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  • So Boaventura

    REVISTA FILOSFICA

  • ISSN 1984-1728

    FAE - Centro Universitrio

    Instituto de Filosofia So Boaventura

    Curitiba 2013

    So BoaventuraRevista Filosfica

    Revista Filosfica So Boaventura, v. 6, n. 1, p. 1-164

    janeiro/junho 2013

  • Copyright 2008 by autores

    Qualquer parte desta publicao pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

    FAE - Centro Universitrio Instituto de Filosofia So Boaventura

    Instituto mantido pela Associao Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)

    R. 24 de maio, 135 80230-080 Curitiba PR http://www.saoboaventura.edu.br/

    E-mail: [email protected] [email protected]

    Reitor: Fr. Nelson Jos Hillesheim Diretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos

    Pr-reitor acadmico: Andr Luis Gontijo Resende Pr-reitor administrativo: Regis Ferreira Negro

    Diretor do IFSB: Dr. Jairo Ferrandin Editores: Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini

    Comisso editorial: Dr. Roberto H. Pich Ms. Vicente Keller Dr. Jaime Spengler Dr. Joo Mannes

    Dr. Marcelo Perine

    Conselho editorial: Dr. Osmar Ponchirolli

    Dr. Mauro Simes Dr. Antnio Joaquim Pinto

    Dr. cio Elvis Pizzeta Dr. Leonardo Mees

    Ms. Solange Aparecida de Campos Costa Dr. Renato Kirchner

    Reviso: Editoria

    Diagramao: Sheila Roque

    Capa: Roland Cirilo

    Catalogao na fonte

    Revista filosfica So Boaventura/ FAE - Centro Universitrio Franciscano do Paran. Instituto de Filosofia So Boaventura. v. 1, n. 1, jul/dez 2008- . Curitiba: FAE - Centro Universitrio Franciscano do Paran, 2008- v. 23SemestralISSN 1984-17281. Filosofia Peridicos. I. FAE - Centro Universitrio. Instituto de Filosofia So Boaventura. CDD - 105

  • SumRio EDITORIAL Enio Paulo Giachini ..........................................................................................................7

    ARTIGOS Kierkegaard, apstolo da existncia Emmanuel Carneiro Leo .................................................................................................11

    A superao da metafsica em Heidegger, preparada por Kierkegaard (e Nietzsche): O pr-teortico (vortheoretisch), a clareira (die Lichtung), o elemento (das Element) do pensar Marcos rico de Arajo Silva ............................................................................................23

    A propsito de uma compreenso ontolgica da temporalidade e historicidade do ser-a Renato Kirchner ...............................................................................................................47

    A filosofia moral em Roger Bacon: sua excelncia, constituio e fundamentos metafsicos Marcos Aurlio Fernandes ................................................................................................63

    A tica do amor em Santo Agostinho: Uma apreciao Srgio Ricardo Gonalves Dusilek .....................................................................................85

    ARTIGOS-RESUMO DE MONOGRAFIA Perspectivas de Nietzsche acerca da moral Osias Marques Padilha....................................................................................................103

    O princpio de responsabilidade de Hans Jonas como fundamento filosfico de uma tica ambiental Clovis Pasinato .................................................................................................................117

    TRADUO Origem e meta da histria Karl Jaspers ......................................................................................................................137

    RESENHAS ........................................................................................................................155

  • 7Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2013

    EditoRial

    Enio Paulo Giachini

    Apresentamos o vol. 6, n. 1 da Revista filosfica S. Boaventu-ra. Este nmero no traz uma temtica nica. Dois artigos dedicados ao pensamento de Kirkegaard; outros voltados ao pensar de Heidegger, Nietzsche, Bacon, Agostinho, e outros da Idade Mdia. O novo e o velho.

    Pensar significa sempre abrir caminho para que o velho se reinaugure, para que abra perspectivas para presente e porvir. O tempo do pensar nunca linear. Nunca se sabe donde provm a surpresa que abre a admirao, se do passado ou do porvir. As formaes do esprito do passa-do testemunham sempre uma autoinveno do homem. Cristalizaram-se como experincias onde o homem pode viver humanamente. E s isso que se recolhe no ba de tesouros do passado. Todavia esse guardado nos coloca na iminncia de um perigo. Vivemos, atualmente, na necessida-de da transformao fundamental. No limiar do predomnio absoluto do moderno sobre toda virtude limitada, estamos num dilema: entregar-nos ao poderio tcnico e perder a alma, ou arriscar perder-nos e reencontrar a renovao do esprito. Para atinar com as novas possibilidades do esprito humano, precisamos retornar e mergulhar novamente nos princpios do passado. A principal lio que dali podemos tomar a da edificao da vida no limite e na ausculta do entorno, o mais prximo. Hoje, este entorno, o mais pr-ximo, se nos tornou o mais distante. Com Nietzsche: No vos aconselho a amar o prximo, mas o mais distante. Esse ouvir poder nos mostrar o perigo do moderno.

    A facilidade com que tudo moldamos e resolvemos hoje com ao e concreto, com chips e informaes, leva de troco nosso contato corpo a corpo com a vida. Aquilo com que lidamos hoje parece dever moldar-se e adequar-se perfeitamente ao nosso desejo. Toda dificuldade e esforo so do mal e precisam ser banidos, mas isso modifica, para baixo, nosso

  • 8poder. Somos mais abrangentes e polisapientes, mas no temos identidade; tudo realizamos com mais facilidade, mas no fundo perdemos o verdadeiro resultado. J no dispomos do esprito inventivo, criativo, no precisamos de superao; ir alm do que est mo tornou-se algo obsoleto. O lema do moderno gozar o sentimento, em vez de buscar uma grande direo no seio da necessidade e da premncia.

    Para que se reconquiste nova a humanidade, as velhas formas de sentido ho de morrer e ressurgir. H que se redescobrir o poder fascinante de autoperfazer-se que se recolheu para dentro da humanidade. Humanidade no factvel nem pela pesquisa gentica, nem por processos de aprendizagem de comportamentos ou de manipulao de informaes nem por revoluo.

    Essa talvez a nossa angstia moderna, a garganta estreita por onde estamos de passagem. O problema moderno um problema de passagem, que no pode ser feito e edificado com o poder mediador. Estgios no caminho da humanida-de. Lembrando dessa angstia e desse portal de passagem, lembramos neste nmero tambm o segundo centenrio do nascimento de Kirkegaard em 05 de maio deste ano.

    Uma boa leitura a todos.

    GIACHINI, Enio Paulo. Editorial

  • ARTIGOS

  • 11

    Em 42 anos de vida, entre 5 de maio de 1813 e

    11 de novembro de 1855, Soeren Aabye Kierkegaard

    nasceu, escreveu e morreu. Desde 1832, com dezenove

    anos, comeou um Dirio que s terminou de escrever

    dois anos antes de sua morte. Em todos seus escritos,

    Kierkegaard confirma mais uma vez o testemunho de

    toda histria da filosofia: um grande filsofo diz sem-

    pre a mesma coisa, mas de maneira to criativa, que

    cada vez parece e aparece a primeira vez. o segredo

    dos criadores. Assim como todo grande pintor pinta

    sempre a mesma pintura em todos os seus quadros,

    assim como todo grande msico toca sempre a mesma

    msica em todas as suas msicas, assim como todo

    grande poeta cria sempre a poesia em todos os poe-

    mas. Henry Bergson (1859-1941) j dissera no incio

    do sculo XX: um filsofo digno deste nome no diz

    seno uma s coisa, ou melhor, tenta diz-la mais do

    que consegue. E no diz seno uma s coisa, porque

    no viu seno um s ponto, mesmo que se trate menos

    de uma viso do que de um contacto.

    Por fora deste contacto, Kierkegaard escreveu

    os 20 volumes de seus escritos, tal como constam

    das Samlede Vaerker na 3 Edio de 1962-64 e os

    22 volumes de seus Papierer, na 2a edio de 1968-

    1978, em Kopenhagen.* Prof. emrito da UFRJ.

    Kierkegaard, apstolo da existncia

    Emmanuel Carneiro Leo*

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    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 11-22, jan./jun. 2013

  • 12

    Em 05 de maio prximo vindouro, comemora-se, portanto, o segundo centen-rio de seu nascimento. Para celebr-lo, vamos apresentar aqui e agora alguns feitos significativos de sua vida e o ncleo de seu pensamento, fonte donde brotou toda a sua escritura.

    Era o caula temporo de sete irmos de um casal rigidamente religioso. O pai, rico empresrio de malhas e profundamente melanclico, acumulara grande fortuna e estava com 56 anos, e a me, mulher simples do povo, com 44, quando o ltimo filho nasceu. No Dirio, Kierkegaard se classifica, como Isaac, filho da velhice.

    Cedo se abateu sobre a famlia a tragdia. Aos seis anos Kierkegaard se depara com a morte. Em 1819 morre-lhe um dos irmos. Trs anos depois, vem a falecer a irm mais velha, Maren Christine com 25 anos. Dez anos mais tarde, segue-lhe Nico-line com 33 anos, para, no ano seguinte, falecerem Niels Andreas de 24 anos, a me, Ana aos 64 anos e a irm predileta, Petrea. Restaram apenas Soeren e o irmo mais velho, Peter Christian.

    A melancolia do pai sentiu nesta sucesso de mortes a mo de Deus, castigando seus pecados. Preocupado com a compleio frgil e a natureza doentia do caula coxo, o pai encaminha os dois filhos restantes para a carreira eclesistica de pastores luteranos.

    Para Kierkegaard, o pai encarnava a perfeio moral e religiosa. Reunia em si o ideal de Ego, o Ego ideal e o Superego. Mas toda esta idealizao veio de gua abaixo quando tomou conhecimento de que era filho de uma mulher estuprada. que a primeira mulher de Michael Kierkegaard morrera cedo, sem deixar filhos. O pai vio-lenta, ento, a empregada da casa, uma jovem simples do povo. E trs meses depois de espos-la, nasceu o primeiro filho. Tudo isso constituiu o primeiro terremoto na vida do jovem Kierkegaard.

    Brigou, ento, com o pai, abandonou os cursos e se entregou a uma vida desre-grada de Dandy e Playboy. As despesas mandava o pai pagar. No Dirio, confessou que neste perodo era um Janurio, o deus romano de duas caras: uma cara alegre e gozadora para fora e outra, triste e melanclica para dentro. No adiantou o pai ter-lhe suspendido a mesada, pois se endividava com os amigos.

    S que em 1838 falece seu amigo, o professor de tica e teologia moral na uni-versidade, Poul Martin Moeller, grande humanista clssico, a quem dedicar em 1844

    O Conceito de Angstia (Begrebet Angest). Esta morte o leva a refazer seu modo de

    vida. Reconcilia-se com o pai, que falece pouco depois, retoma o curso universitrio e

    se prepara para ser pastor, seguindo o irmo mais velho. Como outrora no primeiro

    LEO, Emmanuel Carneiro. Kierkegaard, apstolo da existncia

  • 13

    grau, tambm agora, sua inteligncia privilegiada lhe garante pleno sucesso em todos

    os cursos e nas provas de retrica. Conclui os cursos em 1840 e prepara a famosa tese

    de lurea sobre a ironia em Scrates (Om Begrebet Ironi med stadig hinsyn till Socra-

    tes). Uma tese concluda em menos de um ano, escrita em dinamarqus e defendida

    perante uma banca de professores da universidade. Estes teriam preferido uma tese

    em latim. A primeira arguio lamentou o fato de nem todos terem condies de

    escrever em latim. Kierkegaard, em troca, respondeu, ento, a todas as perguntas e

    arguies num latim castio.

    Com o ttulo de doutor resolveu anunciar o noivado com Regina Olsen, jovem filha

    de alto funcionrio da Corte. Poucos meses depois, angustiado com a deciso, desfez

    o compromisso, visando poupar a noiva de uma vida de melancolia e angstia, como

    escreveu no Dirio, anos depois. Foi o segundo terremoto de sua vida.

    Viajou aps alguns meses para Berlim a fim de frequentar os cursos de Schelling,

    na esperana de encontrar uma crtica definitiva do idealismo de Hegel. Decepcio-

    nado com Schelling, retornou para Copenhagen e iniciou uma atividade frentica de

    escritor durante 14 anos.

    Com a publicao do ltimo livro em 1845, pensou ter encerrado a carreira de

    escritor religioso. Eis, porm, que o semanrio sarcstico, O Corsrio, publicou uma

    apreciao negativa de seu livro As Etapas no Caminho da Vida, apreciao escrita

    por seu antigo mentor de estudos na universidade, Martensen. Kierkegaard respondeu

    com um artigo mordaz em que confessava ser prefervel a crtica ao elogio de uma

    tal publicao. O editor aceitou, ento, o desafio e publicou uma srie de artigos

    e caricaturas, ridicularizando Kierkegaard. Em resposta, Kierkegaard escreveu nove

    nmeros de O instante (Oyebliket). Foi o terceiro e ltimo terremoto de sua vida.

    Em outubro de 1855, desfaleceu em plena rua e, levado para o hospital, faleceu

    alguns meses depois, aos 11 de novembro, tendo recusado os sacramentos.

    Para Heidegger, Kierkegaard foi o nico escritor religioso em sintonia com o des-

    tino de seu tempo. Que destino esse? Era o destino de um sculo revolucionrio,

    cuja necessidade radical de mudana e transformao de toda vida, sobretudo da

    vida crist, tanto o angustiava.

    E angstia, o que isso para Kierkegaard?

    a fora criadora da existncia, vigor livre de criao. No constitui uma entre

    muitas outras possibilidades humanas. Angstia perfaz toda condio humana em

    todos os indivduos. Ningum aprende a angustiar-se. A angstia vive e vivifica todo

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 11-22, jan./jun. 2013

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    encanto e desencanto entre os homens. Acontece sempre em cada empenho de ser

    e em todo desempenho de no ser. Pelo simples fato de vivermos, ns estamos e

    no estamos no que somos e no somos, no que temos e no temos. E de modo to

    radical que quase sempre nem percebemos a presena provocante da angstia em

    tudo que fazemos ou deixamos de fazer. O homem em cada um de ns, antes de ser

    e para ser qualquer coisa, antes de entrar e para entrar em qualquer relacionamento,

    antes de lanar-se e para lanar-se em qualquer empreendimento, j e tem de ser o

    que busca e se esfora para obter. Por isso, em qualquer hora, tanto outrora quanto

    agora, j soou o instante e a vez da angstia.

    E como que sabemos de tudo isto?

    Ns sabemos e no sabemos com um sabor feito de experincia, como o Velho

    do Restelo. Ns o sabemos e no sabemos com o sabor do gosto de ser que sentimos.

    Ns o sabemos e no sabemos em todo desgosto de no ser o que pretendemos. Na

    doura e no prazer, na amargura e na dor, um el incontentvel nos atropela o senso

    e domina tanto o que temos e no somo como o que no temos, mas somos, como

    o que nem temos nem somos.

    Em nossa caminhada pela vida experimentamos muita coisa, procuramos em todo

    esforo, buscamos sempre o melhor, antes de nos apercebermos de que a angstia

    no algo, um contedo, nem uma coisa que no se deixa pegar. Desde sempre so-

    mos sua propriedade e estamos em seu domnio. S muito raramente e ainda assim

    de modo implcito, lhe pressentimos a fora desconhecida. A angstia s se d, mas

    sempre se d na medida em que se esconde, s acontece enquanto se retrai, s se

    oferece quando foge. Nem sabemos, ao certo, o que nos ocorre e se passa conosco.

    Assim, num grande desespero da existncia, quando todo peso parece desaparecer

    da vida e se obscurece todo sentido, surge a angstia. Talvez apenas insinuada numa

    retrao tnue que vibra em profuso de sentimentos e bruxuleia numa confuso de

    tudo com todos, para logo se esboroar. Numa grande esperana do corao, quando

    tudo, de repente, se transfigura e parece nos atingir pela primeira vez, como se fosse

    mais fcil perceber a ausncia e o no ser do que sentir a presena e o ser, emerge e

    se apresenta, ento, num toque silencioso a angstia da existncia. Numa depresso

    da vida, quando distamos igualmente da esperana e do desespero e a banalidade

    de todo dia estende um vazio onde se nos afigura indiferente viver ou no viver, a

    angstia explode no barulho de um silncio ensurdecedor. Em todo e qualquer caso, a

    angstia nunca se d, como experincia direta, mas num sentir estranho e misterioso.

    LEO, Emmanuel Carneiro. Kierkegaard, apstolo da existncia

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    Em suas peregrinaes de ser, no ser e vir a ser, o indivduo sente a cada passo

    de sua vida uma diferena insupervel entre possibilidade e realizao. a estranheza

    constitutiva e o desafio prprio da existncia histrica dos homens. Com ser inesgo-

    tvel, a possibilidade tem sempre de ser sub-reptcia. Sua vigncia nunca direta.

    Seu impacto sempre oblquo, por ser infindo. As possibilidades acontecem nas rea-

    lizaes, medida que se retiram para as limitaes da vida de cada um. Ora, dar-se

    enquanto se retrai, tornar-se presente na ausncia, manter-se vigente na falta, eis o

    vigor angustiante da realidade na existncia. A fora e o modo de ser de todo indiv-

    duo se caracterizam pela integrao de identidade e diferena no movimento desta

    angstia de ser e no ser. Sendo histrico e biogrfico, a um s tempo, o indivduo

    torna-se uma viagem entre possibilidades inesgotveis e realizaes deficientes. Para

    existir tem de irromper nas possibilidades de seus empenhos e nesta irrupo insta-

    lam-se limites e restries em tudo que e est sendo, em tudo que no nem est

    sendo, em tudo que est apenas vindo a ser. Em sua biografia, o existente sente escoar

    pelos dedos as realizaes, sem poder nem det-las, nem dirigi-las, nem incorpor-las.

    Impulsionado pelo impacto dessa angstia, constri a existncia em contato di-

    reto da sua liberdade com os dados e as condies de seu tempo, de seu ambiente,

    de sua famlia. As fases biogrficas so percalos do choque oblquo e do contato

    direto com as variaes provocadas pelo impacto da angstia na liberdade. Para fazer

    a sua biografia, o indivduo sente-se feito pelos limites e restries de sua prpria

    individualidade.

    nestes termos que sem angstia no se d liberdade. Diz um provrbio

    germnico: Wer hat die Wahl, hat die Qual (Quem tem de escolher tem de sofrer).

    Em Kierkegaard, a formulao existencial: quem passou pela vida sem angstia,

    passou pela vida, no existiu. pela angstia que se produzem realizaes privilegia-

    das, realizaes que parecem abolir as diferenas no somente de espao e tempo,

    como sobretudo entre ser e poder ser. Por isso, que do acesso, embora indireto,

    ao desafio de possibilidades em fuga. So as criaes. Em seu envio, concentram-se

    instantes intensos de uma temporalidade no apenas povoada de desempenhos, mas

    provida da angstia de possibilidades em retrao. As criaes no so, portanto,

    excees regra da histria biogrfica e social dos homens. Criao vigor inaugural

    da prpria vida, existindo nos indivduos. Sentir a criao, como exceo, equivale a

    avaliar o grandioso pelo pequeno, reduzir o impulso de reforma e transformao

    mediocridade da repetio. Se as retas no sonham, como as curvas, preciso

    vencer a repetio para no acordar o sonho das curvas. A angstia de J traz consigo

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 11-22, jan./jun. 2013

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    mais fora criadora do que o entusiasmo e o espanto de Plato e Aristteles, ou a dialtica de Hegel e as descobertas da cincia. Toda criao a ventura singular de um salto no escuro. Nenhum criador sabe, no sentido de conhecer e controlar, tanto o porqu, quanto o como de sua criao. Toda criao consiste numa aventura singular da angstia de nossa liberdade. O instante de inveno, oyeblik, no apenas nunca se repete como tambm nunca se aprende.

    Em sua existncia, Kierkegaard vive sempre a angstia de uma passagem histrica que se improvisa num risco e se arrisca na tenso de muitas improvisaes. Junto com Marx e Nietzsche, no sculo XIX, e com Freud, depois no sculo XX, Kierkegaard um revolucionrio da metafsica. Chama-se, aqui, de metafsica toda realizao histrica que se d e acontece com a pretenso de um fundamento inconcusso, por ser abso-luto, seja material ou imaterial, ou ambos ao mesmo tempo. Marx liga, no sentido de fazer depender, a revoluo social infraestrutura de um sistema de produo, de igualdade e distribuio. Nietzsche liga a revoluo histrica do niilismo ao Poder de Vontade do Eterno Retorno. Freud liga a revoluo de todo comportamento di-nmica inconsciente do Outro, minsculo ou maisculo. Kierkegaard liga a revoluo do indivduo existncia angustiada e paradoxal em cada homem de um cristianismo originrio. , por isso, que merece o ttulo de Apstolo da Existncia. S que apstolo, aqui, tem o sentido originrio do verbo grego apo-stellw, ho apostollos diz o enviado pela e para a existncia dos indivduos.

    A influncia de Kierkegaard na filosofia contempornea se deve principalmente crtica existencial a que submeteu o sistema de Hegel dominante, em seu tempo e ambiente. Trata-se de uma crtica impiedosa que se estendeu a toda e qualquer sis-tematizao com ou sem dialtica, quer se trate de anlise racional ou irracional, seja emprica ou transcendental. que para a existncia o desafio no est no ponto de partida, na tese, nem na mediao, a fora extraordinria da negao, na anttese, nem no ponto de chegada da realizao, na sntese, mas na pretenso totalitria de todo sistema de poder esgotar a riqueza inesgotvel da realidade no fechamento de uma sntese conclusiva. Kierkegaard est convencido de ter combatido o bom combate. Para ele, a demolio do sistema e da sistematizao pela existncia do indivduo singular abalou e desmontou toda a confiana vigente em qualquer dialtica. Nos dois volumes de Enten\Eller, Ou\ou, de 1843, mostra como a existncia finita a superao de toda composio da alternativa de og\og, e\e, com a liberdade de uma escolha paradoxal.

    No Dirio, escreve ele que na Copenhagen de seu tempo o indivduo no era

    nem compreendido, nem valorizado, o que s vir a ocorrer muito mais tarde. Com

    LEO, Emmanuel Carneiro. Kierkegaard, apstolo da existncia

  • 17

    o indivduo, comemora ele no Dirio, derrotei a sistematizao quando aqui tudo

    era sistema sobre sistema e s havia interesse por conceitos e clculos lgicos. Agora,

    porm, j no se fala em sistema. Nenhum homem pode viver trancado dentro de

    um sistema. A demolio do sistema resulta do reconhecimento da individualidade

    nas peripcias da existncia humana. Se, nos animais, o indivduo inferior e menos

    do que a espcie, na humanidade se d o contrrio, o indivduo sempre superior e

    mais do que a espcie, por isso no se d fechamento na histria.

    Kierkegaard morreu em 1855 e no conheceu a obra de Charles Darwin de 1859.

    Teve conhecimento apenas dos antecedentes da teoria da evoluo em Lamark e Saint-

    -Hilaire. Mas estava convencido de que, no homem, o agente de toda transformao

    est no indivduo. o testemunho que d a existncia na singularidade original no

    seu desdobrar-se pela histria. Fosse a espcie portadora da evoluo no haveria na

    vida dos indivduos nem angstia, nem liberdade, somente fatalidade. Quando no

    sculo XX, J. Monot escreveu no Acaso e a Necessidade, que nosso nmero saiu na

    loteria de Monte Carlo, Kierkegaard avant la lettre perguntaria: quem que inventou o jogo de loteria? Quem que jogou para dar o nosso nmero? Ora, somente quem

    estiver fora de um fluxo fatal de evoluo, que poder interessar-se por jogo, suas

    regras e seus jogadores. No homem, a evoluo s se d no indivduo por causa da

    liberdade. Evoluo das espcies sempre um processo sem histria. o que se mostra

    at nas funes de completude, coerncia, consistncia e consequncia dos sistemas

    logicamente ordenados. Assim, por exemplo, no silogismo da forma: Todo homem

    mortal. Pedro homem. Pedro mortal., a concluso repete, apenas, a afirmao

    universal da premissa maior. Esta concluso logicamente necessria , somente, uma

    repetio enfadonha do que j se sabe contido na verdade da primeira premissa. Na

    terminologia de I. Kant, nenhum silogismo estende o conhecimento, apenas explica o

    que j se sabe. Outra, bem outra, a situao existencial. Aqui, o indivduo tira outra

    concluso, ora em nvel esttico, a saber, logo Pedro deve gozar a vida, ora em nvel

    tico, logo Pedro deve respeitar a vida, ora em nvel religioso, logo Pedro deve viver

    na vida toda a f paradoxal da vida.

    Para Kierkegaard, foi a revelao no cristianismo que tirou para o destino da

    existncia de todo ser humano a concluso paradoxal da f. Foi o paradoxo da f que

    levou o Autor da Epstola aos Hebreus, atribuda a So Paulo, a viver e sentir na f o

    sustentculo do que se espera e na esperana, o penhor do que no se v. Eis por

    que a f no cega, diz Kierkegaard. visionria, no sentido de no lhe faltar, mas de

    lhe sobrar viso. A f v no visvel o invisvel, v no mundo, e em tudo que o mundo

    contm, a luz de um paradoxo vivo. Esta f o destino de toda existncia humana.

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 11-22, jan./jun. 2013

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    Em Temor e Tremor (Frygt og Baeven), de 1843, Kierkegaard mostra o paradoxo

    da f encarnado na vida. Criando, e criado pela experincia, o homem encontra no

    conhecimento da vida o desconhecido da existncia, celebrando no mistrio da histria

    a histria do mistrio. Por isso que a dinmica existencial da f vai alm de todo

    ideal tico. Tal a concluso religiosa do silogismo da mortalidade: se todo homem

    mortal, todo mortal se angustia e, por isso, todo homem pode ter f. Entretanto, no

    somente a f vive no paradoxo da existncia, tambm so paradoxais o nascimento

    e a morte. Por termos nascido um dia, nascemos todos os dias, o dia todo, de nossa

    vida. Por e para morrermos um dia, morremos todo dia a cada instante. Nascimento e

    morte no so, pois, nem fatos, nem condies eventuais. So constituintes essenciais

    da existncia. Assim como sem vida no h morte, assim tambm sem morte no

    h vida humana. por isso que distinguimos o inanimado, o que no pode viver, do

    morto, aquele que ficou sem vida.

    O modelo do paradoxo da f, Kierkegaard encontrou na histria de Abrao. Nos

    versculos 1-12, do captulo 22 do Livro do Gnesis, Deus ordena Abrao a sacrificar

    Isaac, o filho nico que lhe chegou na velhice. Uma angstia de morte se apodera do

    corao de Abrao, com uma alternativa ou\ou, de um paradoxo insolvel: ou matar

    Isaac e cometer um filicdio, ou no matar Isaac e cometer um deicdio. O conflito lhe

    traz um paradoxo indomvel com toda a carga de angstia da existncia humana.

    o conflito ambivalente da f que sempre lana o crente na tragdia de um beco sem

    sada. Toda f o paradoxo de uma vida sem alternativa.

    O crtico moderno, porm, pergunta, como que Abrao tem certeza de ter sido

    realmente Deus quem ordenou o sacrifcio? Esta dvida do descrente moderno,

    perseguido sempre pela certeza, no de Abrao. Abrao no duvida. Leva Isaac com

    dois amigos para oferecer o sacrifcio no monte indicado por Deus. Na caminhada,

    Isaac pergunta ao pai se no est faltando nada para o sacrifcio. Esto, aqui, a lenha,

    o fogo, a ara, a faca, s falta a vtima. Abrao responde que Deus providenciar. Deixa

    os dois amigos no sop do monte e sobe com Isaac. No lugar indicado arma o altar,

    pe lenha debaixo e amarra Isaac em cima. Quando vai sacrificar o filho, ouve uma

    voz que diz Abrao, Abrao, no para matar a criana, , apenas, para testar a fide-

    lidade de tua f. Aliviado, Abrao solta Isaac. At aqui reza o relato do Pentateuco.

    A descrena moderna, no entanto, no para a. Procura uma explicao racional para

    fato to estranho, e continua: desamarrado, Isaac desce o morro correndo, e embai-

    xo encontra os amigos que espantados perguntam o que houve. Ainda apavorado,

    Isaac responde, o velho endoidou. Com o papo de sacrifcio, ele queria mesmo era

    me matar. Se eu no sou ventrloquo, agora estaria morto.

    LEO, Emmanuel Carneiro. Kierkegaard, apstolo da existncia

  • 19

    Esta tentativa jocosa de explicar racionalmente o paradoxo da f no passa de um

    ventrilquio. Supe que a f um fato entre fatos e no o paradoxo, que na angstia

    do corao cria o perfil singular da existncia humana.

    Como Plato, na Grcia do sculo IV, e Freud, mas sobretudo Lacan, no sculo

    XX, tambm Kierkegaard, no sculo XIX, bom discpulo de Scrates de Atenas, em-

    prega o chiste, a verve e o humor para revelar as sutilezas mais finas e angustiadas da

    ironia. Um exemplo gritante est nos muitos pseudnimos de seu livros. Existir no

    coisa nem deste, nem de outro mundo. Tambm no fato ou feito de uma outra

    coisa, seja de natureza espiritual ou histrico-social. A existncia sempre conquista

    contnua e ininterrupta de uma libertao que nunca se repete. Cada vez a primeira

    vez. A pluralidade de seus atos nasce de uma dinmica de reunio que recolhe nos

    indivduos o perfil do indivduo todo. Na existncia, o corpo no distinto da alma,

    nem do esprito. Formam os trs uma unidade s, onde tudo , ao mesmo tempo,

    corpo, alma e esprito. Toda carne , pois, espiritual e todo esprito sempre carnal.

    A cada perfil dominante desta integrao, Kierkegaard dedicou um pseudnimo. E

    por que pseudnimo? Porque cada perfil, ao recolher em si o todo do indivduo, pa-

    rece ser tudo, mas nunca nem o todo, nem a totalidade do todo. O pseudo est no

    aparecer desta aparncia. Da, o humor cheio de chiste e verve da ironia existencial.

    Em 1905, Freud dedicou ao chiste toda uma anlise de suas relaes com o in-

    consciente. De Jacques Lacan conhecida a definio de amor: Lamour cest donner

    ce quon na pas quelquun qui nen veut pas. Amar dar o que no se tem a al-

    gum que no quer. Uma definio que a verve carioca chamou logo de uma grande

    lacanagem. Se em francs entre homem santo, saint homme e sintoma, symptome,

    h uma homofonia quase completa, esta homofonia a verve de Lacan desvenda a

    santidade de sintoma. Todo sintoma santo! , de certo, o vigor do Grande Outro,

    na vigncia do Pequeno Outro.

    Todo mundo conhece a ironia de George Bernard Shaw. Estando pela primeira

    vez em Nova York, recusou-se a visitar a esttua da liberdade, dizendo que, no centro

    do capitalismo selvagem, ainda ir visitar a esttua da liberdade, demais para mim.

    Minha ironia no chega a tanto.

    Em Kierkegaard, porm, a ironia sempre criativa. Sem criao no se d ironia.

    Este, o exemplo que nos deixou, com Plato, Scrates. Se na dana da capoeira os

    capoeiristas procuram dar rasteira uns nos outros, na capoeira da existncia, Scrates

    d rasteira em si mesmo: oida hoti oyk oida, sei que no sei. Este que no nem

    integrante objetivo, sei o fato de no saber, nem causal, sei por que no sei,

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 11-22, jan./jun. 2013

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  • 20

    nem copulativo, sei e no sei, mas existencial, a angstia do nada constituindo

    a existncia em sua finitude. por isso que Plato, grande estilista, se vale de um

    idiotismo da lngua grega e diz oida oyden eidws, sei o nada, no sabendo nada.

    No final do sculo de Kierkegaard, Nietzsche vai dizer para todo sempre que o

    nico cristo da histria morreu pregado numa cruz. J no incio do mesmo sculo,

    Kierkegaard proclamara que a singularidade desta morte nica, porque transformara

    um homem da histria, Jesus de Nazareth, no Cristo da f, por meio de um amor

    universal, isto , por um amor que acolhe em si no apenas as diferenas individuais

    e culturais de todos os homens da histria, mas tambm a diversidade de todos os

    seres do universo.

    E em que consiste este amor universal? So Paulo responde no captulo 13, da

    Primeira Epstola aos Corntios. Vale a pena escutar toda a passagem: Se eu falar as

    lnguas dos homens e dos anjos e no tiver amor, sou um metal que tine ou um sino

    que toca. E se possuir o dom da profecia e conhecer todos os mistrios e saber o se-

    gredo de todas as cincias ou se tiver tanta f que chegue a transportar montanhas,

    mas no tiver amor, nada sou. E se distribuir toda a minha fortuna entre os pobres,

    e entregar meu corpo tortura, mas no tiver amor, nada disso adiantar. O amor

    paciente, o amor benigno, nada inveja, no tem orgulho, nem se enaltece. No

    descorts, nem interesseiro. No se irrita, nem guarda rancor. No se satisfaz com a

    injustia, mas se compraz com a verdade. O amor tudo desculpa, tudo cr, tudo espera,

    tudo suporta. O amor nunca acabar... Por isso, em cada hoje da histria permane-

    cem trs poderes: a f, a esperana e o amor. Dos trs, o maior o poder do amor.

    Para a mstica oriental, o desafio est na iluminao do Nirvana onde ser e nada

    no s se fundem como se confundem. Para Kierkegaard, a mstica ocidental crist

    traz o desafio da unio no amor, que nos une um com o outro, e tanto o outro de

    ns mesmos como o outro de todos os outros. Como que devemos entender esta

    diferena entre Oriente e Ocidente? Talvez, nos possa valer uma comparao entre

    dois poemas, um koan de Tetsuo Bash, poeta japons do sculo XVI, e uma poesia

    de Alfred Tennyson do incio do sculo XX.

    Diz o koan de Bash:

    Quando olho com ateno,

    vejo florir a nazuna

    ao p da sebe.

    LEO, Emmanuel Carneiro. Kierkegaard, apstolo da existncia

  • 21

    Nazuna uma flor do campo, comum no Japo. Para se entender o sentido deste

    koan, temos de compreender ateno, como ausncia da tenso de uma angstia.

    Neste entendimento, o sentido que a falta de tenso nos apaga a diferena com a

    nazuna. Quando olho sem tenso sou e no sou nazuna.

    O pequeno poema de Tennyson diz:

    Flor no muro gretado.

    Eu te arranco das gretas

    e seguro-te na mo com raiz e tudo. Pequena flor.

    Mas, se eu soubesse o que s, com raiz e tudo, com tudo em tudo,

    saberia o que Deus e o que homem.

    Saber diz sentir o sabor da identidade na igualdade e diferena. O ser de Deus

    e do homem , ao mesmo tempo, uno e mltiplo. Esta experincia se d no manda-

    mento de amar ao prximo como a si mesmo. Pois neste mandamento, se revela que

    o apelo se estende a todos, que amam e que so amados. preciso que o homem

    se ame a si mesmo para poder amar o prximo. que o homem no apenas ama,

    como tambm odeia a si mesmo. Por isso, para amar o prximo, o cristo tem de

    amar o outro em si mesmo. O sentido de como no Evangelho de So Marcos no

    comparativo apenas, mas, sobretudo, copulativo. Assim, Kierkegaard respondeu,

    avant la lettre, em meados do sculo XIX, pergunta retrica de Freud no incio do

    sculo XX: como seria possvel amar o prximo sem que seja como a si mesmo?

    O homem no simplesmente finito. o mais finito dos seres porque na sua

    finitude sente o nada que o remete para o infinito, mesmo nas pretenses escamo-

    teadas de sua onipotncia. na finitude sem fim do nada que o homem afirma e

    sente o infinito. No incio do sculo XX, esta experincia de finitude existencial, que

    Kierkegaard proclamou, deparou-se com o vigor de sua vigncia no terceiro soneto

    para Orfeu de Rainer Maria Rilke:

    Um Deus o pode. Mas, diga-me, e um homem como poder acompanh-lo numa

    estreita lira?

    O senso bifurcao. Na cruz de dois caminhos do corao no se ergue nenhum

    templo para Apolo.

    Cantar como ensinas no cupidez, nem conquista de algo que por fim se alcana.

    Cantar ser.

    Para Deus muito fcil. Mas, ns quando que somos? Quando que Deus vira para

    ns a terra e as estrelas?

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 11-22, jan./jun. 2013

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    Amar ainda no nada, jovem, embora a voz te force a boca.

    Aprende a esquecer que cantavas. Canto se desfaz. Na verdade, cantar outro alento.

    Um alento do nada. Um vibrar em Deus. Um sopro.

    O grande desafio para o ser humano est em construir uma existncia. Existir

    viver a vida de maneira criativa. Ora, criar apangio da liberdade de ser e relacionar-se

    da angstia com o indivduo. Dentro dos limites do que somos e no somos, temos

    de converter as possibilidades recebidas numa opo de vida pela existncia. Deus

    no joga em nosso lugar. Ele criou apenas o jogo da vida e suas regras. E nos deu as

    condies de jogar. Mas somos ns mesmos que temos de fazer nosso prprio jogo,

    com e na liberdade da existncia.

    Numa discusso com o telogo Martesen, Kierkegaard no aceitou a interpretao

    da teologia crist de que a Graa da Salvao j est predestinada desde sempre.

    Kierkegaard recusou sempre todo e qualquer determinismo que viesse restringir

    a liberdade da existncia. Por isso, justa a observao de Jacques Lacan de que

    Kierkegaard foi o mais perspicaz pesquisador da alma humana, antes de Freud haver

    transformado o estudo da alma numa cincia determinista.

    Em toda lngua, a linguagem o maior enigma da histria humana. Nietzsche

    disse certa vez: a linguagem um portento to misterioso que nenhum homem

    poderia inventar. Foi Deus que criou a linguagem. Para Kierkegaard, a linguagem

    Deus na Criao, segundo o prlogo do Evangelho de So Joo: No princpio, era a

    Linguagem. A Linguagem estava em Deus. A Linguagem era Deus.

    LEO, Emmanuel Carneiro. Kierkegaard, apstolo da existncia

  • 23

    Resumo: Heidegger prope uma superao tcnica do pensar, quer dizer, a filosofia, para corresponder sua verdade originria deve ser pensada desde a superao da metafsica. Isso significa permanecer no elemento do pensar (Das Element), isto , no ele-mento filosfico. Em vista disso e por causa disso Heidegger busca preservar o pensar em seu elemento. Desde 1919, por exemplo, denominou de pr-reflexivo ou pr-teortico (vortheoretisch) e, em 1964, em O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, desen-volveu como clareira (die Lichtung). No obstante, o progresso de Heidegger ao longo de sua produo e com as mudanas de perspectivas na abordagem da questo da filosofia, parece-nos que tudo gravita em torno do mesmo, quer dizer, da questo do fundamento, melhor, do Retorno ao fundamento da metafsica. No pro-cura-r manter-se no elemento do pensar Heidegger encontra em Kierkegaard (e Nietzsche) a sada da Tradio, quer dizer, o caminho da superao da metafsica.Palavras-chave: metafsica, superao da metafsica, pr-teortico, clareira, elemento do pensar.the overcoming of metaphysics in Heidegger, prepared by Kierkegaard (and Nietzsche): the pretheorists(vortheoretisch), the lighting (die Lichtung), the element of thinking (Das Element) abstract: Heidegger proposes an overcoming technique of thinking, i.e., the philosophy to match up your original truth must be thought from the overcoming of metaphysics. This means stay at element of thinking (Das Element), i.e, in the philosophical element. In view of this and because of that Heidegger search preserve the thinking in his element. Since 1919, for example, called prereflective or pretheorists (vortheoretisch) and, in 1964, in The end of philosophy and the task of thought, developed as lighting (die Lichtung). Nevertheless, the progress of Heidegger over its production and with the changes of perspectives on the issue of philosophy approach, it seems to us that everything gravitates around the same, i.e., the question of grounding, best, Returning to the grounding of metaphysics. In the search keep in element of thinking Heidegger in Kierkegaard (and Nietzsche) the solution of the tradition, i.e., the way of overcoming of metaphysics.Work-keys: metaphysics, overcoming of metaphysics, pretheorists, lighting, element of thinking.

    * Doutorando em filosofia pela UFPB-UFRN-UFPE

    a superao da metafsica em Heidegger, preparada por Kierkegaard (e Nietzsche): o pr-teortico(vortheoretisch), a clareira (die Lichtung), o elemento (Das Element) do pensar

    Marcos rico de Arajo Silva*

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    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 23-46, jan./jun. 2013

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    A Carta sobre o humanismo, de 1946, dirigida a Jean Beaufret, por Heidegger,assume

    uma questo diretriz como motivao de fundo: Comment redonner un sens au mot

    Humanisme? Heidegger responde:

    Essa questo surge da inteno de continuar mantendo a palavra humanismo. Eu me

    pergunto se isto necessrio. Ou no ser suficientemente claro o dano que causam

    todos estes ttulos? J faz tempo que desconfiamos dos ismos. Mas o mercado da

    opinio pblica exige outros, sempre novos. E sempre se est disposto a satisfazer

    esta demanda. Mesmo nomes como lgica, tica, fsica, aparecem logo que

    declina o pensar originrio. Em sua poca grandiosa, os gregos pensaram sem esses

    ttulos e nem sequer chamaram de filosofia ao pensar. O pensar declina logo que

    se desvia de seu elemento. O elemento aquilo a partir do que o pensar capaz de

    ser um pensar. O elemento o que capaz em sentido prprio: a capacidade. Ele

    toma diligncia sobre o pensar e o leva assim sua essncia. Dito de modo simples,

    o pensar o pensar do ser (HEIDEGGER, 2008, p. 328-329)1.

    Temos trs tarefas a cumprir, a saber:

    1. O elemento do pensar, aquilo que prprio da filosofia;

    2. O elemento do pensar em correspondncia com o pr-teortico e a clareira;

    3. Crtica a uma interpretao tcnica do pensar, ou sobre a superao da me-

    tafsica.

    1. Vamos refletir sobre esta passagem porque nela encontra-se o fio de Ariadne, o direcionamento para no nos desviarmos da questo. A questo aqui a crtica heideggeriana a uma interpretao tcnica do pensar. Isto , pela necessidade de superar esta interpretao tradicional, tcnica do pensar, a saber, metafsica, que Heidegger se destaca no cenrio contemporneo da filosofia. Tentaremos mostrar que essa questo a questo in eminentiori na qual sempre se posta Heidegger na filosofia. desde dentro dessa questo, voltando-se sempre a ela, demorando-se nela que Heidegger responde ou corresponde em seu tratamento filosfico a qualquer temtica da filosofia. A filosofia de Heidegger um pensar que, pensando o pensa-mento, procura sempre uma consonncia, uma correspondncia com a verdade do

    1. No original: Diese Frage kommt aus der Absicht, das Wort Humanismus festzuhalten. Ich frage mich, ob das ntig sei. Oder ist das Unheil, das alle Titel dieser Art anrichten, noch nicht offenkundig genug? Man mitraut zwar schon lange den -ismen. Aber der Markt des ffentlichen Meinens verlangt stets neue. Man ist immer wieder bereit, diesen Bedarf zu decken. Auch die Namen wie Logik, Ethik, Physik kommen erst auf, sobald das ursprngliche Denken zu Ende geht. Die Griechen haben in ihrer groen Zeit ohne solche Titel gedacht. Nicht ein-mal Philosophie nannten sie das Denken.Dieses geht zu Ende, wenn es aus seinem Element weicht. Das Element ist das, aus dem her das Denken vermag, ein Denken zu sein. Das Element ist das eigentlich Vermgende: das Vermgen. Es nimmt sich des Denkens an und bringt es so in dessen Wesen.Das Denken, schlicht gesagt, ist das Denken des Seins (GA 9, p. 315-316).

    SILVA, Marcos rico de Arajo. A superao da metafsica em Heidegger...

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    ser. A verdade do ser ou o sentido do ser a clareira (die Lichtung), da qual a tradio da filosofia nada sabe. A clareira, enquanto abertura, possibilita o manifestar-se da luz. Ela mesma no a luz, mas a condio de possibilidade da luz ser. A tradio filosfica volta-se para a luz, para os princpios, para a busca de mtodos cada vez mais sofisticados, mas da clareira que possibilita um pensar sobre esses princpios e mtodos nada se sabe. A clareira , pois, para a filosofia o impensado que merece ser pensado. Sobre esta questo voltaremos mais adiante.

    Mas adentremos reflexivamente na passagem com o intuito de extrair a temtica

    da crtica a uma intepretao tcnica do pensar. Comment redonner un sens au mot

    Humanisme? Heidegger problematiza a questo evidenciando que sua entonao,

    seu sotaque, sua dico pronunciada apontando j para a necessidade de conservar

    a palavra humanismo. Heidegger faz notar que isso no necessrio. mesmo

    algo prejudicial. Os -ismos cheiram a doutrina, a catequese, a uma doutrinao,

    um aferrar-se na crena da verdade de algo que no originrio, mas dependente e

    derivado. O pensar que, fugindo de seu elemento, investe o pensamento neste desca-

    minho aprisiona e agrilhoa o homem, ao invs de libert-lo. Um pensar que permanece

    em seu elemento, insistindo e persistindo no mesmo, um pensar autntico, que

    corresponde ao autntico filosofar. Tal pensar no pode ser chamado de irracionalista,

    precisamente porque liberto dessa relao sujeito-objeto, racional-irracional. A medida

    apropriada para medir a autenticidade do verdadeiro filosofar no a racionalidade,

    mas algo anterior a prpria racionalidade. Este algo anterior o elemento (Das

    Element) do pensar, a clareira (die Lichtung), o pr-reflexivo ou pr-teortico (vor-

    theoretisch), como designava nos seminrios de juventude2. O elemento do pensar,

    que assegura e garante que o pensar seja, a verdade do ser. Pensar o pensamento

    em con-sonncia e correspondncia com a verdade do ser significa manter, conservar

    o pensamento em seu elemento, quer dizer, em sua atmosfera (Stimung; Stemning),

    em seu ambiente. Sair disso, dar as costas ao elemento do pensar faz adoecer o pen-

    samento pela ingratido dessa dis-sonncia, por no reconhecer ou acolher a verdade

    do ser. Ora, se o pensar no for um pensar do ser, o pensamento entra na de-cadncia,

    perdendo a primazia de sua originariedade. A perda desta cadncia que vigora no

    interior do pensar, assegurando o elemento prprio da filosofia, conduz ao declnio

    do pensar. Este declnio do pensamento possibilita o surgimento das pseudofilosofias,

    2. Os termos teortico (theoretisch) e pr-teortico (vortheoretisch) so utilizados com bastante frequncia tor-nando-se mesmo um termo tcnico nos escritos do jovem Heidegger desde o semestre do ps-guerra, em 1919, em sua busca ou entendimento da filosofia como cincia originria da vida (cf. ADRAN, 2010, p. 162). Para maiores esclarecimentos destes termos tcnicos no pensamento do jovem Heidegger, recomenda-se a leitura de Jess Adran Escudero (2010).

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 23-46, jan./jun. 2013

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    criando o espao para o aparecimento das diversas reas e campos do saber filos-

    fico. aqui que os diversos -ismos disputam um lugar privilegiado na filosofia. O

    humanismo, por exemplo, determinado por uma verdade secundria, animalitas,

    jamais propriamente pela humanitas. S um pensar do ser poderia facultar aquilo

    que propriamente faz do homem humano, tornando-o aquilo que ou que deve ser.

    Em nossa compreenso do pensamento heideggeriano, isso que aqui, na Carta

    sobre o humanismo, aparece como sendo o elemento filosfico, quer dizer, como

    aquilo que preserva o pensar em seu elemento, o que em 1919 designou como

    pr-reflexivo ou pr-teortico e, em 1964, em O fim da filosofia e a tarefa do pensa-

    mento3, desenvolveu como Clareira. Na Carta sobre o humanismo, Heidegger afirma

    com clareza:

    [...] a verdade do ser, enquanto a prpria clareira, permanece velada para a metaf-

    sica. [...] mas o ser a prpria clareira. [...] O esquecimento da verdade do ser em

    prol do acometimento do ente, impensado em sua essncia, o sentido do que em

    Ser e tempo se chama de decadncia (HEIDEGGER, 2008, p. 344-345, grifo nosso)4.

    H, portanto, uma correspondncia entre verdade do ser, clareira e ser. O pensar

    originrio vive nessa proximidade da clareira. Isso significa que pensar pensar a ver-

    dade do ser. A Verdade do Ser, a Clareira, o Ser tem uma primazia, uma anterioridade

    a qualquer mtodo ou qualquer objetivao da realidade.

    2. Os cursos ou seminrios ministrados por Heidegger em Friburgo (1919-1923)

    e em Marburgo (1923-1928), publicados recentemente, testemunham que Ser e

    tempo foi longamente gestado e brota como fruto maduro de um longo processo

    de apropriao e destruio da tradio5.

    3. A UNESCO organizou um colquio em Paris nos dias 21 a 23 de abril de 1964 em comemorao aos 150 anos do nascimento de Kierkegaard e convidou vrios filsofos: Sartre, Gabriel Marcel, Karl Jaspers, Jean Beafreut, Martin Heidegger etc. A UNESCO publicou, pela Gallimard, em 1966 (HEIDEGGER et al., 1966), todas as conferncias num livro intitulado Kierkegaard vivant. Heidegger no foi, mas enviou a conferncia O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Jean Beaufret traduziu e leu a conferncia no colquio. Muito embora Kierkegaard no seja sequer mencionado na referida conferncia, apesar de ser um colquio em sua homenagem, evidente que o contedo e a direo da conferncia de Heidegger mantm uma relao com o pensamento de Kierkegaard. Investigar isso aqui extrapola os limites dos propsitos deste artigo, mas ser o fio condutor da minha tese de doutoramento: A superao da metafsica na filosofia de Kierkegaard (1813-55): por um novo comeo da filosofia, ou sobre o salto como arch, gnese do filosofar.

    4. No original: [] die Wahrheit de Seins als die Lichtung selber bleibt der Metaphysik verborgen. [] Die Lichtung selber aber ist das Sein. [] Das Vergessen der Wahrheit des Seins zugunsten des Andrangs des im Wesen unbedachten Seienden ist der Sinn des in S. u. Z. genannten Verfallens (GA 9, p. 331-332).

    5. Desde seu primeiro curso, em 1919, A ideia da filosofia e o problema da concepo de mundo, como em seu Informe Natorp, de1922 etc., Heidegger fala da necessidade de uma destruio fenomenolgica. Entendemos que essa destruio fenomenolgica deve-se ao esquecimento da tradio do mbito pr-teortico, que sustenta o teortico. Em outras palavras: superao da metafsica!

    SILVA, Marcos rico de Arajo. A superao da metafsica em Heidegger...

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    Destarte, o tratamento original efetivado por Heidegger em seu Natorp Bericht6

    extremamente elucidativo tendo em vista o que produziu em Ser e tempo e em obras

    posteriores. Alm disso, muito instigante para o pesquisador constatar a leitura

    heideggeriana de Aristteles como forma de ilustrar o modo como Heidegger, mesmo

    bem jovem, dialoga com os filsofos e, por conseguinte, como o filsofo enfrenta

    a histria da filosofia, a saber, numa apropriao interpretativa dos filsofos, quer

    dizer, Heidegger se apropria, tornando prprio quilo que escrito nos escritos dos

    filsofos. Heidegger no tem interesse em repetir, no sentido de dizer o igual, mas

    em permanecer no mesmo7, isto , em insistir e persistir naquilo que caracteriza o

    filosfico em determinado pensamento. Qual o elemento filosfico que se destaca

    mesmo a despeito, ou at por causa das peculiaridades e especificidades do pensa-

    mento de Aristteles? Este elemento filosfico, que na fala do falado, nas palavras

    do que dito por Aristteles ou por qualquer filsofo sempre aparece, o que inte-

    ressa a Heidegger. Este modo de procedimento est estreitamente vinculado ao que

    Heidegger entende por filosofia.

    precisamente uma convico derivada de um entendimento muito prprio e ori-

    ginal da ideia de filosofia a razo que fundamenta e determina o dilogo de Heidegger

    6. O Informe Natorp, Natorp Bericht, foi escrito por Heidegger em trs semanas para conseguir uma vaga na Universidade. Em Gotinga perdeu a vaga, e a justificativa foi que suas Interpretaes fenomenolgicas sobre Aristteles: indicao da situao hermenutica mais uma exposio de seu pensamento do que uma anlise sistemtica do Estagirita. Felizmente Paul Natorp soube apreciar a originalidade do jovem professor e juntamente com Husserl mediou a contratao de Heidegger em Marburgo. Em 1923 o jovem Heidegger assumia a ctedra, que pertencia a Nicolai Hartmann, como professor extraordinrio com todos os direitos de um professor ordinrio. O manuscrito se perdeu (Gadamer tinha recebido de Paul Natorp, mas no bombardeio de 1943 o perdeu) e s recentemente (1964) foi encontrado o outro que foi enviado a Universidade de Gotinga.

    7. precisamente por entender que cada filsofo, independente da poca em que vive ou viveu ou mesmo a des-peito de suas pretenses filosficas, sempre se move e comove pelo mesmo. Seu pensamento gravita em torno ao mesmo na tentativa de apreend-lo e capt-lo em sua originariedade, deixando-o, por assim dizer, falar para o hoje da histria. Para um maior aprofundamento do significado de filosofia em Heidegger, remetemos o leitor s obras: Interpretaes fenomenolgicas sobre Aristteles: introduo pesquisa fenomenolgica (1921-1922), Introduo filosofia (1928-1929) e Que isto a filosofia? (1956). Para uma melhor percepo da consequente leitura apropriativa que Heidegger faz dos filsofos, significativo ler um trecho que se encontra no final da Carta sobre o humanismo (1946): Trazer a cada vez novamente linguagem esse advento do ser que permanece, um advento que, em sua permanncia, espera pelo homem, a nica coisa do pensamento. por isso que os pensadores essenciais dizem sempre o mesmo. Mas isso no significa: o igual. Sem dvida alguma, eles o dizem apenas quele que se permite segui-los nesse pensar. Na medida em que o pensar, pensando historicamente de maneia rememorante, volta sua ateno para o destino do ser, ele j se ligou ao que conveniente e adequado ao destino. Fugir, refugiando-se no mesmo, no perigoso. O perigo est em ousar entrar na discrdia a fim de dizer o mesmo. Tanto a ambiguidade, quanto o mero discenso que ameaam (HEIDEGGER, 2008, p. 375-376). Dizer o mesmo, atento ao hoje da histria, corresponder ao apelo do ser, verdade do ser. Para isto, preciso estar em viglia, de alerta para o elemento pr-teortico, para a clareira (Lichtung). Isso s se faz em dilogo com a tradio, mesmo que seja para efetuar uma destruio, precisamente para deixar aberta a possibilidade de a clareira aparecer. Neste sentido Heidegger tem uma expresso muito bonita para falar de como deve ser o estu-do, o dilogo com os filsofos. A apropriao de determinado filsofo sempre uma disputa amorosa: Toda refutao no campo do pensar essencial tola. A disputa entre os pensadores a disputa amorosa pela coisa mesma. Ajuda-os mutuamente em sua pertena simples ao mesmo, a partir do qual encontram o que prprio ao destino no destino do ser (HEIDEGGER, 2008, p. 349).

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 23-46, jan./jun. 2013

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    com os filsofos da tradio. Desde sua chegada a Friburgo como assistente de Husserl

    em janeiro de 1919, Heidegger se concentra em encontrar um acesso fenomenolgi-

    co vida (ADRAN ESCUDERO, 2010, p. 225). Mesmo sendo assistente de Husserl e,

    portanto, vinculado escola fenomenolgica husserliana, Heidegger tem uma com-

    preenso prpria, divergente de Husserl. No curso de 1919, em Friburgo, intitulado A

    ideia da filosofia e o problema da concepo de mundo, percebemos o movimento de

    ruptura quando introduz um novo ponto de partida para a filosofia, transformando a

    fenomenologia da reflexo de Husserl numa fenomenologia hermenutica8.

    [...] o privilgio outorgado ao teortico repousa na convico de que o teortico

    representa o estrato bsico e fundamental que de alguma maneira fundam todas as

    esferas restantes. [...] Se h de romper com esta primazia do teortico, porm no

    com o propsito de proclamar um primado do prtico ou de introduzir outro elemento

    que mostre os problemas desde outra perspectiva, seno porque o teortico mesmo

    e enquanto tal remete a algo pr-teortico (HEIDEGGER, 2005, p. 70-71, traduo

    nossa, grifo do autor)9.

    Este algo pr-teortico , para Heidegger, o objeto da filosofia, a coisa mes-

    ma da qual a fenomenologia, a filosofia deveria visar e atingir reflexivamente. esta

    realidade que antecede toda e qualquer objetivao e, portanto, sendo anterior a

    qualquer teorizao. O pr expressa precisamente o elemento filosfico, sinali-

    zando a marca do conhecimento da filosofia, do qual nenhuma cincia particular se

    interessa ou, sobre o qual, no tem competncia para se pronunciar. O pr do pr-

    -teortico, entretanto, no est necessariamente em querela com o teortico. Indica

    to-somente a originariedade do pr, enquanto fundamentao ou condio de

    possibilidade do teortico. Por esta razo, Heidegger denomina a filosofia de fenome-

    nologia como cincia pr-teortica originria. Fenomenologia, para Heidegger, no

    uma escola ou movimento ao lado de outros, mas a prpria filosofia, movendo-se

    em seu elemento, isto , o pensar que, pensando o pensamento, insiste e per-siste

    sempre no mesmo, quer dizer, na dimenso pr-teortica originria porque originante

    de toda e qualquer teorizao, mas jamais delas derivada. Em uma palavra: movendo-

    -se na terminologia heideggeriana, a filosofia sempre parte e se move a partir de um

    8. Para maior aprofundamento sobre esta temtica, recomendamos a leitura do volumoso estudo crtico sobre o jovem Heidegger de Jess Adran Escudero (2010), intitulado Heidegger y la genealogia de la pregunta por el ser: uma articulacin temtica y metodolgica de su obra temprana (621 p.).

    9. No original: [...] Weiterhin hat die Bevorzugung des Theoretischen ihren Grund in der berzeugung, da es die fundamentale Schicht darstellt, alle brigen Sphren in bestimmter Weise fundiert [] Diese Vorherrschaft des Theoretischen mu gebrochen werden, zwar nicht in der Weise, da man einen Primat des Praktischen proklamiert und nicht deshalb, um nun mal etwas anderes zu bringen, was die Probleme von einer neuen Seite zeigt, sondern weil das Theoretische selbst und als soches in ein Vortheoretisches zurckweist (GA 56/57 p. 59).

    SILVA, Marcos rico de Arajo. A superao da metafsica em Heidegger...

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    principium, enquanto as cincias particulares so sempre um no-principium, isto ,

    um principatum, ou seja, um conhecimento derivado e dependente.

    O principal problema metodolgico da fenomenologia, a pergunta acerca do modo de abrir cientificamente a esfera da vivncia, est sujeito ao princpio dos princpios da fenomenologia. Husserl o formula nos seguintes termos: tudo o que se dorigi-nariamente na intuio [...] h que se tom-lo simplesmente como se d. Este o princpio dos princpios, que nos salvaguarda dos erros de qualquer teoria imagi-nvel. Se algum entender princpio em termos de uma proposio teortica, ento esta designao no seria congruente. Pois bem, o fato de que Husserl fale de um princpio dos princpios quer dizer de algo que precede a todos os princpios e que nos salvaguarda dos erros da teoria j mostra que este princpio no de natureza teortica, se bem que Husserl no se pronuncie a respeito (HEIDEGGER, 2005, p. 132-133, traduo nossa, grifo do autor)10.

    extremamente interessante para fins de aprofundamento do pensamento heideggeriano, vinculando aos nossos objetivos nesse artigo, comparar ou cotejar esta citao de 1919 com a conferncia de 1964 O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. No espao de 45 anos Heidegger, nesta conferncia em homenagem a Kierkegaard, permanece com o mesmo pensamento sobre a relao pr-teortico--teortico e inclusive traz a mesma passagem de Husserl.

    O princpio de todos os princpios assim enunciado: Toda intuio que origina-

    riamente d () uma fonte de direito para o conhecimento; tudo que se nos oferece

    originariamente na intuio (por assim dizer em sua realidade viva) (deve) ser sim-

    plesmente recebido como aquilo que se d, porm, tambm, somente no interior

    dos limites nos quais se d.... O princpio de todos os princpios contm a tese

    do primado do mtodo. Este princpio decide qual a nica questo que pode satis-

    fazer ao mtodo. [...] O mtodo se orienta no apenas na questo da filosofia. No

    faz apenas parte da questo como a chave da fechadura. Seu lugar dentro da

    questo, porque a questo mesma (HEIDEGGER, 2009, p. 73-74, grifo nosso)11.

    10. No original: Das methodische Grundproblem der Phnomenologie, die Frage nach der Weise der wissen-schaftlichen Erschlieung der Erlebnissphre steht selbst unter dem Prinzip der Prinzipien der Phnomenologie. Husserl formuliert es so: Aller, was sich in der Intuition originr darbietet, [ist] einfach hinzunehmen als was es sich gibt. Das ist das Prinzip der Prinzipien an dem uns keine erdenkliche Theorie irre machen kann. Verstnde man unter Prinzip einen theoretischen Satz, dann ware die Bezeichnung nicht kongruent. Aber schon, da Husserl von einen Prinzip der Prinzipien spricht, also von etwas, das allen Prinzipien vorausliegt, woran keine Theorie ire machen kann, zeigt, da es nicht theoretischer Natur ist, wenn auch Husserl darber sich nicht auss-pricht (GA 56/57, p. 109-110).

    11. No original: Das Prinzip aller Prinzipien lautet: jede originre gebende Anschauung (ist) eine Rechtsquelle der Erkenntnis, alles was sich uns in der Intuition originr (sozusagen in seiner leibhaften Wirklichkeit) darbietet, (ist) einfach hinzunchmen, als was es sich da gibt, aber auch nur in den Schranken, in denen es sich da gibt. Das Prinzip aller Prinzipien enthlt die These vom Vorrang der Methode. Dieses Prinzip entscheidet darber, welche Sache allein der Methode gengen kann. [] Die Methode richtet sich nicht nur nach der Sache der Philosophie. Sie gehrt nicht nur zur Sache wie der Schlssel zum Schlo. Sie gehrt vielmehr in die Sache, weil sie die Sache selbst ist (GA 14, p. 78).

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 23-46, jan./jun. 2013

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    Ento, o princpio dos princpios enquanto fundamento da fenomenologia e

    base metodolgica para ir s coisas mesmas, isto , para atingir o princpio que

    determina todo e qualquer princpio no pode ser da mesma natureza de determina-

    dos princpios. A natureza do princpio (principium) por excelncia (no-teortico ou

    pr-reflexivo) no de natureza teortica como faz Husserl (Reduo transcendental

    [Reduktion]) e toda tradio, mas aquilo que funda o fundamento de todos os prin-

    cpios (principatum). Heidegger chama a ateno, na citao supramencionada, que

    Husserl viu o problema, mas no o problematizou devidamente12. O erro de Husserl

    e da tradio dar uma primazia ao mtodo. O mtodo uma criao intelectual do

    filsofo para captar, mediante um acesso privilegiado, o todo do real, a verdade da

    realidade. O erro, o problema est nesta primazia dada ao mtodo, desconectando-o

    de sua fonte. O mtodo, seja ele qual for, no a origem, o fundamento, mas est a

    ela vinculado. este elemento filosfico que impulsiona o fazer filosfico, levando

    determinado filsofo a criar determinado mtodo, originando um pensamento original

    na tradio. Sobre esta questo (a questo do Ser, Seinsfrage), Heidegger faz aluso

    nas primeiras linhas de Ser e tempo:

    A questo referida no , na verdade, uma questo qualquer. Foi ela que deu flego

    s pesquisas de Plato e Aristteles para depois emudecer como questo temtica de

    uma real investigao. O que ambos conquistaram manteve-se, em muitas distores e

    recauchutagens, at a Lgica de Hegel (HEIDEGGER, 2006a, p. 37, grifo do autor)13.

    Este deu flego a marca do que prprio da filosofia, o que chamamos de

    elemento filosfico. ele que assegura e d validade ao mtodo. Mas o mtodo

    por si mesmo no logra isso. Por isso, Heidegger afirmava criticamente, na passa-

    gem j citada, que o mtodo no s faz parte da questo, no algo acidental, ou

    constituindo um elemento entre outros da questo filosfica. O mtodo no , para

    usar a imagem utilizada por Heidegger, como a chave da fechadura, isto , algo

    tecnicamente perfeito, que, se encaixando um no outro, nos d acesso a outro am-

    biente, a outro mundo. Pois isso algo artificial e falseia o verdadeiro Lebenswelt,

    mundo da vida, ou a verdadeira realidade efetiva, concreta (Wirklichkeit). O mtodo

    no algo de fora, que se orienta para dentro da questo da filosofia. O mtodo no

    12. Este ver o problema e tentar dar uma soluo so o que caracteriza o elemento filosfico presente na reflexo de todo filsofo. Este elemento filosfico o persistir no mesmo, de que fala Heidegger, que possibilita o dilogo com os filsofos. A histria da filosofia em seu sentido mais filosfico entrar neste debate para pensar o que j foi pensado.

    13. No original: Dabei ist die angerhrte Frage doch keine beliebige. Sie hat das Forschen von Plato und Aristoteles in Atem gehalten, um freilich auch von da an zu verstummen als thematische Frage wirklicher Untersuchung. Was die beiden gewonnen, hat sich in mannigfachen Verschiebungen und bermalungen bis in die Logik Hegels durchgehalten (GA 2, p. 3).

    SILVA, Marcos rico de Arajo. A superao da metafsica em Heidegger...

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    nos deve levar para dentro da questo da filosofia, porque ns j estamos dentro,

    imersos nela14. O mtodo no se orienta para... ele a prpria questo da filosofia.

    Para aplicar essa crtica da primazia do mtodo, que aparece em O fim da filosofia

    e a tarefa do pensamento (1964), terminologia do jovem Heidegger (1919), basta

    vincular esta crtica quilo que j desenvolvemos mais acima, a saber: a crtica pri-

    mazia do teortico.

    O mtodo enquanto elemento teortico aponta para algo pr-teortico, para algo

    que d flego, algo que permite a possibilidade do surgimento deste ou daquele

    mtodo. O que esse pr-teortico que tendo primazia sobre o mtodo, a tradio

    o obscurece lanando luz apenas para o teortico, para o mtodo?

    Em O fim da filosofia e a tarefa do pensamento (1964) Heidegger afirma que o

    conceito de clareira o que permanece impensado com o chamado coisa mesma.

    Mas justamente este impensado que deve ser pensado se a filosofia quiser corres-

    ponder a seu destino. A clareira no a luz, ou uma metafsica da luz. A clareira

    anterior luz. A luz pode incidir na clareira, em sua dimenso do aberto, mas a luz

    no pode provocar a clareira. Todo pensamento da filosofia que, expressamente ou

    no, segue o chamado s coisas mesmas j est em sua marcha, com seu mtodo,

    entregue livre dimenso da clareira. da clareira, todavia, a filosofia nada sabe

    (HEIDEGGER, 2009, p. 77, grifo nosso)15.

    interessante relacionar a ideia da filosofia ao que pro-cura-va em 1919 enquanto

    fenomenologia como cincia pr-teortica originria, quer dizer, no chamado s coisas

    14. interessante confrontar esta ideia com a crtica que Heidegger, em 1928-29, em Introduo filosofia, desen-volve em relao a uma compreenso tradicional de introduo filosofia. Na concepo tradicional o destaque recai numa iluso fundamental, a saber, o homem encontra-se fora da filosofia e, precisamente por isto, necessita ser intro-duzido, quer dizer, jogado, lanado para dentro da filosofia. Mas para Heidegger o homem nunca est longe, afastado, fora, ou por fora da filosofia, mas sempre est imerso na filosofia mesmo desconhecendo a historiografia e a sistemtica da filosofia. Entretanto o filosofar est adormecido em ns. A introduo filosofia para ter xito deve no se limitar a falar sobre filosofia, mas falar da e na filosofia. O incio do filosofar, o pr o filosofar em curso est intimamente vinculado s tonalidades afetivas (Stimmung para Heidegger; Stemning para Kierkegaard!), como angstia e o tdio. Elas despertam o filosofar e colocam o homem na atitude filosfica. A tradio falseia este ponto de partida. Por isso, iremos enquadrar esta discusso deste elemento filosfico, como sendo o pr-teortico, algo afinado com a clareira, com a questo da superao da metafsica, quer dizer, com a crtica a tradio por dar uma primazia ao mtodo em detrimento das tonalidades afetivas. Aqui se encontram Kierkegaard e Nietzsche como aqueles vigilantes da tradio que apontam a direo correta do destino da prpria filosofia. Isto , o fato de a tradio falsear a destinao da prpria filosofia o que motiva Kierkegaard a escre-ver o que escreveu e pensar o que pensou. Mais adiante desenvolveremos essa ideia da superao da metafsica anunciada ou preparada por Kierkegaard e Nietzsche e apropriada por Heidegger.

    15. No original: Alles Denken der Philosophie, das ausdrcklich oder nicht ausdrcklicht dem Ruf zur Sache selbst folgt, ist auf seinem Gang, mit seiner Methode, schon in das Freie der Lichtung eingelassen. Von der lichtung jedoch weis die Philosophie nichts (GA, 14 p. 82, grifo nosso).

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    mesmas apreender faticamente16 o pr-teortico que determina o mtodo. O mtodo

    por si s falsifica a sua origem assim como a luz falsifica a clareira.

    perseguindo isto que o jovem Heidegger vai edificando e construindo sua pr-

    pria filosofia. precisamente neste flego investigativo, que opera uma destruio

    fenomenolgica da tradio, isto , da primazia do teortico. Em 1919, por exemplo,

    como vimos, o filsofo de Friburgo aponta para a questo do pr-teortico como

    sendo o objeto da prpria filosofia (o principium). Em 1922, em seu Natorp Bericht,

    em virtude de o teortico falsear a questo da filosofia, ele busca um acesso origi-

    nrio vida humana, apontando para o Dasein humano como o ponto de acesso

    ao pr-teortico, salvaguardando a natureza e especificidade da filosofia, entendida

    enquanto fenomenologia como cincia pr-teortica originria. O objeto da inves-

    tigao filosfica o Dasein humano, enquanto se o interroga acerca de seu carter

    ontolgico. Esta direo fundamental da investigao filosfica no se impe desde

    fora [...] (HEIDEGGER, 2002, p. 31-32, traduo nossa, grifo nosso)17.

    precisamente este ponto e a partir dele que se opera a distino entre a feno-

    menologia husserliana da fenomenologia hermenutica heideggeriana e opera-se a

    destruio fenomenolgica. Por esta razo, [afirma Heidegger em 1919] uma vez

    que se obteve um ponto de partida genuno para o autntico mtodo filosfico, este

    ltimo manifesta sua capacidade de desvelar criativamente, por assim dizer, novas

    esferas de problemas (HEIDEGGER, 2005, p. 20, traduo nossa, grifo do autor)18. E

    no Informe Natorp, interpretando fenomenologicamente Aristteles, ele anuncia nas

    primeiras linhas a destruio fenomenolgica: As investigaes que apresentamos

    a seguir querem contribuir para uma histria da ontologia e da lgica (HEIDEGGER,

    2002, p. 29, traduo nossa).

    Este novo ponto de partida genuno, enquanto um novo principium para a filo-

    sofia, no tem a mesma natureza deste ou daquele princpio19 (principatum), pois se o

    16. Isto aponta para a vida ftica, isto , o Dasein humano como acesso originrio ao pr-teortico, clareira. A clareira, assim como o pr-teortico o fundamento sem fundo, a fundao do fundamento. Em alemo Abrund (abismo, sem cho) um termo que expressa bem essa ideia que conserva o elemento enigmtico, mistrico do pr-teortico, da clareira que pro-cura Heidegger.

    17. No original: Der Gegenstand der philosophischen Forschung ist das menschliche Dasein als von ihr befragt auf seinen Seinscharakter. Diese Grundrichtung des philosophischen Fragens ist dem befragten Gegenstand, dein faktischen Leben, nicht von auen angesetzt (GA 62, p. 348-349).

    18. No original: Ist daher einmal fr die echte philosophische Methode ein echter Ansatz gewonnen, dann offenbart die Methode ihre gleichsam schpferische Enthllung von neuen Problemsphren (GA 56/57, p. 16).

    19. Como Heidegger entende que a tradio faz, quer dizer, todo ponto de partida dado por qualquer filsofo da tradio, embora tenha a pretenso de um princpium, ainda no o princpio dos princpios, porque no chegou a dimenso da clareira ou do pr-teortico.

    SILVA, Marcos rico de Arajo. A superao da metafsica em Heidegger...

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    tivesse, Heidegger cairia na crtica que faz a Husserl e a toda tradio20. Entendemos

    que, por visualizar esta questo, Heidegger desde 1919, como jovem professor assis-

    tente em Friburgo, desenvolver esta ideia consolidando e construindo a partir desta

    ideia-diretriz a diferena ontolgica, a analtica do Dasein, a ontologia fundamental.

    O que se mostra em si mesmo na abertura compreensiva do homem permanece como

    algo irredutvel representao objetiva de um sujeito cognoscente; porm, por sua

    vez, a abertura intencional do homem permite que uma coisa se mostre em seu ser

    enquanto que a mesma existncia humana constitui uma forma de abertura irredutvel

    a qualquer determinao gnoseolgica, psicolgica e antropolgica. Cada vez que

    Heidegger l a Aristteles nestes anos, a interpretao conduz sempre tarefa genui-

    namente fenomenolgica de uma ontologia da vida, ou melhor, de uma ontologia do

    Dasein (ADRAN ESCUDERO, 2010, p. 270-271, traduo nossa).

    Portanto, a questo da superao da metafsica tem aqui, em 1919, suas razes,

    nutrindo-se da questo do Ser (Seinsfrage). verdade que esta questo se cristaliza

    e chega maturidade apenas em Ser e tempo (1927)21, mas o que apontamos que

    tem uma larga histria que a antecede e a determina. Em 1919 Heidegger escreve:

    Encontramo-nos ante a encruzilhada metodolgica que decide sobre a vida ou a morte

    da filosofia em geral. Encontramo-nos ante um abismo no que, ou nos precipitamos

    20. neste sentido que Heidegger fala de ser um antimetafsico, sem ser contra a metafsica. Ver Introduo a O que metafsica (O retorno ao fundamento da metafsica) de 1949.

    21. Chegar maturidade, enquanto questo que o filsofo vem perseguindo desde muito tempo, no implica em afirmar que Ser e tempo tenha chegado a um acabamento. Heidegger tem conscincia deste problema. Em Ser e tempo,embora esteja perseguindo a questo do ser para alm do teortico, quer dizer, acercando-se do pr-teortico a partir da analtica do Dasein, tendo em vista a ontologia fundamental, ele depara-se com o limite da linguagem. Est criticando a linguagem da metafsica tradicional, mas move-se (e no poderia ser diferente!) dentro dela apesar de no mais pertencer a ela! Essa a razo pela criao de novas palavras, pela cunhagem de novos termos. Sobre esta questo, so significativas as palavras do Heidegger tardio em Carta sobre o humanismo: Mas se o que em Ser e tempo se chamou de projeto for compreendido como um instituir representador, ento iremos conceb-lo como produto da subjetividade e deixaremos de pens-lo do nico modo como a compreenso do ser pode ser pensada no mbito da analtica existencial do ser-no-mundo, a saber, como referncia ek-sttica clareira do ser. Seguir e acompanhar de maneira suficiente a realizao desse modo diferente de pensar, que abandona a subjetividade, fica entrementes dificultado pelo fato de, na publicao de Ser e tempo, ter faltado a terceira seo da primeira parte (cf. Ser e tempo, p. 39). aqui que o todo faz uma viragem. a seo problemtica ficou de fora porque o pensamento fracassou em dizer de modo suficiente essa viragem e no conseguiu express-la com o auxlio da linguagem metafsica. [...] Essa viragem [de Ser e tempo para Tempo e ser] no uma mudana do ponto de vista [da questo do ser] de Ser e tempo, mas-nela o pensamento buscado alcanou pela primeira vez adentrar no stio da dimenso a partir da qual Ser e tempo foi experimentado, e, em verdade, experimentado na experincia fundamental do esquecimento do ser (HEIDEGGER, 2008, p. 340-341, grifo nosso). O destaque que fizemos nesta passagem corrobora nossa tese de que Ser e tempo e obras posteriores so dependentes e frutos das investigaes do jovem Heidegger. Ainda que o pensamento de Heidegger sofra vrias modificaes, acreditamos que existe um fio condutor que o conduz. Apesar do fracasso de Ser e tempo entendido neste contexto, o fracasso consiste na limitao da linguagem, mas no daquilo que possibilitou o engendramento de Ser e tempo. O pensamento, pois, expresso em Ser e tempo tem seu nascedouro nos cursos e seminrios proferidos por Heidegger desde 1919. Aquilo que possibilitou o surgimento de Ser e tempo, isto , aquilo que foi experimentado na experincia fundamental do esquecimento do ser segue e persegue a dimenso do pr-teortico.

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    no nada quer dizer, no nada da objetivao absoluta [no teortico como a tradio

    o faz!] ou conseguimos saltar a outro mundo, ou sendo mais exatos, estamos pela

    primeira vez em condies de dar o salto ao mundo enquanto tal (HEIDEGGER, 2005,

    p. 77, traduo nossa, grifo do autor)22.

    Ora, uma vez abrindo o caminho ao pr-teortico, clareira, protegendo-nos

    de uma objetivao absoluta que nos imuniza da prpria realidade e deixa escapar

    o ser enquanto questo, agora, se est em condies de direcionar a investigao

    filosfica para dar, pela primeira vez, o salto ao mundo enquanto tal. Isso se efetiva

    de forma mais elaborada para a filosofia ocidental oito anos mais tarde com a obra

    Ser e tempo (1927).

    3. A crtica a uma interpretao tcnica do pensar se realiza dentro da questo da

    superao da metafsica.A metafsica encobre o mbito do pr-teortico, da clareira,

    movendo-se no campo da teorizao, eliminando o aspecto enigmtico e mistrico

    da realidade. Por esta razo, toda metafsica humanista e todo humanismo me-

    tafsico, porque pensa a essncia do homem a partir de uma percepo do ente, sem

    levar em considerao a verdade do ser.

    A metafsica pensa o homem a partir de sua animalitas e no o pensa na direo de

    sua humanitas. A metafsica se fecha para o simples fato essencial de que o homem

    s se essencializa em sua essncia na medida em que interpelado pelo ser. s por

    essa interpelao que ele tem encontrado aquilo em que habita sua essncia. s

    por este habitar que ele tem linguagem como a morada que garante o eksttico

    sua essncia. Estar postado na clareira do ser, a isso eu chamo de ek-sistncia do

    homem. s ao homem que prprio esse modo de ser. O que se compreende assim

    como ek-sistncia [pr-teortico] no s o fundamento da possibilidade da razo,

    ratio [teortico], mas igualmente aquilo onde a essncia do homem guarda a pro-

    venincia de sua determinao (HEIDEGGER, 2008, p. 336)23.

    Quando o pensar sai de seu elemento, quer dizer, do mbito do pr-teortico,

    da dimenso da clareira, o pensamento declina, entra em decadncia, engendrando

    os diversos nomes e reas da filosofia: lgica, esttica, tica, fsica, metafsica etc.

    22. No original: Wir stehen an der methodischen Wegkreuzung, die ber Leben oder Tod der Philosophie ber-haupt entscheidet, an einem Abgrund: entweder ins Nichts, d. h. der absoluten Sachlichkeit, oder es gelingt der Sprung in eine andere Welt, oder genauer: berhaupt erst in die Welt (GA 56/57, p. 63).

    23. No original: Die Metaphysik verschliet sich dem einfachen Wesensbe-stand, da der Mensch nur in seinem Wesen west, indem er vom Sein angesprochen wird. Nur aus diesem Anspruch hat er das gefunden, worin sein Wesen wohnt. Nur aus diesem Wohnen hat er Sprache als die Behausung, die seinem Wesen das Ekstatische wahrt. Das Stehen in der Lichtung des Seins nenneich die Ek-sistenz des Menschen. Nur dem Menschen eignet diese Art zu sein. Die so verstandene Ek-sistenz ist nicht nur der Grund der Mglichkeit der Vernunft, ratio, sondern die Ek-sistenz ist das, worin das Wesen des Menschen die Herkunft seiner Bestimmung wahrt (GA 9, p. 323-324).

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    O pensar originrio, afinado com a clareira, anterior a essa classificao escolar

    em diversas disciplinas da filosofia. Mas quando o pensar decai de seu elemento,

    torna-se tchne, isto , o proceder reflexivo a servio do atuar, do agir, do fazer. A

    tchne torna-se, na histria do pensamento ocidental, o critrio, o padro de medida

    para julgar a eficcia ou pertinncia de um pensamento, de uma filosofia. A diviso

    hierrquica entre teoria e prtica, supervalorizando um ou outro polo j se d no

    flego de uma interpretao tcnica do pensar.

    Ns ainda estamos muito longe de pensar a essncia do agir de maneira suficiente-

    mente decisiva. S conhecemos o agir como a produo de um efeito, cuja realidade

    vem estimada segundo sua utilidade. Mas a essncia do agir o levar a cabo. Levar a

    cabo significa: desenvolver alguma coisa na plenitude de sua essncia, conduzir at

    sua essncia, producere. Em sentido prprio, s pode ser levado a cabo, portanto,

    aquilo que j . Mas o que , antes de tudo, o ser. O pensamento leva a cabo a

    relao entre o ser e a essncia do homem. Ele no faz, nem produz essa relao. O

    pensamento se limita a oferec-la ao ser como aquilo que a ele prprio foi doado pelo

    ser. Esse oferecer consiste no fato de o ser vir linguagem no pensar. A linguagem a

    morada do ser. Na habitao da linguagem mora o homem. Os pensadores e os poetas

    so os guardies dessa morada. Sua viglia consiste em levar a cabo a manifestao

    do ser, na medida em que, por seu dizer, a levam linguagem e nela a custodiam. O

    pensar no se converte em ao pelo fato de provir dele algum efeito ou por ele ser

    utilizado. O pensar age na medida em que pensa (HEIDEGGER, 2008, p. 326)24.

    Heidegger, para responder questo sobre o humanismo, parte da superao da

    metafsica. O pensamento de Heidegger, como expressa esse primeiro pargrafo de

    sua Carta, pensa a questo do humanismo a partir da verdade do ser. Isto : pensa o

    problema do humanismo desde a dimenso da clareira, do mbito do pr-teortico.

    O pensar de Heidegger um pensamento que se faz e per-faz no elemento prprio

    da filosofia. Portanto, um pensar originrio, que se nutre da provenincia do ser.

    por esta razo, por exemplo, que Heidegger ao investigar a lgica, desde o pensar

    originrio, a exclui de todo carter de sinal, signo e, portanto, no a entende a partir

    24. No original: Wir bedenken das Wesen des Handelns noch lange nicht ent-schieden genug. Man kennt das Handeln nur als das Bewirken einer Wirkung. Deren Wirklichkeit wird nach ihrem Nutzen geschtzt. Aber das Wesen des Handelns ist das Vollbringen. Voll-bringen heit: etwas in die Flle seines Wesens entfalten, in diese hervorgeleiten, producere. Vollbringbar ist deshalb eigentlich nur das, was schon ist. Was jedoch vor allem ist, ist das Sein. Das Denken vollbringt den Bezug des Seins zum Wesen des Menschen. Es macht und bewirkt diesen Bezug nicht. Das Denken bringt ihn nur als das, was ihm selbst vom Sein bergeben ist, dem Sein dar. Dieses Darbringen besteht darin, da im Denken das Sein zur Sprache kommt. Die Sprache ist das Haus des Seins. In ihrer Behausung wohnt der Mensch. Die Denkenden und Dichtenden sind die Wchter dieser Behausung. Ihr Wachen ist das Vollbringen der Offenbarkeit des Seins, insofern sie diese durch ihr Sagen zur Sprache bringen und in der Sprache aufbewahren. Das Denken wird nicht erst dadurch zur Aktion, da von ihm eine Wirkung ausgeht oder da es angewendet wird. Das Denken handelt, indem es denkt (GA 9, p. 313).

    Rev. Filosfica So Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 23-46, jan./jun. 2013

    arti

    go

    s

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    da filosofia da linguagem. o que o filsofo faz no semestre de vero de 1934, em

    Lgica: a pergunta pela essncia da linguagem, investigando a lgica na perspectiva

    da linguagem, mas vinculando-o ao problema da essncia do homem. Uma interpre-

    tao tcnica do pensar caminha no des-caminho em que no se coloca na abertura

    da escuta do apelo do ser e, portanto, no fala na linguagem do ser. A tentativa de

    conservar a palavra humanismo, resgatando seu sentido conceitual, move-se na

    atmosfera da metafsica.

    Todo e qualquer humanismo funda-se em uma metafsica ou ento ele prprio se coloca

    como fundamento para uma tal metafsica. Toda e qualquer determinao da essncia

    do homem que j pressupe a interpretao do ente sem questionar a verdade do ser,

    quer o saiba ou no, metafsica. por isto que, na perspectiva do modo como se

    determina a essncia do homem, aparece o que caracterstico de toda metafsica, qual

    seja, que humanista. De acordo com isto, todo e qualquer humanismo continua

    sendo metafsico. Na determinao da humanidade do homem, o humanismo no

    s no questiona a relao do ser com a essncia do homem, como impede inclusive

    essa pergunta, uma vez que, com base em sua provenincia a partir da metafsica, ele

    no a conhece e muito menos a compreende. ao contrrio, a necessidade e o modo

    prprio questo acerca da verdade do ser, esquecida na e pela metafsica, s

    pode vir luz se, em meio ao predomnio da metafsica, for colocada a questo:

    o que metafsica?. de imediato, porm, toda questo que pergunta pelo

    ser, inclusive a que pergunta pela verdade do ser, deve ser introduzida como

    uma pergunta metafsica (HEIDEGGER, 2008, p. 334, grifo nosso)25.

    Para descobrir a verdade do ser, obscurecida pela metafsica, necessrio que em

    meio ao predomnio da metafsica, seja colocada a questo: O que metafsica?.

    Heidegger mesmo faz esta interpelao em 1929 e descobre a angstia e o nada como

    disposio fundamental do filosofar que desvela o ser. Mas de onde Heidegger capta

    este apelo do ser? Em quais vigias ou vigilantes da tradio filosfica Heidegger

    vislumbra a doao do ser na manifestao de seu pensamento? Esses vigias cus-

    todiam esta linguagem numa relao muito prxima ao poetar. Essa configurao de

    25. No original: Jeder Humanismus grndet entweder in einer Metaphysik oder er macht sich selbst zum Grund einer solchen. Jede Bestimmung des Wesens des Menschen, die schon die Auslegung des Seienden ohne die Frage der Wahrheit des Seins voraussetzt, sei es mit Wissen, sei es ohne Wissen, ist metaphysisch. Darum zeigt sich, und zwar im Hinblick auf die Art, wie das Wesen des Menschen bestimmt wird, das Eigentmliche aller Metaphysik darin, da sie humanistisch ist. Demgem bleibt jeder Humanismus metaphysisch.Der Humanismus fragt bei der Bestimmung der Menschlichkeit des Menschen nicht nur nicht nach dem Bezug des Seins a zum Menschen-wesen.Der Humanis-mus verhindert sogar diese Frage, da er sie auf Grund seiner Herkunft aus der Metaphysik weder kennt noch versteht. Umgekehrt kann die Notwendigkeit und die eigene Art der in der Metaphysik und durch sie vergessenen a Frage nach der Wahrheit des Seins nur so ans Licht kommen, da inmitten der Herrschaft der Metaphysik die Frage gestellt wird: Was ist Metaphysik? Zunchst sogar mu sich jedes Fragen nach dem Sein, auch dasjenige nach der Wahrheit des Seins, als ein metaphysisches einfhren (GA 9, p. 321-322).

    SILVA, Marcos rico de Arajo. A superao da metafsica em Heidegger...

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    um modo de filosofar no-sistemtico difere qualitativamente do modus operandi do

    filosofar tradicional. Heidegger se posta desde o mirante da superao da metafsica

    e a partir daqui desenvolve seu pensamento na visualizao de um novo horizonte

    filosfico. Mas, na disputa amorosa pela coisa mesma (HEIDEGGER, 2008, p. 349),

    Heidegger reconhece que Kierkegaard e Nietzsche so os pensadores que desde den-

    tro da metafsica operam uma crtica radical da mesma. Eles apontam para a aurora

    da instaurao