santos, boaventura de souza. (org.). a globalização e as ciências sociais

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LINHA DE HORIZONTE

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CAPTULO 1

Os processos da globalizao

Boaventura de Sousa Santos

Nas trs ltimas dcadas, as interaces transnacionais conheceram uma intensificao dramtica, desde a globalizao dos sistemas de produo e das transferncias financeiras, disseminao, a uma escala mundial, de informao e imagens atravs dos meios de comunicao social ou s deslocaes em massa de pessoas, quer como turistas, quer como trabalhadores migrantes ou refugiados. A extraordinria amplitude e profundidade destas interaces transnacionais levaram a que alguns autores as vissem como ruptura em relao s anteriores formas de interaces transfronteirias, um fenmeno novo designado por "globalizao" (Featherstone, 1990; Giddens, 1990; Albrow e King, 1990), "formao global" (Chase-Dunn, 1991)1, "cultura global" (Appadurai, 1990, 1997; Robertson, 1992), "sistema global" (Sklair, 1991), "modernidades globais" (Featherstone et al, 1995), "processo global" (Friedman, 1994), "culturas da globalizao" (Jameson e Miyoshi, 1998) ou "cidades globais" (Sassen, 1991, 1994; Fortuna, 1997).

1. Repare-se, no entanto, que Chase-Dunn enfatiza a continuidade dos acontecimentos recentes no seio do sistema mundial.

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Giddens define globalizao como lia intensificao de relaes sociais mundiais que unem localidades distantes de tal modo que os locais so condicionados por eventos que acontecem a mUltas mtlhas de distncia e vice versa" e acusa os socilogos de uma acomodao indevida ideia de IIsociedade" enquanto um sistema fechado (1990: 64). No mesmo sentido Featherstone desafia a sociologia a "teorizar e encontrar formas de sistemtica que ajudem a clarificar estes processos globalizantes e estas formas destrutivas de vida social que tornam problemtico o que por muito tempo foi visto como o objecto mais bsico da sociologia: a sociedade concebida quase exclusivamente como o Estado-nao bem delimitado (1990: 2). Para o Grupo de Lisboa, a globalizao uma fase posterior internacionalizao e multinacionalizao porque, ao contrrio destas, anuncia o fim do sistema nacional enquanto ncleo central das actividades e estratgias humanas organizadas (1994). Uma reviso dos estudos sobre os processos de globalizao mostranos que estamos perante um fenmeno multifacetado com dimenses econmicas, sociais, polticas, culturais, religiosas e jurdicas interligadas de modo complexo. Por esta razo, as explicaes monocausais e as interpretaes monolticas deste fenmeno parecem pouco adequadas. Acresce que a globalizao das ltimas trs dcadas, em vez de se encaixar no padro moderno ocidental de globalizao - globalizao como homogeneizao e uniformizao - sustentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto pelas teorias da modernizao, como pelas teorias do desenvolvimento dependente, parece combinar a universalizao e a eliminao das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade tnica e o regresso ao comunitarismo, por outro. Alm disso, interage de modo muito diversificado com outras transformaes no sistema mundial que lhe so concomitantes, tais como o aumento dramtico das desigualdades entre pases ricos e pases pobres e, no interior de cada pas, entre e pobres, a sobrepopulao, a catstrofe ambiental, os conflitos tnicos, a migrao internacional massiva, a emergncia de novos Estados e a falncia ou imploso de outros, a proliferao de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal como uma condio poltica para a assistncia internacional, etc. Antes de propor uma interpretao da globalizao contempornea, descreverei brevemente as suas caractersticas dominantes, vistas de uma perspectiva econmica, poltica e cultural. De passo aludirei aos trs debates mais importantes que tem suscitado, formulveis em termos das seguintes questes: 1) a globalizao um fenmeno novo ou velho? j 2) a

globalizao monoltica, ou tem aspectos pOSItIVOS e aspectos negativos?j 3) aonde conduz a crescente intensificao da globalizao? Nos debates acerca da globalizao h uma forte tendncia para reduzi-la s suas dimenses econmicas. Sem duvidar da importncia de tal dimenso, penso que necessrio dar igual ateno s dimenses social, poltica e cultural.

Falar de caractersticas dominantes da globalizao pode transmitir a ideia de que a globalizao no s um processo linear, mas tambm um processo consensual. Trata-se obviamente de uma ideia falsa, como se mostrar adiante. Mas apesar de falsa , ela prpria, tambm dominante. E sendo falsa, no deixa de ter uma ponta de verdade. A globalizao, longe de ser consensual, , como veremos, um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemnicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outroj e mesmo no interior do campo hegemnico h divises mais ou menos significativas. No entanto, por sobre todas as suas divises internas, o campo hegemnico actua na base de um consenso entre os seus mais influentes membros. esse consenso que no s confere globalizao as suas caractersticas dominantes, como tambm legitima estas ltimas como as nicas possveis ou as nicas adequadas. Da que, da mesma forma que aconteceu com os conceitos que a precederam, tais como modernizao e desenvolvimento, o conceito de globalizao tenha uma componente descritiva e uma componente prescritiva. Dada a amplitude dos processos em jogo, a prescrio um conjunto vasto de prescries todas elas ancoradas no consenso hegemnico. Este consenso conhecido por IIconsenso neoliberal" ou "Consenso de Washington" por ter sido em Washington, em meados da dcada de oitenta, que ele foi subscrito pelos Estados centrais do sistema mundial, abrangendo o futuro da economia mundial, as polticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia. Nem todas as dimenses da globalizao esto inscritas do mesmo modo neste consenso, mas todas so afectadas pelo seu _ impacto. O consenso neoliberal propriamente dito um conjunto de quatro consensos adiante mencionados dos quais decorrem outros que sero igualmente referidos. Este consenso est hoje relativamente fragilizado em virtude de os crescentes conflitos no interior do campo hegemnico e da resistncia que tem vindo a ser protagonizada pelo campo subalterno ou contrahegemnico. Isto tanto assim que o perodo actual j designado por psConsenso de Washington. No entanto, foi esse consenso que nos trouxe at aqui e por isso sua a paternidade das caractersticas hoje dominantes da globalizao.

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Os diferentes consensos que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia-fora que, como tal, constitui um meta consenso. Essa ideia a de que estamos a entrar num perodo em que desapareceram as clivagens polticas profundas. As rivalidades imperialistas entre os pases hegemnicos, que no sculo :xx provocaram duas guerras mundiais, desapareceram, dando origem interdependncia entre as grandes potncias, cooperao e integrao regionais. Hoje em dia, existem apenas pequenas guerras, quase todas na periferia do sistema mundial e muitas delas de baixa intensidade. De todo o modo, os pases centrais, atravs de vrios mecanismos (intervenes selectivas, manipulao da ajuda internacional, controlo atravs da dvida externa), tm meios para manter sob controlo esses focos de instabilidade. Por sua vez, os conflitos entre capital e trabalho que, por deficiente institucionalizao, contriburam para a emergncia do fascismo e do nazismo, acabaram plenamente institucionalizados nos pases centrais depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, num perodo ps-fordista, tais conflitos esto a ser relativamente desinstitucionalizados sem que isso cause qualquer instabilidade porque, entretanto, a classe operria fragmentouse e esto hoje a emergir novos compromissos de classe menos institucionalizados e a ter lugar em contextos menos corporativistas. Deste meta consenso faz ainda parte a ideia de que desapareceram igualmente as clivagens entre diferentes padres de transformao social. Os trs primeiros quartis do sculo :xx foram dominados pelas rivalidades entre dois padres antagnicos: a revoluo e o reformismo. Ora se, por um lado, o colapso da Unio Sovitica e a queda do Muro de Berlim significaram o fim do paradigma revolucionrio, a crise do Estado-Providncia nos pases centrais e semiperifricos significa que est igualmente condenado o paradigma reformista. O conflito Leste/Oeste desapareceu e arrastou consigo o conflito Norte/Sul que nunca foi um verdadeiro conflito e que agora um campo frtil de interdependncias e cooperaes. Em face disto, a transformao social , a partir de agora, no uma questo poltica, e sim uma questo tcnica. Ela no mais que a repetio acelerada das relaes cooperativas entre grupos sociais e entre Estados. Fukuyama (1992), com a sua ideia do fim da histria, deu expresso e divulgao a este metaconsenso. Huntington (1993) secundou-o com a sua ideia do "choque de civilizaes", ao defender que as clivagens tinham deixado de ser polticas para passarem a ser civilizacionais. a ausncia das clivagens polticas da modernidade ocidental que leva Huntington a reinventlas em termos de uma ruptura entre o Ocidente, agora entendido como tipo de civilizao, e o que misteriosamente designa por "conexo islmica confucionista". Este metaconsenso e os que decorrem subjazem s caracte-

rsticas dominantes da globalizao em suas mltiplas facetas a seguir descritas. Pelo que ficou dito atrs e pela anlise que se seguir, torna-se claro que as caractersticas dominantes da globalizao so as caractersticas da globalizao dominante ou hegemnica. Mais adiante faremos a distino, para ns crucial, entre globalizao hegemnica e globalizao contrahegemnica.

Froebel, Heinrichs e Kreye (1980) foram provavelmente os primeiros a falar, no incio da dcada de oitenta, da emergncia de uma nova diviso internacional do trabalh0 2 , baseada na globalizao da produo levada a cabo pelas empresas multinacionais, gradualmente convertidas em actores centrais da nova economia mundial. Os traos principais desta nova economia mundial so os seguintes: economia dominada pelo sistema financeiro e pelo investimento escala global; processos de produo flexveis e multilocais; baixos custos de transporte; revoluo nas tecnologias de informao e de comunicao; desregulao das economias nacionais; preeminncia das agncias financeiras multilaterais; emergncia de trs grandes capitalismos transnacionais: o americano, baseado nos EUA e nas relaes privilegiadas deste pas com o Canad, o Mxico e a Amrica Latina; o japons, baseado no Japo e nas suas relaes privilegiadas com os quatro pequenos tigres e com o resto da sia; e o europeu, baseado na Unio Europeia e nas relaes privilegiadas desta com a Europa de Leste e com o Norte de frica. Estas transformaes tm vindo a atravessar todo o sistema mundial, ainda que com intensidade desigual consoante a posio dos pases no sistema mundial. As implicaes destas transformaes para as polticas econmicas nacionais podem ser resumidas nas seguintes orientaes ou exigncias: as economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preos domsticos devem tendencialmente adequar-se aos preos internacionais; deve ser dada prioridade economia de exportao; as polticas monetrias e fiscais devem ser orientadas para a reduo da inflao e da

2. Walton (1985) refere trs formas sucessivas de "divises internacionais do trabalho", caracterizando-se a ltima e actual pela globalizao da produo levada a cabo pelas multinacionais. Uma reviso das diferentes abordagens s "novas divises internacionais do trabalho", pode ser vista em Jenkins (1984). Ver igualmente Gordon (1988).

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dvida pblica e para a vigilncia sobre a balana de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e inviolveis; o sector empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de deciso privada, apoiada por preos estveis, deve ditar os padres nacionais de especializao; a mobilidade dos recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulao estatal da economia deve ser mnima; deve reduzir-se o peso das polticas sociais no oramento do Estado, reduzindo o montante das transferncias sociais, eliminando a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatrias em relao aos estratos sociais inequivocamente vulnerabilizados pela actuao do mercado. 3 Centrando-se no impacto urbano da globalizao econmica, Saskia Sassen detecta mudanas profundas na geografia, na composio e estrutura institucional da economia global (Sassen, 1994: 10). No que respeita nova geografia, argumenta que "comparativamente aos anos cinquenta, os anos oitenta conheceram um estreitamento da geografia da economia global e a acentuao do eixo Este-Leste. Isto torna-se evidente com o enorme crescimento do investimento dentro do que muitas vezes denominado pela Trade: os Estados Unidos da Amrica, a Europa Ocidental e o Japo" (Sassen, 1994:10). Outra caracterstica da nova geografia que o investimento estrangeiro directo, do qual, durante uns tempos, a Amrica Latina foi o maior beneficirio, dirigiu-se para Leste, Sul e Sudeste Asitico, onde a taxa anual de crescimento aumentou eJ11 mdia 37% por ano entre 1985 e 1989. Por outro lado, enquanto nos anos cinquenta o maior fluxo internacional era o comrcio mundial, concentrado nas matrias-primas, outros produtos primrios e recursos manufacturados, a partir dos anos oitenta a distncia entre o crescimento da taxa de exportaes e o crescimento da taxa dos fluxos financeiros aumentou drasticamente: aps a crise de 1981-82 e at 1990, o investimento estrangeiro directo global cresceu em mdia 29% por ano, uma subida histrica (Sassen, 1994: 14). Por fim, no que toca estrutura institucional, Sassen defende que estamos perante um novo regime internacional, baseado na ascendncia da banca e dos servios internacionais. As empresas multinacionais so agora

um importante elemento na estrutura institucional, juntamente com os mercados financeiros globais e com os blocos comerciais transnacionais. De acordo com Sassen, todas estas mudanas contriburam para a formao de novos locais estratgicos na economia mundial: zonas de processamento para exportao, centros financeiros oftshore e cidades globais (Sassen, 1994: 18). Uma das transformaes mais dramticas produzidas pela globalizao econmica neoliberal reside na enorme concentrao de poder econmico por parte das empresas multinacionais: das 100 maiores economias do mundo, 47 so empresas multinacionais; 70% do comrcio mundial controlado por 500 empresas multinacionais; 1% das empresas multinacionais detm 50% do investimento directo estrangeiro (Clarke, 1996).

Em suma, a globalizao eco n mica sustentada pelo consenso econmico neoliberal cujas trs principais inovaes institucionais so: restries drsticas regulao estatal da economia; novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros, inventores e criadores de inovaes susceptveis de serem objecto de propriedade intelectual (Robinson, 1995: 373); subordinao dos Estados nacionais s agncias multilaterais tais como o Banco Mundial, o FMI e a Organizao Mundial do Comrcio. Dado o carcter geral deste consenso, as receitas em que ele se traduziu foram aplicadas, ora com extremo rigor (o que designo por modo da jaula de ferro), ora com alguma flexibilidade (o modo da jaula de borracha). Por exemplo, os pases asiticos evitaram durante muito tempo ,aplicar integralmente as receitas e alguns deles, como, por exemplo, a India e a Malsia, conseguiram at hoje aplic-las apenas selectivamente.

3. Ver Stallings (1992a: 3). Em finais da dcada de oitenta! as empresas multinacionais norte-americanas e estrangeiras protagonizaram 80% do comrcio internacional nos EUA e mais de um tero dos negcios internacionais norte-americanos foi! na verdade! intra-empresarial! i.e.! decorreu entre diferentes unidades! geograficamente separadas! da mesma empresa. Para alm disso, hoje em dia! quase todo o investimento estrangeiro directo e uma larga parte das transferncias tecnolgicas so efectuados pelas empresas multinacionais (Sassen! 1994: 14).

Como veremos a seguir, so os pases perifricos e semiperifricos os que mais esto sujeitos s imposies do receiturio neoliberal, uma vez que este transformado pelas agncias financeiras multilaterais em condies para a renegociao da dvida externa atravs dos programas de ajustamento estrutural. Mas, dado o crescente predomnio da lgica financeira sobre a economia real, mesmo os Estados centrais, cuja dvida pblica tem vindo a aumentar, esto sujeitos s decises das agncias financeiras de rating, ou seja, das empresas internacionalmente acreditadas para avaliar a situao financeira dos Estados e os consequentes riscos e oportunidades que eles oferepem aos investidores internacionais. Por exemplo, a baixa de nota decretada pela empresa Moody's dvida pblica da Sucia e do Canad em meados da dcada de noventa foi decisiva para os cortes nas despesas sociais adoptados pelos dois pases (Chossudovsky, 1997: 18).

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3. A .1....IIQuanto s relaes scio-polticas, tem sido defendido que, embora o sistema mundial moderno tenha sido sempre estruturado por um sistema de classes, uma classe capitalista transnacional est hoje a emergir cujo campo de reproduo social o globo enquanto tal e que facilmente ultrapassa as organizaes nacionais de trabalhadores, bem como os Estados externamente fracos da periferia e da semiperiferia do sistema mundial. As empresas multinacionais so a principal forma institucional desta classe capitalista transnacional e a magnitude das transformaes que elas esto a suscitar na economia mundial est patente no facto de que mais de um tero do produto industrial mundial produzido por estas empresas e de que uma percentagem muito mais elevada transaccionado entre elas. Embora a novidade organizacional das empresas multinacionais possa ser questionada, parece inegvel que a sua prevalncia na economia mundial e o grau e eficcia da direco centralizada que elas adquirem as distingue das formas precedentes de empresas internacionais (Becker e Sklar, 1987: 2). O impacto das empresas multinacionais nas novas formaes de classe e na desigualdade a nvel mundial tem sido amplamente debatido nos ltimos anos. 4 Dentro da tradio da teoria da dependncia, Evans foi um dos primeiros a analisar a "tripla aliana" entre as empresas multinacionais, a elite capitalista local e o que chama "burguesia estatal" enquanto base da dinmica de industrializao e do crescimento econmico de um pas semiperifrico como o Brasil (Evans, 1979, 1986). Becker e Sklar, que propem a teoria do ps-imperialismo, falam de uma emergente burguesia de executivos, uma nova classe social sada das relaes entre o sector administrativo do Estado e as grandes empresas privadas ou privatizadas. Esta

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nova classe composta por um ramo local e por um ramo internacional. O ramo local, a burguesia nacional, uma categoria socialmente ampla que envolve a elite empresarial, os directores de empresas, os altos funcionrios do Estado, lderes polticos e profissionais influentes. Apesar de toda a heterogeneidade, estes diferentes grupos constituem, de acordo com os autores, uma classe, "porque os seus membros, apesar da diversidade dos seus interesses sectoriais, partilham uma situao comum de privilgio scioeco n mico e um interesse comum de classe nas relaes do poder poltico e do controlo social que so intrnsecas ao modo de produo capitalista". O ramo internacional, a burguesia internacional, composta pelos gestores das empresas multinacionais e pelos dirigentes das instituies financeiras internacionais (1987: 7).

4. Sobre o impacto das empresas multi nacionais, ver o captulo 3, "The Largest Transnational Corporations and Corporate Stategies", do relatrio da UNCTAD de 1999 World Investment Report, 1999. Foreign Direct Investment and the Challenge of Development. Disponvel na internet: www.unctad.org/enlpub/pslwir99.htm.Segundoesterelatrio.as empresas multinacionais lideram a produo internacional- entendendo-se por tal a produo de bens e servios num dado pas, controlada e gerida por empresas com sede noutro pas - e esta liderana concentra-se cada vez mais nos pases centrais. Cerca de 90% das 100 maiores empresas multinacionais esto sediadas nos pases desenvolvidos. Com isto aumenta tambm a presso destas empresas no sentido da liberalizao do investimento estrangeiro directo: das 145 alteraes na regulao do investimento directo estrangeiro decretadas em todo o mundo em 1998, 136 foram no sentido de criar condies mais favorveis ao investimento.

As novas desigualdades sociais produzidas por esta estrutura de classe tm vindo a ser amplamente reconhecidas mesmo pelas agncias multilaterais que tm liderado este modelo de globalizao, como o Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional. Para Evans, o modelo de industrializao e crescimento baseado na "tripla aliana" inerentemente injusto e apenas capaz de um tipo de redistribuio "da massa da populao para a burguesia estatal, as multinacionais e o capital local. A manuteno de um equilbrio delicado entre os trs parceiros milita contra qualquer possibilidade de um tratamento srio s questes da redistribuio de rendimentos, mesmo que membros da elite expressem um apoio ao princpio terico da redistribuio de rendimentos" (1979: 288). Em comparaes mais recentes entre os modelos e padres de desigualdade social da Amrica Latina e do Leste Asitico, Evans acrescenta outros factores que, em sua opinio, podem ter contribudo para que o modelo de desenvolvimento asitico tenha produzido relativamente menos desigualdades que o modelo brasileiro. Entre esses factores contabiliza, a favor do modelo asitico, a maior autonomia do Estado, a eficincia da burocracia estatal, a reforma agrria e a existncia de um perodo inicial de proteco em relao ao capitalismo dos pases centrais (1987).5

hoje evidente que a iniquidade da distribuio da riqueza mundial se agravou nas duas ltimas dcadas: 54 dos 84 pases menos desenvolvidos viram o seu PNB per capita decrescer nos anos 80; em 14 deles a diminuio rondou os 35%; segundo as estimativas das Naes Unidas, cerca de 1 bilio e meio de pessoas (1/4 da populao mundial) vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um rendimento inferior a um dlar por dia e outros 2 bilies

5. No mesmo sentido, dr. Wade (1990, 1996) e Whitley (1992).

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vivem apenas com o dobro desse rendimento. 6 Segundo o Relatrio do Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto dos pases pobres, onde vive 85,2% da populao mundial, detm apenas 21,5% do rendimento mundial, enquanto o conjunto dos pases ricos, com 14,8% da populao mundial, detm 78,5% do rendimento mundial. Uma famlia africana mdia consome hoje 20% menos do que consumia h 25 anos. O aumento das desigualdades tem sido to acelerado e to grande que adequado ver as ltimas dcadas como uma revolta das elites contra a redistribuio da riqueza com a qual se pe fim ao perodo de uma certa democratizao da riqueza iniciado no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo o Relatrio do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20% da populao mundial a viver nos pases mais ricos detinham, em 1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1%. Neste mesmo quinto mais rico concentravam-se 93,3% dos utilizadores da internet. Nos ltimos trinta anos a desigualdade na distribuio dos rendimentos entre pases aumentou dramaticamente. A diferena de rendimento entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de 74 para 1. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a sua riqueza entre 1994 e 1998. Os valores dos trs mais ricos bilionrios do mundo excedem a soma do produto interno bruto de todos os pases menos desenvolvidos do mundo onde vivem 600 milhes de pessoas. A concentrao da riqueza produzida pela globalizao neoliberal atinge propores escandalosas no pas que tem liderado a aplicao do novo modelo econmico, os EUA. J no final da dcada de oitenta, segundo dados do Federal Reserve Bank, 1% das famlias norte-americanas detinha 40% da riqueza do pas e as 20% mais ricas detinham 80% da riqueza do pas. Segundo o Banco, esta concentrao no tinha precedentes na histria dos EUA, nem comparao com os outros pases industrializados (Mander, 1996:11).

produtividade e os ajustamentos em relao ao custo de vida e eliminando a prazo a legislao sobre salrio mnimo. O objectivo impedir "o impacto inflaccionrio dos aumentos salariais". A contraco do poder de compra interno que resulta desta poltica deve ser suprida pela busca de mercados externos. A economia , assim, dessocializada, o conceito de consumidor substitui o de cidado e o critrio de incluso deixa de ser o direito para passar a ser a solvncia. Os pobres so os insolventes (o que inclui os consumidores que ultrapassam os limites do sobreendividamento). Em relao a eles devem adoptar-se medidas de luta contra a pobreza, de preferncia medidas compensatrias que minorem, mas no eliminem, a excluso, j que esta um efeito inevitvel (e, por isso, justificado) do desenvolvimento assente no crescimento eco n mico e na competitividade a nvel global. Este consenso neoliberal entre os pases centrais imposto aos pases perifricos e semiperifricos atravs do controlo da dvida externa efectuado pelo Fundo Monetrio Internacional e pelo Banco Mundial. Da que estas duas instituies sejam consideradas responsveis pela "globalizao da pobreza" (Chossudovsky, 1997). A nova pobreza globalizada no resulta de falta de recursos humanos ou materiais, mas to s do desemprego, da destruio das economias de subsistncia e da minimizao dos custos salariais escala mundial.

Segundo a Organizao Mundial de Sade, os pases pobres tm a seu cargo 90% das doenas que ocorrem no mundo, mas no tm mais do 10% dos recursos globalmente gastos em sade; 1/5 da populao mundial no tem qualquer acesso a servios de sade modernos e metade da populao mundial no tem acesso a medicamentos essenciais. Apesar do aumento chocante da desigualdade entre pases pobres e pases ricos, apenas 4 destes ltimos cumprem a sua obrigao moral de contribuir com 0,7% do produto Nacional Bruto para a ajuda ao desenvolvimento.

No domnio da globalizao social, o consenso neoliberal o de que o crescimento e a estabilidade eco n micos assentam na reduo dos custos salariais, para o que necessrio liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos liberais, proibindo a indexao dos salrios aos ganhos de

4. A globaliza,o poltica e o Estado-na,o

6. Ver tambm Kennedy (1993: 193-228) e Chossudovsky (1997). De acordo com Maizels (1992) as exportaes de bens primrios do Terceiro Mundo aumentaram quase 100% durante o perodo 1980-88. Mas as receitas obtidas em 1988 foram 30% inferiores s obtidas em 1980. Ver tambm Singh (1993).

A nova diviso internacional do trabalho, conjugada com a nova economia poltica "pr-mercado", trouxe tambm algumas importantes mudanas para o sistema interestatal, a forma poltica do sistema mundial moderno. Por um lado, os Estados hegemnicos, por eles prprios ou atravs das instituies internacionais que controlam (em particular as instituies financeiras multilaterais), comprimiram a autonomia poltica e a soberania efectiva dos Estados perifricos e semiperifricos com uma intensidade sem precedentes, apesar de a capacidade de resistncia e negociao por

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parte destes ltimos poder variar imenso. 7 Por outro lado, acentuou-se a tendncia para os acordos polticos interestatais (Unio Europeia, NAFTA, Mercosul). No caso da Unio Europeia, esses acordos evoluram para formas de soberania conjunta ou partilhada. Por ltimo, ainda que no menos importante, o Estado-nao parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de iniciativa econmica, social e poltica. A intensificao de interaces que atravessam as fronteiras e as prticas transnacionais corroem a capacidade do Estado-nao para conduzir ou controlar fluxos de pessoas, bens, capital ou ideias, como o fez no passado. O impacto do contexto internacional na regulao do Estado-nao, mais do que um fenmeno novo, inerente ao sistema interestatal moderno e est inscrito no prprio Tratado de Westphalia (1648) que o constitui. Tambm no novo o facto de o contexto internacional tendencialmente exercer uma influncia particularmente forte no campo da regulao jurdica da economia, como o testemunham os vrios projectos de modelizao e unificao do direito econmico desenvolvidos ao longo do sculo XX, por especialistas de direito comparado e concretizados por organizaes internacionais e governos nacionais. Como os prprios nomes dos projectos indicam, a presso internacional tem sido, tradicionalmente, no sentido da uniformizao e da normalizao, o que bem ilustrado pelos projectos pioneiros de Ernest Rabel, em incios da dcada de 30, e pela constituio do Instituto Internacional para a Unificao do Direito Privado (UNIDROIT) com o objectivo de unificar o direito dos contratos internacionais, o que conduziu, por exemplo, lei uniformizada na formao de contratos de vendas internacionais (ULFIS, 1964) e a Conveno na venda internacional de bens (CISG, 1980) (van der Velden, 1984: 233). A tradio da globalizao para alguns muito mais longa. Por exemplo, Tilly distingue quatro ondas de globalizao no passado milnio: nos sculos XIII, XVI, XIX e no final do sculo XX (1995). Apesar desta tradio histrica, o impacto actual da globalizao na regulao estatal parece ser um fenmeno qualitativamente novo, por duas razes principais. Em primeiro lugar, um fenmeno muito amplo e vasto que cobre um campo muito grande de interveno estatal e que requer mudanas drsticas no padro de interveno. Para Tilly, o que distingue a actual onda de globalizao da onda que ocorreu no sculo XIX o facto de esta ltima ter contribudo para o fortalecimento do poder dos Estados centrais (Ocidentais), en-

quanto a actual globalizao produz o enfraquecimento dos poderes do Estado. A presso sobre os Estados agora relativamente monoltica - o "Consenso de Washington" e em seus termos o modelo de desenvolvimento orientado para o mercado o nico modelo compatvel com o novo regime global de acumulao, seodo, por isso, necessrio impor, escala mundial, polticas de ajustamento estrutural. Esta presso central opera e refora-se em articulaes com fenmenos e desenvolvimentos to dspares como o fim da guerra fria, as inovaes dramticas nas tecnologias de comunicao e de informao, os novos sistemas de produo flexvel, a emergncia de blocos regionais, a proclamao da democracia liberal como regime poltico universal, a imposio global do mesmo modelo de lei de proteco da propriedade intelectual, etc.

Quando comparado com os processos de transnacionalizao precedentes, o alcance destas presses torna-se particularmente visvel uma vez que estas ocorrem aps dcadas de intensa regulao estatal da economia, tanto nos pases centrais, como nos pases perifricos e semiperifricos. A criao de requisitos normativos e institucionais para as operaes do modelo de desenvolvimento lleoliberal envolve, por isso, uma destruio institucional e normativa de tal modo massiva que afecta, muito para alm do papel do Estado na economia, a legitimidade global do Estado para organizar a sociedade.

O segundo factor de novidade da globalizao poltica actual que as assimetrias do poder tran.snacional entre o centro e a periferia do sistema mundial, i.e., entre o Norte e o Sul, so hoje mais dramticas do que nunca. De facto, a soberania dos Estados mais fracos est agora directamente ameaada, no tanto pelo s Estados mais poderosos, como costumava ocorrer, mas sobretudo por agncias financeiras internacionais e outros actores transnacionais privados, tais como as empresas multinacionais. A presso , assim, apoiada por uma. coligao transnacional relativamente coesa, utilizando recursos poderosC1s e mundiais.

7. Ver Stallings (1992b). Da perspectiva das relaes internacionais, ver Durand, Lvy, Retaill (1993).

Tendo em mente a situao na Europa e na Amrica do Norte, Bob Jessop identifica trs tendncias gerais na transformao do poder do Estado. Em primeiro lugar, a desnacionalizao do Estado, um certo esvaziamento do aparelho do Estado nacional que decorre do facto de as velhas e novas capacidades do estarem a ser reorganizadas, tanto territorial como funcionalmente, aoB nveis sub nacional e supranacional. Em segundo lugar, a de-estatizao do!5 regimes polticos reflectida na transio do conceito de governo (governIr1ent) para o de governao (governance), ou seja, de um modelo de regulaio social e econmica assente no papel central do

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Estado para um outro assente em parcerias e outras formas de associao entre organizaes governamentais, para-governamentais e no-governamentais, nas quais o aparelho de Estado tem apenas tarefas de coordenao enquanto primus inter pares. E, finalmente, uma tendncia para a internacionalizao do Estado nacional expressa no aumento do impacto estratgico do contexto internacional na actuao do Estado, o que pode envolver a expanso do campo de aco do Estado nacional sempre que for necessrio adequar as condies internas s exigncias extra-territoriais ou transnacionais (Jessop, 1995:2). Apesar de no se esgotar nele, no campo da economia que a transnacionalizao da regulao estatal adquire uma maior salincia. No que respeita aos pases perifricos e semiperifricos, as polticas de "ajustamento estrutural" e de "estabilizao macroeconmica" - impostas como condio para a renegociao da dvida externa - cobrem um enorme campo de interveno econmica, provocando enorme turbulncia no contrato social, nos quadros legais e nas molduras institucionais: a liberalizao dos mercados; a privatizao das indstrias e servios; a desactivao das agncias regulatrias e de licenciamento; a desregulao do mercado de trabalho e a "flexibilizao" da relao salarial; a reduo e a privatizao, pelo menos parcial, dos servios de bem estar social (privatizao dos sistemas de penses, partilha dos custos dos servios sociais por parte dos utentes, critrios mais restritos de elegibilidade para prestaes de assistncia social, expanso do chamado terceiro sector, o sector privado no lucrativo, criao de mercados no interior do prprio Estado, como, por exemplo, a competio mercantil entre hospitais pblicos); uma menor preocupao com temas ambientais; as reformas educacionais dirigidas para a formao profissional mais do que para a construo de cidadania; etc. Todas estas exigncias do "Consenso de Washington" exigem mudanas legais e institucionais massivas. Dado que estas mudanas tm lugar no fim de um perodo mais ou menos longo de interveno estatal na vida econmica e social (no obstante as diferenas considerveis no interior do sistema mundial), o retraimento do Estado no pode ser obtido seno atravs da forte interveno estatal. O Estado tem de intervir para deixar de intervir, ou seja, tem de regular a sua prpria desregulao. Uma das mais drsticas instncias de transnacionalizao da regulao registou-se no campo das telecomunicaes. Este um domnio no qual, at metade dos anos setenta, o campo regula trio era absolutamente dominado pelo Estado. A maior parte dos pases tinha adoptado o princpio do "monoplio natural" das telecomunicaes e estas funcionavam como um departa-

mento estatal igual a qualquer outro. O monoplio de servios e equipamentos era considerado a forma mais eficiente e equitativa de disponibilizar este servio pblico, quer a nvel interno, quer a nvel internacional. Considerava-se tambm que a segurana nacional exigia o monoplio estatal das telecomunicaes. Alis, a classe poltica via no monoplio estatal uma fonte virtualmente infinita de dividendos polticos. Tendo presente, em especial, o caso dos EUA e dos outros pases centrais, Peter Cowhey afirma que:

Uma vez que as pessoas mais caras de servir pelas telecomunicaes (basicamente o telefone) estavam nas reas menos povoadas e dado que estas populaes detinham, em geral, um desproporcionado poder poltico e eleitoral (as zonas rurais do Sul e do Centro dos EUA), era tentador para os polticos construir sistemas monopolistas que encorajassem o estabelecimento de preos em funo de custos mdios para um conjunto de servios uniformizados. A inovao tecnolgica mantinha baixos os custos absolutos, os subsdios cruzados mantinham felizes os constituintes mais importantes e os governos podiam realar o seu papel na promoo da equidade, definida como um servio universal prestado em termos vagamente comparveis em todo o pas. Esperava-se que os beneficirios especiais do sistema se organizassem em fora para eliminar qualquer factor perturbador. Nenhum agente eco n mico ou poltico podia imaginar qualquer vantagem em questionar o cartel telefnico, dadas as rgidas barreiras polticas para entrar (1990: 184).8

O controlo estatal sobre as comunicaes internas estendeu-se s comunicaes internacionais atravs dos servios fornecidos em parcerias interestatais e das redes e equipamentos normalizados.

Este modo de regulao, que perdurou durante cerca de 100 anos, comeou a mudar nos anos setenta e as mudanas tornaram-se dramticas na dcada de noventa. At este momento, nenhum modo de regulao unificado substituiu o antigo e o campo das telecomunicaes est a atravessar um perodo de grande turbulncia. A tendncia geral consiste em substituir at ao mximo que for possvel o princpio do Estado pelo princpio do mercado e implica presses por parte de pases centrais e das empresas multinacionais sobre os pases perifricos e semiperifricos no sentido de adoptarem ou se adaptarem s transformaes jurdicas e institucionais que esto a ocorrer no centro do sistema mundial. Dois factores estratgicos parecem estar por detrs deste desenvolvimento. Por um lado, a inovao e difuso tecnolgica: a revoluo dos micro-chips; as comunicaes por satlite; a emergncia da tecnologia digital e a consequente eliminao da distino

8. Ver tambm Nugter and Smits (1989).

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entre comunicaes e processamento de dados. Por outro, a estrutura oligopsnica do mercado de telecomunicaes e do poder poltico dos actores principais: os maiores utiliza dores das telecomunicaes so em nmero cada vez menor e economicamente cada vez mais poderosos; podem fcil e eficazmente organizar grupos de presso poltica. Sem surpresa, esta transformao legal comeou nos EUA e tem-se disseminado por todo o globo. Tendo vencido a batalha em casa, as empresas multinacionais de telecomunicaes norte-americanas tornaram-se os promotores mais agressivos da reforma regulatria a nvel mundial, utilizando para isso o poder de negociao dos EUA. No incio da dcada de noventa dois caminhos estavam a ser seguidos pelos pases centrais para transformar o regime das telecomunicaes (Cowhey, 1990: 188). O primeiro era o caminho big bang, seguido pelos EUA, Reino Unido e Japo, pases que, em conjunto, constituem 60% do mercado mundial de telecomunicaes. O big bang consiste na liberalizao unilateral e total das telecomunicaes, no s dos servios avanados, mas tambm dos servios bsicos, equipamentos e infraestruturas. O segundo caminho era o little bang, adoptado por outros pases centrais, sobretudo pelos pases europeus. 9 Consiste numa liberalizao parcial por diversas vias, tais como: separando os servios de correio dos servios telefnicos e os servios elementares dos servios avanados (i.e., correio expresso, correio electrnico e vdeo-conferncias), com o objectivo de reduzir os subsdios cruzados 10; criando agncias regulatrias com maior autonomia em relao ao Governo; concedendo direitos e vantagens especiais aos grandes utentes; reduzindo os subsdios aos agregados familiares e s pequenas empresas, ainda que o fazendo de um modo muito lento para no alienar politicamente estes sectores sociais. Apesar das diferenas, os dois caminhos - o big bang anglo-saxnico e o little bang europeu - tm muito em comum. Alis, a diferena inicial eles foi-se atenuando ao longo da dcada de noventa. Esta aproximao culminou na Cimeira do Conselho Europeu realizada em Lisboa a 23-24 de Maro de 2000 onde se props e calendarizou a liberalizao total das telecomunicaes e, portanto, a adoptao do big bang na Unio Europeia ll . Menos de

20 pases industrializados constituem uma fatia esmagadora do mercado mundial de servios e equipamentos de telecomunicaes, e detm, por isso, o poder de mercado suficiente para impor e garantir mudanas profundas no regime das telecomunicaes.

As telecomunicaes so cada vez mais a infraestrutura fsica de um tempo-espao emergente: o tempo-espao electrnico, o ciber-espao ou o tempo-espao instantneo. Este novo tempo-espao tornar-se- gradualmente o tempo-espao privilegiado dos poderes globais. Atravs das redes metropolitanas e dos ciberndulos, esta forma de poder exercida global e instantaneamente, afastando, ainda mais, a velha geografia do poder centrada em torno do Estado e do seu tempo-espao.

Uma anlise mais aprofundada dos traos dominantes da globalizao poltica - que so, de facto, os traos da globalizao poltica dominanteleva-nos a concluir que subjazem a esta trs componentes do Consenso de Washington: o consenso do Estado fraco; o consenso da democracia liberal; o consenso do primado do direito e do sistema judicial.

O consenso do Estado fraco , sem dvida, o mais central e dele h ampla prova no que ficou descrito acima. Na sua base est a ideia de que o Estado o oposto da sociedade civil e potencialmente o seu inimigo. A economia neoliberal necessita de uma sociedade civil forte e para que ela exista necessrio que o Estado seja fraco. O Estado inerentemente opressivo e limitativo da sociedade civil, pelo que s reduzindo o seu tamanho possvel reduzir o seu dano e fortalecer a sociedade civil. Da que o Estado fraco seja tambm tendencialmente o Estado mnimo. Esta ideia fora inicialmente defendida pela teoria poltica liberal, mas foi gradualmente abandonada medida que o capitalismo nacional, enquanto relao social e poltica, foi exigindo maior interveno estatal. Deste modo, a ideia do Estado como oposto da sociedade civil foi substituda pela ideia do Estado como espelho da sociedade civil. A partir de ento um Estado forte passou a ser a condio de uma sociedade civil forte. O consenso do Estado fraco visa repor a ideia liberal original.

9. Ver tambm Riess (1991); Huet e Maisl (1989). 10. Os subsdios cruzados ocorrem, por exemplo, quando o custo adicional dos servios mais caros dissolvido em clculos de custo mdio. Desta forma, os utilizadores dos servios mais baratos, normalmente as classes sociais mais baixas, subsidiam os utilizadores dos servios mais caros que em geral pertencem s classes sociais mais altas. 11. Sobre a evoluo da liberalizao das telecomunicaes na Unio Europeia ver, por ltimo, Eliassen e Sjovaag (1999).

Esta reposio tem-se revelado extremamente complexa e contraditria e, talvez por isso, o consenso do Estado fraco , todos os consensos neoliberais, o mais frgil e mais sujeito a correces. E que o "encolhimento" do Estado - produzido pelos mecanismos conhecidos, tais como a desregulao, as privatizaes e a reduo dos servios pblicos - ocorre no final de um perodo de cerca de cento e cinquenta anos de constante expanso regulatria do Estado. Assim, como referi atrs, desregular implica uma intensa actividade regulatria do Estado para pr fim regulao estatal

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anterior e criar as normas e as instituies que presidiro ao novo modelo de regulao social. Ora tal actividade s pode ser levada a cabo por um Estado eficaz e relativamente forte. Tal como o Estado tem de intervir para deixar de intervir, tambm s um Estado forte pode produzir com eficcia a sua fraqueza. Esta antinomia foi responsvel pelo fracasso da estratgia dos USAID e do Banco Mundial para a reforma poltica do Estado russo depois do colapso do comunismo. Tais reformas assentaram no desmantelamento quase total do Estado sovitico na expectativa que dos seus escombros emergisse um Estado fraco e, consequentemente, uma sociedade civil forte. Para surpresa dos progenitores, destas reformas o que emergiu delas foi um governo de mafias (Hendley, 1995). Talvez por isso o consenso do Estado fraco foi o que mais cedo deu sinais de fragilizao, como bem demonstra o relatrio do Banco Mundial de 1997, dedicado ao Estado e no qual se reabilita a ideia de regulao estatal e se pe o acento tnico na eficcia da aco estatal (Banco Mundial, 1997). O consenso da democracia liberal visa dar forma poltica ao Estado fraco, mais uma vez recorrendo teoria poltica liberal que particularmente nos seus primrdios defendera a convergncia necessria entre liberdade poltica e liberdade econmica, as eleies livres e os mercados livres como os dois lados da mesma moeda: o bem comum obtvel atravs das aces de indivduos utilitaristas envolvidos em trocas competitivas com o mnimo de interferncia estatal. A imposio global deste consenso hegemnico tem criado muitos problemas quanto mais no seja porque se trata de um modelo monoltico a ser aplicado em sociedades e realidades muito distintas. Por essa razo, o modelo de democracia adoptado como condicionalidade poltica da ajuda e do financiamento internacional tende a converter-se numa verso abreviada, seno mesmo caricatural, da democracia liberal. Para constatar isto mesmo, basta comparar a realidade poltica dos pases sujeitos s condicionalidades do Banco Mundial e as caractersticas da democracia liberal, tal como so descritas por David Held: o governo eleito; eleies livres e justas em que o voto de todos os cidados tm o mesmo peso; um sufrgio que abrange todos os cidados independentemente de distines de raa, religio, classe, sexo, etc.; liberdade de conscincia, informao e expresso em todos os assuntos pblicos definidos como tal com amplitude; o direito de todos os adultos a opor-se ao governo e serem elegveis; liberdade de associao e autonomia associativa entendida como o direito a criar associaes independentes, incluindo movimentos sociais, grupos de interesse e partidos polticos (1993: 21). Claro que a ironia desta enumerao que, luz dela, as democracias reais dos pases hegemnicos, se no so verses

caricaturais, so pelo menos verses abreviadas do modelo de democracia liberal. O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial uma das componentes essenciais da nova forma poltica do Estado e tambm o que melhor procura vincular a globalizao poltica globalizao econmica. O modelo de desenvolvimento caucionado pelo Consenso de Washington reclama um novo quadro legal que seja adequado liberalizao dos mercados, dos investimentos e do sistema financeiro. Num modelo assente nas privatizaes, na iniciativa privada e na primazia dos mercados o princpio da ordem, da previsibilidade e da confiana no pode vir do comando do Estado. S pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de instituies independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litgios em funo de quadros legais presumivelmente conhecidos de todos. A proeminncia da propriedade individual e dos contratos refora ainda mais o primado do direito. Por outro lado, a expanso do consumo, que o motor da globalizao eco n mica, no possvel sem a institucionalizao e popularizao do crdito ao consumo e este no possvel sem a ameaa credvel de que quem no pagar ser sancionado por isso, o que, por sua vez, s possvel na medida em que existir um sistema judicial eficaz. 12 Nos termos do Consenso de Washington, a responsabilidade central do Estado consiste em criar o quadro legal e dar condies de efectivo funcionamento s instituies jurdicas e judiciais que tornaro possvel o fluir rotineiro das infinitas interaces entre os cidados, os agentes econmicos e o prprio Estado. Um outro tema importante nas anlises das dimenses polticas da globalizao o papel crescente das formas de governo supraestatal, ou seja, das instituies polticas internacionais, das agncias financeiras multilaterais, dos blocos poltico-econmicos supranacionais, dos Tbink Tanks globais , das diferentes formas de direito global (da nova lex mercatoria aos direitos humanos). Tambm neste caso o fenmeno no novo uma vez que o sistema interestatal em que temos vivido desde o sculo XVII promoveu, sobretudo a partir do sculo XIX, consensos normativos internacionais que se vieram a traduzir em organizaes internacionais. Ento, como hoje, essas organizaes tm funcionado como condomnios entre os pases cen-

12. Trato em detalhe o tema do primado do direito e do sistema judicial no contexto da globalizao noutro lugar (Santos, 2000b). Sobre a questo do crdito ao consumo e consequente endividamento dos consumidores ver, por ltimo, Marques (2000).

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trais. O que novo a amplitude e o poder da institucionalidade transnacional que se tem vindo a constituir nas ltimas trs dcadas. Este um dos sentidos em que se tem falado da emergncia de um "governo global" ("global governance") (Murphy, 1994). O outro sentido, mais prospectivo e utpico, diz respeito indagao sobre as instituies polticas transnacionais que ho-de corresponder no futuro globalizao eco n mica e social em curso (Falk, 1995; Chase-Dunn et al, 1998). Fala-se mesmo da necessidade de se pensar num "Estado mundial" ou numa "federao mundial", democraticamente controlado e com a funo de resolver pacificamente os conflitos entre estados e entre agentes globais. Alguns autores transpem para o novo campo da globalizao os conflitos estruturais do perodo anterior e imaginam as contrapartidas polticas a que devem dar azo. Tal como a classe capitalista global est a tentar formar o seu estado global, de que a Organizao Mundial do Comrcio a guarda avanada, as foras socialistas devem criar um "partido mundial" ao servio de uma "comunidade socialista global" ou uma "comunidade democrtica global" baseada na racionalidade colectiva, na liberdade e na igualdade (Chase-Dunn et al, 1998).

tanta discusso nestes ltimos dez-quinze anos acerca do problema da cultura. Isso decorrente da decomposio da dupla crena do sculo dezanove nas arenas econmica e poltica como lugares de progresso social e, consequentemente, de salvao individual" (Wallerstein, 1991b: 198).

Embora a questo da matriz original da globalizao se ponha em relao a cada uma das dimenses da globalizao, no domnio da globalizao cultural que ela se pe com mais acuidade ou com mais frequncia. A questo de saber se o que se designa por globalizao no deveria ser mais correctamente designado por ocidentalizao ou americanizao (Ritzer, 1995), j que os valores, os artefactos culturais e os universos simblicos que se globalizam so ocidentais e, por vezes, especificamente norte-americanos, sejam eles o individualismo, a democracia poltica, a racionalidade eco n mica, o utilitarismo, o primado do direito, o cinema, a publicidade, a televiso, a internet, etc.

5. Glollaliza,o cultural ou cultura glollal?A globalizao cultural assumiu um relevo especial com a chamada "viragem cultural" da dcada de oitenta, ou seja, com a mudana de nfase, nas cincias sociais, dos fenmenos scio-econmicos para os fenmenos culturais. A "viragem cultural" veio reacender a questo da primazia causal na explicao da vida social e, com ela, a questo do impacto da globalizao cultural. 13 A questo consiste em saber se as dimenses normativa e cultural do processo de globalizao desempenham um papel primrio ou secundrio. Enquanto para alguns elas tm um papel secundrio, dado que a economia mundial capitalista mais integrada pelo poder poltico-militar e pela interdependncia de mercado do que pelo consenso normativo e cultural (Chase-Dunn, 1991: 88), para outros o poder poltico, a dominao cultural e os valores e normas institucionalizadas precedem a dependncia de mercado no desenvolvimento do sistema mundial e na estabilidade do sistema interestatal (Meyer, 1987; Bergesen, 1990). Wallerstein faz uma leitura sociolgica deste debate, defendendo que "no por acaso ... que tem havido

13. Cfr. Featherstone (1990); Appadurai (1990); Berman (1983); W. Meyer (1987); Giddens (1990, 1991); Bauman (1992). Ver tambm Wuthnow (1985, 1987); Bergesen (1980).

Neste contexto, os meios de comunicao electrnicos, especialmente a televiso, tm sido um dos grandes temas de debate. Embora a importncia da globalizao dos meios de comunicao social seja salientada por todos, nem todos retiram dela as mesmas consequncias. Appadurai, por exemplo, v nela um dos dois factores (o outro so as migraes em massa) responsveis pela ruptura entre o perodo de que acabamos de sair (o mundo da modernizao) e o perodo em que estamos a entrar (o mundo ps-electrnico) (1997). O novo perodo distingue-se pelo "trabalho da imaginao" pelo facto de a imaginao se ter transformado num facto social, colectivo, o ter deixado de estar confinada no indivduo romntico e no espao expressivo da arte, do mito e do ritual para passar a fazer parte da vida quotidiana dos cidados comuns (1997: 5). A imaginao ps-electrnica, combinada com a desterritorializao provocada pelas migraes, torna possvel a criao de universos simblicos transnacionais, "comunidades de sentimento", identidades prospectivas, partilhas de gostos, prazeres e aspiraes, em suma, o que Appadurai chama "esferas pblicas diaspricas" (1997: 4). De uma outra perspectiva, Octvio lanni fala do "prncipe electrnico" - o conjunto das tecnologias electrnicas, informticas e cibernticas, de informao e de comunicao, com destaque para a televiso - que se transformou no "arquitecto da gora electrnica na qual todos esto representados, reflectidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivncia nem da experincia" (1998: 17). Esta temtica articula-se com uma outra igualmente central no mbito da globalizao cultural: o de saber at que ponto a globalizao acarreta homogeneizao. Se para alguns autores a especificidade das culturas locais

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e nacionais est em risco (Ritzer, 1995), para outros, a globalizao tanto produz homogeneizao como diversidade (Robertson e Khondker, 1998). O isomorfismo institucional, sobretudo nos domnios econmico e poltico coexistem com a afirmao de diferenas e de particularismo. Para Friedman, a fragmentao cultural e tnica, por um lado, e a homogeneizao modernista, por outro, no so duas perspectivas opostas sobre o que est a acontecer, mas antes duas tendncias, ambas constitutivas da realidade global (Featherston, 1990: 311). Do mesmo modo, Appadurai faz questo de salientar que os media electrnicos, longe de serem o pio do povo, so processados pelos indivduos e pelos grupos de uma maneira activa, um campo frtil para exerccios de resistncia, selectividade e ironia (1997: 7). Appadurai tem vindo a salientar o crescente papel da imaginao na vida social dominada pela globalizao. atravs da imaginao que os cidados so disciplinados e controlados pelos Estados, mercados e os outros interesses dominantes, mas tambm da imaginao que os cidados desenvolvem sistemas colectivos de dissidncia e novos grafismos da vida colectiva (1999: 230). O que no fica claro nestes posicionamentos a elucidao das relaes sociais de poder que presidem produo tanto de homogeneizao como de diferenciao. Sem tal elucidao, estes dois "resultados" da globalizao so postos no mesmo p, sem que se conheam as vinculaes e a hierarquia entre eles. Esta elucidao particularmente til para analisar criticamente os processos de hibridizao ou de crioulizao que resultam do confronto ou da coabitao entre tendncias homogeneizantes e tendncias particularizantes (Hall e McGrew, 1992). Segundo Appadurai, "a caracterstica central da cultura global hoje a poltica do esforo mtuo da mesmidade e da diferena para se canibalizarem uma outra e assim proclamarem o xito do sequestro das duas ideias gmeas do Iluminismo, o universal triunfante e o particular resistente" (1997: 43). Um outro tema central na discusso sobre as dimenses culturais da globalizao - relacionado, alis, com o debate anterior - diz respeito questo de saber se ter emergido nas dcadas mais recentes uma cultura global (Featherstone, 1990; M. Waters, 1995). h muito reconhecido que, pelo menos desde o sculo XVI, a hegemonia ideolgica da cincia, da economia, da poltica e da religio europeias produziu, atravs do imperialismo cultural, alguns isomorfismos entre as diferentes culturas nacionais do sistema mundial. A questo , agora, de saber se, para alm disso, certas formas culturais tero emergido nas dcadas mais recentes, que so originalmente transnacionais ou cujas origens nacionais so relativamente irrelevantes pelo facto de circularem pelo mundo mais ou menos desenrai-

zadas das culturas nacionais. Tais formas culturais so identificadas por Appadurai como mediascapes e ide os capes (1990)14, por Leslie Sklair (1991) como cultura-ideologia do consumismo, por Anthony Smith como um novo imperialismo cultural (1990). De uma outra perspectiva, a teoria dos regimes internacionais tem vindo a canalizar a nossa ateno para os processos de formao de consenso ao nvel mundial e para a emergncia de uma ordem normativa global (Keohane e Nye, 1977; Keohane, 1985; Krasner, 1983; Haggard e Simmons, 1987). E ainda de outra perspectiva, a teoria da estrutura internacional acentua a forma como a cultura ocidental tem criado actores sociais e significados culturais por todo o mundo (G. Thomas et al., 1987).

A ideia de uma cultura global , claramente, um dos principais projectos da modernidade. Como Stephen Toulmin brilhantemente demonstrou (1990L pode ser identificado desde Leibniz at Hegel e desde o sculo XVII at ao nosso sculo. A ateno sociolgica concedida a esta ideia nas ltimas trs dcadas tem, contudo, uma base emprica especfica. Acredita-se que a intensificao dramtica de fluxos transfronteirios de bens, capital, trabalho, pessoas, ide ias e informao originou convergncias, isomorfismos e hibridizaes entre as diferentes culturas nacionais, sejam elas estilos arquitectnicos, moda, hbitos alimentares ou consumo cultural de massas. Contudo, a maior parte dos autores sustenta que, apesar da sua importncia, estes processos esto longe de conduzirem a uma cultura global.

A cultura por definio um processo social construdo sobre a intercepo entre o universal e o particular. Como salienta Wallerstein, "definir uma cultura uma questo de definir fronteiras" (1991 b: 187). De modo convergente, Appadurai afirma que o cultural o campo das diferenas, dos contrastes e das comparaes (1997: 12). Poderamos at afirmar que a cultura , em sua definio mais simples, a luta contra a uniformidade. Os poderosos e envolventes processos de difuso e imposio de culturas, imperialisticamente definidas como universais, tm sido confrontados, em todo o sistema mundial, por mltiplos e engenhosos processos de resistncia, identificao e indigenizao culturais. Todavia, o tpico da cultura global tem tido o mrito de mostrar que a luta poltica em redor da homogeneizao e da uniformizao culturais transcendeu a configurao territorial em que teve lugar desde o sculo XIX at muito recentemente, isto , o Estado-nao.

A este respeito, os Estados-nao tm tradicionalmente desempenhado um papel algo ambguo. Enquanto, externamente, tm sido os arautos da

14. Ver tambm King (1991); Hall e Gleben (1992).

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diversidade cultural, da autenticidade da cultura nacional, internamente, tm promovido a homogeneizao e a uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas locais existentes no territrio nacional, atravs do poder da polcia, do direito, do sistema educacional ou dos meios de comunicao social, e na maior parte das vezes por todos eles em conjunto. Este papel tem sido desempenhado com intensidade e eficcia muito variadas nos Estados centrais, perifricos e semiperifricos e pode estar agora a mudar como parte das transformaes em curso na capacidade regulatria dos Estados-nao. Sob as condies da economia mundial capitalista e do sistema interestatal moderno, parece haver apenas espao para as culturas globais parciais. Parcial, quer em termos dos aspectos da vida social que cobrem, quer das regies do mundo que abrangem. Smith, por exemplo, fala de uma "famlia de culturas" europeia, que consiste em motivos e tradies polticas e culturais abrangentes e transnacionais (o direito romano, o humanismo renascentista, o racionalismo iluminista, o romantismo e a democracia), "que emergiram em diversas partes do continente em diferentes perodos, continuando em alguns casos a emergir, criando ou recriando sentimentos de reconhecimento e parentesco entre os povos da Europa" (1990: 187). Vista de fora da Europa, particularmente a partir de regies e de povos intensivamente colonizados pelos europeus, esta famlia de culturas a verso quintessencial do imperialismo ocidental em nome do qual muita da tradio e da identidade cultural foi destruda. Dada a natureza hierrquica do sistema mundial, torna-se crucial identificar os grupos, as classes, os interesses e os Estados que definem as culturas parciais enquanto culturas globais, e que, por essa via, controlam a agenda da dominao poltica sob o disfarce da globalizao cultural. Se verdade que a intensificao dos contactos e da interdependncia transfronteirios abriu novas oportunidades para o exerccio da tolerncia, do ecumenismo, da solidariedade e do cosmopolitismo, no menos verdade que, simultaneamente, tm surgido novas formas e manifestaes de intolerncia, chauvinismo, de racismo, de xenofobia e, em ltima instncia, de imperialismo. As culturas globais parciais podem, desta forma, ter naturezas, alcances e perfis polticos muito diferentes. Nas actuais circunstncias, s possvel visualizar culturas globais pluralistas ou plurais. 1s por isso que a maior parte dos autores assume

uma postura prescritiva ou prospectiva sempre que fala de cultura global no singular. Para Hannerz, o cosmopolitismo "inclui uma postura favorvel coexistncia de culturas distintas na experincia individual... uma orientao, uma vontade de interagir com o Outro ... uma postura esttica e intelectual de abertura face a experincias culturais divergentes" (1990: 239). ChaseDunn, por seu lado, enquanto retira do pedestal o "universalismo normativo" de Parsons (1971) como um trao essencial do sistema capitalista mundial vigente, prope que tal universalismo seja transposto para "um novo nvel de sentido socialista, embora sensvel s virtudes do pluralismo nacional e tnico" (1991: 10 5i Chase-Dunn et al., 1998). Porfim, Wallerstein imagina uma cultura mundial somente num mundo libertrio-'igualitrio futuro, mas mesmo a haveria um lugar reservado para a resistncia cultural: a criao e a recriao constantes de entidades culturais particularistas "cujos objectos (reconhecidos ou no) seriam a restaurao da realidade universal de liberdade e igualdade" (1991b: 199).

No domnio cultural, o consenso neoliberal muito selectivo. Os fenmenos culturais s lhe interessam na medida em que se tornam mercadorias que como tal devem seguir o trilho da globalizao econmica. Assim, o consenso diz, sobretudo, respeito aos suportes tcnicos e jurdicos da produo e circulao dos produtos das indstrias culturais como, por exemplo, as tecnologias de comunicao e da informao e os direitos de propriedade intelectual.

6. A natureza das globallza,es

15. Ver tambm Featherstone (1990: 10); Wallerstein (1991b: 184); Chase-Dunn (1991: 103). Para Wallerstein o contraste entre o sistema-mundial moderno e os imprios mundiais anteriores reside no facto de o primeiro combinar uma nica diviso do trabalho com um sistema de Estados independentes e de sistemas culturais mltiplos. Wallerstein (1979: 5).

A referncia feita nas seces anteriores s facetas dominantes do que usualmente se designa por globalizao, alm de ser omissa a respeito da teoria da globalizao que lhe subjaz, pode dar a ideia falsa de que a globalizao um fenmeno linear, monoltico e inequvoco. Esta ideia da globalizao, apesar de falsa, hoje prevalecente e tende a s-lo tanto mais quanto a globalizao extravasa do discurso cientfico para o discurso poltico e para a linguagem comum. Aparentemente transparente e sem complexidade, a ideia de globalizao obscurece mais do que esclarece o que se passa no mundo. E o que obscurece ou oculta , quando visto de outra perspectiva, to importante que a transparncia e simplicidade da ideia de globalizao, longe de serem inocentes, devem ser considerados dispositivos ideolgicos e polticos dotados de intencionalidades especficas. Duas dessas intencionalidades devem ser salientadas.

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A primeira o que designo por falcia do determinismo. Consiste na inculcao da ideia de que a globalizao um processo espontneo, automtico, inelutvel e irreversvel que se intensifica e avana segundo uma lgica e uma dinmica prprias suficientemente fortes para se imporem a qualquer interferncia externa. Nesta falcia incorrem no s os embaixadores da globalizao como os estudiosos mais circunspectos. Entre estes ltimos, saliento Manuel Castells para quem a globalizao o resultado inelutvel da revoluo nas tecnologias da informao. Segundo ele, a "nova economia informacional porque a produtividade e competitividade assentam na capacidade para gerar e aplicar eficientemente informao baseada em conhecimento" e global porque as actividades centrais da produo, da distribuio e do consumo so organizadas escala mundial (1996: 66). A falcia consiste em transformar as causas da globalizao em efeitos da globalizao. A globalizao resulta, de facto, de um conjunto de decises polticas identificadas no tempo e na autoria. O Consenso de Washington uma deciso poltica dos Estados centrais como so polticas as decises dos Estados que o adoptaram com mais ou menos autonomia, com mais ou menos selectividade. No podemos esquecer que, em grande medida, e sobretudo ao nvel eco n mico e poltico, a globalizao hegemnica um produto de decises dos Estados nacionais. A desregulamentao da economia, por exemplo, tem sido um acto eminentemente poltico. A prova disso mesmo est na diversidade das respostas dos Estados nacionais s presses polticas decorrentes do Consenso de Washington. 16 O facto de as decises polticas terem sido, em geral, convergentes, tomadas durante um perodo de tempo curto, e de muitos Estados no terem tido alternativa para decidirem de modo diferente, no elimina o carcter poltico das decises, apenas desloca o centro e o processo poltico destas. Igualmente poltica reflexo sobre as novas formas de Estado que esto a emergir em resultado da globalizao, sobre a nova distribuio poltica entre prticas nacionais, prticas internacionais e prticas globais, sobre o novo formato das polticas pblicas em face da crescente complexidade das questes sociais, ambientais e de redistribuio. A segunda intencionalidade poltica do carcter no-poltico da globalizao a falcia do desaparecimento do Sul. Nos termos desta falcia as relaes Norte/Sul nunca constituram um verdadeiro conflito, mas durante

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16. Sobre esta questo, ver Stallings (19951 em que so analisadas as respostas regionais da Amrica Latina, do Sudeste Asitico e da frica sub-sahariana s presses globais. Ver tambm Boyer (19981 e Drache (19991.

muito tempo os dois plos das relaes foram facilmente identificveis, j que o Norte produzia produtos manufacturados, enquanto o Sul fornecia matrias-primas. A situao comeou-se a alterar na dcada de sessenta (deram conta disso as teorias da dependncia ou do desenvolvimento dependente) e transformou-se radicalmente a partir da dcada de oitenta. Hoje, quer ao nvel financeiro, quer ao nvel da produo, quer ainda ao nvel do consumo, o mundo est integrado numa economia global onde, perante a multiplicidade de interdependncias, deixou de fazer sentido distinguir entre Norte e Sul e, alis, igualmente entre centro, periferia e semiperiferia do sistema mundial. Quanto mais triunfalista a concepo da globalizao menor a visibilidade do Sul ou das hierarquias do sistema mundial. A ideia que a globalizao est a ter um impacto uniforme em todas as regies do mundo e em todos os sectores de actividade e que os seus arquitectos, as empresas multinacionais, so infinitamente inovadoras e tm capacidade organizativa suficiente para transformar a nova economia global numa oportunidade sem precedentes. Mesmo os autores que reconhecem que a globalizao altamente selectiva, produz assimetrias e tem uma geometria varivel, tendem a pensar que ela desestruturou as hierarquias da economia mundial anterior. de novo o caso de Castells para quem a globalizao ps fim ideia de "Sul" e mesmo ideia de "Terceiro Mundo", na medida em que cada vez maior a diferenciao entre pases e no interior de pases, entre regies (1996: 92, 112). Segundo ele, a novssima diviso internacional do trabalho no ocorre entre pases, mas entre agentes econmicos e entre posies distintas na economia global que competem globalmente, usando a infraestrutura tecnolgica da economia informacional e a estrutura organizacional de redes e fluxos (1996: 147). Neste sentido, deixa igualmente de fazer sentido a distino entre centro, periferia e semiperiferia no sistema mundial. A nova economia uma economia global distinta da economia-mundo. Enquanto esta ltima assentava na acumulao de capital, obtida em todo o mundo, a economia global tem a capacidade para funcionar como uma unidade em tempo real e escala planetria (1996: 92). Sem querer minimizar a importncia das transformaes em curso, penso, no entanto, que Castells leva longe demais a imagem da globalizao como o bulldozer avassalador contra o qual no h resistncia possvel, pelo menos a nvel econmico. E com isso leva longe demais a ideia da segmentao dos processos de incluso/excluso que esto a ocorrer. Em primeiro lugar, o prprio Castells quem reconhece que os processos de excluso podem atingir um continente por inteiro (frica) e dominar inteiramente sobre os processos de incluso num subcontinente (a Amrica Lati-

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na) (1996: 115-136). Em segundo lugar, mesmo admitindo que a economia global deixou de necessitar dos espaos geopolticos nacionais para se reproduzir, a verdade que a dvida externa continua a ser contabilizada e cobrada ao nvel de pases e por via dela e da financiarizao do sistema econmico que os pases pobres do mundo se transformaram, a partir da dcada de oitenta, em contribuintes lquidos para a riqueza dos pases ricos. Em terceiro lugar, ao contrrio do que se pode depreender do quadro traado por Castells, a convergncia entre pases na economia global to significativa quanto a divergncia e isto particularmente notrio entre os pases centrais (Drache, 1999: 15). Porque as polticas de salrios e de segurana social continuaram a ser definidas a nvel nacional, as medidas de liberalizao desde a dcada de oitenta no reduziram significativamente as diferenas nos custos do trabalho entre os diferentes pases. Assim, em 1997, a remunerao mdia da hora de trabalho na Alemanha (32 $US) era 54% mais elevada que nos EUA (17.19 $US). E mesmo dentro da Unio Europeia, onde tm estado em curso nas ltimas dcadas polticas de "integrao profunda", as diferenas de produtividade e de custos salariais tm-se mantido com a excepo da Inglaterra, em que os custos salariais foram reduzidos em 40% desde 1980. Tomando a Alemanha Ocidental como termo de comparao (100%), a produtividade do trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e os custos salariais, 37,4%. Estes nmeros eram para a Espanha, 62% e 66,9%, respectivamente; para a Inglaterra, 71,7% e 68%; e para a Irlanda, 69,5 e 71,8% (Drache, 1999: 24). Por ltimo, difcil sustentar que a selectividade e a fragmentao excludente da "nova economia" destruiu o conceito de "Sul" quando, como vimos atrs, a disparidade de riqueza entre pases pobres e pases ricos no cessou de aumentar nos ltimos vinte ou trinta anos. certo que a liberalizao dos mercados desestruturou os processos de incluso e de excluso nos diferentes pases e regies. Mas o importante analisar em cada pas ou regio a ratio entre incluso e excluso. essa ratio que determina se um pas pertence ao Sul ou ao Norte, ao centro ou periferia ou semiperiferia do sistema mundial. Os pases onde a integrao na economia mundial se processou dominantemente pela excluso so os pases do Sul e da periferia do sistema mundial. Estas transformaes merecem uma ateno detalhada, mas no restam dvidas que s as viragens ideolgicas que ocorreram na comunidade cientfica, tanto no Norte como no Sul, podem explicar que as iniquidades e assimetrias no sistema mundial, apesar de terem aumentado, tenham perdido centralidade analtica. Por isso, o "fim do Sul", o "desaparecimento do Terceiro Mundo" so, acima de tudo, um produto das mudanas de "sensibilidade sociolgica" que devem ser, elas prprias, objecto de escrutnio. Em

alguns autores, o fim do Sul ou do Terceiro Mundo no resulta de anlises especficas sobre o Sul ou o Terceiro Mundo, resulta to-s do "esquecimento" a que estes so votados. A globalizao vista a partir dos pases centrais tendo em vista as realidades destes. assim, muito particularmente, o caso dos autores que se centram na globalizao econmica. 17 Mas as anlises culturalistas incorrem frequentemente no mesmo erro. A ttulo de exemplo, as teorias da reflexividade aplicadas modernidade, globalizao ou acumulao (Beck, 1992; Giddens, 1991; Lash e Urry, 1996) e, em particular, a ideia de Giddens que a globalizao a "modernizao reflexiva", esquecem que a grande maioria da populao mundial sofre as consequncias de uma modernidade ou de uma globalizao nada reflexiva ou que a grande maioria dos operrios vivem em regimes de acumulao que esto nos antpodas da acumulao reflexiva.

Tanto a falcia do determinismo como a falcia do desaparecimento do Sul tm vindo a perder credibilidade medida que a globalizao se transforma num campo de contestao social e poltica. Se para alguns ela continua a ser considerada como o grande triunfo da racionalidade, da inovao e da liberdade capaz de produzir progresso infinito e abundncia ilimitada, para outros ela antema j que no seu bojo transporta a misria, a marginalizao e a excluso da grande maioria da populao mundial, enquanto a retrica do progresso e da abundncia se torna em realidade apenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados.

Nestas circunstncias, no admira que tenham surgido nos ltimos anos vrios discursos da globalizao. Robertson (1998), por exemplo, distingue quatro grandes discursos da globalizao. O discurso regional, como, por exemplo, o discurso asitico, o discurso europeu ocidental, ou o discurso latino-americano, tem uma tonalidade civilizacional, sendo a globalizao posta em confronto com as especificidades regionais. Dentro da mesma regio, pode haver diferentes subdiscursos. Por exemplo, em Frana h uma forte tendncia para ver na globalizao uma ameaa" anglo-americana" sociedade e cultura francesa e s de outros pases europeus. Mas, como diz Robertson, o anti-globalismo dos franceses pode facilmente converter-se no projecto francs de globalizao. O discurso disciplinar diz respeito ao modo como a globalizao vista pelas diferentes cincias sociais. O trao mais saliente deste discurso a salincia que dada globalizao econmica. O discurso ideolgico entrecruza-se com qualquer dos anteriores e diz respeito avaliao poltica dos processos de globalizao. Ao discurso pr-globali-

17. Entre muitos outros, ver Boyer (1996,1998); Drache (1999).

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zao contrape-se o discurso anti-globalizao e em qualquer deles possvel distinguir posies de esquerda e de direita. Finalmente, o discurso feminista que, tendo comeado por ser um discurso anti-globalizao - privilegiando o local e atribuindo o global a uma preocupao masculina -, hoje tambm um discurso da globalizao e distingue-se pela nfase dada aos aspectos comunitrios da globalizao. A pluralidade de discursos sobre a globalizao mostra que imperioso produzir uma reflexo terica crtica da globalizao e de o fazer de modo a captar a complexidade dos fenmenos que ela envolve e a disparidade dos interesses que neles se confrontam. A proposta terica que apresento aqui parte de trs aparentes contradies que, em meu entender, conferem ao perodo histrico, em que nos encontramos, a sua especificidade transicional. A primeira contradio entre globalizao e localizao. O tempo presente surge-nos como dominado por um movimento dialctico em cujo seio os processos de globalizao ocorrem de par com processos de localizao. De facto, medida que a interdependncia e as interaces globais se intensificam, as relaes sociais em geral parecem estar cada vez mais desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos s opes, que atravessam fron- . teiras at h pouco tempo policiadas pela tradio, pelo nacionalismo, pela linguagem ou pela ideologia, e frequentemente por todos eles em conjunto. Mas, por outro lado, e em aparente contradio com esta tendncia, novas identidades regionais, nacionais e locais esto a emergir, construdas em torno de uma nova proeminncia dos direitos s razes. Tais localismos, tanto se referem a territrios reais ou imaginados, como a formas de vida e de sociabilidade assentes nas relaes face-a-face, na proximidade e na interactividade. Localismos territorializados so, por exemplo, os protagonizados por povos que, ao fim de sculos de genocdio e de opresso cultural, reivindicam, finalmente com algum xito, o direito autodeterminao dentro dos seus territrios ancestrais. este o caso dos povos indgenas da Amrica Latina e tambm da Austrlia, do Canad e da Nova Zelndia. Por seu lado, os localismos translocalizados so protagonizados por grupos sociais translocalizados, tais como os imigrantes rabes em Paris ou Londres, os imigrantes turcos na Alemanha ou os imigrantes latinos nos EUA. Para estes grupos, o territrio a ideia de territrio, enquanto forma de vida em escala de proximidade, imediao, pertena, partilha e reciprocidade. Alis, esta reterritorializao, que usualmente ocorre a um nvel infra-estatal, pode tambm ocorrer a um nvel supra-estatal. Um bom exemplo deste ltimo processo a Unio Europeia, que, ao mesmo tempo que desterritorializa as

relaes sociais entre os cidados dos Estados membros, reterritorializa as relaes sociais com Estados terceiros (a "Europa-fortaleza").

A segunda contradio entre o Estado-nao e o no-Estado transnacional. A anlise precedente sobre as diferentes dimenses da globalizao dominante mostrou que um dos pontos de maior controvrsia, nos debates sobre a globalizao, a questo do papel do Estado na era da globalizao. Se, para uns, o Estado uma entidade obsoleta e em vias de extino ou, em qualquer caso, muito fragilizada na sua capacidade para organizar e regular a vida social, para outros o Estado continua a ser a entidade poltica central, no s porque a eroso da soberania muito selectiva, como, sobretudo, porque a prpria institucionalidade da globalizao - das agncias financeiras multilaterais desregulao da economia - criada pelos Estados nacionais. Cada uma destas posies capta uma parte dos processos em curso. Nenhuma delas, porm, faz justia s transformaes no seu conjunto porque estas so, de facto, contraditrias e incluem tanto processos de estatizao - a tal ponto que se pode afirmar que os Estados nunca foram to importantes como hoje - como processos de desestatizao em que interaces, redes e fluxos transnacionais da maior importncia ocorrem sem qualquer interferncia significativa do Estado, ao contrrio do que sucedia no perodo anterior.

A terceira contradio, de natureza poltico-ideolgica, entre os que vem na globalizao a energia finalmente incontestvel e imbatvel do capitalismo e os que vem nela uma oportunidade nova para ampliar a escala e o mbito da solidariedade transnacional e das lutas anticapitalistas. A primeira posio , alis, defendida, tanto pelos que conduzem a globalizao e dela beneficiam, como por aqueles para quem a globalizao a mais recente e a mais virulenta agresso externa contra os seus modos de vida e o seu bem-estar.

Estas trs contradies condensam os vectores mais importantes dos processos de globalizao em curso. luz delas, fcil ver que as disjunes, as ocorrncias paralelas e as confrontaes so de tal modo significativas que o que designamos por globalizao , de facto, uma constelao de diferentes processos de globalizao e, em ltima instncia, de diferentes e, por vezes, contraditrias, globalizaes.

Aquilo que habitualmente designamos por globalizao so, de facto, conjuntos diferenciados de relaes sociaisj diferentes conjuntos de relaes sociais do origem a diferentes fenmenos de globalizao. Nestes termos, no existe estritamente uma entidade nica chamada globalizao j existem, em vez disso, globalizaesj em rigor, este termo s deveria ser usado

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no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e no substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relaes sociais, as globalizaes envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalizao a histria dos vencedores contada pelos prprios. Na verdade, avitria aparentemente to absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, errado pensar que as novas e mais intensas interaces transnacionais produzidas pelos processos de globalizao eliminaram as hierarquias no sistema mundial. Sem dvida que as tm vindo a transformar profundamente, mas isso no significa que as tenham eliminado. Pelo contrrio, a prova emprica vai no sentido oposto, no sentido da intensificao das hierarquias e das desigualdades. As contradies e disjunes acima assinaladas sugerem que estamos num perodo transicional no que respeita a trs dimenses principais: transio no sistema de hierarquias e desigualdades do sistema mundial; transio no formato institucional e na complementaridade entre instituies; transio na escala e na configurao dos conflitos sociais e polticos. A teoria a construir deve, pois, dar conta da pluralidade e da contradio dos processos da globalizao em vez de os tentar sub sumir em abstraces redutoras. A teoria que a seguir proponho assenta no conceito de sistema mundial em transio. Em transio porque contm em si o sistema mundial velho, em processo de profunda transformao, e um conjunto de realidades emergentes que podem ou no conduzir a um novo sistema mundial, ou a outra qualquer entidade nova, sistmica ou no. Trata-se de uma circunstncia que, quando captada em corte sincrnico, revela uma total abertura quanto a possveis alternativas de evoluo. Tal abertura o sintoma de uma grande instabilidade que configura uma situao de bifurcao, entendida em sentido prigoginiano. uma situao de profundos desequilbrios e de compromissos volteis em que pequenas alteraes podem produzir grandes transformaes. Trata-se, pois, de uma situao caracterizada pela turbulncia e pela exploso das escalas. 18 A teoria que aqui proponho pretende dar conta da situao de bifurcao e, como tal, no pode deixar de ser, ela prpria, uma teoria aberta s possibilidades de caos. O sistema mundial em transio constitudo por trs constelaes de prticas colectivas: a constelao de prticas interestatais, a constelao de prticas capitalistas globais e a constelao de prticas sociais e culturais transnacionais. As prticas interestatais correspondem ao papel dos Estados

no sistema mundial moderno enquanto protagonistas da diviso internacional do trabalho no seio do qual se estabelece a hierarquia entre centro, periferia e semiperiferia. As prticas capitalistas globais so as prticas dos agentes econmicos cuja unidade espacio-temporal de actuao real ou potencial o planeta. As prticas sociais e culturais transnacionais so os fluxos transfronteirios de pessoas e de culturas, de informao e de comunicao. Cada uma destas constelaes de prticas constituda por: um conjunto de instituies que asseguram a sua reproduo, a complementaridade entre elas e a estabilidade das desigualdades que elas produzem; uma forma de poder que fornece a lgica das interaces e legitima as desigualdades e as hierarquias; uma forma de direito que fornece a linguagem das relaes intrainstitucionais e interinstitucionais e o critrio da diviso entre prticas permitidas e proibidas; um conflito estrutural que condensa as tenses e contradies matriciais das prticas em questo; um critrio de hierarquizao que define o modo como se cristalizam as desigualdades de poder e os conflitos em que eles se traduzem; finalmente, ainda que todas as prticas do sistema mundial em transio estejam envolvidas em todos os modos de produo de globalizao, nem todas esto envolvidas em todos eles com a mesma intensidade.

18. Sobre os conceitos de turbulncia de escalas e de exploso de escalas, ver Santos/1996).