a percepcao da mudanca

10
 S I SERIE q jO CàssyJ^ 78  li 0 0 Carlos Alberto Faraco Dout or em Lingüística pela Salford Unlve rslty (G.-B.) Professor do Universidade Federal do Parpná LINGÜÍSTICA HISTÓRICA uma i nt rodução ao estudo da história das línguas ,.*•'

Upload: lolkinha

Post on 11-Jul-2015

41 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 1/10

 

SI SERIE rq jO CàssyJ^

78

• • A

li 00

Carlos Alberto FaracoDoutor em Lingüísticapela Salford Unlverslty (G.-B.)

Professor do Universidade Federal d o P a rp ná

LINGÜÍSTICA

HISTÓRICAuma introdução ao estudo

da história das línguas

,.*•'

Page 2: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 2/10

 

A percepção damudança

As línguas mudam A realidade empírica central dacom o passar do t empo lingüística histórica é o fato de

que as línguas humanas mudamcom o passar do tempo. Em outras palavras, as línguas humanas nãoconstituem realidades estáticas; ao contrário, sua configuração estrutural sealtera continuamente no tempo. E é essa dinâmica que constitui o objeto de estudo da lingüística histórica,

Os falantes normalmente não têm consciência de que sua língua está mudando. Parece que, como falantes, construímos uma imagem da nossa língua que repousa antes na sensação de permanênciado que na s ensação de mudança .

Muitas são as razões para secriar uma tal imagem da l íngua.Entre elas, o próprio fato de que as mudanças lingüísticas, embora

ocorrendo continuamente, se dão de forma l en ta j o que faz com quesó excepcionalmente percebamos esse fluxo histórico no nosso cotidiano de falantes.

Além disso , as mudanças atingem sempre par tes e não o tododa l íngua, o que s ignifica que a his tória das l ínguas se vai fazer idonum complexo jogo de mutação e permanência, reforçando aquelaimagem antes estát ica do que dinâmica que os falantes têm de sualíngua.

Page 3: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 3/10

 

o'Jf*

>Hrn

>

m

;•<

Or

C(/ )

r—•

m <ü) O

10 LINGÜÍSTICA h istó rica

Por outro lado, as culturas que operam com a escrita —queé, por suas propriedades, história e funções sociais, uma realidademais estável e permanente que a língua falada — desenvolvem umpadrão de língua que, codificado em gramáticas, cultivado pelos letrados e ensinado pelas escolas, adquire um estatuto de estabilidadee permanência maiordo queas outrasvariedades da língua, funcionando, conseqüentemente, nãosócomo refreador temporário demu

danças, mas principalmente comoponto de referência para a imagem que os falantes constróem da l íngua.Há, porém, situações em que os falantes acabam por perceber

a existência de mudanças. Isso ocorre quando, por exemplo, osfalantes são expostos a textos muito antigos escritos cm sua língua; ouconvivem mais de pertocom falantes bemmais jovens oubemmaisvelhos; ou interagem com fak.ntes de classes sociais que têm estadoexcluídas da experiência escolar edacultura escrita, ouque têm pouco acesso a ambas; ou ainda quando escrevem e encontram dificuldades para se adequar a certas :struturas do padrão de língua cultivado socialmente na escr i ta .

Evidencia-se nessassituações — pelo contraste entre uma imagemque setemda língua, e a realidade—o fato deque a línguapassou ou está passando por mudanças.São situaçõesque envolvem ma

nifestações lingüísticas ocorridas em momentos bem claramente distanciados no tempo; ou diferentes gerações convivendo no mesmomomento histórico; ou a ação lingüística degrupos sociais não atingidosmais diretamente pelo policiamento social sobre as formas da língua;ouaindao relativo conservadorismo da escrita. Elas deixam claro queno fluxo do tempo a língua se transforma, isto é, queestruturas epalavras que existiam antes não ocorrem mais ou estão deixando deocorrer; ou, então, ocorrem modificadas emsua forma, função e/ousignificado.

Alguns exemplos Alguns exemplos com dados do portuguêspodem i lustrar essas situações e nos auxiliara perceber mais concretamente ofatode que as línguas mudam.

Comecemos contrastando um texto escrito provavelmente noséculo XIII ou XIV (mais ou menos 600 anos atrás) com uma versãocontemporânea dele:

A PERCEPÇÃO DAMUDANÇA 11

Lenda do Re i Lear

Este rrey Leyr nom ouue filho, mas o uu e t rê s filhas muy fermosas eamau a -a s mui to . E h u um d i a o u u e sa s r r a zõ o e s c om e l l as e d isse -lhes

qu e lhe dissessem verdade, qual d 'e l las o amaua mais. Disse a mayorque nom auia cousa no mundo que tanto amasse como e ll e; e dissea ou tra que o amaua tanto c omo s sy mesma; e disse a terceira, qu eera a meor, qu e o amaua tanto como deue d 'amar f ilha a padre. E ellequis-lhe mall porém, e por esto nom lhe quis dar parte do rreyno. E ca

sou a f i lha mayor com o duque de Cornoalha, e casou a outra com rreyde Scocia, e nom curou da meor. Mas ela por sa vemtulra casou-se me

lhor que nenhúa da s outras, ca se pagou d'ella el-rrey de Framça, ef i lhou-a por molher. E depoi s s eu padre d ' el l a em sa velhice fllharom-

Ihe seus gemrros a terra, e foy mallandamte, e ouue a tornar aa mer-çee d'ell-rrey de Framça e de sa f ilha, a meor, a que nomqui sda r pa rt edo rreyno. E elles reçeberom-nomuy bem e derom-lhe todas as cousasque lhe forom mester, e homrrarom-no mentre foy u iu o; e morreo emse u poder.

(Transcrito de Vasconcelos, 1970, p. 40-1.)

Lenda d o R ei Lear

Este rei Lear não teve filhos, ma s teve três filhas multo formosas oamava-as muito. E um d ia t e ve c em e la s um a discussão e disse-lhes

qu e lhe dissessem a verdade, qual delas o amava mais. Disse a maiorq ue n ão havia coisa no mundo que amasse tanto como a ele; e disse

a ou tra que o amava t anto como a si mesma; e disse a terceira, queera a menor, qu e o amava tanto como deve um a filha amar um pai. Eele lhe quis mal por Isso, e por I s so não lhe quis dar parte no r ei no .E casou a filha maior com o duque da Cornualha, e casou a outra como rei da Escócia, e não cu idou da meno r . Mas ela por su a s o rt e ca soumelhor que as outras, porque se agradoudela o r ei da França, e tomou-apor mulher . E depois a sou pai em sua velhice tiraram-lhe os genrosa terra, e f icou i nf el iz , e teve de recorrer à merco do rei da França ede sua filha,a menor, a quem não quis dar parte do reino. E eles o receberam muito bem e deram-lhe todas as co isas qu e lhe foram neces

sárias, e o honraram enquanto foi v ivo; e morreu na casa deles.

Desconsiderando as diferenças gráficas (lembrar apenas que agrafia portuguesa medieval tinha uma configuração fonética, tendoocorrido sua fixação na forma atual somenteno correr do século XX),pode-se notar no texto antigo a ocorrência de palavras que não usamos mais (ca, esto, mentre, mallandamte); ou que usamos hoje masnão com o significado com que aparecem no texto {porém, curou,

filhas, pagar-se,poder);ou que usamos com outra forma {Jermosa,padre, sa, meor).Alémdisso, pode-se observar que o artigo definidoera um pouco menos freqüente do que é hoje; que palavras que hoje

{MATERIAL EXCLüSIVOj

Page 4: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 4/10

 

Page 5: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 5/10

>!

L

mm

'.:.: H !T!

::y

. >;"'•

fTí.

•: o.-. '.—

• c... ' </>

m <oo O

U LINGÜÍSTICA h istó rica

pos socioeconômicos intermediários e nas gerações mais jovens, emcontraste com um padrão linear nos outros grupos socioeconômicose etários.

Diante de situações que sugerem mudança em progresso no tempo presente, deve o lingüista fazer pesquisas na dimensão do chamado tempo rea l, i sto é , deve levantar dados de diferentes períodos dahistória da língua em busca de ratificação para sua hipótese de quesurpreendeu, de fato, um processo de mudança em andamento (maisdetalhes, Capítulo 5).

A l íngua escr i ta e a mudança Outra fonte possível dedetecção de eventuais

mudanças cm progresso é o contraste entre a língua escrita e a língua-falada. Isso porque a l íngua escri ta é normalmentemais conservadora qu e a l íngua fa lada c o contraste entre as duas pode nos l ev ar aperceber fenômenos inovadores em expansão na fala c que não ent ra ra m n a escri ta .

Para o falante comum, essa percepção pode se dar quando, ten

do de escrever, sente dif iculdades específicas com certas estruturasque, embora correntes já na fala, ainda são inaceitáveis na escrita.

Um exemplo disso são, no português do Brasil, as orações rela

tivas iniciadas por preposição:

O l iv ro de que mais goste i foi Sempreviva.

Elas estão em franco processo de desaparecimento no vernáculo, i st o é , na língua falada em situações espontâueas de interação, nasquais se diz preferencialmente:

O livro que mais gostei foi Sempreviva.

Apesar disso, elas semantêm fortes na língua escrita (cf . Tarai-lo, 1985, Cap. 4) e , por isso mesmo, constituem um a dificuldade especial para aqueles que escrevem, principalmente para os que aindanão desenvolveram um domínio amadurecido da escrita, dificuldadeque pode despe rt ar no falante a percepção de que sua língua estámudando .

Alguns fatores contribuem para esse maior conservadorismo dalíngua escrita. Primeiro, o próprio fato de a escrita, realizando-se pormeio de uma substância mais duradoura que o som , ter uma dimensão de permanência que, cm geral , falta à l íngua falada, o que favorece o exercício do controle social mais intenso sobre e la do que so-

r

A PERCEPÇÃO DAMUDANÇA 15

bre a fala, decorrendo daí a preservação de padrões mais conservadoresde linguagem e o conseqüente bloqueio à entrada de formas inovadoras.

Segundo, as atividades escritas estão, cm sua maioria, l igadas

a contextos sociais marcados de formalidade, e os estudos sociolin-güísticos mostram que há uma forte correlação entre situações formais e o uso preferencial de formas lingüísticas mais conservadoras:o falante, para satisfazer às expectativas sociais, procura evitar nes

ses contextos formas próprias do vernáculo.Assim, inovações comuns na língua falada — já aceitas, muitas

vezes, até em situações formais de fala — não são, de imediato, aceitas na escrita, chegando, inclusive, a receber condenação explícita degramáticos e de outros estudiosos.

Essa situação toda dá ao lingüista preciosas indicações de possíveis processos de mudança (ver, por exemplo, Câmara Jr., )972b).Além dis so , sugere a possibilidade de se estabelecer uma espécie deescala progressiva de implementação das mudanças: elas costumamse desencadear na fala informal de grupos socioeconômicos intermediários; avançam pela fala informal de grupos mais al tos na estrutura socioeconômica; chegam a situações formais de fala e s ó então começam a ocorrer na escrita.

Deve ficar claro, nesse ponto, que nem todas as mudanças passam necessariamente por essa escala. Muitas permanecem socialmen

te est igmatizadas, o que lhes bloqueia o caminho da expansão poroutras variedades da língua, deixando-as como marcas identificado-ras de variedades sem prestígio social.

Por outro lado, vale lembrar que nem todas as diferenças entrefala e escrita são sinais de mudança; boa parte delas é simplesmentedecorrente de características próprias da oralidadeem oposição àquelaspróprias da escri ta.

Não custa observar, nesse sent ido, que o fato de a substânciada escri ta ser mais duradoura que a da fala p ermi tiu , ao l ongo dahistória da escrita, o uso e o desenvolvimento de, po r exemplo, recursos sintáticos que não são adequados à substância da fala (por nãoserem compatíveis comos limites da memória curta, coma qual ope

ramos na fala), como sentenças longas contendo sucessivas intercala-ções de outras sentenças.

A comparação entre fala e escri ta, nesse caso particular, apenas nos revelará especificidades de cada uma das modalidades, nãosignificando que a fala esteja "simplificando" os processos sintáticos, mas que os rea liza de maneira diferente .

' 3/VQÍ

RESÍ

 

Page 6: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 6/10

16 LINGÜÍSTICA HISTÓRICA

A r ea çã o dos falantes Neste.ponto, é interessante notarà mudança e OS ^ que, com bastante freqüência, apri-cuidados do lingüista meira reação dos falantes —em es

pecial dos grupos socioeconômicosmais altose quenormalmente não são iniciadores deprocessos demu

dança — às formas inovadoras é negativa. Eles as tacham de "erra-das'\ "incorretas", "impróprias", "feias".

Trata-se, na verdade, de juízos de valores que nada têm a vercoma forma emsi—• que, deumponto devistaestritamente lingüístico,Atão boa quanto qualqueroutra —mascom as peculiaridadesdas relações sociais.

Os grupos implementadores de mudanças têm geralmente baixo prestígiosociale sua fala —inclusive aquilo quenela é inovação—costumaser marcadade formanegativapelosgruposmaisprivilegiados econômica, social e culturalmente.

Só coma quebra progressiva desseestigma(istoé, mudançadevalorescorrelacionada commudanças nas relações sociais) é que asformas inovadoras adquirem condiçõesde se expandir para outrasvariedades da língua.

Nesseprocessode expansão (e isso é principalmente observávelna difusão geográficadas inovações)', a forma inovadora já em consolidação em sua área de origem -— percebida por centros urbanosmenores como característicade centros de maior prestígio— podeser-adotada como parte deum processo maisamplo de busca de identificação (cf. Chambers e Trudgill, 1980).

Outras vezes, uma comunidade(principalmente quando pequena e com a rede de relações internas bastante firme) pode desencadear umprocesso demudança para marcar suadiferençaemrelaçãoa grupos falantes de outras áreas.

Issofoi observadopor WilliamLabov (1927-)—lingüista norte-americano, criador da teoria da variação — na ilha de Martha's Vi-neyard (costa do Estado de Massachusetts, EUA). A comunidade,constituída basicamente de pescadores e agricultores, viua ilha inva

dida por veranistas do continente, o que, de algumaforma, interferiu em padrões tradicionais de^vida. 0

Os falantes (emespecial aqueles quetêmumaatitude positivaemrelaçãoà ilha),numa espécie de reaçãoà presença dos veranistasde fora e como forma de marcar sua ident idade como membros dacomunidadeda ilha, intensificaramum processode centralização dabase dos ditongos \ay\ (como em pie, príde, time) e \aw\ (como emhouse, out, mouth).

A 1'EHCIil'ÇAO OA MUDANÇA

unmZTZf^30 os linsiiistas que elaboraram «"«toHzaçâo d!bat doZttH ree,straram na<i"ela área uma centra-

tênaa de um a clara correlação entre uma atitude pós™» com\»t

comDlex01?,^SH'm• r 3mudança lingüistica «<a «volvida por umceTeí"ui:pt;/ór,sociais que podem a*»-*, v^ z

deta.hes no CapS 5) "^ "^ V"taUde da líniua <maísem linEgüísrticfhSicrf dÍmenSÔeS qU e ,em sid° ««envolvida.

b«<Er,XsKSr5»-»—**•»

otrabalho dedS^ •JU'Z°S de VaI°r d° Senso comum P*™

c omum o ue ra/:^^Clarame"'M°l.Vâ!°fe,de senso

Em lingüística, uma das maneiras de começa' ar»« l..« acos,umar.s.aolhar alíngua como uma reaIidaSerotónéa buscando compreender as bases dessa heterogeneidadTZr f 'mente avariedade da língua no espaço^m^TuZt

 

Page 7: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 7/10

2 sCO >...1 -H

;.•.••' rn

:* ?

,'••'

d..0 n

i.í ./ L_

U

3JJQm

CO CJ

1

18 LINGÜÍSTICA HISTÓRICA

ciai e no tempo uma das realidades que mais reações sociais precon-

ceituosas susci ta.

Essacompreensãoserá, alémdisso,indispensável para quemespecificamente pretende estudar a história das línguas, já que é de talheterogeneidade que emerge a mudança.

Um dado empírico fundamental:qualquer língua humana

é sempre umconjunto de variedades

Um do s desafios,

por tan to , pa ra quem

c omeça a e st ud ar ahistória das l ínguas éjustamente aprender

a lidar com a realidade heterogênea das línguas humanas. Isso, nomais das vezes, exige um rompimento radical com a imagem dalíngua cultivada pela tradição gramatical e veiculada pela escola, imagem quehomogeneiza a realidade lingüística, cristaliza uma certa variedade como a única, identificando-a com a língua e excluindo todas as outras como "incorretas".

A lingüística tem mostrado quenão existe língua homogênea:todaequalquer língua é um conjunto heterogêneo devariedades. Nes

sesentido, quando usamos rótulos como português, árabe, japonês,chinês, turco paradesignar realidades lingüísticas, não fazemos referência a uma realidade homogênea ou a um padrão único de língua,mas sempre a umconjunto de variedades, podendo algumas atéserininteligíveis entre si, como, por exemplo, o chinêspequinês eo chinês cantonês; ou o italiano da Calábria (sul da península itálica) eo italiano de Bérgamo (norte).

Cada variedade é resultado das peculiaridades das experiênciashistóricas e socioculturais do grupo quea usa:comoelese constituiu,como ésuaposição na estrutura socioeconômica, como ele se organiza socialmente, quais seus valores e visão demundo, quais suas possibil idades de acesso à escola, aos meios de informação, e assim pordiante.

A esse respeito, dizbelamente o pensador russo Mikhail Bakh-t in (1890-1975):

Todas as linguagens [variedades] do plurilingüismo, qualquer que sejao principio básicodeseu Isolamento, são pontosdevistaespecíficossobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas especificasobjetais, semânticas e axiológicas. Comotais, todaselas po

A PERCEPÇÃO DAMUDANÇA 19

demser confrontadas, podemservirde complementomútuo entresi,opor-se umas às outras e se corresponderdialoglcamente. Comotais, ,elas se encontrame coexistem naconsciência das pessoas [...]. Comotais, ainda, elas vivemverdadeiramente, lutam e evoluem no plurilingüismo social. (1988, p. 98-9)

Num país como o Brasil, porexemplo, um grupo de pescadoresdo litoral tem uma história e uma experiência muito diferentes da

quelas vividaspor um grupo de vaqueiros do sertão. Assim também,um grupo queviveno campo tem história e experiências muito diversas dos grupos que vivem nas grandes cidades. No contexto das cidades, osgrupossocioeconômicosmaisprivilegiados sediferenciam, emhistória e experiências, dos grupos menos privilegiados. O mesmo sepode dizerde comunidades afastadas no tempo, como os brasileiros >L

do início do século XVII e os brasileiros dos fins do século XX. Dessa diferenciaçãodecorre o fato de cada um destesgrupos falai: diferentemente.

O português é, assim, falado diferentemente por falantes de Salvadorc por falantes de Porto Alegre. Em Salvador ou em Porto Alegre, falantes de classe socioeconômica alta falam diferente de fal antes de classe econômica baixa. Os falantes falam diferentemente em

situações formais (num discurso, por exemplo) e em situações infor

mais (numa conversa de bar, por exemplo). As falas rurais diferemdas urbanas. Falantes do sécu loXI I I f a lavam diferentemente de nós.

E os exemplos sesucedem, revelando uma complexa rede de correlaçõesentre variedades lingüísticas e fatores sociais, culturais, geográficos, estilísticos c temporais.

Do ponto de vista exclusivamente lingüístico (isto é, estrutural,imanente) , as var iedades se eqüivalem e não há como diferenciá-lasem termosde melhor ou pior, de certo ou errado: todas têm organização(todas têm gramática) e todas servem para articular a experiência do grupo que as usa.

A diferença de valoração das variedades (à qual nos referimosacima)se criasocialmente: algumas variedades, por razõespolíticas,sociaise/ou culturais, adquirem uma marca de prestígio(normalmente

trata-se daquelas variedades faladas por grupos privilegiados na estrutura social de poder) e outras não (cf. Gnerrc, 1985).

No casoda sociedade brasileira, por exemplo, as variedades rurais não têmprestígiosocial;só algumas variedadesurbanas (não todas)é queo têm. Essasvariedades prestigiadasconstituemo quechamamos de normaou variedadepadrão; elas representam um ideal de

MA"i LUSIVO

Page 8: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 8/10

 

Page 9: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 9/10

"TJ S

H

>

m

•— •x>

7?1 >

!—

:_ i

rr .

x

Or~

Ü"J Cl J O)

75

m <

CO U

12 LINGÜÍSTICA HISTÓRICA

a)as palavras autônomas podem setornar morfemas derivacio-

nais. A esse respeito, Câmara Jr. (1979, p. 116) mostra como advérbios do intigo indo-europcu passaram a ser prefixos em latim, depois de se anteporem ao verbo e a ele se aglutinarem. Por esseprocesso, deplacare ("acalmar a ira,' de alguém") obteve-se, pela ante-posição do advérbio sub e sua aglutinação ao verbo, supplicare (osefeitos sonoros da aglutinação — \b\ -» \p\ c \a\ -• |/ | — decor

rem de aspectos fônicos gerais no latim);b) sufixos podem desaparecer como morfemas distintos passando a integrar a raiz da palavra. É o caso do sufixo latino -m/w-, indicador de grau diminutivo, que perdeu seucaráter sufixai, integrou-seà raiz das palavras, transformando, dessemodo, uma palavra originalmente derivada numa palavra simplesque veio a substituir a anti-.ga palavra primitiva. Temos, hoje, por exemplo,em português, a palavra abelhaque não vem do latim apis, mas do diminutivo apicula;

c) o sistema flexionai pode mudar. Na passagem do latim paraas línguas românicas, por exemplo, desapareceuo sistemade flexãode caso. Em latim, a função sintática da palavra ha sentença —suarelação desujeito ou complemento do verbo —era marcada no interior da palavra por meio de terminações específicas, distribuídas emvárias declinações. Assim, um substantivo pertencente à segunda de-

clinação tinha a terminação -us, do nominativo, se ocorresse comosujeito {lúpus); a terminação -o, do dalivo, seocorresse como objetoindireto (lupo); a terminação -um, do acusativo, se ocorresse comoobjeto direto (lupum); e assim por diante. Naslínguas românicas, essas funçõessãomarcadas pela ordem—o sujeito, emgeral, antecedeo verbo e o objeto direto o segue; ou com preposições — o objetoindireto em português, por exemplo, é acompanhado da preposiçãoa ou para.Dizia-se, em latim, dare lupoalimentum e diz-se emportuguês dar alimento ao lobo.

Mudanças sin tá t icas

A sintaxe é o estudo da organização das sentenças numa língua. Para dar um exemplo de sintaxehistórica,pode-se tomar a quest ão d a ordem dos constituintes no interior da es tru tu ra da sentença.

Nessaperspectiva,um fato para o qualhá semprereferêncianosmanuais é a fixação da ordem dos constituintes na passagem do latimpara as línguas românicas: numa língua como o latim, em que aspalavras têm, como vimos acima,/flexão de caso para indicar sua fun

A PERCEPÇÃO DAMUDANÇA 23

ção sintática, suaordem na es tru tu ra sentenciai é mais livre. Perdidaessa flexão, a ordem se torna mais rígida, como nas línguas românicas.

Assim, era possível dizer em latim Paulum Maria amai (Maria

claramente sujeito e Paulum claramente objeto), mas cm português

l emos d e d iz er Maria ama Paul o .

Mudanças semânticas y^

A semântica trata da significação. Em lingüíst ica histórica, amudança semântica tem sido,abòrdada na perspectiva da palavra, isto é, como um processo que altera o significado da palavra.

Há várias Faxionomiàs dessas alterações quesão, em geral, discutidas cm conjunto-GQrrí as chamadas figuras de linguagem (metáfora, metonímia.hipérboje), porque se acredita que o processo de criação de figuras, hà~m~edidaem que é um processo gerador de novassignificações, tem conseqüência para a mudança de significado daspalavras.

Na semântica histórica, fala-se, po r exemplo, de processos quereduzem (restringem) o significado da palavra e de outros que ampliam o significado. Do primeiro tipo é o caso da redução do significado da palavra arreio que, no português medieval , designava qualquer enfeite, adorno, aparelhamento e que hoje designa apenas o conjunto de peças necessárias à montaria do cavalo ou a seu trabalhode carga (isto é, designa apenas o aparelhamento do cavalo para montaria ou carga).

Um exemplo do segundo tipo c a palavra revolução. Original

mente era um termo astronômico que designava movimento regular,sistemático e cíclico dos corpos celestes. Seu significado ampliou-seao ser int roduz ido no campo semântico da pol ít ica, passando a designar também movimentos sociais alteradores duma ordem estabelecida. Hanna Arendt, em seu l ivro Da revolução, faz , na perspec tiva do cientista social, um est udo dessa evolução, most rando como

no início dessa expansão semântica o termo tinha um significado demovimento social restaurador duma ordem anterior (ligado ao signi

ficado original de ciclo, volta) e , só mais tarde , adquir iu seu signi ficado atual de destruição de uma velha ordem e construção de um mun

do novo.

Um estudo tradicional nessa área é a etimologia, que busca recuperar a história de cada palavra, isto é, as relações que uma palavra tem com a unidade lexical de que se origina . Os resul tados desse

D,

mo

 

Page 10: A Percepcao Da Mudanca

5/11/2018 A Percepcao Da Mudanca - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-percepcao-da-mudanca 10/10

24 LINGÜÍSTICA h i s t ó r i c a

tipo de investigação são, normalmente, reunidosem dicionários eti-mológicos.

Pormeio do estudo etimológico, é possível recuperar, muitasvezes, a seqüência histórica das alterações do significado das palavras. Assim, porexemplo, a palavra rubrica, qúe hoje tem o significadode "assinatura abreviada", significou originalmente "terra vermelha";depois, "tinta vermelha"; mais tarde, "título doscapítulosdas leis escrito, nos antigos manuscritos, em tinta vermelha" (permanece ainda hoje o significado genérico de"título" ou"entrada");em seguida, "sinal", "marca" (ainda hoje corrente), chegando finalmente ao significado de"assinatura abreviada" (cf. Guérios, 1937,p. 157).

Mudanças pragmáticas

Àpragmática costuma-se atribuira tarefadeestudar o usodoselementos lingüísticos em contraste com o estudodas propriedadesestruturais desseselementos.Um exemplode pragmática histórica éa investigação do usodo termo vocêno tratamentodo interlocutor,

observando quem é tratado por você nos diversos momentos da história do português do fim do período medieval até nossos dias.Outro exemplo é o estudoda evolução das formas de reportar

o discurso de outrem na prosade línguas européias modernas, comofez Bakhtin (1979, parte III).

Mudanças lexicais

Aspalavras, como umadas unidadesda língua, sãoestudadasem todas as disciplinas lingüísticas: enfoca-se sua forma sonora (fo-nética/fonologia), sua estrutura-intema (morfologia), sua ocorrênciacorjttacojjsiimir^dajejitença (sintaxe), seu significado (semântica), seu uso (pragmática).

Omesmo sedá em lingüística histórica, como o leitor já deve

ter percebido. Pode-se enfocar asmudanças sonoras, morfológicas,sintáticas, semânticas e pragmáticas duma palavra.

Por outro lado, pode-se estudar historicamente a composiçãodo léxico, observando sua origem (abase latina do léxico português,por exemplo) e os diversos fluxos de incorporaçãode palavrasde outras línguas (oschamados empréstimos). Esse tipodeestudo noeixodo tempo secorrelaciona normalmente com o estudo mais amplo da

A PERCEPÇÃO DA MUDANÇA 2i

história cultural da(s) comunidade(s) lingüistica(s), na medida em queoléxico éum dos pontos em que mais claramente se percebe a intimidade das relações entre língua e cultura.

Parafinalizar este item sobre o que pode mudar nahistória duma língua, uma última palavra.Aclassificação que apresentamos aci

ma não deve sugerir ao leitor que asmudanças sedãode forma estanque em cada nível. Os níveis são divisões feitas pelos lingüistas comobjetivos analíticos, enquanto a realidade lingüística é uma totalidade, isto é, devemos estar alertas tanto para o fato de que as mudanças podem ocorrer em várias partes da língua, quanto para o fato deque essas diversas mudanças podem estar inter-relacionadas.

Um exemplo tradicional dessa inter-relação éo desaparecimento do sistema de casos do latim na passagem para as línguas românicas. Costumam osestudiosos dizer que o processo se iniciou com oenfraquecimento dos sons no final das palavras (uma mudança sonora,portanto) que afetou, em conseqüência, osmorfemas de caso (umamudança morfológica) e que culminou com a fixação duma ordemmais rígida dos constituintes da oração (uma mudança sintática).

Üma observação terminológica Neste como em outros

capítulos, aparecem ostermos inovador e conservador para designar respectivamente o elemento novo, isto é, a variante que seexpande alterando aspectos daconfiguração da língua; eo elemento velho, isto é, avariante que representa a configuração mais antiga na língua.

Oque queremos ressaltar aqui é que os dois termos não têm,em lingüística histórica, qualquer dimensão valorativa: não háem inovador um tom positivo, nem em conservador um tom negativo. Sãotermos apenas descritivos.