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Imagem, Percepção e AprendizagemProfessor autor: Dr. Raimundo Martins

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APresentAção

Apesar da distância, por alguma razão, sinto-me próximo de você. Isso é intrigante, porque você não me conhece e eu também não sei quem é você. Mas, desde que comecei a preparar esta disciplina, passei a pensar em você e, aos poucos, fui-me aproximando mesmo sem conhecê-lo(a). Não sei quem você é, onde está, de onde vem ou para onde vai. Mas posso dizer que já está presente, há algum tempo, em meus pensamentos, preocupações e, especial-mente, em meus planos para esta disciplina.

Esta disciplina tem como foco os três sistemas que possibilitam o desen-volvimento humano, particulamente o desenvolvimento artístico: fazer, per-ceber e sentir. Esses sistemas foram propostos por Howard Gardner (1997), e se referem ao estudo da percepção ao focar as relações entre arte e desenvol-vimento humano. Eles nos acompanham desde o nascimento e constituem o processo da percepção, moldam nossas ações, discriminações, afetos, o modo como percebemos, sentimos e experienciamos o mundo. Espero que, ao estudá-los, possamos compreender aspectos do desenvolvimento artístico e, consequentemente, as implicações para a aprendizagem.

dadoS da diScipLina

ementaAbordagem teórica sobre percepção e aprendizagem. As dimensões do real, do imaginário e do simbólico na imagem. Relações entre arte, imagem, me-mória e intenção artística. Relações entre percepção e organização do pensa-mento.

objetivoS• Conceituar percepção a partir de diferentes contextos e abordagens teó-

ricas. • Discutir a relação entre percepção, fala, ação e estruturação do pensa-

mento.• Estabelecer relações entre arte, imagem, memória e intenção artística, to-

mando como referência as representações simbólicas em suas dimensões individuais e no contexto das relações sociais.

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Unidade 1: Fazer (o SiStema qUe Faz)

Unidade 2: perceber (o SiStema qUe percebe)

Unidade 3: Sentir (o SiStema qUe Sente)

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São muitas as maneiras de abordar e discutir a percepção. Por essa razão, a percepção tem sido foco de interesse e estudo de filósofos e pesquisadores de campos de conhecimento tão diversos quanto a psicologia, biologia, física, educação, comunicação e, como é o nosso caso, as artes visuais.

A percepção ☑ pode ser entendida como um processo através do qual os indivíduos dão sentido a uma complexa teia de impressões, sensações, ações, interações e acasos do ambiente onde vivem e que os cerca. Dizendo de ou-tra maneira, percepção é o modo como as pessoas selecionam, organizam e interpretam essas informações e, a partir delas, constroem significados sobre isso que chamamos “realidade”.

A realidade ☑ é algo complexo porque envolve imagens, sons, cheiros, toques, ideias, símbolos, desejos, ficções etc. Quando falamos em realidade, referimo-nos a tudo que existe, tudo aquilo que podemos perceber, ou seja, tudo aquilo que existe fora ou dentro da mente. É por isso que dizemos que a percepção pode envolver processos ligados à mente, questões relativas à me-mória e outros aspectos: sensações, preconceitos, intuições etc., que podem influenciar e, até mesmo, alterar o modo como organizamos e interpretamos as informações que transformamos em percepções.

Agora, está claro porque a percepção é importante: é uma referência para as nossas relações com o mundo, com a realidade. Ela sinaliza, orienta e situa o modo como nos relacionamos com pessoas, objetos, ideias, práticas, teorias e, também, como os indivíduos nos veem e nos percebem nessas relações. Por meio da percepção posicionamo-nos no ambiente em que vivemos, pois ela estimula ao mesmo tempo em que guia nossas formas de expressão, recepção e seleção de informações. Assim, a percepção é um campo que abrange os processos de construção de sentido; envolve não apenas o indivíduo que per-cebe, mas, também, os objetos, ideias, sons, símbolos e imagens percebidos em um determinado contexto social e histórico.

Por todas essas razões, a percepção ganha importância como eixo que ope-ra as engrenagens do desenvolvimento humano e, de maneira mais específica, do desenvolvimento artístico. O elemento-chave desse desenvolvimento é a abstração ☑, ou seja, a capacidade de criar e se comunicar através de símbo-los. Em outras palavras, a abstração é uma capacidade que nos permite repre-sentar ideias, desejos e objetos, inventar e produzir imagens. Essa capacida-de se manifesta de maneira diversificada sob a forma de desenho, escultura,

UnIdAde 1 Fazer

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instalação, pintura, performance, fotografia, cartazes, gravura, vídeos, história em quadrinhos, filmes, tirinhas e muitas outras modalidades.

Instantâneas e, muitas vezes, simultâneas, nossas percepções fluem em espaços de representação ☑ que ora amenizam, ora acentuam defasagens entre a experiência visual e a capacidade de dar sentido, interpretar e avaliar seus significados de maneira crítica. Imagens e objetos artísticos envolvem a comunicação de informação e conhecimento subjetivos entre indivíduos e grupos sociais por meio de símbolos e objetos não traduzíveis, que não são passíveis de conversão em uma única linguagem. A percepção nos ajuda a compreender esses processos de comunicação, além de por em perspectiva a diversidade que os caracteriza e suas múltiplas formas de aprendizagem.

O fazer envolve os comportamentos de um organismo que podem ser verificados por meio de observação. Esses comportamentos incluem atos e ações triviais do cotidiano como piscar, encolher os dedos, cumprimen-tar pessoas, correr, nadar, digitar, cantar, comer etc. Embora muitos desses comportamentos possam ser silenciosos e, por isso mesmo, aparentemente imperceptíveis, não podemos deixá-los de fora uma vez que constituem atos importantes, como a realização das operações mentais. Alguns atos são ca-racterísticos de toda a vida animal, como, por exemplo, respirar ou excretar. Outros são específicos de certas espécies, como falar ou se preocupar com a aparência.

• Visão: Janelas para o mundo. Discovery Channel — Vídeo Abril, 1994.• Cérebro: o computador humano. Discovery Channel — Vídeo Abril,

1994.• Janelas da Alma (2001), direção de João Jardim e Walter Carvalho.

dicaS de FiLmeS

Sempre que você encontrar no texto o ícone:☑ — Você terá o desafio de pesquisar o significado da palavra e acrescentar ao glossário da disciplina. Converse com seu professor sobre o formato mais interessante para construir esse importante espaço de pesquisa.▶ — Consulte o AVA ou o CD da disciplina. Esse ícone indicará ações, tais como jogos e animações para exemplificar os conceitos aqui apresentados. Divirtam-se e aprendam!

oLho vivo

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1.1. o SiStema qUe Faz

A principal característica do sistema que faz é combinar pequenas ações isoladas que, aos poucos, vão sendo aperfeiçoadas e transformadas em sequ-ências ou movimentos mais complexos. Um bom exemplo é aprender a beber leite na xícara ou, ainda, aprender a comer com um garfo.

Prender o garfo entre os dedos requer uma ação específica, mas é necessá-rio conduzi-lo para o prato para colocar a comida e, em seguida, movimentá-lo na direção da boca sem deixar a comida cair e sem se machucar. Assim, se analisarmos a ação de comer, que pode ser considerada trivial, vamos nos dar conta de que ela envolve movimentos específicos (prender o garfo entre os dedos, colocar a comida no garfo, levá-lo à boca, abrir a boca etc.) que foram aprendidos e dominados através de muitas tentativas e erros durante um pe-ríodo da vida (a infância) até se tornar um movimento único e automático, ou seja, não é necessário pensar para realizar cada movimento dessa ação. Aná-lise semelhante poderíamos fazer em relação às ações de escovar os dentes, pentear o cabelo e muitas outras.

Essas ações do dia-a-dia, de certa forma simples ou até mesmo pouco sig-nificativas, uma vez aprendidas e dominadas permitem que desenvolvamos outras habilidades complexas e sofisticadas como escrever, tocar um instru-mento, pintar, desenhar, resolver problemas geométricos ou equações mate-máticas e assim por diante.

O sistema que faz é responsável pela organização dessas ações, desses esquemas comportamentais. Ele integra atos/movimentos desenvolvidos previamente, de maneira isolada, combinando-os e transformando-os poste-riormente em atividades mais elaboradas, com maior nível de complexidade.

É surpreendente como atos/movimentos inicialmente desorganizados e desconectados, aos poucos, vão sendo articulados e incorporados como par-te de uma ação única e passam a ser executados sem interrupções, de manei-ra contínua e integrada. Uma sequência de movimentos isolados e irregular, gradativamente, transforma-se em uma ação integrada, configurando uma unidade de comportamento coerente e lógica.

O que diferencia essas ações, agora transformadas em atividades, é o grau de organização interna, ou seja, uma ordenação hierárquica dos movimen-tos que possibilita flexibilidade na maneira de realizá-los e, principalmente, uma sensibilidade a expectativas ou demandas do ambiente e do corpo. Por exemplo, ao cumprimentar uma pessoa, acionamos dezenas de movimentos desenvolvidos isoladamente, mas que, uma vez dominados, aprendidos e in-corporados ao nosso cotidiano, configuram o gesto de cumprimentar. Essa organização hierárquica de atos/movimentos, devidamente combinados numa sequência, é percebida com uma ação única, integrada.

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1.2. diFerençaS entre o mUndo animaL e o mUndo hUmano

Quando estudamos os atos e ações de organismos vivos, observamos que as diferenças entre o mundo animal e o mundo humano se acentuam. No mundo animal, os seres nascem com muitos padrões motores (atos, ações) completos, prontos para serem utilizados. Isso diminui consideravelmente as diferenças entre os fazeres do bebê e do adulto, no caso dos animais.

No mundo humano, acontece o contrário. O bebê nasce com poucos padrões motores (atos, ações) completos e, por essa razão, necessita de um período de aprendizagem e desenvolvimento muito mais longo. Em outras palavras, os seres humanos precisam de mais tempo para dominar, organizar e aprender as ações e movimentos que possibilitarão sua interação com eles mesmos, com o outro e com o mundo. Isso aumenta de maneira considerável a diferença entre o bebê ou entre a criança e o adulto. Assim, fica claro que os seres humanos gastam mais tempo aprendendo a aprender.

Por essa razão, bebês humanos dedicam muito mais tempo e energia explorando e experimentando movimentos/atos/ações que não estão di-retamente relacionados à satisfação de suas necessidades básicas, primárias (alimentar-se e dormir), como acontece com os demais animais. Essa dife-rença nos ajuda a entender porque os bebês parecem estar imbuídos de uma constante vontade de se exercitar, atividade que tem como foco o princípio do brincar. Brincar como uma forma de aprender, como uma maneira agra-dável de experimentar a combinação dos atos e ações que, gradualmente, são transformados em atividades mais complexas e duradouras. Essas habilida-des aprendidas durante a infância são incorporadas ao cotidiano, passam a fazer parte de uma prática cultural que identifica modos de ação e de intera-ção mediados pelo corpo e transmitidos, inicialmente, por meio do núcleo familiar e, posteriormente, pela comunidade (escola, por exemplo) para as gerações seguintes.

Construídos de maneira gradual durante a infância, os atos/ações/movi-mentos são reconhecidos como habilidades que, transformadas em ativida-des, tornam-se cada vez mais complexas. Os processos de elaboração e refi-namento do sistema que faz não se esgotam na infância e nos acompanham durante toda a vida. Eles constituem os modos de comunicação que utiliza-mos para interagir por meio do corpo, da fala, de símbolos, imagens etc. Esses modos de comunicação são importantes porque funcionam como referência para a percepção, a aprendizagem e o ensino dessas práticas. A ausência de uma habilidade comunicativa simbólica ou, dizendo de outra maneira, de comportamentos culturais de interação inibe ou até mesmo restringe a apren-dizagem e o ensino desses procedimentos complexos — do sistema que faz — para outros membros da espécie.

sistema cultural ☑ é o conjunto de práticas humanas criadas e preserva-das por meio da comunicação e cooperação entre os indivíduos de uma co-munidade ou sociedade. Com base em interações sociais, essas práticas estão

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associadas à capacidade de simbolização dos indivíduos e permeiam todos os aspectos da vida, como modos de sobrevivência, regras de comportamento, instituições, crenças, valores materiais, espirituais etc.

O sistema cultural nos oferece a possibilidade de codificar e armazenar informações sobre o desenvolvimento da cultura ao refinar e aperfeiçoar não apenas as habilidades, mas, principalmente, as atividades que elas envolvem. Por exemplo, as muitas possibilidades de que os artistas dispõem ao escolher e usar pincéis, lápis, goivas, cinzéis, pranchas. Desse modo, o sistema cultu-ral, além de preservar, dá-nos a possibilidade de criticar práticas artísticas de outros períodos e de abrir caminho para que também possamos criar a partir delas. Assim, podemos dizer que memória, coordenação e integração são elementos-chave para o desenvolvimento do sistema que faz. Alguns exem-plos do modo como esse sistema opera e se desenvolve nos seres humanos podem ajudar a entender o quanto ele é importante para o nosso aprendiza-do.

Ao nascer, para se alimentar, o bebê suga o peito da mãe de maneira ir-regular, com dificuldade. Após algumas tentativas, gradativamente a sucção fica mais hábil ao mesmo tempo em que o bebê começa a se mostrar sensível a eventos visuais ☑: para de sugar o peito quando algum outro objeto ou estímulo entra no seu campo visual. Por volta dos dois ou três meses, o bebê consegue alternar as duas ações, sugar e olhar, ou seja, foca uma imagem ou objeto no seu campo visual. A partir dos seis ou sete meses, aproximadamen-te, o bebê já está sensível a influências do contexto e começa a incorporar outros tipos de comportamento/movimento: arrastar-se, sentar, ficar de pé e assim por diante.

Esses exemplos mostram como movimentos inicialmente isolados e sem controle, aos poucos, vão sendo coordenados, organizados, desenvolvidos e integrados, sendo transformados em habilidades mais complexas que permi-tem a interação do bebê/criança com o ambiente, a família, a escola, ou seja, o mundo ao seu redor.

1.3. atividade SimbóLica

O desenvolvimento do sistema que faz é decisivo para o nosso cresci-mento e, principalmente, para a nossa aprendizagem como seres humanos. Mas, para que esse sistema possa operar de maneira eficiente, é necessário relacioná-lo a conceitos. Podemos até mesmo dizer que o sistema que faz depende de conceitos.

Conceito ☑ é um tipo de ação mental em que formulamos ou represen-tamos ideias por meio de palavras. O conceito nada mais é que a articulação de ações/atos/movimentos na mente. Conceitos permitem que expressemos pensamentos, opiniões e concepções sobre o mundo e sobre nós mesmos. Dizendo de outra maneira, conceitos são palavras que representam ideias, coisas, pessoas, imagens. Os objetos existem independentemente de estarem

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presentes no nosso campo perceptual ou de agirmos sobre eles, mas os con-ceitos podem torná-los “presentes” mesmo que não possamos vê-los.

Nesse sentido, o conceito opera o que podemos chamar de função rever-sível ☑, ou seja, ele nos dá a possibilidade de passar das ideias para as palavras e, vice-versa, das palavras para as ideias. Ideias e palavras são representações que fazemos por meio de imagens, mas imagens construídas na mente. A me-lhor maneira de compreender esse processo é fazer uma atividade.

As palavras são uma maneira de representar ações/atos/movimentos do sistema que faz. Por exemplo: falar, correr, dirigir, pensar, aprender, ensinar e assim por diante. Essas palavras incorporam e articulam as habilidades de-senvolvidas pelo sistema que faz. Elas são o que chamamos de verbo e, em qualquer língua, são os verbos que indicam ação, movimento. Por isso, quan-do estudamos uma nova língua, logo nas primeiras lições, deparamo-nos com a necessidade de aprender a conjugar os verbos: no presente, no passado e

Pense em uma ideia, qualquer ideia! Represente-a por meio de uma ou algu-mas palavras. Escreva as palavras e/ou frase!

Agora faça o caminho contrário: a função reversível. Escreva uma palavra ou represente com palavras a ideia que lhe ocorre neste momento! Uma ideia qualquer. Agora, represente as palavras, a ideia que você pensou, com uma imagem. Você pode desenhar/pintar/rabiscar a imagem. Você pode, in-clusive, projetar, na sua mente, a imagem representada pelas palavras. Como você pode observar, esse exercício é um exemplo simplificado da manei-ra como ações do sistema que faz relacionam-se e, de certa forma, são dependentes de conceitos.

SUgeStão de atividade

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no futuro. São eles que, ao indicar ação, movimento, possibilitam que nos desloquemos por meio de imagens e ações mentais. Quando digo, por exem-plo, “vou viajar”, ou “ontem não pude estudar”, ou, ainda, “segunda-feira é feriado”, estou-me deslocando no tempo e no espaço por meio de imagens e construções mentais. Essas construções mentais são o que chamamos de abs-tração, ou seja, a capacidade de representar tudo que existe dentro ou fora da mente. Graças à capacidade de abstração, podemos representar ideias, obje-tos e desejos, podemos também criar e nos comunicar por meio de símbolos, manifestações que caracterizam a atividade artística.

Assim, pelas várias razões apresentadas aqui (Unidade 1), podemos dizer que o sistema que faz é importante e até mesmo crucial para a resolução de problemas. Ele nos permite dominar e organizar ações isoladas combinando-as num todo que faz sentido (ato de comer, escovar os dentes, dirigir um car-ro, desenhar, pintar etc.). Colocando de outra maneira, o sistema que faz ar-mazena e memoriza um vasto repertório de ações/movimentos/habilidades aprendidas que podemos escolher e utilizar para a realização de muitas outras atividades. Além disso, essas habilidades aprendidas são incorporadas a sis-temas culturais e passam a ser representadas por meio de símbolos (letras, números, formas, cores, sons, imagens etc.).

Os sistemas simbólicos ☑ nos dão a possibilidade de fazer cálculos, pro-jetar espaços, estruturas e prédios, conceber objetos, formas e instalações, combinar cores e materiais, desenvolver muitas outras coisas por meio de operações e processos mentais.

Desse modo, podemos dizer que a diferença entre a criança que faz e o ar-tista que faz está no grau de integração do indivíduo com os outros sistemas: o sistema que percebe e o sistema que sente. Essa diferença também se faz presente no modo como cada pessoa tem acesso aos sistemas simbólicos e, principalmente, no modo como se apropria e utiliza materiais simbólicos.

Veja o vídeo Cérebro: o computador humano. Discovery Channel, 1995. Disponível no Youtube, em duas partes.

dica de FiLme

Leia o texto “O Instrumento e o Símbolo no desenvolvimen-to da criança”. Com base nas ideias da Unidade I, planeje uma ati-vidade pedagógica em que o fazer (uma ação ou atividade) sugi-ra ou proponha, claramente, a percepção, discussão e aprendizagem de um conceito.

SUgeStão de atividade

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As capacidades sensoriais são importantes porque permitem discriminar, distinguir e discernir impressões e sensações do ambiente ou contexto. No mundo animal, são muitos os exemplos dessas capacidades, evidenciando que tal capacidade não é privilégio dos seres humanos.

Os conhecimentos prático e teórico relacionado à forma e suas expres-sões sensoriais são o que chamamos percepção visual ☑. Mas é necessário lembrar que a percepção visual não opera sozinha; ela está vinculada a outros tipos de processos perceptivos e, de certa forma, depende deles para que os organismos tenham uma vida saudável. Como já dissemos, são muitas as ma-neiras de perceber e muitas as formas de interação entre os sistemas (fazer, perceber, sentir).

2.1. o SiStema qUe percebe

No mundo animal, a percepção manifesta-se e opera de maneiras diversas. O morcego, por exemplo, emite sons de alta frequência que mapeiam obstá-culos e orientam seus voos, funcionando como um radar sofisticado, de gran-de precisão. Os cães, por sua vez, têm uma acuidade auditiva que ultrapassa, em muito, a percepção auditiva humana. Em sessões de adestramento, treina-dores de cães podem comandar exercícios utilizando um apito cujo som não é perceptível ao ouvido humano, apenas aos cães.

Podemos, ainda, citar o exemplo emblemático do salmão que é capaz de nadar até 5.000 quilômetros para deslocar-se das áreas de crescimento e ali-mentação, nos oceanos, para os locais de reprodução, em geral, rios de água doce localizados no continente. Ao retornar às zonas de reprodução, o salmão nada durante semanas, enfrentando fortes correntezas, lançando-se e saltan-do obstáculos, como pedras, quedas d’água e rápidas corredeiras. A pergunta que intriga é: que tipo de percepção orienta o salmão, guiando-o de maneira segura à área de reprodução onde nasceu?

Intrigante, também, é o caso do peixe elétrico ou poraquê. Esse peixe se protege dos predadores, utilizando o mesmo recurso que lhe serve para cap-turar suas presas ou para buscar alimento: descargas elétricas, ou seja, cho-ques que podem chegar a 500 volts.

Em termos da visão, a mosca é uma referência de capacidade sensorial no mundo animal. Seus olhos decompõem padrões de luz muito mais amplos e

UnIdAde 2 Perceber

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complexos que os do olho humano. Também não podemos esquecer o exem-plo da coruja, ave exaltada pela sua acuidade visual, mas, principalmente, pela percepção altamente desenvolvida para a visão noturna. Esses são apenas al-guns exemplos, dentre muitos que existem, das capacidades sensoriais e per-ceptivas de outras espécies.

Relembrando características do sistema que faz, ele gera, organiza e com-bina ações, movimentos e esquemas que envolvem os membros e músculos do corpo. Essas ações, uma vez desenvolvidas e refinadas, são internalizadas por meio de operações mentais que possibilitam seu armazenamento e me-morização. Em contraposição, é importante salientar que o sistema que per-cebe gera uma única ação: perceber e fazer discriminações no mundo exter-no. Assim, o sistema que percebe envolve apenas os órgãos dos sentidos, ou seja, as discriminações ou diferenciações que esses órgãos podem fazer. Ini-cialmente, percepções e diferenciações do mundo externo; posteriormente, discriminações e distinções do mundo interno ou do mundo das operações mentais.

2.2. percepção de orientação oU tropíStica

A palavra tropística ☑ é diferente e incomum, mas pode ser facilmente compreendida. A tropística tem a ver com o sentido, com o modo como um organismo orienta-se, aproxima-se ou afasta-se de uma fonte de estímulo ou atração. O impulso ou sensibilidade que influencia o organismo é sempre ex-terno e unilateral.

Essa sensibilidade a estímulos externos e específicos manifesta-se durante o período pós-natal, e alguns desses estímulos garantem a sobrevivência dos seres. No caso dos animais, o filhote recém-nascido é capaz de localizar a mãe e, consequentemente, evitar e proteger-se da ameaça do inimigo predador.

Nos humanos, a percepção tropística ☑ dos bebês é sensível a aspectos e mudanças do ambiente, do contexto. Inicialmente, essa percepção se orienta a partir do movimento, do deslocamento de pessoas ou objetos. Orienta-se, predominantemente, a partir de massas, linhas e contornos cujo foco princi-pal concentra-se nas extremidades. As células corticais do cérebro são esti-muladas e, a partir desses estímulos, o bebê humano necessita de referências que o orientem no contato inicial com o ambiente. Portanto, massas, linhas, contornos e vértices são referências, pontos de orientação tropística para o bebê.

As inclinações ou tendências perceptuais presentes nos organismos, desde o nascimento, são flexíveis e, portanto, passíveis de serem dirigidas, guiadas para determinados tipos de interesse ou comportamento. Por exemplo, gali-nhas, logo após o nascimento, podem ser treinadas a ter preferência por de-terminadas cores. Pintinhos são capazes de aprender a bicar triângulos e não se aproximar de círculos. Há, também, o exemplo clássico conhecido como imprinting, um tipo de discriminação que envolve a percepção. No caso desse experimento científico, quando os pintinhos saem dos ovos, a imagem ou fo-

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imagem, percepção e aprendizagem

tografia de uma galinha é colocada junto a eles. Após alguns dias, os pintinhos passam a seguir e acompanhar a fotografia da galinha por todos os lugares, como se estivessem seguindo a mãe. Por essa razão, esses mecanismos ou in-clinações perceptuais que se revelam nos organismos, desde o nascimento, são chamados percepção preferencial.

2.3. percepção preFerenciaL

A percepção preferencial ☑ abrange aqueles estímulos para os quais, por alguma razão, os organismos são inclinados ou atraídos a se orientar. Os prin-cipais estímulos preferenciais são luz, movimento, contraste, cor e matiz.

No caso desses estímulos, pode-se dizer que há uma hierarquia de interes-ses em função do ambiente onde nascem os organismos e das particularida-des ou características dos estímulos. A hierarquia da percepção preferencial é flexível. Por ser flexível, essa hierarquia é passível de ser alterada por influên-cias/mudanças do próprio ambiente, mas, principalmente, por meio de trei-namento. Vale ressaltar que a hierarquia da percepção preferencial tem limites que devem ser respeitados. Esses limites são o próprio desenvolvimento do organismo.

Assim, é importante observar que a percepção preferencial desenvolve-se a partir de experiências prévias a que o organismo esteve exposto. Fami-liarizados com tais experiências, experiências aprendidas, os organismos tendem a preferir uma configuração nova, ou seja, outras possibilidades de percepção preferencial. Em momentos de estresse, a percepção preferencial ganha importância porque se torna dominante. Em situações de risco, medo ou ameaça, os organismos comportam-se ou defendem-se, fazendo uso da percepção preferencial; reagem, repetindo ações/mecanismos aprendidos previamente, usados em circunstâncias anteriores em que foram bem-suce-didos.

Nos seres humanos, a percepção preferencial é especialmente importan-te para os indivíduos que estudam, interessam-se ou envolvem-se com ati-vidades estéticas. Os estímulos que envolvem os bebês, o contexto em que crescem, ou os ambientes que frequentam, durante a infância, podem ser ex-periências decisivas no sentido de criar uma predisposição para atividades estéticas. Não podemos afirmar que tais experiências definem ou sinalizam a possibilidade de uma carreira artística, mas podemos dizer que determinados tipos de percepção preferencial contribuem para a formação de indivíduos sensíveis, mais predispostos a cultivar interesses e valores artísticos. Assim, as percepções tropística e preferencial são dominantes entre muitos organismos ou entre muitos seres vivos, mas a percepção preferencial é a mais utilizada no cotidiano.

Nos animais considerados superiores, nesse caso, mamíferos e pássaros, essas percepções tornam-se, aos poucos, menos importantes pelo fato de se associar a um sistema perceptual que se desenvolve gradualmente. Esse siste-ma é conhecido como gestalt.

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2.3. percepção preFerenciaL

Gestalt ☑ é a capacidade de discernir e reconhecer estruturas, formas e padrões mesmo quando eles estão em contextos diferentes. Estudos sobre a gestalt possibilitaram a sistematização de certas normas que regem a per-cepção humana das formas, facilitando a compreensão de imagens e ideias. Essas normas têm como fundamento ações e operações do cérebro, ou seja, o modo de agir e operar do cérebro no processo de percepção. Alguns princí-pios e características que definem essas normas são semelhança ☑, proximi-dade ☑, pregnância ☑ etc.

A familiarização e a convivência com um determinado estímulo visual por algum tempo e a partir de várias perspectivas capacitam os organismos a reconhecê-lo independente do contexto em que ele é apresentado. Um bom exemplo desse tipo de gestalt é a figura geométrica de um círculo. Somos capazes de reconhecer a forma círculo na roda de um carro, na bandeira do Brasil, numa bola em movimento — independente da cor, do tamanho etc. As figuras geométricas (círculo, quadrado, retângulo, cone etc.) são gestalts comuns que povoam nosso cotidiano não apenas em termos físicos, mas em termos simbólicos.

Pare um pouco e observe a forma dos móveis e utensílios que você utiliza em casa: cama, mesa, sofá, fogão, geladeira. Pense no espaço escolar, no for-mato das salas de aula, nas carteiras, na escrivaninha do professor, nos livros, cadernos, lápis, canetas e assim por diante. De maneira geral, podemos ob-servar que os objetos e espaços do nosso cotidiano são, predominantemente, formas geométricas. Essas formas dominam o nosso dia-a-dia e, consequen-temente, são formas e imagens predominantes na nossa mente, no nosso imaginário. Mas, para articulá-las e compreender como elas funcionam, são necessárias informações espaciais e temporais, ou seja, temos que acionar percepções preferenciais experimentadas e aprendidas anteriormente.

Na Figura 1, o círculo é a figura dominante. Duas referências aprendidas orientam a nossa percepção de círculo: o contorno externo da imagem, as extremidades e o núcleo central: o círculo, ou bola branca, se preferirmos. As figuras que ocupam o espaço entre as extremidades e o núcleo central se

Você se lembra? Na disciplina Teorias da Arte e da Cultura que integra o livro 2 da Coleção Tramas & Urdumes, a autora apresentou o termo “gestalt” no método formalista de compreensão de imagens (confira na página 119). No livro 3, o termo aparece novamente, na disciplina Compreensão e Interpretação de Imagens (confira na página 176). Qual a principal semelhança entre as duas citações?

para reFLetir

Figura 1

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imagem, percepção e aprendizagem

assemelham a triângulos ou a pássaros voando, deslocando-se para fora do círculo, que sugere um movimento de expansão da própria forma.

Os ruídos ou eventos visuais ☑ internos ao círculo (triângulos, pássaros, movimento de expansão etc.) não interferem em nossa percepção de círculo, porque essa é uma gestalt aprendida, e, como tal, é reconhecida independente do contexto em que é apresentada. Podemos, também, brincar com a alter-nância entre figura ☑ e fundo ☑, ora visualizando como fundo as figuras em branco, ora as figuras em preto.

Na Figura 3 é oferecido outro exemplo instigante. A figura dominante é a mesma, um círculo. Dizendo melhor, uma sequência de círculos ou de anéis que sugerem a ideia de um túnel.

Fixe o olhar na imagem e feche o olho direito. Você terá a sensação visual de que a entrada do túnel está a sua direita. Agora repita o exercício fechando o olho esquerdo. A sensação visual é de que a entrada do túnel deslocou-se para a esquerda. Mas, se você concentrar seu olhar no centro dos círculos, terá a impressão de que eles estão parcialmente sobrepostos, ou seja, um em cima do outro.

Como você pode observar, são muitas as possibilidades de criar gestalts, de ir além das formas comuns que orientam e, de certa forma, dominam o nosso cotidiano. Mas, vamos examinar outras imagens e fazer exercícios com diferentes formas de gestalt. Observe cuidadosamente:

Se você fixar seu olhar no centro ou na parte interna às duas linhas sinuo-sas que compõem essa imagem (Figura 4), você verá uma taça de vinho ou de champanhe. Agora faça o inverso. Fixe seu olhar na parte externa. Lateral às duas linhas, você verá o contorno de duas faces como se estivessem se apro-ximando para beijar. Nas duas situações desse exercício, o fundo da imagem é branco, mas dependendo do ponto em que você foca o olhar, você vê imagens diferentes. Na primeira situação, uma taça de vinho; na segunda, duas faces quase se beijando.

No próximo exercício, está em jogo o mesmo princípio ou gestalt, mas a imagem é um pouco mais elaborada.

Figuras 2 e 3

Figura 4

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imagem, percepção e aprendizagem

Fixe o olhar no centro da imagem e verá uma tocha iluminada por uma flama de fogo. Ao deslocar o olhar para as laterais (direita e esquerda) ou para as partes externas da tocha, você também verá duas faces. Nesse exercício as faces têm olhos e estão fitando uma a outra. Além disso, duas gestalts de cír-culos, uma em cada lateral ou em cada face, sugerem orelhas. O fundo da imagem também é branco.

A Figura 5 é um exemplo clássico de gestalt. Se você ainda não conhece esse exemplo, observe a imagem com atenção.

Se você fixar o olhar no centro da imagem, abaixo da mancha preta, você verá os olhos de uma senhora idosa ou a orelha de uma jovem. Outros pontos de referência são: a boca da senhora idosa, numa percepção, ou a gargantilha da jovem, em outra; o nariz da senhora idosa ou o queixo da jovem.

A gestalt, se exercitada e desenvolvida, tem potencial para aguçar a percepção e o discernimento de formas visuais no ambiente em que vi-vemos antes que a forma específica (aprendida) possa ser reconhe-cida. Mas, também é importante chamar atenção para o fato de que os indivíduos têm inclinação para selecionar ou criar determinados tipos de gestalt.

As diferentes formas de gestalts são aprendidas durante a infância, mas os indivíduos, principalmente aqueles que estudam ou se interessam por arte, deveriam ser estimulados a criar suas próprias gestalts. Elas não se esgotam, porque é impossível exaurir o mundo e, consequentemente, nossas percep-

Figura 5

1. Observe, detalhadamente, a imagem “La Familia del General”, do artista mexicano Octavio Ocampo. Descreva a figura ou as figuras que a ima-gem propõe.

2. Agora observe a mesma imagem ampliada, identifique e descreva as dife-rentes figuras e gestalts que a compõem!

Na disciplina Compreensão e Interpretação de Imagens que integra o livro 3, fo-ram apresentadas diferentes metodologias de análise de imagens. Que tal uti-lizarmos a metodologia proposta por Abigail Housen nos seguintes estágios descritivos: Narrativo, Construtivo, Classificativo, Interpretativo e Re-criativo. Consulte a página 179 para relembrar a proposta e bom exercício!

exercício 1: atividade no ava

Para conhecer outros trabalhos do artista Octavio Ocampo, acesse o site: “http://www.octavioocampo.com.mx”.

Saiba maiS

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ções do mundo. De maneira gradativa e silenciosa, elas são construídas desde os primeiros dias de vida.

Nas primeiras semanas de vida, o bebê foca sua atenção nos movimentos da mãe, especialmente no rosto, olhos e contrastes que eles sugerem. Por vol-ta dos três meses, o sistema visual começa a distinguir as primeiras formas ou configurações semelhantes ao rosto. Aproximadamente aos quatro meses, o bebê já é capaz de diferenciar o rosto humano de outros parecidos. Sua refe-rência é a forma oval do rosto e dois pontos negros mais ou menos no centro, os olhos. Entre o quinto e o sexto mês, o bebê reconhece, exclusivamente, a mãe. Simultaneamente, outras formas presentes no ambiente vão sendo, gra-dativamente, aprendidas e discriminadas, construindo gestalts de brinquedos, chocalhos, móbiles, de outras pessoas da família e assim por diante.

Em seguida, a percepção gestalt possibilita o reconhecimento de outros objetos, brinquedos e pessoas, independente de tamanho, contexto, cor ou orientação. Progressivamente, novas gestalts são construídas como resulta-do de uma longa convivência da criança com um sistema visual-perceptivo instigante e complexo. Uma vez experienciadas, aprendidas e armazenadas, essas gestalts passam a constituir um repertório de formas, imagens, conceitos e significados incorporados a sistemas simbólicos. Dificilmente, essas gestalts são extintas ou apagadas.

Então, podemos dizer que o princípio que rege o sistema que faz é a combinação e integração de ações em práticas e habilidades ordenadas; e o princípio que dirige/organiza/constitui o sistema que percebe gera discri-minações cada vez mais elaboradas e refinadas. Os seres humanos desenvol-vem a capacidade de criar novas gestalts: combinam, associam e transformam formas complexas, recriam ou inventam outras imagens.

Assim, o aluno, artista ou professor criativo é aquele indivíduo com uma percepção de gestalt ampliada, capaz de identificar e criar novos padrões e formas em que outros observam apenas configurações comuns. Nos seres hu-manos, a gestalt pode continuar a se desenvolver, ou seja, gerar novas discri-minações, mais refinadas e sofisticadas, durante toda a vida. É uma habilidade determinante para o ensino e a aprendizagem da arte. Fundamentados nesse princípio e tomando como referência as figuras abaixo, podemos dizer que, em termos da percepção visual, o todo é diferente da soma das partes.

Figuras 6 e 7

Um prédio refletido na água de maneira invertida é um exemplo de uma gestalt livre.

para reFLetir

Assista ao vídeo “Visão — Janelas para o mundo”.

dica

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Leia o texto “O desenvolvimento da percepção e da atenção”. Selecione duas cenas do vídeo nas quais o sistema que faz e o sistema que percebe estejam operando de maneira integrada. A partir das cenas escolhidas, pense e proponha uma estratégia/atividade pedagógica a ser desenvolvida em sala de aula. Justifique a escolha das cenas e a estratégia/atividade proposta.

probLematizando

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Se considerarmos o grande volume de pesquisas e trabalhos existentes so-bre o fazer e o perceber, podemos dizer que, comparativamente, são poucos os trabalhos sobre o sentir ou sobre o sistema que sente.

Um problema que surge em relação a estudos sobre o sentir ☑ está vin-culado à dificuldade de interpretar a descrição das pessoas sobre o que estão sentindo. Mas é necessário salientar que o sentir é um aspecto importante da vida e um componente essencial do processo artístico.

Esse aspecto da vida que designamos de sentir/sentimento refere-se aos fenômenos vividos, experienciados pelas pessoas e sobre o que elas podem falar ou revelar por meio de ações, reações, gestos e comportamentos. Vale ressaltar que é difícil e nem sempre é possível indicar quando ou como os indivíduos vivem/experienciam sentimentos ou mudanças de sentimentos, porque eles não são transmitidos por meio de ações ou testemunho diretos, claramente perceptíveis.

3.1. evidênciaS da exiStência de Sentimento noS animaiS

No mundo animal, assim como no mundo humano, gestos, ações e con-figurações faciais expressivos correspondem a afetos internos. Os primatas, por exemplo, fazem a corte, tentam conquistar e seduzir a fêmea; jogam, brin-cam e lutam como os humanos. Esses movimentos, gestos e ações sempre são acompanhados de sons e expressões que indicam expectativas e sentimentos de prazer, excitação, apreensão etc. Em outras palavras, o ritual de sedução ou conquista dos animais assemelha-se ao ritual dos seres humanos.

Nos estudos sobre o sentimento, podemos nos reportar ao exemplo clás-sico da jovem gansa apaixonada. Passeando num lago, uma gansa avista e encanta-se com um ganso que nada distraidamente. A partir do momento em que vê e sente-se atraída pelo ganso, ela passa a acompanhar, a distância, seus movimentos, gestos e ações, tentando aproximar-se dele, disfarçadamente, de maneira casual. Depois de várias tentativas de aproximação, ela percebe que o ganso não manifesta qualquer interesse ou receptividade aos seus galanteios. O ganso, então, alça voo e afasta-se para outro lago. Passado algum tempo, a gansa voa à sua procura, localiza-o e pousa às margens do lago onde o ganso nada calmamente. De maneira cautelosa, discreta e fortuita, a gansa aproxi-ma-se do ganso e continua fazendo sua corte na expectativa de seduzi-lo. Essa

UnIdAde 3 sentir

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é apenas uma das várias observações, registros e exemplos do modo como os animais expressam ou exteriorizam seus afetos.

Essas evidências de semelhança de sentimento entre os seres do mundo animal e os do mundo humano foram decisivas para que os cientistas pas-sassem a usar os mesmos termos para ambos: raiva, medo, angústia, ciúme, inveja etc. Com base em observações e constatações dessas semelhanças, os cientistas concluem que os sentimentos mais complexos do adulto têm como origem ou como matriz sentimentos construídos na infância. Eles afirmam que aos seis meses, o bebê já apresenta nas suas expressões faciais a gama completa de expressões humanas.

3.2. Sentimento, contexto e interpretação

O sentimento ☑ é uma maneira de sentir as informações e, por essa ra-zão, compreender ou explicar sentimentos requer um contexto e uma inter-pretação ☑. Assim, podemos dizer que contexto e interpretação articulam o sentimento de amar na relação com outra pessoa; o sentimento de temer uma situação ou organismo e o sentimento de zangar-se, pela frustração, ausência ou obstáculo a uma expectativa.

Sentimentos mais complexos como inveja, ciúme e orgulho exigem não apenas discriminações, mas, principalmente, uma compreensão sutil da ex-periência humana. Assim, o sentir é caracterizado por uma sucessão de dis-posições e excitações associadas a afetos vividos pela criança. Esses afetos podem ser relacionados a situações específicas, determinadas por condições emocionais sobre as quais o bebê, a criança, o adolescente e/ou adulto não têm controle.

Quando a criança começa a formar gestalts, relacionando-as a sentimen-tos, quando utiliza suas habilidades motoras (sistema que faz), integrando movimentos — agindo com um objetivo específico e com a intenção de re-alizar certas atividades —, o sistema que sente está interagindo de maneira significativa com os outros sistemas (que faz e que percebe). Essas intera-ções acontecem em determinado contexto e, para ser compreendidas, depen-dem de uma interpretação. Quando a criança associa sentimentos a certas situações e altera suas ações e discriminações baseada nessas associações ou, ainda, quando os sentimentos antecipam ou acontecem em seguida a essas percepções, o sistema de sentimento está começando a se integrar aos ou-tros sistemas.

Existem algumas referências sobre a vida de sentimento da criança que podem ser claramente observadas. Chorar e sorrir, exemplos comuns, são referências importantes sobre a vida de sentimentos e para ela. Com aproxi-madamente um mês de vida, o bebê já sorri diante de certos estímulos. No decorrer do segundo mês, é capaz de sorrir ao acompanhar seus próprios movimentos e atividades. Entre o segundo e o quarto mês, o sorriso pode ser influenciado por imagens visuais, manifestando expectativa, satisfação ou

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surpresa. À medida que a criança cresce, o sorriso vai gradativamente ficando limitado a pessoas ou situações específicas, comportamentos influenciados pelo núcleo familiar e por práticas culturais.

Sorrisos, assim como outras expressões faciais, podem acontecer numa diversidade de situações e veicula diferentes significados. Um aspecto impor-tante na vida de sentimento da criança é a tendência, com frequência revelada durante o segundo ano de vida, de começar a ordenar ou classificar o mundo a sua volta como bom ou mau.

Todavia, é importante ressaltar que, apenas quando a criança começa a verbalizar ideias e percepções sobre o seu mundo, expressar sentimentos de aprovação ou insatisfação, podemos observar e especular sobre os sentimen-tos que ela vivencia. Muito cedo na experiência de vida dos seres humanos, essa dicotomia — bom ou mau — transforma-se em uma das principais ma-neiras pela qual os indivíduos processam informações, percebem e, princi-palmente, avaliam objetos, desejos, o outro e as representações do mundo simbólico.

Os paralelos entre os sentimentos dos animais e dos seres humanos pa-recem próximos e inevitáveis em função de estruturas neurológicas em co-mum. Esses paralelos nos levam a observar e até mesmo a valorizar situações que apresentam similaridade de expressões, gestos, desenvolvimento de aprendizagem e condicionamento. Podemos supor que os animais superiores experimentem sentimentos, como sensação térmica, prazer, dor, vivenciados pelos humanos em múltiplas situações e circunstâncias. Mas falta aos animais uma capacidade importante e decisiva: a capacidade de expressar essa experi-ência por meio de palavras, imagens e símbolos, de nomear e criticar os sen-timentos e buscar alguma mudança no modo de sentir e relacionar-se com os próprios sentimentos.

conSideraçõeS FinaiS

A crescente integração dos três sistemas (fazer, perceber e sentir), mas, principalmente, seu funcionamento em conjunção com os processos simbóli-cos define sua importância para a percepção e produção artísticas. Percepção e aprendizagem são uma espécie de amálgama dos três sistemas. É impossível separá-los.

Adiante, é ilustrado, de certa maneira, o modo como os sistemas relativos ao fazer, perceber e sentir são o combustível, a matéria-prima da criação e da aprendizagem artísticas. Os três sistemas se retroalimentam mutuamente em constante diálogo e comunicação com os sistemas simbólicos. Imagens, palavras, ideias e ações misturam-se, gerando um trânsito contínuo entre o mundo externo, a realidade e o mundo interno, a mente. A mobilidade tem-poral e espacial que construímos, entre esses dois mundos, é articulada via percepção.

Assim, imagens e representações, independente da maneira como são ma-terializadas, acionam um processo de mediação entre percepção, pensamento

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e realidade externa. A percepção excita, modera e/ou reprime o trânsito de ideias, sensações, imagens e experiências vividas. O pensamento, de maneira multidirecional, intermedia desejos, ansiedades, afetos, interesses auditivos e visuais que criam relações entre subjetividades individuais e comportamen-tos coletivos, possibilitando uma construção social da compreensão dessas mediações. A realidade externa é uma espécie de cosmos sensorial, fluido e flutuante em que identidades, valores e crenças são representados, expostos parcialmente e ambientados por meio de preferências, discordâncias, confli-tos e contradições.

GARDNER, Howard. O Relacionamento da arte com o desenvolvimento humano. In: As artes e o desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, pp. 29-75.________. O Mundo dos Símbolos. In: As artes e o desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, pp. 143-149.VYGOTSKY, L. S. O instrumento e o símbolo no desenvolvimento da criança. In: A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, pp. 21-33.________. O desenvolvimento da percepção e da atenção. In: A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, pp. 35-42.

reFerênciaS bibLiográFicaS

Figura 8 – m.c. escher. peeled Faces

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