boaventura de sousa santos_globalização

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    Boaventura de Sousa Santos

    OS PROCESSOS DA GLOBALIZAO

    1. Introduo

    Nas trs ltimas dcadas, as interaces transnacionais conheceram uma

    intensificao dramtica, desde a globalizao dos sistemas de produo e das

    transferncias financeiras, disseminao, a uma escala mundial, de informao e

    imagens atravs dos meios de comunicao social ou s deslocaes em massa de

    pessoas, quer como turistas, quer como trabalhadores migrantes ou ref ugiados. A

    extraordinria amplitude e profundidade destas interaces transnacionais levaram a

    que alguns autores as vissem como ruptura em relao s anteriores formas de

    interaces transfronteirias, um fenmeno novo designado por "globalizao" (

    Featherstone, 1990; Giddens, 1990; Albrow e King, 1990), "formao global" (Chase -

    Dunn, 1991), "cultura global" (Appadurai, 1990, 1997; Robertson, 1992), "sistema

    global" (Sklair, 1991), "modernidades globais'' (Featherstone et al., 1995), "processo

    global" (Friedman, 1994), "culturas da globalizao" (Jameson e Miyoshi, 1998) ou

    "cidades globais" (Sassen, 1991, 1994; Fortuna, 1997). Giddens define globalizao

    como "a intensificao de relaes sociais mundiais que unem localidades distantes

    de tal modo que os acontecimentos locais so condicionados por eventos que

    acontecem a muitas milhas de distncia e vice versa" e acusa os socilogos de uma

    acomodao indevida ideia de "sociedade" enquanto um sistema fechado (1990:64). No mesmo sentido, Featherstone desafia a sociologia a "teorizar e encontrar

    formas de investigao sistemtica que ajudem a clarificar estes processos

    globalizantes e estas formas destrutivas de vida social que tornam problemtico o que

    por muito tempo foi visto como o objecto mais bsico da sociologia: a sociedade

    concebida quase exclusivamente como o Estado-nao bem delimitado (1990: 2).

    Para o Grupo de Lisboa, a globalizao uma fase posterior internacionalizao e

    multinacionalizao porque, ao contrrio destas, anuncia o fim do s istema nacional

    enquanto ncleo central das actividades e estratgia s humanas organizadas (1994).

    Uma reviso dos estudos sobre os processos de globalizao mostra -nos que

    estamos perante um fenmeno multifacetado com dimenses econmicas, sociais,

    polticas, culturais, religiosas e jurdicas interligadas de modo complexo. Por esta

    razo, as explicaes monocausais e as interpretaes monolticas deste fenmeno

    parecem pouco adequadas. Acresce que a globalizao das ltimas trs dcadas, em

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    vez de se encaixar no padro moderno ocidental de globalizao - globalizao como

    homogeneizao e uniformizao - sustentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto

    pelas teorias da modernizao, como pelas teorias do desenvolvimento dependente,

    parece combinar a universalizao e a eliminao das fronteiras nacionais, por um

    lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade tnica e o regresso ao

    comunitarismo, por outro. Alm disso, interage de modo muito diversificado com outras

    transformaes no sistema mundial que lhe so concomitantes, tais como o aumento

    dramtico das desigualdades entre pases ricos e pases pobres e, no interior de cada

    pas, entre ricos e pobres, a sobrepopulao, a catstrofe ambiental, os conflitos

    tnicos, a migrao internacional m assiva, a emergncia de novos Estados e a

    falncia ou imploso de outros, a proliferao de guerras civis, o crime globalmente

    organizado, a democracia formal como uma condio poltica para a as sistncia

    internacional, etc.

    Antes de propor uma interpret ao da globalizao contempornea, descreverei

    brevemente as suas caractersticas dominantes, vistas de uma perspectiva

    econmica, poltica e cultural. De passo aludirei aos trs debates mais importantes

    que tem suscitado, formulveis em termos das seguin tes questes: 1) a globalizao

    um fenmeno novo ou velho?; 2) a globalizao monoltica, ou tem aspectos

    positivos e aspectos negativos?; 3) aonde conduz a crescente intensificao da

    globalizao? Nos debates acerca da globalizao h uma forte tend ncia para reduzi-

    la s suas dimenses econmicas. Sem duvidar da importncia de tal dimenso,

    penso que necessrio dar igual ateno s dimenses social, poltica e cultural.

    Falar de caractersticas dominantes da globalizao pode transmitir a ideia d e que a

    globalizao no s um processo linear, mas tambm um processo consensual.

    Trata-se obviamente de uma ideia falsa, como se mostrar adiante. Mas apesar de

    falsa , ela prpria, tambm dominante. E sendo falsa, no deixa de ter uma ponta de

    verdade. A globalizao, longe de ser consensual, , como veremos, um vasto e

    intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemnicos,

    por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro; e mesmono interior do ca mpo hegemnico h divises mais ou menos significativas. No

    entanto, por sobre todas as suas divises internas, o campo hegemnico actua na

    base de um consenso entre os seus mais influentes membros. esse consenso que

    no s confere globalizao as suas caractersticas dominantes, como tambm

    legitima estas ltimas como as nicas possveis ou as nicas adequadas. Da que, da

    mesma forma que aconteceu com os conceitos que a precederam, tais como

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    modernizao e desenvolvimento, o conceito de globalizao t enha uma componente

    descritiva e uma componente prescritiva. Dada a amplitude dos processos em jogo, a

    prescrio um conjunto vasto de prescries todas elas ancoradas no consenso

    hegemnico. Este consenso conhecido por "consenso neoliberal" ou "Consen so de

    Washington" por ter sido em Washington, em meados da dcada de oitenta, que ele

    foi subscrito pelos Estados centrais do sistema mundial, abrangendo o futuro da

    economia mundial, as polticas de desenvolvimento e especificamente o papel do

    Estado na economia. Nem todas as dimenses da globalizao esto inscritas do

    mesmo modo neste consenso, mas todas so afectadas pelo seu impacto. O

    consenso neoliberal propriamente dito um conjunto de quatro consensos adiante

    mencionados dos quais decorrem outros que sero igualmente referidos. Este

    consenso est hoje relativamente fragilizado em virtude de os crescentes conflitos no

    interior do campo hegemnico e da resistncia que tem vindo a ser protagonizada pelo

    campo subalterno ou contra -hegemnico. Isto tanto assim que o perodo actual jdesignado por ps-Consenso de Washington. No entanto, foi esse consenso que nos

    trouxe at aqui e por isso sua a paternidade das caractersticas hoj e dominantes da

    globalizao.

    Os diferentes consensos que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia -

    fora que, como tal, constitui um meta consenso. Essa ideia a de que estamos a

    entrar num perodo em que desapareceram as clivagens polticas profundas. As

    rivalidades imperialistas entre os pases hegemnicos, que no sculo XX provocaram

    duas guerras mundiais, desapareceram, dando origem interdependncia entre as

    grandes potncias, cooperao e integrao regionais. Hoje em dia, existem

    apenas pequenas guerras, quase todas na periferia do sistema mundial e muitas delas

    de baixa intensidade. De todo o modo, os pases centrais, atravs de vrios

    mecanismos (intervenes selectivas, manipulao da ajuda internacional, controlo

    atravs da dvida externa), tm meios para manter sob controlo esses focos de

    instabilidade. Por sua vez, os conflitos entre capital e trabalho que, por deficiente

    institucionalizao, contriburam para a emergncia do fascismo e do nazismo,

    acabaram sendo plenamente institucionalizados nos pases centrais depois daSegunda Guerra Mundial . Hoje, num perodo ps-fordista, tais conflitos esto a ser

    relativamente desinstitucionalizados sem que isso cause qualquer instabilidade

    porque, entretanto, a classe operria fragmentou -se e esto hoje a emergir novos

    compromissos de classe menos institucionalizados e a ter lugar em co ntextos menos

    corporativistas.

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    com o Canad, o Mxico e a Amrica Latina; o japons, baseado no Japo e nas suas

    relaes privilegiadas com os quatro pequenos tigres e com o resto da sia; e o

    europeu, baseado na Unio Europeia e nas rela es privilegiadas desta com a Europa

    de Leste e com o Norte de frica.

    Estas transformaes tm vindo a atravessar todo o sistema mundial, ainda que com

    intensidade desigual consoante a posio dos pases no sistema mundial. As

    implicaes destas transformaes para as polticas econmicas nacionais podem ser

    resumidas nas seguintes orientaes ou exigncias: as economias nacionais devem

    abrir-se ao mercado mundial e os preos domsticos devem tendencialmente

    adequar-se aos preos internacionais; deve ser dada prioridade economia de

    exportao; as polticas monetrias e fiscais devem ser orientadas para a reduo da

    inflao e da dvida pblica e para a vigilncia sobre a balana de pagamentos; os

    direitos de propriedade privada devem ser claros e invio lveis; o sector empresarial doEstado deve ser privatizado; a tomada de deciso privada, apoiada por preos

    estveis, deve ditar os padres nacionais de especializao; a mobilidade dos

    recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulao estatal da econ omia deve ser

    mnima; deve reduzir-se o peso das polticas sociais no oramento do Estado,

    reduzindo o montante das transferncias sociais, eliminando a sua universalidade, e

    transformando-as em meras medidas compensatrias em relao aos estratos sociais

    inequivocamente vulnerabilizados pela actuao do mercado. [1] Centrando-se no

    impacto urbano da globalizao econmica, Saskia Sassen detecta mudanas

    profundas na geografia, na composio e estrutura institucional da economia global

    (Sassen, 1994: 10). No que respeita nova geografia, argumenta que

    "comparativamente aos anos cinquenta, os anos oitenta conheceram um

    estreitamento da geografia da economia global e a acentuao do eixo Este -Leste.

    Isto torna-se evidente com o enorme crescimento do investimento dentro do que

    muitas vezes denominado pela Trade: os Estados Unidos da Amrica, a Europa

    Ocidental e o Japo" (Sassen, 1994:10). Outra caracterstica da nova geografia que

    o investimento estrangeiro directo, do qual, durante uns tempos, a Amrica Latina foi o

    maior beneficirio, dirigiu -se para Leste, Sul e Sudeste Asitico, onde a taxa anual decrescimento aumentou em mdia 37% por ano entre 1985 e 1989. Po r outro lado,

    enquanto nos anos cinquenta o maior fluxo internacional era o comrcio mundial,

    concentrado nas matrias-primas, outros produtos primrios e recursos

    manufacturados, a partir dos anos oitenta a distncia entre o crescimento da taxa de

    exportaes e o crescimento da taxa dos fluxos financeiros aumentou drasticamente:

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    aps a crise de 1981-82 e at 1990, o investimento estrangeiro directo global cresceu

    em mdia 29% por ano, uma subida histrica (Sassen, 1994: 14).

    Por fim, no que toca estrutura institucional, Sassen defende que estamos perante um

    novo regime internacional, baseado na ascendncia da banca e dos servios

    internacionais. As empresas multinacionais so agora um importante elemento na

    estrutura institucional, juntamente com os mercados financeiros globais e com os

    blocos comerciais transnacionais. De acordo com Sassen, todas estas mudanas

    contriburam para a formao de novos locais estratgicos na economia mundial:

    zonas de processamento para exportao, centros financeiros offshore e cidades

    globais (Sassen, 1994: 18). Uma das transformaes mais dramticas produzidas pela

    globalizao econmica neoliberal reside na enorme concentrao de poder

    econmico por parte das empresas multinacionais: das 100 maiores economias do

    mundo, 47 so empresas multinacionais; 70% do comrcio mundial controlado por500 empresas multinacionais; 1% das empresas multinacionais detm 50% do

    investimento directo estrangeiro (Clarke, 1996).

    Em suma, a globalizao econmica sustentada pelo co nsenso econmico

    neoliberal cujas trs principais inovaes institucionais so: restries drsticas

    regulao estatal da economia; novos direitos de propriedade internacional para

    investidores estrangeiros, inventores e criadores de inovaes susceptve is de serem

    objecto de propriedade intelectual (Robinson, 1995: 373); subordinao dos Estados

    nacionais s agncias multilaterais tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetrio

    Internacional (FMI) e a Organizao Mundial do Comrcio. Dado o carcter geral d este

    consenso, as receitas em que ele se traduziu foram aplicadas, ora com extremo rigor

    (o que designo por modo da jaula de ferro), ora com alguma flexibilidade (o modo da

    jaula de borracha). Por exemplo, os pases asiticos evitaram durante muito tempo

    aplicar integralmente as receitas e alguns deles, como, por exemplo, a ndia e a

    Malsia, conseguiram at hoje apli c-las apenas selectivamente.

    Como veremos a seguir, so os pases perifricos e semiperifricos os que mais estosujeitos s imposies do receiturio neoliberal, uma vez que este transformado

    pelas agncias financeiras multilaterais em condies para a renegociao da dvida

    externa atravs dos programas de ajustamento estrutural. Mas, dado o crescente

    predomnio da lgica financeira sobr e a economia real, mesmo os Estados centrais,

    cuja dvida pblica tem vindo a aumentar, esto sujeitos s decises das agncias

    financeiras de rating, ou seja, das empresas internacionalmente acreditadas para

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    avaliar a situao financeira dos Estados e os consequentes riscos e oportunidades

    que eles oferecem aos investidores internacionais. Por exemplo, a baixa de nota

    decretada pela empresa Moody's dvida pblica da Sucia e do Canad em meados

    da dcada de noventa foi decisiva para os cortes nas despesa s sociais adoptados

    pelos dois pases (Chossudovsky, 1997: 18).

    3. A globalizao social e as desigualdades

    Quanto s relaes scio-polticas, tem sido defendido que, embora o sistema mundial

    moderno tenha sido sempre estruturado por um sistema de classes, uma classe

    capitalista transnacional est hoje a emergir cujo campo de reproduo social o

    globo enquanto tal e que facilmente ultrapassa as organizaes nacionais de

    trabalhadores, bem como os Estados externamente fracos da periferia e da

    semiperiferia do sistema mundial.

    As empresas multinacionais so a principal forma institucional desta classe capitalista

    transnacional e a magnitude das transformaes que elas esto a suscitar na

    economia mundial est patente no facto de que mais de um ter o do produto industrial

    mundial produzido por estas empresas e de que uma percentagem muito mais

    elevada transaccionado entre elas. Embora a novidade organizacional das empresas

    multinacionais possa ser questionada, parece inegvel que a sua prevalnci a na

    economia mundial e o grau e eficcia da direco centralizada que elas adquirem as

    distingue das formas precedentes de empresas internacionais (Becker e S klar, 1987:

    2).

    O impacto das empresas multinacionais nas novas formaes de classe e na

    desigualdade a nvel mundial tem sido amplamente debatido nos ltimos anos. Dentro

    da tradio da teoria da dependncia, Evans foi um dos primeiros a analisar a "tripla

    aliana" entre as empresas multinacionais, a elite capitalista local e o que chama

    "burguesia estatal" enquanto base da dinmica de industrializao e do crescimento

    econmico de um pas semiperifrico como o Brasil (Evans, 1979, 1986). Becker eSklar, que propem a teoria do ps -imperialismo, falam de uma emergente burguesia

    de executivos, uma nova classe social sada das relaes entre o sector administrativo

    do Estado e as grandes empresas privadas ou privatizadas. Esta nova classe

    composta por um ramo local e por um ramo internacional. O ramo local, a burguesia

    nacional, uma categoria social mente ampla que envolve a elite empresarial, os

    directores de empresas, os altos funcionrios do Estado, lderes polticos e

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    profissionais influentes. Apesar de toda a heterogeneidade, estes diferentes grupos

    constituem, de acordo com os autores, uma class e, "porque os seus membros, apesar

    da diversidade dos seus interesses sectoriais, partilham uma situao comum de

    privilgio scio-econmico e um interesse comum de classe nas relaes do poder

    poltico e do controlo social que so intrnsecas ao modo de p roduo capitalista". O

    ramo internacional, a burguesia internacional, composta pelos gestores das

    empresas multinacionais e pelos dirigentes das instituies financei ras internacionais

    (1987: 7).

    As novas desigualdades sociais produzidas por esta estr utura de classe tm vindo a

    ser amplamente reconhecidas mesmo pelas agncias multilaterais que tm liderado

    este modelo de globalizao, como o Banco Mundial e o Fundo Monetrio

    Internacional. Para Evans, o modelo de industrializao e crescimento baseado na

    "tripla aliana" inerentemente injusto e apenas capaz de um tipo de redistribuio "damassa da populao para a burguesia estatal, as multinacionais e o capital local. A

    manuteno de um equilbrio delicado entre os trs parceiros milita contra qualq uer

    possibilidade de um tratamento srio s questes da redistribuio de rendimentos,

    mesmo que membros da elite expressem um apoio ao princpio terico da

    redistribuio de rendimentos" (1979: 288). Em comparaes mais recentes entre os

    modelos e padres de desigualdade social da Amrica Latina e do Leste Asitico,

    Evans acrescenta outros factores que, em sua opinio, podem ter contribudo para que

    o modelo de desenvolvimento asitico tenha produzido relativamente menos

    desigualdades que o modelo brasilei ro. Entre esses factores contabiliza, a favor do

    modelo asitico, a maior autonomia do Estado, a eficincia da burocracia estatal, a

    reforma agrria e a existncia de um perodo inicial de proteco em relao ao

    capitalismo dos pases centrais (1987). [2]

    hoje evidente que a iniquidade da distribuio da riqueza mundial se agravou nas

    duas ltimas dcadas: 54 dos 84 pases menos desenvolvidos viram o seu PNB per

    capita decrescer nos anos 80; em 14 deles a diminuio rondou os 35%; segundo o

    Relatrio do Programa para o Desenvolvimento das Naes Unidas de 2001 (PNUD,2001), mais de 1,2 bilies de pessoas (pouco menos que 1/4 da populao mundial)

    vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um rendimento inferior a um dlar por dia e

    outros 2,8 bilies vivem apenas com o dobro desse rendimento (PNUD, 2001: 9). [3]

    Segundo o Relatrio do Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto dos

    pases pobres, onde vive 85,2% da populao mundial, detm apenas 21,5% do

    rendimento mundial, enquanto o conjunto dos pases ricos, com 14,8% da populao

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    mundial, detm 78,5% do rendimento mundial. Uma famlia africana mdia consome

    hoje 20% menos do que consumia h 25 anos. Segundo o Banco Mundial, o

    continente africano foi o nico em que, entre 1970 e 1997, se verificou um decrscimo

    da produo alimentar (World Bank, 1998). O aumento das desigualdades tem sido

    to acelerado e to grande que adequado ver as ltimas dcadas como uma revolta

    das elites contra a redistribuio da riqueza com a qual se pe fim ao perodo de uma

    certa democratizao da riqueza iniciado no final da Segunda Gue rra Mundial.

    Segundo o Relatrio do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20%

    da populao mundial a viver nos pases mais ricos detinham, em 1997, 86% do

    produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1%. Segundo

    o mesmo Relatrio, mas relativo a 2001, no quinto mais rico concentram -se 79% dos

    utilizadores da internet. As desigualdades neste domnio mostram quo distantes

    estamos de uma sociedade de informao verdadeiramente global. A largura da banda

    de comunicao electrnica de So Paulo, uma das sociedades globais, superior de frica no seu todo. E a largura da banda usada em toda a Amrica Latina quase

    igual disponvel para a ci dade de Seul (PNUD, 2001: 3).

    Nos ltimos trinta anos a desigualdade na distribui o dos rendimentos entre pases

    aumentou dramaticamente. A diferena de rendimento entre o quinto mais rico e o

    quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de

    74 para 1. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a

    sua riqueza entre 1994 e 1998. A riqueza dos trs mais ricos bilionrios do mundo

    excede a soma do produto interno bruto dos 48 pases menos desenvo lvidos do

    mundo (PNUD, 2001).

    A concentrao da riqueza produzida pela globalizao neoli beral atinge propores

    escandalosas no pas que tem liderado a aplicao do novo modelo econmico, os

    EUA. J no final da dcada de oitenta, segundo dados do Federal Reserve Bank, 1%

    das famlias norte-americanas detinha 40% da riqueza do pas e as 20% ma is ricas

    detinham 80% da riqueza do pas. Segundo o Banco, esta concentrao no tinha

    precedentes na histria dos EUA, nem comparao com os outros pasesindustrializados (Mander, 1996: 11).

    No domnio da globalizao social, o consenso neoliberal o de que o crescimento e a

    estabilidade econmicos assentam na reduo dos custos salariais, para o que

    necessrio liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos laborais, proibindo

    a indexao dos salrios aos ganhos de produtividade e os ajusta mentos em relao

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    ao custo de vida e eliminando a prazo a legislao sobre salrio mnimo. O objectivo

    impedir "o impacto inflacionrio dos aumentos salariais". A contraco do poder de

    compra interno que resulta desta poltica deve ser suprida pela busc a de mercados

    externos. A economia , assim, dessocializada, o conceito de consumidor substitui o

    de cidado e o critrio de incluso deixa de ser o direito para passar a ser a solvncia.

    Os pobres so os insolventes (o que inclui os consumidores que ultrapassam os

    limites do sobreendividamento). Em relao a eles devem adoptar -se medidas de luta

    contra a pobreza, de preferncia medidas compensatrias que minorem, mas no

    eliminem, a excluso, j que esta um efeito inevitvel (e, por isso, justificado) do

    desenvolvimento assente no crescimento econmico e na competitividade a nvel

    global. Este consenso neoliberal entre os pases centrais imposto aos pases

    perifricos e semiperifricos atravs do controlo da dvida externa efectuado pelo

    Fundo Monetrio Internacional e pelo Banco Mundial. Da que estas duas instituies

    sejam consideradas responsveis pela "globalizao da pobreza" (Chossudovsky,1997). A nova pobreza globalizada no resulta de falta de recursos humanos ou

    materiais, mas to s do desemprego, da destruio das economias de subsistncia e

    da minimizao dos custos salariais escala mundial.

    Segundo a Organizao Mundial de Sade, os pases pobres tm a seu cargo 90%

    das doenas que ocorrem no mundo, mas no tm mais do 10% dos recursos

    globalmente gastos em sade; 1/5 da populao mundial no tem qualquer acesso a

    servios de sade modernos e metade da populao mundial no tem acesso a

    medicamentos essenciais. A rea da sade talvez aquela em que de modo mais

    chocante se revela a iniquidade do mundo. Segundo o ltimo Relatrio do

    Desenvolvimento Humano das Naes Unidas, em 1998, 968 milhes de pessoas no

    tinham acesso a gua potvel, 2,4 bilies (pouco menos que metade da populao

    mundial) no tinha acesso a cuidados bsicos de sad e; em 2000, 34 milhes de

    pessoas estavam infectadas com HIV/SIDA, dos quais 24,5 milhes na frica

    subsahariana (UNAIDS, 2000: 6); em 1998, morriam anualmente 12 milhes de

    crianas (com menos de 5 anos) de doenas curveis (UNICEF, 2000). As doenas

    que mais afectam a populao pobre do mundo so a malria, a tuberculose e adiarreia. [4] Ante este quadro no pode ser mais chocante a distribuio mundial dos

    gastos com a sade e a investigao mdica. Por exemplo, apenas 0,1% do

    oramento da pesquisa mdica e farmacutica mundial - cerca de 100 milhes de

    dlares em 1998 (PNUD, 2001: 3) - destinado malria, enquanto a quase

    totalidade dos 26,4 bilies de dlares investidos em pesquisa pelas multinacionais

    farmacuticas se destina s chamadas "doenas dos pases ricos": cancro, doenas

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    cardiovasculares, do sistema nervoso, doenas endcrinas e do metabolismo. O que

    no admira se tivermos em mente que a Amrica Lat ina representa apenas 4% das

    vendas farmacuticas globais e a frica, 1%. por isso tambm que apenas 1% das

    novas drogas comercializadas pelas companhias farmacuticas multinacionais entre

    1975 e 1997 se destinaram especificamente ao tratamento de doena s tropicais que

    afectam o Terceiro Mundo (Silverstein, 1999).

    Apesar do aumento chocante da desigualdade entre pases pobres e pases ricos,

    apenas 4 destes ltimos cumprem a sua obrigao moral de contribuir com 0.7% do

    Produto Interno Bruto para a ajuda ao desenvolvimento. Alis, segundo dados da

    OCDE, esta percentagem diminui entre 1987 e 1997 de 0,33 para 0,22 (OCDE/DAC,

    2000). O mais perverso dos programas de ajuda internacional o facto de eles

    ocultarem outros mecanismos de transferncias financeiras em que os fluxos so

    predominantemente dos pases mais pobres para os pases mais ricos. o que sepassa, por exemplo, com a dvida externa. O valor total da dvida externa dos pases

    da frica subsahariana (em milhes de dlares) aumentou entre 1 980 e 1995 de

    84.119 para 226.483; no mesmo perodo, e em percentagem do PIB, aumentou de

    30,6% para 81,3% e, em percentagem de exportaes, de 91,7% para 241,7% (World

    Bank, 1997: 247). No final do sc. XX, a frica pagava 1,31 dlar de dvida externa por

    cada dlar de ajuda internacional que recebia (World Bank, 2000). O Fundo Monetrio

    Internacional tem basicamente funcionado como a instituio que garante que os

    pases pobres, muitos deles cada vez mais pobres e individados, paguem as suas

    dvidas aos pases ricos (Estados, bancos privados, agncias multilaterais) nas

    condies (juros, por exemplo) impostas por estes. Mas as transferncias lquidas do

    Sul para o Norte assumem muitas outras formas como, por exemplo, a "fuga dos

    crebros": segundo as Nae s Unidas, cerca de 100.000 profissionais indianos

    imigram para os EUA, o que corresponde a uma perda de 2 bilies de dlare s para a

    ndia (PNUD, 2001: 5).

    4. A globalizao poltica e o Estado -nao

    A nova diviso internacional do trabalho, conjugada com a nova economia poltica

    "pr-mercado", trouxe tambm algumas importantes mudanas para o sistema

    interestatal, a forma poltica do sistema mundial moderno. Por um lado, os Estados

    hegemnicos, por eles prprios ou atravs das instituies internacionais que

    controlam (em particular as instituies financeiras multilaterais), comprimiram a

    autonomia poltica e a soberania efectiva dos Estados perifricos e semiperifricos

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    com uma intensidade sem precedentes, apesar de a capacidade de resistncia e

    negociao por parte destes ltimos poder variar imenso. [5]Por outro lado, acentuou -

    se a tendncia para os acordos p olticos interestatais (Unio Europeia, NAFTA,

    Mercosul). No caso da Unio Europeia, esses acordos evoluram para formas de

    soberania conjunta ou partilhada. Por ltimo, ainda que no menos importante, o

    Estado-nao parece ter perdido a sua centralidade t radicional enquanto unidade

    privilegiada de iniciativa econmica, social e poltica. A intensificao de interaces

    que atravessam as fronteiras e as prticas transnacionais corroem a capacidade do

    Estado-nao para conduzir ou controlar fluxos de pessoas , bens, capital ou ideias,

    como o fez no passado.

    O impacto do contexto internacional na regulao do Estado -nao, mais do que um

    fenmeno novo, inerente ao sistema interestatal moderno e est inscrito no prprio

    Tratado de Westphalia (1648) que o constitui. Tambm no novo o facto de ocontexto internacional tendencialmente exercer uma influncia particularmente forte no

    campo da regulao jurdica da economia, como o testemunham os vrios projectos

    de modelizao e unificao do direito econmic o desenvolvidos ao longo do sculo

    XX, por especialistas de direito comparado e concretizados por organizaes

    internacionais e governos nacionais. Como os prprios nomes dos projectos indicam,

    a presso internacional tem sido, tradicionalmente, no sentido da uniformizao e da

    normalizao, o que bem ilustrado pelos projectos pioneiros de Ernest Rabel, em

    incios da dcada de 30, e pela constituio do Instituto Internacional para a Unificao

    do Direito Privado (UNIDROIT) com o objectivo de unificar o d ireito dos contratos

    internacionais, o que conduziu, por exemplo, lei uniformizada na formao de

    contratos de vendas internacionais (ULFIS, 1964) e a Conveno na venda

    internacional de bens (CISG, 1980) (van der Velden, 1984: 233).

    A tradio da globalizao para alguns muito mais longa. Por exemplo, Tilly

    distingue quatro ondas de globalizao no passado milnio: nos sculos XIII, XVI, XIX

    e no final do sculo XX (1995). Apesar desta tradio histrica, o impacto actual da

    globalizao na regulao estatal parece ser um fenmeno qualitativamente novo, porduas razes principais. Em primeiro lugar, um fenmeno muito amplo e vasto que

    cobre um campo muito grande de interveno estatal e que requer mudanas

    drsticas no padro de interveno. Para Ti lly, o que distingue a actual onda de

    globalizao da onda que ocorreu no sculo XIX o facto de esta ltima ter

    contribudo para o fortalecimento do poder dos Estados centrais (Ocidentais),

    enquanto a actual globalizao produz o enfraquecimento dos pode res do Estado. A

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    presso sobre os Estados agora relativamente monoltica - o "Consenso de

    Washington" - e em seus termos o modelo de desenvolvimento orientado para o

    mercado o nico modelo compatvel com o novo regime global de acumulao,

    sendo, por isso, necessrio impor, escala mundial, polticas de ajustamento

    estrutural. Esta presso central opera e refora -se em articulaes com fenmenos e

    desenvolvimentos to dspares como o fim da guerra fria, as inovaes dramticas nas

    tecnologias de comunicao e de informao, os novos sistemas de produo flexvel,

    a emergncia de blocos regionais, a proclamao da democracia liberal como regime

    poltico universal, a imposio global do mesmo modelo de lei de proteco da

    propriedade intelectual, etc.

    Quando comparado com os processos de transnacionalizao precedentes, o alcance

    destas presses torna-se particularmente visvel uma vez que estas ocorrem aps

    dcadas de intensa regulao estatal da economia, tanto nos pases centrais, comonos pases perifricos e semiperifricos. A criao de requisitos normativos e

    institucionais para as operaes do modelo de desenvolvimento neoliberal envolve,

    por isso, uma destruio institucional e normativa de tal modo macia que afecta,

    muito para alm do papel do Estado na economia, a legitimidade global do Estad o

    para organizar a sociedade.

    O segundo factor de novidade da globalizao poltica actual que as assimetrias do

    poder transnacional entre o centro e a periferia do sistema mundial, i.e., entre o Norte

    e o Sul, so hoje mais dramticas do que nunca. De facto, a soberania dos Estados

    mais fracos est agora directamente ameaada, no tanto pelos Estados mais

    poderosos, como costumava ocorrer, mas sobretudo por agncias financeiras

    internacionais e outros a ctores transnacionais privados, tais como as empresas

    multinacionais. A presso , assim, apoiada por uma coligao transnacional

    relativamente coesa, utilizando r ecursos poderosos e mundiais.

    Tendo em mente a situao na Europa e na Amrica do Norte, Bo b Jessop identifica

    trs tendncias gerais na transformao do poder do Estado. Em primeiro lugar, adesnacionalizao do Estado , um certo esvaziamento do aparelho do Estado nacional

    que decorre do facto de as velhas e novas capacidades do Estado estarem a ser

    reorganizadas, tanto territorial como funcionalmente, aos nveis subnacional e

    supranacional. Em segundo lugar, a de-estatizao dos regimes polticos reflectida na

    transio do conceito de governo (government) para o de governao (governance),

    ou seja, de um modelo de regulao social e econmica assente no papel central do

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    O consenso do Estado fraco , sem dvida, o mais central e dele h ampla prova no

    que ficou descrito acima. Na sua base est a ideia de que o Estado o oposto da

    sociedade civil e potencialmente o seu inimigo. A economia neoliberal necessita de

    uma sociedade civil forte e para que ela exista necessrio que o Estado seja fraco. O

    Estado inerentemente opressivo e limitativo da sociedade civil, pelo que s

    reduzindo o seu tamanho possvel reduzir o seu dano e fortalecer a sociedade civil.

    Da que o Estado fraco seja tambm tendencialmente o Estado mnimo. Esta ideia fora

    inicialmente defendida pela teoria poltica liberal, mas foi gradualmente abandonada

    medida que o capitalismo nacional, enquanto relao social e poltica, foi exigindo

    maior interveno estatal. Deste modo, a ideia do Estado como oposto da sociedade

    civil foi substituda pela ideia do Estado como espelho da sociedade civil. A partir de

    ento um Estado forte passou a ser a condio de uma sociedade civil forte. O

    consenso do Estado fraco visa repor a ideia liberal original.

    Esta reposio tem-se revelado extremamente complexa e contraditria e, talvez por

    isso, o consenso do Estado fraco , de todos os consensos neoliberais, o mais frgil e

    mais sujeito a correces. que o " encolhimento" do Estado - produzido pelos

    mecanismos conhecidos, tais como a desregulao, as privatizaes e a reduo dos

    servios pblicos - ocorre no final de um perodo de cerca de cento e cinquenta anos

    de constante expanso regulatria do Estado. As sim, como referi atrs, desregular

    implica uma intensa actividade regulatria do Estado para pr fim regulao estatal

    anterior e criar as normas e as instituies que presidiro ao novo modelo de

    regulao social. Ora tal actividade s pode ser levada a cabo por um Estado eficaz e

    relativamente forte. Tal como o Estado tem de intervir para deixar de intervir, tambm

    s um Estado forte pode produzir com eficcia a sua fraqueza. Esta antinomia foi

    responsvel pelo fracasso da estratgia dos USAID e do Banc o Mundial para a

    reforma poltica do Estado russo depois do colapso do comunismo. Tais reformas

    assentaram no desmantelamento quase total do Estado sovitico na expectativa de

    que dos seus escombros emergisse um Estado fraco e, consequentemente, uma

    sociedade civil forte. Para surpresa dos progenitores, o que emergiu destas reformasfoi um governo de mafias (Hendley, 1995). Talvez por isso o consenso do Estado fraco

    foi o que mais cedo deu sinais de fragilizao, como bem demonstra o relatrio do

    Banco Mundial de 1997, dedicado ao Estado e no qual se reabilita a ideia de

    regulao estatal e se pe o acento tnico na eficcia da aco estatal (Banco

    Mundial, 1997).

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    O consenso da democracia liberalvisa dar forma poltica ao Estado fraco, mais uma

    vez recorrendo teoria poltica liberal que particularmente nos seus primrdios

    defendera a convergncia necessria entre liberdade poltica e liberdade econmica,

    as eleies livres e os mercados livres como os dois lados da mesma moeda: o bem

    comum obtvel atravs das aces de indivduos utilitaristas envolvidos em trocas

    competitivas com o mnimo de interferncia estatal. A imposio global deste

    consenso hegemnico tem criado muitos problemas quanto mais no seja porque se

    trata de um modelo monoltico a ser apl icado em sociedades e realidades muito

    distintas. Por essa razo, o modelo de democracia adoptado como condicionalidade

    poltica da ajuda e do financiamento internacional tende a converter -se numa verso

    abreviada, seno mesmo caricatural, da democracia li beral. Para constatar isto

    mesmo, basta comparar a realidade poltica dos pases sujeitos s condicionalidades

    do Banco Mundial e as caractersticas da democracia liberal, tal como so descritas

    por David Held: o governo eleito; eleies livres e justas em que o voto de todos oscidados tm o mesmo peso; um sufrgio que abrange todos os cidados

    independentemente de distines de raa, religio, classe, sexo, etc.; liberdade de

    conscincia, informao e expresso em todos os assuntos pblicos definidos com o

    tal com amplitude; o direito de todos os adultos a opor -se ao governo e serem

    elegveis; liberdade de associao e autonomia associativa entendida como o direito a

    criar associaes independentes, incluindo movimentos sociais, grupos de interesse e

    partidos polticos (1993: 21). Claro que a ironia desta enumerao que, luz dela, as

    democracias reais dos pases hegemnicos, se no so verses caricaturais, so pelo

    menos verses abreviadas do modelo de democracia liberal.

    O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial uma das componentes

    essenciais da nova forma poltica do Estado e tambm o que melhor procura vincular

    a globalizao poltica globalizao econmica. O modelo de desenvolvimento

    caucionado pelo Consenso de Washington reclama um novo quadro legal que seja

    adequado liberalizao dos mercados, dos investimentos e do sistema financeiro.

    Num modelo assente nas privatizaes, na iniciativa privada e na primazia dos

    mercados o princpio da ordem, da previsibilidade e da con fiana no pode vir docomando do Estado. S pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de

    instituies independentes e universais que criam expectativas normativamente

    fundadas e resolvem litgios em funo de quadros legais presumivelmente

    conhecidos de todos. A proeminncia da propriedade individual e dos contratos refora

    ainda mais o primado do direito. Por outro lado, a expanso do consumo, que o

    motor da globalizao econmica, no possvel sem a institucionalizao e

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    popularizao do crdito ao consumo e este no possvel sem a ameaa credvel de

    que quem no pagar ser sancionado por isso, o que, por sua vez, s possvel na

    medida em que exist ir um sistema judicial eficaz.

    Nos termos do Consenso de Washington, a responsabilidade central do Estado

    consiste em criar o quadro legal e dar condies de efectivo funcionamento s

    instituies jurdicas e judiciais que tornaro possvel o fluir rotineiro das infinitas

    interaces entre os cidados, os agentes e conmicos e o prprio Estado.

    Um outro tema importante nas anlises das dimenses polticas da globalizao o

    papel crescente das formas de governo supraestatal, ou seja, das instituies polticas

    internacionais, das agncias financeiras multilaterais, dos blocos poltico -econmicos

    supranacionais, dos Think Tanks globais, das diferentes formas de direito global (da

    nova lex mercatoria aos direitos humanos). Tambm neste caso o fenmeno no novo uma vez que o sistema interestatal em que temos vivido desde o sculo XVII

    promoveu, sobretudo a partir do sculo XIX, consensos normativos internacionais que

    se vieram a traduzir em organizaes internacionais. Ento, como hoje, essas

    organizaes tm funcionado como condomnios entre os pases centrais. O que

    novo a amplitude e o poder da institucionalidade transnacional que se tem vindo a

    constituir nas ltimas trs dcadas. Este um dos sentidos em que se tem falado da

    emergncia de um "governo global" (" global governance") (Murphy, 1994). O outro

    sentido, mais prospectivo e utpico, diz respeito indagao sobre as instituies

    polticas transnacionais que ho -de corresponder no futuro globalizao econmica

    e social em curso (Falk, 1995; Chase -Dunn et al, 1998). Fala-se mesmo da

    necessidade de se pensar num "Estado mundial" ou numa "federao mundial",

    democraticamente controlada e com a funo de resolver pacificamente os conflitos

    entre estados e entre agentes globais. Alguns autores transpem para o novo campo

    da globalizao os conflitos estruturais do perodo anterior e imaginam as

    contrapartidas polticas a que devem dar azo. Tal como a classe capitalista global est

    a tentar formar o seu estado global, de que a Organizao Mundial do Comrcio a

    guarda avanada, as foras socialistas devem criar um "partido mundial" ao servio deuma "comunidade socialista global" ou uma "comunidade democrtica global" baseada

    na racionalidade colectiva, na liberdade e na igua ldade (Chase-Dunn et al, 1998).

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    5. Globalizao cultural ou cultura global?

    A globalizao cultural assumiu um relevo especial com a chamada "viragem cultural"

    da dcada de oitenta, ou seja, com a mudana de nfase, nas cincias sociais, dos

    fenmenos scio-econmicos para os fenmenos culturais. A "viragem cultural" veio

    reacender a questo da primazia causal n a explicao da vida social e, com ela, aquesto do impacto da globalizao cultural. [6] A questo consiste em saber se as

    dimenses normativa e cultural do proce sso de globalizao desempenham um papel

    primrio ou secundrio. Enquanto para alguns elas tm um papel secundrio, dado

    que a economia mundial capitalista mais integrada pelo poder poltico -militar e pela

    interdependncia de mercado do que pelo consenso normativo e cultural (Chase-

    Dunn, 1991: 88), para outros o poder poltico, a dominao cultural e os valores e

    normas institucionalizadas precedem a dependncia de mercado no desenvolvimento

    do sistema mundial e na estabilidade do sistema interestatal (Me yer, 1987;Bergesen,

    1990). Wallerstein faz uma leitura sociolgica deste debate, defendendo que "no

    por acaso... que tem havido tanta discusso nestes ltimos dez -quinze anos acerca do

    problema da cultura. Isso decorrente da decomposio da dupla cren a do sculo

    dezanove nas arenas econmica e poltica como lugares de progresso social e,

    consequentemente, de salvao individua l" (Wallerstein, 1991a: 198).

    Embora a questo da matriz original da globalizao se ponha em relao a cada uma

    das dimenses da globalizao, no domnio da globalizao cultural que ela se pe

    com mais acuidade ou com mais frequncia. A questo de saber se o que sedesigna por globalizao no deveria ser mais correctamente designado por

    ocidentalizao ou americanizao (Ritzer, 1995), j que os valores, os artefactos

    culturais e os universos simblicos que se globalizam so ocidentais e, por vezes,

    especificamente norte-americanos, sejam eles o individualismo, a democracia poltica,

    a racionalidade econmica, o utilitaris mo, o primado do direito, o cinema, a

    publicidade, a televiso, a internet, etc.

    Neste contexto, os meios de comunicao electrnicos, especialmente a televiso,

    tm sido um dos grandes temas de debate. Embora a importncia da globalizao dos

    meios de comunicao social seja salientada por todos, nem todos retiram dela as

    mesmas consequncias. Appadurai, por exemplo, v nela um dos dois factores (o

    outro so as migraes em massa) responsveis pela ruptura entre o perodo de que

    acabamos de sair (o mundo da modernizao) e o perodo em que estamos a entrar (o

    mundo ps-electrnico) (1997). O novo perodo distingue -se pelo "trabalho da

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    imaginao" pelo facto de a imaginao se ter transformado num facto social,

    colectivo, o ter deixado de estar confinada n o indivduo romntico e no espao

    expressivo da arte, do mito e do ritual para passar a fazer parte da vida quotidiana dos

    cidados comuns (1997: 5). A imaginao ps -electrnica, combinada com a

    desterritorializao provocada pelas migraes, torna possv el a criao de universos

    simblicos transnacionais, "comunidades de sentimento", identidades prospectivas,

    partilhas de gostos, prazeres e aspiraes, em suma, o que Appadurai chama "esferas

    pblicas diaspricas" (1997: 4). De uma outra perspectiva, Octv io Ianni fala do

    "prncipe electrnico" - o conjunto das tecnologias electrnicas, informticas e

    cibernticas, de informao e de comunicao, com destaque para a televiso - que

    se transformou no "arquitecto da gora electrnica na qual todos esto repre sentados,

    reflectidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivncia ne m da experincia"

    (1998: 17).

    Esta temtica articula -se com uma outra igualmente central no mbito da globalizao

    cultural: o de saber at que ponto a globalizao acarreta hom ogeneizao. Se para

    alguns autores a especificidade das culturas locais e nacionais est em risco (Ritzer,

    1995), para outros, a globalizao tanto produz homogeneizao como diversidade

    (Robertson e Khondker, 1998). O isomorfismo institucional, sobretudo nos domnios

    econmico e poltico coexiste com a afirmao de diferenas e de particularismo. Para

    Friedman, a fragmentao cultural e tnica, por um lado, e a homogeneizao

    modernista, por outro, no so duas perspectivas opostas sobre o que est a

    acontecer, mas antes duas tendncias, ambas constitutivas da realidade global

    (Featherston, 1990: 311). Do mesmo modo, Appadurai faz questo de salientar que os

    media electrnicos, longe de serem o pio do povo, so processados pelos indivduos

    e pelos grupos de uma maneira activa, um campo frtil para exerccios de resistncia,

    selectividade e ironia (1997: 7). Appadurai tem vindo a salientar o crescente papel da

    imaginao na vida social dominada pela globalizao. atravs da imaginao que

    os cidados so disciplinados e controlados pelos Estados, mercados e os outros

    interesses dominantes, mas tambm da imaginao que os cidados desenvolvem

    sistemas colectivos de dissidncia e novos grafismos da vida colectiva (1999: 230).

    O que no fica claro nestes posicionamentos a elucidao das relaes sociais de

    poder que presidem produo tanto de homogeneizao como de diferenciao.

    Sem tal elucidao, estes dois "resultados" da globalizao so postos no mesmo p,

    sem que se conheam as vinculaes e a hierarquia entre eles. Esta elucidao

    particularmente til para analisar criticamente os processos de hibridizao ou de

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    crioulizao que resultam do confronto o u da coabitao entre tendncias

    homogeneizantes e tendncias particularizantes (Hall e McGrew, 1992). Segundo

    Appadurai, "a caracterstica central da cultura global hoje a poltica do esforo mtuo

    da mesmidade e da diferena para se canibalizarem uma outra e assim

    proclamarem o xito do sequestro as duas ideias gmeas do Iluminismo, o universal

    triunfante e particular resistente" (1997: 43).

    Um outro tema central na discusso sobre as dimenses culturais da globalizao -

    relacionado, alis, com o debate anterior - diz respeito questo de saber se ter

    emergido nas dcadas mais recentes uma cultura global (Featherstone, 1990; Waters,

    1995). h muito reconhecido que, pelo menos desde o sculo XVI, a hegemonia

    ideolgica da cincia, da economia, da poltica e da religio europeias produziu,

    atravs do imperialismo cultural, alguns isomorfismos entre as diferentes culturas

    nacionais do sistema mundial. A questo , agora, de saber se, para alm disso,certas formas culturais tero emergido nas dcada s mais recentes, que so

    originalmente transnacionais ou cujas origens nacionais so relativamente irrelevantes

    pelo facto de circularem pelo mundo mais ou menos desenraizadas das culturas

    nacionais. Tais formas culturais so identificadas por Appadurai co mo mediascapes e

    ideoscapes (1990), por Leslie Sklair (1991) como cultura -ideologia do consumismo,

    por Anthony Smith como um novo imperialismo cultural (1990). De uma outra

    perspectiva, a teoria dos regimes internacionais tem vindo a canalizar a nossa aten o

    para os processos de formao de consenso ao nvel mundial e para a emergncia de

    uma ordem normativa global (Keohane e Nye, 1977; Keohane, 1985; Krasner, 1983;

    Haggard e Simmons, 1987). E ainda de outra perspectiva, a teoria da estrutura

    internacional acentua a forma como a cultura ocidental tem criado actores sociais e

    significados culturais por todo o mundo (Thomas et al, 1987).

    A ideia de uma cultura global , claramente, um dos principais projectos da

    modernidade. Como Stephen Toulmin brilhanteme nte demonstrou (1990), pode ser

    identificado desde Leibniz at Hegel e desde o sculo XVII at ao nosso sculo. A

    ateno sociolgica concedida a esta ideia nas ltimas trs dcadas tem, contudo,uma base emprica especfica. Acredita-se que a intensificao dramtica de fluxos

    transfronteirios de bens, capital, trabalho, pessoas, ideias e informao originou

    convergncias, isomorfismos e hibridizaes entre as diferentes culturas nacionais,

    sejam elas estilos arquitectnicos, moda, hbitos alimentares ou consumo cultural de

    massas. Contudo, a maior parte dos autores sustenta que, apesar da sua importncia,

    estes processos esto longe de conduzirem a uma cultura global.

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    A cultura por definio um processo social construdo sobre a interseco entre o

    universal e o particular. Como salienta Wallerstein, "definir uma cultura uma questo

    de definir fronteiras" (1991a: 187). De modo convergente, Appadurai afirma que o

    cultural o campo das diferenas, dos contrastes e das comparaes (1997: 12).

    Poderamos at afirmar que a cultura , em sua definio mais simples, a luta contra a

    uniformidade. Os poderosos e envolventes processos de difuso e imposio de

    culturas, imperialisticamente definidos como universais, tm sido confrontados, em

    todo o sistema mundial, por mltiplos e engenhosos processos de resistncia,

    identificao e indigenizao culturais. Todavia, o tpico da cultura global tem tido o

    mrito de mostrar que a luta poltica em redor da homogeneizao e da uniformizao

    culturais transcendeu a configurao territorial em que teve lugar desde o sculo XIX

    at muito recentemente, isto , o Estado -nao.

    A este respeito, os Estados -nao tm tradicionalmente desempenhado um papel algo

    ambguo. Enquanto, externamente, tm sido os arautos da diversi dade cultural, da

    autenticidade da cultura nacional, internamente, tm promovido a homogeneizao e a

    uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas locais existentes no territrio

    nacional, atravs do poder da polcia, do direito, do sistema educaci onal ou dos meios

    de comunicao social, e na maior parte das vezes por todos eles em conjunto. Este

    papel tem sido desempenhado com intensidade e eficcia muito variadas nos Estados

    centrais, perifricos e semiperifricos e pode estar agora a mudar como p arte das

    transformaes em curso na capacidade r egulatria dos Estados-nao.

    Sob as condies da economia mundial capitalista e do sistema interestatal moderno,

    parece haver apenas espao para as culturas globais parciais. Parcial, quer em termos

    dos aspectos da vida social que cobrem, quer das regies do mundo que abrangem.

    Smith, por exemplo, fala de uma "famlia de culturas" europeia, que consiste em

    motivos e tradies polticas e culturais abrangentes e transnacionais (o direito

    romano, o humanismo renascentista, o racionalismo iluminista, o romantismo e a

    democracia), "que emergiram em diversas partes do continente em diferentesperodos, continuando em alguns casos a emergir, criando ou recriando sentimentos

    de reconhecimento e parentesco entre o s povos da Europa" (1990: 187). Vista de fora

    da Europa, particularmente a partir de regies e de povos intensivamente colonizados

    pelos europeus, esta famlia de culturas a verso quintessencial do imperialismo

    ocidental em nome do qual muita da tradi o e da identidade cultural foi destruda.

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    Dada a natureza hierrquica do sistema mundial, torna -se crucial identificar os grupos,

    as classes, os interesses e os Estados que definem as culturas parciais enquanto

    culturas globais, e que, por essa via, cont rolam a agenda da dominao poltica sob o

    disfarce da globalizao cultural. Se verdade que a intensificao dos contactos e da

    interdependncia transfronteirios abriu novas oportunidades para o exerccio da

    tolerncia, do ecumenismo, da solidariedade e do cosmopolitismo, no menos

    verdade que, simultaneamente, tm surgido novas formas e manifestaes de

    intolerncia, chauvinismo, de racismo, de xenofobia e, em ltima instncia, de

    imperialismo. As culturas globais parciais podem, desta forma, ter nat urezas, alcances

    e perfis polticos muito diferentes.

    Nas actuais circunstncias, s possvel visualizar culturas globais pluralistas ou

    plurais. [7] por isso que a maior parte dos autores assume uma postura prescritiva ou

    prospectiva sempre que fala de cultura global no singular. Para Hannerz, ocosmopolitismo "inclui uma postura favorvel coexistncia de culturas distintas na

    experincia individual... uma or ientao, uma vontade de interagir com o Outro... uma

    postura esttica e intelectual de abertura face a experincias culturais divergentes"

    (1990: 239). Chase-Dunn, por seu lado, enquanto retira do pedestal o "universalismo

    normativo" de Parsons (1971) como um trao essencial do sistema capitalista mundial

    vigente, prope que tal universalismo seja transposto para "um novo nvel de sentido

    socialista, embora sensvel s virtudes do pluralismo nacional e tnico" (1991: 105;

    Chase-Dunn et al, 1998). Por fim, Wallerstein imagina uma cultura mundial somente

    num mundo libertrio-igualitrio futuro, mas mesmo a haveria um lugar reservado

    para a resistncia cultural: a criao e a recriao constantes de entidades culturais

    particularistas "cujos objectos (reconhe cidos ou no) seriam a restaurao da

    realidade universal de liberda de e igualdade" (1991a: 199).

    No domnio cultural, o consenso neoliberal muito selectivo. Os fenmenos culturais

    s lhe interessam na medida em que se tornam mercadorias que como tal d evem

    seguir o trilho da globalizao econmica. Assim, o consenso diz, sobretudo, respeito

    aos suportes tcnicos e jurdicos da produo e circulao dos produtos das indstriasculturais como, por exemplo, as tecnologias de comunicao e da informao e o s

    direitos de propriedade intelectual.

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    6. A natureza das globalizaes

    A referncia feita nas seces anteriores s facetas dominantes do que usualmente se

    designa por globalizao, alm de ser omissa a respeito da teoria da globalizao que

    lhe subjaz, pode dar a ideia falsa de que a globalizao um fenmeno linear,

    monoltico e inequvoco. Esta ideia da globalizao, apesar de falsa, hojeprevalecente e tende a s -lo tanto mais quanto a globalizao extravasa do discurso

    cientfico para o discurso poltico e para a linguagem comum. Aparentemente

    transparente e sem complexidade, a ideia de globalizao obscurece mais do que

    esclarece o que se passa no mundo. E o que obscurece ou oculta , quando visto de

    outra perspectiva, to importante que a trans parncia e simplicidade da ideia de

    globalizao, longe de serem inocentes, devem ser considerados dispositivos

    ideolgicos e polticos dotados de intencionalidades especficas. Duas dessas

    intencionalidades devem ser salientadas.

    A primeira o que designo por falcia do determinismo. Consiste na inculcao da

    ideia de que a globalizao um processo espontneo, automtico, inelutvel e

    irreversvel que se intensifica e avana segundo uma lgica e uma dinmica prprias

    suficientemente fortes para se imp orem a qualquer interferncia externa. Nesta falcia

    incorrem no s os embaixadores da globalizao como os estudiosos mais

    circunspectos. Entre estes ltimos, saliento Manuel Castells para quem a globalizao

    o resultado inelutvel da revoluo nas tec nologias da informao. Segundo ele, a

    "nova economia informacional porque a produtividade e competitividade assentamna capacidade para gerar e aplicar eficientemente informao baseada em

    conhecimento" e global porque as actividades centrais da produ o, da distribuio

    e do consumo so organizadas escala mundial (1996: 66). A falcia consiste em

    transformar as causas da globalizao em efeitos da globalizao. A globalizao

    resulta, de facto, de um conjunto de decises polticas identificadas no t empo e na

    autoria. O Consenso de Washington uma deciso poltica dos Estados centrais como

    so polticas as decises dos Estados que o adoptaram com mais ou menos

    autonomia, com mais ou menos selectividade. No podemos esquecer que, em

    grande medida, e sobretudo ao nvel econmico e poltico, a globalizao hegemnica

    um produto de decises dos Estados nacionais. A desregulamentao da economia,

    por exemplo, tem sido um acto eminentemente poltico. A prova disso mesmo est na

    diversidade das respostas d os Estados nacionais s presses polticas decorrentes do

    Consenso de Washington. [8] O facto de as decises polticas terem sido, em geral,

    convergentes, tomadas durante um perodo de tempo curto, e de muitos Estados no

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    terem tido alternativa para decidirem de modo diferente, no elimina o carcter poltico

    das decises, apenas desloca o centro e o processo poltico destas. Igualmente

    poltica reflexo sobre as novas formas de Estado que esto a emergir em resultado

    da globalizao, sobre a nova distribuio poltica entre prticas nacionais, prticas

    internacionais e prticas globais, sobre o novo formato das polticas pblicas em face

    da crescente complexidade das questes sociais, a mbientais e de redistribuio.

    A segunda intencionalidade poltica do carcter no -poltico da globalizao a falcia

    do desaparecimento do Sul. Nos termos desta falcia as relaes Norte/Sul nunca

    constituram um verdadeiro conflito, mas durante muito tempo os dois plos das

    relaes foram facilmente identificveis, j que o Norte produzia produtos

    manufacturados, enquanto o Sul fornecia matrias primas. A situao comeou-se a

    alterar na dcada de sessenta (deram conta disso as teorias da dependncia ou do

    desenvolvimento dependente) e transformou -se radicalmente a partir da dcada deoitenta. Hoje, quer ao nvel financeiro, quer ao nvel da produo, qu er ainda ao nvel

    do consumo, o mundo est integrado numa economia global onde, perante a

    multiplicidade de interdependncias, deixou de fazer sentido distinguir entre Norte e

    Sul e, alis, igualmente entre centro, periferia e semiperiferia do sistema mund ial.

    Quanto mais triunfalista a concepo da globalizao menor a visibilidade do Sul

    ou das hierarquias do sistema mundial. A ideia que a globalizao est a ter um

    impacto uniforme em todas as regies do mundo e em todos os sectores de actividade

    e que os seus arquitectos, as empresas multinacionais, so infinitamente inovadoras e

    tm capacidade organizativa suficiente para transformar a nova economia global numa

    oportunidade sem precedentes.

    Mesmo os autores que reconhecem que a globalizao al tamente selectiva, produz

    assimetrias e tem uma geometria varivel, tendem a pensar que ela desestruturou as

    hierarquias da economia mundial anterior. de novo o caso de Castells para quem a

    globalizao ps fim ideia de "Sul" e mesmo ideia de "Tercei ro Mundo", na medida

    em que cada vez maior a diferenciao entre pases e no interior de pases, entre

    regies (1996: 92, 112). Segundo ele, a novssima diviso internacional do trabalhono ocorre entre pases, mas entre agentes econmicos e entre posi es distintas na

    economia global que competem globalmente, usando a infraestrutura tecnolgica da

    economia informacional e a estrutura organizacional de redes e fluxos (1996: 147).

    Neste sentido, deixa igualmente de fazer sentido a distino entre centro, periferia e

    semiperiferia no sistema mundial. A nova economia uma economia global distinta da

    economia-mundo. Enquanto esta ltima assentava na acumulao de capital, obtida

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    em todo o mundo, a economia global tem a capacidade para funcionar como uma

    unidade em tempo real e escala planetria (1996: 92).

    Sem querer minimizar a importncia das transformaes em curso, penso, no entanto,

    que Castells leva longe demais a imagem da globalizao como o bulldozer

    avassalador contra o qual no h resistncia p ossvel, pelo menos a nvel econmico.

    E com isso leva longe de mais a ideia da segmentao dos processos de

    incluso/excluso que esto a ocorrer. Em primeiro lugar, o prprio Castells quem

    reconhece que os processos de excluso podem atingir um contine nte por inteiro

    (frica) e dominar inteiramente sobre os processos de incluso num subcontinente (a

    Amrica Latina) (1996: 115 -136). Em segundo lugar, mesmo admitindo que a

    economia global deixou de necessitar dos espaos geo -polticos nacionais para se

    reproduzir, a verdade que a dvida externa continua a ser contabilizada e cobrada ao

    nvel de pases e por via dela e da financeirizao do sistema econmico que ospases pobres do mundo se transformaram, a partir da dcada de oitenta, em

    contribuintes lquidos para a riqueza dos pases ricos. Em terceiro lugar, ao contrrio

    do que se pode depreender do quadro traado por Castells, a convergncia entre

    pases na economia global to significativa quanto a divergncia e isto

    particularmente notrio ent re os pases centrais (Drache, 1999: 15). Porque as

    polticas de salrios e de segurana social continuaram a ser definidas a nvel

    nacional, as medidas de liberalizao desde a dcada de oitenta no reduziram

    significativamente as diferenas nos custos do trabalho entre os diferentes pases.

    Assim, em 1997, a remunerao mdia da hora de trabalho na Alemanha (32$ US) era

    54% mais elevada que nos EUA (17.19$ US). E mesmo dentro da Unio Europeia,

    onde tm estado em curso nas ltimas dcadas polticas de "in tegrao profunda", as

    diferenas de produtividade e de custos salariais tm -se mantido com a excepo da

    Inglaterra, em que os custos salariais foram reduzidos em 40% desde 1980. Tomando

    a Alemanha Ocidental como termo de comparao (100%), a produtividad e do

    trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e os custos salariais, 37,4%. Estes

    nmeros eram para a Espanha, 62% e 66,9%, respectivamente; para a Inglaterra,

    71,7% e 68%; e para a Irlanda, 69,5 e 71,8% (Drache, 1999: 24). Por ltimo, difcilsustentar que a selectividade e a fragmentao excludente da "nova economia"

    destruiu o conceito de "Sul" quando, como vimos atrs, a disparidade de riqueza entre

    pases pobres e pases ricos no cessou de aumentar nos ltimos vinte ou trinta anos.

    certo que a liberalizao dos mercados desestruturou os processos de incluso e de

    excluso nos diferentes pases e regies. Mas o importante analisar em cada pas

    ou regio a ratio entre incluso e excluso. essa ratio que determina se um pas

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    pertence ao Sul ou ao Norte, ao centro ou periferia ou semiperiferia do sistema

    mundial. Os pases onde a integrao na economia mundial se processou

    dominantemente pela excluso so os pases do Sul e da periferia do sistema

    mundial.

    Estas transformaes merecem uma ateno detalhada, mas no restam dvidas de

    que s as viragens ideolgicas que ocorreram na comunidade cientfica, tanto no

    Norte como no Sul, podem explicar que as iniquidades e assimetrias no sistema

    mundial, apesar de terem aumentado, tenham perdido centrali dade analtica. Por isso,

    o "fim do Sul", o "desaparecimento do Terceiro Mundo" so, acima de tudo, um

    produto das mudanas de "sensibilidade sociolgica" que devem ser, elas prprias,

    objecto de escrutnio. Em alguns autores, o fim do Sul ou do Terceiro M undo no

    resulta de anlises especficas sobre o Sul ou o Terceiro Mundo, resulta to -s do

    "esquecimento" a que estes so votados. A globalizao vista a partir dos pasescentrais tendo em vista as realidades destes. assim, muito particularmente, o c aso

    dos autores que se centram na globalizao econmica. [9] Mas as anlises

    culturalistas incorrem frequentemente no mesmo erro. A ttulo de exemplo, as teorias

    da reflexividade aplicadas modernidade, globalizao ou acumulao (Beck,

    1992; Giddens, 1991; Lash e Urry, 1996) e, em particular, a ideia de Giddens de que a

    globalizao a "modernizao reflexiva", esquecem que a grande maioria da

    populao mundial sofre as consequncias de uma modernidade ou de uma

    globalizao nada reflexiva ou que a grande maioria dos operrios vivem em regimes

    de acumulao que esto nos antp odas da acumulao reflexiva.

    Tanto a falcia do determinismo como a falcia do des aparecimento do Sul tm vindo

    a perder credibilidade medida que a globalizao se transforma num campo de

    contestao social e poltica. Se para alguns ela continua a ser considerada como o

    grande triunfo da racionalidade, da inovao e da liberdade capa z de produzir

    progresso infinito e abundncia ilimitada, para outros ela antema j que no seu bojo

    transporta a misria, a marginalizao e a excluso da grande maioria da populao

    mundial, enquanto a retrica do progresso e da abundncia se torna em r ealidadeapenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados. Nestas circunstncias,

    no admira que tenham surgido nos ltimos anos vrios discursos da globalizao.

    Robertson (1998), por exemplo, distingue quatro grandes discursos da globalizao. O

    discurso regional, como, por exemplo, o discurso asitico, o discurso europeu

    ocidental, ou o discurso latino -americano, tem uma tonalidade civilizacional, sendo a

    globalizao posta em confronto com as especificidades regionais. Dentro da mesma

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    regio, pode haver diferentes subdiscursos. Por exemplo, em Frana h uma forte

    tendncia para ver na globalizao uma ameaa "anglo -americana" sociedade e

    cultura francesa e s de outros pases europeus. Mas, como diz Robertson, o anti -

    globalismo dos franceses pode facilmente converter-se no projecto francs de

    globalizao. O discurso disciplinar diz respeito ao modo como a globalizao vista

    pelas diferentes cincias sociais. O trao mais saliente deste discurso a salincia

    que dada globalizao econmica. O discurso ideolgicoentrecruza-se com

    qualquer dos anteriores e diz respeito ava liao poltica dos processos de

    globalizao. Ao discurso pro -globalizao contrape -se o discurso anti-globalizao e

    em qualquer deles possvel distinguir posies de esquerda e de direita. Finalmente,

    o discurso feminista que, tendo comeado por ser um discurso anti-globalizao -

    privilegiando o local e atribuindo o global a uma preocupao masculina -, hoje

    tambm um discurso da globalizao e distingue -se pela nfase dada aos aspectos

    comunitrios da globalizao.

    A pluralidade de discursos sob re a globalizao mostra que imperioso produzir uma

    reflexo terica crtica da globalizao e de o fazer de modo a captar a complexidade

    dos fenmenos que ela envolve e a disparidade dos interesses que neles se

    confrontam. A proposta terica que apresen to aqui parte de trs aparentes

    contradies que, em meu entender, conferem ao perodo histrico, em que nos

    encontramos, a sua especificidade transicional. A primeira contradio entre

    globalizao e localizao. O tempo presente surge -nos como dominado por um

    movimento dialctico em cujo seio os processos de globalizao ocorrem de par com

    processos de localizao. De facto, medida que a interdependncia e as interaces

    globais se intensificam, as relaes sociais em geral parecem estar cada vez mais

    desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos s opes, que atravessam

    fronteiras at h pouco tempo policiadas pela tradio, pelo nacionalismo, pela

    linguagem ou pela ideologia, e frequentemente por todos eles em conjunto. Mas, por

    outro lado, e em aparente contradio com esta tendncia, novas identidades

    regionais, nacionais e locais esto a emergir, construdas em torno de uma nova

    proeminncia dos direitos s razes. Tais localismos, tanto se referem a territriosreais ou imaginados, como a formas de vida e de sociabilidade assentes nas relaes

    face-a-face, na proximidade e na interactividade.

    Localismos territorializados so, por exemplo, os protagonizados por povos que, ao fim

    de sculos de genocdio e de opresso cultural, reivindicam, finalmente com algum

    xito, o direito autodeterminao dentro dos seus territrios ancestrais. este o ca so

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    dos povos indgenas da Amrica Latina e tambm da Austrlia, do Canad e da Nova

    Zelndia. Por seu lado, os localismos translocalizados so protagonizados por grupos

    sociais translocalizados, tais como os imigrantes rabes em Paris ou Londres, os

    imigrantes turcos na Alemanha ou os imigrantes latinos nos EUA. Para estes grupos, o

    territrio a ideia de territrio, enquanto forma de vida em escala de proximidade,

    imediao, pertena, partilha e reciprocidade. Alis, esta reterritorializao, que

    usualmente ocorre a um nvel infra-estatal, pode tambm ocorrer a um nvel supra -

    estatal. Um bom exemplo deste ltimo processo a Unio Europeia, que, ao mesmo

    tempo que desterritorializa as relaes sociais entre os cidados dos Estados

    membros, reterritorializa as relaes sociais com Estados terceiros (a "Europa-

    fortaleza").

    A segunda contradio entre o Estado -nao e o no-Estado transnacional. A

    anlise precedente sobre as diferentes dimenses da globalizao dominante mostrouque um dos pontos de maior controvrsia, nos debates sobre a globalizao, a

    questo do papel do Estado na era da globalizao. Se, para uns, o Estado uma

    entidade obsoleta e em vias de extino ou, em qualquer caso, muito fragilizada na

    sua capacidade para organizar e regular a vida social, para outros, o Estado continua

    a ser a entidade poltica central, no s porque a eroso da soberania muito

    selectiva, como, sobretudo, porque a prpria institucionalidade da globalizao - das

    agncias financeiras multilaterais desregula o da economia - criada pelos

    Estados nacionais. Cada uma destas posies capta uma parte dos processos em

    curso. Nenhuma delas, porm, faz justia s transformaes no seu conjunto porque

    estas so, de facto, contraditrias e incluem tanto processos de estatizao - a tal

    ponto que se pode afirmar que os Estados nunca foram to importantes como hoje -

    como processos de desestatizao em que interaces, redes e fluxos transnacionais

    da maior importncia ocorrem sem qualquer interferncia significativa do Estado, ao

    contrrio do que sucedia no perodo anterior.

    A terceira contradio, de natureza poltico -ideolgica, entre os que vem na

    globalizao a energia finalmente incontestvel e imbatvel do capitalismo e os quevem nela uma oportunidade nova p ara ampliar a escala e o mbito da solidariedade

    transnacional e das lutas anticapitalistas. A primeira posio , alis, defendida, tanto

    pelos que conduzem a globalizao e dela beneficiam, como por aqueles para quem a

    globalizao a mais recente e a mais virulenta agresso externa contra os seus

    modos de vida e o seu bem estar.

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    Estas trs contradies condensam os vectores mais importantes dos processos de

    globalizao em curso. luz delas, fcil ver que as disjunes, as ocorrncias

    paralelas e as confrontaes so de tal modo significativas que o que designamos por

    globalizao , de facto, uma constelao de diferentes processos de globalizao e,

    em ltima instncia, de diferentes e, por vezes, c ontraditrias, globalizaes.

    Aquilo que habitu almente designamos por globalizao so, de facto, conjuntos

    diferenciados de relaes sociais; diferentes conjuntos de relaes sociais do origem

    a diferentes fenmenos de globalizao. Nestes termos, no existe estritamente uma

    entidade nica chamada globalizao; existem, em vez disso, globalizaes; em rigor,

    este termo s deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve

    ser de tipo processual e no substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relaes

    sociais, as globalizaes envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos.

    Frequentemente, o discurso sobre globalizao a histria dos vencedores contadapelos prprios. Na verdade, a vitria aparentemente to absoluta que os derrotados

    acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, errado pensar que as novas

    e mais intensas interaces transnacionais produzidas pelos processos de

    globalizao eliminaram as hierarquias no sistema mundial. Sem dvida que as tm

    vindo a transformar profundamente, mas isso no signific a que as tenham eliminado.

    Pelo contrrio, a prova emprica vai no sentido oposto, no sentido da intensificao

    das hierarquias e das desigualdades. As contradies e disjunes acima assinaladas

    sugerem que estamos num perodo transicional no que respeita a trs dimenses

    principais: transio no sistema de hierarquias e desigualdades do sistema mundial;

    transio no formato institucional e na complementaridade entre instituies; transio

    na escala e na configurao dos c onflitos sociais e polticos.

    A teoria a construir deve, pois, dar conta da pluralidade e da contradio dos

    processos da globalizao em vez de os tentar subsumir em abstraces redutoras. A

    teoria que a seguir proponho assenta no conceito de sistema mundial em transio.

    Em transio porque contm em si o sistema mundial velho, em processo de profunda

    transformao, e um conjunto de realidades emergentes que podem ou no conduzir aum novo sistema mundial, ou a outra qualquer entidade nova, sistmica ou no. Trata -

    se de uma circunstncia que, quando captada em corte sincrnico, revela uma total

    abertura quanto a possveis alternativas de evoluo. Tal abertura o sintoma de uma

    grande instabilidade que configura uma situao de bifurcao, entendida em sentido

    prigoginiano. uma situa o de profundos desequilbrios e de compromissos volteis

    em que pequenas alteraes podem produzir grandes transformaes. Trata -se, pois,

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    de uma situao caracterizada pela turbulncia e pela exploso das escalas. [10] A

    teoria que aqui proponho pretende dar conta da situao de bifurcao e, como tal,

    no pode deixar de ser, ela prpria, uma teoria aberta s poss ibilidades de caos.

    O sistema mundial em transio constitudo por trs constelaes de prticas

    colectivas: a constelao de prticas interestatais, a constelao de prticas

    capitalistas globais e a constelao de prticas sociais e culturais transnacionais. As

    prticas interestatais correspondem ao papel dos Estados no sistema mundial

    moderno enquanto protagonistas da diviso internacional do trabalho no seio do qual

    se estabelece a hierarquia entre centro, periferia e semiperiferia. As prticas

    capitalistas globais so as prticas dos agentes econmicos cuja unidade espcio -

    temporal de actuao real ou potencial o planeta. As prticas sociais e culturais

    transnacionais so os fluxos transfronteirios de pessoas e de culturas, de informao

    e de comunicao. Cada uma des tas constelaes de prticas constituda por: umconjunto de instituies que asseguram a sua reproduo, a complementaridade entre

    elas e a estabilidade das

    desigualdades que elas

    produzem; uma forma de

    poder que fornece a lgica

    das interaces e legitima as

    desigualdades e as

    hierarquias; uma forma de

    direito que fornece a

    linguagem das relaes

    intrainstitucionais e

    interinstitucionais e o critrio

    da diviso entre prticas

    permitidas e proibidas; um

    conflito estrutural que

    condensa as tenses e

    contradies matriciais dasprticas em questo; um

    critrio de hierarquizao que

    define o modo como se

    cristalizam as desigualdades de poder e os conflitos em que eles se traduzem;

    finalmente, ainda que todas as prticas do sistema mundial em transio esteja m

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    envolvidas em todos os modos de produo de globalizao , nem todas esto

    envolvidas em todos eles com a mesma intensidade.

    O quadro n 1 descreve a composio interna de cada um dos componentes das

    diferentes constelaes de prticas. Detenho -me apenas nos que exigem uma

    explicao. Antes disso, porm, necessrio identificar o que distingue o sistema

    mundial em transio (SMET) do sistema mundial moderno (SMM). Em primeiro lugar,

    enquanto o SMM assenta em dois pilares, a economia -mundo e o sistema interestatal,

    o SMET assenta em trs pilares e nenhum deles tem a consistncia de um sistema.

    Trata-se antes de constelaes de prticas cuja coerncia interna intrinsecamente

    problemtica. A maior complexidade (e tambm incoerncia) do sistema mundial em

    transio reside em que nele os processos da globalizao vo muito para alm dos

    Estados e da economia, envolvendo prticas sociais e culturais que no SMM estavam

    confinadas aos Estados e sociedades nacionais ou sub -unidades deles. Alis, muitasdas novas prticas culturais transnacionais so originariamente transnacionais, ou

    seja, constituem-se livres da referncia a uma nao ou a um Estado concretos ou,

    quando recorrem a eles, fazem-no apenas para obter matria prima ou infraestrutura

    local para a produo de transnacionalidade. Em segundo lugar, as interaces entre

    os pilares do SMET so muito mais intensas que no SMM. Alis, enquanto no SMM os

    dois pilares tinham contornos claros e bem distintos, no SMET h uma interpenetrao

    constante e intensa entre as diferentes constelaes de prticas, de tal modo que

    entre elas h zonas cinzentas ou hbridas onde as constelaes assumem um carcter

    particularmente compsito. Por exemplo, a Organizao Mundial do Comrcio uma

    instituio hbrida constituda po r prticas interestatais e por prticas capitalistas

    globais do mesmo modo que os fluxos migratrios so uma instituio hbrida onde,

    em graus diferentes, consoante as situaes, esto presentes as trs constelaes de

    prticas. Em terceiro lugar, ainda q ue permaneam no SMET muitas das instituies

    centrais do SMM, elas desempenham hoje funes diferentes sem que a sua

    centralidade seja necessariamente afectada. Assim, o Estado, que no SMM

    assegurava a integrao da economia, da sociedade e da cultura nac ionais, contribui

    hoje activamente para a desintegrao da economia, da sociedade e da cultura a nvelnacional em nome da integrao destas na economia, na so ciedade e na cultura

    globais.

    Os processos de globalizao resultam das interaces entre as tr s constelaes de

    prticas. As tenses e contradies, no interior de cada uma das constelaes e nas

    relaes entre elas, decorrem das formas de poder e das desigualdades na

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    distribuio do poder. Essa forma de poder a troca desigual em todas elas, mas

    assume formas especficas em cada uma das constelaes que derivam dos recursos,

    artefactos, imaginrios que so objecto de troca desigual. O aprofundamento e a

    intensidade das interaces interestatais, globais e transnacionais faz com que as

    formas de poder se exeram como trocas desiguais. Porque se trata de trocas e as

    desigualdades podem, dentro de certos limites, ser ocultadas ou manipuladas, o

    registo das interaces no SMET assume muitas vezes (e credivelmente) o registo da

    horizontalidade atravs de ideias-fora como interdependncia, complementaridade,

    coordenao, cooperao, rede, etc. Em face disto, os conflitos tendem a ser

    experienciados como difusos, sendo por vezes difcil definir o que est em conflito ou

    quem est em conflito. Mesmo assim possvel identificar em cada constelao de

    prticas um conflito estrutural, ou seja, um conflito que organiza as lutas em torno dos

    recursos que so objecto de trocas desiguais. No caso de prticas interestatais, o

    conflito trava-se em torno da posio relativa na hierarquia do sistema mundial j que este que dita o tipo de trocas e graus de desigualdades. As lutas pela promoo ou

    contra a despromoo e os movimentos na hierarquia do sistema mundial em que se

    traduzem so processos de longa durao q ue em cada momento se cristalizam em

    graus de autonomia e de dependncia. Ao nvel das prticas capitalistas globais, a luta

    trava-se entre a classe capitalista global e todas as outras classes definidas a nvel

    nacional, sejam elas a burguesia, a pequena burguesia e o operariado. Obviamente,

    os graus de desigualdade da troca e os mecanismos que as produzem so diferentes

    consoante as classes em confronto, mas em todos os casos trava-se uma luta pela

    apropriao ou valorizao de recursos mercantis, sejam e les o trabalho ou o

    conhecimento, a informao ou as matrias primas, o crdito ou a tecnologia. O que

    resta das burguesias nacionais e a pequena burguesia so, nesta fase de transio, a

    almofada que amortece e a cortina de fumo que obscurece a contradi o cada vez

    mais nua e crua entre o capital global e o trabalho entretanto tr ansformado em recurso

    global.

    No domnio das prticas sociais e culturais transnacionais, as trocas desiguais dizem

    respeito a recursos no-mercantis cuja transnacionalidade asse nta na diferena local,tais como, etnias, identidades, culturas, tradies, sentimentos de pertena,

    imaginrios, rituais, literatura escrita ou oral. So incontveis os grupos sociais

    envolvidos nestas trocas desiguais e as suas lutas travam -se em torno do

    reconhecimento da apropriao ou da valorizao no mercantil desses recursos, ou

    seja, em torno da igualdade na diferena e da diferena na igualdade.

  • 8/6/2019 Boaventura de Sousa Santos_Globalizao

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    A interaco recproca e interpenetrao das trs constelaes de prticas faz com

    que os trs tipos de conflitos estruturais e as trocas desiguais que os alimentam se

    traduzam na prtica em conflitos compsitos, hbridos ou duais em que, de diferentes

    formas, esto presentes elementos de cada um dos conflitos estruturais. A importncia

    deste facto est no que designo por transconflitualidade, que consiste em assimilar um

    tipo de conflito a outro e em experienciar um conflito de certo tipo como se ele fosse

    de outro tipo. Assim, por exemplo, um conflito no interior das prticas capitalistas

    globais pode ser assimilado a um conflito interestatal e ser vivido como tal pelas partes

    em conflito. Do mesmo modo, um conflito interestatal pode ser assimilado a um

    conflito de prticas culturais transnacionais e ser vivido como tal. A transconflitualidade

    reveladora da abertura e da situao de bifurcao que caracterizam o SMET

    porque, partida, no possvel saber em que direco se orienta a

    transconflitualidade. No entanto, a direco que acaba por se impor decisiva, no s

    para definir o perfil prtico do conflito, como o seu mbito e o seu resultado.

    Sugiro que, nas condies presentes do SMET, a anlise dos processos de

    globalizao e das hierarquias que eles produzem seja centrada nos critrios que

    definem o global/local. Para alm da justificao acima dada, h uma outra que julgo

    importante e que se pode resumir no que designo por voracidade diferenciadora do

    global/local. No SMM a hierarquia entre centro, semiperiferia e periferia era articulvel

    com uma srie de dicotomias que derivavam de uma variedade de formas de

    diferenciao desigual. Entre a s formas de dicotomizao, saliento:

    desenvolvido/subdesenvolvido, moderno/tradicional, superior/inferior,

    universal/particular, racional/irracional, industrial/agrcola, urbano/rural. Cada uma

    destas formas tinha um registo semntico prprio, uma tradio intelectual, uma

    intencionalidade poltica e um horizonte projectivo. O que novo no SMET o modo

    como a dicotomia global/local tem vindo a absorver todas as outras, no s no

    discurso cientfico como no discurso poltico.

    O global e o local so socialmente produzidos no interior dos processos de

    globalizao. Distingo quatro processos de globalizao produzidos por outros tantosmodos de globalizao. Eis a minha definio de modo de produo de globalizao:

    o conjunto de trocas desiguais pelo qual um determinado artefacto, condio, entidade

    ou identidade local estende a sua influncia para alm das fronteiras nacionais e, ao

    faz-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outro artefacto, condio,

    entidade ou identidade rival.

  • 8/6/2019 Boaventura de Sousa Santos_Globalizao

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    As implicaes mais importantes desta concepo so as seguintes. Em primeiro

    lugar, perante as condies do sistema mundial em transio no existe globalizao

    genuna; aquilo a que chamamos globalizao sempre a globalizao bem sucedida

    de determinado localismo. Por outras palavras, no existe condio global para a qual

    no consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma insero cultural

    especfica. A segunda implicao que a globalizao pressupe a localizao. O

    processo que cria o global, enquanto posio dominante nas trocas desiguais, o

    mesmo que produz o local, enquanto posio dominada e, portanto, hierarquicamente

    inferior. De facto, vivemos tanto num mundo de localizao como num mundo de

    globalizao. Portanto, em termos analticos, seria igualmente correcto se a presente

    situao e os nossos