a estÉtica da sensibilidade nas diretrizes curriculares ... · diretrizes curriculares nacionais....

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO FABIANO RAMOS TORRES A ESTÉTICA DA SENSIBILIDADE NAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS. São Paulo 2011

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE EDUCAO

FABIANO RAMOS TORRES

A ESTTICA DA SENSIBILIDADE NAS

DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS.

So Paulo

2011

FABIANO RAMOS TORRES

A ESTTICA DA SENSIBILIDADE

NAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS

Dissertao apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Educao.

rea de concentrao: Filosofia e Educao.

Orientao: Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto.

So Paulo

2011

AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao

Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

37.01 Torres, Fabiano Ramos

T693e A esttica da sensibilidade nas diretrizes curriculares nacionais / Fabiano Ramos Torres ; orientao Celso Fernando Favaretto. So Paulo : s.n., 2011.

166 p. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao.

rea de Concentrao : Filosofia e Educao) - - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.

1 . Filosofia da educao 2. Esttica 3. Reforma do ensino 4. Contemporaneidade 5. Currculos e programas I. Favaretto, Celso Fernando, orient.

TORRES, Fabiano Ramos. A Esttica da Sensibilidade nas Diretrizes Curriculares Nacionais. Dissertao. Mestrado. Programa de Ps-graduao em Educao, linha de pesquisa Filosofia e Educao da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. - FEUSP, So Paulo, 2011.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto ( Presidente da Banca/Orientador )

Instituio: Faculdade de Educao da USP. Assinatura:________________

Prof. Dr.___________________________

Instituio:_________________________Assinatura: _______________

Prof. Dr. ___________________________

Instituio: ________________________Assinatura: _______________

Para a San.

Com amor.

Agradecimentos

Ao professor Celso Favaretto, meu orientador, pela orientao e cuidado atravs da marcha

da enunciao; por ter me ensinado algo do estilo e da pacincia do conceito.

professora Cinthya Regina Ribeiro, que talvez no saiba, mas possibilitou um bom

encontro, durante o estgio na FEUSP, e que foi de grande importncia na elaborao deste

ensaio.

minha querida esposa Sandra, companheira inseparvel, por ter acreditado neste projeto;

por seu carinho; por ter me inspirado coragem, justia e honestidade; por ter me ensinado a

ser mais objetivo e organizado; e, principalmente, por acreditar na vida a dois e no amor.

Ao meu pai Ayrton que sempre me incentivou aos estudos e me ensinou a contar histrias

( heranas inesquecveis do v Dito e da V Emlia ); minha me Maria Aparecida que lia

para mim e para a Adriana, os livros que a v Amlia comprava na cidade.

s minhas irms: Adriana ( pelas nossas conversas madrugada a dentro, ou muito antes: por

ter se aventurado comigo pelas descobertas do Clube do Foquinha. ) Emanuelle: por ter me

escutado tantas vezes com ateno, mesmo quando no entendia muito bem o que eu falava -

e por nos deixar a todos mais felizes.

Dona Tereza e ao Sr. Joaquim que me acolheram e me ajudaram nas horas difceis que

muitas vezes ajudaram a financiar esta pesquisa.

A muitos amigos, alguns especiais: Luciano Paulino, que escolhi como irmo, mesmo nas

suas desaparies ( desde o comeo voc me ensinou a coragem de ouvir o outro ); ao Kiko

Dinucci, amigo dos delrios e dos barrancos ( Lario! ); os amigos que foram bons encontros

depois que me tornei professor, amigos que me ouviram e a quem deveria ter escutado mais:

Paulo Ricardo, Mnica Batista, Jos Carlos Caetano, Andr Gomes, a Diretora Beatriz e ao

Vice-diretor Jackson, da Escola Ruth Cabral Troncarelli ( todos sempre acreditaram que no

meio da minha loucura eu tivesse algo a dizer ). E tantos outros, alunos e colegas de profisso,

que so muitos: todos que um dia foram pequenos brotos no jardim e agora comeam a

florescer.

Aos novos amigos, Vento Forte, Brisa e El Nio que foram tambm bons encontros, no

momento oportuno: Xumai!

Aos amigos do Grupo de estudos de Mediao Cultural com quem aprendi muito a cada

encontro.

Ao Ribamar, que desde menino me inspirou e foi para mim o grande cientista. ( ainda hoje

sonho com os anis de Saturno. )

TORRES, Fabiano Ramos. A Esttica da Sensibilidade nas Diretrizes Curriculares Nacionais. 2011. 166 p. Dissertao. Mestrado. Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. - FEUSP, So Paulo, 2011.

Resumo

A anlise do campo de constituio dos princpios da reforma educacional dos anos

de 1990, possibilita a investigao do mundo, da sociedade e do sujeito pressupostos no

enunciado esttica da sensibilidade, apresentado como princpio filosfico dessa nova

concepo da educao. Este trabalho visa a analisar, particularmente, o princpio, aqui

tomado como enunciado, esttica da sensibilidade proposto nas Diretrizes Curriculares

Nacionais. A fim de se verificar o que possibilitou a eleio da esttica da sensibilidade como

um princpio da educao, considerou-se neste trabalho que a resposta a esta pergunta

indissocivel da anlise das condies de possibilidade do enunciado, o que implica anlise

do campo de constituio do enunciado esttica da sensibilidade, que pode ser compreendida

como parte de uma analtica da contemporaneidade. A problemtica da sensibilidade em

educao, na atualidade, diz respeito ao agenciamento da sensibilidade pelos dispositivos

capitalistas de estetizao da vida cotidiana: publicidade, marketing, industria cultural.

Dentre as esferas da vida estetizadas, educao reservado um lugar estratgico pois ela foi

convertida num dos mais importantes dispositivos do processo de reestruturao do

capitalismo avanado. Assim, este trabalho questiona de que modo a nova concepo de

educao opera na fabricao de sujeitos aptos a esta tarefa.

Palavras-chave: educao, esttica, sensibilidade, reforma educacional, contemporaneidade.

TORRES, Fabiano Ramos. The aesthetics of sensibility in the National Curriculum Guidelines. 2011. 166 p. Dissertation ( Master's Degrees) - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. So Paulo, 2011.

Abstract

Analyzing the establishment field of educational reform principles in 1990s enables

the investigation of the world, the society, or the individual, presupposed in the statement

aesthetics of sensibility, presented as a philosophical principle of this new conception of

education. This is a study, in special, on the principle of asthetics of sensibility, assumed

here as a statement, proposed in the National Curriculum Guidelines. The attempt of

understanding how this concept has been chosen as the principle of education made us

understand that the answer to this question is not apart from the condition of possibilities the

statement, what implies the analysis of the establishment field of the statement aesthetics of

sensibility, which can be seen as well as part of an analysis of contemporary times. Publicity,

marketing, and cultural industry - capitalist mechanisms which try to aestheticise life - have

negotiated with the concept of sensibility. This is the problem of sensibility in education

now-a-days. Education takes an essential place among the aestheticised life spheres, once it

was converted in one of the most important mechanisms of advanced capitalism restructuring.

Thus, this work inquires how the new conception of education operates on the shaping of

individuals capable for this task.

Key-words: Education. Aesthetic. Sensibility. Educational reform. Contemporary times.

Sumrio

Introduo................................................................................................................11

1. Analtica da contemporaneidade..........................................................................31

2. A reforma educacional, anos 1980-90..................................................................38

3. Processo, mecanismo de tramitao e significado das DCN....................................43

4. A contemporaneidade no enfoque da reforma educacional... ..........................47

5. A Esttica da sensibilidade e o novo Ensino Mdio.............................................58

6. A Esttica da Sensibilidade como competncia....................................................76

7. Leveza, delicadeza e sutileza.................................................................................83

8. Competncias para o trabalho. ......................................................................... 94

9. Reestruturaes do capitalismo e do trabalho......................................................102

10.Inteligibilidade e Sensibilidade...........................................................................110

11.Biopoltica, sensibilidade e educao..................................................................119

12.Trabalho imaterial, sociedade de controle e educao........................................122

13.Prticas escolares.................................................................................................125

14.Generalizao do esttico na educao................................................................129

Concluso..................................................................................................................139

Referncias bibliogrficas.........................................................................................147

Anexos.......................................................................................................................156

11

Introduo.

Campo de constituio.

O enunciado nunca um simples reflexo ou expresso de algo preexistente, fora dele mesmo, j dado e pronto. O enunciado cria sempre algo que no havia sido criado antes, novo e no reprodutvel, sempre relacionado a um valor ( ao verdadeiro, ao bom, ao belo ). Entretanto tudo o que criado criado a partir do que j existia.

Mikhail Bakhtin

As duas ltimas dcadas do sculo XX apresentam acontecimentos marcantes que

alteram os paradigmas at ento vigentes no mundo moderno. Em reas diversas, como a

educao, o trabalho, a cincia e as artes, novos problemas e novas demandas surgem por

conta do cenrio de mudanas crticas. O que aqui nos interessa so as repercusses de tais

acontecimentos e transformaes na elaborao da Diretrizes Curriculares Nacionais

especificamente no que diz respeito aos fundamentos e princpios da nova concepo de

educao no conjunto de documentos da reforma educacional. Especificamente, interessa

investigar o significado e as condies que tornaram possveis a eleio do princpio esttica

da sensibilidade como um dos fundamentos da educao.

Abrangendo todas as modalidades da educao bsica, a reforma educacional

fortemente influenciada pelos novos paradigmas vigentes no mundo contemporneo: a

globalizao, novos paradigmas para a reestruturao do trabalho e do capitalismo, o

neoliberalismo, as novas tecnologias da informao e comunicao. Caudatria de uma

tradio que se inicia com o sculo das Luzes, a reforma educacional dos anos 90 corresponde

a mais uma entre tantas reformas ocorridas no sculo XX. Nela ainda podem ser identificados

princpios como o da autonomia e da emancipao, princpios que desde o advento da

modernidade tm se colocado como grandes desafios educao e que ainda hoje so

apresentados como questes relevantes que nos atm ao cerne das questes identificadas na

modernidade: a crena no ideal de que educao ser capaz de conduzir o homem a uma vida

melhor.

12

Na base de toda a problemtica que envolve o mundo moderno, podem-se apontar

diagnsticos que j se tornaram clssicos da teoria social: a autonomia das vrias esferas da

experincia humana e do mundo conforme demonstrou Max Weber em sua clebre teoria

acerca do processo de desencantamento do mundo e da dissoluo das formas de vida

tradicionais onde o passado se apresenta como fonte da experincia das geraes mais velhas.

As atividades, as crenas e os valores da tradio que vigoravam at ento so estruturados

em prticas sociais perpetuadas pelo encontro de geraes que as fazem passar pelo fio do

passado, do presente e do futuro. Tudo isso aponta para a perda de uma totalidade imediata de

um mundo unitrio e harmnico onde os homens se reconheciam a si mesmos e a natureza.

isso que, com o advento da modernidade, ser colocado em cheque e que ser um dos grandes

problemas do mundo ocidental, sobretudo para a educao. A significativa perda da

experincia diagnosticada por Walter Benjamin, favoreceu outras atitudes, tpicas da

modernidade, a saber, a adeso imediata a um presente, a um agora que desconecta o

indivduo do acontecimentos, fraturando sua relao com o passado e com as estruturas de

significao do mundo e da vida herdadas de uma outra poca que passa a perder o sentido

frente esse outro ethos que agora se impe: uma nova maneira de ser, de estar, de se

comportar e escolher a si e ao mundo que se deseja.

A fragmentao da totalidade que o mundo ocidental assistir resultado da

irrefrevel especializao, racionalizao, intelectualizao, burocratizao da vida, em que a

cincia e a tcnica tm lugar de destaque. O advento da modernidade, marcada por essa

crescente racionalizao bem como a crena e o otimismo a respeito dos poderes do homem

em relao dominao da natureza, conduzem o homem a um novo tipo de relacionamento

com as tradies, exigindo dele novos procedimentos, comportamentos e consequentemente

novas maneira de lidar com o conhecimento e com os modos de aquisio e transmisso do

mesmo. Culminando em um processo de instrumentalizao da razo, a modernidade passa a

lidar com uma angustiante via de mo dupla do progresso: se por um lado ocorre um

irrefrevel progresso da cincia que resultou em ampla dominao da natureza o que

significaria dizer, por exemplo, que o mundo natural se tornou em grande parte um mundo

criado. Por outro lado, observa-se que o mesmo no ocorre em relao ao progresso moral dos

homens: certamente estamos falando a partir de uma perspectiva que nos pede pensar a

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educao aps um sculo que como nenhum outro, conheceu a barbrie, o poder de destruio

do homem: A exigncia que Auschwitz no se repita a primeira de todas para a educao.1

Um dos problemas dos maiores problemas que se colocou para o homem e para a

educao - o de como se orientar em um mundo desencantado, de acentuada dominao da

vida, inclusive dominao do homem pelo homem, aproveitando ao mximo as possibilidades

oferecidas pela cincia e pela tcnica, sem deixar escapar o progresso moral e espiritual dos

homens, ideal perseguido desde a poca das Luzes, como crena nos poderes emancipadores

da razo. Como fazer para que cada esfera a arte, a poltica, a cincia, a religio - seja

respeitada em sua autonomia sem que contudo se perca a possibilidade de uma experincia

unitria mas no totalizadora. E outros desafios: a busca por respostas a essa razo

instrumental que tornou possvel a dominao do homem pelo homem; como afastar a misria

de grande parte da humanidade que no usufrui das conquistas proporcionadas pela

dominao da natureza, pelo avano tecnolgico. Sem dvidas que, diante das aporias e

contradies da modernidade, hoje se exige da educao um posicionamento crtico que leve

em considerao o perfil da sociedade de hoje, uma sociedade em que a ameaa de fascismo

se refere

no somente o fascismo histrico de Hitler e de Mussolini - que to bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que est em ns todos, que martela nossos espritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.2

Um fascismo que nos espreita, vige em cada um de ns. Que nos chega por meio das

intensidades agora presentes nos objetos cotidianos e que funcionam como cimento na

relao do desejo com a realidade e com a 'mquina' capitalista.3 Com isso se quer dizer que

as tcnicas de modulao dos homens esto presentes em todos os lugares, como promessas

de mundo, como promessa de um novo homem, de uma nova vida. Neste salto de uma

sociedade a outra assiste-se ao nascimento de algo novo, a cultura imaterial. Este o tempo

em que o desejo, o afeto, as paixes, a sensibilidade entram nos domnios dos clculos do

poder e se tornam os agentes mais poderosos das novas tecnologias de modulao. Entramos

1ADORNO, T.W. A Educao aps Auschwitz. Educao e emancipao. Trad. So Paulo: Paz e Terra, 1995.p.119.2FOUCAULT, M. Introduo vida no fascista. Traduo: Wanderson Flor do Nascimento. In: acesso em: Outubro de 2009. p.2.3FOUCAULT, M. op.cit. p. 2.

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numa nova era do capitalismo dito cognitivo, afetivo ou esttico. Era em que o imaterial

povoa o objeto mais banal um aparelho de barbear, por exemplo, e todo o mundo construdo

ao seu redor O capitalismo, tambm ele, soube mobilizar e utilizar o desejo, no apenas o

desejo das massas, mas tambm o desejo do indivduo que agora cai de amores pelo poder

quando sacrifica sua vida e a dos outros em favor de um objeto - no nos esqueamos dos

pequenos fascismos cotidianos, como daquele caso ( inesquecvel?) do garoto assassinado por

causa de um par de tnis. Essa no seria uma pequena monstruosidade inserida no seio da

cotidianidade? Do que que um par de tnis est investido a ponto de ser o motivo de

irrupo dessa pequena monstruosidade cotidiana que o assassinato por motivo ftil? O

que isso nos mostra que a mobilizao do desejo, investido num objeto, atua na produo

dos acontecimentos e de subjetividades, coisa de que o capitalismo avanado se deu conta e

agregou a seu sistema de produo. O que hoje est sendo produzido e vendido so mundos.

Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importncia

frente a essa meta: que Auschwitz no se repita.4 Que ele no continue a se repetir nos

vrios episdios semelhantes ao do par de tnis uma exigncias urgente para a educao,

nesta poca em que o capitalismo, com suas promessas, alimenta tambm o esquecimento

dessas pequenas e constantes monstruosidades do nosso dia a dia que, inclusive, invadiram a

escola.

Isto no pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um fenmeno superficial, como sendo uma aberrao no curso da histria, que no importa, em face da tendncia dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente5.

Como fazer para no se tornar fascista, como fazer para no educar pequenos fascistas

esta poderia ser uma lio extrada do pensamento crtico que vai de Adorno a Foucault.

preciso buscar as razes nos perseguidores e no nas vitimas, assassinadas sob os pretextos

mais mesquinhos.6 Na guerra esttica propiciada pelo capitalismo avanado, h tambm

perseguidores. E que nome daremos queles que, de uma forma ou de outra, consciente ou

inconscientemente colocam o poder em circulao? Deixemos, por enquanto, essa dvida em

suspenso para avanar no seguinte ponto:

4ADORNO, T.W. op.cit. p. 119.5 Idem. p.120.6 Idem. Ibidem.

15

preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, preciso revelar tais mecanismos a eles prprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma conscincia geral acerca desses mecanismos.7

Se Adorno est se referindo a questes pontuais que j no aquelas que nos

interessariam diretamente, no obstante, essas questes revisitadas, retomadas, reelaboradas

por Foucault e Deleuze nos autorizam a compreender a problemtica apresentada por Adorno,

como uma problemtica do tempo presente, agora disseminada na vida, em todas as suas

dimenses e no apenas nos campos de concentrao. Alis, num diagnstico mais

pessimista, o mundo poderia ser considerado um grande campo de concentrao a cu aberto

se se levar em considerao todos os assassinatos ocorridos diariamente nessas guerras de

produo e consumo, tnicas, polticas desde o fim da segunda guerra.

Trata-se de se reconhecer mecanismos que tornam possveis o assujeitamento do

homem, mostrar como funciona, como se relaciona o agenciamento de afetos e a expanso do

capitalismo esttico, enfim, diagnosticar, dizer o que se passa, como se constroem as relaes,

as conexes entre o atual estgio do capitalismo e a educao. Qual o lugar reservado a uma

nova concepo de educao que responda a essa situao e que inclusive pretende articular

uma determinada concepo de esttica como um dos seus princpios axiolgicos?

Ao se referir educao aps Auschwitz, Adorno tem em mente a ideia de

esclarecimento adequada promoo de um clima intelectual, cultural e social que

impedissem a repetio de Auschwitz. Trata-se da criao de um clima que possibilitasse o

entendimento dos motivos que poderiam conduzir a humanidade ao horror. Levando em

considerao o fascismo que est em ns, atuando em nosso cotidiano e agenciado pelo

capitalismo, veremos que ainda hoje necessria a criao desse clima intelectual, cultural e

social. Porm, aqui est um problema gravssimo problema pois clima intelectual,

cultural e social justamente uma das condies de possibilidade dos processos de

reestruturao do capitalismo. Ou seja, a criao deste clima justamente aquilo de que se

vale o capitalismo para agenciar afetos, desejos, imaginao e criao. Tudo isso hoje se

apresenta como uma das condies que tornam possveis ao capital, de continuamente

reafirmar os dispositivos de dominao.

7Idem. Ibidem, p.121.

16

Entretanto, preciso acentuar, com Adorno, que o perigo de que tudo continue a

acontecer fome, misria, guerra, destruio de humanos e no humanos est em que no se

admita que a educao, a cultura, as artes e o conhecimento tenham sua cota de

responsabilidades nesse processo.

Hoje, a diversidade e a multiplicidade de objetos fetichizados postos em circulao

reforam a dominao, pois fazem com que cada pessoa seja um agente que perpetua a

circulao. A circulao de blocos de intensidade do poder um conjunto de objetos

investidos de afeto, por exemplo, as roupas e o mundo que elas prometem parte do princpio

de que cada consumidor pode ser associado ao poder, por meio da promessa, sempre presente,

de mais felicidade. Dai a necessidade do esclarecimento para se evitar a atitude to comum de

cair de amores pelo poder fazendo-se a critica das mquinas produtoras de desejo.

Na crtica racionalidade instrumental o lugar da arte tem sido apresentado como

essencial, pois ela pe em relevo a problemtica da sensibilidade na poca moderna e sua

relao com o conhecimento. No que diz respeito ao conhecimento, a sensibilidade est sendo

reabilitada como forma de acesso ao verdadeiro. Na atualidade, pensar as condies de

possibilidade da educao e do conhecimento, do ato de ensinar e aprender, exige que se

considere essa dimenso esttica, a dimenso da sensibilidade, que hoje se converteu em pea

indispensvel aos processos de dominao e colonizao da vida.

A problemtica da sensibilidade em educao na atualidade diz respeito ao

agenciamento da sensibilidade pelos poderes sobre a vida: a publicidade, o marketing, a

industria cultural. Observam-se processos de estetizao em territrios no artsticos, que vo

desde a estetizao dos meios de produo, da circulao de mercadorias, dos ambientes os

mais variados como os da empresa, dos hospitais, das escolas e dos shopping centers. Dentre

essas esferas da vida estetizada, educao reservado um lugar estratgico pois ela foi

convertida num dos mais importantes dispositivos do processo de reestruturao do

capitalismo avanado, pois a ela debitado o papel de fazer a ponte entre o mundo

pressuposto pelo capitalismo, as novas tecnologias que o colocam em funcionamento, e o

conhecimento, matriz fundamental das tecnologias e do prprio capitalismo avanado.

A dimenso esttica identificada nos documentos analisados diz respeito, dentre outras

coisas, ao desenvolvimento de competncias e habilidades especificas para o mundo do

trabalho. Refere-se ao desenvolvimento de habilidades e competncias necessrias

laborabilidade no mundo contemporneo. Diz respeito trabalhabilidade, isto , capacidade

que uma pessoa deve possuir no s para realizar tarefas, mas tambm para programar e gerir

17

sua permanncia no mercado de trabalho, que hoje no se reduz ao aprendizado de uma

operao tcnica mas est ligada ao domnio de competncias afetivas ( saber como viver

junto, trabalhar em equipe, etc..) que tornariam os indivduos preparados para lidar com

aquilo que ainda vai ser criado.

Os documentos da reforma educacional, ao enunciar uma terceira revoluo industrial,

qual atrelam a necessidade de mudanas na educao, apontam as novas tecnologias e a

centralidade do conhecimento como marcos fundamentais da poca contempornea.

Diferentemente das revolues anteriores, a terceira revoluo industrial

caracterizada pela predominncia do software. No se trata, hoje, propriamente do domnio de

um maquinrio bruto mas, antes, do conhecimento necessrio para saber fazer com que ele

funcione, motivo pelo qual, ela passa a ser considerada tambm uma revoluo pautada no

conhecimento. Assim, o mundo tecnolgico apresentado como lquido, flexvel, malevel,

marcado pela leveza e pela imaterialidade do software que passa a comandar as grandes

operaes na segunda metade do sculo XX. O software promoveu uma nova relao com o

tempo e o espao, encurtando distncias, aproximando o que antes era remoto, otimizando e

racionalizando ainda mais o mundo da produo e da informao. As mudanas ocasionadas

no mundo por conta das novas tecnologias exigem uma reorganizao da educao bem como

redefinem o lugar do ensino tcnico e profissionalizante que passa a ter capital importncia

para a construo das competncias ento exigidas. Os paradigmas a partir dos quais so

reelaboradas as polticas educacionais observam as demandas da atualidade que dizem

respeito ao domnio dessas novas tecnologias sem as quais os pases em desenvolvimento

continuariam excludos do cenrio competitivo internacional. a esse desenvolvimento

econmico que as reformas procuram atender, sendo que construir competncias para a

competitividade aparece em vrios documentos como um dos mais importantes desafios

educacionais do sculo XXI.

A partir das reformas iniciadas nos anos 1980, o ensino e a aprendizagem profissional

e propedutica se aproximam, passando a ser organizados em torno do desenvolvimento de

habilidades e competncias. As competncias necessrias execuo de uma tarefa laboral

necessitam acompanhar o ritmo frentico das mudanas ocorridas no mundo contemporneo:

a evoluo no para e exige uma formao continuada, muitas vezes no prprio mbito do

trabalho, que passa a ser local de aprendizado. Cada vez mais, e por conta disso, a educao

escolar se preocupa com o que necessrio para enfrentar as incertezas do mundo

contemporneo: a cada vez mais gil criao e disseminao do conhecimento evidencia que

18

a durao das tecnologias est se tornando progressivamente menor. A obsolescncia ocorre

muito mais rapidamente8 Isto aponta para a necessidade de uma educao voltada para o

indivduo, que compreendido como o gestor de seu conhecimento e aprendizagem, pois o

novo cenrio favorece um processo de virtualizao da educao, isto , os formandos, por si

prprios, devem estar preparados para fazer face defasagem de seus conhecimentos e de

suas competncias preparando-se para lidar com aquilo que ainda no existe.

No conjunto de documentos da reforma educacional dos anos 1990, as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e as Diretrizes Curriculares Nacionais para

o Ensino Mdio apresentam como fundamento da educao, trs princpios axiolgicos:

poltica da igualdade, tica da identidade e esttica da sensibilidade. Considerando os trs

princpios possvel apontar como a esttica da sensibilidade enunciada como um dos

fatores mais importantes da reforma. A anlise desse enunciado conduz seguinte pergunta:

porque a atualidade possibilita a um documento normativo oficial eleger a esttica como

princpio da educao? De extrao notadamente kantiano-foucaultiana9, outra pergunta

necessria: O que esta atualidade na qual e para qual a esttica passa a ser um dos mais

importantes princpios de uma reforma educacional ?

A resposta a essas perguntas indissocivel da anlise das condies de possibilidade

do enunciado. Ou seja: o que possibilitou a escolha da esttica como princpio educacional.

Contudo, os textos onde a esttica da sensibilidade enunciada so textos muito sintticos: as

definies e a fundamentao do princpio so tratadas no Parecer CNE/CEB N 15/98 que

trata da Diretrizes Curriculares Nacionais e quem tem Guiomar Namo de Mello como

relatora. Este parecer trata o assunto de modo sucinto, ocasionado dificuldade em se

compreender o significado em questo. Por conta disso, para uma maior compreenso do

significado do enunciado, importante a considerao de outros documentos oficiais e

extraoficiais. Considerou-se, assim, a necessidade de se conceber um campo de constituio,

onde so analisados os deslocamentos e as transformaes dos enunciados, o modo como eles

so utilizados nos documentos diversos, bem como os meios tericos pelos quais eles foram

elaborados. Os enunciados e conceitos da srie de documentos remetem uns aos outros sem

que nenhum deles possa ser considerado pedra fundamental do enunciado esttica da

sensibilidade. O entendimento dessa nova concepo de educao bem como o entendimento

de seus princpios e fundamentos exige que se entenda o modo pelo qual o enunciado esttica

8BANCO MUNDIAL. Conhecimento e competitividade. p.119 FOUCAULT. M. O que so as Luzes?

19

da sensibilidade se articula a outros enunciados que lhe do sustentao. Isso implica analisar

a lgica das relaes de fora presentes neste campo e o modo como diversos saberes se

articulam na formao de um discurso que produz novas concepes de educao bem como

pressupe um novo sujeito dessa educao.

Este campo constitudo por sries de documentos: documentos oficiais de governos

diferentes ( governo FHC e Lula ); documentos referentes a etapas de educao distintas

( Ensino Fundamental e Ensino Mdio ); documentos de diferentes instituies e com

objetivos distintos: declaraes resultantes de congressos, encontros, relatrios de agncias

internacionais como Unesco, Banco Mundial, PNUD entre outros. Procurou-se ento o

agrupamento destes documentos em sries coerentes com a problemtica em questo

considerando-se este procedimento como um trabalho que opera na constituio do objeto da

crtica. Pois, como diz Foucault:

A histria mudou sua posio acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, no interpret-lo, ao determinar se diz a verdade nem qual o seu valor expressivo, mas sim trabalh-lo no interior e elabor-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em nveis, estabelece sries, distingue o que pertinente do que no , identifica elementos, define unidades, descreve relaes.10

A escanso do enunciado, esttica da sensibilidade, mostra que seu elemento estrutural

bsico, a sensibilidade, proposto como uma competncia fundamental da revoluo do

conhecimento pela qual a poca contempornea estaria passando. A proposio da

sensibilidade como princpio educacional indica a ruptura para com um paradigma anterior. A

reforma educacional dos anos 90 no Brasil pressupe novos fundamentos e talvez se possa

afirmar que a esttica da sensibilidade seja compreendida como um dos mais importante

deles. Como princpio axiolgico, ela atenderia aos interesses de toda uma rede de interesses:

polticos, econmicos, epistemolgicos e pedaggicos que necessitam responder aos desafios

lanados pelas inovaes tecnolgicas que tem promovido uma mudana significativa no

conhecimento humano.

Ao justificar a importncia da esttica da sensibilidade como princpio educacional, os

documentos da reforma atribuem a ela uma funo que parece excessiva: ora apresentada

como valor, princpio e fundamento; ora apresentada como atitude e procedimento. A esttica

10 FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. p. 7

20

da sensibilidade acaba por funcionar como uma espcie de operador vazio, cada um

colocando no conceito de sensibilidade11 aquilo que bem entender; o que bastante

discutvel

Ao se percorrer os documentos que tratam da esttica da sensibilidade possvel

observar que ela pode ser compreendida como uma espcie de faculdade que permitiria

reunificar esferas da vida dilaceradas pela racionalidade instrumental ( pela tecnocincia ) um

amlgama que possibilita religar os mundos heterogneos do conhecimento, da tica e da

poltica num todo orgnico. Essa ainda uma promessa moderna: o fim objetivado por essa

nova concepo de educao ainda pautado pelo projeto de constituio de uma unidade.

medida que se desenvolve, o mundo moderno se torna cada vez mais complexo, exigindo uma

gama cada vez maior de especializaes. Ora, como poderia a educao escolar, nesse

cenrio, pretender dar conta de um mundo altamente complexo, encerrando-se em si mesma?

Sozinha a educao no pode mais dar conta dos vrios mundos. Da talvez o porqu de se

dizer que hoje as competncias para o trabalho cada vez mais se confundam com as do

conhecimento propedutico e que cada vez mais se faz necessria uma aprendizagem ao longo

da vida.

Em um mundo de afetos e valores que mudam ao ritmo das alternncias emocionais

suscitadas pelo marketing, pela propaganda, publicidade, filmes, desenhos, ambientes

interativos, jogos eletrnicos, a esttica da sensibilidade poderia ser compreendida como uma

tentativa de salvaguardar a unidade que se esvai. Ela seria uma espcie de princpio

integrador, amlgama da disperso, do catico e da fluidez, assinalando uma espcie de

unidade em torno da qual se aglutinariam aquilo que escapa, uma tentativa de homogeneizar a

fragmentao presente no mundo contemporneo.

De um lado, ainda a crena no processo de emancipao progressiva do homem, a

autonomia do sujeito autoconsciente e, de outro, a tecnocincia que, instrumentalizada,

conduz ao oposto desse ideal. A chamada revoluo tecnolgica, a informtica e a telemtica

ao se firmarem cada vez mais na cultura, redefinem os regimes de sensibilidade, dissolvendo

justamente a possibilidade de unidade.

O Parecer CNE-CEB n 15/98 de Guiomar Namo de Melo mostra que a esttica da

sensibilidade no se refere apenas ao universo das artes, antes, pode ser estendido a todas as

reas da educao, desde os princpios da administrao, passando pelas formas de

11 PEDROSA, M. A problemtica da sensibilidade. p.

21

convivncia no ambiente escolar at os critrios de alocao de recursos que devem ser

coerentes com princpios estticos, polticos e ticos que seriam inspiradores da Constituio

e da LDB. Isso pode ser assustador: critrios de alocao de recursos inspirados na esttica.

Uma chave para compreender de que modo dimenses to diferentes podem ter a

esttica como princpio inspirador o processo de generalizao esttica, presente na cultura

ocidental sob a gide do capitalismo, sobretudo na poca da assim chamada globalizao.

Esse processo de generalizao do esttico deve ser compreendido como aquele em que h

um abuso esttico, um agenciamento da sensibilidade por parte do capitalismo avanado, dito

ps-industrial, em que vigoram, como novos paradigmas, procedimentos e atitudes

geralmente associados ao campo artstico.

O processo de generalizao do esttico pode ser compreendido pelo movimento de

apropriao do projeto de estetizao da vida pelo capitalismo. Isso significa que o

capitalismo torna o agenciamento da sensibilidade uma de suas principais ferramentas.

Agenciamento da sensibilidade significa uma operao ( um trabalho ) de captao

( cooptao, captura por meio do conhecimento ) dos afetos, paixes, instintos, pulses,

feita por um especialista que passa a ser, ao mesmo tempo, aquele que estuda e produz: o

trabalhador e o pensador; porque o produto agora uma ideia e a ideia um produto.

Designers, arquitetos, publicitrios, marqueteiros, decoradores, estilistas, promoters,

socialites, personal trainers recorrem a um verdadeiro banco de afetos e pulses capazes de

suscitar desejos, vontades, sonhos. O trabalho destes profissionais modular a sensibilidade,

so especialistas na combinatria de afetos e emoes para serem vendido no mercado. O

agenciamento tambm pode ser considerado como a mediao de uma negociao. O que

que se negocia no caso? O mediador aquele que sabe como agenciar o afeto e vend-lo

como mercadoria para um comprador. Como todo bom vendedor, ele dispe de seus catlogos

de cliente e produtos: cores, formas, texturas, tonalidades, matizes, intensidades, mundos

possveis, mundos imaginrios, seres imaginrios, modos de diversos de se alcanar o prazer e

a felicidade, desejo, vontade, sonho - tudo isso que se pode chamar de intensidades. Qual a

relao dessas intensidades com a arte? que os artistas foram os principais responsveis

pelas investigaes que mostraram o quanto cada uma dessas coisas so intensas, foram eles

que souberem explorar e produzir efeitos os mais diversos sobre os homens.

A relao que ao longo sculo XX vem se estabelecendo entre os dispositivos tcnico-

cientficos e uma srie de elementos da cultura entre eles a educao e as artes ameaa

cada vez mais a vida, subjugando, dominado, colonizando culturas ditas menores, vidas que

22

mediante o espetculo da tecnocincia ou so esmagadas ou deixadas s margens da assim

chamada terceira revoluo industrial. Mediante essa relao entre cultura e tecnocincia, no

se pode desconsiderar a possibilidade de a educao entrar em contradio com seus

pressupostos em parte ligados, ainda, aos ideais iluministas. No se pode deixar de levar em

conta que a educao pode se tornar cmplice do mal-estar na cultura. Estamos diante de um

grave problema: hoje a educao estaria entrando em contradio com os pressupostos

iluministas ainda presentes em seus fundamentos pois estaria ela aderindo aos pressupostos do

capitalismo avanado. O desenvolvimento das tecnocincias tornou-se um meio de aumentar o mal-estar, e no de o apaziguar. J no podemos chamar progresso a esse desenvolvimento.12

Como lidar com essa constatao num pas como o Brasil para o qual a questo do

desenvolvimento e da modernizao parecem ter se tornado fundamental? Mas, afinal, a que

se refere esse mal-estar? Estamos no mundo tecnocientifico como se fssemos Gulliver,

umas vezes demasiado grandes, outras demasiado pequenos, nunca numa escala apropriada.13 Este tambm o drama de Alice quando tem de se decidir a crescer ou diminuir: em que

sentido, em que sentido? Pergunta Alice, pressentindo que sempre nos dois sentidos ao

mesmo tempo...14 . uma encruzilhada, este nosso lugar. Porque afinal nos deparamos, em

nossa cultura, com duas vias:

A humanidade divide-se em duas partes. Uma defronta o desafio da complexidade, a outra o antigo, terrvel desafio da sua sobrevivncia. talvez o principal aspecto do fracasso do projeto moderno, do qual te recordo que era em princpio vlido para a humanidade no seu conjunto.15

Impossvel no pensar, no ter em conta essa parte da humanidade que enfrenta o

desafio da sobrevivncia quando nos propomos a pensar a educao no Brasil, hoje. Assim,

possvel perceber a insistncia numa espcie de racionalidade que insiste na formulao de

diretrizes e parmetros pautados nos conceitos de beleza e justia, autonomia e emancipao,

razo e sensibilidade, ainda presentes na educao por meio da ideia de uma esttica como

princpio integrador, como princpio articulador da heterogeneidade. H por um lado desejo

de atualidade - integrao s novas tecnologias cuja marca justo a disperso e a

12 LYOTARD. J.- F. Nota sobre os sentidos de ps. In O ps moderno explicado s crianas. 2 ed. Lisboa. Dom Quixote. 1993. p.96. 13 Idem, ibidem. 14 DELEUZE. G. Lgica do Sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. 4ed. So Paulo. Perspectiva, 200715 LYOTARD. J. F. op. cit., p. 97.

23

heterogeneidade e por outro, a insistncia no modelo de unidade, reunificao da

experincia, consenso, organicidade, onde todos os elementos da vida se comunicariam de

modo eficaz ( a integrao dos vrios mundos, de Habermas ).16

A elaborao de um princpio como a esttica da sensibilidade talvez indique o desejo

de se encontrar como que uma grande competncia da poca contempornea que desdobrada

em habilidades, possibilitaria, ao mesmo tempo completude e autonomia frente ao mundo

administrado. Porm, ao mesmo tempo que se prope compreender e educar para o mundo

contemporneo, essa educao, ao insistir em modelos totalizantes, entra em contradio com

os pressupostos dessa contemporaneidade: fragmentao, plasticidade, fluidez, imaterialidade.

Trata-se da emergncia de uma nova concepo de educao que tem como um dos princpios

a ideia de uma nova sensibilidade que cumpriria a funo de agenciar afetos, paixes, desejos,

instintos, pulses a fim de educ-las para os desafios do mundo contemporneos.

Ao mesmo tempo, observa-se todo um movimento de generalizao do esttico a

partir do capitalismo que, na assim chamada era do trabalho imaterial, tambm agencia

sensibilidades, afetos, emoes, desejos, modos de vida como mercadorias. Dai a necessidade

de uma perspectiva crtica em educao que se pretenda herdeira das Luzes, a necessidade de

privilegiar o que escolhemos e decidimos por ns mesmos em detrimento daquilo que nos

imposto por uma autoridade externa.17

Certamente, o capitalismo avanado se impe como uma autoridade externa, ditando

normas e valores, criando desejos e mundos bem como modos de ser e estar em cada um

desses mundos. Se somos ainda, em parte, herdeiros do pensamento das Luzes, ento ainda

preciso dispor da inteira liberdade de examinar, de questionar, de criticar, de colocar em

dvida: nenhum dogma ou instruo pode mais ser considerado sagrado...18 dentre eles, o

capitalismo. Ou a prpria educao, muitas vezes submetida a dogmas. Ou ideologia.

*

16 Cf. LYOTARD. J.F. op. cit. p. 9817 TODOROV. T. O esprito das luzes. pg.14.18 Idem. p. 15

24

Pensar a distino entre o esttico e o artstico imprescindvel, uma vez que o campo

de constituio apresenta o artstico e o esttico justapostos, mas nunca como sinnimos. O

esttico nos documentos da reforma , inicial e genericamente, compreendido como tudo

aquilo que se refere sensibilidade, diz respeito no apenas ao artstico mas a tudo que

envolve percepo, sentimento, afeto: objetos, sonoridades, formas, linhas, cores variadas,

sentimentos, emoes, intuio, criatividade, delicadeza. preciso compreender como e

porque o esttico passa a ter autonomia em relao ao artstico bem como adquire tamanha

importncia no cenrio da reforma educacional dos anos 90.

Ao longo do sculo XX, vimos o surgimento das vanguardas heroicas com todo seu

ideal utpico e revolucionrio, seu poder de negatividade negatividade entendida como o

poder ou a disposio de fazer frente ao que est dado, ao status quo. Observamos tambm o

lento, e ao mesmo tempo, rpido esboroamento das vanguardas e a perda de seu ideal utpico

que coincidem com uma captura, uma estratificao burocrtica que teria subordinado a arte

aos meios de gerenciamento do capitalismo convertendo-se, deste modo, em um dos seus

principais dispositivos. O mundo contemporneo passa por uma revoluo tecnolgica,

microinformtica, que converte a tecnocincia em aliada poderosssima do capitalismo.

Alteram-se o mundo do trabalho, o modo como os seres humanos lidam com o conhecimento,

o modo de se conhecer as coisas e essa mudana sem dvidas uma alterao do modus

percepiendi dos homens. E por ser uma mudana na forma como se percebe e se conhece o

mundo as pessoas precisam ser educadas para lidar com esse mundo inusitado. Isso quer dizer

que o esttico generalizou-se. H uma hipertrofia do sensvel no mundo contemporneo em

funo do processo de reestruturao do capitalismo que transforma a sensibilidade, os

afetos, paixes, pulses, em mercadorias. nesse processo que se observa a constituio de

subjetividades sensveis adequadas s demandas da contemporaneidade. Pensar a esttica hoje

pens-la para alm do territrio especfico da arte. Se o mundo, a vida mesma se estetizou, a

arte se disseminou na pele da vida, isso quer dizer o seguinte: quase tudo pode ser arte; quase

todos podem ser artistas.

Assim, a princpio possvel identificar que a eleio da esttica como um dos

princpios que fundamentam as Diretrizes Curriculares Nacionais est inserida num processo

maior: o momento em que a educao, tambm ela, passa a ser investida por esse processo

de estetizao generalizada. O desejo das vanguardas em parte se cumpre: a arte disseminada

na vida. Em parte o terror tambm se cumpre: a captura da arte e da esttica pelo poder sobre

a vida.

25

O contexto contemporneo se caracteriza por uma nova relao entre o poder e a vida. Por um lado, uma tendncia que poderia ser formulada como segue: o poder tomou de assalto a vida. Isto , ele penetrou todas as esferas da existncia, e as mobilizou inteiramente, pondo-as para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, at a inteligncia, a imaginao, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando no diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que so os poderes?19

Que poderes esto em relao no campo da educao e, mais especificamente, no

campo de constituio do conceito de esttica da sensibilidade ?

Em relao ao artstico e ao esttico h, historicamente, uma certa tradio, de vis

notadamente kantiano, em que esttico tudo aquilo que diz respeito ao sensvel de modo que

a arte pertenceria ao esttico, mas nem tudo que pertencesse ao esttico seria artstico. disso

que se trata nos documentos oficiais: a arte est subsumida ao esttico ao passo que este no

se subordina ao territrio das artes.

So as DCNs que colocam a exigncia de pensar a distino entre o esttico e o

artstico pois se at mesmo os critrios de alocao de recursos devem observar os princpios

estticos da Constituio e da LDB, certamente, no so de princpios artsticos que as DCNs

esto falando.

*

Sem que se confunda com o ato de escrever, ou com a simples escrita dos documentos,

o ato de enunciao presente no campo de constituio dos enunciados da reforma

educacional se estende para alm dos documentos: ele faz fazer. Um ato que pode ser

compreendido como ato de instaurao de uma certa racionalizao ( ou processo de

conceptualizao, conceituao, uma vez que os conceitos no nos so dados prontos, mas

precisam ser fabricados e sempre fabricados a partir de ) no interstcio daquilo que foi dado e

daquilo que vem a ser. Isso implica em que a enunciao, desde que encontre as condies de

possibilidade favorveis ao seu aparecimento, seja tambm fundadora do discurso do qual fala

e que a torna possvel. Ela cria o objeto esttica da sensibilidade como dispositivo de poder

fundado num saber sobre a sensibilidade humana. O que est em causa no discurso dos

19 PLBART, P.P. Vida nua, vida besta, uma vida. [online] disponvel em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2792.1.shl

26

documentos acerca da esttica ou da sensibilidade so as relaes de poder e

consequentemente os processos de subjetivao.

A anlise dos documentos oficiais sobre a educao implica a anlise de construes

histricas e polticas enquanto prticas constitudas pela e na linguagem. Qual o conjunto de

regras, prprias da prtica discursiva presente nos documentos, que operam sistematicamente

na formao dos objetos de que falam, isto , no nosso caso, a esttica da sensibilidade? Se

tudo est imerso em relaes de poder e saber o saber sobre a esttica e as instituies que

as efetivam ento, texto e instituio (a escola, por exemplo ) se implicam mutuamente. O

discurso transitaria num territrio limtrofe com a instituio a qual se refere. De que maneira

as mudanas paradigmticas presentes na reforma educacional dos anos 90 desembocam no

seguinte problema: o processo de estetizao apareceria como um poderoso dispositivo da

governamentalidade, a sensibilidade teria sido colonizada e ao mesmo tempo constituda

por sistemas de administrao/captura biopoltica tornado-se um dispositivo dos

gerenciamentos da vida. A generalizao do esttico diz respeito a irrupo/disperso do

esttico na cotidianidade e consequente adeso de toda uma populao aos dispositivos de

cooptao afetiva.

Ao se utilizar de tais chaves conceituais como fundamento, os documentos insistiriam

numa concepo de esttica que no possuiria mais a fora da negatividade. Tal concepo

insistiria num programa segundo o qual sensibilidade e a arte seriam os arautos da

transformao da vida. De fato, o poder de negatividade ter-se-ia esvado quando em se

levando em conta o processo de generalizao esttica a vida mesma teria sido transformada

pela arte e pela sensibilidade subordinadas ao capitalismo.

...pensar o conceito foucaultiano de biopoltica em sua dimenso esttica. Afinal, desde o princpio, a biopoltica pode ser pensada como uma reconfigurao do sensvel, isto , como uma reorganizao da forma como o poder investe nossa experincia sensvel: o espao, o tempo, a circulao e reproduo dos corpos e das populaes, os modos como somos vistos e como vemos o outro, em suma, o modo como vivemos, em sua dimenso de produo e gesto da vida...20

A ligao da esttica com a biopoltica diz respeito aos processos de reinveno,

criao, manipulao, modulao da vida e sobre a vida. Tanto no aspecto individual quanto

20 FELDMAN, I. ; BRASIL, A.; MIGLIORIN, C.; MECCHI, L. Revista cintica. Editorial.[online]Disponvel em: http://www.revistacinetica.com.br/cep/editorial.html . Acessado em:Agosto de 2009.

http://www.revistacinetica.com.br/cep/editorial.html

27

coletivo. Quando um documento diz que a sensibilidade princpio educacional ele est

trazendo para o interior da educao esse dispositivo biopoltico do poder sobre a vida.

As estratgias biopolticas atuam no interior dos processos de reinveno da vida e do

mundo. O capitalismo tomou como modelo esse aspecto fazendo com que se tornasse seu

corolrio: os mundos ofertados pelo capitalismo so mundos em constante reinveno. um

modo de sobrevivncia esttico do capitalismo, porque ele incorporou os modos de vida, os

procedimentos, as prticas, as tcnicas, enfim, todo um ethos artstico historicamente

constitudo. O capitalismo avanado pode, assim, ser compreendido como capitalismo esttico

e uma nova concepo de educao, que ao tomar a esttica como princpio axiolgico no

esteja atenta a esse fato, pode muito facilmente fortalecer os princpios do capitalismo

avanado, funcionando, inclusive, como uma tecnologia que forneceria ao sistema aquilo de

que ele precisa. A educao seria uma tecnologia de modulao. Um dispositivo tecnolgico

adequado atualidade da biopoltica. Ao investir no desenvolvimento de competncias e

habilidades para a laborabilidade capacidade de inventar, por exemplo a reforma

educacional oferece ao sistema capitalista atual toda uma populao preparada para lidar com

os desafios do mundo contemporneo. Modulao uma variao. Modular significa fazer

variar, uma operao que faz variar um conjunto de mdulos. A educao compreendida

como uma tecnologia de modulao pode ser pensada como um conjunto de tcnicas,

procedimentos, estratgias, tticas, reflexes, teorias e clculos capazes de fazer variar um

conjunto de mdulos aqui, os mdulos poderiam ser cada uma das competncias e

habilidades ou mesmo cada um dos sujeitos envolvidos na educao. Como tecnologia de

modulao, a educao identifica, se antecipa, controla e rearranja mdulos bem como opera

no campo de possibilidades no campo dos possveis arranjos de mdulos. Tecnologia de

modulao seria aquela que tem por finalidade regular a incerteza que ameaa a vida humana.

No cenrio da estetizao da vida cotidiana, em que uma multiplicidade de mundos

ofertada, oferece-se tambm toda uma srie de possibilidades, de mundos possivelmente mais

seguros e felizes. um mecanismo de regulao, uma espcie de homeostase alcanada na

profuso de mundos. A vida aquilo que oferece ao sistema capitalista uma fonte inesgotvel

de inveno. Viver, no contexto do capitalismo avanado ( cognitivo, afetivo, esttico )

inventar modos de vida. A poltica, o capitalismo e a educao so estticos porque todos se

estruturam, hoje, em torno da inveno de mundos e dos sujeitos que vivero nesse mundo.

28

A esttica concilia poltica, educao e capitalismo. Luc Boltanski e ve Chiapello21 mostram

que o capitalismo contemporneo incorpora tudo aquilo que fazia parte, outrora, do universo

das artes. A esse fenmeno eles chamam capitalismo esttico. Se a esttica da sensibilidade

prope como paradigma para a educao aquilo que, historicamente, pertence ao territrio da

arte, ento a reforma educacional est propondo como fundamento da educao aquilo que

fundamento tambm do capitalismo. Assim, um dos principais fundamentos dessa nova

concepo de educao justamente aquilo que fortalece e reestrutura o capitalismo

avanado: inveno e criao, flexibilidade e fluidez, capacidade de lidar com o inusitado,

beleza, delicadeza, pluralidade cultural, saber conviver. Tudo isso, caractersticas marcantes

do principio esttica da sensibilidade. Um sujeito diante de suas potencialidades, diante do

conjunto de suas habilidades e competncias ( que so virtuais, posto no existirem ainda; so

potenciais posto que a educao h de desenvolv-los ) conclamado a montar-se a si. O

sujeito est diante de um ba de capacidades, de faculdades, de potencialidades e convidado,

a ele dada a possibilidade de bricolar, montar, construir um sujeito novo conforme a

situao, que se espera inusitada, o exigir. Trata-se, portanto, de um jogo onde as

competncias e habilidades funcionam como blocos de conexo. O sujeito criado na medida

em que joga. E quanto mais joga, mais ele experimenta. Experimentar desmontar e

remontar, isso que significa jogar: fabricar a si mesmo por meio da experimentao. O jogo

contemporneo de se fabricar a si mesmo poderia muito bem ser chamado de a bricolagem

de si.: a lgica da subjetivao pressuposta por essa nova concepo de educao, pautada

dentre outras coisas na esttica, a da montagem. A educao pode ser assim compreendida

como uma tecnologia de modulao a servio de uma poltica que produz mundos por meio

do agenciamento da afetividade. O jogo atualiza habilidades e competncias conforme

exigncias eventuais, referentes a situaes parciais, dadas a cada vez, e nunca numa

totalidade. O sujeito dai resultante sempre um evento, um acontecimento que se molda

circunstncia. Quer dizer, essa modulao eventual s possvel ao se recorrer ao estoque de

habilidades e competncias. Trata-se da produo de uma subjetividade cujo trao talvez mais

marcante seja a plasticidade que possibilita ao sujeito criar-se e inventar-se permanentemente.

O que hoje se v invisvel: fluxos informacionais, informaes numricas ( bits ). Na

sociedade disciplinar, os corpos eram vigiados; na sociedade de controle, com seu regime de

mquinas informacionais, olha-se para o invisvel: nmeros, dgitos, pulsos eltricos.

21 Boltanski, Luc.; Chiapello, ve. Le Nouvel Sprit du Capialism., Gallimard, 1999.

29

Essa a nova matria do capitalismo, o imaterial. Ao investir a educao, por meio

da generalizao esttica, o capitalismo avanado se apropria do ideal de formao que antes

servira como norte de uma educao emancipadora e autnoma fazendo com que a educao

entre em contradio com seus ideais ao perder seu poder de negatividade. O capitalismo

investe cada vez mais nos processos prprios da dimenso esttica, ligados ao trabalho do

artista. A vida se estetizou, a empresa se estetizou e disseminou a lgica da empresa por todos

os cantos, inclusive na educao. Os produtos so formas de vida. Formas de vida so

produtos. Mapear, controlar e monitorar formas de vida, desejos, afetos. No isso que,

intencionalmente ou no, ocorre quando a sensibilidade se torna princpio educacional?

medida que a educao passa a ser investida por esse processo de generalizao do esttico

necessrio que se conhea, cada vez mais, o que que constitui o homem como sujeito da

sensibilidade. Trata-se de um desafio para a educao atual: de lidar com potencialidades,

virtualidades, quando essas so a grande mercadoria do capitalismo avanado. Criar e

inventar, ser um sujeito sensvel, nos libertam e possibilitam resistir ou nos lanam ainda mais

no seio do capitalismo? A inveno resistncia mas , ao mesmo tempo, a essncia daquilo

contra o que se resiste. A insero do ldico no que se considera como mbito da austeridade

a escola e o trabalho insere a educao no universo dos jogos: educao, poltica e

trabalho so como que unificados por aquilo que prprio do jogo, a competitividade, a

criatividade e o prazer.

O campo aberto: da escola para a empresa, da empresa para a casa, da casa para o

espao pblico. De um lado a outro surge a necessidade de se inventar formas, linhas de fuga,

meios de transio, atravessamento, adaptaes, versatilidade. Aderir a um mundo comprar

a ideia de um mundo qualquer comprar a ideia de um pertencimento, ainda que se saiba

que esse pertencimento provisrio. Ela cria uma iluso temporria de pertencer a uma tribo,

um grupo. Comunidades virtuais: orkut, facebook, myspace, flick, e outros. A nova concepo

de educao proposta na reforma educacional dos anos 1990 mostra que ela se coaduna a um

ethos que pressupe uma outra sensibilidade. H um apelo a uma seduo da sala de

aula/plateia que estimulada deve consumir educao como um servio. Na sociedade de

controle no se persuade o aluno pela via fora ou de outros dispositivos disciplinares, mas

pela modulao dos afetos. Trabalhados eles podem modular vontades, desejos, condutas.

Quanto mais livre para criar ou se integrar em mundos-comunidades mais explicita se torna a

exibio: as subjetividades se escancaram. Quanto mais adeses, mais os homens fornecem os

30

dados de que o sistema necessita para controlar. Os dispositivos eletrnicos so ao mesmo

tempo dispositivos de controle e dispositivos de resistncia.

31

1. Analtica da contemporaneidade.

A tarefa de examinar, questionar e criticar pode ser compreendida como parte de uma

analtica da contemporaneidade que, atenta aos signos hodiernos, v na demanda

contempornea por esttica um sintoma.

Os documentos da reforma educacional, em seu conjunto, apontam a importncia de se

adequar os sistemas de ensino poca atual. A esttica da sensibilidade apresentada como

expresso do tempo contemporneo22. Em vista disso, justifica-se a discusso acerca de

questes referentes caracterizao do presente, sendo necessrio o debate acerca da

modernidade: seus fundamentos, sua crise, seu esgotamento, seu inacabamento ou superao.

Aquilo que Foucault denominou atitude de modernidade nos textos O que so as Luzes?23 pode servir como fio condutor que possibilita problematizar a contemporaneidade e aquela

que, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais, sua esttica.

Essa discusso necessria, pois os documentos oficiais da reforma educacional

procuram pensar a prpria atualidade da educao. Por isso, uma reflexo sobre a atualidade

sobre o que significa pensar a contemporaneidade se faz necessria. Se preciso pensar o

que acontece hoje, tambm necessrio pensar o hoje. Isso, por sua vez, significa um

procedimento que mantm toda essa tarefa ligada atitude de modernidade, o que manteria

afastada a idia de uma possvel ps-modernidade. Atitude de modernidade , segundo

Foucault, um modo de

encarar a modernidade mais como uma atitude do que como um perodo da histria. Por atitude quero dizer um modo de relao que concerne atualidade; uma escolha voluntria que feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira tambm de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinncia e se apresenta como um tarefa. Um pouco sem dvida, como aquilo que os gregos chamavam ethos.24

22 BRASIL. Ministrio da Educao. Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio. Parecer CNE/CEB n 15/98. Pg. 7523 Nos Ditos e Escritos aparecem dois textos de Foucault com o mesmo ttulo: O que so as Luzes? Um de 1984, publicado no vol. II dos Ditos e Escritos. Edio Brasileira. Forense Universitria. E tambm Quest-ce que ls Lumires? Extrait du cours du 5 de Janvier 1983, au College de France. In Dits et Ecrits II. Editions Gallimard, 2001. Indito no Brasil. 24 FOUCAULT, M. O que so as luzes? Ditos e Escritos. Edio Brasileira. Forense Universitria.

32

Foucault mostra como, de certa forma, estamos ainda ligados Aufklarng por conta

desse ethos filosfico, permanentemente ativado, ou seja, sem que se resuma a uma questo

de fidelidade aos elementos de doutrina, esse ethos filosfico diria respeito a uma crtica

permanente de nosso ser histrico. O que nos liga tradio da Aufklarng justo a crtica

do que dizemos, pensamos e fazemos. Como parte dessa tradio, e dando continuidade a

ela, possvel a crtica, de como pensamos sobre a sensibilidade, o que dela dizemos e o que

fazemos com o que foi pensado e dito sobre a sensibilidade, ou seja,

no que nos apresentado como universal, necessrio, obrigatrio, qual a parte do que singular, contingente e fruto das imposies arbitrrias. Trata-se, em suma, de transformar a crtica exercida sob a forma de limitao necessria em uma crtica prtica sob a forma de ultrapassagem possvel.25

Talvez este seja o caso ora apresentado pelos documentos: como nos constitumos

como sujeitos de uma tal sensibilidade? Parece que um princpio como a Esttica da

Sensibilidade faz parte de todo esse processo de constituio. Quando se fala em esttica da

sensibilidade o que que nessa fala fruto de imposies arbitrrias?

Importa que haja problematizao do presente por meio da anlise das atitudes que o

constituem, objetivando a compreenso crtica do mesmo. A anlise do campo de constituio

da esttica da sensibilidade est, assim, inserida nesse diagnstico da atualidade, ou seja, na

anlise das atitudes que permitem diagnosticar um certo modo de ser, pensar e estar no

mundo. Um possvel diagnstico da atualidade possibilitado pela anlise do campo de

constituio do conceito de esttica da sensibilidade aponta para a relao desta para com o

problema do sujeito: na atualidade esto presentes determinadas condies que tornam

possveis a sujeio do homem por meio do gerenciamento da sensibilidade. O diagnstico da

atualidade mostra que a estetizao do mundo e da vida acontece, que o esttico generalizou-

se.

Como relacionar isto com o problema do sujeito? Os homens e as mulheres so

sujeitos submissos ao outro pelo controle e dependncia: so controlados por uma modulao

dos sentidos, da sensibilidade; do mesmo modo, so sujeitados pela dependncia causada pela

potncia dos afetos presentes no mundo estetizado: as cores, as formas, a violncia das

imagens, a potncia da aparncia.

25 FOUCAULT. M. O que so as luzes? Ditos e Escritos. Vol. II. p.347.

33

O diagnstico da atualidade problematiza o longo processo de constituio do homem

como sujeito sensvel ou como ser de sensibilidade. Fala-se do ser, do fundamento do ser.

Portanto, a atualidade, mais do que uma poca, pode ser compreendida como uma atitude

atravs da qual se pretende uma determinao ou fundamentao ontolgica do homem.

Quem fundamenta, quem determina, escolhe, domina, impe arbitrariamente a sensibilidade

como fundamento? Algo no presente sustenta a possibilidade de se eleger a esttica como um

dos principios axiolgicos da educao. Algo que marca os documentos da reforma

educacional a considerao segundo a qual seramos essencialmente sensveis. E isso que

precisa ser desconstrudo: essa substancialidade. preciso mostrar que, se somos seres

sensveis, ns nos inventamos deste modo.

Como possvel o postulado de um sujeito autnomo, concepo essa to cara

educao atual, sem a considerao dessa dimenso to importante nos processos de

subjetivao que a sensibilidade? Subjetivao se refere s diferentes formas de produo da

subjetividade numa dada formao social. Os processos de subjetivao so relaes de foras

e as subjetividades esto sujeitas atuao dessas foras. Qual o papel da sensibilidade na

longa histria de produo de subjetividades? Qual o papel da sensibilidade na constituio

das diversas formas de relao do homem consigo e com o mundo na atualidade? Quais so

os dispositivos de agenciamento da sensibilidade que a convertem em componente

indispensvel ao processo de subjetivao necessrio fabricao de sujeitos aptos a levar

adiante a recomposio do capital?

Se o questionamento da contemporaneidade liga-se ao movimento pelo qual

continuamos a nos perguntar O que este presente ao qual eu perteno? poderia-se, ento, a

partir da problemtica da sensibilidade, completar a frase de Kant: o que este presente ao

qual eu perteno no qual uma educao esttica seria no s possvel, mas necessria?. Se a

poca atual a contemporaneidade - pode ter na esttica sua expresso e se se pretende falar

da esttica preciso tambm pensar a relao entre esttica e o tempo atual.

Quelle est mon actualit? Quel est le sens de cette actualit? Et quest-ce que je fais lorsque je parle de cette actualit? Cest cela, me semble-t-il, en quoi consiste cette interrogation nouvelle sur la modernit 26

26 O que minha atualidade? Qual o sentido dessa atualidade? E o que que eu fao quando falo dessa atualidade? Esta , me parece, a nova questo sobre a modernidade. Traduo nossa. Foucault. M. Quest-ce que ls Lumires. Dits et crits. Gallimard, 2001. pg. 1500.

34

Estas parecem perguntas pertinentes, ainda. E se todas essas questes remetem

atitude de modernidade cumpre ento perguntar o que fazer do prefixo ps da ps

modernidade. Resposta: preciso realizar sobre ele uma operao uma anamnese como o

faz Lyotard a partir da qual fosse possvel um re-agenciamento da problemtica da crise da

modernidade. O ps se converteria ento num espao de pensamento onde a leitura passaria

a ter o sentido de escuta. Neste procedimento, o leitor analista da modernidade se

transforma na prpria leitura, imbricado na constituio do problema. Isso se d por meio de

uma espcie de suspenso, de uma espcie de epoch, onde o leitor como que se desfaz de seu

saber a fim de apreender a coisa o mais distante possvel de uma contaminao preconceitual.

No h como interrogar o que quer que seja sem ser, ao mesmo tempo, interrogado: interrogar

a modernidade e o prefixo ps ser interrogado por estes. Assim, o que que em ns, a

modernidade - e pelo menos um dos espaos de pensamento gerado por ela pergunta sobre

ns mesmos?

No lugar de um ps com o sentido de um depois da modernidade, pode-se pensar

um determinado lugar que seria o lugar da extemporaneidade e do intempestivo. Isso significa

um descompasso um tempo fora do eixo que acompanha a modernidade; um topos que

no transcende nem supera, mas um outro imanente, que atravessa, est l, aqui, no

moderno, no modernismo e na modernidade e que, no entanto, no se viu, no se ouviu: um

pensamento j aqui, mas no pensado...esse impensado volta e pede para ser pensado.27

Ainda, como aponta Foucault:

Il faudrait essayer de faire la genalogie, non ps tellement de la notion de modernit, mais de la modernit comme question. 28

O pensar sobre a atualidade possibilitaria, deste modo, que se continuasse

estabelecendo ligaes para com a tarefa filosfica Cest lune des grandes fonctions de la

philosophie dite moderne que de sinterroger sur sa propre actualit.29 . claro que se

trata de uma outra modernidade, de outras questes. Mas o que interessa aqui a reativao

27 LYOTARD. J. F. Peregrinaes: Lei, Forma, Acontecimento. Trad. Marina Appenzeller. So Paulo. Estao Liberdade. 2000. p. 22.28 Deve-se tentar fazer a genealogia no tanto da conceito de modernidade, mas da modernidade como questo. Traduo nossa. Foucault. Quest-ce que ls Lumires. Pg. 1500. 29 uma das principais caractersticas da filosofia dita moderna se interrogar sobre sua prpria atualidade. Traduo nossa. Idem.

35

dessa atitude. Deste modo, a opo por uma analtica da contemporaneidade na verdade uma

opo por uma metodologia, por um certo modo de fazer Filosofia que consistiria numa

crtica permanente de nosso ser histrico. preciso tentar fazer a anlise de ns mesmos

como seres historicamente determinados, at certo ponto, pela Aufklrung.30 As questes

levantadas no debate acerca do novo ensino mdio proposto no contexto da reforma

educacional dos anos noventa, giram em torno dos pressupostos originados no contexto da

Aufklrung. O que est em causa, dentre muitas outras coisas, ainda o poder emancipatrio

da razo iluminista, sua continuidade ou superao.

O pensamento e a ao dos sculos XIX e XX so governados pela idia de emancipao da humanidade. Esta idia elabora-se no final do sculo XVIII na Filosofia das Luzes e na Revoluo Francesa. O progresso das cincias, das tcnicas, das artes e das liberdades polticas emancipar a humanidade inteira da ignorncia, da pobreza, da incultura, do despotismo, e no far apenas homens felizes, mas, nomeadamente graas Escola, cidados esclarecidos, senhores do seu prprio destino. 31

Negando ou afirmando os ideais iluministas, pode-se concordar com Foucault e dizer

que sim, somos, pelo menos em parte, historicamente determinados pela Aufklrung. Assim,

coloca-se tambm a pergunta pelos diferentes modos de relao do novo em educao com

o que se convencionou chamar tradicional. Ora, a atualidade certamente apresenta-se como

um campo em que uma srie de limites esto postos, dentre eles os limites da assim chamada

educao tradicional, ligada ao moderno, e nova educao, associada muitas vezes a

termos como era ps-industrial.

A atitude histrico-crtica na perspectiva delineada por Foucault , portanto um modo

de filosofar. Arqueo-genealgica, essa atitude incita a pensar o que pode e deve ser pensado,

em educao, hoje. O que que constitui uma questo para se pensar a atualidade em

educao escolar? Toda essa srie de questionamentos sobre o presente possibilita uma

abordagem genealgica no qual o sujeito que interroga est, ele prprio, imbricado na

atualidade que interroga. Um tal mtodo permite ainda inserir a prpria atividade de leitura

no mbito da crtica, no sendo possvel, portanto, utilizar um determinado jogo de

linguagem e, ao mesmo tempo, produzir um discurso acima ou fora da esfera onde o

discurso se d ( um metadiscurso de legitimao ). Se o objetivo considerar a irrupo do

enunciado esttica da sensibilidade no mbito da educao, suas condies de possibilidade

30 FOUCAULT. M. O que so as Luzes? In Ditos e Escritos. Vol. II. pg.34531 LYOTARD. J.F. Bilhete para um novo cenrio. In O Ps-moderno explicado s crianas. Pg.101.

36

no agora, ento, preciso, com esta metodologia, uma investigao dos valores bem como,

em conseqncia do mtodo, avaliar o valor do valor. Ou seja, em todos os momentos, a

investigao volta-se para a anlise de seus prprios valores. O principal motivo pelo qual se

poderia ento optar pelo procedimento genealgico que uma tal opo diz respeito a uma

auto-crtica radical, isto , ser por ele questionado: quais as relaes e os limites entre a busca

do conhecimento e as formas de exerccio de poder? Se o pensamento sobre a atualidade diz

respeito a uma atitude de modernidade, em que medida possvel considerar a genealogia

no sentido nietzschiano de anlise do valor dos valores; e tambm no sentido delineado por

Foucault como uma tal atitude?

Uma outra forma de compreender a histria: compreend-la como movimento

disruptivo, como tentativa de compreender de outro modo aquilo que aconteceu bem como

tentativa de compreender o outro do acontecimento. Uma escuta do acontecimento. Uma

analtica da contemporaneidade est inserida na linha foucaultiana da pesquisa acerca da

atualidade e possibilita, atravs da critica, uma problematizao do agora, a uma resistncia

ao presente32. Uma tal resistncia o que traria para o discurso o intempestivo ou

extemporneo. Mas resistir exatamente a qu? Resistir barbrie que se esconde sob os

diversos rtulos como ps-moderno e ps-industrial; resistir, atravs da escrita, escrita

dessa suposta ps-modernidade33. Ou contramodernidade. Uma resistncia que se d na

linguagem.

Deste modo, tendo em vista que os documentos oficiais da reforma educacional dos

anos 90 tm como objetivo pensar os problemas da educao atual, independente de quais

sejam esses problemas, parece ser necessrio, antes, pensar o que significa pensar a

atualidade. Pensar o que significa pensar a atualidade importante porque mostra que essa

questo uma questo da modernidade e, por isso, pensar a atualidade ou o contemporneo

no autoriza a falar em ps-moderno, antes, pede uma permanncia no cerne da atitude de

modernidade.

O que somos nesse momento. O que uma analtica da contemporaneidade implica a

submisso do presente ao lugar de objeto da atitude crtica. Uma analtica da

contemporaneidade seria ento a opo por uma metodologia em que possvel o

agenciamento de uma diversidade de procedimentos e operadores que funcionariam como que

32DELEUZE, G. Controle e Devir. In: Conversaes. p. 218. 33 LYOTARD. J. F. O ps moderno explicado s crianas. Lisboa. Dom Quixote, 1987. pg 44

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personagens conceituais34 tais como o conceito de Acontecimento que nos permite pensar o

intempestivo, aquilo que no se repete e que traz a marca de uma singularidade, assinalando

uma ruptura numa dada continuidade.

A Durcharbeitung e os processos em ana anlise, anamnse, anamorfose,

anagogia que segundo Lyotard35 elaboram um esquecimento inicial; Atitude histrico-

crtica, atravs da qual podemos pensar como no constitumos nos ltimos anos como seres

sensveis e de que modo as polticas pblicas de educao, atravs dos documentos oficiais,

so prticas discursivas. De que modo a escola tem sido agenciada como dispositivo de

governabilidade e de que modo esse dispositivo encontra na sensibilidade um aliado

poderosssimo? Arqueologia, por meio da qual fosse possvel pesquisar quais foram os modos

de problematizao da sensibilidade e, ainda, nos modos de problematizao da sensibilidade,

investigar quais foram os limites a que chegaram esses modos, quais servem e

quais no servem mais e porque; a Genealogia onde podem ser evidenciadas as prticas que

apontam para os processos de subjetivao do indivduo e do grupo social e, mais

especificamente, dos estudantes.

*

34 Tais personagens conceituais podem aparecer como conceitos no trabalho dos autores, porm, quando agenciados por ns, passam a ter um outro estatuto. Assim, acontecimento, por exemplo, um conceito para Lyotard, mas pode ser um personagem conceitual para ns; ou ainda, componente de um personagem conceitual.35 O prefixo ana do grego an(a)- significa: 'no alto, em cima; no alto de, sobre; de baixo para cima; por, atravs de; durante'; 'de baixo para cima, em ascenso'. Fonte. Dicionrio Houaiss. Assim, Lyotard aponta como procedimento analtico as diversas operaes que envolvem o sentido de uma elaborao que se realiza atravs. Como anamse, an(a) + mnesas ( lembrar-se ). Pode-se pensar no sentido comum de anamnse como lembrana, porm, o sentido que podemos apreender atravs da anlise etimolgica nos permite propor algo como um durante, um atravs do lembrar-se. Isso diferencia por completo a anamnse de uma recordao uma vez que nos diz que algo ocorre durante e atravs da lembrana. esse algo que possibilita a elaborao, ou seja, no se trata de rememorar, mas de fazer alguma coisa com, na e atravs da lembrana.

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2. A reforma educacional, 1980 - 1990.

Segundo Guiomar Namo de Mello, duas recentes geraes de reformas educacionais

podem ser identificadas no Brasil, a partir dos anos 1980. A primeira delas se inicia com os

movimentos de redemocratizao do pas, com a Constituio Federal de 1988, que assinala

mudanas substanciais nos rumos da educao tal como estava regrada na Lei 5.692. Este

movimento encontraria a finalizao de sua primeira fase com a promulgao da LDB de

1996. De l para c, assistiramos a uma segunda gerao de reformas, na qual se inserem os

documentos aqui analisados. As reformas visaram a adequar os sistemas de ensino nova

ordem mundial, particularmente as condies econmicas e culturais brasileiras,

promovendo mudanas que de modo a possibilitar a reestruturao dos princpios filosficos e

pedaggicos que orientariam as diretrizes e os rumos da educao.

Movimentos ligados s diversas entidades que lutavam pela redemocratizao do pas

tiveram importante papel na conduo dos debates acerca da educao no novo cenrio que se

abria. Reformas locais em estados e municpios, frutos de debates e teorias variadas, que

contavam com a presena de importantes pensadores da educao no Brasil, foram

implementados. Com a promulgao da Constituio de 1988, abria-se uma situao nova,

cheia de promessas e otimismos em relao aos rumos da educao nacional. No entanto, com

a promulgao da Constituio Federal, os dispositivos que fundamentariam o novo estatuto

da educao no Brasil estavam apenas esboados. O documento reconhecia a necessidade de

se lanar, de um modo mais aprofundado, os princpios e fundamentos da educao bem

como as diretrizes, as bases e orientaes que conduziriam a educao ao cumprimento dos

objetivos esperados:

Art.205 - A educao, direito de todos e dever do Estado e da famlia, ser promovida e incentivada com a colaborao da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho.36

A partir das metas propostas no Projeto Principal de Educao da UNESCO, vrias

conferncias internacionais sobre educao levariam publicao de documentos decisivos

para as reformas em toda parte. Tais conferncias incentivaram, entre 1980 e 2000 planos de

36 BRASIL. MEC. LEI 9.394 de 20 de Dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional. [online] Disponvel em: www.mec.gov.br

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ao em diversos pases. Nas dcadas de 80 e 90 ocorreram sete reunies do Comit

Intergovernamental do Projeto Principal de Educao para Amrica Latina e Caribe, a partir

das quais desenvolveram-se diretrizes e polticas pblicas de educao. em consonncia

com a agenda desses encontros que as reformas educacionais no Brasil ocorreram.

Em paralelo s conferncias da Unesco, ocorreram outras, financiadas pelo Banco

Mundial, CEPAL (Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe ), Preal ( Parceria

para revitalizao educacional nas Amricas ), PNUD ( Programa das Naes Unidas para o

Desenvolvimento. ), OCDE ( Organizao de Cooperao e de Desenvolvimento Econmico),

Bid ( Banco Interamericano de desenvolvimento ). Em 1993 elaborado o Plano Decenal de

Educao onde so estabelecidas metas locais baseadas no documento da Unesco

Declarao Mundial sobre Educao para Todos: Satisfao das Necessidades Bsicas de

Aprendizagem, Jomtien. ( 1990 ).

Nesse conjunto de organismos possvel notar a perda de influncia da Unesco a

partir dos anos 90, quando o Banco Mundial passa a ser o principal agente de financiamento.

A chamada segunda gerao de reformas no Brasil coincide com a mudana de perspectivas

na conduo das discusses internacionais sobre educao.

At a publicao da Nova LDB em 1996, o Brasil participou e assinou diversos

compromissos internacionais. No entanto, importante ressaltar que antes ainda da

finalizao do texto da LDB de 1996, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso foi

promulgada a Lei n. 9.131, de 24 de novembro de 1995. Essa lei alterava os dispositivos da

Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961 ( antiga LDB, alterada em 1971 em funo dos

interesses do Governo Militar ). Por meio dessa lei criado o Conselho Nacional de Educao

com a finalidade de colaborar na formulao da Poltica Nacional de Educao e exercer

atribuies normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educao. ( MEC )

O Conselho Nacional de Educao composto pela Cmara de Educao Bsica- CEB

e Cmara de Educao Superior CES, cada uma delas composta por doze conselheiros alm

do Secretrio de Educao Fundamental e o Secretrio de Educao Superior do Ministrio da

Educao, nomeados pelo Presidente da Repblica.

A funo do Conselho das Cmaras exercer as atribuies da Lei 9.131/95:

1 Ao Conselho Nacional de Educao, alm de outras atribuies que lhe forem conferidas por lei, compete:

a) subsidiar a elaborao e acompanhar a execuo do Plano Nacional de Educao;

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b) manifestar-se sobre questes que abranjam mais de um nvel ou modalidade de ensino;

c) assessorar o Ministrio da Educao e do Desporto no diagnstico dos problemas e deliberar sobre medidas para aperfeioar os sistemas de ensino, especialmente no que diz respeito integrao dos seus diferentes nveis e modalidades;

d) emitir parecer sobre assuntos da rea educacional, por iniciativa de seus conselheiros ou quando solicitado pelo Ministro de Estado da Educao e do Desporto;

e) manter intercmbio com os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal;

f) analisar e emitir parecer sobre questes relativas aplicao da legislao educacional, no que diz respeito integrao entre os diferentes nveis e modalidades de ensino;

g) elaborar o seu regimento, a ser aprovado pelo Ministro de Estado da Educao e do Desporto.

A funo do CNE passa a ser assim, a prestao de servios para o MEC; da sua

participao na elaborao dos seguintes documentos: A Lei de Diretrizes e Bases ( LDB ), as

Diretrizes curriculares Nacionais ( DCNs ) e os Parmetros Curriculares Nacionais ( PCN s)

Em 1995, antes da criao do CNE, j estavam em andamento as primeiras verses

dos Parmetros Curriculares Nacionais ( PCN ) sob a coordenao da Secretaria de Educao

Fundament