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A ESFERA DA PERCEPÇÃO CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTO DE JULIO CORTÁZAR ROXANA GUADALUPE HERRERA ALVAREZ

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  • A esferA dA percepoConsideraes sobre o Conto de Julio CortzarROXANA GUADALUPE HERRERA ALVAREZ

  • A esferA dA percepo

  • Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    Gisle Manganelli Fernandes

    Norma Wimmer

    Orlando Nunes de Amorim

    Srgio Vicente Motta

  • ROXANA GUADALUPE HERRERA ALVAREZ

    A esferA dA percepoConsiderAes sobre o conto

    de Julio cortzAr

  • 2012 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    A475e

    Alvarez, Roxana Guadalupe HerreraA esfera da percepo : consideraes sobre o conto de Julio Cor-

    tzar / Roxana Guadalupe Herrera Alvarez. So Paulo : Cultura Acadmi-ca, 2012.

    154p.

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7983-297-0

    1. Cortzar, Julio, 1914-1984 Crtica e interpretao. 2. Conto argen-tino Histria e crtica. 3. Literatura argentina Histria e crtica

    12-7621 CDD: 868.99323 CDU: 821.134.2(82)-3

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

  • Sumrio

    1. Diante da perplexidade, a busca de um mtodo ( guisa de introduo) 7

    2. Prtico 15

    3. Na busca do sentido, a realidade inquietante 35

    4. Diante do que se julga real, a falcia se revela 83

    5. Seremos todos demiurgos? 131

    Referncias bibliogrficas 143

  • 1Diante da perplexidade, a busca de um mtodo

    ( guisa de introduo)

    A falsa impessoalidade moldadora deste discurso pretende pagar seu tributo a uma perspectiva que se deseja acadmica. No entanto, o eu aprisionado nessa conveno deixa aparecer suas arestas e rasga o vu dessa terceira pessoa que se sonha to uni-versal, ao essa fadada a expor uma voz que no sabe deixar de ser individual. Por tal motivo, constatar-se- nas linhas seguintes a feio de uma incurso estritamente particular que visa responder questes diretamente ligadas a esse eu. Nessa esteira, no h como negar uma perplexidade se instalando como sensao difusa diante do anncio do novo milnio. Ao que parece, nunca se esteve to merc da informao em seus feitios mais diversos, da palavra im-pressa e falada at aquela presa grande teia da Internet. E hoje, mais do que nunca, conceitos que as cincias queriam para si e longe dos leigos tomam conta dos discursos mais banais, sina do nosso tempo essa de querer dar credibilidade a tudo quanto se diz. Tal cenrio, promissor quando se pensa nas vantagens de uma in-formao mais gil, acaba gerando apreenso diante do futuro. H como um desejo apocalptico de viver plenamente num curto es-pao de tempo todas as experincias possveis.

    Como se v, no mais possvel se furtar premncia do redemoinho em que se transformou nossa poca. E todos recebemos o

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    convite pouco promissor de acumular cada vez mais informao e articular cada vez menos conhecimento. Essa afirmao faz sentido se se pensa que o conhecimento necessariamente uma construo, erguida por meio de uma relao complexa e dinmica estabelecida entre o sujeito e os dados por ele recebidos. O processo se com pletaria quando o sujeito dotasse esses dados de um sen tido, integrandoos na sua essncia humana. Destarte, o conhecimento, alm de ser cumulativo, transformase em um processo especificamente dialtico que compreende os anos e as vivncias de um dado ser. Porm, isso no acontece na atualidade, poca em que prima a compulso pela informao consumvel. Acumular informao hodiernamente um procedimento similar acumulao de poeira na moblia: forma uma fina camada externa que jamais se integra superfcie sustentadora, bastando um sopro para removla. Esse sopro pode ser uma nova corrente em voga, propiciando a substituio da poeira antiga por uma nova ou, o que pior, poeiras antigas e novas coexistem em uma irmandade imposta, denunciando a todo instante a incoerncia da mescla. Esse panorama nada animador exige cada vez mais uma pausa, mesmo que o redemoinho ameace devorar quem assim o fizer. E parar significa reaver o direito ao conhecimento em seu sentido mais pleno. Isso exige o concurso da prpria experincia vital do indivduo transformada em matria experimental sobre a qual se aplica o resultado de procedimentos acumulados ao longo de sculos de cultura. Evidentemente, isso diz respeito necessidade de viver conscientemente. E quantos de ns, hoje, temos tempo e vontade para tal?

    O estado de perplexidade aludido acima foi o responsvel pela elaborao destas linhas, aliado s coordenadas de uma obsesso particular: o mecanismo da percepo humana e o conceito de construo da realidade, ambos no isentos de polmicas. Ao per-seguir esse objeto, houve a necessidade de entrar em reas cujo ca-rter aparentemente muito pouco se relacionaria com a teoria da literatura, campo em que se inscreveria o desenvolvimento deste fazer acadmico. No entanto, a mencionada obsesso no poderia se inserir apenas e estritamente numa determinada estratificao

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    do conhecimento, como seria o estudo da literatura, pelo simples fato de que as diversas disciplinas que organizam e dinamizam o acervo do conhecimento humano obedecem a uma necessidade im-posta pela nossa prpria maneira de ver o mundo: precisamos deli-mitar campos para deles ocupar-nos com mais detalhe, dada a impossibilidade de lidar com a totalidade das coisas em sua forma natural. Delimitar campos , obviamente, um recurso essencial, mas no mago prevalece o desejo de integrao do conhecimento, que corresponde ao conceito de interdisciplinar e, para alguns, de pluridisciplinar, to ao gosto das novas tendncias devotadas busca de uma integrao para melhor progredir.

    Admitem-se as respostas obtidas para as indagaes nortea-doras deste trabalho de reflexo como um esboo da aproximao que se desejaria realizar, pois transitar em outras reas alheias ao estudo da literatura propriamente dito se apresentou como um de-safio rduo. Foi preciso enveredar por alguns campos da Psicologia e da Biologia. Tal incurso se fez por meio de dilogos com alguns especialistas e pela leitura de tratados e obras de divulgao cient-fica. Esse material foi se articulando ao redor da questo literria na forma de uma grande pergunta em torno da percepo humana e a construo da realidade, cuja resposta se revelou extremamente complexa, to complexa que seria impossvel registr-la integra-mente.

    A natureza do presente texto se definiria, assim, como a busca de um dilogo entre reas de conhecimento distintas. Sua finali-dade: a de tentar se aproximar da literatura com instrumentos de anlise capazes de libertar do impasse muitas vezes produzido por textos crticos caracterizados por um discurso autista. Tal discurso, alheio a outros setores do conhecimento, ignora um dilogo salutar que poderia ter encurtado ou at desanuviado os caminhos ocultos em direo a uma melhor compreenso da obra literria.

    Naturalmente, a abordagem proposta nestas linhas exigiu o re-conhecimento de que nos movemos em um mundo ligado con-veno enquanto sistema dinamizador de tudo quanto se concebe e se executa, incluindo nessa classificao at a mesma ideia de

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    mundo. Isso significa aceitar a organizao dos dados perceptveis como o desejo de construir sistemas convencionais, cujos elementos esto governados por leis especficas que lhes conferem credibili-dade e coerncia. Qui pela fora usada para invocar tal coerncia seja to difcil encontrar uma reflexo que incida precisamente em um ponto fundamental: compreender a organizao do mundo como a ordenao de uma srie de instncias que se instauram por meio de leis gerando uma conveno, encaminhando-se a cumprir um propsito da espcie: sobreviver. Com isso, pretende-se dizer que a conveno um termo relativo idealizao humana no sentido de concepo e compreende um conjunto de diretrizes a serem seguidas. Sua finalidade seria manter a condio dinmica e a juno daquilo que se cultiva dentro da conveno e para a sub-sistncia dela mesma. Nessa esteira, ao olhar em torno do ser hu-mano, possvel notar que a conveno tem necessariamente a forma de um pacto inquestionvel, cuja quebra poderia alterar o precrio equilbrio do mundo. Deseja-se mascarar tal possibilidade de destruio por meio da inveno de uma palavra de autoridade que validar tal acordo. importante observar que no se d ao termo conveno um sentido negativo, pelo contrrio, deseja-se ver nesta reflexo uma maneira de compreender melhor a rede de rela-es particulares e coletivas, sustentadoras do mundo. Sem as con-venes, isto , sem o pacto, no haveria nem sequer a possibilidade de conceber as distintas reas do conhecimento e o seu corpo deli-mitador constitudo por leis, conceitos, princpios e definies.

    Disso tudo se depreende que a literatura, um refinado sistema cultivado e preservado pela fora da conveno, enfrenta uma srie de problemas. Eles aparecem mais claramente quando se analisam algumas das abordagens direcionadas ao estudo do texto literrio e, ao que tudo indica, parte desses problemas procede de uma preo-cupao insana por tentar desvendar em vez de compreender. E sendo precisamente compreender a tarefa precpua de um estudo genuno no mbito da literatura, no poderia deixar de se encetar nas pginas seguintes a busca de um caminho em direo com-preenso.

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    Nesse sentido, procurar alicerces para uma discusso no m-bito da arte na teoria de Jean Piaget no se apresentou em momento algum como impossvel. preciso dizer que esse caminho apareceu depois de um longo perodo de escurido total. Sabia-se da impor-tncia de lidar com questes relativas fico enquanto criao de novos mundos, porm no se conhecia uma senda propcia para esse estudo. No entanto, o escritor argentino Julio Cortzar j cons-titua o centro de indagaes cruciais, devido a uma obra construda na base de uma permanente inquietao: h uma realidade absoluta ou tudo nossa inveno? Essa ampla questo, polarizada e espa-lhada ao longo de obras ficcionais e ensaios, foi norteando uma srie de incurses por reas cada vez mais estranhas Literatura, at desenhar um mapa que inclua Psicologia, Cincias Cognitivas e Filosofia. Mas tal equao no poderia acenar com um resultado coerente sem a interveno de um elemento congregante. Esse ele-mento apareceu na forma de um lampejo: havia uma obra que, ao apresentar questes relativas ao conceito de realidade, citava a teo ria de Jean Piaget. Foi crucial compreender que uma obra de en-vergadura como a epistemologia gentica no deveria ficar rele-gada ao mbito das questes puramente didticas e educacionais. Era preciso encontrar uma ponte com a literatura e ela se confi-gurou ao constatar a existncia de um conceito fascinante na teoria piagetiana: a funo simblica. O rduo trabalho da abordagem desse conceito to complexo e difcil rendeu um fruto: constatou-se haver a possibilidade de estabelecer uma relao entre a criao de uma obra artstica e os primrdios da conscincia do artista que a cria, pois a funo simblica piagetiana se insere no universo in-fantil. E nos momentos cruciais dessa reflexo surgiu a notcia de uma obra, pioneira nesse particular. Tratava-se de As artes e o de-senvolvimento humano, de Howard Gardner, escrita na dcada de 1970 e revista pelo seu autor nos anos 1990. Nela, busca-se dar dimenso da funo simblica piagetiana um lugar de destaque no processo artstico. Acredita-se que um trabalho dedicado a aliar a teoria de Piaget s questes artsticas deva ter continuadores, pois, ao se sustentar a ideia de que a compreenso do fenmeno literrio

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    vem antes do seu pretenso desvendamento, est-se afirmando a ne-cessidade de se concentrar na origem do processo artstico, para melhor entender a importncia inegvel da arte.

    Como j foi observado, esse propsito encontrou um ancora-douro seguro na obra de Julio Cortzar. A produo do artista ar-gentino frtil em reflexes constantes sobre o ato criador. Isso gerou inumerveis ensaios devotados a esmiuar quase obsessiva-mente os processos de concepo e execuo da obra artstica. Seus poemas, contos, romances e incurses pelo teatro tambm consti-tuem outros testemunhos lcidos de um artista que mantinha como constante de sua obra o desafio perene ao estabelecido, estivesse presente na literatura ou nas crenas que consideram o mundo um lugar absoluto, conhecido e seguro, prova de que somente os tolos no tm medo.

    Evidentemente, um trabalho de reflexo com os propsitos acima expostos no pode se considerar acabado. Ainda h muito a ser dito sobre a importncia da obra de Jean Piaget no mbito da arte, principalmente no que diz respeito funo simblica. Da mesma forma, questes cruciais como representao e imitao, to caras s artes, pertencem esfera de conceitos que lidam diretamen te com o mago da natureza humana, cujo carter pleno de mistrio, muitas vezes sentido como totalmente intransponvel, ocasionou o encon tro de no poucos becos sem sada em momentos de dolorosa re flexo. Uma abordagem possvel sobre esses temas oferecida na primeira parte deste texto. A segunda, debruase especificamente na reflexo sobre a obra de Julio Cortzar buscando suas correspondncias com as concepes precedentes. Isso conduziu a um drstico recorte da obra cortazariana, de tal maneira que basicamente somente o conto Diario para un cuento se transformou na vigamestra das reflexes sobre seu fazer literrio. A escolha desse texto se justifica plenamente, pois o escritor argentino, em seus ltimos anos de vida, escreveu esse relato e tambm teve o propsito de lanar um olhar retrospectivo sobre sua produo. Ao que tudo indica, Diario para un cuento a viso cortazariana em seu estado mais ntimo e intenso porque a expresso artstica plena de tudo o que

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    representava uma inquietao para o artista. Aliadas abordagem desse texto literrio, as incurses pelos ensaios do escritor argentino geraram um rico substrato pronto para dialogar fecundamente com sua produo artstica apoiada em constantes como o escritor diante de si mesmo, o jogo, o duplo, o real, o fantstico. Esses temas se inserem nas questes sobre a percepo e a construo do real, apresentadas como as indagaes cruciais deste texto. Elas revelam sua prpria iden tidade numa faceta das concepes de Cortzar: o escritor como criador de mundos. Ao afirmar isso, Cortzar no se valia de uma simples figura de linguagem porque ele sabia que a intencionalidade do escritor irm da intencionalidade que d origem aos deuses, ao cotidiano, ao mundo em que se pensa existir. Os fios que tecem a trama da fico so retirados dos mesmos fios que tecem o mundo de cada um; a realidade uma quimera fraguada no medo, pois, se a fico irm do nosso mundo, h algo que possa ser conhecido como realidade alheia ao nosso ntimo? O mundo se gesta como uma criana mimada, que brinca com um poder que no lhe pertence. No h mundo que imitar, posto que tudo fico, podese, qui, dizer que h fices dentro de fices, como as runas circulares de Borges j anunciavam para o nosso desespero.

  • 2Prtico

    A esfera refletora de Escher: consideraes sobre a percepo

    Um prembulo necessrio situa estas reflexes no limiar do impossvel. Sustentar-se-, ao longo deste percurso, que a palavra no eficaz quando se trata de questes to cruciais como a vida interior, mesmo que da palavra este discurso se valha para tentar uma aproximao em direo a esse universo. Qui tal paradoxo d a medida da dimenso de outra palavra especial que perde neces-sariamente sua referencialidade para se transformar em smbolo, nica linguagem possvel para essa parte de ns, ainda inexplorada e por alguns negada , que o inconsciente. Tal palavra se pre-sen tifica e vitaliza nos textos artsticos, vestindo roupagens ou-tras, ousando demarcar um terreno de sonho com estacas de vento. Essa fugacidade das imagens artsticas talvez s o seja em virtude de o fruidor se situar em seu universo simblico por apenas uns se gun dos, partindo de imediato para uma tentativa frustrada de apreenso e elucidao de smbolos via palavra cotidiana ou por meio da palavra ancorada numa lgica por vezes intil.

    Como se ver, essa constatao a de a palavra ser, no raro, ineficaz em campos to cruciais quanto o acesso ao inconsciente

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    abre um generoso caminho em direo tentativa de mostrar um desejo da autora destas linhas: se fosse possvel sintetizar um sis-tema de pensamento numa imagem, cujo impacto fosse to com-pleto a ponto de abolir qualquer necessidade de palavras, certamente a que seria escolhida para estas reflexes que iro se expor seria uma litografia de M. C. Escher, de 1935, intitulada Mo com esfera refletora. A escolha dessa obra obedeceu s notas de uma obsesso muito particular: a de compreender o processo de percepo hu-mana e a de aferir se o conceito de realidade parte necessariamente de uma construo particular da espcie, dado seus instrumentos e modo de perceber serem como so. Ambas as questes corres-pondem naturalmente ao mbito daquilo que no tem resposta, constatao essa que no tem sido bice para a grande empresa da busca de sua elucidao, encetada por muitos ao longo de sculos, provando com isso que essa indagao corre paralela prpria exis-tncia enquanto processo. Isso impe necessariamente voz deste discurso a reivindicao do quinho dessa dvida, sina humana aceita com prazer. Ao mesmo tempo, estas reflexes apontam para a delimitao de um rumo que perpasse o campo da arte, mais es-pecificamente da literatura, uma vez que esse terreno se revela ex-tremamente frtil para acolher as questes aludidas.

    Como possvel apreciar na litografia de Escher, instaurase um movimento sumamente interessante, pois os olhos do observador podero notar que se trata de uma mo sustentando uma esfera de cristal, cuja superfcie reflete a imagem e o ambiente circundante daquele que aparentemente segura a esfera e no est presente no plano da litografia. A mo sustenta um micromundo, cuja esfericidade claustrofbica congrega princpio e fim ao mesmo tempo. Porm, tambm se nota que a mo sustentadora da esfera pode ocupar o lugar da mo de qualquer observador da litografia, estabelecendo um jogo traioeiro em que possvel para cada receptor assumir a identidade do ser fechado dentro da bolha transparente. Esse nico e singular ser constitui o reflexo de muitos e singulares observadores, todos reduzidos a um nico prisioneiro da esfera quando se postam diante da litografia.

  • A ESfERA DA PERCEPO 17

    Tal constatao bastaria para compreender que essa obra de Escher constitui uma reflexo acurada sobre a percepo humana e sobre o mundo que pensamos habitar, pois cada elemento da litografia unifica em seu carter dinmico a experincia de todos e cada um. O reflexo no muda e isso bastaria para compreender o quanto as leis da percepo nos congregam em espcie, outorgando ao eu de cada indivduo a necessria sensao de ser coletivo e provando que o mundo se estrutura para ns a partir de uma srie de informaes cuja organizao depende nica e exclusivamente do aparelho sensorial que temos disposio. Isso significa que, fatalmente, o mundo apreciado pelo sujeito s assim porque o corpo humano capta unicamente o que lhe possvel pelo fato de estar organizado de um modo especfico. bvio dizer que se esse corpo fosse estruturado de outra maneira, qui se estaria diante de um mundo totalmente outro, ainda que se estivesse situado no mesmo tempoespao. E quem sabe at essas categorias seriam outras e no as conhecidas, conduzindo a cogitar se o mundo no ser nico e particular para cada espcie deste planeta.

    Um olhar atento sobre a obra de Escher revela que os limites da esfera so intransponveis. Com isso, descortina-se o fato de que o ser refletido na esfera , ao mesmo tempo, um prisioneiro de suas percepes. Situao similar de todo humano, pois cada um se en-contra no reduto intransponvel dos limites do seu prprio corpo. Nota-se nessa afirmao a predisposio a filiar este discurso a uma vertente do conhecimento filosfico que considera o ser humano se movendo dentro de sua construo. Evidentemente, h um eco que lembra Ren Descartes. Essa constatao transforma em per-tinente o fato de poder associar seres to distantes no tempo como Escher e o filsofo francs, pois ambos aderiram a um sistema de indagao que partia do eu como nica certeza possvel. Por um lado, Escher se diverte desenhando o que muitos tomam por inte-ressantes jogos capciosos, mas pode apreciar-se no conjunto de sua obra uma obsesso e uma pergunta muda: seria o mundo que vemos tal como nossas percepes nos dizem que ? Por outro lado, Des-cartes, em sua obra Discurso do mtodo (1999), narra o procedi-

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    mento por ele praticado com o propsito de adquirir sabedoria e conhecimento verdadeiro das coisas do mundo. O meio por ele es-colhido foi o da experincia direta e prope que um dos funda-mentos para essa busca consista em procurar a verdade rejeitando tudo aquilo que supuser dvida. Isso conduziu Descartes, segundo suas prprias palavras, seguinte concluso: ao considerar que os nossos sentidos s vezes nos enganam, quis presumir que no existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar (Des-cartes, 1999, p.61). E aps sucessivas rejeies de aspectos duvi-dosos dos fatos observados, o filsofo percebeu que s restava o prprio sujeito que indagava. Essa descoberta o fez chegar sua clebre afirmao: eu penso, logo existo, primeiro princpio de sua filosofia.

    Ao que parece, Escher e sua esfera transparente so o eco plau-svel da afirmao descartiana, pois a nica certeza a de existir um eu perceptivo. E o teor das percepes desse eu, e o que elas estru-turam, jamais poder dar a medida exata do que o mundo seja real-mente, como afirma Descartes em suas Meditaes (1999):

    O principal erro e o mais normal que se pode encontrar consiste em que eu julgue que as ideias que se encontram em mim so se-melhantes ou conformes s coisas que se situam fora de mim; pois, com certeza, se eu considerasse as ideias realmente como certos modos ou formas de pensamento, sem querer relacion-las a algo de exterior, mal poderiam elas oferecer-me a oportunidade de errar. (Terceira Meditao, p.272-3)

    Note-se que para Descartes as ideias so as imagens das coisas no mbito do pensamento, e elas procedem dos estmulos que tocam os sentidos. Porm, em momento algum poderiam corres-ponder a algo exterior ao ser perceptivo, na forma em que elas se apresentam. Essa negao da possibilidade de saber se h um l fora igual ao c dentro procede, no tanto de provas pois Des-cartes afirmou ser a nica constatao indubitvel a de saber e con-ceber a existncia de um eu , mas sim da certeza de poder situar

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    esse problema no rol das questes insolveis por falta de meios para prov-las. Com isso, perfeitamente possvel afirmar que Des-cartes, bem como todos aqueles que ostentam uma sabedoria in-comum, no tem pejo em aceitar a existncia de um limite natural freiando todo e qualquer sonho de oniscincia. E no seria dispara-tado pensar esse limite como intrnseco ao prprio corpo humano. Porm, essa afirmao, de to bvia, soa at absurda, pois parece sina da espcie desejar que os fenmenos se originem de causas mi-rabolantes. prefervel pensar que toda tristeza procede de causas etreas do que acreditar que possa existir uma causa concreta no crebro, por exemplo.

    Observese como Escher tambm afirma com muda eloquncia que o l fora sempre tem o rosto do prprio ser perceptivo. Aparentemente, a figura humana que parece estar dentro da esfera produto do reflexo de algum olhando para si mesmo. Porm, no seria despropositado afirmar que todo ser humano, quando pensa olhar o l fora de si, olha unicamente para si mesmo. Vejase por qu. Descartes, em suas Meditaes, perguntavase como explicaria o fato de experimentar as sensaes de frio, calor e as demais, aparentemente vindas de fora. Ele dizia que mesmo essas sensaes, parecendo provir de um mundo exterior, s eram respostas internas a estmulos que encontravam uma forma exclusiva de traduzirse no l dentro do ser, pois o corpo humano as capta como s humanamente sabe fazlo. Tal concepo conduz, claramente, cer teza de que o mundo humano uma construo alicerada na com plexidade incalculvel de uma estrutura leiase corpo cu jos meandros do a forma e o tamanho desse mundo. Seria algo como dizer: em verdade no existe frio, o frio no nada sem um corpo que o padea. E se houvesse outros corpos, diversos do nosso, quem sabe o frio nem seria uma sensao plausvel; ento cabe perguntar: quantas coisas deixamos de sentir por ter o corpo que temos? E isso se correlaciona certeza de que, se h um l fora, ele totalmente inconcebvel em sua plena e verdadeira essncia, e ns, mortais, quem sabe s captamos um micromilmetro de sua tota lidade.

  • 20 ROXANA GUADALUPE HERRERA ALVAREZ

    Note-se nessa observao a possibilidade de dar margem a pensar que seria possvel abolir a existncia de algo l fora. Em mo-mento algum se tem meios de fazer essa afirmao, pois no h como provar nem sua verdade nem sua falsidade, sbia lio apren-dida de Descartes. E voltando ao frio, ele descrito como por causa de haver um corpo a senti-lo dessa determinada maneira; mas no possvel dizer se, aniquilando todos os corpos que possam experiment-lo assim, haveria como abolir a existncia do frio. Provavelmente no, ele seria simplesmente o que olhos hu-manos no podem ver: o frio em si. E ainda h espao para uma suposio: se a totalidade absoluta fosse um aglomerado de partes e coubesse ao corpo humano fazer uma seleo de algumas delas para integrar o mundo conhecido, lgico pensar que ainda haveria uma infinidade de partes que no encontram na organizao hu-mana seu lugar simplesmente porque no possvel para o corpo humano perceb-las. Isso significaria que as nossas certezas so li-mites impostos por nossa organizao corporal peculiar. Eles nos ajudam a mascarar o medo visceral de ser reduzidos a p. Seria esse o nosso mecanismo de preservao?

    H outro dado importante trazido pela litografia de Escher. Ao que parece, dentre todas as formas de captar estmulos, o ser hu-mano se apoia com mais nfase nas informaes procedentes da viso. Dessa maneira, pode-se afirmar que o modo como o ser hu-mano se relaciona com o mundo passa fatalmente pela captao e interpretao de imagens. E, tudo leva a crer, cada humano tem sua cabea como o espao congregante de suas sensaes e da interpre-tao das mesmas porque, obviamente, o crebro nela se aloja. Mais ainda: estando os olhos localizados na cabea, natural que se use a viso como o canal mais importante de contato e do que se est mais consciente. Disso se depreende que a esfera de cristal de Escher poderia ser, tambm, um tributo brincalho ao crnio enquanto es-pao do eu.

    H um dado que talvez venha a reforar a importncia atri-buda viso: o sonhar. Essa atividade se vale de elementos visuais,

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    se no exclusivamente, pelo menos basicamente.1 Ento, perti-nente indagar: sero os smbolos visuais os constituintes da lingua-gem que procede do inconsciente e sero eles os nicos que podero estabelecer uma comunicao com o mundo interior? Poder-se- atingir o inconsciente e dialogar com ele por meio de smbolos uni-versais? Essas questes, seria oportuno dizer, possuem respostas afirmativas, as quais se amparam nas concepes de Carl Gustav Jung. Como se sabe, a inestimvel contribuio desse pensador des-vendou um novo ser humano ao trazer luz um dos conceitos mais desafiadores: o da existncia do inconsciente. Evidentemente, esse termo tinha sido concebido e delimitado por Sigmund Freud, mas, no mbito da psicologia junguiana, ele tem outro valor. Na obra Psicologia do inconsciente (1981), Jung expe a teoria de que h um inconsciente pessoal e outro coletivo e a diferena entre ambos seria a de que o primeiro contm lembranas reprimidas, percepes su-bliminais que dizem respeito ao indivduo; j o inconsciente cole-tivo vai alm das primeiras lembranas e percepes infantis para se situar nos restos de vida dos antepassados, isto , imagens que no foram vividas pelo indivduo e que pertenceriam a um acervo comum da humanidade (Jung, 1981, p.58, 69). Para Jung, ambos uni versos possuem uma linguagem simblica e mais: os sonhos so uma parte vital do ser, pois a maneira usada pelo inconsciente para fazer emergir seus contedos e lev-los at a conscincia, de tal modo que esse intercmbio se revela vital para o equilbrio e auto-conhecimento do ser.

    Seria bvio afirmar que conceitos com essa abrangncia so vitais para a compreenso da arte e, em se tratando especificamente da literatura, sintomtico o uso do termo imagem enquanto figura

    1. Em momento algum seria possvel aludir ao mundo dos cegos, pois se carece de informaes sobre esse particular, alm de a cegueira no ser uma condio natural, mas algo que impossibilita o uso de um sentido que pertence aos hu-manos como constituinte vital de sua estrutura. E as habilidades que o senso comum atribui aos cegos so o produto de uma compensao pela falta de um canal to vital como a viso.

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    de amplo alcance, pois ele se liga indissoluvelmente s coisas percebidas pelos olhos. Sem dvida, essa referncia procede da certeza de existir um substrato de imagem para toda palavra, isto , algo eminen temente visual ou, ao menos, ancorado nos sentidos. Cada palavra desperta, dessa maneira, sensaes que corres pondem, no mais ntimo do ser, a uma imagem de significado nico e pleno para ele. E quando a imagem de longo alcance, pensese em obras magistrais, o impacto da mesma cruza paradoxalmente o limiar da palavra para mergulhar nas guas mais profundas do nosso inconsciente compartilhado. possvel, nesse momento, falar de verdades universais, temas universais ou, simplesmente, ter a certeza de que se experimenta o mago do vitalmente humano, posto que se tocam as fibras da espcie. Outro no pode ser o poder da palavra artstica, pois ela, ao perder seu lao com o cotidiano, ala um voo singular em direo ao inconsciente, terreno em que s imagens palpitam.

    oportuno ver nas as ideias de Jung sobre o inconsciente cole-tivo um auxlio na compreenso de que a civilizao moderna j conta com um rico acervo de imagens. Ele constitui um cdigo que permite uma interao fecunda com o mundo interior. Porm, perceptvel um afastamento cada vez maior desse vasto mundo in-terior para mergulhar no vertiginoso redemoinho em que a palavra e seu poder de tudo explicar ocupam o lugar de destaque. Tal fato descortina outro dado alarmante: pareceria que o ser humano, principalmente o de centros urbanos mais povoados e cosmopo-litas, ao se afastar da sua conexo com o mundo interior, estaria tambm invalidando sua ligao com o prprio corpo. possvel notar que a noo de conexo pressupe duas ou mais entidades separadas passveis de serem unidas, sinal de que nossa perspectiva atual naturalmente est habituada a cindir nosso ser em muitas partes, apesar da busca incessante da cincia no que se refere compreenso do organismo humano e o desvendamento de seus mistrios genticos, por exemplo.

    No seria temerrio dizer que essa crise atual j vem se ges-tando ao longo de sculos, e cada ideologia deu sua contribuio

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    decisiva para consagrar a ciso radical do ser humano, oferecendo--a como nica possibilidade de se dominar e se conhecer. Como re sultado disso, o corpo tentou ser banido, escondido, trancado, ignorado. As diversas disciplinas em que se dividiu o acesso ao co-nhecimento e, dentre elas, as chamadas Cincias Humanas, despre-zam o corpo e apregoam a existncia do esprito e da alma, ambas como instncias etreas, flutuando por sobre as vsceras e as sen-saes nessas ancoradas. H muitas vertentes filosficas, principal-mente as ocidentais, que parecem reduzir tudo ao mbito exclusivo do crnio, entendido este como o assento do crebro, nico rgo ao qual se atribui importncia, por consider-lo o lugar onde a in-teligncia reside. Essa filosofia ocidental tambm deixa de reco-nhecer, no raro, a validade da filosofia oriental por ver nela uma constante chamada em direo ao que o Ocidente rotula como reli-gio, matria de dogmas e f e no de conhecimento em seu sen-tido mais pleno. Porm, essa filosofia esquivada pelo imprio da razo pode oferecer uma rica perspectiva que muitas vezes coin-cide surpreendentemente com posturas cultivadas por artistas e pensadores mais sensveis a estmulos menos prisioneiros da razo pura e simples.

    Outra constatao alarmante poderia ser esta: o senso comum se baseia estritamente no poder da palavra para descrever toda a complexidade do mundo interior. Haver desatino maior do que tentar reduzir a sequncias de vocbulos, sensaes que envolveram o corpo todo? No seria mais sensato tentar conhecer a realidade psquica integrandoa ao organismo fsico, da mesma maneira como naturalmente todos os fenmenos humanos acontecem? Somos enigmas para ns porque ainda ignoramos o papel que verdadeiramente desempenham nossos msculos, sangue, vsceras, nervos, ossos quando se pensa neles funcionando como um todo.

    Diante de tudo isso, no h como seguir sustentando um mo-delo de Cincias Humanas, nem o de outro campo do conheci-mento, que ignore a necessidade de integrar as vrias partes desse ser humano dividido e de tudo quanto lhe diz respeito. E essa inte-grao passa, obrigatoriamente, pela assuno de um compromisso

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    tanto individual quanto coletivo: cada ser humano procuraria sua prpria inteireza para poder estend-la a todos seus domnios. Nessa perspectiva, outro dado vem suscitar mais perguntas: se a cincia moderna busca mapear o ser humano em vrios de seus as-pectos, mantendo uma distncia salutar entre fatos e superstio, por que h tantas coincidncias ou at corroboraes relativas a co-nhecimentos, muitas vezes de natureza religiosa, que constituem uma rica herana de civilizaes antigas, leia-se chinesa, japonesa, indiana, rabe, ou at dos povos americanos e africanos antes de qualquer colonizao, bem como a de outros ncleos humanos que ora escapam? Ser porque nesses perodos mais remotos o ser hu-mano esteve mais prximo do seu mundo interior, podendo se comu-nicar com ele de uma maneira mais plena, obtendo conhecimentos diretos cuja aplicao se traduzia em bem-estar psquico? Nova-mente, a tendncia seria responder afirmativamente a essa per-gunta, pois a comunicao mais plena com o inconsciente coletivo explicaria a abundncia de conhecimentos cruciais dessas civili za-es. No entanto, essa pretensa facilidade de comunicao com o ntimo de cada um, atribuda a essas culturas antigas, tambm po-deria ser somente uma ideia romantizada. Percebe-se, ento, que tudo isso mostra como a tendncia atual pareceria ser a de tomar o rumo da aniquilao da espcie humana, tamanha a crescente sen-sao de insatisfao que paira sobre tudo e, qui, isso conduza a saudosamente almejar um paraso provavelmente inexistente. Diante desse quadro, impossvel ignorar que, quanto mais o ser humano renega seu corpo e sua relao com o mesmo, seu vasto mundo inte-rior e sua necessidade de dialogar com ele em favor de uma vida mais confortvel, mais ele mergulha no alheamento de si.

    Seria possvel neste momento retomar a litografia de Escher e nela ler o ser humano circunscrito sua prpria esfera de criao. E tambm seria possvel estabelecer uma relao com essa ideia: o ser humano cria para si um mundo formado pelas sensaes possveis, pelas lembranas, pelas crenas e por todo um conjunto de bens culturais acumulados pela espcie humana; eles constituem os li-mites da esfera. Porm, quando se diz que o mundo em que nos

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    movemos totalmente humano e, por tal, limitado a uma esfera particular de percepo, isso no uma tentativa de ver o mundo como a inveno particular de cada um. Afirmar isso seria negar uma instncia alm da espcie humana, algo que para ns toma a forma do sistema chamado natureza. De modo algum. A espcie se move dentro de algo que a contm e provavelmente lhe d um sen-tido, sentido esse cuja compreenso qui no seja dada a nenhum ser humano. Tampouco se fala de um ser superior, mesmo porque at os deuses so invenes absolutamente humanas. Vejam-se suas qualidades e poderes, tudo o que qualquer humano poderia regis-trar, entender, imaginar, pensar expressado em grau superlativo.

    A percepo e seu assento carnal

    Outro ponto crucial diz respeito esfera de Escher como possi-bilidade de abordagem sobre a percepo humana, levando em conta seus mecanismos complexos. Isso solicita, evidentemente, a exposio de alguns fatos sobre o crebro como centro congregante dos estmulos colhidos pelos sentidos. Para tal, necessrio aludir, de incio, a uma obra intitulada O stio da mente: pensamento, emo o e vontade no crebro humano (1997) de autoria de Henrique Schtzer Del Nero. Esse estudo analisa e avalia os avanos da cincia no sen-tido de provar que h forosamente um assento carnal para tudo o que humanamente somos. Esse assento seria o crebro, rgo es-tudado em sua categoria de organizador, dinamizador e poten cia-lizador das percepes, as quais redundariam na forma do que chamamos mundo. O mais fascinante do crebro sua capacidade de pr em funcionamento uma srie de mecanismos capazes de tecer a grande malha da nossa realidade.

    oportuno assinalar no ser este o terreno frtil para uma descrio acurada sobre o modo de funcionar do crebro; para tal h inmeras obras magistrais. Bastar, no entanto, aludir a algo que a medida de ns mesmos e de nosso mundo: o fato de con-ceber e estabelecer relaes. Segundo a exposio de Del Nero

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    (1997, p.27-33), o crebro possui elementos somente ativados por meio de conexes. Veja-se algo de domnio mais ou menos comum: o crebro humano pode ser compreendido pelas trs funes mais importantes e mais evidentes que realiza: a recepo de estmulos por meio dos rgos sensoriais; a ao sobre o corpo enquanto es-pao de organizao e manuteno do que chamamos vida e sua interao com o ambiente, e a integrao entre o que o ambiente mobiliza e as respostas geradas pelo organismo humano a partir dessa interao. A separao entre essas trs funes um recurso ilustrativo, pois, inegavelmente, tem-se uma dinmica integradora que as une num todo fluido e harmonioso em se tratando, claro, de um ser humano padro. Porm, impossvel se referir ao c-rebro enquanto rgo e no se lembrar da sua constituio: o tecido nervoso cerebral provm da integrao de bilhes de neurnios, os quais no cessam de estabelecer conexes sinapses entre si. No seria possvel deixar de ver nisso a ilustrao clara do que somos: se o nosso corpo se faz por meio de conexes, relaes singulares e es-pecficas entre elementos de tomos, passando por clulas at chegar a rgos e dali a sistemas , seria pertinente notar que o nosso modo de ser s poderia ser fiel a esse modelo: no podemos viver sem estabelecer relaes. Como se v, h um modelo emi-nentemente relacional perpassando todos e cada um dos eventos humanos, pois se a nossa vida orgnica se baseia em interaes dos mais variados tipos entre os mais diversos componentes, nossa vida mental e tudo o que diz respeito a ela tambm procede de rela-es. Destarte, todos os mbitos: orgnico, social, artstico, cien-tfico e todas as subdivises possveis e imprescindveis nossa maneira peculiar de pensar nascem de conexes. Estamos fadados a buscar pontes entre ns e o que nos circunda. Todo estudo as busca. Como se v, somos fiis nossa essncia vital: somos seres relacio-nais, assim como nosso corpo.

    Tornando um pouco mais radical esse ponto de vista, pos-svel afirmar que estamos presos ao que nosso crebro . E, oportu-namente, poder-se-ia introduzir a grande questo do esprito: ele um produto natural do nosso ser porque sua concepo s pos-

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    svel por causa da estrutura peculiar de nosso crebro. Talvez a be-leza que atribumos ao esprito tenha vindo de nossa ignorncia em relao ao que nosso corpo seja e quem capaz de saber se um dia mesmo a morte, pasto e paixo de tantos, no poder ser elucidada, transformando nossas atuais preocupaes em motivo de riso para os homens e mulheres do futuro, novos Prometeus arrebatando o fogo aos deuses do nosso medo?

    Continuando a refletir sobre as relaes, seria oportuno se con-centrar no processo da percepo humana. Do ponto de vista fi-siolgico, algo, no mnimo, surpreendente. Como j se disse, o crebro humano recebe informaes dos rgos dos sentidos e os neurnios as processam. Esse processamento caracterstico toma a forma de sinais eltricos quando das sinapses, de tal forma que essas rpidas interaes poderiam se imaginar como infinidade de vaga-lumes voando num bosque. Cada centelha uma conexo, cada luz fugaz a certeza de que algo est sendo tecido nessa grande malha que nossa mente no crebro.

    Neste ponto, delineia-se uma questo fundamental: Del Nero (1997, p.59-78) afirma que, apesar de serem incipientes as aborda-gens cientficas dedicadas a pesquisar o crebro, do que j se sabe possvel estabelecer alguns fatos. O crebro humano pode ser di-vidido em setores, cada um dos quais corresponde a uma regio possuidora de certos grupos de neurnios especializados em deter-minados tipos de conexes, as quais redundam em habilidades es-pecficas. Desta feita, possvel assinalar qual rea do crebro estaria mais ligada ao campo da linguagem, por exemplo. Porm, em momento algum tais setores so estanques. Quando falamos, todo o crebro participa; alis, o corpo todo.

    Outro aspecto fascinante perceber como o crebro, como es-trutura fsica e tangvel, responsvel pelo que se conhece como mente. A mente humana o grande feito da evoluo, ela produto de um conjunto sofisticado e complexo de interaes neuronais. Mas a impossibilidade de v-la como entidade concreta tem susci-tado vastas discusses e assombrosas explicaes. Ela etrea, pois no se pode tocar; ela contm todas aquelas manifestaes que no

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    encontram no corpo um local definido. O que fazer com ela? Onde enquadr-la? Como possvel inferir, esses conhecimentos ainda incipientes sobre a mecnica cerebral apenas esto passando a fazer parte do acervo de informaes das pessoas em geral. muito di-fcil vencer sculos e sculos de explicaes oriundas das limitaes da experimentao direta. Perceber a olho nu o que acontece num crebro vivo impossvel; mas agora se pode contar com o auxlio de aparelhos capazes de observar o funcionamento orgnico de seres vivos. Reconhece-se em tais procedimentos cientficos o pre-nncio de algo maior que redundar no domnio de conhecimentos mais e mais profundos. No entanto, mesmo tendo-se a certeza de conquistas vindouras, conta-se atualmente com um nmero sufi-ciente de dados que j permitem conceber a mente humana como algo cuja origem e assento est no crebro, contrariando vertentes do conhecimento que lhe atribuem origem imaterial. Prova disso seria a nova abordagem das doenas psquicas, muitas das quais podem ter sua origem em disfunes cerebrais. J possvel cor-rigir estados depressivos, por exemplo, com o uso de substncias que agem como neurotransmissores, auxiliando as conexes que no podem se estabelecer por causa de algum fator alheio ao fun-cionamento padro do crebro. Isso j uma prova contundente: se, com efeito, a mente nome que muitas vezes quer significar uma habilidade prpria do esprito ou at ele mesmo o produto do funcionamento especfico do crebro humano, no menos certo que, se alguma parte dele no vai bem, fatalmente se ter algum tipo de distrbio expresso nas aes do portador.

    Essas valiosas informaes contribuem para a libertao do gnero humano, pois muitos dos demnios tentadores e destrui-dores das conscincias podero ser exorcizados por meio do conhe-cimento. Ento, como Del Nero afirma (1997, p.66-73), a pretensa incorporeidade da mente, responsvel por faz-la flutuar acima da carne, deve-se impossibilidade de situ-la especificamente num lugar do nosso corpo. Tambm contribui para a sustentao desse equvoco o fato de no se possuir instrumentos capazes de medir as funes da mente, o que elas so e onde se originam ao certo.

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    Essas funes se reconhecem como a conscincia, a vontade, o pen-samento, a emoo, a memria, o aprendizado, a imagem, a criati-vidade, a intuio, segundo Del Nero (1997, p.73) e procedem da mesma fonte cerebral. Distinguem-se entre si pelas diversas ma-neiras de se manifestar e responder s molas tocadas pelos mais va-riados estmulos.

    Assim, se a mente humana compreende tudo isso, h um atri-buto, apontado por Del Nero, capaz de singulariz-la diante de outras espcies do planeta: a inteligncia. Fonte de classificaes absurdas quando se deseja agrupar em classes altas, mdias e baixas o contingente dos seres humanos, numa clara aluso ao que acon-tece com a riqueza material, a inteligncia hoje um objeto de es-tudo amplo demais para qualquer disciplina que tente delimit-la e defini-la. Essa dificuldade procede de uma constatao: a inteli-gncia s pode ser apreciada na ao. Pensar em inteligncia pensar em capacidade de estabelecer relaes entre os objetos, sejam eles abstratos ou no. Quanto mais atalhos e solues seja possvel conceber, quanto mais isso redunde no aprimoramento da conservao da espcie, mais se ter um indcio do que ela venha a significar. Ao conceber a inteligncia dessa forma, possvel com-preend-la mais como uma entidade fugidia, que se expressa das maneiras mais diversas e nos mais diversos tipos de atividades, do que como uma habilidade a ser aferida pelos testes de QI. Inteli-gncia , pois, o que se manifesta quando estabelecemos relaes. As respostas a nossas indagaes e o que fazemos com elas no pro-cesso de feedback, caracterstica do nosso modo de lidar com os dados colhidos, pautam a construo do nosso mundo e nossa habi-lidade de perpetu-lo para benefcio da nossa espcie.

    Bastaria deter-se em outra questo fundamental para com-preender o quanto complexa a inteligncia. Pense-se nos in-meros elementos em que possvel decompor um processo em observao com o intuito de o entender. Essa operao de decom-posio em partes poderia ser interpretada como nossa nica forma de conhecer. Dividimos em partes o todo para depois tentar re-constitu-lo segundo nossa capacidade de assimilao. Muitas

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    vezes, a tarefa revela-se v. Veja-se uma abordagem cujo objetivo seja o de entender o intrincado processo de percepo, por exemplo. Parte-se da noo dos cinco sentidos: viso, olfato, paladar, audio e tato, os quais se delimitam como funcionamentos independentes para melhor explicar sua organizao. Cada um dos sentidos se as-socia a um rgo capaz de, em contato com o meio, captar estmulos e os codificar, para que possam navegar pela emaranhada rede do sistema nervoso. A rapidez desse processo nos faz estar permanen-temente em contato direto com o mundo ao nosso redor, no dizer de Del Nero (1997, p.97-108). Talvez o mais surpreendente seja o fato de o crebro traduzir os estmulos que recebe em imagens, sons, sensaes, gostos e cheiros. Porm, no h nada que prove que a decodificao dos sinais advindos aparentemente do exterior os quais se integram a um circuito, pois, como se sabe, o crebro humano uma vasta rede de impulsos eltricos tenha realmente essa aparncia. Dito de outra forma, poder-se-ia supor que tudo aquilo que percebemos , em essncia, uma rede de impulsos el-tricos; imagine-se cada espcie do planeta como um receptor nico desses sinais. O receptor humano decodifica os sinais de uma ma-neira especfica, construindo um mundo que no se sabe se corres-ponderia ao mesmo mundo que um gato constri para si, por exemplo. Como um gato nos v? Como a imagem que vemos de ns mesmos no espelho? A impossibilidade de afirmar categorica-mente que o mundo seja tal como a imagem mental concebida pelos seres humanos um dos mais fascinantes mistrios. Essa incerteza deixa o caminho aberto para uma suposio: se como humanos pu-dssemos alterar a frequncia de recepo dos sinais externos, qui consegussemos captar outros sinais desconhecidos para ns em nossa atual forma de perceber. Isso nos colocaria perante outro mundo diverso deste. Talvez seja essa a noo de mundos paralelos a que fazem aluso alguns.

    No entanto, abandonando o terreno do que ainda especu-lao, necessrio se concentrar em algo crucial. A percepo hu-mana obedece obviamente s coordenadas do corpo fsico. Isso permitiria estabelecer este princpio: o mundo que temos aquele

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    que nos dado conhecer porque nossos sentidos assim o permitem. Dessa maneira, possvel ver o corpo fsico como a antena vital de que o ser humano dispe para se construir. Nesse mecanismo, os sentidos seriam os condutos ativos capazes de estabelecer com o meio as relaes necessrias para salvaguardar a integridade desta carne, pois o nosso grande propsito sobreviver como espcie. Para alguns, qui parea demasiadamente carnal um propsito exposto nesses termos, mas no h como se furtar ao fato de que as mais sublimes produes do esprito nele esto firmemente emba-sadas. Por tal motivo, reitera-se que estabelecer relaes constitui ncora, sustentculo, mira e paixo da nossa espcie.

    Outro fator extremamente importante para compreender a percepo humana a capacidade de aglutinar as informaes transmitidas pelos sentidos na forma de uma pintura particular cujos elementos coexistem harmoniosamente. Essa harmonia no a da beleza, mas sim a da perfeita integrao da engrenagem de um maquinismo. Essa operao de aglutinar informaes to bvia para o humano adulto que poucos indagam a maneira como acon-tece. Para muitos, se revela difcil atribuir esse grande feito con-tribuio decisiva de um lento e gradual desenvolvimento fora do tero. Sabe-se que o humano no nasce com sua capacidade de in-teleco pronta: precisa desenvolv-la graas ao auxlio vital do meio. Pois bem, os estmulos captados pelos sentidos humanos movem o crebro em suas capacidades particulares e o ajudam a sintetizar um quadro total. Essa somatria de sensaes se entre-mescla de modo a construir uma unidade com a qual o ser humano aprende a se familiarizar ao longo da vida e cuja feio perfeita-mente conhecida e bvia: o mundo.

    Como se v, o estmulo sensorial por si s no basta, a grande conquista humana o que se faz com as percepes. Como j se disse, o ser humano se relaciona com uma imagem, construda por meio dos estmulos sensoriais, valendo-se de uma srie de pro-cessos internos que j se apresentaram como funes da mente. Essa imagem corresponderia a uma juno de caractersticas con-formando unidades particulares, de tal maneira que sua somatria

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    pudesse constituir entidades bem delimitadas. Tais imagens, assim concebidas, passam a coexistir com outras de igual constituio, como se fossem tijolos que vo formando um edifcio. Essas ima-gens so tudo o que o humano tem, tudo com o qual se relaciona. Por exemplo, uma pessoa concebe a imagem de outra, atribui-lhe determinadas caractersticas oriundas tanto das percepes senso-riais quanto das mais aguadas suposies que o levam a dot-la de um dado comportamento ou forma de ser. Tal indivduo, criado por meio dessa particular concepo, no nada mais do que uma fico. Neste ponto, chega-se a algo crucial: se o mundo uma cons-truo particular da nossa espcie com essa afirmao se invalida qualquer equvoco que fizesse conceber a ideia inadequada de que cada um constri um mundo para si, pois construdo segundo a espcie humana a arte, a cincia e tudo quanto nos cerca em termos de concepo mental, so uma construo dentro da nossa construo maior, que o mundo.

    Como possvel apreciar, as reflexes apresentadas convergem para uma indagao cujos desdobramentos encontraro na arte um terreno amplo e frtil. Comeou-se por apresentar como plausvel o fato de a realidade humana ser uma construo oriunda de nosso modo de percepo peculiar. Nesse sentido, a litografia Mo com esfera refletora, de Escher, mais do que eloquente, pois no h como se furtar sensao difusa de saber-se enclausurado no ema-ranhado das prprias sensaes e impresses. Isso j estaria descor-tinando um cenrio que mostrar as marcas de um percurso que inclui algumas paradas; uma delas ser a apresentao de pontos fundamentais da teoria de Jean Piaget. Esses pontos se revelam vi-tais para compreender a arte, como ser possvel apreciar num outro momento. Basta destacar, por enquanto, que o rumo das li-nhas seguintes acompanhar as coordenadas da mesma obsesso particular, tentando estender os limites dessa teia quase impossvel at um alvo crucial: uma aproximao, pelo vis, da obra de Julio Cortzar.

    Poder-se- questionar, talvez: qual o vnculo entre uma expo-sio que tenta resgatar a base carnal da percepo e a arte? Em

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    primeiro lugar, uma obsesso particular, como j se disse. Em se-gundo, o desejo de mostrar como toda empresa humana envolve forosamente nossa totalidade, ainda que desconhecida. Enquanto corpos, ocupamos um lugar no mundo. Enquanto corpos, conce-bemos obras sublimes. A arte se nutre dos veios ocultos da nossa carnalidade para transform-los em produtos to etreos e to belos. Qui seja este o paradoxo maior: a arte, como o ltus, faz esquecer que sua beleza procede do que muitos desprezam como o lodo: esta nossa carne aflita.

    Eis o prtico que abrir o caminho necessrio em direo a uma paisagem soturna porquanto desconhecida, como so naturalmente as coisas da noite do inconsciente. Tem-se a certeza de que o per-curso no conduzir necessariamente elucidao das questes pro-postas nem poderia , pois acabar colocando outras tantas pedras no caminho, sinal de que possvel deleitar-se na execuo de um jogo que consiste em tropear insistentemente nessas pedras.

  • 3Na busca do sentido,

    a realidade inquietante

    Toda empresa humana, seja ela intelectual ou alheia a esse campo, tem como objetivo precpuo a busca de um sentido que a venha esclarecer e justificar no somente aos olhos do sujeito que a vive, mas tambm para o grupo social que o acolhe. Tal busca se traduz em uma incessante troca de roupagens tomando a forma de condutas ora inopinadas, ora convencionais que tentam de al-guma maneira seguir o fio de uma coerncia cuja principal funo seria a de amarrar uma sucesso de eventos percebidos como a pr-pria existncia. Nesse panorama to humano da busca de um sen-tido, a coerncia se revela o motor necessrio, impiedoso e redutor de toda experincia, pois qualquer indivduo sabe da facilidade com a qual certos eventos se acomodam imagem de uma vida prpria, construda anos a fio sob a sombra da miragem de se conceber pleno. Quando um evento qualquer no se cinge a essa coerncia, talvez o esquecimento ou a reinterpretao venham acomod-lo e amarr--lo junto aos outros eventos organizados coerentemente entre si.

    Esse modo to humano de se conceber o sujeito impele o indi-vduo busca insana de um sentido, revelador e sustentador de uma ordem sem a qual no seria possvel imaginar o mundo atual. Porm, muitas vezes a busca de um sentido ilusria, pois o que se busca no o mvel essencial dos objetos e sim a prpria ideia pre-

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    concebida e alimentada pelo sujeito-buscador. Seria algo como procurar uma roseira que sempre desse onze rosas e rejeitar as que do dez ou doze ou outra quantidade qualquer. A roseira a forma importante, o nmero de rosas produzidas irrelevante, pois sua essncia no est em ter certo nmero de flores e sim na forma e organizao em que elas se apresentam para singularizar determi-nado tipo de vegetal. Esse exemplo, qui simplrio, bastaria para mostrar o quanto a busca de um sentido a busca do que se deseja encontrar. Isso se revela em todas as nuanas da existncia humana; alguns indivduos dela se apercebem e outros nem sequer aceitam a possibilidade de isso acontecer, cegos que so para seus prprios limites. Uma decorrncia perceptvel desse carter to humano da busca seria o de notar a impossibilidade de se situar diante do ple-namente novo. Veja-se o motivo: o novo se concebe estreitamente vinculado a uma noo de primeira vez; no entanto, em momento algum se faz referncia a um tipo de novidade que permitisse se defrontar com algo totalmente alheio ao conhecido, pois haver sem-pre a tendncia de procurar encaixar os eventos no rol particular de objetos familiares. Talvez essa atitude, reveladora do quanto os humanos permanecemos circunscritos nossa esfera, seja a prova da impossibilidade de olhar para o essencialmente novo porque os olhos humanos no seriam capazes de distinguir aquilo que difere totalmente do que habitualmente veem. Dessa forma, percebe-se que na busca de um sentido h sempre a sombra de uma realidade inquietante. Tal fato vem luz em toda sua extenso quando se pensa no processo de interpretao das vivncias. Quando um fato presenciado pela primeira vez, pensa-se no assalto do novo. Po-rm, j se viu como esse novo concebido como indito somente; portanto, seus alcances apenas sero capazes de surpreender no breve espao dos segundos necessrios para se apropriar da expe-rincia e inseri-la no repertrio daquilo que se considera corri-queiro. Esse ato to sereno e habitual de rotular e encaixar eventos no formato do acervo do conhecido o mecanismo intrnseco de um organismo complexo em busca de um espao seguro para viver e se perpetuar. Porm, inegvel que esse recurso tambm o cr-

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    cere privado de todo ser humano e qui uma tentativa de fugir dele seja existncia de uma srie de atividades que buscam resgatar algo que d a sensao de se situar alm da experincia cotidiana e mergulhar no reino ntimo do si mesmo. Uma dessas rotas de fuga seria a arte.

    A arte como porta paralela para a compreenso

    H vrios modos de conceber o fenmeno artstico. Por tal mo-tivo talvez seja necessrio fazer um recorte e situar-se em um de seus numerosos pontos. Muito j se tem afirmado sobre o carter vital da arte; exemplo disso so as afirmaes de Chklovski em A arte como procedimento, ensaio includo na obra Teoria da li-teratura: formalistas russos (1978, p.39-56). O terico observa que a arte possui o poder de retirar os objetos do seu automatismo habi-tual para inseri-los em um cenrio em que passar a prevalecer a cons cincia do sujeito em relao a eles. Isso geraria, nas palavras do estudioso, uma forma de ver as coisas e de se relacionar com elas como se estivessem se apresentando pela primeira vez. Essa viso de uma indita dimenso adquirida pelos objetos no universo arts-tico gera um conceito to caro a muitas vertentes crticas: o do es-tranhamento. O estranhamento seria como uma segunda porta em direo compreenso, pois prevaleceria nela o uso de uma forma intempestiva e econmica de se aproximar dos objetos sem neces-sidade de se entregar a uma constante elaborao lgica da com-preenso. Esse atalho conta com a cumplicidade de uma sensao de desamparo diante do objeto aparentemente desconhecido, senti-mento esse que empurra o ser em direo busca frentica da iden-tidade desse objeto no arquivo interno que classifica em fichas bem conhecidas todas as coisas possveis. Mas esse medo de no conse-guir identificar o que se percebe abre uma brecha no tempo devo-tado busca de um sentido e deixa emergir uma fenda que oferece uma viso esquiva de algo oculto dentro do prprio ser que per-

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    cebe. Essa breve visita ao ntimo situa o ser mais alm do arquivo maante de coisas conhecidas. No entanto, preciso entender que em momento algum se deseja afirmar que o estranhamento, por ter sido qualificado de segunda porta, reduza-se a um ato desprovido de qualquer elaborao intelectual. No obstante, para se chegar etapa final, isto , compreenso, deve existir um trabalho prvio capaz de mobilizar uma combinatria de informaes operadas pela lgica, e a sensao de estranhamento seria algo como a suspenso momentnea dos meandros dessa operao lgica para obter de ime-diato um estado de receptividade total em virtude do encontro com um objeto desautomatizado. Tal estado permitiria a compreenso intempestiva por meio da breve apreciao quase simultnea das propriedades do objeto. Esse momento to curto e to valioso pre-cederia o ato de encaix-lo no mbito do conhecido que transfor-maria o objeto em algo dominado e conhecido, submergindo o ser que percebe no espao insuspeito do familiar.

    possvel notar que se a arte conduz a esse terreno da desauto-matizao dos objetos e se esse estado se persegue como experincia vital, ento factvel assinalar a necessidade de compreender a es-truturao dos procedimentos artsticos para encetar um dilogo fecundo com instncias complexas e profundas do ser. Tal empresa se revela plena dos obstculos prprios de toda grande indagao, mas em momento algum isso impedir uma tentativa de aproxi-mao.

    Um dilogo possvel entre Psicologia e arte

    A tese de As artes e o desenvolvimento humano, de H. Gardner

    Neste ponto se revela de crucial importncia aderir a uma viso que busca na aliana com uma perspectiva de natureza psicolgica dar voz a uma srie de perguntas, muitas das quais talvez fiquem sem resposta. Essa abordagem necessria dialoga com as ideias de

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    Howard Gardner apresentadas na obra As artes e o desenvolvimento humano (1997). Gardner centra suas reflexes no mbito da episte-mologia gentica de Jean Piaget, vasta teoria detentora do mrito de se debruar sobre o fenmeno humano tentando uma salutar in-tegrao das diversas vertentes do conhecimento em direo sua compreenso.

    O ponto de partida de Gardner seu propsito de com preender a dinmica do fenmeno artstico, cuja figura central seria o artista. Dessa maneira, busca estabelecer um dilogo com as artes situando suas indagaes no mbito de uma Psicologia que se atm ao es-tudo do desenvolvimento e do comportamento. Isso se deveu, se-gundo suas observaes, ao desejo de iluminar uma questo para a qual nem Piaget nem seus seguidores ofereceram uma linha de re-flexo especfica, pois, para Gardner, a arte um assunto vital, me-recedor de uma abordagem mais ampla. O estudo de Gardner parte da premissa de que a criana j pode ser considerada um artista. Essa viso tem sua origem na funo simblica piagetiana, uma vez que tal conceito, como ser exposto adiante, relaciona-se estreita-mente com a noo de smbolo artstico. Como afirma Gardner no captulo 4, no item intitulado A criana pequena como artista:

    A criana pequena de 5 a 7 anos pode reivindicar uma afinidade especial com o artista praticante. Ela compartilha a espontanei-dade, o senso natural de forma e equilbrio do artista rematado e no possui as inibies a respeito do produto, a autoconscincia a respeito da tcnica, que podem prejudicar o trabalho de seus co-legas mais velhos. (Gardner, 1997, p.186)

    No trecho citado se condensa parte da viso de Gardner sobre o processo artstico. Ela se mostra perspicaz, como se ver a seguir; no entanto, h momentos em que possvel apontar algumas questes discutveis. De incio, quando prope como ponto favorvel para a criana artista o fato de no possuir a autoconscincia a respeito da tcnica, que prejudicaria o trabalho produzido, Gardner estaria desafiando toda uma tradio crtica que v no trabalho

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    consciente de execuo da obra seu mrito maior. E pelo fato de o discurso exposto nestas linhas se inscrever nessa vertente crtica, basta essa nica afirmao para compreender que Gardner, ao estabelecer uma identidade entre criana e artista, atevese a uma viso excessivamente romntica da arte. Tal postura perpassaria toda sua tese, gerando uma abordagem que sutilmente pretenderia favo recer a emoo como uma das molas principais da produo artstica. claro que em momento algum se poderia negar o fator emocional como elemento importante na dinmica artstica, porquanto ele se liga afetividade e suas implicaes com a comunicao. No entanto, Gardner se apega a ele por uma razo bastante bvia: criana se atribuem qualidades como inocncia, espontaneidade, cria tividade, todas elas vinculadas de alguma maneira afetividade. Num adulto padro, tais atributos no se manifestam com a facilidade da criana. Logo, se o artista pode ser visto como inocente, espontneo e criativo, parecendo produzir obras s para contatar a afetividade, tanto prpria quanto do receptor, nada melhor do que anular no horizonte do artista sua feio de adulto. E aqui caberia a pergunta: o que levaria um estudioso como Gardner a elidir a possibilidade de um adulto ser artista porque adulto e no porque criana, pois j deixou de slo? Proviria da postura romn tica antes aludida? Evidentemente, esse o ponto que separa radicalmente o discurso destas linhas do de Gardner, pois no se considera possvel estabelecer uma relao to estreita entre artista e criana da maneira como se conduz em As artes e o desenvolvimento huma-no. Porm, antes de expor as diretrizes norteadoras destas pginas, ser preciso se concentrar em outros aspectos importantes da obra do estudioso em pauta.

    Gardner apresenta suas reflexes sobre o processo artstico destacando nele quatro papis fundamentais: o artista-criador, o membro da audincia, o crtico e o intrprete. Esse ltimo poderia ser o msico que executa uma partitura ou um cantor, por exemplo. interessante destacar uma observao curiosa: o estudioso afirma que, dentre os papis citados, caberia ao crtico, e somente a ele, a capacidade de ... raciocinar de forma proposicional e expressar-se

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    numa linguagem lgica a respeito do reino das artes (Gardner, 1997, p.50). Em compensao, o criador ou artista um indivduo que obteve suficiente habilidade no uso de um meio para ser capaz de comunicar atravs da criao de um objeto simblico (Gardner, 1997, p.49). A ele caberia utilizar seu arsenal de habilidades cria-tivas para produzir suas obras. importante notar que Gardner define a obra de arte como smbolo e os objetos concebidos como tais poemas, pinturas e outros possuem o potencial de refe-rncia ao mundo externo, ao mundo da experincia subjetiva e in-clusive a si [mesmos] (Gardner, 1997, p.64). Desse modo, a experincia esttica descrita por Gardner se vincula de maneira in-dissolvel a contedos subjetivos e afetivos, pois o artista opera a partir desse ponto para dotar sua produo dos elementos necess-rios para suscitar no receptor respostas nesse mbito. Ainda afirma serem os quatro papis do processo artstico elementos dinmicos e, por vezes, intercambiveis, havendo a possibilidade de encon-trar, em alguns momentos, certa fuso entre crtico e artista, mas ela no apresentada como fundamental ou necessria. H, ainda, outra afirmao bastante controversa:

    O ritmo em que uma criana se torna capaz de manipular tons, palavras ou linhas varia grandemente, mas as operaes lgicas de-sempenham um papel muito pequeno ou nulo nessas atividades. O desenvolvimento ocorre dentro do prprio meio, atravs de uma explorao e amplificao concretas de suas propriedades. Assim como no h necessidade de sair fora do meio, no h necessidade de o artista, o intrprete ou o membro da audincia dominar ope-raes lgicas ou de passar pelos marcos cognitivos que ocupam Piaget.Uma vez que entendo o desenvolvimento artstico desta maneira, no acho necessrio falar sobre o desenvolvimento cognitivo no sentido do pensamento lgico-cientfico, nem de tratar de estgios e operaes hierrquicas nas vidas dos artistas e membros da au-dincia. (Gardner, 1997, p.66)

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    Esse trecho, ainda que oferea uma srie de conceitos que se adianta ao que ser exposto quando se apresentarem alguns pontos da teoria de Piaget, permite ter uma noo do grau de separao que Gardner estabelece entre o pensamento lgico-cientfico e o processo artstico. Bastaria deter-se nessa afirmao para perceber o quanto se deseja preservar a conhecida ciso entre cientista e ar-tista. Principalmente quando Gardner sustenta que as operaes lgicas pertencem somente ao mbito do pensamento cientfico! Qualquer ser humano, para mover-se no mundo, precisa de sua to-talidade, seja ela a descrita pelas etapas delimitadas pelas observa-es acuradas de Piaget, seja ela a apresentada por outro sistema de pensamento que venha tambm explicar o desenvolvimento humano. A dicotomia envolvendo artista e cientista mostra que o ltimo s pode ser um adulto porque, para lidar com a cincia, Gardner afirma a necessidade de um desenvolvimento por etapas at atingir o tipo de pensamento adequado para conceber os fe n-menos numa perspectiva causal, cara aos estudos cientficos. J o artista se identificaria diretamente com a criana. Nota-se nessas afirmaes a tentativa de situar em dois patamares distintos a cin-cia e a arte, com o inconveniente de dar a impresso de que as reali-zaes artsticas poderiam ser brincadeiras infantis e as abordagens cientficas, coisas srias do mundo adulto. Gardner parece negar ao artista um nvel de refinamento lgico em suas operaes men-tais quando se trata de produzir sua obra. Seria pertinente afir mar o contrrio, pois o artista consegue ser to habilidoso em seu campo quanto um cientista o no dele, somente se tem ao seu dispor os recursos prprios do adulto. E h, ainda, um agravante: Gardner parece desconhecer o fato de que as artes possuem uma linguagem altamente complexa, somente dominada por indivduos adultos possuidores de habilidades desenvolvidas com plenitude ao longo de seu crescimento. Isso naturalmente conduz seguinte afir-mao: a criana no um artista, pois ainda lhe falta o domnio pleno de uma linguagem. Tal capacidade pertence somente ao mundo dos adultos, tanto quanto as formulaes de um habili-doso cientista.

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    Como possvel notar, a fragilidade da tese de Gardner reside nesse fato. Isso gerou uma abordagem insuficiente em muitos pontos para explicar todo o processo artstico, sobretudo porque o estudioso parece recusar arte um envolvimento to complexo quanto o da elaborao de todo um sistema de pensamento cien-tfico destinado a explicar fenmenos. E o que mais surpreen-dente, o estudioso parece no dar importncia ao fato de que tanto a arte quanto a cincia so, elas prprias, modelos. Um modelo lida essencialmente com concepes mediadoras de nossa expe-rincia e no com as coisas em si. Nesse sentido, preciso contra-dizer Gardner e afirmar que h necessariamente um mesmo ponto de origem para a arte e a cincia, pois ambas operam no universo da conveno.

    Outra abordagem controversa da tese de Gardner se cinge a uma ciso excessivamente acentuada entre as vrias instncias do desenvolvimento humano. Qui seja esse o ponto sustentador de suas ideias, pois de que outro modo ele estabeleceria uma distino to clara entre artista e cientista se no por meio da distribuio quase estanque das habilidades inerentes a cada um deles? Segundo o estudioso, o artista produz objetos simblicos e o cientista formula padres e modelos por meio dos quais compreende o mundo. No entanto, tal classificao se revelar insuficiente para explicar a complexa interao do ser humano com seu meio, como se ver adiante.

    Voltando relao entre criana e artista, Gardner destaca nessa equao o papel do smbolo. Como j se disse, para o estu-dioso, as obras de arte so smbolos produzidos pela subjetividade e afetividade do artista. A criana tambm poder produzir ob-jetos dessa natureza. No entanto, fundamental perceber que os objetos criados por crianas no possuem a intencionalidade leia-se vontade e poder de criar smbolos , que s provm da cons-cincia plena do domnio da linguagem artstica. Por tal motivo, somente a boa vontade do olhar do observador, aliada ao seu co-nhecimento das regras da conveno artstica, podero lhe permitir o enquadramento do objeto infantil no universo artstico. Mas a

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    incidncia desses provveis achados no mundo infantil jamais per-mitir concluir a existncia de uma caracterstica que iguale a criana ao artista adulto. E h mais: inegvel que a elaborao simblica da arte apresenta um nvel de complexidade capaz de situ-la no mbito do quase incompreensvel. Elaborar smbolos pressupe, em primeiro lugar, que exista um espao propcio para produzi-los. Bastar dizer que um deles poderia ser o inconsciente, to bem descrito por Jung, e caberia ao adulto reivindicar o conhe-cimento que se encontra contido nesse vasto universo ntimo. En-tretanto, sem o desenvolvimento adequado das faculdades fsicas e psquicas, no possvel elaborar uma ponte em direo expe-rincia interna de plenitude, caracterstica da arte. Uma criana ainda no tem o poder e a fora para gerar, manipular e suportar o impacto dos contedos do inconsciente trazidos tona como sm-bolos artsticos. Poder, quando muito, produzir grandes acertos sem ao menos perceber o que faz nem o potencial contido nesses smbolos.

    Provavelmente muitos dos pontos controversos de Gardner se originam de uma postura perfeitamente observvel ao longo de sua obra: o estudioso analisa o processo artstico no como algum que dele faa parte, mas como um espectador bastante alheio ao rede-moinho da criao artstica. Isso justificaria o fato de no se encon-trar em sua obra uma cumplicidade, que a marca registrada de muitos crticos literrios. Esses se debruam sobre o fazer artstico conseguindo um alto grau de identificao com o artista, a ponto de compreender o que o ntimo dele expressa. Tal crtica literria, exercida com a paixo do artista pelo seu objeto, tanto pode ser pro-duto de indivduos altamente sensveis ao processo artstico quanto dos prprios artistas que tm a habilidade de descrever e vivenciar conscientemente muitos de seus procedimentos e concepes.

    Seria oportuno salientar que, apesar do perfil altamente con-troverso de algumas ideias defendidas em As artes e o desenvolvi-mento humano, h, sem dvida, um aspecto sumamente revelador, interessante e plausvel no pensamento de Gardner: a arte pres-supe uma elaborao simblica e nesse sentido, e s nesse, que se

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    justifica a correlao estabelecida entre a criana e o artista. Outro grande mrito da tese apresentada reside em ter inaugurado uma tentativa de dilogo entre a Psicologia e a arte. Para tanto, Gardner ofereceu um panorama das abordagens psicolgicas que se dedi-caram ao estudo do fenmeno esttico partindo da observao di-reta das distintas fases do desenvolvimento infantil. Isso conduziu afirmao de que seria a funo simblica descrita por Piaget o princpio gerador da expresso artstica. Qui seja esse ltimo ponto o que de fato singulariza e valoriza a obra de Gardner, uma vez que seu legado permite empreender uma busca fecunda em di-reo compreenso da arte.

    Dessa forma, ao aceitar esse legado, ser preciso empreender uma abordagem que parta, como Gardner o fez, da funo simblica de Piaget. Contudo, ser necessrio estabelecer uma delimitao no percurso, pois se tomar a funo simblica piagetiana em sua n-tima relao com a elaborao artstica sem aderir ideia da identi-dade entre criana e artista, ponto de sustentao da tese de Gardner. Outra questo importante para essa abordagem distinta partir desta constatao: sendo o maior obstculo do estudioso sua falta de con-tato estreito com o universo da criao artstica sem o qual no po-deria ter acesso a uma compreenso plena da relao entre funo simblica piagetiana e arte , apresenta-se como imprescindvel evo- car e presentificar a voz de um dos escritores mais inventivos do s-culo XX, cuja trajetria artstica um constante fluir entre o desejo de desvendar e entender o prprio processo de criao e elaborao artsticas, e a certeza de que h sempre algo maior que nunca po-der ser elucidado. Esse autor o argentino Julio Cortzar. Sua voz ser o fio condutor imprescindvel entre o universo simblico e seus produtos.

    Devido ao carter singular de tal escritor, seria equivocado dizer que foi escolhido para os propsitos do presente estudo. Qui o mais adequado seria dizer que a instigante produo de Cortzar propiciou um encontro com as questes em pauta. Textos, cuja tessitura um convite permanente para se perder no labirinto ntimo, permitiram o encontro fatal com um universo interior,

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    pleno de imagens. E o anseio de compreender levou busca intensa de um novo fio de Ariadne. Assim aparece a feio destas linhas perante os olhos de quem as escreveu.

    A funo simblica de Jean Piaget: um caminho para compreender o processo de criao artstica

    Chega-se, ento, a um ponto crucial em que necessrio passar a incursionar por outras vertentes de pensamento, as quais condu-ziro a uma melhor compreenso dos pontos considerados impor-tantes na relao entre criana e artista, sem esquecer que o cientista no deve ser visto como uma espcie parte, como queria Gardner. Com esse propsito, ser necessrio dedicar uma ateno concen-trada a alguns pontos de interesse sobre Jean Piaget. Sua inquie-tao fundamental provinha de uma questo que se tornou uma espcie de obsesso. Ela viria a nortear seu trabalho tomando a forma de uma permanente indagao: como o ser humano aumenta seus conhecimentos, isto , como se compreende a passagem de um co-nhecimento menos complexo para outro cada vez mais rico. Essa pergunta conduziu naturalmente a uma srie de reflexes que re-dundaram na concepo de um sistema singular conhecido como epistemologia gentica. Piaget assim o expe na introduo de sua obra A epistemologia gentica (1978):

    Aproveitei com prazer a oportunidade de escrever este pequeno livro sobre epistemologia gentica, de modo a poder insistir na noo bem pouco admitida correntemente, mas que parece con-firmada por nossos trabalhos coletivos neste domnio: o conheci-mento no poderia ser concebido como algo predeterminado nas estruturas internas do indivduo, pois que estas resultam de uma construo efetiva e contnua, nem nos caracteres preexistentes do objeto, pois que estes s so conhecidos graas mediao neces-sria dessas estruturas [...]

    [...] O que se prope a epistemologia gentica pois pr a descoberto as razes das diversas variedades de conhecimento,

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    desde as suas formas mais elementares, e seguir sua evoluo at os nveis seguintes, at, inclusive, o pensamento cientfico. (Piaget, 1978, p.3)

    Como possvel observar, Piaget partiu de uma constatao revolucionria: a teoria do conhecimento oferecia necessariamente uma reflexo acerca de concepes que, de alguma maneira, j se encontravam perante o sujeito. Piaget recua sua viso e vai at a gnese mesma do motor das concepes. Para utilizar um prefixo caro aos estudos literrios, o pensador teria produzido uma espcie de metateoria do conhecimento. Para tanto, ele se valeu do concurso de outras disciplinas como a Psicologia e a Biologia, pois estudar a gnese do conhecimento equivalia a compreender totalmente o ser que procura esse mesmo conhecimento. Dessa forma, o mais fascinante da obra de Piaget , precisamente, sua preocupao em analisar a espcie humana do ponto de vista de variadas perspectivas, partindo do corpo humano e suas singularidades. Sem isso, no seria possvel conceber qualquer sistema de pensamento coerente. Esse dado bastante bvio, mas paradoxalmente pouco considerado, como salientou o pensador ao longo de sua obra.

    A obra monumental de Piaget, ao tentar elucidar o processo do desenvolvimento humano, tem o grande mrito de no perder de vista uma questo fundamental: da mesma forma que as demais espcies do planeta, os seres humanos tm como inteno precpua sobreviver e, como no poderia deixar de ser, acumular conheci-mentos se direciona tambm a esse propsito. Por tal motivo, alm das funes de conservao e manuteno do equilbrio, que passam despercebidas para ns, realizando-se no nosso corpo em surdina, todo humano coloca suas aes em funo desse propsito. Isso traz de volta o fato de que a inteligncia humana, desenvolvida e expressa na ao, d sentido a um mundo cuja funo ser o ce-nrio para a conservao da vida. E as prprias pesquisas de Piaget servem a esse mesmo objetivo fundamental: aprimorar as condies de vida por meio do conhecimento, pois conhecer nossos prprios

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    recursos, enquanto organismos complexos, permite que vi vamos mais e melhor.

    Dessa maneira, a complexa teoria de Piaget forma uma teia ininterrupta de infindveis fios dependentes, constituindo um vasto sistema apoiado no desvendamento e elucidao dos meca-nismos altamente complexos que propiciam e mantm a vida dos seres humanos. Para tanto, Piaget partiu da observao direta das primeiras fases do ser humano. Esse rduo estudo o levou delimi-tao de complexas etapas do desenvolvimento, apresentadas em quatro estdios que abrangem outras subdivises. Cada um desses estdios corresponde descrio cuidadosa de uma srie de carac-tersticas advindas do processo de maturao fsico e mental, le-vando em conta a interao com o meio. importante conceber os estdios, no como degraus, mas como as ondas concntricas que se formam quando se joga um objeto na gua. As que chegam mais longe precisaram ser impulsionadas pela expanso das que estavam mais perto do ponto em que o objeto caiu, de tal modo que todas mantm uma comunicao intensa e permanente.

    Os estdios apresentados por Piaget so estes: estdio da inteli-gncia sensrio-motora, que iria do incio da vida fora do tero at os dois anos de idade; estdio da inteligncia pr-operatria ou simblica, cuja durao se situa entre os 2 e 7-8 anos de idade; es-tdio da inteligncia operatria concreta, que vai dos 7-8 anos a 11-12 anos de idade e estdio da inteligncia operatria formal, que se iniciaria por volta dos 12 anos, atingindo o patamar de equilbrio entre 14-15 anos de idade. Um estudioso da teoria de Piaget, Jean--Marie Dolle, em sua obra Para compreender Jean Piaget: uma ini-ciao psicologia gentica piagetiana (1978, p.52) afirma que esses estdios no foram fixados aleatoriamente; eles seriam o produto de anos de exaustivas observaes, pesquisas e experimentaes. Dolle (1978, p.52) assinala uma questo fundamental: os estdios, mais do que uma delimitao estanque, so perodos nos quais h possveis oscilaes no que se refere ao incio e ao fim de cada um, mas que mantm uma regularidade que se constata nos indivduos observados. Isso permitiu afirmar que cada etapa tambm incluiria

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    a consolidao e maturao de determinados rgos no que diz res-peito ao seu funcionamento isolado ou em conjunto. Essa obser-vao muito importante para compreender por que parece haver limites quando se trata de aferir o que possvel esperar ou no de crianas de variadas idades, por exemplo. Esses limites ou possibi-lidades de ao sucedem-se como uma espcie de constante; por tal motivo, a observao direta de crianas efetuada por Piaget e seus colaboradores possibilitou a concepo dos estdios.

    Outra questo importante, tambm apontada por Dolle (1978, p.52), seria a de que cada estdio vai se ampliando e abran-gendo o prximo. Lembre-se o exemplo do objeto lanado gua, exposto anteriormente. Ter isso em mente fundamental, pois o pensamento de Piaget rejeitava as estratificaes petrificadas, uma vez que suas concepes sempre tm o cuidado de se reportar necessidade de ver a vida como um continuum. De igual impor-tncia o papel que o pensamento piagetiano atribui ao meio em que o indivduo est inserido. O ambiente colabora indubitavel-mente no desenvolvimento de cada estdio ou, pelo contrrio, o res-tringe. por isso que Piaget aludiu existncia de indivduos cujo desenvolvimento ficaria estacionado em um dado momento de algum dos estdios.1 Como possvel apreciar, a importncia da identificao dos estdios propostos por Piaget reside na possibili-dade de cada sociedade poder criar mecanismos que garantam uma solicitao constante para que cada indivduo possa desenvolver-se cada vez mais plenamente. No entanto, tem-se a conscincia de que tal realizao s ser possvel quando se alterar esse quadro de gri-tante desigualdade que impera nas sociedades contemporneas.

    Outra questo importante diz respeito ao avano dialtico dos estdios observados at a idade de 15 anos. Essa concepo dial-tica evidentemente aponta para o fato de o desenvolvimento hu-

    1. Para mais informaes sobre este particular, vejase a obra Piaget e a criana favelada, de autoria do prof. dr. Adrian O. Dongo Montoya, trabalho importantssimo no qual se aborda um caso especfico da sociedade brasileira e extensivo a outros pases cuja realidade semelhante.

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    mano se dar como um rico maquinismo sempre em movimento. Tal movimento abrange um intercmbio constante, uma ida e vinda entre estdios. Nota-se na preocupao de Piaget por situar sua concepo num terreno sempre pleno de movimento, um de-sejo de espelhar a vida em toda sua intensidade e riqueza. Algo como observar um espcime vivo para melhor o compreender ao invs de dissec-lo para fazer um inventrio de suas partes incomu-nicadas, posto que sem vida. Essa inteno de preservar o carter dinmico da vida, que perpassa o sistema piagetiano em sua tota-lidade, gerou uma srie de conceitos que mantm em seu mago essa devotada postura em favor do fluxo da vida. Vejam-se alguns deles, fundamentais para a melhor compreenso da sua proposta.

    Piaget, por meio de sua atenta observao, estabeleceu um sis-tema capaz de mostrar o advento da compreenso do mundo por parte do sujeito. Para tal, elaborou conceitos precisos como os de adaptao, assimilao e acomodao, os quais desempenham um papel importantssimo no sistema piagetiano. Sendo conceitos cru-ciais e difceis, toda tentativa de explic-los fora da dinmica do pensamento piagetiano uma tarefa que nasce incompleta. No en-tanto, preciso que aqui se apresentem, mesmo correndo o risco apontado. Nesse sentido, a obra de Jean-Marie Dolle (1978, p.49--50) j aludida, se revela fundamental. O primeiro conceito, o de adaptao, vincula-se indissoluvelmente aos dois restantes, assimi-lao e acomodao, como se ver a seguir. A adaptao implica uma necessria relao entre organismo e meio. Disso resulta a so-brevivncia e conservao do organismo ao pautar suas relaes com o meio pela noo de equilbrio. O equilbrio aparece asso-ciado noo de intercmbio entre organismo e meio. Quando o intercmbio propicia aspectos favorveis para a conservao do or-ganismo h adaptao. Percebe-se que, nessa dinmica, a inteli-gncia desempenha um papel fundamental, pois, na concepo de Piaget, ela a forma singular de adaptao que a espcie humana possui. J a assimilao, em seu sentido biolgico, seria a capaci-dade do organismo de receber e incorporar dados do meio para sua necessria conservao. A acomodao seria o processo de alterao

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    das estruturas desenvolvidas pelo organismo para sua preservao em funo das solicitaes do meio. Assim, a adaptao, vista como o equilbrio essencial entre assimilao e acomodao porquanto o organismo, ao se adaptar, capaz de receber e incorporar dados do meio alterando suas estruturas para manter-se vivo , aparece como elemento fundamental na perspectiva de Piaget, pois ela se refere ao organismo em pleno movimento e vida.

    possvel notar que a descrio e delimitao desses meca-nismos adaptao, assimilao e acomodao , apresentados aqui de maneira bastante sucinta, obedece a uma necessidade do m-todo. Todos os trs agem simultnea e dinamicamente, de tal modo que s possvel captar cada uma das singularidades que os deli-mitam como conceitos no sistema piagetiano por meio de um es-foro deliberado; fora isso, tem-se a vida em seu inesgotvel e calado fluxo. H, ainda, uma questo interessante. Se, como j se viu, para Piaget, a inteligncia humana um refinado mecanismo de adaptao, ainda se poderia acrescentar que o esprito uma das formas da adaptao biolgica. Disso se depreende que as aes mais belas e nobres tm seu assento nesse emaranhado de fios que nosso ser de carne e osso. Ter apresentado esses trs conceitos re-vela-se vital, pois eles esto presentes em todas as aes executadas pelo indivduo ao longo dos estdios de desenvolvimento. Sem esse impulso descrito pela dinmica dos trs, no seria possvel ter o motor do crescimento. Como se v, sobreviver est por trs dessa busca incessante de equilbrio entre organismo e meio.

    Como possvel inferir, da vasta empresa intelectual de Piaget h, inegavelmente, outros inmeros pontos interessantes que podero constituir material de inestimvel valor para a busca de novos caminhos em direo compreenso do ser humano e suas concepes nos mais diversos mbitos. E sendo a arte o mvel destas pginas, ser necessrio se situar numa parte da monumental teoria de Piaget que poder melhor abordla. Para tanto ser imprescindvel se ater a uma obra fundamental para a compreenso do universo da arte, qual seja, A formao do smbolo na criana: imitao, jogo e sonho, imagem e representao (1975). Esse estudo constitui

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    no somente a descrio exaustiva de uma fase especfica dos primrdios do desenvolvimento humano, mas uma aproximao corajosa e consistente daquilo que constitui o cerne do ser