma outra guerra dascincias bem mais destrutiva, a que respeita s relaes entre cincia edesenvolvimento, porque nesta guerra as opes epistemolgicas determinamas oportunidades de vida que so dadas ou recusadas a vastas populaes domundo. Dando como exemplo a ndia, Visvanathan mostra o grau de destruiosocial que pode resultar de concepes da cincia que no respeitam os saberes

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    das populaes, as suas memrias e aspiraes, os seus espaos e os seustempos, e, sobretudo, os seus direitos voz e participao democrtica.Analisa a seguir alguns dos movimentos em prol da cincia que se constiturampara promover concepes alternativas de cincia, epistemologiascontextualizadas assentes num entendimento profundo da ideia de

    democratizao do conhecimento cientfico. Segundo Visvanathan, a experinciadestes movimentos mostra que o reconhecimento epistmico dosconhecimentos no cientficos (por exemplo, o conhecimento dos camponeses,to til hoje para a biotecnologia) no deve ser interpretado como uma atitudeanticincia. antes um contributo para pluralizar e diversificar as nossasconcepes de saber e de cincia.

    O captulo 34 da minha autoria. As minhas reflexes epistemolgicas tantoem Um Discurso sobre as Cincias como em trabalhos posteriores (1989; 1995;2000) - tiveram sempre origem na necessidade de resolver problemas novos emuito concretos com que a investigao emprica frequentemente me

    surpreendeu e confrontou. Desde logo, no primeiro trabalho de campo deenvergadura numa favela do Rio de Janeiro em 1970, cujos resultadosconstituram a minha tese de doutoramento (Yale, 1973), confrontei-me comum direito no oficial e um conhecimento jurdico popular riqussimos que,embora importantes para vastas camadas populares, eram totalmenteignorados pelo direito oficial e pela cincia jurdica ensinada nas Faculdades deDireito. Conceber como direito e conhecimento jurdico os discursos e asprticas de resoluo de litgios que circulavam no interior da favela no eraapenas um problema terico e analtico. Era tambm um problemaepistemolgico: qual a verdade ou validade do conhecimento jus-cientfico

    oficial que concebe como no-direito ou ignorncia do direito o que "vale" paravastos sectores das classes populares como outro direito ou conhecimentojurdico alternativo? Foi a partir deste questionamento que formulei a teoria dopluralismo jurdico nas sociedades contemporneas e no apenas nassociedades "primitivas", "simples" ou tribais" como era ento defendido pelaantropologia jurdica dominante (Santos, 1974, 1977). Vindo da cincia jurdicae da filosofia do direito - a primeira, sufocantemente analtico-positivista, asegunda, tentando ultrapassar com excessivo idea-

    Pgina 47.lismo a ressaca do nazismo - entrei na sociologia num perodo (incio da

    dcada de 1970) de grande convulso terica (a crtica do funcionalismoparsoniano), metodolgica (crtica do naturalismo quantitativista prprio daadministrative research) e poltica (a devoluo do conhecimento sociolgico aos"objectos" em nome da necessidade de responder questo: lide que ladoestamos?"). O pluralismo terico, metodolgico e poltico - celebrados comosinal de pujana em vez de estigmatizados como sinal de fraqueza prpria dascincias pr-paradigmticas, como pretendia Thomas Kuhn - criava as condiespara questionamentos epistemolgicos mais profundos sobre a poltica daneutralidade cientfica, sobre os limites da validade do conhecimento cientfico

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    e, acima de tudo, sobre as relaes entre este e outros conhecimentos,nomeadamente os dos nossos "objectos", homens e mulheres comuns que, emcontextos de entrevista, inqurito, painel ou observao participante, nostransmitiam opinies, saberes, sabedorias - por vezes to impressionantesquanto consideradas irrelevantes para a nossa investigao - que as regras do

    jogo metodolgico reduziam rasa condio de matria-prima parageneralizaes relativamente triviais.

    A turbulncia mas tambm a ductilidade terico-epistemolgica das cinciassociais neste perodo instigaram-me a curiosidade de conhecer o estado dosdebates epistemolgicos noutras cincias. Estaria nelas to entrincheirado opositivismo, em suas mltiplas incarnaes, quanto o observava, nos anos1960, na cincia jurdica, sobretudo de origem alem, apenas matizado pelareemergncia da retrica jurdica? O resultado das minhas investigaes devrios anos neste domnio foi inequvoco: o debate epistemolgico estavainstalado no mago da cincia e mesmo na rainha das cincias dos anos 1970, a

    fsica. A sociologia que, ao contrrio do que queria Augusto Comte, deixara deter a pretenso de ser o cume da pirmide da cincia, era apenas um campomais convulso e aberto onde se manifestavam com mais estridnciamovimentos tectnicos profundos que abalavam a autoconscinciaepistemolgica da cincia no seu todo. Da que os sinais tanto pudessem serlidos como sintomas de um presente desafecto do seu passado quanto comopistas de um futuro que se concebia laboriosamente. Foi esta a minha tesecentral em Um Discurso sobre as Cincias.

    Os anos que se seguiram mostraram-me que os sinais eram talvez maisambguos do que o que eu supunha em meados da dcada de 1980, e que os

    movimentos de que eles davam notcia tanto podiam conduzir a promissorasinovaes como a perverses desarmantes, tal como argutamente referido emalguns dos captulos anteriores. Dois movimentos ou impulsos se salientaram nodecorrer dos anos seguintes, e tudo contribuiu para que a tenso entre eles sefosse adensando. Por um lado, o extraordinrio desenvolvimento cien-

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    tfico-tecnolgico - se em extenso ou profundidade, ponto de debate - fez

    com que a cincia no seu conjunto se transformasse numa fora produtiva deprimeira ordem, tal como a fora muscular e as mquinas o tinham sido empocas anteriores. A sociedade de conhecimento que da emergiu umasociedade de conhecimento cientfico-tecnolgico (a tecnocincia) cada vez maisvinculada produo e, portanto, lgica da produo, isto , lgica dacompetio e do mercado. Esta vinculao aprofund