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Boaventura de Sousa Santos
OS PROCESSOS DA GLOBALIZAO
1. Introduo
Nas trs ltimas dcadas, as interaces transnacionais conheceram uma
intensificao dramtica, desde a globalizao dos sistemas de produo e das
transferncias financeiras, disseminao, a uma escala mundial, de informao e
imagens atravs dos meios de comunicao social ou s deslocaes em massa de
pessoas, quer como turistas, quer como trabalhadores migrantes ou ref ugiados. A
extraordinria amplitude e profundidade destas interaces transnacionais levaram a
que alguns autores as vissem como ruptura em relao s anteriores formas de
interaces transfronteirias, um fenmeno novo designado por "globalizao" (
Featherstone, 1990; Giddens, 1990; Albrow e King, 1990), "formao global" (Chase -
Dunn, 1991), "cultura global" (Appadurai, 1990, 1997; Robertson, 1992), "sistema
global" (Sklair, 1991), "modernidades globais'' (Featherstone et al., 1995), "processo
global" (Friedman, 1994), "culturas da globalizao" (Jameson e Miyoshi, 1998) ou
"cidades globais" (Sassen, 1991, 1994; Fortuna, 1997). Giddens define globalizao
como "a intensificao de relaes sociais mundiais que unem localidades distantes
de tal modo que os acontecimentos locais so condicionados por eventos que
acontecem a muitas milhas de distncia e vice versa" e acusa os socilogos de uma
acomodao indevida ideia de "sociedade" enquanto um sistema fechado (1990:64). No mesmo sentido, Featherstone desafia a sociologia a "teorizar e encontrar
formas de investigao sistemtica que ajudem a clarificar estes processos
globalizantes e estas formas destrutivas de vida social que tornam problemtico o que
por muito tempo foi visto como o objecto mais bsico da sociologia: a sociedade
concebida quase exclusivamente como o Estado-nao bem delimitado (1990: 2).
Para o Grupo de Lisboa, a globalizao uma fase posterior internacionalizao e
multinacionalizao porque, ao contrrio destas, anuncia o fim do s istema nacional
enquanto ncleo central das actividades e estratgia s humanas organizadas (1994).
Uma reviso dos estudos sobre os processos de globalizao mostra -nos que
estamos perante um fenmeno multifacetado com dimenses econmicas, sociais,
polticas, culturais, religiosas e jurdicas interligadas de modo complexo. Por esta
razo, as explicaes monocausais e as interpretaes monolticas deste fenmeno
parecem pouco adequadas. Acresce que a globalizao das ltimas trs dcadas, em
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vez de se encaixar no padro moderno ocidental de globalizao - globalizao como
homogeneizao e uniformizao - sustentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto
pelas teorias da modernizao, como pelas teorias do desenvolvimento dependente,
parece combinar a universalizao e a eliminao das fronteiras nacionais, por um
lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade tnica e o regresso ao
comunitarismo, por outro. Alm disso, interage de modo muito diversificado com outras
transformaes no sistema mundial que lhe so concomitantes, tais como o aumento
dramtico das desigualdades entre pases ricos e pases pobres e, no interior de cada
pas, entre ricos e pobres, a sobrepopulao, a catstrofe ambiental, os conflitos
tnicos, a migrao internacional m assiva, a emergncia de novos Estados e a
falncia ou imploso de outros, a proliferao de guerras civis, o crime globalmente
organizado, a democracia formal como uma condio poltica para a as sistncia
internacional, etc.
Antes de propor uma interpret ao da globalizao contempornea, descreverei
brevemente as suas caractersticas dominantes, vistas de uma perspectiva
econmica, poltica e cultural. De passo aludirei aos trs debates mais importantes
que tem suscitado, formulveis em termos das seguin tes questes: 1) a globalizao
um fenmeno novo ou velho?; 2) a globalizao monoltica, ou tem aspectos
positivos e aspectos negativos?; 3) aonde conduz a crescente intensificao da
globalizao? Nos debates acerca da globalizao h uma forte tend ncia para reduzi-
la s suas dimenses econmicas. Sem duvidar da importncia de tal dimenso,
penso que necessrio dar igual ateno s dimenses social, poltica e cultural.
Falar de caractersticas dominantes da globalizao pode transmitir a ideia d e que a
globalizao no s um processo linear, mas tambm um processo consensual.
Trata-se obviamente de uma ideia falsa, como se mostrar adiante. Mas apesar de
falsa , ela prpria, tambm dominante. E sendo falsa, no deixa de ter uma ponta de
verdade. A globalizao, longe de ser consensual, , como veremos, um vasto e
intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemnicos,
por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro; e mesmono interior do ca mpo hegemnico h divises mais ou menos significativas. No
entanto, por sobre todas as suas divises internas, o campo hegemnico actua na
base de um consenso entre os seus mais influentes membros. esse consenso que
no s confere globalizao as suas caractersticas dominantes, como tambm
legitima estas ltimas como as nicas possveis ou as nicas adequadas. Da que, da
mesma forma que aconteceu com os conceitos que a precederam, tais como
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modernizao e desenvolvimento, o conceito de globalizao t enha uma componente
descritiva e uma componente prescritiva. Dada a amplitude dos processos em jogo, a
prescrio um conjunto vasto de prescries todas elas ancoradas no consenso
hegemnico. Este consenso conhecido por "consenso neoliberal" ou "Consen so de
Washington" por ter sido em Washington, em meados da dcada de oitenta, que ele
foi subscrito pelos Estados centrais do sistema mundial, abrangendo o futuro da
economia mundial, as polticas de desenvolvimento e especificamente o papel do
Estado na economia. Nem todas as dimenses da globalizao esto inscritas do
mesmo modo neste consenso, mas todas so afectadas pelo seu impacto. O
consenso neoliberal propriamente dito um conjunto de quatro consensos adiante
mencionados dos quais decorrem outros que sero igualmente referidos. Este
consenso est hoje relativamente fragilizado em virtude de os crescentes conflitos no
interior do campo hegemnico e da resistncia que tem vindo a ser protagonizada pelo
campo subalterno ou contra -hegemnico. Isto tanto assim que o perodo actual jdesignado por ps-Consenso de Washington. No entanto, foi esse consenso que nos
trouxe at aqui e por isso sua a paternidade das caractersticas hoj e dominantes da
globalizao.
Os diferentes consensos que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia -
fora que, como tal, constitui um meta consenso. Essa ideia a de que estamos a
entrar num perodo em que desapareceram as clivagens polticas profundas. As
rivalidades imperialistas entre os pases hegemnicos, que no sculo XX provocaram
duas guerras mundiais, desapareceram, dando origem interdependncia entre as
grandes potncias, cooperao e integrao regionais. Hoje em dia, existem
apenas pequenas guerras, quase todas na periferia do sistema mundial e muitas delas
de baixa intensidade. De todo o modo, os pases centrais, atravs de vrios
mecanismos (intervenes selectivas, manipulao da ajuda internacional, controlo
atravs da dvida externa), tm meios para manter sob controlo esses focos de
instabilidade. Por sua vez, os conflitos entre capital e trabalho que, por deficiente
institucionalizao, contriburam para a emergncia do fascismo e do nazismo,
acabaram sendo plenamente institucionalizados nos pases centrais depois daSegunda Guerra Mundial . Hoje, num perodo ps-fordista, tais conflitos esto a ser
relativamente desinstitucionalizados sem que isso cause qualquer instabilidade
porque, entretanto, a classe operria fragmentou -se e esto hoje a emergir novos
compromissos de classe menos institucionalizados e a ter lugar em co ntextos menos
corporativistas.
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com o Canad, o Mxico e a Amrica Latina; o japons, baseado no Japo e nas suas
relaes privilegiadas com os quatro pequenos tigres e com o resto da sia; e o
europeu, baseado na Unio Europeia e nas rela es privilegiadas desta com a Europa
de Leste e com o Norte de frica.
Estas transformaes tm vindo a atravessar todo o sistema mundial, ainda que com
intensidade desigual consoante a posio dos pases no sistema mundial. As
implicaes destas transformaes para as polticas econmicas nacionais podem ser
resumidas nas seguintes orientaes ou exigncias: as economias nacionais devem
abrir-se ao mercado mundial e os preos domsticos devem tendencialmente
adequar-se aos preos internacionais; deve ser dada prioridade economia de
exportao; as polticas monetrias e fiscais devem ser orientadas para a reduo da
inflao e da dvida pblica e para a vigilncia sobre a balana de pagamentos; os
direitos de propriedade privada devem ser claros e invio lveis; o sector empresarial doEstado deve ser privatizado; a tomada de deciso privada, apoiada por preos
estveis, deve ditar os padres nacionais de especializao; a mobilidade dos
recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulao estatal da econ omia deve ser
mnima; deve reduzir-se o peso das polticas sociais no oramento do Estado,
reduzindo o montante das transferncias sociais, eliminando a sua universalidade, e
transformando-as em meras medidas compensatrias em relao aos estratos sociais
inequivocamente vulnerabilizados pela actuao do mercado. [1] Centrando-se no
impacto urbano da globalizao econmica, Saskia Sassen detecta mudanas
profundas na geografia, na composio e estrutura institucional da economia global
(Sassen, 1994: 10). No que respeita nova geografia, argumenta que
"comparativamente aos anos cinquenta, os anos oitenta conheceram um
estreitamento da geografia da economia global e a acentuao do eixo Este -Leste.
Isto torna-se evidente com o enorme crescimento do investimento dentro do que
muitas vezes denominado pela Trade: os Estados Unidos da Amrica, a Europa
Ocidental e o Japo" (Sassen, 1994:10). Outra caracterstica da nova geografia que
o investimento estrangeiro directo, do qual, durante uns tempos, a Amrica Latina foi o
maior beneficirio, dirigiu -se para Leste, Sul e Sudeste Asitico, onde a taxa anual decrescimento aumentou em mdia 37% por ano entre 1985 e 1989. Po r outro lado,
enquanto nos anos cinquenta o maior fluxo internacional era o comrcio mundial,
concentrado nas matrias-primas, outros produtos primrios e recursos
manufacturados, a partir dos anos oitenta a distncia entre o crescimento da taxa de
exportaes e o crescimento da taxa dos fluxos financeiros aumentou drasticamente:
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aps a crise de 1981-82 e at 1990, o investimento estrangeiro directo global cresceu
em mdia 29% por ano, uma subida histrica (Sassen, 1994: 14).
Por fim, no que toca estrutura institucional, Sassen defende que estamos perante um
novo regime internacional, baseado na ascendncia da banca e dos servios
internacionais. As empresas multinacionais so agora um importante elemento na
estrutura institucional, juntamente com os mercados financeiros globais e com os
blocos comerciais transnacionais. De acordo com Sassen, todas estas mudanas
contriburam para a formao de novos locais estratgicos na economia mundial:
zonas de processamento para exportao, centros financeiros offshore e cidades
globais (Sassen, 1994: 18). Uma das transformaes mais dramticas produzidas pela
globalizao econmica neoliberal reside na enorme concentrao de poder
econmico por parte das empresas multinacionais: das 100 maiores economias do
mundo, 47 so empresas multinacionais; 70% do comrcio mundial controlado por500 empresas multinacionais; 1% das empresas multinacionais detm 50% do
investimento directo estrangeiro (Clarke, 1996).
Em suma, a globalizao econmica sustentada pelo co nsenso econmico
neoliberal cujas trs principais inovaes institucionais so: restries drsticas
regulao estatal da economia; novos direitos de propriedade internacional para
investidores estrangeiros, inventores e criadores de inovaes susceptve is de serem
objecto de propriedade intelectual (Robinson, 1995: 373); subordinao dos Estados
nacionais s agncias multilaterais tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetrio
Internacional (FMI) e a Organizao Mundial do Comrcio. Dado o carcter geral d este
consenso, as receitas em que ele se traduziu foram aplicadas, ora com extremo rigor
(o que designo por modo da jaula de ferro), ora com alguma flexibilidade (o modo da
jaula de borracha). Por exemplo, os pases asiticos evitaram durante muito tempo
aplicar integralmente as receitas e alguns deles, como, por exemplo, a ndia e a
Malsia, conseguiram at hoje apli c-las apenas selectivamente.
Como veremos a seguir, so os pases perifricos e semiperifricos os que mais estosujeitos s imposies do receiturio neoliberal, uma vez que este transformado
pelas agncias financeiras multilaterais em condies para a renegociao da dvida
externa atravs dos programas de ajustamento estrutural. Mas, dado o crescente
predomnio da lgica financeira sobr e a economia real, mesmo os Estados centrais,
cuja dvida pblica tem vindo a aumentar, esto sujeitos s decises das agncias
financeiras de rating, ou seja, das empresas internacionalmente acreditadas para
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avaliar a situao financeira dos Estados e os consequentes riscos e oportunidades
que eles oferecem aos investidores internacionais. Por exemplo, a baixa de nota
decretada pela empresa Moody's dvida pblica da Sucia e do Canad em meados
da dcada de noventa foi decisiva para os cortes nas despesa s sociais adoptados
pelos dois pases (Chossudovsky, 1997: 18).
3. A globalizao social e as desigualdades
Quanto s relaes scio-polticas, tem sido defendido que, embora o sistema mundial
moderno tenha sido sempre estruturado por um sistema de classes, uma classe
capitalista transnacional est hoje a emergir cujo campo de reproduo social o
globo enquanto tal e que facilmente ultrapassa as organizaes nacionais de
trabalhadores, bem como os Estados externamente fracos da periferia e da
semiperiferia do sistema mundial.
As empresas multinacionais so a principal forma institucional desta classe capitalista
transnacional e a magnitude das transformaes que elas esto a suscitar na
economia mundial est patente no facto de que mais de um ter o do produto industrial
mundial produzido por estas empresas e de que uma percentagem muito mais
elevada transaccionado entre elas. Embora a novidade organizacional das empresas
multinacionais possa ser questionada, parece inegvel que a sua prevalnci a na
economia mundial e o grau e eficcia da direco centralizada que elas adquirem as
distingue das formas precedentes de empresas internacionais (Becker e S klar, 1987:
2).
O impacto das empresas multinacionais nas novas formaes de classe e na
desigualdade a nvel mundial tem sido amplamente debatido nos ltimos anos. Dentro
da tradio da teoria da dependncia, Evans foi um dos primeiros a analisar a "tripla
aliana" entre as empresas multinacionais, a elite capitalista local e o que chama
"burguesia estatal" enquanto base da dinmica de industrializao e do crescimento
econmico de um pas semiperifrico como o Brasil (Evans, 1979, 1986). Becker eSklar, que propem a teoria do ps -imperialismo, falam de uma emergente burguesia
de executivos, uma nova classe social sada das relaes entre o sector administrativo
do Estado e as grandes empresas privadas ou privatizadas. Esta nova classe
composta por um ramo local e por um ramo internacional. O ramo local, a burguesia
nacional, uma categoria social mente ampla que envolve a elite empresarial, os
directores de empresas, os altos funcionrios do Estado, lderes polticos e
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profissionais influentes. Apesar de toda a heterogeneidade, estes diferentes grupos
constituem, de acordo com os autores, uma class e, "porque os seus membros, apesar
da diversidade dos seus interesses sectoriais, partilham uma situao comum de
privilgio scio-econmico e um interesse comum de classe nas relaes do poder
poltico e do controlo social que so intrnsecas ao modo de p roduo capitalista". O
ramo internacional, a burguesia internacional, composta pelos gestores das
empresas multinacionais e pelos dirigentes das instituies financei ras internacionais
(1987: 7).
As novas desigualdades sociais produzidas por esta estr utura de classe tm vindo a
ser amplamente reconhecidas mesmo pelas agncias multilaterais que tm liderado
este modelo de globalizao, como o Banco Mundial e o Fundo Monetrio
Internacional. Para Evans, o modelo de industrializao e crescimento baseado na
"tripla aliana" inerentemente injusto e apenas capaz de um tipo de redistribuio "damassa da populao para a burguesia estatal, as multinacionais e o capital local. A
manuteno de um equilbrio delicado entre os trs parceiros milita contra qualq uer
possibilidade de um tratamento srio s questes da redistribuio de rendimentos,
mesmo que membros da elite expressem um apoio ao princpio terico da
redistribuio de rendimentos" (1979: 288). Em comparaes mais recentes entre os
modelos e padres de desigualdade social da Amrica Latina e do Leste Asitico,
Evans acrescenta outros factores que, em sua opinio, podem ter contribudo para que
o modelo de desenvolvimento asitico tenha produzido relativamente menos
desigualdades que o modelo brasilei ro. Entre esses factores contabiliza, a favor do
modelo asitico, a maior autonomia do Estado, a eficincia da burocracia estatal, a
reforma agrria e a existncia de um perodo inicial de proteco em relao ao
capitalismo dos pases centrais (1987). [2]
hoje evidente que a iniquidade da distribuio da riqueza mundial se agravou nas
duas ltimas dcadas: 54 dos 84 pases menos desenvolvidos viram o seu PNB per
capita decrescer nos anos 80; em 14 deles a diminuio rondou os 35%; segundo o
Relatrio do Programa para o Desenvolvimento das Naes Unidas de 2001 (PNUD,2001), mais de 1,2 bilies de pessoas (pouco menos que 1/4 da populao mundial)
vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um rendimento inferior a um dlar por dia e
outros 2,8 bilies vivem apenas com o dobro desse rendimento (PNUD, 2001: 9). [3]
Segundo o Relatrio do Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto dos
pases pobres, onde vive 85,2% da populao mundial, detm apenas 21,5% do
rendimento mundial, enquanto o conjunto dos pases ricos, com 14,8% da populao
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mundial, detm 78,5% do rendimento mundial. Uma famlia africana mdia consome
hoje 20% menos do que consumia h 25 anos. Segundo o Banco Mundial, o
continente africano foi o nico em que, entre 1970 e 1997, se verificou um decrscimo
da produo alimentar (World Bank, 1998). O aumento das desigualdades tem sido
to acelerado e to grande que adequado ver as ltimas dcadas como uma revolta
das elites contra a redistribuio da riqueza com a qual se pe fim ao perodo de uma
certa democratizao da riqueza iniciado no final da Segunda Gue rra Mundial.
Segundo o Relatrio do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20%
da populao mundial a viver nos pases mais ricos detinham, em 1997, 86% do
produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1%. Segundo
o mesmo Relatrio, mas relativo a 2001, no quinto mais rico concentram -se 79% dos
utilizadores da internet. As desigualdades neste domnio mostram quo distantes
estamos de uma sociedade de informao verdadeiramente global. A largura da banda
de comunicao electrnica de So Paulo, uma das sociedades globais, superior de frica no seu todo. E a largura da banda usada em toda a Amrica Latina quase
igual disponvel para a ci dade de Seul (PNUD, 2001: 3).
Nos ltimos trinta anos a desigualdade na distribui o dos rendimentos entre pases
aumentou dramaticamente. A diferena de rendimento entre o quinto mais rico e o
quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de
74 para 1. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a
sua riqueza entre 1994 e 1998. A riqueza dos trs mais ricos bilionrios do mundo
excede a soma do produto interno bruto dos 48 pases menos desenvo lvidos do
mundo (PNUD, 2001).
A concentrao da riqueza produzida pela globalizao neoli beral atinge propores
escandalosas no pas que tem liderado a aplicao do novo modelo econmico, os
EUA. J no final da dcada de oitenta, segundo dados do Federal Reserve Bank, 1%
das famlias norte-americanas detinha 40% da riqueza do pas e as 20% ma is ricas
detinham 80% da riqueza do pas. Segundo o Banco, esta concentrao no tinha
precedentes na histria dos EUA, nem comparao com os outros pasesindustrializados (Mander, 1996: 11).
No domnio da globalizao social, o consenso neoliberal o de que o crescimento e a
estabilidade econmicos assentam na reduo dos custos salariais, para o que
necessrio liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos laborais, proibindo
a indexao dos salrios aos ganhos de produtividade e os ajusta mentos em relao
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ao custo de vida e eliminando a prazo a legislao sobre salrio mnimo. O objectivo
impedir "o impacto inflacionrio dos aumentos salariais". A contraco do poder de
compra interno que resulta desta poltica deve ser suprida pela busc a de mercados
externos. A economia , assim, dessocializada, o conceito de consumidor substitui o
de cidado e o critrio de incluso deixa de ser o direito para passar a ser a solvncia.
Os pobres so os insolventes (o que inclui os consumidores que ultrapassam os
limites do sobreendividamento). Em relao a eles devem adoptar -se medidas de luta
contra a pobreza, de preferncia medidas compensatrias que minorem, mas no
eliminem, a excluso, j que esta um efeito inevitvel (e, por isso, justificado) do
desenvolvimento assente no crescimento econmico e na competitividade a nvel
global. Este consenso neoliberal entre os pases centrais imposto aos pases
perifricos e semiperifricos atravs do controlo da dvida externa efectuado pelo
Fundo Monetrio Internacional e pelo Banco Mundial. Da que estas duas instituies
sejam consideradas responsveis pela "globalizao da pobreza" (Chossudovsky,1997). A nova pobreza globalizada no resulta de falta de recursos humanos ou
materiais, mas to s do desemprego, da destruio das economias de subsistncia e
da minimizao dos custos salariais escala mundial.
Segundo a Organizao Mundial de Sade, os pases pobres tm a seu cargo 90%
das doenas que ocorrem no mundo, mas no tm mais do 10% dos recursos
globalmente gastos em sade; 1/5 da populao mundial no tem qualquer acesso a
servios de sade modernos e metade da populao mundial no tem acesso a
medicamentos essenciais. A rea da sade talvez aquela em que de modo mais
chocante se revela a iniquidade do mundo. Segundo o ltimo Relatrio do
Desenvolvimento Humano das Naes Unidas, em 1998, 968 milhes de pessoas no
tinham acesso a gua potvel, 2,4 bilies (pouco menos que metade da populao
mundial) no tinha acesso a cuidados bsicos de sad e; em 2000, 34 milhes de
pessoas estavam infectadas com HIV/SIDA, dos quais 24,5 milhes na frica
subsahariana (UNAIDS, 2000: 6); em 1998, morriam anualmente 12 milhes de
crianas (com menos de 5 anos) de doenas curveis (UNICEF, 2000). As doenas
que mais afectam a populao pobre do mundo so a malria, a tuberculose e adiarreia. [4] Ante este quadro no pode ser mais chocante a distribuio mundial dos
gastos com a sade e a investigao mdica. Por exemplo, apenas 0,1% do
oramento da pesquisa mdica e farmacutica mundial - cerca de 100 milhes de
dlares em 1998 (PNUD, 2001: 3) - destinado malria, enquanto a quase
totalidade dos 26,4 bilies de dlares investidos em pesquisa pelas multinacionais
farmacuticas se destina s chamadas "doenas dos pases ricos": cancro, doenas
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cardiovasculares, do sistema nervoso, doenas endcrinas e do metabolismo. O que
no admira se tivermos em mente que a Amrica Lat ina representa apenas 4% das
vendas farmacuticas globais e a frica, 1%. por isso tambm que apenas 1% das
novas drogas comercializadas pelas companhias farmacuticas multinacionais entre
1975 e 1997 se destinaram especificamente ao tratamento de doena s tropicais que
afectam o Terceiro Mundo (Silverstein, 1999).
Apesar do aumento chocante da desigualdade entre pases pobres e pases ricos,
apenas 4 destes ltimos cumprem a sua obrigao moral de contribuir com 0.7% do
Produto Interno Bruto para a ajuda ao desenvolvimento. Alis, segundo dados da
OCDE, esta percentagem diminui entre 1987 e 1997 de 0,33 para 0,22 (OCDE/DAC,
2000). O mais perverso dos programas de ajuda internacional o facto de eles
ocultarem outros mecanismos de transferncias financeiras em que os fluxos so
predominantemente dos pases mais pobres para os pases mais ricos. o que sepassa, por exemplo, com a dvida externa. O valor total da dvida externa dos pases
da frica subsahariana (em milhes de dlares) aumentou entre 1 980 e 1995 de
84.119 para 226.483; no mesmo perodo, e em percentagem do PIB, aumentou de
30,6% para 81,3% e, em percentagem de exportaes, de 91,7% para 241,7% (World
Bank, 1997: 247). No final do sc. XX, a frica pagava 1,31 dlar de dvida externa por
cada dlar de ajuda internacional que recebia (World Bank, 2000). O Fundo Monetrio
Internacional tem basicamente funcionado como a instituio que garante que os
pases pobres, muitos deles cada vez mais pobres e individados, paguem as suas
dvidas aos pases ricos (Estados, bancos privados, agncias multilaterais) nas
condies (juros, por exemplo) impostas por estes. Mas as transferncias lquidas do
Sul para o Norte assumem muitas outras formas como, por exemplo, a "fuga dos
crebros": segundo as Nae s Unidas, cerca de 100.000 profissionais indianos
imigram para os EUA, o que corresponde a uma perda de 2 bilies de dlare s para a
ndia (PNUD, 2001: 5).
4. A globalizao poltica e o Estado -nao
A nova diviso internacional do trabalho, conjugada com a nova economia poltica
"pr-mercado", trouxe tambm algumas importantes mudanas para o sistema
interestatal, a forma poltica do sistema mundial moderno. Por um lado, os Estados
hegemnicos, por eles prprios ou atravs das instituies internacionais que
controlam (em particular as instituies financeiras multilaterais), comprimiram a
autonomia poltica e a soberania efectiva dos Estados perifricos e semiperifricos
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com uma intensidade sem precedentes, apesar de a capacidade de resistncia e
negociao por parte destes ltimos poder variar imenso. [5]Por outro lado, acentuou -
se a tendncia para os acordos p olticos interestatais (Unio Europeia, NAFTA,
Mercosul). No caso da Unio Europeia, esses acordos evoluram para formas de
soberania conjunta ou partilhada. Por ltimo, ainda que no menos importante, o
Estado-nao parece ter perdido a sua centralidade t radicional enquanto unidade
privilegiada de iniciativa econmica, social e poltica. A intensificao de interaces
que atravessam as fronteiras e as prticas transnacionais corroem a capacidade do
Estado-nao para conduzir ou controlar fluxos de pessoas , bens, capital ou ideias,
como o fez no passado.
O impacto do contexto internacional na regulao do Estado -nao, mais do que um
fenmeno novo, inerente ao sistema interestatal moderno e est inscrito no prprio
Tratado de Westphalia (1648) que o constitui. Tambm no novo o facto de ocontexto internacional tendencialmente exercer uma influncia particularmente forte no
campo da regulao jurdica da economia, como o testemunham os vrios projectos
de modelizao e unificao do direito econmic o desenvolvidos ao longo do sculo
XX, por especialistas de direito comparado e concretizados por organizaes
internacionais e governos nacionais. Como os prprios nomes dos projectos indicam,
a presso internacional tem sido, tradicionalmente, no sentido da uniformizao e da
normalizao, o que bem ilustrado pelos projectos pioneiros de Ernest Rabel, em
incios da dcada de 30, e pela constituio do Instituto Internacional para a Unificao
do Direito Privado (UNIDROIT) com o objectivo de unificar o d ireito dos contratos
internacionais, o que conduziu, por exemplo, lei uniformizada na formao de
contratos de vendas internacionais (ULFIS, 1964) e a Conveno na venda
internacional de bens (CISG, 1980) (van der Velden, 1984: 233).
A tradio da globalizao para alguns muito mais longa. Por exemplo, Tilly
distingue quatro ondas de globalizao no passado milnio: nos sculos XIII, XVI, XIX
e no final do sculo XX (1995). Apesar desta tradio histrica, o impacto actual da
globalizao na regulao estatal parece ser um fenmeno qualitativamente novo, porduas razes principais. Em primeiro lugar, um fenmeno muito amplo e vasto que
cobre um campo muito grande de interveno estatal e que requer mudanas
drsticas no padro de interveno. Para Ti lly, o que distingue a actual onda de
globalizao da onda que ocorreu no sculo XIX o facto de esta ltima ter
contribudo para o fortalecimento do poder dos Estados centrais (Ocidentais),
enquanto a actual globalizao produz o enfraquecimento dos pode res do Estado. A
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presso sobre os Estados agora relativamente monoltica - o "Consenso de
Washington" - e em seus termos o modelo de desenvolvimento orientado para o
mercado o nico modelo compatvel com o novo regime global de acumulao,
sendo, por isso, necessrio impor, escala mundial, polticas de ajustamento
estrutural. Esta presso central opera e refora -se em articulaes com fenmenos e
desenvolvimentos to dspares como o fim da guerra fria, as inovaes dramticas nas
tecnologias de comunicao e de informao, os novos sistemas de produo flexvel,
a emergncia de blocos regionais, a proclamao da democracia liberal como regime
poltico universal, a imposio global do mesmo modelo de lei de proteco da
propriedade intelectual, etc.
Quando comparado com os processos de transnacionalizao precedentes, o alcance
destas presses torna-se particularmente visvel uma vez que estas ocorrem aps
dcadas de intensa regulao estatal da economia, tanto nos pases centrais, comonos pases perifricos e semiperifricos. A criao de requisitos normativos e
institucionais para as operaes do modelo de desenvolvimento neoliberal envolve,
por isso, uma destruio institucional e normativa de tal modo macia que afecta,
muito para alm do papel do Estado na economia, a legitimidade global do Estad o
para organizar a sociedade.
O segundo factor de novidade da globalizao poltica actual que as assimetrias do
poder transnacional entre o centro e a periferia do sistema mundial, i.e., entre o Norte
e o Sul, so hoje mais dramticas do que nunca. De facto, a soberania dos Estados
mais fracos est agora directamente ameaada, no tanto pelos Estados mais
poderosos, como costumava ocorrer, mas sobretudo por agncias financeiras
internacionais e outros a ctores transnacionais privados, tais como as empresas
multinacionais. A presso , assim, apoiada por uma coligao transnacional
relativamente coesa, utilizando r ecursos poderosos e mundiais.
Tendo em mente a situao na Europa e na Amrica do Norte, Bo b Jessop identifica
trs tendncias gerais na transformao do poder do Estado. Em primeiro lugar, adesnacionalizao do Estado , um certo esvaziamento do aparelho do Estado nacional
que decorre do facto de as velhas e novas capacidades do Estado estarem a ser
reorganizadas, tanto territorial como funcionalmente, aos nveis subnacional e
supranacional. Em segundo lugar, a de-estatizao dos regimes polticos reflectida na
transio do conceito de governo (government) para o de governao (governance),
ou seja, de um modelo de regulao social e econmica assente no papel central do
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O consenso do Estado fraco , sem dvida, o mais central e dele h ampla prova no
que ficou descrito acima. Na sua base est a ideia de que o Estado o oposto da
sociedade civil e potencialmente o seu inimigo. A economia neoliberal necessita de
uma sociedade civil forte e para que ela exista necessrio que o Estado seja fraco. O
Estado inerentemente opressivo e limitativo da sociedade civil, pelo que s
reduzindo o seu tamanho possvel reduzir o seu dano e fortalecer a sociedade civil.
Da que o Estado fraco seja tambm tendencialmente o Estado mnimo. Esta ideia fora
inicialmente defendida pela teoria poltica liberal, mas foi gradualmente abandonada
medida que o capitalismo nacional, enquanto relao social e poltica, foi exigindo
maior interveno estatal. Deste modo, a ideia do Estado como oposto da sociedade
civil foi substituda pela ideia do Estado como espelho da sociedade civil. A partir de
ento um Estado forte passou a ser a condio de uma sociedade civil forte. O
consenso do Estado fraco visa repor a ideia liberal original.
Esta reposio tem-se revelado extremamente complexa e contraditria e, talvez por
isso, o consenso do Estado fraco , de todos os consensos neoliberais, o mais frgil e
mais sujeito a correces. que o " encolhimento" do Estado - produzido pelos
mecanismos conhecidos, tais como a desregulao, as privatizaes e a reduo dos
servios pblicos - ocorre no final de um perodo de cerca de cento e cinquenta anos
de constante expanso regulatria do Estado. As sim, como referi atrs, desregular
implica uma intensa actividade regulatria do Estado para pr fim regulao estatal
anterior e criar as normas e as instituies que presidiro ao novo modelo de
regulao social. Ora tal actividade s pode ser levada a cabo por um Estado eficaz e
relativamente forte. Tal como o Estado tem de intervir para deixar de intervir, tambm
s um Estado forte pode produzir com eficcia a sua fraqueza. Esta antinomia foi
responsvel pelo fracasso da estratgia dos USAID e do Banc o Mundial para a
reforma poltica do Estado russo depois do colapso do comunismo. Tais reformas
assentaram no desmantelamento quase total do Estado sovitico na expectativa de
que dos seus escombros emergisse um Estado fraco e, consequentemente, uma
sociedade civil forte. Para surpresa dos progenitores, o que emergiu destas reformasfoi um governo de mafias (Hendley, 1995). Talvez por isso o consenso do Estado fraco
foi o que mais cedo deu sinais de fragilizao, como bem demonstra o relatrio do
Banco Mundial de 1997, dedicado ao Estado e no qual se reabilita a ideia de
regulao estatal e se pe o acento tnico na eficcia da aco estatal (Banco
Mundial, 1997).
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O consenso da democracia liberalvisa dar forma poltica ao Estado fraco, mais uma
vez recorrendo teoria poltica liberal que particularmente nos seus primrdios
defendera a convergncia necessria entre liberdade poltica e liberdade econmica,
as eleies livres e os mercados livres como os dois lados da mesma moeda: o bem
comum obtvel atravs das aces de indivduos utilitaristas envolvidos em trocas
competitivas com o mnimo de interferncia estatal. A imposio global deste
consenso hegemnico tem criado muitos problemas quanto mais no seja porque se
trata de um modelo monoltico a ser apl icado em sociedades e realidades muito
distintas. Por essa razo, o modelo de democracia adoptado como condicionalidade
poltica da ajuda e do financiamento internacional tende a converter -se numa verso
abreviada, seno mesmo caricatural, da democracia li beral. Para constatar isto
mesmo, basta comparar a realidade poltica dos pases sujeitos s condicionalidades
do Banco Mundial e as caractersticas da democracia liberal, tal como so descritas
por David Held: o governo eleito; eleies livres e justas em que o voto de todos oscidados tm o mesmo peso; um sufrgio que abrange todos os cidados
independentemente de distines de raa, religio, classe, sexo, etc.; liberdade de
conscincia, informao e expresso em todos os assuntos pblicos definidos com o
tal com amplitude; o direito de todos os adultos a opor -se ao governo e serem
elegveis; liberdade de associao e autonomia associativa entendida como o direito a
criar associaes independentes, incluindo movimentos sociais, grupos de interesse e
partidos polticos (1993: 21). Claro que a ironia desta enumerao que, luz dela, as
democracias reais dos pases hegemnicos, se no so verses caricaturais, so pelo
menos verses abreviadas do modelo de democracia liberal.
O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial uma das componentes
essenciais da nova forma poltica do Estado e tambm o que melhor procura vincular
a globalizao poltica globalizao econmica. O modelo de desenvolvimento
caucionado pelo Consenso de Washington reclama um novo quadro legal que seja
adequado liberalizao dos mercados, dos investimentos e do sistema financeiro.
Num modelo assente nas privatizaes, na iniciativa privada e na primazia dos
mercados o princpio da ordem, da previsibilidade e da con fiana no pode vir docomando do Estado. S pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de
instituies independentes e universais que criam expectativas normativamente
fundadas e resolvem litgios em funo de quadros legais presumivelmente
conhecidos de todos. A proeminncia da propriedade individual e dos contratos refora
ainda mais o primado do direito. Por outro lado, a expanso do consumo, que o
motor da globalizao econmica, no possvel sem a institucionalizao e
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popularizao do crdito ao consumo e este no possvel sem a ameaa credvel de
que quem no pagar ser sancionado por isso, o que, por sua vez, s possvel na
medida em que exist ir um sistema judicial eficaz.
Nos termos do Consenso de Washington, a responsabilidade central do Estado
consiste em criar o quadro legal e dar condies de efectivo funcionamento s
instituies jurdicas e judiciais que tornaro possvel o fluir rotineiro das infinitas
interaces entre os cidados, os agentes e conmicos e o prprio Estado.
Um outro tema importante nas anlises das dimenses polticas da globalizao o
papel crescente das formas de governo supraestatal, ou seja, das instituies polticas
internacionais, das agncias financeiras multilaterais, dos blocos poltico -econmicos
supranacionais, dos Think Tanks globais, das diferentes formas de direito global (da
nova lex mercatoria aos direitos humanos). Tambm neste caso o fenmeno no novo uma vez que o sistema interestatal em que temos vivido desde o sculo XVII
promoveu, sobretudo a partir do sculo XIX, consensos normativos internacionais que
se vieram a traduzir em organizaes internacionais. Ento, como hoje, essas
organizaes tm funcionado como condomnios entre os pases centrais. O que
novo a amplitude e o poder da institucionalidade transnacional que se tem vindo a
constituir nas ltimas trs dcadas. Este um dos sentidos em que se tem falado da
emergncia de um "governo global" (" global governance") (Murphy, 1994). O outro
sentido, mais prospectivo e utpico, diz respeito indagao sobre as instituies
polticas transnacionais que ho -de corresponder no futuro globalizao econmica
e social em curso (Falk, 1995; Chase -Dunn et al, 1998). Fala-se mesmo da
necessidade de se pensar num "Estado mundial" ou numa "federao mundial",
democraticamente controlada e com a funo de resolver pacificamente os conflitos
entre estados e entre agentes globais. Alguns autores transpem para o novo campo
da globalizao os conflitos estruturais do perodo anterior e imaginam as
contrapartidas polticas a que devem dar azo. Tal como a classe capitalista global est
a tentar formar o seu estado global, de que a Organizao Mundial do Comrcio a
guarda avanada, as foras socialistas devem criar um "partido mundial" ao servio deuma "comunidade socialista global" ou uma "comunidade democrtica global" baseada
na racionalidade colectiva, na liberdade e na igua ldade (Chase-Dunn et al, 1998).
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5. Globalizao cultural ou cultura global?
A globalizao cultural assumiu um relevo especial com a chamada "viragem cultural"
da dcada de oitenta, ou seja, com a mudana de nfase, nas cincias sociais, dos
fenmenos scio-econmicos para os fenmenos culturais. A "viragem cultural" veio
reacender a questo da primazia causal n a explicao da vida social e, com ela, aquesto do impacto da globalizao cultural. [6] A questo consiste em saber se as
dimenses normativa e cultural do proce sso de globalizao desempenham um papel
primrio ou secundrio. Enquanto para alguns elas tm um papel secundrio, dado
que a economia mundial capitalista mais integrada pelo poder poltico -militar e pela
interdependncia de mercado do que pelo consenso normativo e cultural (Chase-
Dunn, 1991: 88), para outros o poder poltico, a dominao cultural e os valores e
normas institucionalizadas precedem a dependncia de mercado no desenvolvimento
do sistema mundial e na estabilidade do sistema interestatal (Me yer, 1987;Bergesen,
1990). Wallerstein faz uma leitura sociolgica deste debate, defendendo que "no
por acaso... que tem havido tanta discusso nestes ltimos dez -quinze anos acerca do
problema da cultura. Isso decorrente da decomposio da dupla cren a do sculo
dezanove nas arenas econmica e poltica como lugares de progresso social e,
consequentemente, de salvao individua l" (Wallerstein, 1991a: 198).
Embora a questo da matriz original da globalizao se ponha em relao a cada uma
das dimenses da globalizao, no domnio da globalizao cultural que ela se pe
com mais acuidade ou com mais frequncia. A questo de saber se o que sedesigna por globalizao no deveria ser mais correctamente designado por
ocidentalizao ou americanizao (Ritzer, 1995), j que os valores, os artefactos
culturais e os universos simblicos que se globalizam so ocidentais e, por vezes,
especificamente norte-americanos, sejam eles o individualismo, a democracia poltica,
a racionalidade econmica, o utilitaris mo, o primado do direito, o cinema, a
publicidade, a televiso, a internet, etc.
Neste contexto, os meios de comunicao electrnicos, especialmente a televiso,
tm sido um dos grandes temas de debate. Embora a importncia da globalizao dos
meios de comunicao social seja salientada por todos, nem todos retiram dela as
mesmas consequncias. Appadurai, por exemplo, v nela um dos dois factores (o
outro so as migraes em massa) responsveis pela ruptura entre o perodo de que
acabamos de sair (o mundo da modernizao) e o perodo em que estamos a entrar (o
mundo ps-electrnico) (1997). O novo perodo distingue -se pelo "trabalho da
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imaginao" pelo facto de a imaginao se ter transformado num facto social,
colectivo, o ter deixado de estar confinada n o indivduo romntico e no espao
expressivo da arte, do mito e do ritual para passar a fazer parte da vida quotidiana dos
cidados comuns (1997: 5). A imaginao ps -electrnica, combinada com a
desterritorializao provocada pelas migraes, torna possv el a criao de universos
simblicos transnacionais, "comunidades de sentimento", identidades prospectivas,
partilhas de gostos, prazeres e aspiraes, em suma, o que Appadurai chama "esferas
pblicas diaspricas" (1997: 4). De uma outra perspectiva, Octv io Ianni fala do
"prncipe electrnico" - o conjunto das tecnologias electrnicas, informticas e
cibernticas, de informao e de comunicao, com destaque para a televiso - que
se transformou no "arquitecto da gora electrnica na qual todos esto repre sentados,
reflectidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivncia ne m da experincia"
(1998: 17).
Esta temtica articula -se com uma outra igualmente central no mbito da globalizao
cultural: o de saber at que ponto a globalizao acarreta hom ogeneizao. Se para
alguns autores a especificidade das culturas locais e nacionais est em risco (Ritzer,
1995), para outros, a globalizao tanto produz homogeneizao como diversidade
(Robertson e Khondker, 1998). O isomorfismo institucional, sobretudo nos domnios
econmico e poltico coexiste com a afirmao de diferenas e de particularismo. Para
Friedman, a fragmentao cultural e tnica, por um lado, e a homogeneizao
modernista, por outro, no so duas perspectivas opostas sobre o que est a
acontecer, mas antes duas tendncias, ambas constitutivas da realidade global
(Featherston, 1990: 311). Do mesmo modo, Appadurai faz questo de salientar que os
media electrnicos, longe de serem o pio do povo, so processados pelos indivduos
e pelos grupos de uma maneira activa, um campo frtil para exerccios de resistncia,
selectividade e ironia (1997: 7). Appadurai tem vindo a salientar o crescente papel da
imaginao na vida social dominada pela globalizao. atravs da imaginao que
os cidados so disciplinados e controlados pelos Estados, mercados e os outros
interesses dominantes, mas tambm da imaginao que os cidados desenvolvem
sistemas colectivos de dissidncia e novos grafismos da vida colectiva (1999: 230).
O que no fica claro nestes posicionamentos a elucidao das relaes sociais de
poder que presidem produo tanto de homogeneizao como de diferenciao.
Sem tal elucidao, estes dois "resultados" da globalizao so postos no mesmo p,
sem que se conheam as vinculaes e a hierarquia entre eles. Esta elucidao
particularmente til para analisar criticamente os processos de hibridizao ou de
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crioulizao que resultam do confronto o u da coabitao entre tendncias
homogeneizantes e tendncias particularizantes (Hall e McGrew, 1992). Segundo
Appadurai, "a caracterstica central da cultura global hoje a poltica do esforo mtuo
da mesmidade e da diferena para se canibalizarem uma outra e assim
proclamarem o xito do sequestro as duas ideias gmeas do Iluminismo, o universal
triunfante e particular resistente" (1997: 43).
Um outro tema central na discusso sobre as dimenses culturais da globalizao -
relacionado, alis, com o debate anterior - diz respeito questo de saber se ter
emergido nas dcadas mais recentes uma cultura global (Featherstone, 1990; Waters,
1995). h muito reconhecido que, pelo menos desde o sculo XVI, a hegemonia
ideolgica da cincia, da economia, da poltica e da religio europeias produziu,
atravs do imperialismo cultural, alguns isomorfismos entre as diferentes culturas
nacionais do sistema mundial. A questo , agora, de saber se, para alm disso,certas formas culturais tero emergido nas dcada s mais recentes, que so
originalmente transnacionais ou cujas origens nacionais so relativamente irrelevantes
pelo facto de circularem pelo mundo mais ou menos desenraizadas das culturas
nacionais. Tais formas culturais so identificadas por Appadurai co mo mediascapes e
ideoscapes (1990), por Leslie Sklair (1991) como cultura -ideologia do consumismo,
por Anthony Smith como um novo imperialismo cultural (1990). De uma outra
perspectiva, a teoria dos regimes internacionais tem vindo a canalizar a nossa aten o
para os processos de formao de consenso ao nvel mundial e para a emergncia de
uma ordem normativa global (Keohane e Nye, 1977; Keohane, 1985; Krasner, 1983;
Haggard e Simmons, 1987). E ainda de outra perspectiva, a teoria da estrutura
internacional acentua a forma como a cultura ocidental tem criado actores sociais e
significados culturais por todo o mundo (Thomas et al, 1987).
A ideia de uma cultura global , claramente, um dos principais projectos da
modernidade. Como Stephen Toulmin brilhanteme nte demonstrou (1990), pode ser
identificado desde Leibniz at Hegel e desde o sculo XVII at ao nosso sculo. A
ateno sociolgica concedida a esta ideia nas ltimas trs dcadas tem, contudo,uma base emprica especfica. Acredita-se que a intensificao dramtica de fluxos
transfronteirios de bens, capital, trabalho, pessoas, ideias e informao originou
convergncias, isomorfismos e hibridizaes entre as diferentes culturas nacionais,
sejam elas estilos arquitectnicos, moda, hbitos alimentares ou consumo cultural de
massas. Contudo, a maior parte dos autores sustenta que, apesar da sua importncia,
estes processos esto longe de conduzirem a uma cultura global.
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A cultura por definio um processo social construdo sobre a interseco entre o
universal e o particular. Como salienta Wallerstein, "definir uma cultura uma questo
de definir fronteiras" (1991a: 187). De modo convergente, Appadurai afirma que o
cultural o campo das diferenas, dos contrastes e das comparaes (1997: 12).
Poderamos at afirmar que a cultura , em sua definio mais simples, a luta contra a
uniformidade. Os poderosos e envolventes processos de difuso e imposio de
culturas, imperialisticamente definidos como universais, tm sido confrontados, em
todo o sistema mundial, por mltiplos e engenhosos processos de resistncia,
identificao e indigenizao culturais. Todavia, o tpico da cultura global tem tido o
mrito de mostrar que a luta poltica em redor da homogeneizao e da uniformizao
culturais transcendeu a configurao territorial em que teve lugar desde o sculo XIX
at muito recentemente, isto , o Estado -nao.
A este respeito, os Estados -nao tm tradicionalmente desempenhado um papel algo
ambguo. Enquanto, externamente, tm sido os arautos da diversi dade cultural, da
autenticidade da cultura nacional, internamente, tm promovido a homogeneizao e a
uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas locais existentes no territrio
nacional, atravs do poder da polcia, do direito, do sistema educaci onal ou dos meios
de comunicao social, e na maior parte das vezes por todos eles em conjunto. Este
papel tem sido desempenhado com intensidade e eficcia muito variadas nos Estados
centrais, perifricos e semiperifricos e pode estar agora a mudar como p arte das
transformaes em curso na capacidade r egulatria dos Estados-nao.
Sob as condies da economia mundial capitalista e do sistema interestatal moderno,
parece haver apenas espao para as culturas globais parciais. Parcial, quer em termos
dos aspectos da vida social que cobrem, quer das regies do mundo que abrangem.
Smith, por exemplo, fala de uma "famlia de culturas" europeia, que consiste em
motivos e tradies polticas e culturais abrangentes e transnacionais (o direito
romano, o humanismo renascentista, o racionalismo iluminista, o romantismo e a
democracia), "que emergiram em diversas partes do continente em diferentesperodos, continuando em alguns casos a emergir, criando ou recriando sentimentos
de reconhecimento e parentesco entre o s povos da Europa" (1990: 187). Vista de fora
da Europa, particularmente a partir de regies e de povos intensivamente colonizados
pelos europeus, esta famlia de culturas a verso quintessencial do imperialismo
ocidental em nome do qual muita da tradi o e da identidade cultural foi destruda.
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Dada a natureza hierrquica do sistema mundial, torna -se crucial identificar os grupos,
as classes, os interesses e os Estados que definem as culturas parciais enquanto
culturas globais, e que, por essa via, cont rolam a agenda da dominao poltica sob o
disfarce da globalizao cultural. Se verdade que a intensificao dos contactos e da
interdependncia transfronteirios abriu novas oportunidades para o exerccio da
tolerncia, do ecumenismo, da solidariedade e do cosmopolitismo, no menos
verdade que, simultaneamente, tm surgido novas formas e manifestaes de
intolerncia, chauvinismo, de racismo, de xenofobia e, em ltima instncia, de
imperialismo. As culturas globais parciais podem, desta forma, ter nat urezas, alcances
e perfis polticos muito diferentes.
Nas actuais circunstncias, s possvel visualizar culturas globais pluralistas ou
plurais. [7] por isso que a maior parte dos autores assume uma postura prescritiva ou
prospectiva sempre que fala de cultura global no singular. Para Hannerz, ocosmopolitismo "inclui uma postura favorvel coexistncia de culturas distintas na
experincia individual... uma or ientao, uma vontade de interagir com o Outro... uma
postura esttica e intelectual de abertura face a experincias culturais divergentes"
(1990: 239). Chase-Dunn, por seu lado, enquanto retira do pedestal o "universalismo
normativo" de Parsons (1971) como um trao essencial do sistema capitalista mundial
vigente, prope que tal universalismo seja transposto para "um novo nvel de sentido
socialista, embora sensvel s virtudes do pluralismo nacional e tnico" (1991: 105;
Chase-Dunn et al, 1998). Por fim, Wallerstein imagina uma cultura mundial somente
num mundo libertrio-igualitrio futuro, mas mesmo a haveria um lugar reservado
para a resistncia cultural: a criao e a recriao constantes de entidades culturais
particularistas "cujos objectos (reconhe cidos ou no) seriam a restaurao da
realidade universal de liberda de e igualdade" (1991a: 199).
No domnio cultural, o consenso neoliberal muito selectivo. Os fenmenos culturais
s lhe interessam na medida em que se tornam mercadorias que como tal d evem
seguir o trilho da globalizao econmica. Assim, o consenso diz, sobretudo, respeito
aos suportes tcnicos e jurdicos da produo e circulao dos produtos das indstriasculturais como, por exemplo, as tecnologias de comunicao e da informao e o s
direitos de propriedade intelectual.
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6. A natureza das globalizaes
A referncia feita nas seces anteriores s facetas dominantes do que usualmente se
designa por globalizao, alm de ser omissa a respeito da teoria da globalizao que
lhe subjaz, pode dar a ideia falsa de que a globalizao um fenmeno linear,
monoltico e inequvoco. Esta ideia da globalizao, apesar de falsa, hojeprevalecente e tende a s -lo tanto mais quanto a globalizao extravasa do discurso
cientfico para o discurso poltico e para a linguagem comum. Aparentemente
transparente e sem complexidade, a ideia de globalizao obscurece mais do que
esclarece o que se passa no mundo. E o que obscurece ou oculta , quando visto de
outra perspectiva, to importante que a trans parncia e simplicidade da ideia de
globalizao, longe de serem inocentes, devem ser considerados dispositivos
ideolgicos e polticos dotados de intencionalidades especficas. Duas dessas
intencionalidades devem ser salientadas.
A primeira o que designo por falcia do determinismo. Consiste na inculcao da
ideia de que a globalizao um processo espontneo, automtico, inelutvel e
irreversvel que se intensifica e avana segundo uma lgica e uma dinmica prprias
suficientemente fortes para se imp orem a qualquer interferncia externa. Nesta falcia
incorrem no s os embaixadores da globalizao como os estudiosos mais
circunspectos. Entre estes ltimos, saliento Manuel Castells para quem a globalizao
o resultado inelutvel da revoluo nas tec nologias da informao. Segundo ele, a
"nova economia informacional porque a produtividade e competitividade assentamna capacidade para gerar e aplicar eficientemente informao baseada em
conhecimento" e global porque as actividades centrais da produ o, da distribuio
e do consumo so organizadas escala mundial (1996: 66). A falcia consiste em
transformar as causas da globalizao em efeitos da globalizao. A globalizao
resulta, de facto, de um conjunto de decises polticas identificadas no t empo e na
autoria. O Consenso de Washington uma deciso poltica dos Estados centrais como
so polticas as decises dos Estados que o adoptaram com mais ou menos
autonomia, com mais ou menos selectividade. No podemos esquecer que, em
grande medida, e sobretudo ao nvel econmico e poltico, a globalizao hegemnica
um produto de decises dos Estados nacionais. A desregulamentao da economia,
por exemplo, tem sido um acto eminentemente poltico. A prova disso mesmo est na
diversidade das respostas d os Estados nacionais s presses polticas decorrentes do
Consenso de Washington. [8] O facto de as decises polticas terem sido, em geral,
convergentes, tomadas durante um perodo de tempo curto, e de muitos Estados no
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terem tido alternativa para decidirem de modo diferente, no elimina o carcter poltico
das decises, apenas desloca o centro e o processo poltico destas. Igualmente
poltica reflexo sobre as novas formas de Estado que esto a emergir em resultado
da globalizao, sobre a nova distribuio poltica entre prticas nacionais, prticas
internacionais e prticas globais, sobre o novo formato das polticas pblicas em face
da crescente complexidade das questes sociais, a mbientais e de redistribuio.
A segunda intencionalidade poltica do carcter no -poltico da globalizao a falcia
do desaparecimento do Sul. Nos termos desta falcia as relaes Norte/Sul nunca
constituram um verdadeiro conflito, mas durante muito tempo os dois plos das
relaes foram facilmente identificveis, j que o Norte produzia produtos
manufacturados, enquanto o Sul fornecia matrias primas. A situao comeou-se a
alterar na dcada de sessenta (deram conta disso as teorias da dependncia ou do
desenvolvimento dependente) e transformou -se radicalmente a partir da dcada deoitenta. Hoje, quer ao nvel financeiro, quer ao nvel da produo, qu er ainda ao nvel
do consumo, o mundo est integrado numa economia global onde, perante a
multiplicidade de interdependncias, deixou de fazer sentido distinguir entre Norte e
Sul e, alis, igualmente entre centro, periferia e semiperiferia do sistema mund ial.
Quanto mais triunfalista a concepo da globalizao menor a visibilidade do Sul
ou das hierarquias do sistema mundial. A ideia que a globalizao est a ter um
impacto uniforme em todas as regies do mundo e em todos os sectores de actividade
e que os seus arquitectos, as empresas multinacionais, so infinitamente inovadoras e
tm capacidade organizativa suficiente para transformar a nova economia global numa
oportunidade sem precedentes.
Mesmo os autores que reconhecem que a globalizao al tamente selectiva, produz
assimetrias e tem uma geometria varivel, tendem a pensar que ela desestruturou as
hierarquias da economia mundial anterior. de novo o caso de Castells para quem a
globalizao ps fim ideia de "Sul" e mesmo ideia de "Tercei ro Mundo", na medida
em que cada vez maior a diferenciao entre pases e no interior de pases, entre
regies (1996: 92, 112). Segundo ele, a novssima diviso internacional do trabalhono ocorre entre pases, mas entre agentes econmicos e entre posi es distintas na
economia global que competem globalmente, usando a infraestrutura tecnolgica da
economia informacional e a estrutura organizacional de redes e fluxos (1996: 147).
Neste sentido, deixa igualmente de fazer sentido a distino entre centro, periferia e
semiperiferia no sistema mundial. A nova economia uma economia global distinta da
economia-mundo. Enquanto esta ltima assentava na acumulao de capital, obtida
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em todo o mundo, a economia global tem a capacidade para funcionar como uma
unidade em tempo real e escala planetria (1996: 92).
Sem querer minimizar a importncia das transformaes em curso, penso, no entanto,
que Castells leva longe demais a imagem da globalizao como o bulldozer
avassalador contra o qual no h resistncia p ossvel, pelo menos a nvel econmico.
E com isso leva longe de mais a ideia da segmentao dos processos de
incluso/excluso que esto a ocorrer. Em primeiro lugar, o prprio Castells quem
reconhece que os processos de excluso podem atingir um contine nte por inteiro
(frica) e dominar inteiramente sobre os processos de incluso num subcontinente (a
Amrica Latina) (1996: 115 -136). Em segundo lugar, mesmo admitindo que a
economia global deixou de necessitar dos espaos geo -polticos nacionais para se
reproduzir, a verdade que a dvida externa continua a ser contabilizada e cobrada ao
nvel de pases e por via dela e da financeirizao do sistema econmico que ospases pobres do mundo se transformaram, a partir da dcada de oitenta, em
contribuintes lquidos para a riqueza dos pases ricos. Em terceiro lugar, ao contrrio
do que se pode depreender do quadro traado por Castells, a convergncia entre
pases na economia global to significativa quanto a divergncia e isto
particularmente notrio ent re os pases centrais (Drache, 1999: 15). Porque as
polticas de salrios e de segurana social continuaram a ser definidas a nvel
nacional, as medidas de liberalizao desde a dcada de oitenta no reduziram
significativamente as diferenas nos custos do trabalho entre os diferentes pases.
Assim, em 1997, a remunerao mdia da hora de trabalho na Alemanha (32$ US) era
54% mais elevada que nos EUA (17.19$ US). E mesmo dentro da Unio Europeia,
onde tm estado em curso nas ltimas dcadas polticas de "in tegrao profunda", as
diferenas de produtividade e de custos salariais tm -se mantido com a excepo da
Inglaterra, em que os custos salariais foram reduzidos em 40% desde 1980. Tomando
a Alemanha Ocidental como termo de comparao (100%), a produtividad e do
trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e os custos salariais, 37,4%. Estes
nmeros eram para a Espanha, 62% e 66,9%, respectivamente; para a Inglaterra,
71,7% e 68%; e para a Irlanda, 69,5 e 71,8% (Drache, 1999: 24). Por ltimo, difcilsustentar que a selectividade e a fragmentao excludente da "nova economia"
destruiu o conceito de "Sul" quando, como vimos atrs, a disparidade de riqueza entre
pases pobres e pases ricos no cessou de aumentar nos ltimos vinte ou trinta anos.
certo que a liberalizao dos mercados desestruturou os processos de incluso e de
excluso nos diferentes pases e regies. Mas o importante analisar em cada pas
ou regio a ratio entre incluso e excluso. essa ratio que determina se um pas
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pertence ao Sul ou ao Norte, ao centro ou periferia ou semiperiferia do sistema
mundial. Os pases onde a integrao na economia mundial se processou
dominantemente pela excluso so os pases do Sul e da periferia do sistema
mundial.
Estas transformaes merecem uma ateno detalhada, mas no restam dvidas de
que s as viragens ideolgicas que ocorreram na comunidade cientfica, tanto no
Norte como no Sul, podem explicar que as iniquidades e assimetrias no sistema
mundial, apesar de terem aumentado, tenham perdido centrali dade analtica. Por isso,
o "fim do Sul", o "desaparecimento do Terceiro Mundo" so, acima de tudo, um
produto das mudanas de "sensibilidade sociolgica" que devem ser, elas prprias,
objecto de escrutnio. Em alguns autores, o fim do Sul ou do Terceiro M undo no
resulta de anlises especficas sobre o Sul ou o Terceiro Mundo, resulta to -s do
"esquecimento" a que estes so votados. A globalizao vista a partir dos pasescentrais tendo em vista as realidades destes. assim, muito particularmente, o c aso
dos autores que se centram na globalizao econmica. [9] Mas as anlises
culturalistas incorrem frequentemente no mesmo erro. A ttulo de exemplo, as teorias
da reflexividade aplicadas modernidade, globalizao ou acumulao (Beck,
1992; Giddens, 1991; Lash e Urry, 1996) e, em particular, a ideia de Giddens de que a
globalizao a "modernizao reflexiva", esquecem que a grande maioria da
populao mundial sofre as consequncias de uma modernidade ou de uma
globalizao nada reflexiva ou que a grande maioria dos operrios vivem em regimes
de acumulao que esto nos antp odas da acumulao reflexiva.
Tanto a falcia do determinismo como a falcia do des aparecimento do Sul tm vindo
a perder credibilidade medida que a globalizao se transforma num campo de
contestao social e poltica. Se para alguns ela continua a ser considerada como o
grande triunfo da racionalidade, da inovao e da liberdade capa z de produzir
progresso infinito e abundncia ilimitada, para outros ela antema j que no seu bojo
transporta a misria, a marginalizao e a excluso da grande maioria da populao
mundial, enquanto a retrica do progresso e da abundncia se torna em r ealidadeapenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados. Nestas circunstncias,
no admira que tenham surgido nos ltimos anos vrios discursos da globalizao.
Robertson (1998), por exemplo, distingue quatro grandes discursos da globalizao. O
discurso regional, como, por exemplo, o discurso asitico, o discurso europeu
ocidental, ou o discurso latino -americano, tem uma tonalidade civilizacional, sendo a
globalizao posta em confronto com as especificidades regionais. Dentro da mesma
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regio, pode haver diferentes subdiscursos. Por exemplo, em Frana h uma forte
tendncia para ver na globalizao uma ameaa "anglo -americana" sociedade e
cultura francesa e s de outros pases europeus. Mas, como diz Robertson, o anti -
globalismo dos franceses pode facilmente converter-se no projecto francs de
globalizao. O discurso disciplinar diz respeito ao modo como a globalizao vista
pelas diferentes cincias sociais. O trao mais saliente deste discurso a salincia
que dada globalizao econmica. O discurso ideolgicoentrecruza-se com
qualquer dos anteriores e diz respeito ava liao poltica dos processos de
globalizao. Ao discurso pro -globalizao contrape -se o discurso anti-globalizao e
em qualquer deles possvel distinguir posies de esquerda e de direita. Finalmente,
o discurso feminista que, tendo comeado por ser um discurso anti-globalizao -
privilegiando o local e atribuindo o global a uma preocupao masculina -, hoje
tambm um discurso da globalizao e distingue -se pela nfase dada aos aspectos
comunitrios da globalizao.
A pluralidade de discursos sob re a globalizao mostra que imperioso produzir uma
reflexo terica crtica da globalizao e de o fazer de modo a captar a complexidade
dos fenmenos que ela envolve e a disparidade dos interesses que neles se
confrontam. A proposta terica que apresen to aqui parte de trs aparentes
contradies que, em meu entender, conferem ao perodo histrico, em que nos
encontramos, a sua especificidade transicional. A primeira contradio entre
globalizao e localizao. O tempo presente surge -nos como dominado por um
movimento dialctico em cujo seio os processos de globalizao ocorrem de par com
processos de localizao. De facto, medida que a interdependncia e as interaces
globais se intensificam, as relaes sociais em geral parecem estar cada vez mais
desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos s opes, que atravessam
fronteiras at h pouco tempo policiadas pela tradio, pelo nacionalismo, pela
linguagem ou pela ideologia, e frequentemente por todos eles em conjunto. Mas, por
outro lado, e em aparente contradio com esta tendncia, novas identidades
regionais, nacionais e locais esto a emergir, construdas em torno de uma nova
proeminncia dos direitos s razes. Tais localismos, tanto se referem a territriosreais ou imaginados, como a formas de vida e de sociabilidade assentes nas relaes
face-a-face, na proximidade e na interactividade.
Localismos territorializados so, por exemplo, os protagonizados por povos que, ao fim
de sculos de genocdio e de opresso cultural, reivindicam, finalmente com algum
xito, o direito autodeterminao dentro dos seus territrios ancestrais. este o ca so
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dos povos indgenas da Amrica Latina e tambm da Austrlia, do Canad e da Nova
Zelndia. Por seu lado, os localismos translocalizados so protagonizados por grupos
sociais translocalizados, tais como os imigrantes rabes em Paris ou Londres, os
imigrantes turcos na Alemanha ou os imigrantes latinos nos EUA. Para estes grupos, o
territrio a ideia de territrio, enquanto forma de vida em escala de proximidade,
imediao, pertena, partilha e reciprocidade. Alis, esta reterritorializao, que
usualmente ocorre a um nvel infra-estatal, pode tambm ocorrer a um nvel supra -
estatal. Um bom exemplo deste ltimo processo a Unio Europeia, que, ao mesmo
tempo que desterritorializa as relaes sociais entre os cidados dos Estados
membros, reterritorializa as relaes sociais com Estados terceiros (a "Europa-
fortaleza").
A segunda contradio entre o Estado -nao e o no-Estado transnacional. A
anlise precedente sobre as diferentes dimenses da globalizao dominante mostrouque um dos pontos de maior controvrsia, nos debates sobre a globalizao, a
questo do papel do Estado na era da globalizao. Se, para uns, o Estado uma
entidade obsoleta e em vias de extino ou, em qualquer caso, muito fragilizada na
sua capacidade para organizar e regular a vida social, para outros, o Estado continua
a ser a entidade poltica central, no s porque a eroso da soberania muito
selectiva, como, sobretudo, porque a prpria institucionalidade da globalizao - das
agncias financeiras multilaterais desregula o da economia - criada pelos
Estados nacionais. Cada uma destas posies capta uma parte dos processos em
curso. Nenhuma delas, porm, faz justia s transformaes no seu conjunto porque
estas so, de facto, contraditrias e incluem tanto processos de estatizao - a tal
ponto que se pode afirmar que os Estados nunca foram to importantes como hoje -
como processos de desestatizao em que interaces, redes e fluxos transnacionais
da maior importncia ocorrem sem qualquer interferncia significativa do Estado, ao
contrrio do que sucedia no perodo anterior.
A terceira contradio, de natureza poltico -ideolgica, entre os que vem na
globalizao a energia finalmente incontestvel e imbatvel do capitalismo e os quevem nela uma oportunidade nova p ara ampliar a escala e o mbito da solidariedade
transnacional e das lutas anticapitalistas. A primeira posio , alis, defendida, tanto
pelos que conduzem a globalizao e dela beneficiam, como por aqueles para quem a
globalizao a mais recente e a mais virulenta agresso externa contra os seus
modos de vida e o seu bem estar.
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Estas trs contradies condensam os vectores mais importantes dos processos de
globalizao em curso. luz delas, fcil ver que as disjunes, as ocorrncias
paralelas e as confrontaes so de tal modo significativas que o que designamos por
globalizao , de facto, uma constelao de diferentes processos de globalizao e,
em ltima instncia, de diferentes e, por vezes, c ontraditrias, globalizaes.
Aquilo que habitu almente designamos por globalizao so, de facto, conjuntos
diferenciados de relaes sociais; diferentes conjuntos de relaes sociais do origem
a diferentes fenmenos de globalizao. Nestes termos, no existe estritamente uma
entidade nica chamada globalizao; existem, em vez disso, globalizaes; em rigor,
este termo s deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve
ser de tipo processual e no substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relaes
sociais, as globalizaes envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos.
Frequentemente, o discurso sobre globalizao a histria dos vencedores contadapelos prprios. Na verdade, a vitria aparentemente to absoluta que os derrotados
acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, errado pensar que as novas
e mais intensas interaces transnacionais produzidas pelos processos de
globalizao eliminaram as hierarquias no sistema mundial. Sem dvida que as tm
vindo a transformar profundamente, mas isso no signific a que as tenham eliminado.
Pelo contrrio, a prova emprica vai no sentido oposto, no sentido da intensificao
das hierarquias e das desigualdades. As contradies e disjunes acima assinaladas
sugerem que estamos num perodo transicional no que respeita a trs dimenses
principais: transio no sistema de hierarquias e desigualdades do sistema mundial;
transio no formato institucional e na complementaridade entre instituies; transio
na escala e na configurao dos c onflitos sociais e polticos.
A teoria a construir deve, pois, dar conta da pluralidade e da contradio dos
processos da globalizao em vez de os tentar subsumir em abstraces redutoras. A
teoria que a seguir proponho assenta no conceito de sistema mundial em transio.
Em transio porque contm em si o sistema mundial velho, em processo de profunda
transformao, e um conjunto de realidades emergentes que podem ou no conduzir aum novo sistema mundial, ou a outra qualquer entidade nova, sistmica ou no. Trata -
se de uma circunstncia que, quando captada em corte sincrnico, revela uma total
abertura quanto a possveis alternativas de evoluo. Tal abertura o sintoma de uma
grande instabilidade que configura uma situao de bifurcao, entendida em sentido
prigoginiano. uma situa o de profundos desequilbrios e de compromissos volteis
em que pequenas alteraes podem produzir grandes transformaes. Trata -se, pois,
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de uma situao caracterizada pela turbulncia e pela exploso das escalas. [10] A
teoria que aqui proponho pretende dar conta da situao de bifurcao e, como tal,
no pode deixar de ser, ela prpria, uma teoria aberta s poss ibilidades de caos.
O sistema mundial em transio constitudo por trs constelaes de prticas
colectivas: a constelao de prticas interestatais, a constelao de prticas
capitalistas globais e a constelao de prticas sociais e culturais transnacionais. As
prticas interestatais correspondem ao papel dos Estados no sistema mundial
moderno enquanto protagonistas da diviso internacional do trabalho no seio do qual
se estabelece a hierarquia entre centro, periferia e semiperiferia. As prticas
capitalistas globais so as prticas dos agentes econmicos cuja unidade espcio -
temporal de actuao real ou potencial o planeta. As prticas sociais e culturais
transnacionais so os fluxos transfronteirios de pessoas e de culturas, de informao
e de comunicao. Cada uma des tas constelaes de prticas constituda por: umconjunto de instituies que asseguram a sua reproduo, a complementaridade entre
elas e a estabilidade das
desigualdades que elas
produzem; uma forma de
poder que fornece a lgica
das interaces e legitima as
desigualdades e as
hierarquias; uma forma de
direito que fornece a
linguagem das relaes
intrainstitucionais e
interinstitucionais e o critrio
da diviso entre prticas
permitidas e proibidas; um
conflito estrutural que
condensa as tenses e
contradies matriciais dasprticas em questo; um
critrio de hierarquizao que
define o modo como se
cristalizam as desigualdades de poder e os conflitos em que eles se traduzem;
finalmente, ainda que todas as prticas do sistema mundial em transio esteja m
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envolvidas em todos os modos de produo de globalizao , nem todas esto
envolvidas em todos eles com a mesma intensidade.
O quadro n 1 descreve a composio interna de cada um dos componentes das
diferentes constelaes de prticas. Detenho -me apenas nos que exigem uma
explicao. Antes disso, porm, necessrio identificar o que distingue o sistema
mundial em transio (SMET) do sistema mundial moderno (SMM). Em primeiro lugar,
enquanto o SMM assenta em dois pilares, a economia -mundo e o sistema interestatal,
o SMET assenta em trs pilares e nenhum deles tem a consistncia de um sistema.
Trata-se antes de constelaes de prticas cuja coerncia interna intrinsecamente
problemtica. A maior complexidade (e tambm incoerncia) do sistema mundial em
transio reside em que nele os processos da globalizao vo muito para alm dos
Estados e da economia, envolvendo prticas sociais e culturais que no SMM estavam
confinadas aos Estados e sociedades nacionais ou sub -unidades deles. Alis, muitasdas novas prticas culturais transnacionais so originariamente transnacionais, ou
seja, constituem-se livres da referncia a uma nao ou a um Estado concretos ou,
quando recorrem a eles, fazem-no apenas para obter matria prima ou infraestrutura
local para a produo de transnacionalidade. Em segundo lugar, as interaces entre
os pilares do SMET so muito mais intensas que no SMM. Alis, enquanto no SMM os
dois pilares tinham contornos claros e bem distintos, no SMET h uma interpenetrao
constante e intensa entre as diferentes constelaes de prticas, de tal modo que
entre elas h zonas cinzentas ou hbridas onde as constelaes assumem um carcter
particularmente compsito. Por exemplo, a Organizao Mundial do Comrcio uma
instituio hbrida constituda po r prticas interestatais e por prticas capitalistas
globais do mesmo modo que os fluxos migratrios so uma instituio hbrida onde,
em graus diferentes, consoante as situaes, esto presentes as trs constelaes de
prticas. Em terceiro lugar, ainda q ue permaneam no SMET muitas das instituies
centrais do SMM, elas desempenham hoje funes diferentes sem que a sua
centralidade seja necessariamente afectada. Assim, o Estado, que no SMM
assegurava a integrao da economia, da sociedade e da cultura nac ionais, contribui
hoje activamente para a desintegrao da economia, da sociedade e da cultura a nvelnacional em nome da integrao destas na economia, na so ciedade e na cultura
globais.
Os processos de globalizao resultam das interaces entre as tr s constelaes de
prticas. As tenses e contradies, no interior de cada uma das constelaes e nas
relaes entre elas, decorrem das formas de poder e das desigualdades na
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distribuio do poder. Essa forma de poder a troca desigual em todas elas, mas
assume formas especficas em cada uma das constelaes que derivam dos recursos,
artefactos, imaginrios que so objecto de troca desigual. O aprofundamento e a
intensidade das interaces interestatais, globais e transnacionais faz com que as
formas de poder se exeram como trocas desiguais. Porque se trata de trocas e as
desigualdades podem, dentro de certos limites, ser ocultadas ou manipuladas, o
registo das interaces no SMET assume muitas vezes (e credivelmente) o registo da
horizontalidade atravs de ideias-fora como interdependncia, complementaridade,
coordenao, cooperao, rede, etc. Em face disto, os conflitos tendem a ser
experienciados como difusos, sendo por vezes difcil definir o que est em conflito ou
quem est em conflito. Mesmo assim possvel identificar em cada constelao de
prticas um conflito estrutural, ou seja, um conflito que organiza as lutas em torno dos
recursos que so objecto de trocas desiguais. No caso de prticas interestatais, o
conflito trava-se em torno da posio relativa na hierarquia do sistema mundial j que este que dita o tipo de trocas e graus de desigualdades. As lutas pela promoo ou
contra a despromoo e os movimentos na hierarquia do sistema mundial em que se
traduzem so processos de longa durao q ue em cada momento se cristalizam em
graus de autonomia e de dependncia. Ao nvel das prticas capitalistas globais, a luta
trava-se entre a classe capitalista global e todas as outras classes definidas a nvel
nacional, sejam elas a burguesia, a pequena burguesia e o operariado. Obviamente,
os graus de desigualdade da troca e os mecanismos que as produzem so diferentes
consoante as classes em confronto, mas em todos os casos trava-se uma luta pela
apropriao ou valorizao de recursos mercantis, sejam e les o trabalho ou o
conhecimento, a informao ou as matrias primas, o crdito ou a tecnologia. O que
resta das burguesias nacionais e a pequena burguesia so, nesta fase de transio, a
almofada que amortece e a cortina de fumo que obscurece a contradi o cada vez
mais nua e crua entre o capital global e o trabalho entretanto tr ansformado em recurso
global.
No domnio das prticas sociais e culturais transnacionais, as trocas desiguais dizem
respeito a recursos no-mercantis cuja transnacionalidade asse nta na diferena local,tais como, etnias, identidades, culturas, tradies, sentimentos de pertena,
imaginrios, rituais, literatura escrita ou oral. So incontveis os grupos sociais
envolvidos nestas trocas desiguais e as suas lutas travam -se em torno do
reconhecimento da apropriao ou da valorizao no mercantil desses recursos, ou
seja, em torno da igualdade na diferena e da diferena na igualdade.
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A interaco recproca e interpenetrao das trs constelaes de prticas faz com
que os trs tipos de conflitos estruturais e as trocas desiguais que os alimentam se
traduzam na prtica em conflitos compsitos, hbridos ou duais em que, de diferentes
formas, esto presentes elementos de cada um dos conflitos estruturais. A importncia
deste facto est no que designo por transconflitualidade, que consiste em assimilar um
tipo de conflito a outro e em experienciar um conflito de certo tipo como se ele fosse
de outro tipo. Assim, por exemplo, um conflito no interior das prticas capitalistas
globais pode ser assimilado a um conflito interestatal e ser vivido como tal pelas partes
em conflito. Do mesmo modo, um conflito interestatal pode ser assimilado a um
conflito de prticas culturais transnacionais e ser vivido como tal. A transconflitualidade
reveladora da abertura e da situao de bifurcao que caracterizam o SMET
porque, partida, no possvel saber em que direco se orienta a
transconflitualidade. No entanto, a direco que acaba por se impor decisiva, no s
para definir o perfil prtico do conflito, como o seu mbito e o seu resultado.
Sugiro que, nas condies presentes do SMET, a anlise dos processos de
globalizao e das hierarquias que eles produzem seja centrada nos critrios que
definem o global/local. Para alm da justificao acima dada, h uma outra que julgo
importante e que se pode resumir no que designo por voracidade diferenciadora do
global/local. No SMM a hierarquia entre centro, semiperiferia e periferia era articulvel
com uma srie de dicotomias que derivavam de uma variedade de formas de
diferenciao desigual. Entre a s formas de dicotomizao, saliento:
desenvolvido/subdesenvolvido, moderno/tradicional, superior/inferior,
universal/particular, racional/irracional, industrial/agrcola, urbano/rural. Cada uma
destas formas tinha um registo semntico prprio, uma tradio intelectual, uma
intencionalidade poltica e um horizonte projectivo. O que novo no SMET o modo
como a dicotomia global/local tem vindo a absorver todas as outras, no s no
discurso cientfico como no discurso poltico.
O global e o local so socialmente produzidos no interior dos processos de
globalizao. Distingo quatro processos de globalizao produzidos por outros tantosmodos de globalizao. Eis a minha definio de modo de produo de globalizao:
o conjunto de trocas desiguais pelo qual um determinado artefacto, condio, entidade
ou identidade local estende a sua influncia para alm das fronteiras nacionais e, ao
faz-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outro artefacto, condio,
entidade ou identidade rival.
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As implicaes mais importantes desta concepo so as seguintes. Em primeiro
lugar, perante as condies do sistema mundial em transio no existe globalizao
genuna; aquilo a que chamamos globalizao sempre a globalizao bem sucedida
de determinado localismo. Por outras palavras, no existe condio global para a qual
no consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma insero cultural
especfica. A segunda implicao que a globalizao pressupe a localizao. O
processo que cria o global, enquanto posio dominante nas trocas desiguais, o
mesmo que produz o local, enquanto posio dominada e, portanto, hierarquicamente
inferior. De facto, vivemos tanto num mundo de localizao como num mundo de
globalizao. Portanto, em termos analticos, seria igualmente correcto se a presente
situao e os nossos