a educaÇÃo estÉtica na formaÇÃo de professores...

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CLÓVIS TREZZI A EDUCAÇÃO ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO MÉDIO: UM ESTUDO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DE RICOEUR UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2010

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1

CLÓVIS TREZZI

A EDUCAÇÃO ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO

MÉDIO: UM ESTUDO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DE RICOEUR

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2010

2

CLÓVIS TREZZI

A EDUCAÇÃO ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO

MÉDIO: UM ESTUDO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DE RICOEUR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Cidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Educação, sob a orientação da Profª Draª Margaréte May Berkembrock-Rosito.

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2010

3

Ficha elaborada pela Biblioteca Prof. Lúcio de Souza. UNICID

T818e

Trezzi, Clóvis. A educação estética na formação de professores no ensino médio: um estudo sobre a contribuição de Ricoeur / Clóvis Trezzi --- São Paulo, 2010. 112 p.; anexos Bibliografia Dissertação (Mestrado) - Universidade Cidade de São Paulo. Orientadora Profª.Dra. Margaréte May Berkenbrock-Rosito 1. Formação docente. 2. Educação estética. 3. Ricoeur, Paul. I. Berkenbrock-Rosito, Margaréte May. II. Titulo.

371.12

a

4

_________________________________

_________________________________

_________________________________

COMISSÃO JULGADORA

5

Dedico este trabalho à minha

mãe, Maria, ao meu pai, Atílio, já

falecido, a meus irmãos Pedro e

Beatriz, e a todos aqueles que

confiaram em mim.

6

AGRADECIMENTOS

À Doutora Margaréte May Barkembrock-Rosito, pelas horas de paciência

dedicadas à orientação deste trabalho, e pelo muito que me ensinou ao longo

destes quase dois anos.

À Doutora Mary Rangel e ao Doutor Júlio Gomes Almeida, que participaram da

banca examinadora, que leram este trabalho com espírito crítico, e me

ajudaram a buscar o melhor.

Aos Doutores Potiguara Pereira, Ecleide Furlanetto, Edileine Vieira, Jair Militão

e João Gualberto, que juntamente com o Doutor Julio e a Doutora Margaréte

foram meus professores, pelo incentivo e pelo muito que aprendi com eles.

À Doutora Ecleide Furlanetto, pela confiança em mim depositada desde a

primeira entrevista.

Aos Irmãos Lassalistas que comigo conviveram durante o tempo de mestrado,

e que suportaram minhas ausências.

À família lassalista, de maneira especial aos Irmãos, que me acolheram e me

apoiaram.

Ao professor Marcos Luciano Corsatto, pela revisão feita.

Aos colegas com os quais convivi neste período, pelas preciosas contribuições

que deram para meu trabalho.

7

Não consigo abandonar-me, quero saber quem sou. Uma

coisa percebo com clareza. As memórias que emergiram

desde o início daquilo que penso ser meu coma são

obscuras, nebulosas e estão dispostas como um mosaico,

com soluções de continuidade, incertezas, lacerações,

fragmentações (por que não consigo recordar o rosto de

Lila?). As de Solara, e as de Milão depois do despertar no

hospital, são, ao contrário, claras, escorrem segundo uma

sequência lógica, posso reordenar frases temporais,

posso dizer que encontrei Vanna no largo Cairoli antes de

comprar os testículos de cão naquela banquinha no

Cordusio (...). É assim que fazemos também na vida

normal: podemos supor que estamos sendo enganados

por um gênio maligno, mas para poder seguir adiante nos

comportamos como se tudo aquilo que vemos fosse real.

Se nos abandonássemos, se duvidássemos da existência

de um mundo fora de nós, não agiríamos mais, e na

ilusão produzida pelo gênio maligno cairíamos das

escadas ou morreríamos de fome.

ECO, Umberto. A misteriosa chama da Rainha Loana.

Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 417

8

RESUMO

O presente trabalho traz como estudo a formação inicial de professores na

modalidade normal em nível médio, à luz da concepção de identidade narrativa

de Paul Ricoeur. O material analisado foi o Parecer CNE/CEB 01/1999, que

estabelece as diretrizes curriculares nacionais para o curso de formação de

professores na modalidade normal em nível médio. Partimos do seguinte

problema: o sentido de estética presente no Parecer CNE/CEB nº 1, de 29 de

janeiro de 1999, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso

de formação de professores na modalidade normal em nível médio. A

pesquisa qualitativa, na abordagem hermenêutica, permite fazer uma

interpretação baseada em Ricoeur, Schiller, La Salle e Freire, buscando

estabelecer um diálogo para situar a identidade narrativa em Ricouer no

contexto da educação estética no ensino médio. A partir deste referencial

extraímos elementos teóricos para analisar o Parecer CNE/CEB nº 01/1999,

que conduzem à problemática da formação de professores no citado nível de

ensino. O objetivo deste estudo foi apontar a estética como experiência que

reverbera na identidade narrativa em Ricoeur, contribuindo para a reflexão da

teoria e prática de formação de professores. O estudo enfatiza que o

documento analisado é uma experiência estética do labirinto. As atribuições de

sentidos e significados que emergiram da interpretação do documento apontam

a narrativa autobiográfica como saída desse labirinto. Com isso, demonstra-se

que as narrativas, nos processos formativos, iluminam a presença da educação

estética como fundamento da formação da identidade, no curso de formação

de professores em nível médio.

Palavras-chave: Identidade narrativa, formação inicial do professor, educação estética, labirinto.

9

ABSTRACT

This report presents an analysis of the initial training of teachers at the High

School level, based on the conception of narrative identity by Paul Ricoeur. The

analysis was made through the document “Parecer CNE/CEB 01/1999,” which

establishes the national curriculum guidelines for teachers‟ initial training at the

High School level. The starting point was the meaning of „aesthetic‟ present in

the document cited above. The qualitative research, in a hermeneutic approach,

allowed us to make an interpretation based on Ricoeur, Schiller, La Salle and

Freire, creating a dialogue that situated the narrative identity of Ricouer in the

context of aesthetic education in High School. The purpose of this research was

to show how the aesthetic experience is reflected in the concept of narrative

identity, offering a contribution for the better understanding of teachers‟

education. This report stresses that the document analyzed is a labyrinthine

aesthetic experience. The attributions of meaning that emerged from the

interpretation of the document show that autobiographical writing is the way out

of this labyrinth. Therefore, the narratives in the educational process point out

aesthetic education as fundamental for identity formation in the courses for

teachers‟ training at the High School level.

Keywords: Narrative identity, teachers‟ initial training, aesthetic education, labyrinth.

10

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS .................................................................................. 12

INTRODUÇÃO ........................................................................................... 13

1 CONTEXTUALIZANDO O SENTIDO HERMENÊUTICO DA NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA .............................................................

16

1.1 O pesquisador e sua história: uma justificativa para os caminhos da pesquisa .....................................................................

16

1.2 Percursos formativos: um círculo hermenêutico da narrativa autobiográfica ..................................................................

25

1.3 Identidade narrativa: onde o ser humano se encontra consigo mesmo ................................................................................

29

2 EDUCAÇÃO ESTÉTICA E IDENTIDADE NARRATIVA: QUESTÕES ENTRELAÇADAS ......................................................................................

41

2.1 Trajetória de Ricoeur em direção à identidade narrativa ....... 41

2.1.1 Início do percurso: Aristóteles e Santo Agostinho ..... 42

2.1.2 Fim ou início do percurso: Benjamin e o narrador ...... 47

2.2 Ricoeur, Schiller, Freire e La Salle: um diálogo sobre Educação estética ............................................................................

52

2.2.1 Ricoeur: A identidade narrativa como educação estética . 66

2.2.2 Formação estética do professor ................................... 69

3 A CASA DO SER NARRATIVO: A ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO MÉDIO EM ESTUDO ................................

80

3.1 Penetrando no labirinto: uma visão histórica da formação de educadores ..................................................................................

83

3.2 Buscando caminhos: a formação de professores no Brasil... 88

3.1.2 A formação de professores no Brasil – pós 1971 ........ 89

3.1.3 – A Lei 9394/96 ................................................................ 91

3.3 Seguindo o fio condutor: o Parecer CNE/CEB 01/1999 .......... 92

3.4 Buscando uma saída: Identidade do curso de formação de professores na modalidade normal em nível médio .....................

93

3.4.1 A identidade do professor ............................................. 96

3.5 O desenrolar do fio: a identidade narrativa como estética no Parecer CNE/CEB 01/99 ...................................................................

99

3.6 Uma luz no final do labirinto: elementos conclusivos ........... 102

11

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 105

REFERÊNCIAS .......................................................................................... 108

ANEXO 1 .................................................................................................... 113

ANEXO 2 .................................................................................................... 140

12

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: Representação do círculo de compreensão de Gadamer ... 27

FIGURA 2: Representação do Círculo de Compreensão na forma de círculos concêntricos.................................................................................

28

FIGURA 3: O entrelaçamento da identidade narrativa ............................. 68

13

INTRODUÇÃO

No presente estudo, queremos ter presente a educação estética no

documento que estabelece diretrizes curriculares nacionais para a formação de

professores na modalidade normal, em nível médio, conhecido como Parecer

CNE/CEB 01/1999. Perguntamos: que relação existe entre a identidade

narrativa e a dimensão estética na formação inicial de professores em nível

médio? Buscamos a compreensão do sentido da estética presente na

abordagem autobiográfica.

O problema de pesquisa emerge desse contexto do lugar do

pesquisador como formador de professores no Ensino Médio.

Propõe-se como problema de pesquisa o sentido de estética presente no

Parecer CNE/CEB nº 1, de 29 de janeiro de 1999, que define as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o curso de formação de professores na

modalidade normal em nível médio, a partir da matriz conceitual identidade

narrativa em Ricoeur.

Propõe-se como hipótese de estudo que a identidade narrativa é um

elemento da educação estética como processo formativo, visando à autonomia

do sujeito. O grande desafio no contexto da identidade narrativa de Ricoeur é

a compreensão da mesma como um labirinto, capaz de romper com o

paradigma da educação linear e da alienação do sujeito de sua própria

formação, abrindo caminho para a formação humana do sujeito.

Elege-se como objetivo apontar a estética como experiência do labirinto

no Parecer CNE/CEB 01/1999, que reverbera na identidade narrativa em

Ricoeur, apontando a narrativa autobiográfica como saída desse labirinto, e

contribuindo para a reflexão da teoria e prática de formação de professores na

perspectiva da Educação Estética.

Pensar a formação humana para o curso de formação docente no ensino

médio na perspectiva de Ricoeur justifica-se no fato de o mesmo ter-nos

provocado à reflexão da relação Identidade-Narrativa, um ensaio desenvolvido

pelo autor a partir da obra “Tempo e Narrativa”, no qual discute a formação da

identidade pessoal a partir das narrativas.

Assumir o conceito de identidade narrativa em Ricoeur no campo da

formação de educadores é ter o compromisso de fundamentar projetos

14

formativos. Frequentemente a narrativa é deixada de lado ou ignorada quando

se trata de formação de pessoas. Contudo, atualmente, podemos contar com

pesquisas, por exemplo, na linha das histórias de vida1, que geraram o trabalho

das narrativas (auto)biográficas.

A abordagem ricoeuriana da formação da identidade mostra que uma

formação docente, dentro de uma ótica estética, não pode acontecer distante

da ética; formar o educador como um ser humano é formar para o pensar e ser

capaz de confrontar-se a si mesmo, com o outro e com o contexto.

Justifica-se esta pesquisa pela necessidade premente de um estudo que

trará uma contribuição à reflexão sobre a formação inicial de professores, em

nível médio, mas se estende à formação inicial de professores em nível

superior. Hoje são poucos os cursos que preparam professores em nível

médio, podendo até ser considerados uma raridade. Apenas alguns estados,

como é o caso do Paraná, oferecem-no na rede pública estadual. Por ser uma

alternativa ao ensino superior, e não ter tantos pré-requisitos para ingresso,

diversas pessoas preferem-no como porta de entrada para algum emprego na

área de educação. Mas o que torna realmente o trabalho relevante é o fato de

haver poucos estudos referentes a este curso especificamente. Pelo fato de a

lei 9394/96 dar preferência aos professores com ensino superior, pouco se fala

sobre a formação em nível médio, e esta passa despercebida e mesmo sendo

ignorada por boa parte da população.

Percebemos que um curso que prepara professores em nível médio não

merece ter menos importância que outro que prepara em nível superior. Por

este estar legalmente embasado, e por existir, ou sobreviver, ainda, em vários

locais, preparando professores que vão atuar em classes, principalmente, de

educação infantil, temos consciência de que essas professoras e professores

precisam receber uma formação decente e humana, não apenas técnica, para

terem reais condições de aprender a serem professores.

A Análise Documental é o procedimento adotado para análise e coleta

do material a ser estudado no presente trabalho. O foco do estudo, como nos

referimos anteriormente, é o Parecer CNE/CEB nº 01, de 29 de janeiro de

1 ASIHVIF - Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação. Página na Internet:

http://www.asihvif.com. Existe ainda Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, criada em setembro de 2008.

15

1999, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de

formação docente no Ensino Médio, realizando uma crítica propositiva visando

ao compromisso com a formação humana.

A análise dos dados da pesquisa de cunho bibliográfico e as

inferências obtidas implicam uma compreensão filosófica que consiste na

exposição dos esforços sucessivos para captar a realidade do objeto de

pesquisa.

A adoção do enfoque hermenêutico como compreensão filosófica na

perspectiva de Gadamer torna-se adequada para esta investigação que

pretende abranger realidades do conhecimento filosófico, desvelando sentidos

e construindo significados. Compreender significa uma apreensão de sentido.

Isso implica uma contínua disposição de crescimento, uma noética - tal como

vista por Aristóteles como doutrina do entendimento (Dussel, 1997, p.11).

Uma visão hermenêutica ajuda a compreender a relação que existe

entre o pensado e o vivido. Conscientes de que em toda compreensão estão

imbuídos os pré-conceitos e os afetos do autor, buscamos, com essa visão

hermenêutica, mostrar que é possível ao ser humano encontrar na própria

história os elementos necessários para assumir a sua identidade, com todo o

seu vivido.

O presente estudo tem, como estrutura, no primeiro capítulo, a

apresentação da história de vida do autor, uma visão acerca do enfoque

hermenêutico que será utilizado na pesquisa – no caso, a hermenêutica de

Gadamer – e a apresentação da identidade narrativa de Ricoeur, que será a

base, o pano de fundo de todo o trabalho.

No segundo capítulo, teremos outros aportes teóricos que dão

sustentação ao trabalho, especialmente no campo da educação estética, com

autores como Schiller e Freire, dialogando entre si e com Ricoeur.

No terceiro capítulo, analisaremos mais detidamente a formação de

educadores em nível médio – objeto de estudo deste trabalho – e,

especificamente, o Parecer CNE/CEB 01/1999 e as diretrizes curriculares

nacionais para o curso de formação de educadores na modalidade normal em

nível médio, sempre na perspectiva da identidade narrativa de Ricoeur.

16

1 CONTEXTUALIZANDO O SENTIDO HERMENÊUTICO DA NARRATIVA

AUTOBIOGRÁFICA

As narrativas, autobiográficas ou não, são essencialmente históricas. A

vida do autor aparece de maneira “viva”, entremeada, porém, de pré-conceitos.

Nos discursos aparecem elementos de ficção ou não-ficção no dito, às vezes

de maneira clara, às vezes velada. É importante para o hermeneuta saber

desvelar o dito no não-dito ou o não-dito no dito.

Falar de identidade narrativa é recordar que a vida é mais que uma

sucessão de acontecimentos; é formada por acontecimentos que podem ser

narrados, e assim reforçar a própria identidade.

A proposta deste capítulo é contar a própria experiência com o tema

Identidade Narrativa presente na minha história de vida. Conto o percurso que

me levou ao problema desta pesquisa; neste caminho, apresento os autores

que sustentam a teorização de minha experiência. Nesta narrativa descubro a

vinculação do problema desta pesquisa com a minha história pessoal e

profissional.

1.1 O pesquisador e sua história: uma justificativa para os caminhos da

pesquisa

Começarei por contar algo da minha história, que está relacionada com

o tema da minha pesquisa. Partindo da interrogação ricoeuriana de que

não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito? E estas «histórias da vida» não se tornam elas, por sua vez, mais inteligíveis, quando lhes são aplicadas modelos narrativos - as intrigas - extraídas da história e da ficção (drama ou romance)? (RICOEUR, 2000, p. 2

2),

tratarei de trazer para este trabalho parte da minha vida na forma narrativa.

Isso se justifica, segundo Josso (2004), porque

A narrativa de um percurso intelectual e de práticas de conhecimento põe em evidência os registros da expressão dos desafios de conhecimento ao longo de uma vida. Esses registros são

2 O artigo, que é uma tradução feita por Carlos João Correia, não segue a paginação original;

por isso, sempre que o citar, usarei a numeração de páginas do texto publicado na internet.

17

precisamente os conhecimentos elaborados em função de sensibilidades particulares em um dado período. Se as disciplinas que constituem as ciências do humano podem servir de referenciais para a auto-interpretação, é porque são objetivações coletivamente construídas a partir das tomadas de consciência do que constitui as nossas potencialidades humanas (JOSSO, 2004, p. 43).

A narrativa tem a capacidade de trabalhar a dimensão do simbólico, e a

partir dele compreender melhor o real. É essa compreensão que busco ao

trabalhar aqui o elemento narrativo. Acredito, como Furlanetto (2008), que “com

base nesse princípio, é possível olhar para a complexidade do real,

percebendo-o, não como uma sequência de fatos lineares, mas como um

campo relacional” (FURLANETTO, 2008, p. 92).

Posso definir, por assim dizer, duas atividades que me ajudaram a

conhecer e pensar minha vida a partir do elemento narrativa. A primeira foi

quando, ainda no curso de Filosofia, fui convidado a escrever minha

autobiografia acadêmica. A segunda, e mais importante, ocorreu no Programa

de Mestrado, na disciplina “Educação Estética e Formação de Professores”.

Esta disciplina aproximou-me do conceito de estética. Durante a mesma, a

professora Dra. Margaréte May Berkenbrock-Rosito propôs a construção da

“Colcha de Retalhos”, como um método desenvolvido por ela mesma como

professora de um curso de Pedagogia. O método consiste em resgatar a

memória e a história de vida na perspectiva de Josso (2004), identificando os

momentos marcantes e divisores de águas; a seguir, após assistir ao filme

“Colcha de Retalhos”, cada um constrói um retalho de tecido (podendo ser

pintado, bordado, recortado...) a partir da própria vida. Depois de construído o

retalho, a história é contada ao grupo, ao mesmo tempo em que os diferentes

retalhos são costurados, formando uma colcha. Berkenbrock-Rosito (2008)

assim descreve a proposta do método:

História tecida no retalho pressupõe aprender a ser sensível para captar da carga vivencial, a palavra e metáfora-chave de abertura daquilo que faz sentido para o outro, narrar e renarrar a História de Vida como processo de autoria. Acompanhar a formação traz desafios para a docência. Com que aspectos da vida a pessoa se identifica e quais a motivam e estimulam a abrir-se para o diálogo com o outro? Como afetar e lidar com o ser afetado? (BERKENBROCK-ROSITO, 2008, p. 6).

Percebi, assim, a minha imensa relação afetiva com a minha casa,

especialmente a proximidade com o fogão a lenha, e as histórias que ao redor

18

dele se contavam. Era também ao redor do fogão a lenha que eu lia meus

livros e fazia meus desenhos. Curiosamente, o desenho mais repetido naquele

tempo era uma casa, e este desenho eu reproduzi no retalho que compôs a

colcha.

Narro, assim, parte da minha vida que surgiu como importante para mim

após a confecção da colcha. É a parte que tem algum significado na

construção da pesquisa, pois mostra a influência das narrativas na minha vida

e no meu desejo de ser educador.

Esta influência tem início na infância. Sou de uma família de pequenos

agricultores da região Sudoeste do estado do Paraná. Como a maioria das

famílias que viviam no campo, nos anos 80, éramos pobres e não tínhamos

energia elétrica em casa. Trabalhávamos de arrendatários em terras de outros

produtores.

Meu interesse pelos estudos despertou logo cedo. Tinha eu quatro anos

de idade e já queria ir à escola, como faziam meus irmãos. Na minha família, já

então, cultivava-se um ambiente de amor aos livros e à cultura, mesmo meus

pais tendo poucos estudos. Talvez isso se deva ao fato de que minha mãe

tinha, quando jovem, um desejo não realizado de ser professora, de acordo

com seus relatos.

Como eu ainda era muito pequeno para ir à escola, que ficava a mais de

um quilômetro de distância de casa, a minha mãe teve uma ideia: disse que eu

só poderia ir à escola quando aprendesse a ler. A partir de então, todos meus

esforços foram nessa direção, e meses depois eu estava lendo. Aprendi por

vontade própria, com a ajuda de papai. Era assim: eu olhava para os sacos de

adubo da lavoura e perguntava a meu pai, letra por letra, o que estava escrito.

Assim, fui memorizando as letras e fazendo associações. Foi então, segundo a

promessa de minha mãe, que comecei a ir à escola, logo me destacando como

uma espécie de fenômeno, pois aos cinco anos de idade lia fluentemente

qualquer texto que me dessem, chegando a ser fotografado e entrevistado para

um jornal da cidade.

Foi nessa mesma época que ganhei um presente que revolucionou

minha vida: um livro. Recordo-me com clareza que era o livro “Aventuras de

19

uma andorinha”, de Alice Landau3. Li-o não sei quantas vezes, até memorizá-

lo. Depois desse livro, que foi o primeiro, passei a ler muito. Na verdade, lia

tudo que me caía à mão: recortes de jornais e revistas velhas, livros de

literatura, revistas em quadrinhos, e até mesmo os livros didáticos de meus

irmãos mais velhos, calhando de eu chegar à série seguinte sabendo já o

conteúdo por ter lido os livros didáticos.

Nesse tempo, meus pais tiveram uma ideia, se não inédita, pelo menos

bastante original. Já nessa época, a família tinha o costume de reunir-se à

noite, após o jantar, para conversar. Era um costume bastante comum entre as

famílias de agricultores que não tinham energia elétrica em casa. Após um

tempo de bate-papo, fazíamos as orações da noite e íamos dormir, geralmente

cedo, para acordar logo no dia seguinte e fazer os trabalhos da lavoura.

Nessas “sessões de bate-papo”, geralmente os pais falavam e os filhos

escutavam. Eles faziam verdadeiros relatos de vida, recordando os tempos de

juventude. Contavam a sua história de vida, e era aí que nós, filhos,

aprendíamos a amar e respeitar ainda mais nossos pais.

O interessante nisso é o quanto o fato de ouvir os relatos dos meus pais

contribuiu para a minha identidade. Ouvindo-os, e eram eles mesmos

personagens da história, e colocando-me em contato com as narrativas, fui

adquirindo, a partir das histórias deles, elementos que ajudaram a construir a

minha identidade. Pode-se dizer que passei a ser eu mesmo personagem da

minha história, a partir das características dos personagens das histórias

contadas por meus pais.

Pois bem, aqui é que aparece a ideia original: como já dito, não

tínhamos energia elétrica, e a casa era iluminada por lamparina de querosene,

que deixava um cheiro forte e marcas de fumaça nas paredes e no teto. Um

dia, minha mãe teve uma ideia: já que não tínhamos acesso às novelas,

teríamos nossa própria novela. Assim, nós pegávamos livros na biblioteca da

escola e levávamos para casa. À noite, sentávamos em volta do fogão a lenha,

e fazíamos leitura em voz alta dos romances, para a família toda ouvir. Eram

momentos muito bonitos de reunião familiar, mas também de incentivo à leitura

e de convivência com as narrativas.

3 Editora do Brasil, 1980.

20

Como é comum acontecer, as narrativas orais precederam as escritas

na minha vida. Podemos perceber, a partir daqui, uma inversão de papéis.

Num primeiro momento, os pais narravam, oralmente, e os filhos ouviam.

Agora, quando os filhos já têm capacidade para narrar, estes narram e os pais

ouvem. Mudou o modelo de narrativa, mas não mudou a ideia principal. Tanto

as reuniões familiares para relatos orais quanto para leitura, serviram para

desenvolver em mim esse contato mais forte e próximo com as narrativas e

histórias de vida, e também uma facilidade bastante grande de narrar e

escrever.

Estes momentos de leitura em família desenvolveram em mim uma

espécie de compulsão pela leitura. Tudo que eu fazia nas horas vagas era ler.

Porém, quando passei para o ensino médio, o antigo Magistério, apesar de ser

em uma escola estadual, para retirar livros da biblioteca era necessário pagar,

como uma locação de filmes. Eu não tinha dinheiro para isso, então nos

recreios ia à biblioteca e lia lá mesmo. Até que a bibliotecária, percebendo,

perguntou por que eu não levava livros para casa e eu disse que era por não

ter dinheiro. Assim, ela liberou os empréstimos gratuitamente para mim.

Costumo dizer que esse foi um marco na minha vida de estudante, pois

consegui, de certa forma, realizar um sonho da minha adolescência, que era ter

uma biblioteca só para mim. Nesse tempo eu lia cerca de dois livros por

semana.

Essa minha relação com as narrativas, tanto de ficção quanto históricas,

orais, se estendeu por boa parte da minha vida. O que considero belo nisso, é

que eu lia desde os clássicos, como Vitor Hugo, até autores de menor

expressão. Curiosamente, quando eu tornei-me professor, aos 18 anos,

comecei a abandonar essa paixão. Durante vários anos li muito pouco, e

escrevi pouco também. Depois de alguns anos, já com o curso superior

concluído, é que me dediquei mais a isso. Por um lado, a falta de tempo

decorrente da vida de professor, com o dia voltado para a preparação de aulas,

correção de cadernos, de trabalhos, e outras atividades, tiraram-me a

motivação para a leitura. Por outro lado, percebo uma acomodação diante das

dificuldades exigidas pelo ensino superior e pelas aulas.

Antes de dar o passo seguinte e discorrer sobre a origem do problema

de pesquisa, dedicarei algum espaço à minha formação acadêmica, pois a

21

mesma desempenha um papel importante na minha relação com o tema de

pesquisa.

Terminando o ensino médio em 1992, ingressei numa Congregação

Religiosa, dos Irmãos Lassalistas, e permaneci por cinco anos e meio sem

fazer algum curso acadêmico, apenas seguindo o programa de formação da

Congregação. Em 1998, no segundo semestre, iniciei o curso de Filosofia na

Universidade Católica de Brasília. Embora não tivesse sido minha primeira

opção, acabei cursando Filosofia porque a Congregação assim o exigia. O meu

interesse inicial era a Pedagogia. Isso não impediu que eu me dedicasse

bastante ao curso, destacando-me em algumas áreas: Metafísica, Estética,

Filosofia da Linguagem, Lógica, e nas disciplinas da área de educação.

Durante esse período, tive, como acontece muitas vezes, alegrias e

decepções com o ensino superior. Uma das decepções foi com professores

despreparados, incapazes de trabalhar os conteúdos a eles confiados. Outra

decepção foi em relação à pesquisa nessa etapa. Embora o ensino superior

não tenha como objetivo maior a pesquisa, mas o ensino, eu esperava mais. O

fato é que, em matéria de pesquisa, apenas no último semestre tivemos uma

leve introdução ao tema, depois do qual cada um foi convidado a escolher um

assunto e desenvolver uma monografia. Nisso uma nova decepção: o professor

que aceitou orientar meu trabalho negligenciou completamente a sua função, a

ponto de dizer que monografia de graduação não tem qualquer valor e que ele

não iria perder tempo lendo o que eu escrevia; bastava escrever qualquer coisa

que ele me daria nota máxima. Essa sua atitude levou-me a trocar de

orientador. Este conjunto de fatores despertou em mim certa reserva em

relação ao ensino superior e, principalmente, à pós-graduação, tendo em vista

que esses professores eram todos pós-graduados.

Nem tudo, porém, foi tristeza e decepção no primeiro contato com o

ensino superior. Houve momentos que vale a pena recordar. Um deles, na

disciplina de Didática, quando a professora orientou todos a escrevermos a

autobiografia formativa. Foi meu primeiro contato com o mundo das narrativas

autobiográficas. Além dessa, o professor de Estética, que era um grande

incentivador da atividade científica, especialmente a elaboração de artigos. Na

verdade, esses artigos e a narrativa autobiográfica podem ser considerados

22

minhas primeiras produções escritas, as quais posso dizer que influenciaram

minha vida na capacidade de escrever e narrar.

Apesar de não ter sido a minha opção inicial, o curso de Filosofia foi o

que mais marcou minha vida. Hoje, as leituras e temas de escrita tendem para

a área filosófica. Depois de concluir o curso de Filosofia, iniciei um bacharelado

em Ciência da Educação, que não concluí devido a políticas internas da

Congregação Religiosa, que fizeram com que fosse transferido de Brasília para

São Paulo, antes de concluir o curso. Algum tempo depois, morando no

Paraná, na cidade de Toledo, ingressei no curso de Pedagogia, que era meu

antigo sonho. Como já havia concluído Filosofia, pelo sistema de

aproveitamento de disciplinas, concluí o mesmo em dois anos. Encontrei na

nova Universidade problemas que já havia encontrado na antiga, como

professores despreparados, alguns mesmo sem pós-graduação; porém, já

estava preparado para estes problemas, sabendo que eles existem e que não

são determinantes no tipo de formação que eu buscava. Encontrei, ao mesmo

tempo, situações que não havia encontrado na Universidade anterior. Esta, por

estar localizada em uma cidade do interior e por ser muito menor que a outra,

tinha uma relação de proximidade muito boa entre alunos, professores,

serviços e direção. Essa relação favoreceu o desenvolvimento pessoal.

Considero que neste período minha relação com a Universidade foi muito mais

de autoria que de submissão, ao contrário do que aconteceu no anterior curso

de Filosofia.

Posso dizer com segurança que as narrativas tiveram um papel

importante na minha formação. Muito embora eu tenha demorado a dar-me

conta disso, foi somente ao tomar conhecimento das ideias de Paul Ricoeur,

que trabalha justamente a formação da identidade narrativa, que passei a

perceber a influência das mesmas. Esse primeiro contato com a obra de

Ricoeur deu-se na Itália, em Roma, no ano de 2007, quando eu participava de

um curso de formação e atualização. Durante uma das aulas, o professor

Robert Comte, francês, discípulo de Ricoeur, apresentou-nos uma síntese da

ideia da identidade narrativa, o que despertou em mim o interesse pela

pesquisa na área. Inicialmente, pretendia pesquisar a importância das

narrativas no desenvolvimento da identidade do educando, mas, tendo em vista

23

a formação de professores, resolvi desenvolver minha pesquisa a partir dessa

perspectiva.

Já passei pelas diferentes etapas do curso de formação de professores

em nível médio, desde aluno do antigo Magistério, no final dos anos 80 e início

dos anos 90, até coordenador do agora denominado Curso de formação de

professores na modalidade normal em nível médio, no ano de 2009. No

intervalo entre ser estudante do curso e ser coordenador do mesmo, houve

mudanças significativas na estrutura da educação brasileira, especialmente

com a promulgação da lei 9394/96. Essas mudanças abrangeram todos os

níveis e modalidades de ensino. Contudo, estar no mesmo curso antes e

depois da lei, fez-me perceber que as mudanças foram, em grande parte,

estruturais, ao passo que algumas necessidades, que vão além do aspecto

físico, continuam sendo tratadas do mesmo jeito.

Trabalhando como coordenador, percebi que no currículo predominam

disciplinas e atividades técnicas, em detrimento das humanas. É uma maneira

reducionista de pensar a formação de professores levando em conta que, para

que haja uma formação coerente com a missão do professor, não se pode

priorizar a dimensão técnica sem um pensar ético e estético, pois se trata de

aspectos do humano de ser professor.

Essa preocupação somou-se à acima citada conferência em Roma, com

Robert Comte, que apresentou as ideias acerca da identidade narrativa de

Ricoeur. Ouvindo Comte, despertou em mim o interesse em fazer uma ligação

com o mundo da educação. Aparentemente não era tão fácil, tendo em vista

que o objeto da pesquisa de Ricoeur não é o educador.

Relendo, porém, textos de Paul Ricoeur, especialmente o artigo

Identidade Narrativa, percebemos que ele afirma que narrativas podem ser ou

não autobiográficas; mas que em todas elas entra a vida do autor. Entrando em

contato com as pesquisas na linha da História de Vida, no III Congresso de

Pesquisa (Auto) Biográfica, em 2008, na cidade de Natal/RN, foi possível

verificar que Ricoeur traz uma contribuição filosófica interessante para a

pesquisa (Auto) Biográfica.

Josso afirma que “formar-se é integrar-se numa prática o saber-fazer e

os conhecimentos (...). Aprender designa, então, mais especificamente, o

próprio processo de integração” (JOSSO, 2004, p. 39). Mais adiante, a autora,

24

com as seguintes palavras: “ser humano é também criar as histórias que

simbolizam a nossa compreensão das coisas da vida” (op. cit., p. 43), coloca a

questão da humanidade e das histórias, ou seja, do simbolismo que permeia a

nossa vida enquanto seres humanos.

As lacunas em relação a esses aspectos da formação no curso em que

atuei, e que observei para realizar esta pesquisa, em uma escola privada da

Zona Leste de São Paulo4, podem ser comprovadas no plano de curso,

elaborado em 2003 e aprovado pela Diretoria Regional de Ensino Leste IV,

inteiramente baseado em competências e habilidades.

Um curso de formação de professores, que tenha caráter técnico, pode

trazer complicações que emergem em sala de aula: problemas de

relacionamento dos alunos entre si, e com os professores, que muitas vezes

não sabem como lidar com situações de conflito. Entram aqui questões éticas e

estéticas, muito bem apresentadas por Freire:

A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. (...) a prática educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência e de pureza (...). É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador (FREIRE, 2003, p. 32-33).

Além disso, pensar ética e esteticamente a formação de professores tem

implicações maiores. Como diz Freire, as duas dimensões andam juntas, e

uma formação ética naturalmente é também estética. Uma formação

excessivamente técnica tende a perder seu aspecto ético – e

consequentemente também o estético, por mais coloridas que sejam as aulas –

porque está dando uma falsa ilusão de que os professores concluirão o curso,

preparados para enfrentar as dificuldades que surgirão, quando na verdade

pode até ser que estejam, mas se estiverem, provavelmente não terá sido o

4 A escola é privada, mas o curso de formação de professores é gratuito. Importante citar que o

curso tem lugar no Centro Educativo e de Assistência Social La Salle, particularidade importante, porque na pesquisa não se falará de todos os cursos de formação de professores no ensino médio, mesmo analisando o Parecer CNE/CEB nº 01/99. Os dados aqui citados serão referentes a esta realidade específica. Também é importante dizer que La Salle, que dá nome à escola, e que nesta pesquisa merecerá um espaço, é reconhecidamente o fundador da Escola Normal.

25

curso que os preparou. Nesse caso, a estética também vai para o lixo,

juntamente com a ética.

1.2 Percursos formativos: um círculo hermenêutico da narrativa

autobiográfica

Um dos grandes problemas, quando se fala em narrativas, é chegar a

uma definição. Por vezes, fala-se em narrativa como toda história contada.

Existe, também, uma visão que coloca as narrativas como as histórias de

ficção escritas. Podem, inclusive, existir outras definições, mais populares, ou

outras, mais elaboradas. Pode haver um consenso na ideia de que narrar é

fazer um relato, seja ele ficcional ou não, seja ou não escrito. Uma narrativa

pode ser um relato histórico, uma biografia, uma autobiografia ou um relato

ficcional. É arriscado dizer que um estudo científico se encaixa nesses

padrões, porém de certa forma existe nele um relato e, consequentemente,

uma narrativa, quando o cientista descreve os procedimentos para chegar às

conclusões às quais chegou. Um texto jornalístico pode também ser uma

narrativa.

Vieira (2001) diz que é possível

traçar algumas condições para que um enunciado possa (...) ser definido como uma narrativa. Em primeiro lugar, deve haver uma lógico-semântica entre funções e atores para que possa haver uma proposição narrativa. Para que tenhamos um texto narrativo coerente é preciso que os fatos denotados pelas proposições narrativas estejam ligados por uma relação cronológica e lógica. Finalmente, para que haja narrativa, é preciso, também, que haja uma transformação entre uma situação ou estado inicial e a situação ou o estado final que funcione como uma conclusão do texto narrativo (VIEIRA, 2001, p. 601).

De acordo com este autor, narrativa é um relato com começo, meio e

fim, com coerência lógica no espaço e no tempo. Essa explicação está correta,

dentro do que se pode compreender por narrativa. Entra, contudo, em certo

conflito com Decca (2000) que, reafirmando Todorov, prefere certa precaução e

distingue “o plano dos conteúdos, a história, do plano da expressão, a

narrativa”.

A história seria, portanto, o plano onde transcorrem as ações, as inúmeras relações que envolvem os personagens, a contextualização dos eventos, enquanto a narrativa seria o plano da expressão. (...)

26

Considerando-se estas precauções, não há nenhuma dificuldade em se aceitar que a história é uma narrativa de eventos humanos (DECCA, 2000, p. 20).

Uma ideia a ser percebida em Vieira (2001), e com a qual Decca (2000)

concorda, é a de que a narrativa passa por várias transformações antes de

chegar ao seu final. Ou seja, um tema inicial não chega ao final da narrativa do

mesmo jeito que começou. Continua sendo o mesmo tema, mas chega ao fim

transformado. Essa transformação ou transformações podem vir de diversos

fatores, desde uma mudança na maneira de o autor perceber o mundo até

outros fatores, como a crítica e a opinião alheias. O que importa, agora, é

perceber que o enredo passa por transformações antes do final.

Não há interpretação sem hermenêutica e não há hermenêutica sem

interpretação. Nisso os autores concordam, pois a verdade oscila entre o dito e

o não dito; contudo, essas duas realidades, o dito e o não dito, fundem-se

numa só, que é a do narrado. O narrado, por si só, muitas vezes não diz nada

para o ouvinte, ao passo que, para o narrador, seja uma narrativa de ficção ou

histórica, é um pedaço de si mesmo. Por isso, qualquer interpretação, que não

seja feita em conjunto com o narrador, pode ser perigosa; daí a importância de

juntar narrativa e vida.

A interpretação de uma narrativa pode conter armadilhas para o leitor,

justamente porque esta traz presentes os pré-conceitos. Torna-se difícil para

qualquer leitor fazer uma transposição do texto para a vida, do narrado para o

compreendido; pois o leitor, ao fazer a sua leitura de um texto narrado, também

poderá estar fazendo um julgamento que pode estar impregnado de conceitos

e pré-conceitos, mas não ter consciência de sua visão de mundo; ninguém é

totalmente neutro, tampouco nenhum texto, escrito ou não, está isento de

ideologias ou pré-conceitos.

Desse modo, Heidegger afirma, referendado por Gadamer, que “a

interpretação começa com preconceitos que devem ser substituídos por

conceitos mais adequados” (GADAMER, 2000, p. 144). Isso leva a afirmar que,

para compreender um texto, é necessário fazer um confronto com as próprias

ideias e opiniões, não ignorá-las.

Afirma ainda Gadamer que “aquele que pretende compreender, não se

entregará mais à casualidade da própria opinião” (op. cit., p. 145), pois isso,

27

sem dúvida, dificultaria ou mesmo impossibilitaria a compreensão. O autor

ainda afirma: “quem pretende compreender um texto está disposto a deixar que

o texto lhe diga algo” (id. ibid.). É essa reciprocidade, ou seja, o diálogo entre o

texto e os pré-conceitos, que vai permitir uma interpretação coerente de um

texto.

É nesse ponto que entra o que Gadamer (2000) chama de círculo de

compreensão, ou que poderíamos chamar simplesmente de círculo

hermenêutico, e que é basicamente a maneira como Ricoeur estrutura o seu

pensamento narrativo, baseado na Poética aristotélica5, de maneira circular.

Gadamer assim explica o círculo de compreensão: “O movimento da

compreensão discorre, assim, do todo para a parte e novamente ao todo”

(GADAMER, 2000, p. 141ss). Assim podemos representá-lo:

FIGURA 1: Representação do círculo de compreensão de Gadamer – do todo para as partes e de novo para o todo, sem perder as partes.

A compreensão parte do todo em direção às partes, regressando de

novo para o todo, porém enriquecido pelas partes, ou seja, por tudo aquilo que

aconteceu antes de retornar para o todo.

O que ilustra muito bem toda essa metáfora do círculo é a história de

Alice no País das Maravilhas, de L. Carrol6. Na história, por muitos conhecida,

Alice, sentada à beira de um riacho, morrendo de tédio, observou a passagem

de um coelho branco, falante. Sem nada melhor para fazer, passou a seguir o

coelho, sendo que nessa perseguição caiu num poço que parecia não ter mais

fim, tempo esse de queda no qual aproveitou para tecer uma série de

pensamentos. Após chegar ao fundo do poço, passa por uma série de

aventuras e conhece diversos personagens. Em poucas palavras, pode-se

5 A tripla mimese ricoeuriana é uma forma de círculo de compreensão: a narrativa parte da

prefiguração, passa pela configuração e chega à refiguração, sendo que esta última está no ponto de partida, ou seja, o elemento comum é a figuração, e a refiguração começa no próprio ponto de partida que é a prefiguração; contudo, sofrendo as influências de tudo o que aconteceu nesse caminho. 6 A edição usada aqui é da editora Martin Claret, coleção A Obra Prima de Cada Autor: Carrol,

L. Alice no País das Maravilhas. São Paulo, Martin Claret, 2006.

28

resumir a aventura de Alice assim: aproxima-se do buraco, cai nele até o fundo;

torna-se pequena para poder entrar no mundo que lhe abre as portas; sofre

para poder compreender esse mundo; busca ajuda de quem já o conhece, por

mais maluco que seja; descobre caminhos; participa na reelaboração desse

mundo e, no final, recebe ajuda de todos aqueles aos quais pediu essa ajuda,

para poder encontrar o caminho de volta. Alice aqui pode representar o

pesquisador, que mergulha no objeto de pesquisa muitas vezes movido pela

curiosidade. Percorre um longo caminho e, quando pensa ter chegado ao fim

da aventura (o fundo do poço), percebe que ainda há muitas coisas por

acontecer. Tudo o que acontece, desde o começo da pesquisa, é fundamental

para ir resolvendo o problema inicial. No caso de Alice, o problema era saber

quem ela era (cf. Carrol, 2006). Além de ajudar a resolver o problema, ainda

tudo colabora para que o pesquisador consiga sair do poço e retornar ao ponto

de partida.

A primeira coisa que aparece claramente nessa aventura é o itinerário

percorrido. Embora não tenha sido um itinerário elaborado, ele teve uma ordem

de acontecimentos e todos tiveram relevância no resultado final. A segunda

coisa é a percepção circular desse caminho. Tal e qual o círculo de

compreensão, ela saiu de um ponto de partida, percorreu um caminho,

aprendeu muitas coisas nesse caminho, e regressou ao ponto de partida – a

saída do poço – do mesmo jeito que entrou, contudo enriquecida com tudo que

aprendeu dentro do poço e do novo mundo que lá conheceu.

Gadamer diz que “O movimento de compreensão discorre, assim, do

todo para a parte e novamente para o todo. A tarefa é ampliar, em círculos

concêntricos, a unidade do sentido compreendido” (GADAMER, 2000, p. 141).

Assim, representando o círculo de compreensão, agora na forma de círculos

concêntricos, temos:

FIGURA 2: Representação do Círculo de Compreensão na forma de círculos concêntricos

- Ponto de partida – todo - Do todo para as partes - De volta para o todo, enriquecendo-o

29

Ricoeur priorizou, em seus escritos, a hermenêutica. Justamente por ter

nela o ponto de partida para suas obras, o tema das narrativas perpassa parte

delas.7 O importante, nisso, é perceber o que Ricoeur compreende por

narrativa, ou como trabalha o tema.

Apresentaremos agora como, para Ricoeur, estas questões acerca da

identidade narrativa ganharam importância, e como, da mesma maneira, o ser

humano encontra-se consigo mesmo através das narrativas, o que reforça a

formação da sua identidade.

1.3 Identidade narrativa: onde o ser humano se encontra consigo mesmo

Paul Ricoeur é um dos filósofos mais importantes e influentes da

segunda metade do século XX. Nascido em Valence, na França, em 1913, e

falecido em Chatenay Malabry, perto de Paris, em 2005, passou por muitos

momentos difíceis em sua vida, chegando a ficar preso num campo de

concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Outro ponto marcante na

sua vida foi o suicídio de seu filho, em 1986. De formação religiosa protestante,

dedicou-se à filosofia, e dentro dela de maneira especial ao existencialismo de

Karl Jaspers e à fenomenologia de Edmund Husserl. Partindo daí, desenvolveu

algumas ideias sobre o ser humano. Estudou o discurso simbólico e renovou

consideravelmente a hermenêutica com a linguística, a psicanálise, a

fenomenologia e a exegese bíblica. Foi professor em Louvaine, Yale (E.U.A) e

na Sorbonne. Sofreu a dura realidade de não ter sido compreendido pelos

intelectuais do seu tempo, especialmente os franceses. Passou, porém, para a

história como um dos maiores pensadores contemporâneos.

Ter passado por experiências tão fortes na vida ajudou-o a desenvolver

seu pensamento tão centrado no “ser”. Suas principais obras destinam-se a

compreender as relações do sujeito consigo mesmo, despertando para um

construir da identidade pessoal. Nelas costuma debater com diversos autores

que também trabalham o mesmo tema, como é o caso da discussão com Parfit

7 Além da acima citada obra, ainda podemos apresentar as seguintes: A metáfora viva, Tempo

e narrativa vol 1, 2 e 3, Si mesmo como um outro, entre outros.

30

no seu artigo “A Identidade Narrativa”, publicado em 19888. É um forte

debatedor e com grande espírito crítico.

Ricoeur apresenta, na sua obra Tempo e Narrativa, a tripla mimese, na

perspectiva aristotélica. Segundo esta perspectiva, uma narrativa se divide

entre muthos e mimese, ou seja, entre a intriga e a imitação. Surge, assim, a

tripla mimese, que ele chama de Mimese I, Mimese II, e Mimese III. A Mimese I

ele chama de prefiguração. É a preparação do autor para narrar a história. Esta

preparação já o ajuda a ir-se imbuindo dos acontecimentos, sejam eles de

ficção ou não. É o primeiro passo da narrativa. A Mimese II é a configuração,

ou a narração da história em si. Essa narração, que deve ter um público, seja

ele leitor ou ouvinte, ou ambas as coisas, trabalha a história. Enquanto ela vai

sendo narrada, autor e leitor vão se apropriando dela. Assim, vai-se

preparando a Mimese III, ou refiguração. Essa refiguração é o novo significado

que a realidade apresenta após a narrativa. Esse novo significado vai sendo

construído com a intriga da narrativa, e é fruto das duas coisas: do narrar e do

ouvir.

De acordo com Ricoeur (2000), isso vai dar origem à Identidade

Narrativa, que acontece com a junção da tripla Mimese. Ou seja, o fato de

trabalhar com a história, seja ela de ficção ou não, ajuda o autor e aqueles que

a lêem ou ouvem, a formar a sua identidade.

Identidade, então, para Ricoeur, é aquilo que a pessoa é, ou seja, é o “si

mesmo” (idem). Assim sendo, afasta-se do conceito tradicional aristotélico, de

que identidade é a unidade que torna os objetos idênticos. Também é diferente

da visão de Leibniz, que diz que dois objetos idênticos são aqueles que podem

substituir um ao outro sem prejuízo (cf. Abbagnano, 1998, p. 530). A visão que

o filósofo tem da identidade está mais próxima da psicologia, na qual se fala

que ela é “aquilo que permanece” (cf. Comte, 2007, p. 9). Claramente em

Ricoeur aparece essa ideia de que identidade é aquilo que permanece apesar

8 O artigo “Identidade Narrativa” faz parte de uma sequência de dois artigos publicados em

1988, após a publicação do livro “Tempo e Narrativa”, em 3 volumes. Este artigo foi divulgado na revista Esprit 7/8 (1988) pp 295-304, sob o título L’identité Narrative. A versão utilizada neste trabalho é a tradução portuguesa do Prof. Carlos João Correia, da Universidade de Lisboa, publicada na internet no seguinte endereço: metafisica.no.sapo.pt/ricoeur.html. Na obra “Tempo e Narrativa”, Ricoeur já havia iniciado o tema “Identidade narrativa”, porém com pouca profundidade, nada mais que um anexo do volume 3.

31

do tempo e ao mesmo tempo aquilo que muda com o tempo. Ou seja, é aquilo

que a pessoa é, não é aquilo que a torna idêntica aos outros.

A narrativa, de acordo com Ricoeur (1997 [tomo 1], p. 87ss), seja ela de

ficção ou histórica, passa pelos processos de prefiguração, configuração e

refiguração, que é o processo pelo qual a história é preparada, narrada e

vivenciada. É ele que vai ajudar na transformação do narrador.

Ricoeur parte do pressuposto, já por si bastante conhecido, e baseado

em Santo Agostinho e Aristóteles, de que história e vida, e tempo e narrativa,

se fundem. Essa afirmação em si não é dele, mas é o que defende em sua

obra:

It has always been known and often repeated that life has something to do with narrative; we speak of a life story to characterize the interval between birth and death. And yet assimilating life to a story in this way is not really obvious; it is a commonplace that must first be submitted to critical doubt. This doubt is the work of all the knowledge acquired in the past few decades concerning narrative, a knowledge which appears to distance narrative from lived experience and to confine it to the region of fiction

9 (RICOEUR in WOOD (org.), 2003, p.

20).

Tudo o que é narrado se passa no tempo. É isso que existe em comum

em todas as formas de narrativa, sejam relatos biográficos/autobiográficos,

históricos ou narrativas de ficção - incluindo nessas as narrativas escritas ou

não escritas, como o cinema, por exemplo (cf. Ricoeur, 2000, p. 10). Aliás,

outra ideia importante referente a isso é que não só toda narrativa se passa no

tempo, como tudo o que acontece no tempo pode ser narrado. Nesse ponto, o

autor levanta a hipótese de que um determinado evento só pode ser localizado

no tempo na medida em que pode ser narrado (id. ibid).

Além do fator tempo, o autor demonstra ainda ter outra preocupação: a

da linguagem que é empregada no texto. E para discutir isso, o ponto de apoio

é Aristóteles e a obra Poética. Uma vez que a narrativa transmite uma

experiência temporal, é necessário que a linguagem empregada seja apurada

para que possa realmente transmitir o que deseja ser transmitido. Olhando

9 “É sempre conhecido e muitas vezes repetido que vida tem algo a ver com narrativa. Nós

falamos de uma história de vida para caracterizar o intervalo entre o nascimento e a morte. Assimilar a vida à história dessa maneira não é algo muito óbvio; é lugar comum que deve ser primeiramente submetido a uma dúvida crítica. Essa dúvida é o trabalho de todo o conhecimento adquirido nas últimas décadas, concernente às narrativas, um conhecimento que aparece para distanciar narrativa de experiência vivida, e para confinar a primeira à região da ficção” (Tradução livre).

32

para a Poética, utiliza da expressão Mŷthos, que designa a trama, para indicar

a operação da elaboração da trama, que vai transformar um texto numa

narrativa, com começo, meio e fim (op. cit., p. 11ss).

O pensamento de Ricoeur é histórico10. É a história que move a dupla

reflexão sobre o tempo e as mediações. Uma coisa é o pensamento

hermenêutico, ou seja, o que significa aquilo que é contado. O outro fator,

igualmente importante, é a dimensão da história-narrativa, ou seja, o que é que

é contado, em si mesmo, livre de interpretações. No ato da narrativa, ou de

contar a história, esse segundo fator assume igual importância, pois mostra

exatamente não aquilo que o narrador quis dizer, mas aquilo que ele disse.

É importante para a nossa pesquisa compreender que, para Ricoeur, a

narrativa histórica e a de ficção têm uma origem comum (cf. Ricoeur [Tomo 1],

1997, p. 280). Segundo ele, as narrativas têm seu início no “ouvir dizer”.

“Nesse sentido, é possível dizer que todas as artes da narração e, em

qualidade eminente, as que saíram da escrita, são imitações da narrativa tal

como já é praticada nas transações do discurso comum” (id. ibid.). Diz o autor,

na já citada obra, que “a narrativa de ficção é mais rica em informações sobre o

tempo, no próprio plano da arte de compor, do que a narrativa histórica” (op.

cit, p. 283).

Essa ideia de que as diferentes formas de narrativa saem de uma

mesma origem são de fundamental importância para compreender a identidade

narrativa, que será abordada a seguir. Como veremos, ela remete ao conceito

de círculo hermenêutico aqui refletido.

Convém recordar que Ricoeur trabalha a narrativa como sendo de ficção

ou histórica, incluindo nessa segunda categoria as biografias e autobiografias,

e na primeira, além dos romances, o teatro e o cinema (cf. Ricoeur, 2000).

Apesar de fazer distinção entre os dois gêneros de narrativa, eles se

encontram, pois uma obra de ficção sempre apresenta elementos

autobiográficos e uma obra autobiográfica ou histórica sempre apresenta

elementos de ficção:

10

Mongin (p.115) usa essa expressão para indicar a preocupação de Ricoeur com a história e a narrativa, não para situar o pensamento de Ricoeur historicamente.

33

A interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada – esta última serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia, ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR, 2000, p. 2).

As ideias acerca de identidade narrativa que o filósofo francês nos fez

conhecer ampliam a nossa visão do conceito de identidade. Aprofundando o

pensamento de Ricoeur, poderemos mais facilmente fazer a ligação com a

narrativa e desenvolver as questões éticas e estéticas que se desenvolvem a

partir daí.

Conforme vamos adentrando na obra de Ricoeur, percebemos uma

aproximação cada vez maior com a definição psicológica de identidade, que

traz, em si, também, elementos antropológicos. Pode-se perceber essa ideia

quando Ricoeur afirma que a sua tese é a de que “muitas dificuldades que

obscurecem a questão da identidade pessoal resultam da falta de distinção

entre os dois usos do termo identidade”11 (RICOEUR, 2000, p. 2).

Por isso, é necessária uma atenção toda especial ao ler este autor,

porque se formos levar em consideração apenas a perspectiva filosófica ou a

sociológica, teremos certa dificuldade de compreensão. Perceber que a

identidade de que Ricoeur trata é a identidade pessoal é fundamental nesse

caso.

A identidade enquanto idem é a primeira dimensão da identidade. Não é

especificamente humana, mas comum a todos os seres vivos. Refere-se àquilo

que permanece ao longo do tempo. Poder-se-ia dizer que é aquilo que

permanece enquanto tudo muda. Esse tipo de identidade está presente em

todo ser, pois ele, ao longo da vida, mantém características essenciais. O ser

humano nasce e morre humano, sem perder as características essenciais. E

todos os seres humanos possuem características que lhes são comuns,

podendo ser atribuídas tanto a um quanto a outro, assim como todos os

animais de determinada espécie, todos os vegetais ou todos os minerais

pertencentes a esta ou àquela espécie.

Comte narra por que para Ricoeur a identidade enquanto idem é menos

importante:

11

O grifo é nosso, justamente para dar destaque à questão da identidade pessoal.

34

Vista como identidade-idem, ou identidade total ou personalidade plena, é a “continuidade ininterrupta” de uma realidade. Devido ao tempo ser fator de evolução, é preciso supor que sob as aparências de mudança existe um princípio de permanência, uma substância oculta (um quê) que garante a estabilidade. Mas uma tal maneira de ver convém melhor às coisas do que às pessoas. Eis porque Paul Ricoeur se inclina para um segundo conceito de identidade (COMTE, 2007, p. 15).

Em se tratando desse tipo de identidade, não se pode dizer que seja

estático, mas sim permanente. Não é estático porque acompanha as mudanças

ocorridas na pessoa, ou no ser, mas é permanente porque apesar das

mudanças ela permanece. As características essenciais continuam. É isso que

faz com que possa ser chamada de identidade no sentido filosófico do termo,

uma vez que aqui ela é vista como algo que identifica o ser, que faz com que

os seres da mesma espécie sejam reconhecidos, apesar de haver diferenças

individuais.

De acordo com Correia,

Quando não somos capazes de discernir a diferença entre dois objectos numericamente diferentes dizemos que ele são idênticos por semelhança. Mas o facto de não sermos capazes de discernir a diferença, não significa que ela não exista. Segundo o «princípio de identidade dos indiscerníveis», formulado, por Leibniz, a consideração de duas entidades como indiscerníveis implica posicionar o mesmo ente duas vezes. O que, no limite, significa que a identidade por semelhança nunca pode ferir a identidade específica subjacente à identidade numérica (CORREIA, 2000, p. 3).

Dessa maneira, compreender a identidade enquanto idem, embora

pareça mais simples, implica reconhecer também as diferenças individuais, o

que torna as coisas não tão simples assim. Para Ricoeur, contudo, importa

mais o segundo modelo de identidade, que não apenas leva em conta essas

diferenças, como também existe porque essas diferenças acontecem.

A identidade enquanto ipse, segundo modelo de identidade, tem, para

Ricoeur, um peso maior, porque é profundamente humano. Se fôssemos

formular um conceito filosófico como no modelo anterior, poderíamos dizer que

é “o que muda enquanto tudo permanece”, ou seja, refere-se àquelas

mudanças que ocorrem no ser o tempo todo, que fazem com que ele mude,

mas mesmo assim continue sendo ele. Baseado na visão heraclitiana de

35

mundo, de que tudo muda12, traz em si o diferencial de que tudo muda, mas

essas mudanças mantêm a identidade do ser.

A palavra ipse possui significado semelhante à palavra idem. Ambas

significam “o mesmo, o próprio”13. Porém, o sentido é diferente. Em Ricoeur,

enquanto por idem podemos entender “o próprio”, por ipse entendemos o “si

próprio”. Essa pequena distinção é fundamental para que se possa

compreender o que o autor quer dizer com identidade enquanto ipseidade.

Dizer “si próprio” coloca a questão no âmbito pessoal.

Uma das grandes preocupações de Ricoeur, ao estudar a questão da

identidade, é a dimensão “tempo”. No primeiro volume da sua obra “Tempo e

Narrativa”, ele dedica um capítulo inteiro ao assunto, num estudo sobre o

capítulo XI das Confissões de Santo Agostinho14. Nesse estudo, Ricoeur faz

diversos questionamentos acerca do tempo e de suas influências na vida do

ser humano. E é justamente a partir desses questionamentos que ele chega à

identidade enquanto ipse. Até então, nas próprias palavras do autor, segundo

Correia, havia as ideias de Kant, baseadas em Aristóteles:

Todos os fenómenos contêm algo de permanente (substância) considerada como o próprio objecto e algo de mutável, considerado como uma simples determinação deste objecto, isto é, de um modo de existência do objecto (A 182, B 224). Reconheceu-se aí a primeira analogia da experiência que corresponde na ordem dos princípios, isto é, dos primeiros juízos, à primeira categoria da relação que se chama precisamente substância e cujo esquema é «a permanência do real no tempo, isto é, a representação deste real como um substrato da determinação empírica do tempo em geral, substrato que permanece enquanto tudo o resto muda» (A 143, B 183) (CORREIA, 2000, p. 4).

Para Ricoeur, é aí que começam os problemas, pois entra em questão

o tempo. Uma vez que a questão da identidade aparece como a permanência

do real no tempo, era preciso encontrar um lugar para as mudanças, para

aquilo que Kant chamava de “algo de mutável”. Assim, Ricoeur desenvolveu a

12

Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, é autor da célebre afirmação de que ninguém atravessa o mesmo rio duas vezes, porque ao mesmo tempo as águas correram, e o rio não é mais o mesmo, e também o sujeito que atravessaria o rio mudou. Essa afirmação, por sua vez, contrapõe-se à ideia de Parmênides, de que as coisas não mudam, mas permanecem sempre as mesmas. Poderíamos comparar a identidade enquanto idem à visão de Parmênides, e a identidade enquanto ipse à visão de Heráclito. 13

De acordo com FARIA, Ernesto (org.). Dicionário escolar latino-português. 3ª Ed., Rio de Janeiro: MEC, 1962. 14

As páginas 19 a 54 do Tomo I são dedicadas a esse assunto.

36

ideia do ipse, que é a permanência no tempo, porém com as mudanças

advindas dessa permanência. O sujeito continua o mesmo, mas mudou.

Sobre isso, Stefani afirma:

A ipseidade concerne ao aspecto da identidade pessoal perpassada pela alteridade, mais flexiva e reflexiva. Flexiva, pois se constitui durante uma vida inteira, modificando-se de acordo com os encontros hermenêuticos que o sujeito realiza com os outros, com os textos e com os símbolos do mundo; reflexiva, pois não se põe de modo imediato (STEFANI, 2006, p. 79).

A ipseidade não se constitui de modo imediato, pois necessita do tempo,

ou seja, ela existe a partir da ação do tempo no sujeito. Num primeiro

momento, pode parecer que a ipseidade e a mesmidade, fazendo parte da

mesma pessoa, possam ser complementares e se entrecruzarem.

De acordo com Correia,

Ricoeur procura-nos mostrar a profunda diferença entre pensar-se a identidade pessoal em termos de mesmidade e de ipseidade. A identidade diz-se de duas maneiras: como «mesmidade» encontra-se subjacente a noção latina de idem que expressa a identidade alcançada a partir da permanência substancial no tempo; pelo contrário, o conceito de «ipseidade» implica um outro tipo de identidade, enquanto ipse, que se constrói a partir da temporalização de si próprio. Ora, para Ricoeur, esta diferença não é meramente semântica, na medida em que é possível surpreender uma distinção ontológica correspondente. O ser enquanto idem e o ser como ipse não são coincidentes embora se possam entrecruzar. Enquanto o idem traduz a neutralização impessoal de uma existência (o indivíduo não como uma pessoa, mas como uma entidade neutra), o ipse manifesta a presença a si próprio de uma pessoa (CORREIA, 2000, p. 3).

O entrecruzar dessas duas identidades gera o que Ricoeur chama de

“identidade narrativa”, como veremos. Assim nos diz Garrido: “A intervenção da

identidade narrativa faz-se na mediação entre ambos os pólos (...) onde o idem

e o ipse tendem a coincidir (...)” (GARRIDO, 1994, p. 139).

Chegamos, então, a um problema crucial para Ricoeur, que é a questão

da identidade narrativa. Sobre ele, o autor debruçou-se nos últimos anos de

sua vida, e dedicou diversos artigos e livros, vários dos quais citamos no

presente trabalho. Cabe perguntar: por que o autor dá tanta importância a esse

tema? Ou, ainda, o que seria exatamente a identidade narrativa?

Num primeiro olhar, não é difícil perceber que Ricoeur dedicou bastantes

energias na discussão desse tema. Assunto, aliás, que só surgiu após a

37

publicação dos três volumes de Tempo e Narrativa (Temps et recit, em francês

no original), conforme o próprio autor nos conta:

Confrontei-me com este problema no fim de Temps et récit III, quando me interroguei, no termo de uma longa viagem através da narrativa histórica e da narrativa de ficção, se existia uma experiência fundamental capaz de integrar os dois grandes conjuntos de narrativas. Formei então a hipótese segundo a qual a constituição da identidade narrativa, seja de uma pessoa individual, seja de uma comunidade histórica, era o lugar procurado desta fusão entre história e ficção (...) (RICOEUR, 2000, p. 1).

Perceber esse contexto histórico, narrado pelo próprio autor, é

importante para melhor compreender a ideia que Ricoeur expressa ao falar em

identidade narrativa. A sua preocupação residia no fato de que, em algum

momento, realidade e ficção se cruzam; em algum ponto da história, a vida

passa a ter elementos de ficção, e a ficção passa a fazer parte da vida. É

justamente nesse cruzamento que o autor acredita haver algo de importante

que pode transformar a vida humana.

Após publicar Tempo e Narrativa, Ricoeur deparou-se com um cenário

onde se fazia uma diversidade de conjeturas acerca da identidade pessoal (cf.

Souza, 2008, p. 1ss15). Nesse contexto, apareciam autores já consagrados

como Locke e Hume, ambos precursores do questionamento acerca da

identidade humana, mas contemporaneamente Ricoeur viu-se obrigado a

dialogar com autores como John Perry e Amélie Rorty, que introduziam já

elementos psicológicos na questão filosófica da identidade.

Cesar diz que

O que constitui a diferença entre duas realidades objetivamente idênticas, dois objetos, mas principalmente duas pessoas, é sua história respectiva, o que se pode contar de cada uma delas. A narrativa tem, pois, a despeito das dificuldades de se achar um substrato identificativo, a virtude de manifestar a identidade pessoal (CESAR, 1998, p. 10).

É importante o que se pode contar. Não apenas a real história, mas de

fato o que se pode contar. Pode-se utilizar a distinção de Ricoeur (2008, p.

41ss) acerca de memória e lembrança. Ele situa a memória como algo estático,

como aquilo que de fato é, ou foi. A lembrança pode vir misturada com

elementos criados pela imaginação, ou mesclada com outras lembranças.

15

Como o texto foi retirado da internet (metafisica.no.sapo.pt/william.html), sem referência bibliográfica e sem data, citarei apenas o autor e usarei como data o ano de acesso à página, citando como número de página o referente do texto retirado.

38

Ambas são importantes, e ambas são verdadeiras, embora talvez não sejam

reais. Da mesma forma se pode falar daquilo que se pode contar acerca de

determinada pessoa ou objeto. Se aquilo que se pode contar for ficção, ainda

assim tem uma grande importância, pois Ricoeur diz que a identidade narrativa

pode acontecer justamente na fusão entre história e ficção (Ricoeur, 2000, p.

178).

Para compreender melhor o que o autor quer dizer com identidade

narrativa, é preciso retornar ao assunto já discutido neste capítulo, que é a

questão da identidade enquanto idem e enquanto ipse.

Para tratar do assunto, e poder afirmar que a identidade narrativa resulta

do entrecruzar-se do idem com o ipse,16 o autor trabalha, dialogando com

Parfit, a partir dos assim chamados puzzling cases, que são questões às quais

não se chega a uma resposta que se encaixe numa lógica aristotélica,

justamente porque nela se cruzam ficção e vida. Apresentarei um, citado por

Ricoeur, que ajudará a melhor compreender:

Suponhamos que é feita do meu cérebro e de toda a informação contida no resto do meu corpo uma réplica tão exacta que ela seja indiscernível do meu cérebro e do meu corpo reais. Suponhamos que a minha réplica é enviada sobre a superfície de qualquer planeta e que eu próprio sou «teletransportado» ao encontro da minha réplica. Suponhamos ainda que durante a viagem o meu cérebro é destruído e que eu não me encontre com a minha réplica, ou ainda que só o meu coração é danificado e que eu encontre a minha réplica intacta, a qual me prometeria tomar conta da minha família e da minha obra após a minha morte. A questão é de saber se, num caso ou noutro, eu sobrevivo na minha réplica (RICOEUR, 2000, p. 7).

É uma situação um tanto quanto embaraçosa, porque não se pode dizer

que haja uma resposta consistente, justamente porque não posso dizer que eu

sobreviveria na minha réplica, pois ficaria o questionamento: a réplica sou eu?

Ricoeur continua:

16

Pode parecer contraditório que já apresentei aqui a identidade narrativa como o ponto e encontro entre o idem e o ipse, entre história e ficção, e entre a tripla mimese. A pergunta que viria disso seria: qual das três definições está correta? Na verdade, as três. Elas não são necessariamente distintas. Entre eles acontece a mesma relação. Quando for possível que ocorra a síntese entre a configuração, a prefiguração e a refiguração, ali acontece a identidade narrativa, porque é o ponto em que a narrativa se encontra com o leitor. O mesmo podemos dizer do idem e do ipse: onde eles se cruzam, o ponto de fusão é o local onde o ser humano se encontra por inteiro. No caso do cruzamento entre história e ficção, a identidade narrativa se dá porque os elementos históricos e de ficção que existem na narrativa formam, nesse ponto, um só.

39

Como se vê, a função desses casos embaraçantes é de criar uma situação tal que seja impossível decidir se sobrevivo ou não. O choque de retorno da indecidibilidade da resposta é de minar a crença que a identidade, seja no sentido numérico, seja no sentido da permanência no tempo, deva sempre ser determinada; se a resposta é indecidível, diz Parfit, é porque a própria questão é vazia; chega então a conclusão: a identidade não é o que importa (id. ibid. p. 7).

Ricoeur, neste artigo, faz um diálogo com Parfit, com o objetivo,

justamente, de mostrar que, se para este último a identidade não é o mais

importante, ele quer provar que ela tem importância. Como o próprio autor fala,

a identidade narrativa é “o tipo de identidade à qual um ser humano acede

graças à função narrativa” (op. cit. p. 1). A narrativa, tanto de ficção quando

histórica, tem relação com a vida.

A identidade narrativa está diretamente relacionada com a tríplice

mimese, já apresentada nesse capítulo. Sendo ela alcançada graças à função

narrativa, faz-nos recordar a tripla mimese: Mimese I, ou prefiguração; Mimese

II, ou configuração, e Mimese III, ou refiguração (cf. Ricoeur, 1997 [Tomo I], p.

85ss; Comte, 2007, p. 17ss). A prefiguração é quando a história vai

acontecendo, mas ainda não tem forma. Ou, como diz Comte, está esperando

para ser contada. Já a configuração é quando damos forma à história, e

damos-lhe uma maior coerência por colocá-la na forma narrativa. A refiguração

é o terceiro passo, e é o que vem depois da história narrada. É o que acontece

depois, as mudanças ocorridas com o sujeito. Comte assim explica:

Nossa identidade não somente toma forma ao ser narrada, mas ela se transforma em outras narrativas que a vêm enriquecer e descortinar novos horizontes para ela (pode adotar outra forma ou figura; pode ser refigurada). Para construir nossa identidade, temos que pô-la em ressonância com outras narrativas para que ela possa enriquecer-se com elas (COMTE, 2007, p. 19).

Refigurar é dar nova forma. E isso acontece quando a narrativa não se

perde em si mesma. Ao contar minha história de vida, posso fazê-lo

simplesmente para me exaltar. Ou então, para colocá-la em comparação com

outras histórias, reais ou de ficção, e com elas aprender algo sobre a minha

vida. Nos dois casos, um tipo de identidade estará se consolidando a partir da

narrativa. No segundo caso, contudo, as chances de dar um redirecionamento

a alguns aspectos da minha vida são maiores.

40

A identidade narrativa, então, não são as mudanças que ocorrem na

vida do narrador ou do leitor/ouvinte a partir da narrativa. Elas fazem parte do

processo. A identidade narrativa é a maneira como o narrador ou o

leitor/ouvinte posiciona sua vida ou assume sua própria história tendo como

meio a função narrativa.

41

2 EDUCAÇÃO ESTÉTICA E IDENTIDADE NARRATIVA: QUESTÕES

ENTRELAÇADAS

No presente capítulo vamos tratar a questão da educação estética em

sua relação com a identidade narrativa. Trataremos de buscar em Schiller o

conceito de educação estética, colocando-o em diálogo com Freire e com La

Salle. Em Freire, daremos maior importância a duas de suas obras: Pedagogia

da Autonomia (2003) e Medo e Ousadia (1986).

Pensar a educação estética nesta pesquisa supõe também retomar e

aprofundar as ideias de Ricoeur já apresentadas, no anterior capítulo, sobre

identidade narrativa, e colocá-las em diálogo com os conceitos de educação

estética.

É fundamental, ao pensar a dimensão estética da formação, conceber a

vida como uma obra de arte – que pode ser narrada. Por outro lado, é

importante também compreender que não é apenas o fato de poder ser

narrada que faz da vida uma obra de arte, mas o fato de ela estar em

permanente construção. A narração da vida é a expressão da vida enquanto

obra de arte.

O ato de trazer presente a educação estética quer contribuir para uma

reflexão mais profunda sobre educação. Formação de educadores combina

com arte, do mesmo jeito que a arte combina com a vida.

2.1 Trajetória de Ricoeur em direção à identidade narrativa

Olhar para Ricoeur como sendo o autor e principal expoente da

identidade narrativa faz-se muito importante aqui. Como já descrevemos em

que consiste a identidade narrativa, passaremos agora à trajetória seguida pelo

autor até aqui.

Os grandes responsáveis pela sua descoberta, ou, se preferirmos, pela

sua aprendizagem de que o ser humano pode ser narrado, pode narrar e pode

narrar-se, e de que isso interfere na sua formação e na descoberta da sua

identidade, são Santo Agostinho e Aristóteles. Embora a ideia da identidade

narrativa seja fruto de muitos anos de estudos e do amadurecimento de várias

outras ideias, é nestes dois autores que ele encontrou as dúvidas.

42

Partindo de Santo Agostinho e de todas as aporias do tempo, em

confronto com Aristóteles e a problemática da narrativa, chegou à conclusão de

que tempo e narrativa se cruzam em algum momento, e esse cruzamento

atravessa novamente a questão da identidade. Benjamin também revelou ser

um importante ponto de apoio na questão da identidade do narrador.

Precisamos, contudo, estendermo-nos um pouco mais em cada um dos

autores para que a compreensão possa ser maior.

2.1.1 Início do percurso: Aristóteles e Santo Agostinho

Em períodos distintos, duas ideias aparentemente sem ligação

chamaram a atenção de Ricoeur: a influência do tempo na vida humana e a

questão das narrativas. Sobre o primeiro assunto, encontrou questionamentos

em Santo Agostinho, e sobre o segundo, em Aristóteles. Por isso, traremos

aqui ideia que serviram de base para o desenvolvimento questão da identidade

narrativa, e que se pode dizer que marcaram o início do percurso do autor no

sentido de compreender a relação entre, num primeiro momento, tempo e

narrativa, e num segundo momento, entre narrativa e identidade. Embora

Ricoeur não tenha lido exclusivamente esses dois autores, foram eles, sem

dúvida, os mais importantes.

No primeiro volume do livro Tempo e Narrativa (1997), o autor apresenta

uma primeira discussão com as aporias da experiência do tempo, encontradas

no Livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Uma das aporias é a questão

do ser do tempo. O argumento mais usado é o de que o tempo não tem ser,

pois o instante que é, já não é mais. O presente se transforma em passado

antes que seja possível percebê-lo, de modo que o passado não é mais, o

presente não permanece e o futuro ainda não é. Contudo, falamos no tempo

como tendo um ser. “Dizemos que as coisas por vir serão, que as coisas

passadas foram e que as coisas presentes passam” (RICOEUR, 1997 [Tomo

1], p. 22). O próprio Santo Agostinho exprime, na forma de angústia, essa

incerteza diante do tempo:

O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei. (...) De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –,

43

se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente que passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? (SANTO AGOSTINHO, 1975, p. 244).

Outra aporia é a questão da medida do tempo. E esta questão

transforma-se em aporia, quando dizemos que medimos o tempo que passa.

Como se pode medir algo que não é? Em relação a esta aporia, Agostinho

refuta todos os argumentos que dizem que o tempo pode ser medido contando

os dias, ou medindo a trajetória dos astros no céu, ou de qualquer outra

maneira. Reconhece a sua pequenez diante do fato e conclui: “Como posso

fazer isso, se ignoro o que seja o tempo? (...) Ai de mim, que nem ao menos

sei o que ignoro!” (op. cit. p. 251).

Estas e outras dificuldades em relação ao tempo levaram Ricoeur a

investigar o assunto. As outras dificuldades são resumidas por ele através de

exemplos: “seja um som que começa a ressoar, que ressoa ainda e que cessa

de ressoar. Como falamos disso?” (RICOEUR, 1997 [Tomo 1], p. 34). Como

situar este som no tempo e no espaço? Em que momento ele soou? Ou ainda:

Eis um outro som que ressoa: suponhamos que ressoe ainda (adhuc): „Meçamo-lo enquanto (dum) ele ressoa.‟ (...) Onde está então a dificuldade? Resulta da impossibilidade de medir a passagem quando continua no seu „ainda‟ (adhuc). É preciso, com efeito, que algo cesse, para que exista um começo e um fim, logo, um intervalo mensurável (id. ibid. p. 36).

Para Ricoeur, a aporia da medida do tempo pode ser resolvida se

levarmos em conta, primeiro, que o que medimos não é o tempo, mas a sua

espera e a sua recordação (cf. Ricoeur, 1997 [Tomo 1], p. 40].

Enfim, neste capítulo de Tempo e Narrativa, Ricoeur percorre o Livro XI

das Confissões, aprofundando todas as questões que encontra nele. Não é

nosso interesse aqui fazer um resumo do capítulo, o que não caberia no

presente trabalho, mas sim apontar algumas das aporias que geraram em

Ricoeur os questionamentos que culminaram com a conceituação de

identidade narrativa. Tampouco queremos falar sobre todo o livro das

Confissões, pois isto Ricoeur já o fez. Contudo, é importante frisar que Santo

Agostinho ainda coloca em contraste o tempo e a eternidade, apontando a

44

estabilidade da eternidade e a instabilidade do tempo, sendo esta própria uma

experiência negativa.

Na questão da identidade narrativa, podemos encontrar a questão do

tempo nas definições de idem e ipse, aquilo que passa e aquilo que permanece

na identidade do ser humano.

Depois de discutir a polêmica do tempo em Agostinho, Ricoeur coloca as

questões apresentadas em confronto com Aristóteles, na Poética. É de

Aristóteles que ele extrai as categorias denominadas Mimese, fundamentais na

construção da identidade narrativa. Dedica um capítulo inteiro a isso17,

analisando principalmente a maneira como Aristóteles trabalha a questão da

intriga (muthos) e da imitação (mimese) dentro da poesia. Ricoeur explica essa

questão da intriga e da imitação:

Por ocasião da epopéia e da tragédia, Aristóteles elaborou sua noção de „pôr em intriga‟ (muthos) visando à „representação‟ (mímesis) da ação. (...) Uma implicação importante dessa operação configuradora diz respeito diretamente, a saber, que a colocação em intriga não é menos a dos personagens – dos „caracteres‟ – que a das ações. É o personagem aquele que faz a ação na narrativa. A categoria do personagem é, pois, também uma categoria narrativa, e seu papel na narrativa depende da mesma inteligência narrativa que a própria intriga: o personagem, pode-se dizer, é ele próprio colocado em intriga (RICOEUR, 2006, p. 114-115).

Ao afirmar que o personagem da narrativa é, ele mesmo, colocado em

intriga, o autor afirma um ponto central da identidade narrativa: o entrecruzar-

se ficção-realidade.

Ricoeur (1997 [Tomo 1], p. 56) percebe em Aristóteles um completo

silêncio acerca do caráter temporal na poética. Ou seja, embora seja

importante que esta tenha relação com a vida, não existe qualquer referência à

sua localização no tempo. Contudo, é graças a esse silêncio que o autor

consegue extrair aquilo de que mais necessita, e também graças a ele que não

fica preso a este autor; apenas utiliza-se dos conceitos de muthos-mimese, ou

seja, da tessitura da intriga e da atividade mimética (mimese=imitação). Será

este, aliás, o eixo norteador de Ricoeur ao falar sobre as narrativas,

especialmente da Identidade Narrativa. Ele não faz uma imitação de

17

O capítulo 2 do Tomo 1, intitula-se O tecer da intriga: uma leitura da Poética de Aristóteles.

45

Aristóteles, mas apropria-se dos conceitos acima citados para, assim,

desenvolver a sua pesquisa.

Aristóteles fala de poesia como sendo imitação. Já o Capítulo I leva o

título: “Poesia é imitação. Espécies de poesia imitativa, classificadas segundo o

meio de imitação”. Partindo desse início, o autor discorre sobre as obras de

poetas conhecidos, como Homero e Empédocles18, para demonstrar que a

poesia faz parte do ser humano, pois poesia é imitação, e imitar é da natureza

humana (cf. Poética 13ss).

Ricoeur, comentando a Poética, cita a imitação como Mimese (cf.

Ricoeur, 1997 [Tomo 1], p.55ss)19. Isso, porque a narrativa é a imitação da

ação, ou imitação da vida. Essa mimese é que dá origem à narrativa, mas não

é a narrativa em si, pois esta última é a expressão da imitação, como fica claro

na seguinte passagem:

E como a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as ações, daí vem por conseqüência o serem duas as causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter (Poética 30).

É possível perceber, neste parágrafo, que o autor diferencia as ações de

acordo com a pessoa que as vive. Esse detalhe é importante, porque na

concepção de identidade narrativa apresentada por Ricoeur, a individualidade

precisa ser respeitada. O que vai dar origem à identidade narrativa é o

cruzamento da ficção com a realidade, e é nesse cruzamento que a

individualidade tem lugar.

18

Recordemos que era muito comum, para a época, o gênero de narrativa em forma de poesia. A Odisseia, de Homero, é um bom exemplo disso. Muitos anos mais tarde, mesmo tendo-se popularizado a narrativa em prosa, houve autores, como Camões, que utilizaram este gênero de narrativa. Por isso Aristóteles não está falando pura e simplesmente da poesia em si, mas de todo o gênero literário que era mais usado então. 19

A esse respeito, afirma Gazoni: Há grande controvérsia quanto ao sentido de mímese em Aristóteles, o que se reflete nas escolhas para a tradução do termo. As edições mais antigas (Hardy, Bywater, Eudoro de Sousa, Bruna, Gallavotti) vertem o termo por „imitação‟. Dupont-Roc e Lallot (cujo livro sobre a Poética é de 1980) chamaram atenção para a inconveniência dessa tradução e optaram por „representação‟. Há ainda a possibilidade de deixar o termo como no original, „mímese‟. Halliwell procede assim e essa é a solução adotada aqui, ainda que isso deixe o texto pouco fluente quando é o caso de traduzir o verbo correlato: „mimetizar‟ não é do português corrente, e „realizar a mímese‟, outra opção possível, torna a leitura carregada. A solução não compromete o tradutor com nenhuma tese a respeito do que seria mímese, o que é uma estratégia escrupulosa em se tratando de um termo controverso (GAZONI, 2006, p. 36).

46

É necessário distinguir ficção de história, e é uma das preocupações de

Ricoeur. Ao falar de narrativa, ele reporta-se a essa distinção, porém

colocando-as num nível semelhante, ao afirmar que nas duas aparecem

elementos pessoais do autor e nas duas aparece ficção (cf. Ricoeur, 2000,

p.178). Essa ideia é importante na hora de estabelecer a identidade narrativa,

pois esses dois elementos (realidade e ficção) são o que vai constituir essa

identidade. É possível, contudo, ir além dessa ideia. Citando White, autor que

afirma que história e narrativa se confundem, Decca diz que, embora história e

ficção literária pertençam ao campo das narrativas, “existem diferenças nos

seus modos de enunciação” (DECCA, 2000, p. 18). Se a história fosse

narrativa, segundo o autor, precisaria ser lida de acordo com a crítica literária.

Em determinado momento, Ricoeur (1997) e Decca (2000) combinam.

Ricoeur afirma que, embora estejam num nível semelhante, a narrativa

histórica e a narrativa de ficção colocam-se em campos distintos, pois partem

de referenciais diferentes, mesmo ambas referindo-se à ação humana.

Partindo daí, retornamos à questão da memória. Aristóteles reporta-se

ao problema, anteriormente citado, que é enfatizado por Bosi (2003), das

“falhas” na memória. Ele assim o faz quando fala sobre problemas críticos da

poesia. Afirmando que

O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginário; por isso, sua imitação incidirá num destes três objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser. Tais coisas, porém, ele representa mediante uma elocução que compreende palavras estrangeiras e metáforas, e que, além disso, comporta múltiplas alterações, que efetivamente consentimos ao poeta (Poética 161),

o autor reconhece que a arte de narrar recebe inúmeras interferências, seja de

ordem pessoal ou de ordem externa, que Aristóteles chama de erros essenciais

ou acidentais. O erro é essencial quando ocorre por incapacidade do poeta de

fazer a imitação como deveria ser; e é acidental quando o poeta não consegue

representar, por descuido, a realidade tal como ela é. Por esse lado caímos na

mesma observação já feita por Benjamin e Ricoeur, de que a memória sofre

interferências, seja de distrações, seja de outras memórias, seja de outras

pessoas. Aristóteles, porém, prefere “o impossível que persuade ao impossível

que não persuade” (Poética 177). Isso confere a Ricoeur legitimidade para

47

afirmar que na narrativa, ficção e realidade se entrecruzam e são ambas

importantes na formação da identidade do indivíduo que narra ou que é

narrado.

Enfim, é em Aristóteles, mas não só, que Ricoeur busca inspiração para

escrever e para desenvolver a teoria da identidade narrativa. É o par mimese-

muthos, juntamente com as aporias do tempo, de Santo Agostinho, que lhe dão

as bases para a sustentação para seus estudos. Percebe-se, tanto em

Aristóteles, quanto em Santo Agostinho, como também em Benjamin e Ricoeur

uma forte preocupação com a estética no movimento narrativo. E é justamente

por isso que precisamos compreender os conceitos de estética e,

posteriormente, de educação estética. No próximo capítulo dedicaremos

espaço para isso.

2.1.2 Fim ou início do percurso: Benjamin e o narrador

Outra figura igualmente importante para compreender o entrelaçamento

da narrativa e da identidade é Benjamin. Importante pensador da Escola de

Frankfurt, ele enfrentou os horrores do nazismo, tendo perdido (ou tirado) a

vida devido aos sofrimentos impostos a ele e a outros. Destacou-se, contudo,

pela sua obra mais conhecida, que se chama O Narrador.

Benjamin (1975) tem como foco de sua obra o narrador. Seu trabalho

mais conhecido, que leva esse nome, é um ensaio com observações acerca da

obra de Nicolai Lescov20. Neste ensaio, o autor começa lamentando a

dificuldade cada vez maior de encontrar boas narrativas. Chega a afirmar que

“a arte narrativa se aproxima gradativamente do fim” (BENJAMIN, 1975, p. 63).

Segundo ele, isso acontece pelo distanciamento progressivo entre o ser

humano e a experiência. O distanciamento entre o narrador e a experiência

vivida faz com que esta perca muito de seu valor.

Andando na contramão da teoria literária, Benjamin diferencia romance

de narrativa. Dentro da teoria literária, encontramos uma definição técnica para

narrativa em Vieira (2001, p. 601), que diz ser possível dizer que narrativa é

20

Nicolai Lescov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895 em São Petesburgo. Revela certo parentesco com Tolstoi, mas é mais ligado a Dostoievski. Escreveu romances, e, no fim da vida, contos, sendo estes a parte mais importante de sua obra (cf Benjamin, 1975 p. 63).

48

todo texto que tenha uma sequência cronológica e lógica. Não é assim que

pensa Benjamin. Ele faz uma diferenciação importante. Para ele, uma das

características principais da narrativa é poder se valer da tradição oral

(Benjamin, 1975, p. 64ss). O romance, porém, carece dessa característica,

distinguindo-se da narrativa. Isso entra em conflito com o que Vieira e outros

autores, incluindo Ricoeur (1997) defendem como sendo narrativa. Este último

(1997 [Tomo 1] p. 137ss; 2000, p. 177ss) coloca as narrativas de ficção e as

históricas no mesmo patamar, incluindo na ficção os romances, filmes, peças

de teatro entre outras.

Esse conflito de Benjamin com os romances é assim visto por Ewald:

Talvez a questão de Benjamin em relação ao romance possa ser entendida mais especificamente em função da interiorização que ele provoca, mantendo-se numa esfera individual e afastado dos conselhos e do senso prático das narrativas, os quais para Benjamin carregam a sabedoria, que, por sua vez, constituiria o lado épico da verdade. Mas, na continuação deste trajeto, ele parece imiscuir o romance com a imprensa, que carrega uma nova forma de comunicação: a informação, a qual passou a influenciar decisivamente as formas épicas, devastando a narrativa e ameaçando o próprio romance. Neste ponto parece haver um embaraço entre a ameaça latente no romance e na imprensa, dando uma impressão de que uma seria, de certa forma, extensão do outro

(EWALD, 2008, p. 03).

Claro é, então, para Benjamin, que é necessário valorizar a experiência

vivida. Nem é necessário que essa experiência venha de longe. Uma vivência,

por mais simples que seja, tem tanto valor quanto algo vivido em outras terras.

As tradições e histórias do próprio país têm valor, embora seja comum valorizar

mais aquilo que vem de fora.

De acordo com Benjamin (1975, p. 65), “o narrador é uma espécie de

conselheiro de seu ouvinte”. E, ser conselheiro “significa muito menos

responder a uma pergunta do que fazer uma proposta sobre a continuidade de

uma estória que neste instante está a se desenrolar” (id., ibid.). Por isso, para

ser conselheiro, “é necessário, antes de mais nada, saber narrar a estória”(id.,

ibid.). Colocar o narrador como conselheiro é valorizar ainda mais a sua

pessoa, é colocá-lo mais conectado com a vida, pois a princípio ninguém

deveria saber mais sobre ela do que quem a narra.

49

Outra característica da narrativa é que ela “não se gasta. Conserva todo

o seu vigor e durante muito tempo é capaz de desenvolver-se” (BENJAMIN,

1975, p. 68). Acerca disso, o autor recorda o conto “Psamenita”, narrado por

Heródoto no capítulo 14 de seu livro de Histórias, sobre Cambises, rei dos

persas, que derrotou e prendeu Psamenita, rei dos egípcios, colocando-o

amarrado na beira da estrada, onde podia ver sua filha passando como

escrava, assim como seu filho sendo levado para a execução. Ao ver passar

seus filhos, Psamenita manteve-se forte, porém ao ver passar seu criado

entrou em desespero. Essa história acaba aí, sem qualquer explicação de

Heródoto. Porém, muitos séculos depois, Montaigne buscava resposta a esse

fato, chegando à conclusão de que Psamenita manteve-se forte, porém como

uma represa foi-se enchendo e, ao ver o criado, transbordou. Poderia, porém,

ser qualquer outra a explicação. Heródoto não dá o motivo, mas o fato de, tanto

tempo depois Montaigne ainda se ocupar da narrativa demonstra o quanto esta

permaneceu viva e continua causando comoção e perplexidade. Essa é uma

característica da verdadeira narrativa.

Para o autor, não existe narrativa separada da vida. Em Benjamin vamos

encontrar a seguinte afirmação:

A narrativa, tal como se desenvolve durante muito tempo no círculo dos ofícios mais diversos – do agrícola, do marítimo e, depois, do urbano -, é, por assim dizer, uma forma artesanal de comunicação. Sua intenção primeira não é transmitir a substância pura do conteúdo, como o faz uma informação ou uma notícia. Pelo contrário, imerge essa substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio. Assim, a narrativa revelará sempre a marca do narrador, assim como a mão do artista é percebida, por exemplo, na obra de cerâmica (BENJAMIN, 1975, p. 69).

Esse pensamento está de acordo com a ideia, presente em Ricoeur, de

que toda obra de ficção tem um pouco de autobiografia, e toda autobiografia

tem um pouco de ficção (cf Ricoeur, 2000, p. 128). A narrativa não pode ser

desvinculada da vida em nenhum aspecto, mesmo quando é transformada em

história em ficção, pois se houver essa separação corre-se o risco de fazer a

narrativa desaparecer.

A interação narração-vida é o ponto forte da obra de Benjamin. Ao longo

do ensaio ele defende essa ideia, de que não existe narrativa sem que a vida

50

do narrador esteja presente. Ou mesmo a morte, como parte integrante da vida

(cf. Benjamin, 1975, p. 75). O envolvimento, além de fundamental, é

praticamente inevitável. O narrador não consegue dissociar completamente o

que está contando da própria vida.

Em Scholze (2008), encontramos justamente essa ideia: o texto é

resultado da intertextualidade, através da qual o sujeito vai recompor a própria

história, autonarrando-se. A autora diz que pensa “ser possível analisar como,

através do texto, o que está em constante fazer, desfazer e refazer, numa

perspectiva foucaltiana” (SCHOLZE, 2008, p. 97).

“Fazer, desfazer e refazer” remete ao círculo de compreensão, ou círculo

hermenêutico, na perspectiva de Gadamer, já descrito no capítulo introdutório

do presente trabalho. Embora Benjamin não situe a questão do narrador numa

perspectiva hermenêutica, da maneira como ele trabalha o tema pode-se

depreender isso, especialmente quando aproxima tão veementemente

narração e vida.

Um dos auxiliares mais importantes do narrador é a memória. Isso se dá

porque, como já vimos, para Benjamin a narrativa apoia-se na transmissão

oral. O autor recorda que “a musa dos autores épicos era, entre os gregos,

Mnemosina, aquela que se recorda” (BENJAMIN, 1975, p. 73). Assim como

Ricoeur (2008), Benjamin distingue memória e recordação. Contudo, é uma

distinção muito sutil, quase imperceptível. Ele se refere à recordação como a

historiografia, e à memória como o elemento formador do épico – que passou a

se mostrar diferente, quando o romance começou a abandonar a obra épica e

transformar-se em mera elaboração de uma história sem relação necessária

com a vida. Já em Ricoeur (2008) encontramos a mesma distinção, porém

muito mais elaborada. Este autor faz diversas distinções, entre memória,

imaginação, lembrança, entre outras. Segundo este autor, a memória está no

singular, ou seja, ela permanece, sem sofrer efeitos externos, ao passo que a

recordação pode estar entremeada de elementos que não são

necessariamente históricos. Ambos, porém, diferentemente de Benjamin, têm

igual importância na narrativa, que sempre apresenta elementos de ficção

entrelaçados com elementos da vida, elementos históricos.

Sobre a memória, Bosi (2003) afirma que ela pode ser muito

interessante, mas “corre o risco de cair numa „ideologização‟ da história do

51

quotidiano, como se esta fosse o avesso oculto da história política homogênea”

(BOSI, 2003, p. 15). É que a autora, ao contrário de Ricoeur e Benjamin, não

faz o mesmo tipo de diferenciação. Ela trata tudo como memória. Quando

Benjamin relata a importância da tradição oral para a narrativa, ou melhor, a

necessidade da mesma, ele não está se referindo apenas à memória histórica,

como o faz Bosi. Ele se refere, sim, à memória do “contar histórias”, e aí a

fidelidade aos fatos não é tão importante. Ricoeur, pelo contrário, dá valor à

memória histórica, que, quando não é fiel aos fatos, é tratada como

“lembrança” ou “recordação”. São os elementos de ficção que, para ele,

compõem a narrativa, seja ou não histórica, e que possuem fundamental

importância na composição da identidade narrativa.

Ricoeur (1997 [Tomo 1] p. 138) apresenta assertiva igual à de Benjamin,

a do eclipse da narrativa, especialmente na historiografia francesa e na

epistemologia neopositivista. Apoiado em Benjamin, o autor (1997 [Tomo 3] p.

45), apresenta um possível fim, uma morte, da arte de contar. Contudo, a visão

de Ricoeur é mais ampla. Segundo ele, esse declínio, essa morte da narrativa

tal qual a conhecemos não impede que novas formas de narrativas estejam

nascendo. “Elas atestarão que a função narrativa pode se metamorfosear, mas

não morrer. Pois não temos qualquer idéia do que seria urna cultura em que

não se soubesse mais o que significa narrar” (op. cit. p. 46).

A narrativa, como a vida, é dinâmica. Ricoeur assim o reconhece. E o

coloca da seguinte maneira:

A problemática do reconhecimento de si atinge simultaneamente dois pontos culminantes com a memória e a promessa. Uma se volta para o passado, a outra para o futuro. Mas elas têm de ser pensadas conjuntamente no presente vivo do reconhecimento de si, graças a alguns traços que possuem em comum (RICOEUR, 2006, p. 123).

É colocando a memória e a promessa juntas, que o autor considera a

possibilidade de a narrativa renascer sob forma diversa, não conhecida. O

mesmo se dá com o ser humano, a partir das narrativas: o resgate da memória

e a promessa do futuro.

E se Ricoeur vê a narrativa de maneira positiva, que, como a Fênix,

renasce das próprias cinzas, Benjamin vê na narrativa uma maneira realista de

prolongar a própria vida; dessa maneira, ao vislumbrar um possível fim da

52

narrativa, ambos têm motivos diferentes. Mas o objetivo é o mesmo: fazê-la

renascer.

2.2 Ricoeur, Schiller, Freire e La Salle: um diálogo sobre Educação

estética

À primeira vista, falar em conceito de estética pode soar um tanto quanto

inútil, tendo em vista que, para diversas pessoas, ela é simplesmente sinônimo

de belo. Por outro lado, estética pode ter diferentes significados, não sendo a

associação com o belo definitivamente necessária. Para uma melhor

compreensão, podemos retomar sua concepção original que, segundo Iser

(2001), sofreu mudanças ao longo do tempo, e que na era moderna está

ressurgindo:

A natureza da estética, contudo, mudou ao longo do tempo, e para compreender seu ressurgimento precisamos antes retornar em sua história. Baumgarten definiu a estética (1735) como „a ciência de como as coisas podem ser conhecidas [cognise] pelos sentidos‟, implicando, com isso, que ela tinha um componente tanto cognitivo quanto emotivo (ISER, 2001, p. 35).

Esse conceito, tido por Iser como original, foi adotado por autores que se

seguiram. Outros, porém, preferiram seguir outra linha, como foi o caso de

Hegel (1974ab), um dos mais importantes autores sobre estética da época.

Para justificar a sua maneira de ver a estética, ele afirmou que “a toda ciência

cabe o direito de se definir como queira” (HEGEL, 1974a, p. 87). Esta

afirmação serve para justificar esta outra, apresentada pelo autor na

apresentação de sua obra: “Esta obra é dedicada à estética, quer dizer, à

ciência do belo, e, mais precisamente, do belo artístico, pois dela se exclui o

belo natural” (id. ibid.). A exclusão do belo natural da estética é, para o autor,

objeto da filosofia, e não apenas escolha sua. Isso porque, segundo ele, “o belo

artístico é superior ao belo natural, por ser um produto do espírito que, superior

à natureza, comunica esta superioridade aos seus produtos e, por conseguinte,

à arte” (id. ibid.).

Hegel, assim, não comunga exatamente das mesmas ideias de

Rosemberg, apesar de ter estudado estética ainda no final do mesmo século

(XVIII) e começo do seguinte (XIX). Neste trabalho, contudo, trabalharemos a

53

partir da visão de outro autor, contemporâneo aos anteriormente citados, e

igualmente importante quando se trata de estética. Trata-se de Schiller (2002),

poeta, filósofo e dramaturgo alemão, nascido em 1759 e falecido em 1805.

Escreveu, entre outras obras, A Educação Estética do Homem, em 1795.

Adotamos o conceito de educação estética em Schiller por entendermos que a

sua postura tem paralelo com a visão ricoeuriana, especialmente no que diz

respeito a uma mudança na pessoa a partir da estética. Também adotamos

Schiller por ser ele pioneiro na utilização do conceito de educação estética.

No que diz respeito ao conceito estético schilleriano, pode-se dizer que

ele assume uma postura profundamente arraigada no ser humano. Contempla

a estética como um elemento capaz de provocar mudanças. E defende uma

estética que pode ser aprendida e apreendida.

Vale recordar aqui que a palavra estética “deriva do grego aisthésis e

significa sensação, sentido, liberdade” (ISSE, 2007, p. 11). Começou a ser

concebida como ciência a partir de Baumgarten, no século XVIII, como a

ciência do que pode ser apreendido pelos sentidos. Popularizou-se como a

ciência do belo e passou a ser identificada com a arte. “A estética, contudo,

não se restringe ao campo da arte, mas diz respeito à natureza física como um

todo no ser humano” (id. ibid.).

Igualmente a Hegel (1974), Schiller contempla a estética como a arte do

belo. Vai além, porém, no sentido de contemplar o belo natural, e o belo no ser

humano, mostrando a importância da influência do mesmo para que haja

beleza; além disso, partindo do conceito original de aisthésis, afirma a

possibilidade de aprendizagem do belo, e as mudanças que essa

aprendizagem pode trazer para quem o aprende.

Schiller parte da visão kantiana de estética, na qual a noção de belo

estava ligada à faculdade do juízo e da criação do gosto. “Por outro lado, a

estética kantiana visa definir os limites da sensibilidade na forma dos conceitos

de espaço e tempo, que antecedem a toda experiência sensível” (SILVA, s/d).

Para Kant, o conhecimento pode acontecer a priori ou a posteriori. Ele coloca a

estética na área do conhecimento a priori, ou seja, ela antecede o juízo.

Em Schiller, o conceito de beleza se alcança graças ao equilíbrio entre

sentimento e entendimento, entre forma e matéria. Ele apresenta duas forças

opostas, que chama de impulsos, e os denomina de impulso sensível e impulso

54

formal. O sensível “parte da existência física do homem ou de sua natureza

sensível” (SCHILLER, 2002, p. 63), e limita o homem, pois não permite que seu

espírito saia do mundo sensível. O impulso formal “parte da existência absoluta

do homem ou da sua natureza racional e está empenhado a mantê-lo em

liberdade” (id. ibid.). De acordo com o autor, onde domina o impulso formal, o

objeto puro age em nós, compreendendo o objeto puro como o bem ou a

determinação moral em fazer o bem. A beleza acontece quando estes dois

impulsos não são opostos, mas se complementam gerando um fator comum de

equilíbrio.

Esse equilíbrio é fundamental para compreender o conceito de beleza,

no sentido de que, tanto o filósofo que se deixa levar pelos sentimentos, quanto

o que baseia tudo no entendimento, não conseguirão chegar a um conceito de

beleza (cf. Schiller, 2002, p. 70ss).

Apesar de apresentar o belo num contexto mais amplo, para além da

obra de arte, afirma Schiller:

A beleza não é nem estendida a todo âmbito do que é vivo nem se encerra nele. Um bloco de mármore, embora seja e permaneça inerte, pode mesmo assim tornar-se forma viva pelo arquiteto e escultor; um homem, conquanto viva e tenha forma, nem por isso é uma forma viva. Para isso seria necessário que sua forma fosse viva e sua vida, forma. Enquanto apenas meditamos sobre sua forma, ela é inerte, mera abstração; enquanto apenas sentimos sua vida, esta é informe, mera impressão. Somente quando essa forma vive em nossa sensibilidade e sua vida se forma em nosso entendimento o homem é forma viva, e este será sempre o caso quando o julgamos belo (SCHILLER, 2002, p. 77-78).

Percebemos, então, que para o autor, o conceito de beleza (ou de

estética) reside na síntese entre sentimento e entendimento. Isso posto, não

podemos aqui deixar de abrir parênteses para anotar uma aproximação com a

questão da identidade narrativa de Ricoeur. Olhando na perspectiva

schilleriana, a identidade narrativa não deixa de ser uma experiência estética,

pois, tal como o belo de Schiller, situa-se na síntese entre idem e ipse, entre

aquilo que permanece e aquilo que muda, e, por que não, entre sentimento e

entendimento. E, da mesma maneira, tende a provocar uma mudança, sendo

que para Schiller a descoberta do belo gera a liberdade (cf Schiller, 2002, p.

99) e para Ricoeur, a identidade (cf. Ricoeur, 2000, p. 177ss).

55

É aqui que entra a questão da educação estética. Para Schiller (2002), a

estética pode ser aprendida, e essa aprendizagem se dá aos poucos, dentro do

já citado equilíbrio entre sentimento e entendimento. Note-se aqui uma sutil

diferença entre a abordagem schilleriana e a abordagem pedagógica da

educação estética, que, ao tratar do assunto, traz à tona uma escola bonita,

uma educação bela (cf Perissé, 2009). Na visão filosófica, apresentada por

Schiller, é mais visível uma educação para o belo.

Na sua obra A Educação Estética do Homem, Schiller chega à

conclusão da necessidade de aprender o belo depois de perpassar diversos

campos da vida humana, como a política, demonstrando que o belo faz parte

da vida do ser humano tanto quanto as demais dimensões, e está presente

tanto na questão humana, ou seja, no físico, no psíquico e no espiritual, mas

também nas demais atividades exercidas pelo ser humano.

A dita necessidade se apresenta, segundo o autor, da seguinte maneira:

Não é suficiente, pois, dizer que toda a ilustração do entendimento só merece respeito quando reflui sobre o caráter; ela parte, em certo sentido, do caráter, pois o caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração. A formação da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do conhecimento (SCHILLER, 2002, p. 47).

Esta assertiva, presente na carta VIII, é a primeira desta obra na qual ele

defende diretamente a necessidade de uma educação estética, ou, como aqui

ele chama, de formação da sensibilidade. Deste ponto em diante é contínua a

sua insistência em que o ser humano se forme para o belo. Uma afirmação

bem explícita sobre essa necessidade encontra-se na Carta XX:

Sem que tomemos em consideração alguma lei ou fim, ele (o homem21

) pode aprazer-nos na mera contemplação e apenas por seu modo de aparecer. Nesta última qualidade, julgamo-lo esteticamente. Existe, assim, uma educação para a saúde, uma educação do pensamento, uma educação para a moralidade, uma educação para o gosto e a beleza. Esta tem por fim desenvolver em máxima harmonia o todo de nossas faculdades sensíveis e espirituais (SCHILLER, op. cit, p. 103).

21

Explicação nossa, tendo em vista que o sujeito oculto na frase (o homem) só aparece citado anteriormente.

56

A relação entre estética e formação é apresentada pelo autor ao longo

da obra, num crescendo. Primeiro apresenta a questão política e alguns males

que dela advêm. Procura, depois, mostrar que o ser humano é responsável

pelos males. Passa a explicar os dois impulsos que direcionam os seres

humanos que são o sensível e o formal, para chegar à questão da educação

estética.

Os dois impulsos, o sensível e o formal, aparentemente são opostos,

pois um exige mudanças e o outro imutabilidade (cf. Schiller, op. cit, p. 67). Por

isso mesmo, faz-se necessário um terceiro impulso que, em princípio, é

impensável, pois os dois primeiros esgotam o conceito de humanidade. Dessa

maneira, “a eficácia de cada um ao mesmo tempo funda e limita o outro; (...)

cada um encontra sua máxima manifestação justamente pelo fato de que o

outro é ativo” (SCHILLER, op. cit, p. 73). É justamente no equilíbrio entre esses

dois impulsos que surge um terceiro, que Schiller chama de impulso lúdico. A

importância do lúdico está em alcançar a beleza através do jogo de equilíbrio,

onde o sensível e o racional se equilibram. O autor contempla isso como um

jogo, e nos remete ao conceito de liberdade. “O impulso lúdico é o equilíbrio

que o homem consegue quando se libera das limitações da sensibilidade e da

razão, a partir de um salto dialético que supera esta oposição” (VERÁSTEGUI,

2007, p. 4).

O impulso lúdico ajuda o ser humano a aprender a apreciar o belo, pois

este, como os outros gostos, é aprendido. Ele serve como intermediário na

passagem do estado passivo da sensibilidade para o estado ativo do

pensamento (cf. Schiller, 2002, p. 113). E esse é o principal fruto da educação

estética: a formação do homem sensível. O sensível aqui não se refere apenas

à sensibilidade artística, mas ao todo da existência humana:

Pela disposição estética do espírito, portanto, a espontaneidade da razão é iniciada já no campo da sensibilidade, o poder da sensação é quebrado já dentro dos próprios domínios, o homem físico é enobrecido de tal maneira que o espiritual, de ora em diante, só precisa desenvolver-se dele segundo as leis da liberdade. O passo do estado estético para o lógico e moral (da beleza para a verdade e o dever) é, pois, infinitamente mais fácil que o do estado físico para o estético (da vida meramente cega para a forma) (SCHILLER, 2002, p. 114).

57

Em Schiller, estética e ética caminham juntas. Elas convergem porque a

estética garante o equilíbrio do indivíduo de tal maneira que ele pode aspirar ao

político, que é o princípio da autonomia (cf. Verástegui, 2007, p. 8). Da mesma

maneira, a estética conduz ao conceito de liberdade; este, por sua vez, é um

dos princípios éticos fundamentais. De modo que Freire, que diz que na escola

é preciso “decência e boniteza de mãos dadas” (FREIRE, 2003, p. 32), está

reafirmando um princípio estético de Schiller, com a diferença que para Freire,

a estética e a ética caminham ao mesmo tempo, e para Schiller,a estética gera

necessariamente uma ética.

Antes de aprofundarmos a compreensão de Freire acerca da estética na

formação de professores, queremos ter presente a sua visão estético-

hermenêutica. Trata-se de um trecho no qual o autor demonstra como

compreende as coisas, e por que assim as compreende:

Nunca um acontecimento, um fato, um feito, um gesto de raiva ou de amor, um poema, uma tela, uma canção, um livro, têm por trás de si uma única razão. Um acontecimento, um fato, um feito, uma canção, um gesto, um poema, um livro se acham sempre envolvidos em densas tramas, tocados por múltiplas razões de ser de que algumas estão mais próximas do ocorrido ou do criado, de que outras são mais visíveis enquanto razão de ser. Por isso é que a mim me interessou muito mais a compreensão do processo em que e como as coisas se dão do que o produto em si (FREIRE, 2008, p. 18).

É uma visão estética do mundo, que ajudou o autor a estabelecer a sua

compreensão acerca das coisas. Ela aparece constantemente ao longo da obra

“Pedagogia da esperança”, e de maneira mais sutil nas suas outras obras. É

ela que vai delinear a sua compreensão de formação de professores, e

também o perfil que ele almeja para os professores.

Na vida de Freire, as suas teorias sobre formação foram se delineando

aos poucos, e não necessariamente a partir dos seus estudos e leituras. Muitas

vezes foi na prática, no dia a dia, no contato com as pessoas simples que ele

foi construindo o pensamento e a hermenêutica. Para ilustrar, podemos citar

um fato, por muitos conhecido, relatado por ele, do qual transcrevemos

algumas partes. O fato aconteceu após uma conferência na cidade do Recife

(PE):

Ao terminar, um homem jovem ainda, de uns 40 anos, mas já gasto, pediu a palavra e me deu talvez a mais clara e contundente lição que já recebi em minha vida de educador. (...) Pediu a palavra e fez um

58

discurso que jamais pude esquecer, que me acompanha vivo na memória do meu corpo por todo este tempo e que exerceu sobre mim enorme influência. (...) „Agora, eu queria dizer umas coisas ao doutor que acho que os meus companheiros concordam.‟ Me fitou manso mas penetrantemente e perguntou: „Dr. Paulo, o senhor sabe onde a gente mora? O senhor já esteve na casa de cada um de nós?‟ (...) Falou da falta de recursos para as mínimas necessidades. Falou do cansaço do corpo, da impossibilidade dos sonhos com um amanhã melhor. Da proibição que lhes era imposta de ser felizes. De ter esperança. (...) „Agora veja, doutor, a diferença. O senhor chega em casa cansado. (...) Mas – continuou ele – uma coisa é chegar em casa, mesmo cansado, e encontrar as crianças tomando banho, vestidinhas, limpas, bem comidas, sem fome, e outra é encontrar os meninos sujos, com fome, gritando, fazendo barulho. (...) Se a gente bate nos filhos e até sai dos limites não é porque a gente não ame eles não. É porque a dureza da vida não deixa muito pra escolher‟ (FREIRE, 2008, pp. 25-27).

Essa passagem ajuda a compreender como Freire aprendeu com os

“acontecimentos, fatos, feitos” da vida. É essa capacidade de aprender com as

coisas do dia a dia que torna o educador mais forte na sua identidade. Assim, a

formação não acontece apenas de maneira formal, mas também informal.

Pode-se dizer que esse contato com a realidade é uma experiência estética,

que às vezes pode ser a experiência estética da contrariedade, como se pode

depreender do texto de Freire acima citado. Acontece, após uma conferência,

de o autor esperar ter agradado ao público, e que os aplausos sejam a reação

positiva das pessoas àquilo que ele disse. Quando ocorre um questionamento

de alguém do público, é que acontece a experiência estética da contrariedade.

Que, como toda experiência estética, tem a função de levar o sujeito a um

crescimento pessoal.

Freire tem uma importante contribuição para a educação estética. Isso

acontece ao longo de toda a sua obra, mas aparece de maneira mais clara na

“Pedagogia da autonomia” (2003), e em uma entrevista concedida a Ira Shor,

publicada sob o título “Medo e ousadia” (1986). Nestes trabalhos, Freire

trabalha a estética do ponto de vista de um educador – muito embora sua

formação inicial tenha sido na área do Direito.

A relação que Freire faz entre educação e estética tem pontos em

comum e, em outros, difere da visão schilleriana. Em Freire, é mais visível a

educação como uma obra de arte, ou como processo criador:

Ensinar é assim a forma como toma o ato de conhecimento que o(a) professor(a) necessariamente faz na busca de saber o que ensina

59

para provocar nos alunos seu ato de conhecimento também. Por isso, ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico. A curiosidade do(a) professor(a) e dos alunos, em ação, se encontra na base do ensinar-aprender (FREIRE, 2008, p. 81).

É como processo criador que ela se transforma em obra de arte. Para

este autor, tudo o que acontece na sala de aula, desde o relacionamento

professor-aluno, até o tom de voz do professor, os gestos utilizados, os

exemplos, tudo isso faz parte da estética da sala de aula:

Creio que a partir do momento em que entramos na sala de aula, do momento que você diz aos alunos: „Olá, como vão?‟ você inicia, necessariamente, um jogo estético. (...) Assim a educação é, simultaneamente, uma determinada teoria do conhecimento posta em prática, um ato político e um ato estético (FREIRE; SHOR, 1986, p. 146).

Vale a pena apontarmos outra ideia, que reforça a questão da sala de

aula como obra de arte:

Outro ponto que faz da educação um momento artístico é exatamente quando ela é, também, um ato de conhecimento. Conhecer, para mim, é algo de belo! Na medida em que conhecer é desvendar um objeto, o desvendamento dá “vida” ao objeto, chama-o para a “vida”, e até mesmo lhe confere uma nova “vida”. Isto é uma tarefa artística, porque nosso conhecimento tem qualidade de dar vida, criando e animando os objetos enquanto estudamos (FREIRE, SHOR, 1986, p. 145).

É aí que se desenham as semelhanças e diferenças entre Freire e

Schiller. Se, para o segundo, a arte e a boniteza precisam ser ensinadas na

escola, para o primeiro elas precisam mais ser vividas do que ensinadas.

Contudo, para ambos, elas caminham lado a lado com a vida do educador e do

educando, e vão fazer a diferença em cada um. Além disso, importante, como

já fizemos anteriormente, destacar a proximidade – e inseparabilidade – da

ética e da estética nos dois autores.

Em Freire (2003), o educador precisa encontrar na própria escola

condições estéticas de trabalho (cf. FREIRE, 2003, p. 66). Estas condições

caminham de mãos dadas com a maneira como o professor trabalha, pois na

medida em que se exige dele uma postura de decência e boniteza, a escola

também deve ser assim.

60

Para este autor, é impossível educar sem fazer uma experiência

estética. O professor, em qualquer que seja o nível, é um auxiliar no processo

de formação. Contudo, para Freire, em entrevista a Shor (1986), este processo

é necessariamente um processo artístico. Assim sendo, a educação é, por sua

própria natureza, um exercício estético. Isso não significa que esse processo

estético ocorra o tempo todo. Ele acontece na medida em que se estabelece

uma relação com os alunos. Aí o professor é visto como um artista. Na mesma

obra-entrevista, questionado por Shor sobre a estética crítica do professor-

artista, Freire responde que concorda plenamente em que se chame o

professor de artista (cf. Freire; Shor, 1986, p. 145).

A ideia da formação como construção e como obra de arte em Freire

parte do fato de que o ser humano é inconcluso. É um ser que busca o

aprimoramento, o crescimento, que tem necessidade de aprender, e isso até o

fim do dia. É nessa concepção antropológica que se baseia a pedagogia de

Paulo Freire. Segundo ele, para ser educador é necessário curiosidade para

descobrir, humildade para aprender, respeito aos saberes dos outros, reflexão

crítica sobre a prática, e, principalmente, “consciência do inacabamento” (cf.

Freire, 2003).

O ser humano, ao contrário dos animais, sabe-se inacabado (cf. Freire,

1987). Para Freire, as raízes da educação estão aí, pois ela só é necessária a

partir do momento em que o ser humano reconhece que ainda precisa crescer.

Os animais não precisam da educação. Esse é também um dos motivos pelo

qual Freire (1987) critica a educação chamada “bancária”. É porque ela não

contribui para o crescimento do ser humano. Limita-se a transferir os

conhecimentos de uma cabeça para a outra, sem qualquer outra contribuição.

A beleza da educação está na educação em si. Esta relação é

importante perceber em Freire. Não existe estética dissociada de qualquer

elemento da vida. Embora a relação ou a experiência estética não aconteçam o

tempo todo na escola, assim como não acontecem o tempo todo para Schiller,

esta experiência é fundamental para a pessoa que dela participa, educador e

educando.

Na confecção de uma obra de arte, o artista aprende fazendo. Para

Freire, o educador é o artista e a educação a obra de arte. A relação que se

61

estabelece é a mesma afirmada por Schiller (2002), ao defender a necessidade

de uma educação estética.

Do ponto de vista da formação de professores, é importante recordar do

educador francês João Batista de La Salle que, embora não fale

necessariamente em educação estética, traz, nos seus escritos e na sua

concepção de escola e de formação, uma semelhança muito grande com as

ideias de Freire (1986). Nascido em Reims, na França, no ano de 1651, de rica

e influente família local – seu pai, Luis, era um dos conselheiros de Luis XIV –,

tornou-se padre muito cedo. Vale a pena recordar que ser sacerdote era motivo

de status naquele tempo.

Já ordenado padre, auxiliado por um educador de Rouen, chamado

Adrien Nyel, fundou algumas escolas gratuitas para os garotos pobres, que não

tinham acesso à educação. Com as inovações introduzidas por ele na área da

educação e da formação de professores, as escolas cresceram, tornando-se

uma rede nacional na França. Para mantê-las, La Salle fundou o Instituto dos

Irmãos das Escolas Cristãs, uma congregação religiosa que tinha por missão

manter as escolas de La Salle, chamadas de Escolas Cristãs.

Os Irmãos das Escolas Cristãs são na verdade os primeiros professores realmente formados para um ensino popular nas cidades. Eles inventam um material pedagógico padronizado, popularizam os grandes quadros impressos com letras e sílabas, distribuem a todos os alunos manuais idênticos, dividem a aprendizagem obedecendo uma progressão rigorosa, organizam exames mensais dirigidos por um Irmão inspetor que decide se o aluno pode ou não passar para uma classe superior (CHARTIER, 1997, p. 6).

Morales (2001) afirma que nos tempos de La Salle existiam na França

cinco tipos de professores: as congregações religiosas femininas, que eram

bem preparadas para atender às meninas; os sacerdotes professores, que

atendiam as escolas paroquiais e “clericalizavam” a imagem do professor; os

professores leigos, em geral preceptores de famílias abastadas; os professores

calígrafos, que ensinavam principalmente a caligrafia; os professores

elementares, um grupo disperso e com formação deficiente, mas que vinha

crescendo dia a dia, devido à crescente demanda. Esses professores eram

selecionados pelo município, pela assembleia de habitantes de uma cidade,

pelo padre ou por alguém que fundasse uma escola. Dependendo do tipo de

62

escola é que era feita a seleção dos professores, que recebiam um salário

razoável, suficiente para viver.

O que La Salle apresentou de novidade para a educação foi a criação da

primeira escola normal, chamada “seminário de mestres”. Esse fato é

reconhecido por diversos autores, entre eles Saviani (2005), Justo (2006),

Vieira e Gomide (2008), Chartier (1997). Se antes havia algum tipo de

formação para professores, não havia uma escola específica para isso. Justo

relata qual era a formação oferecida no seminário para formação de mestres:

Qual o programa e qual a duração dos estudos no seminário de mestres de São João Batista de La Salle? Em suas escolas normais ensinavam-se as seguintes disciplinas, segundo as informações fragmentárias de que dispomos: Catecismo, Leitura, Escrita, Ortografia, Gramática, Aritmética, sistema de pesos e medidas e Cantochão

22. A relação é seguramente incompleta por não

compreender as matérias de Pedagogia e Civilidade, às quais o Santo ligava muita importância, a ponto de escrever manuais específicos sobre o assunto para os seus mestres: o „Guia‟ (Conduite) e o „Tratado de Civilidade Cristã‟ (JUSTO, 2006, p. 307).

La Salle descreve pessoalmente como era o seminário de mestres, num

opúsculo intitulado “Memorial sobre o hábito”, no qual descreve para o pároco

local o motivo pelo qual o Instituto por ele fundado era composto por leigos

consagrados e não por sacerdotes, e por que eles usavam não a túnica

sacerdotal nem a roupa específica dos professores, mas um hábito próprio

criado por ele:

Ocupam-se os membros desta comunidade em dirigir gratuitamente as escolas, apenas em cidades, e em explicar diariamente o catecismo, inclusive aos domingos e festas. Formam-se também nela mestres-escolas para o povo, num prédio separado da comunidade, que chamamos de seminário. Os que aí se formam permanecem apenas por alguns anos (...). Quando transferidos para a aldeia, já não têm relacionamento com a comunidade a não ser o que a cortesia postula. Mas são sempre acolhidos em casa quando vêm fazer algum retiro (LA SALLE apud GALLEGO, 1993, p. 83).

A Comunidade a que La Salle se refere é a residência onde vivem os

Irmãos das Escolas Cristãs, ou seja, o Instituto Religioso encarregado de

cuidar das escolas gratuitas e do seminário para formação de mestres.

Percebe-se que havia uma boa integração entre os mestres em formação e a

22

Segundo o Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, cantochão é “Canto tradicional da Igreja, também chamado canto gregoriano, por ter sido coordenado, completado e fixado por São Gregório, o Grande”.

63

escola, na qual provavelmente praticavam o que aprendiam23. Eles viviam em

regime de internato no próprio seminário, de onde saíam apenas quando o

curso estava completo, diretamente para as escolas das aldeias. Isso

provavelmente representou um avanço significativo na qualidade do ensino nas

escolas rurais, uma vez que, se nem nas cidades havia mestres preparados,

nas aldeias muito menos.

A visão de educação que La Salle possuía era profundamente voltada

para a vida cristã, como não podia deixar de ser, tendo em vista ser ele

sacerdote e também o poder da Igreja na Idade Média. O pensamento era

teocêntrico. Contudo, tinha também os pés no chão, para saber que a escola é

o lugar onde as crianças devem passar a maior parte do dia, e onde devem

sentir-se bem. De acordo com Morales (2001), as contribuições de La Salle

para a pedagogia são grandes. Uma delas foi considerar a missão do professor

como vocação. Com isso, valorizava-os, tendo em vista que era uma das

profissões de menor prestígio na época. “Fue su tarea prioritaria: dignificar al

maestro, y tan alto lo elevó, que lo colocó a la altura de la „función apostólica de

obispos y grandes pastores de la Iglesia‟”24 (MORALES, 2001, p. 156).

Em relação à conduta dos educadores, La Salle desenvolveu a ideia das

doze virtudes de um bom educador: gravidade (dignidade, decoro), silêncio,

humildade, prudência, sabedoria, paciência, moderação, mansidão, zelo,

vigilância, piedade e generosidade (cf. Morales, 2001). Vale observar que eram

virtudes essencialmente cristãs, tendo em vista o caráter religioso da escola.

Mas, ao mesmo tempo, eram profundamente pedagógicas. O professor que

fosse capaz de observar estas doze virtudes, muito provavelmente teria

sucesso nos seus objetivos enquanto educador.

A preocupação de La Salle era que a escola fosse bem. Por isso pensou

tudo, desde a formação de professores até o dia a dia na sala de aula.

Organizou um calendário escolar com 200 dias letivos (cf. Gallego, 1993). Além

disso, escreveu o livro Conduite des Ècoles Chretiennes (Guia das Escolas

Cristãs), no qual descreveu nos mínimos detalhes como deveria ser a escola,

23

Provavelmente, porque não há registros de que assim o fosse. Supomos que praticavam a aprendizagem na escola pela proximidade que havia entre o seminário de mestres e a escola de La Salle. Contudo, não há sérios motivos para crer que a formação se desse nos moldes de hoje, com estágios em escolas. Em relação a isso, não sabemos muita coisa. 24

Foi sua tarefa prioritária: dignificar o professor; e tão alto o elevou, que o colocou à altura da „função apostólica de bispos e grandes pastores da Igreja.

64

desde o comportamento do professor até a organização da sala de aula. Este

livro servia de base para todas as escolas. É um guia prático, no qual não há

qualquer menção à formação dos mestres, o que leva a crer que era usado

como complementação ao seminário.

Percebe-se que, na formação de educadores e na pedagogia de La

Salle, a preocupação com a estética estava ligada ao estético da escola, ou

seja, uma escola que fosse bonita, e funcionasse devidamente. A única

preocupação com a arte que transparece nas suas escolas é a aprendizagem

do canto; contudo, este destina-se sobretudo a ser usado nas orações e

celebrações da missa, o que não deixa de ser uma preocupação estética.

A noção de estética aparece ainda na organização. Segundo o Guia das Escolas, a escola deve ser organizada; os professores não devem falar muito, para evitar maiores barulhos; deve haver um professor por classe, para que possa conhecer os alunos (e esse professor deve acompanhá-los no ano seguinte, até que saíssem da escola); os alunos têm determinadas funções que deveriam ser cumpridas; os professores utilizam-se do “sinal”, um aparelhinho pedagógico existente na época, para chamar a atenção dos alunos sem usar palavras; enfim, o livro descreve com clareza como deve ser

uma escola „bonita‟ (TREZZI, 2009, p. 7).

Ao valorizar a missão do professor como vocação, La Salle valorizava

também a história pessoal, uma vez que vocação tem a ver com a história. É

dessa maneira que se pode dizer com certa propriedade que La Salle (1997),

Schiller (2002), Freire (2001) e Ricoeur (1997), mesmo não tendo seguido as

mesmas linhas de pesquisa, possuem algo em comum: a importância da

formação enquanto possibilidade de mudança. Menciono aqui a formação sem

explicitar o tipo; ela aparece nos mais variados aspectos: formação estética,

pedagógica, narrativa, pessoal. Em todos estes âmbitos, ela pode ser fator de

formação da identidade, e tem potencial de transformação, como toda

aprendizagem.

Tomando-se por base essa consideração, da formação como potencial

transformador, podemos imaginar também o reverso da medalha: a pessoa

com potencial para deixar-se transformar. Em Freire estas duas realidades são

consideradas, e é isso que veremos a seguir.

Na escola, não são suficientes a relação sensível ou racional com a

educação. O terceiro impulso apontado por Schiller, o impulso lúdico, é

fundamental. Ele se estabelece a partir das possibilidades de aprendizagem

65

que a escola oferece, que vão ajudando a formar a pessoa do educando – e,

por que não, do artista, do educador.

Do ponto de vista da educação como obra de arte, a educação estética

proposta por Schiller faz todo o sentido e também a diferença. Uma vez que é

possível estabelecer esse tipo de relação, concordamos com Freire que a arte,

ademais de ensinada, precisa ser vivida.

Como já afirmamos anteriormente, Freire (2008) refere-se à historicidade

das coisas e à sua capacidade, enquanto históricas, de serem narradas, e de

buscar na narrativa os momentos fortes. Quando olhamos a questão por esse

ângulo, percebemos que reconhecer e aceitar a própria história de vida é

fundamental para buscar elementos que ajudem na própria formação. Isso

pode até ser chamado de autoformação (cf. Josso, 2004). Contudo, é mais que

isso: é a capacidade de buscar, nos acontecimentos da vida, elementos que

levem ao crescimento pessoal.

Diante da tripla mimese ricoeuriana, que é um dos elementos básicos

para a constituição da identidade narrativa, percebemos que há uma

convergência com essa ideia acima citada de Freire. Isso porque para Ricoeur,

independentemente de outros fatores, as narrativas são um elemento chave

para a formação e o crescimento pessoal. A capacidade de narrar ou narrar-se,

que aparece num antes, durante e depois (Mimese I ou prefiguração, Mimese II

ou configuração e Mimese III ou refiguração), tem como vantagem principal a

possibilidade de descobrir e descobrir-se. Falamos em possibilidade, pois o ato

de descobrir-se com a narrativa não é um fenômeno necessário, ele pode ou

não acontecer. Para que aconteça, a partir da refiguração, é importante que os

passos anteriores (prefiguração e configuração) tenham acontecido realmente.

Percebamos que ideia muito semelhante aparece em Schiller (2002), ao

desenvolver o conceito de lúdico. Para o autor, a transição do sensível para o

formal (racional) passa por um terceiro elemento, que é o lúdico. Neste terceiro

elemento existe maior capacidade de descoberta, tendo em vista que é um

meio termo entre o puramente sensível e o puramente formal. Nessa ponte, ou

passagem, habita o flexível, o jogo, a capacidade de diálogo e de

compreensão. Poderíamos afirmar que também a capacidade da narrativa, pois

numa pura contemplação da obra de arte, ou numa explicação racional, não

66

existe muito espaço para narrar. É por isso que habita no lúdico a potência da

mudança.

Em Freire, percebemos essa mesma assertiva, proposta, porém, em

outras palavras e de outra maneira. Ela é possível de ser percebida na própria

narrativa de sua formação, na já citada obra “Pedagogia da esperança”.

Nesta narrativa estão presentes os elementos acima citados. Quando o autor

fala na humildade como condição necessária para a formação, supõe também

o conhecimento necessário de si para assumir a sua condição de humildade.

Partindo das premissas acima citadas, é-nos possível estabelecer um

diálogo com Ricoeur, do ponto de vista da identidade narrativa, colocando a

narrativa como um momento estético, e o narrador como um artista. Nas

páginas que seguem buscaremos essa relação.

2.2.1 Ricoeur: A identidade narrativa como educação estética

A questão da identidade narrativa pode ser colocada também na

perspectiva da educação estética, ou, se preferirmos, da formação enquanto

obra de arte. As narrativas também provocam fascinação, repulsa ou

indiferença; também permitem momentos de êxtase, também mexem com o

interior humano.

A identidade narrativa se dá no encontro do idem com o ipse, conforme

já explicado em capítulo anterior. De acordo com Ricoeur (2000), pode-se dizer

que ela se dá também no encontro da história com a ficção, e nesse encontro

se dá o conhecimento de si:

o conhecimento de si próprio é uma interpretação, - a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada, - esta última serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR, 2000, p.2).

É aqui que aparece a dimensão do encontro, que, como já vimos, é

necessária na educação estética. Se a identidade narrativa se dá no entrelaçar-

se da história com a ficção, podemos dizer que é no cruzamento entre narrativa

e vida. Quando narrativa e vida se fundem, ambas se enriquecem, mas é nesta

67

última que ocorrem as maiores transformações. Isso é confirmado em Ricoeur,

quando diz que “a narrativa constrói o carácter durável de um personagem, que

se pode chamar a sua identidade narrativa, construindo o tipo de identidade

dinâmica própria à intriga que faz a identidade do personagem” (RICOEUR, 2000,

p.8). Assim, é a narrativa que age na vida; o contrário também acontece, segundo

Benjamin: “Assim a narrativa revelará sempre a marca do narrador, assim como a

mão do artista é percebida, por exemplo, na obra de cerâmica” (BENJAMIN, 1975,

p. 69). Contudo, se formos colocar em categorias de importância, a ação da

narrativa sobre a vida humana é mais importante do que o contrário, porque ela

provoca mudanças na existência humana antes de tudo. Ajuda o ser humano a se

descobrir.

Vamos tratar de duas formas de narrativa que são trabalhadas por

Ricoeur (1991; 2000): a narrativa histórica e a narrativa de ficção. A primeira

refere-se aos fatos que aconteceram, e a segunda a fatos que estão na

imaginação do seu autor. Segundo o mesmo autor, nas obras supracitadas,

ambas possuem um elemento comum que é o fato de que na ficção há

elementos da vida, da autobiografia, e na autobiografia há elementos de ficção.

Quem escreve ficção, inegavelmente inserirá, mesmo

inconscientemente, elementos da sua vida. Não é raro que se possa identificar

o autor pela maneira como ele escreve, pelos seus personagens, pelo enredo

do romance ou do conto. Quando isso acontece, é porque importantes

elementos autobiográficos aparecem, ainda que de maneira sutil, e ainda que o

próprio autor não o perceba. Por outro lado, ao escrever uma autobiografia, ou

uma biografia, haverá quem diga que a história passou-se de maneira

diferente, pois há inúmeros fatores que interferem diretamente na elaboração

da história.

É assim que se percebe a dimensão da arte na identidade narrativa, arte

como encontro e entrelaçamento: ficção e história que se entrelaçam com a

vida.

68

Nesta figura, que representa o entrelaçamento da identidade narrativa,

percebemos que história e ficção encontram-se entre si e com a vida. Contudo,

nenhuma envolve completamente as outras duas. A narrativa de ficção possui

elementos históricos (autobiográficos), que por sua vez possui elementos de

ficção, e ambas se envolvem com a vida. Esta, contudo, não recebe influência

da narrativa em sua totalidade, nem está totalmente revelada na narrativa. E a

identidade narrativa surge daí: do ponto em que as três convergem e do

resultado dessa convergência.

Considerando a identidade narrativa na perspectiva da educação

estética, vamos perceber que o labirinto gerado pelo entrelaçamento

representado na figura acima, apresenta nos diversos cruzamentos elementos

comuns. Ele gera um labirinto, porque não se restringe a um simples entrelaçar

história, ficção e vida (ou narrativa e vida), mas cada uma das nuances da vida

se entrelaça, por si só, com outras nuances da própria vida e da narrativa, de

maneira a nunca se isolarem uma da outra.

Desta forma, a identidade narrativa vai sendo construída como uma obra

de arte. Por um lado, pelo motivo acima exposto, do entrelaçamento, e por

outro porque vai sendo moldada aos poucos. A tripla mimese apresentada por

Ricoeur (1997 [Tomo 1]) é exemplo claro de que ela não acontece,

simplesmente, mas vai sendo moldada. A prefiguração, a configuração e a

refiguração são etapas da moldagem da identidade narrativa, que tem na

refiguração seu ponto principal, onde ela começa a delinear-se.

Ficção

História Vida

Figura 3: O entrelaçamento da identidade narrativa

69

Do ponto de vista schilleriano, a identidade narrativa e a educação

estética caminham juntas. Embora Schiller, tendo vivido muitas décadas antes

da criação do conceito de identidade narrativa por Ricoeur, os dois conceitos

se aproximam. Enquanto experiência estética, a narrativa é uma obra de arte.

E é necessário que ela seja aprendida, ou educada. Ricoeur (1997[Tomo 1];

1991; 2000) não diz ser ela algo inato no ser humano, mas que se desenvolve,

da mesma maneira que a experiência estética. Assim, a narrativa aproxima-se

daquilo que Schiller (2002) chama de lúdico, que é a mediação entre a

sensibilidade e o pensamento, entre o moral e o intelectual (cf. Schiller, 2002,

p. 113ss). A narrativa desempenha esse papel: o ser humano tem a

oportunidade de, entrando no labirinto que é a própria vida, utilizar-se da

experiência estética do lúdico, que está dentro de si mesmo, e, assim, melhor

compreender-se e despertar a própria identidade.

2.2.2 Formação estética do professor

Passaremos agora a tratar da educação estética. Após a apresentação

do estético em Schiller e Freire, e do diálogo com Ricoeur, traremos o estético

na educação.

Um autor contemporâneo, Perissé (2009), concorda com Schiller e

Freire ao dizer que a arte educa. Ela educa na medida em que mexe com os

nossos sentidos “atraindo nossa visão, encantando nossa audição, agindo

sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência” (PERISSÉ, 2009,

p. 36). Da mesma maneira que a arte mexe com os sentidos, ela ajuda a

pessoa a compreender-se e a buscar respostas. Ao visitar um museu, por

exemplo, uma pessoa queda-se extasiada diante de determinada obra de arte.

Num primeiro momento, ela pode nem dar-se conta do que está acontecendo.

E pode também ser que outra obra, que a maioria das pessoas considera mais

bonita, não lhe chame a atenção. Isso não acontece à toa. E, caso o sujeito dê-

se conta desse processo, vai procurar respostas. Essas respostas

provavelmente estarão ligadas à sua própria vida, em sua história.

Todo esse processo, que em parte é automático, mas em parte é

educado, pode passar despercebido pelo sujeito. Ele pode simplesmente

sentir-se extasiado diante da obra de arte e nunca buscar respostas. Ou buscá-

70

las e não encontrá-las. Na psicologia profunda, a busca é tratada como algo

inato no ser humano, um desejo de se encontrar com o novo, contrapondo-se a

isso o temor do desconhecido, a possibilidade do fracasso e o risco de perder-

se em áreas não exploradas, sem deixar marcas pelo caminho (cf. Imoda,

1996, p. 36).

Berkenbrock-Rosito (2008), reafirmando BOIS (2008), diz que a

experiência estética é uma experiência do sensível:

A experiência do sensível é aquilo que faz sentido para si no ouvir o estrangeiro. Ao experimentar a descoberta do já sabido por alguns, o eu tem a sensação de que foi ele quem inventou tal conhecimento. A novidade está precisamente na sensação única de afetar o profundo do eu, provocando um novo olhar para si e para o outro (BERKENBROCK-ROSITO, 2008, p. 6).

Para a autora, esta sensação do eu é uma experiência estética. O

sujeito descobre algo a partir dos sentidos, e essa descoberta remete a outros

elementos, que não necessariamente são ligados ao bom e ao belo:

Como exemplo, lavar uma lata de leite condensado para ser reciclada pode ser uma educação dos sentidos, a possibilidade de „tomada de consciência‟ do movimento interno que opera nos sentidos para aquele gesto banal e a percepção de que esse gesto tem relação com os rios, que, poluídos, próximos da morte, podem encontrar, pela sensibilidade e trabalho, a esperança de viver ou reviver, reencontrando a sua limpidez (id. ibid.)

A educação estética, nesse sentido, se dá através da percepção de que

lavando a lata de leite condensado o sujeito estará contribuindo para a

construção de um mundo mais bonito. Freire (2003) afirma que a ética e a

estética devem caminhar sempre de mãos dadas. É nesse sentido que elas

estão juntas: o pensar estético na construção de um pensar ético e vice-versa.

No caso específico da lata de leite condensado, o mundo bonito, que será

criado a partir de um rio mais limpo, será melhor para se viver. Embora a

experiência estética de lavar a lata de leite condensado não seja

necessariamente boa e bela (lavar a lata dá trabalho e suja as mãos), ela

contribui para um mundo no qual viver seja bom e belo.

Perissé (2009) afirma que a experiência estética pode alegrar ou

assustar. Isso acontece porque ela mexe com aquilo que está escondido, e

isso costuma gerar insegurança. Contudo, a partir dela o sujeito não fica

71

passivo, mas tende a assumir as mudanças que possam ocorrer a partir da

experiência.

A educação estética, afirma Perissé (2009), parafraseando Manuel de

Barros, “consiste em nos alfabetizar para avencas e Proust” (PERISSÉ, 2009,

p. 30). O autor afirma isso a partir de uma poesia de Manoel de Barros:

Tem hora leio avencas Tem hora, Proust

Alfabetizar para “avencas e Proust” significa estar aberto ao simples e ao

complexo, ao popular e ao erudito, a todas as experiências, e saber tirar delas

o importante para a vida. Se é nisto que consiste a educação estética,

precisamos compreender, na visão poética de Perissé, o que é efetivamente a

educação estética. Uma resposta podemos encontrar no mesmo autor, que nos

diz quando é que a arte educa:

A arte educa, influenciando nossa maneira de sentir e de pensar, de imaginar e avaliar. Influência forte e sutil. E renovadora. Para o bem e para o mal, não saímos incólumes de uma experiência estética verdadeira. (...) A arte educa, não porque coloque diante dos nossos olhos um manual de virtudes e de boa conduta, ou um guia que nos ajude a ser bem-sucedidos na vida. (...) O artista nos educa sem se preocupar com resultados pedagógicos ou técnicas didáticas. (...) Os professores todos, independentemente da disciplina que se preparam para ministrar, ganhariam (e com eles, seus alunos), com uma autoeducação que desse especial atenção á dimensão estética da cultura e da vida (PERISSÉ, 2009, p. 38-39).

Embora esta não seja uma resposta direta à pergunta “o que é educação

estética?”, neste trecho pode-se compreender alguns elementos. Em primeiro

lugar, a educação estética aqui é apresentada na perspectiva de Schiller, que

já apresentamos no presente capítulo. Nesta perspectiva, ela significa uma

educação para a arte, uma utilização das experiências estéticas na educação.

Não exatamente uma educação para a arte ou para a estética, mas uma

educação pela arte e pela estética. Em segundo lugar, que a educação estética

não está preocupada em buscar resultados acadêmicos. É uma educação

direcionada para a vida em primeiro lugar, preocupada em tornar o mundo um

lugar habitável, com estética e ética. Em terceiro lugar, que uma educação

estética é importante para formar pessoas mais humanas, sujeitos sensíveis

que vão atuar neste mundo estético e ético.

72

É importante aqui perceber a diferença que há entre a estética na

perspectiva filosófica e a experiência estética. Na Filosofia, a estética é tratada

como a ciência do belo, e o belo como a obra de arte (cf. Hegel 1974a). Neste

caso, ela pode ser tratada realmente como a ciência do belo, já que trata do

mesmo presente na arte. Já a experiência estética enquanto tal é aquilo que se

passa com o sujeito no momento em que entra em contato com uma

determinada realidade, que pode ser a arte, mas também pode ser uma

situação vivida, um gesto, a natureza, entre outros. A experiência estética leva

a viver todas as sensações que surgem em contato com o estético, é a

formação que surge a partir desse contato e da apreensão das sensações (cf.

Quintás, s/d).

Numa educação estética, é necessário que a experiência estética

aconteça. Como já citamos anteriormente, sem pretensões didáticas, sem

busca de resultados pedagógicos. A educação estética deve acontecer em

todos os momentos da escola. As disciplinas ligadas à educação artística, que

bem poderiam levar o nome de educação estética, são momentos e locais

privilegiados para isso; contudo, todas as disciplinas e todo o ambiente escolar

devem contribuir para que essa experiência aconteça. O belo, aliás, não reside

apenas nas obras de arte ou numa bela canção. Ele pode estar presente numa

equação matemática, numa obra de literatura, numa descoberta científica... De

certa forma, elas podem também ser consideradas obras de arte.

Perissé (2009) diz que

O dinamismo criador não pertence exclusivamente ao artista. A experiência que tenho ao ler uma obra literária de qualidade, ao ouvir uma canção comovente, ao deter meu olhar sobre um desenho engenhoso, ao assistir a um filme bem feito, ao acompanhar os diálogos de uma peça teatral... pode levar-me a uma nova compreensão da realidade e de mim mesmo, a uma compreensão lúdica, isto é, a uma interpretação que supera reducionismos, calculismos e outros „ismos‟ limitantes. Pode até despertar em mim o artista que eu não acreditava ser (PERISSÉ, 2009, p. 37).

Não apenas a arte educa, nem apenas as diferentes disciplinas podem e

devem conter elementos estéticos, ou o ambiente escolar deve transmitir estes

elementos, para que a educação seja completa. A própria formação escolar

pode ser considerada como uma obra de arte. Ela vai-se construindo aos

poucos, na medida em que os diferentes fatores vão se complementando.

73

Na analogia da formação como obra de arte, podemos notar que a obra

de arte não “acontece”, apenas. Aliás, ela acontece aos poucos, de acordo com

a inspiração do artista. Vai sendo imaginada e realizada. Embora a obra de arte

seja moldada pelo artista, as características do material empregado contribuem

para que ela fique ou não boa. No final, é o conjunto das características do

artista, do material empregado e da inspiração que vai gerar a obra de arte.

A escultura é a obra de arte que torna mais visível esta comparação.

Antes de fazer a escultura, o que existe é uma pedra bruta, ou um pedaço de

madeira, ou de qualquer outro material. Uma pessoa sem o devido senso

artístico, ou mesmo que o tenha, não vê mais do que um material em seu

estado bruto. O artista toma este material e “torna manifesto algo que estava e

não estava ali” (PERISSÉ, 2009, p. 31). Ele faz aparecer uma verdade.

Não queremos dizer com isso que o processo formativo seja

completamente passivo por parte do educando. Nem que neste processo, o

artista, no caso o formador, seja o único a impor sua marca e sua criatividade,

ou que molde o formando a seu bel prazer. É importante considerar que na

formação, tanto o “artista” quanto a “obra de arte” são seres humanos. Na

confecção de uma escultura, o material morto recebe “vida” das mãos do

escultor. E mesmo assim, as características físicas do material interferem no

processo. Uma madeira mais dura ou mais macia, uma pedra que não lasca no

lugar certo, uma tonalidade de cor diferente do esperado, enfim, a criação da

obra pode ser comprometida para melhor ou para pior. No processo formativo,

não existe material “morto”. A dinamicidade é totalmente diferente. Mas, aqui

também, a colaboração dos dois lados: do formador e do formando, é

imprescindível. Não são mais as características físicas que vão determinar o

andamento do processo, mas todo o conjunto de características. Assim, o

formando não vai sendo moldado, como é a obra de arte, mas vai tornando-se

pessoa a partir daquilo que vai aprendendo. O formando molda-se a si mesmo.

Outra maneira de conceber a formação como obra de arte é

apresentada por Perissé (2009):

Assim como a minha experiência estética nasce do encontro que estabeleço com a obra de arte, esta nasceu do encontro do artista e uma coisa, um material, um objeto, em diálogo com o qual aquele fez

74

surgir a realidade artística até então inexistente. (...) O resultado do encontro tornou-se visível: é a obra (id. ibid., p. 31).

Desta maneira, a formação nasce do encontro. Este se estabelece a

partir do momento em que o formando encontra o caminho para seu próprio eu.

O artista tem o poder de encontrar, na coisa, a transformação da sua

imaginação em realidade. A arte da formação necessita do encontro25, tanto

com o outro, quanto consigo mesmo, quanto com o mundo, ou, de acordo com

Lévinas (1993), com Deus. No entanto, qualquer evento formativo encaminha

para o encontro consigo mesmo, ainda que seja com o si mesmo enquanto

outro (cf. Ricoeur, 1996).

O necessário encontro se dá a partir da possibilidade do mesmo. Não há

encontro sem abertura. O artista, quando encontra a obra de arte na peça de

madeira, na qual ninguém mais viu arte alguma, está aberto e disposto à

transformação, assim como a obra de arte também está. Para o sujeito

encontrar-se consigo mesmo, é necessário abertura para si, e assim por diante.

E, para que haja o encontro, não é preciso estar no meio da multidão.

Encontro significa „entrelaçamento‟, intercâmbio de possibilidades. Não basta escrever uma palavra ao lado da outra para compor um texto. Não basta juntar cores para compor uma pintura. Não basta posicionar várias pessoas dentro de um palco para que nasça uma apresentação teatral. Em todos esses exemplos, o encontro exige uma relação reversível (PERISSÉ, 2009, p. 85).

O encontro acontece como num labirinto: através do entrelaçamento.

Num labirinto, todos os caminhos se cruzam em algum momento e de alguma

maneira, embora para quem está perdido nele pareça o contrário. Estar perdido

no labirinto é uma experiência estética, a experiência do medo. Quando se está

perdido num labirinto, o encontro não acontece, porque a sensação de medo

não o permite. Ao contrário, quando se começa a encontrar uma saída, a

sensação de alívio e de tranqüilidade permite que aconteça o encontro. E,

normalmente, a experiência de encontrar-se num labirinto é inesquecível, seja

pela experiência estética do medo quanto da segurança de encontrar a saída.

25

Aqui poderíamos entrar na dimensão da alteridade, de Lévinas. Mas não é o caso de fazermos isso; para entrar nesse assunto, necessitaríamos de mais um capítulo. Contudo, é importante aqui ter presente que Lévinas (1993) apresenta a alteridade, o sentido e o desejo do Outro, como fonte de ressignificação e de sentido. O Outro, aqui, pode ser Deus, o próximo, ou si mesmo (cf. Ricoeur, 1996).

75

Na escola, o encontro – e, consequentemente, uma educação

contemplada como obra de arte –, acontece quando há respeito pelo formando

e pelo seu crescimento, e quando há encorajamento em direção ao assumir

seu papel na vida. Ou então quando há “a promoção da ingenuidade para a

criticidade” (FREIRE, 2003, p. 32). É nesse sentido que a ética e a estética

devem andar de mãos dadas (id. ibid). Da mesma forma que uma obra de arte,

a formação exige consciência do inacabamento (cf. Freire, op. cit., p. 50). A

consciência de que, enquanto ser humano, sempre se está em construção,

concordando com a máxima de João Guimarães Rosa, no conhecido livro

“Grande sertão: veredas”: “Mestre não é quem ensina, mas quem de repente

aprende”.

Uma concepção de educação estética prevê também uma formação

estética do professor. Pode-se dizer que formar-se é entrar em contato com

determinados valores e assimilá-los. Para que haja educação estética na

escola, é necessário que o professor esteja educado esteticamente. Na

perspectiva schilleriana, para que aconteça o lúdico, o professor deve estar

preparado, mas não só, ele deve ter pelo menos vivenciado não o lúdico por si

só, mas como algo internalizado e como uma opção de vida.

É importante que o professor aprenda a conviver com a arte. Se ele quer

que a escola na qual atua eduque esteticamente, é necessário que ele mesmo

busque essa educação. É uma coisa que ninguém vai dar a ele, ele terá que

buscar. Um professor educado para a estética não é aquele que conhece a

estética, que sabe identificar os autores e suas épocas, e as características de

cada época e de cada autor, nem aquele que é capaz de identificar as cores e

seus matizes, de explicar os gêneros literários ou os estilos musicais; é

importante que ele “veja melhor o que está vendo, ouça melhor o que está

ouvindo, saboreie melhor o que está saboreando” (PERISSÉ, 2009, p. 53).

Em Quintás (s/d) encontramos que

Para atingir formas elevadas de unidade devemos aprender a integrar modos de realidade distintos. Essa aprendizagem constitui uma das tarefas decisivas da formação humana. Perceber uma realidade ou uma ação e descobrir nelas um valor não é difícil, sobretudo quando tal valor agrada quem o assume. Descobrir o valor de várias realidades ou ações, estabelecer entre elas uma hierarquia segundo níveis e conceder primazia aos mais elevados constitui uma dificuldade maior, antes de tudo porque supõe sacrifício, e levamos

76

dois séculos ao menos ouvindo a batida cantilena de que sacrifício implica uma repressão e esta inevitavelmente bloqueia o desenvolvimento de nossa personalidade. O que se esquece é que a repressão acontece quando alguém renuncia a algo que se apresenta como valioso e se entrega ao vazio. Se eu prescindo de um valor para conseguir outro superior, não me reprimo, não impeço o desenvolvimento normal de meu ser, estou me realizando como pessoa (QUINTÁS, s/d, s/p).

Na teoria de Schiller (2002), essa integração dos modos de realidade

citada por Quintás pode ser considerada aquilo que ele chama de impulso

lúdico, que é o que serve de ponto de equilíbrio entre o sensível e o formal.

Pode-se compreender, nesse caso, o impulso lúdico na necessidade de

estabelecer uma hierarquia de valores para a experiência estética. Para chegar

a isso é necessário a vivência do lúdico, pois este é mais flexível do que o

sensível ou o formal.

Na formação de professores, essa aprendizagem é fundamental. Não

estamos afirmando que se devam estabelecer hierarquias na experiência

sensível. Aliás, nesse tipo de experiência não existem hierarquias; a

experiência em si é espontânea, e não é a racionalidade humana que vai dizer

se ela é ou não importante, mas o pura e simplesmente o sensível. O que é

fundamental, na formação estética de professores, é a aprendizagem de lidar

com a arte, com a experiência estética. Isso é uma aprendizagem constante,

mas que, se não for vivenciada sempre, nunca acontecerá.

Na escola, o professor é o mediador no processo de aprendizagem, isso

já sabemos. Contudo, ele é mediador não apenas na aprendizagem formal; o é,

também, na informal. Com isso, supõe-se que as suas atitudes também

educam. Por atitude, entendemos aqui a sua postura perante determinadas

situações. Para que o professor possa esperar que seus alunos aprendam a

conviver com a arte, é necessário que ele tenha uma postura estética.

Isso, contudo, é uma etapa posterior àquilo que pretendemos trabalhar

aqui. Porque para ter uma postura estética, é necessário que o professor seja

educado para isso. Dessa maneira, ele poderá dar um passo que é a postura

estética na escola.

De acordo com Marin (1996), a formação de professores historicamente

tem passado por sérias dificuldades, sendo possível perceber que grande parte

dos cursos não os prepara devidamente para ingressar no mundo da

77

educação. Em sua pesquisa, percebeu problemas que refletem as defasagens

que há nesta área: professores que não dominam os conteúdos que vão

trabalhar, ou utilizando-se de concepções mecanicistas, ou com dificuldades

para compreender e identificar a sua própria missão. Muitos sequer conseguem

falar sobre o seu trabalho. Embora isso não esteja presente em todas as

escolas, é uma das realidades da educação nos tempos atuais.

Nesta pesquisa, a autora passou a analisar currículos de cursos de

formação de professores, especialmente em nível médio, e detectou neles uma

série de incoerências:

Os conteúdos específicos desses cursos são bastante desvinculados da destinação profissional de seus egressos; não há sequer citações dos professores em relação aos problemas da alfabetização; a formação fica apenas a cargo das disciplinas pedagógicas; a preocupação está para além do curso de uma forma propedêutica, ou seja, com a prestação do exame vestibular, sem focalizar também a capacidade formativa do curso em si mesmo (MARIN, 1996, p. 160).

Essa pesquisa foi realizada em 1996, portanto carece de atualidade. É

utilizada aqui para demonstrar um problema histórico na formação de

professores. Segundo a autora, já na década de 1950 há registros desses

mesmos problemas, principalmente nos cursos de magistério, que foram os

analisados por ela.

Pesquisas mais recentes, contudo, apontam para a manutenção de

alguns desses problemas, apesar de haver uma melhora na reflexão acerca da

formação como construção da identidade docente. Guimarães (2006) realizou

uma pesquisa com os cursos de formação inicial de professores, em relação à

formação da identidade docente. Uma das suas conclusões é:

O tecnicismo pedagógico, no afã de constituir um saber pedagógico e prover uma das bases para a profissionalização docente, constitui um saber técnico, eminentemente apriorístico, de caráter aplicativo, em relação à atuação do professor (GUIMARÃES, 2006, p. 49).

De certa maneira, a formação de professores transformou-se num saber

técnico, que gera professores com certa competência técnica, mas não

suficiente para o desenvolvimento da identidade docente. O mesmo autor

afirma:

Enquanto agirmos em nossos cursos de formação e em nossas escolas contentando-nos com níveis mínimos de profissionalização (qualificação mínima, descompromisso com a atualização pedagógica, autodesqualificação etc.) e de profissionalismo

78

(insensibilidade com o insucesso escolar dos alunos, má qualidade das experiências de aprendizagem dos alunos, má qualidade das experiências de aprendizagem dos alunos, rotinização e desencanto com o trabalho etc.), a luta pela ressignificação da profissionalidade se esvazia porque os professores continuarão pensando que como está, está bom (GUIMARÃES, 2006, p. 48).

Essa constatação é comum também a outros pesquisadores, que

continuam percebendo que há falhas na formação inicial de professores, e que

elas existem há muito tempo. Poderíamos nos perguntar, então: o que estamos

fazendo, se há tanto tempo percebemos os problemas, mas eles continuam

existindo? Não é essa, porém, a questão central deste trabalho nem o que

queremos discutir neste momento. O que queremos colocar em questão é se é

possível imaginar uma educação estética, quando diversos pesquisadores

apontam para este quadro na formação inicial de professores.

Perissé (2009) aponta pista de como deve ser concebida a formação

estética de professores. Ou, em outras palavras, qual a concepção de estética

que deve estar presente nesta formação:

Formação estética não é, portanto, satisfação caprichosa do gosto, busca do que me agrada pura e simplesmente. É compreensão (e relativização) até mesmo dos motivos que me levam a não gostar de determinado autor, do trabalho de determinado artista. Compreender e saber o porquê dos desgostos é um modo concreto de definir, em sentido inverso, meus critérios de escolha (PERISSÉ, 2009, p. 47).

Trata-se, assim, de aprender a valorizar a experiência estética, seja ela

qual for. Sabendo que a experiência estética é aquilo que é sentido em contato

com a obra de arte – e aquilo que é experimentado após a convivência com

esta obra –, essa aprendizagem, essa formação são adquiridas exatamente

convivendo com a arte. Muito embora não seja necessariamente na escola que

o professor vai aprender a conviver com a arte, é na escola que ele vai

aprender a conhecer a arte. Os impulsos apresentados por Schiller (2002), que

são o impulso sensível, o formal e o lúdico, também se desenvolvem mediante

aprendizagem, de modo a ser necessário algo do impulso formal para chegar

ao sensível (e vice-versa). Por isso ser necessária uma formação estética para

os professores, e não apenas uma educação estética na escola.

Para o professor, a convivência com a arte lhe possibilita a construção

de uma prática pedagógica na qual conhecimento, imaginação e expressão

79

conjugam-se dinamicamente (cf. Carvalho e Bufrem, 2010, p. 48). Isso, além

de melhorar a prática docente, é benéfico para o estudante, favorecendo nele o

exercício da imaginação e da criatividade, além de uma melhor compreensão

das aulas.

A formação estética do professor precisa ir além das leituras teóricas (cf.

Perissé, 2009, p. 49). É preciso que o professor programe seu contato pessoal

(e intransferível) com a arte. É fundamental que visite exposições, que vá ao

teatro, ao cinema, especialmente quando existem milhares de opções de lazer

e entretenimento sem sair de casa, através da internet. Quem deve fazer essa

mediação entre a arte e a vida, para o aluno, é o professor. Infelizmente este,

se não recebeu uma formação estética, não terá nenhum mediador a não ser

ele mesmo. E é uma formação que deve ser continuada, ou seja, deve ser

alimentada sempre. O risco de acomodação é muito grande.

Voltando a Quintás (s/d), lemos que

A criatividade é sempre dual, pressupõe um sujeito dotado de potências e um ambiente capaz de conceder-lhe diversas possibilidades. Uma pessoa pode ser muito bem dotada, mas sozinha não pode ser criativa. Necessita receber possibilidades de fora, quer dizer, de realidades que em princípio são distintas, distantes, externas e estranhas a ele. Quem interpreta o esquema „dentro-fora‟ como um dilema será incapaz de descobrir que é possível converter o distinto, distante, externo e estranho em íntimo sem deixar de ser distinto. Tal incapacidade impossibilita-o de assumir ativamente as possibilidades que lhe sejam oferecidas (QUINTÁS, s/d, s/p).

Daqui podemos extrair a importância da educação estética e da

formação estética de professores. O estudante não poderá ser criativo sozinho,

ou terá dificuldades para expressar a sua criatividade; encontrará no professor

alguém que lhe ajudará neste sentido. Por sua vez, o professor sozinho não

conseguirá despertar para a experiência estética e para a própria formação

estética. É importante que para tal receba a devida formação. Contudo,

importante é ter a noção de que o professor nunca está pronto (cf. Freire,

2003). Assim, a construção da formação estética acontecerá em parceria com

o seu aluno. Será importante confrontar as próprias convicções, as sensações

e as experiências estéticas com as dos alunos. Estes não sentirão a mesma

coisa que o professor sente. Fazer esse confronto dos sentimentos e

sensações será fundamental para aprimorar a formação estética do professor.

80

3 A CASA DO SER NARRATIVO: A ESTÉTICA NA FORMAÇÃO DE

PROFESSORES NO ENSINO MÉDIO EM ESTUDO

Como poderíamos adentrar na casa do ser narrativo? Até aqui vimos

diversos caminhos que convergem em uma direção: o ser humano. Estes

caminhos passam por diversos cruzamentos até chegar em um determinado

ponto, que é a identidade.

Como em todo percurso formativo, a identidade narrativa é um processo,

que se dá a partir do contato do formando com a própria narrativa, numa

experiência estética que fica registrada na sua memória.

A identidade narrativa supõe adentrar em si mesmo. Garnica (2009)

apresenta a auto-narrativa do Sr. Nivaldo Mercúrio, ex-interno de um centro de

recuperação de hansenianos. Nivaldo, numa narrativa repleta de reflexões

profundas, conta como foi parar no centro depois de ter pegado o vírus da

hanseníase da própria mãe, que também foi internada no mesmo local.

Também narra como, depois de internado, não podia mais sair ou ter contato

com as pessoas de fora, mesmo quando se supunha curado, e como, quando

recebeu alta, não conseguiu viver fora do centro, devido ao preconceito das

outras pessoas que, no mesmo emprego, descobriram que ele havia sido

hanseniano, o que o obrigou a arrumar emprego no mesmo centro em que

viveu como interno.

Esta narrativa mostra uma realidade sem saída, ou na qual uma saída é

extremamente difícil de ser encontrada, o que remonta a algumas das

situações complexas, ou paradoxos, que costumam ser apresentados em

cursos de filosofia, como por exemplo: se Deus é onipotente, ele pode fazer

uma pedra que ele mesmo não possa carregar? – o que é uma situação sem

saída, pois qualquer que seja a resposta, Deus deixaria de ser onipotente.

Remete-nos ainda aos puzzling cases, discutidos por Ricoeur (2000), no seu

diálogo com Parfit, já citados neste trabalho. Ou então faz-nos recordar as

aporias do tempo, presentes no livro XI das Confissões de Santo Agostinho

(1975), livro em que o autor faz questões acerca do tempo que não podem ser

respondidas facilmente sem que a pessoa caia em contradição.

Da mesma forma, podemos dizer que a hermenêutica é uma experiência

de labirinto, seja na forma de círculo de compreensão, na visão de Gadamer,

81

ou da maneira como é explicada por Garnica, a partir de Dilthey: “Compreender

é voltar a vivenciar, tornar a experienciar, colocando-se na posição de desejar

reviver vivências anteriores” (GARNICA, 2009, p. 74).

Contudo, antes de tudo isso, o labirinto remete-nos ao mito de Ariadne,

ou do Labirinto de Creta, remontado por Jorge Luís Borges na seguinte poesia:

O labirinto Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto (BORGES, 2010).

De acordo com a mitologia grega, Minos, Rei de Creta, mandou construir

um labirinto onde mandou encerrar o Minotauro (touro de Minos), animal

insaciável, meio gente meio touro, fruto de uma paixão da esposa de Minos por

um touro, que se alimentava de carne humana. Este labirinto era tão bem feito

que qualquer pessoa que nele entrasse não conseguiria mais sair. A cada nove

anos, sete rapazes e sete moças eram colocados no labirinto para serem

caçados pelo Minotauro e servirem de refeição a ele. Teseu, jovem guerreiro,

apaixonado por Ariadne, que era filha de Minos, pediu para ser incluído entre

os jovens que seriam jogados no labirinto. Contudo, recebeu da jovem princesa

um fio condutor, que, amarrado à entrada do labirinto, serviria para marcar o

caminho até a saída. Teseu penetrou no labirinto, venceu o Minotauro e fugiu

com a princesa.

A informática é repleta de labirintos. Cada caminho dá acesso a tantos

outros que, ao final, ninguém mais se lembra de onde principiou. Os hipertextos

são um exemplo claro disso: no meio de um texto, uma palavra conduz a outro

texto, que por sua vez conduz a outro e assim por diante. Em alguns momentos

eles se cruzam, mas às vezes a pessoa que segue esse trajeto sequer percebe

que está cruzando o mesmo caminho no qual estava anteriormente.

82

Utilizando-nos da metáfora do labirinto, podemos dizer que a narrativa é

um labirinto. As palavras estão em permanente diálogo, que pode ser

visualmente representado pela seguinte poesia26:

A poesia concreta é uma excelente maneira de ilustrar o labirinto de

palavras, que parecem confusas, mas aos poucos, no entrecruzar-se, têm

lógica e coerência. Tal como em um labirinto, ao penetrarmos numa poesia

concreta, ou poesia visual, a primeira sensação é o impacto. É difícil

compreender a poesia concreta. Ela pode produzir sentimentos variados:

repulsa, indignação, raiva, alegria, sensibilidade, euforia... A experiência

estética de se observar uma poesia concreta é comparável à de penetrar num

labirinto. No final, o que fica mesmo é a experiência em si, e aquilo que ela

provoca. Algumas pessoas não quererão mais penetrar no labirinto, e outras

ficarão fascinadas por ele.

26

Disponível em: http://opoetademeiatigela.blogspot.com/2009/09/labirinto.html Acesso em 20/05/2010.

83

Esse entrelaçar-se da narrativa, que forma como que um labirinto, é que

a transforma numa obra de arte. As palavras que dialogam entre si, formando

frases, que formam parágrafos, que por sua vez formam capítulos, e assim por

diante. Tudo entrelaçado. Se não houver o entrelaçamento, não há narrativa,

pois estes elementos estarão soltos dentro do emaranhado. Ou seja, eles não

conseguirão sair do labirinto. Se um desses elementos estiver solto, deslocado,

ele precisará ser retirado sob pena de ameaçar toda a estrutura textual.

Outra maneira de entrar num labirinto é entrar na própria vida. Por isso,

as auto-narrativas são uma experiência labiríntica que se entrelaçam com

outros elementos do cotidiano até a pessoa encontrar-se consigo mesma.

Na concepção ricoeuriana de narrativa, esta passa pela vida do seu

autor (cf. Ricoeur, 2000). Aqui ocorre outro entrelaçamento, não apenas das

palavras entre si, mas destas com a pessoa. Poderíamos chamar de duplo

entrelaçamento. Se fôssemos fazer uma síntese, bastante simplória, da

identidade narrativa em duas palavras, “duplo entrelaçamento” seria a

expressão correta.

Aqui queremos trabalhar a estética do labirinto no Parecer CNE/CEB

01/1999 e na formação de professores em nível médio. Vamos penetrar numa

aventura por entre os caminhos do Parecer, e nos seus diversos cruzamentos,

para descobrir diversos caminhos que perpassam a formação inicial de

professores em nível médio e fazem com que a identidade narrativa aconteça.

Como numa aventura dentro do labirinto, iniciaremos pela história da formação

de professores para chegar à identidade narrativa; deixaremos, porém, um fio

amarrado à entrada para encontrar o caminho.

3.1 Penetrando no labirinto: uma visão histórica da formação de

educadores

Seria muito interessante se pudéssemos dizer que a formação de

professores se confunde com a própria história da educação. Ainda melhor

seria se essa formação tivesse se aperfeiçoado no decorrer da história. Essa

realidade, contudo, é diversa, como veremos no presente capítulo.

Por outro lado, a formação de professores não pode estar dissociada da

formação da identidade docente. Como todo ser em formação, o educador tem

84

as suas individualidades que precisam ser respeitadas e trabalhadas, de

maneira a que cada um se conheça mais e cresça enquanto pessoa e

enquanto profissional.

Falar em formação inicial de professores pressupõe pelo menos dois

níveis: médio e superior. Por muito tempo, predominou a formação em nível

médio, com as chamadas “Escolas Normais”, que formavam as “normalistas”,

que iam depois atuar como “professorinhas”. Mais tarde, especialmente a partir

da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96, a prioridade

passou a ser a formação em nível superior, nos cursos de Pedagogia e Normal

Superior, sendo que os cursos em nível médio praticamente desapareceram,

sumindo por completo em diversos estados brasileiros.

Gatti (2009) afirma que

Quando se trata de educação escolar são os professores que propiciam essa intermediação. Então, a formação de quem vai formar torna-se central nos processos educativos formais, na direção da preservação de uma civilização que contenha possibilidades melhores de vida e co-participação de todos. Por isso, compreender e discutir a formação, as condições de trabalho e carreira dos professores, e, em decorrência sua configuração identitária profissional, se torna importante para a compreensão e discussão da qualidade educacional de um país, ou de uma região (GATTI, 2009, p. 90).

Isso, em se falando de formação continuada. Na formação inicial, esse

processo é ainda mais delicado, especialmente na formação de professores em

nível médio. Embora boa parte dos que procuram esse tipo de formação sejam

pessoas adultas, já com uma certa caminhada, também há jovens e

adolescentes que estão buscando descobrir ali a sua vocação de educador. Se

a dimensão da identidade não for bem trabalhada nesse período, pode gerar

crises depois.

É preciso compreender que a dinâmica do ensino médio é diferente da

que acontece no ensino superior. O curso de formação de professores em nível

médio pertence, pois, à última etapa da educação básica. Esta etapa, de

acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2000, p.

66), tem como princípio ético e estético a formação da identidade, que se

manifesta como “um permanente reconhecimento da identidade própria e

do outro” (op. cit., p. 66).

85

Quando, nos Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino médio, fala-

se em construção da identidade, é relevante pensar como isso acontece na

escola, e como se dá no curso de formação de professores em nível médio.

Voltaremos a esse assunto logo adiante, ainda neste mesmo capítulo. Antes,

porém, de dar continuidade ao tema, esmiuçando a formação de professores

no decorrer da história, chegando aos dias atuais, quero lançar alguns

questionamentos: onde, além das bases legais, trabalha-se no ensino médio a

formação da identidade do aluno? Essa preocupação é repassada aos cursos

técnicos de nível médio (incluindo aqui o curso de formação de professores)?

Ao ingressar na Universidade, o jovem continua tendo direito a essa mesma

preocupação?

São questionamentos aos quais buscaremos algumas respostas ao

longo do presente capítulo. Trabalho com ensino médio porque sinto a

necessidade de pesquisa nessa área. Mas também, como documento, serão

analisadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Formação de

Professores na Modalidade Normal em Nível Médio, publicadas em 1999.

É difícil dizer em que ponto da história passou-se a falar em formação de

educadores. Já entre os gregos antigos, a educação tinha certa estrutura,

embora fosse ainda um tanto informal. Segundo Jaegger (1995, p. 23ss), a

educação grega era formada por mandamentos, tais como: honrar os deuses,

respeitar os estrangeiros. Consistia também em preceitos de moralidade e

regras de prudência.

Da educação, nesse sentido, distingue-se a formação do Homem por meio da criação de um tipo ideal intimamente coerente e claramente definido. Essa formação não é possível sem se oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele deve ser. A utilidade lhe é indiferente, ou, pelo menos, não essencial. O que é fundamental nela

é a, isto é, a beleza, no sentido normativo da imagem desejada, do ideal (JAEGGER, op. cit., p. 24).

Essa ideia de educação organizada demonstra a existência de um

currículo, ainda que não nos moldes que hoje conhecemos ou chamamos

currículo. Ele pode até ter um pequeno grau de formalidade ou organização,

mas é muito mais informal. Observa-se, contudo, uma preocupação grande

com a formação da identidade do Homem. Mesmo que aconteça na

86

informalidade do dia a dia e não entre os muros de uma escola, ele supõe a

necessidade de uma preparação dos educadores, mesmo que ela também

informal.

Esquema semelhante – com algumas diferenças – de organização da

educação acontecia nas tribos diversas, entre elas as tribos indígenas do

Brasil.

Nas comunidades tribais as crianças aprendem imitando os gestos dos adultos nas atividades diárias e nos rituais. (...) as crianças aprendem „para a vida e por meio da vida‟, sem que ninguém esteja especialmente destinado para a tarefa de ensinar. (...) A formação é integral – abrange todo o saber da tribo – e universal, porque todos podem ter acesso ao saber e ao fazer apropriados pela comunidade. É bem verdade que alguns se destacam, detendo um conhecimento mais amplo ou especial – como no caso do feiticeiro –, o que, no entanto, não resulta em privilégio, mas apenas em prestígio (ARANHA, 2006, p. 35-36).

A diferença geral entre esses dois ideais de educação é que para os

gregos, além de um currículo mais ou menos organizado, a educação é

pensada, mesmo informalmente, com determinados objetivos, ao passo que na

educação tribal, a educação acontece no dia a dia, sem alguém que a pense;

ela simplesmente acontece. Não há pedagogos ou educadores, todos o são.

Nos dois modelos, porém, ela tem por objetivo formar o Homem. Além disso,

na educação grega era possível vislumbrar o papel de um pedagogo, daquele

que acompanhava o educando, que, embora não fosse o que se possa chamar

de professor, era quem acompanhava. Já na educação tribal, todos ensinavam

e todos aprendiam.

Por que estamos falando em história da educação, quando o que me

propus foi discorrer sobre história da formação de educadores? Ora, é para

entender que mesmo nesse processo informal de educação, já é possível

supor uma preparação dos educadores, ou de quem ensina. Não uma

formação no sentido atual do termo, mas um conhecimento anterior.

De acordo com Saviani, “a primeira instituição com o nome de Escola

Normal foi proposta pela Convenção, em 1794, e instalada em Paris, em 1795”.

Contudo, segundo o mesmo autor, “o primeiro estabelecimento de ensino

destinado à formação de professores teria sido instituído por São João Batista

87

de La Salle, em 1684, em Reims, com o nome de „Seminário dos Mestres‟”

(SAVIANI, 2005).

Antes de La Salle não existia nenhuma formação de professores

estruturada como um curso de formação. Ou melhor, cada um ensinava aquilo

que sabia a seus alunos. É necessário adiantar que, com La Salle, houve uma

reviravolta na maneira de se conceber a escola e também a formação de

professores.

Antes dessa fase da história da educação, por certo havia escolas e

universidades, e havia professores. Segundo Saviani (s/d.), esses professores

deviam receber algum tipo de formação.

(...) as universidades, como uma modalidade de corporação que se dedicava às assim chamadas “artes liberais” ou intelectuais, por oposição às “artes mecânicas” ou manuais, formavam os professores das escolas inferiores ao ensinar-lhes os conhecimentos que eles deveriam transmitir nas referidas escolas (id. ibid.).

O fato é que os professores, nesse período, aprendiam o conteúdo para

ensinar; não aprendiam a ser professores; e mesmo o conteúdo, aprendiam na

escola, não necessariamente para ser professores. Eles retransmitiam o que já

sabiam.

Foi assim, com essa preocupação, que os primeiros esboços de uma

formação de professores e para professores foi desenvolvido. Essa formação,

contudo, não ficava a cargo do Estado, mas de instituições privadas, como era

o caso dos Irmãos das Escolas Cristãs, instituição criada por La Salle para dar

educação às crianças e jovens e para dar formação aos professores. Segundo

Tanuri (2000, p. 62), foi só com a Revolução Francesa que se concretizou a

ideia de uma escola normal mantida pelo Estado, ideia que só encontraria

condições favoráveis no século XIX, quando se multiplicaram as escolas

normais. Saviani (2005) afirma que, após o surgimento, na França, das escolas

de formação de professores, no século XVIII, Napoleão introduziu o sistema no

Norte da Itália, ao conquistá-la em 1802, nos mesmos moldes da Escola

Normal de Paris, destinada à formação de professores para o ensino

secundário. Assim, os demais países, como Alemanha, Estados Unidos,

Inglaterra e, de acordo com Tanuri (2000), Portugal e, posteriormente, Brasil,

adotaram sistemas semelhantes de escolas.

88

A partir desse momento, os diferentes países desenvolveram seus

sistemas de formação de professores; para compreender, vou descrever a

formação de professores no Brasil, uma realidade próxima a nós e da qual é

mais fácil acompanhar a evolução histórica.

3.2 Buscando caminhos: a formação de professores no Brasil

No Brasil, a história da formação de professores segue um movimento

próprio, mas muito próximo do que acontecia no restante do mundo, até

mesmo porque o que recebemos foi herança da Europa. Por isso mesmo,

chegou no Brasil com um certo atraso, assim como a educação de um modo

geral, em relação aos demais países do mundo.

Tanuri (2000) diz que, antes de existirem escolas para formação de

professores no Brasil havia, já, critérios de seleção para escolher os que iriam

dar aulas. Datam de 1820 as primeiras escolas destinadas à formação docente,

escolas essencialmente práticas, sem base teórica, mas preocupadas com a

preparação de docentes para as primeiras letras. Pode-se dizer que eram

escolas de preparação, e não de formação, tendo em vista a ausência de

conteúdos teóricos.

Conforme Saviani (2005), a escola normal, fundada em Niterói em 1835,

teve curta existência, encerrando suas atividades em 1849. Ainda não estava

bem definido o tipo de formação que os professores deveriam receber.

Durante todo o Império essa incerteza em relação à formação dos

professores continuou, num abre-fecha de escolas normais, sem grandes ou

significativas mudanças. Só com o advento da República, por volta de 1890, é

que algumas inovações começaram a ser implantadas, especialmente com a

implantação da Escola Normal de São Paulo, cujo decreto 27 de 12 de março

de 1890 estipulava:

sem professores bem preparados, praticamente instruídos nos modernos processos pedagógicos e com cabedal científico adequado às necessidades da vida atual, o ensino não pode ser regenerador e eficaz (SÃO PAULO, 1890 apud SAVIANI, 2005).

Pode-se dizer que este tenha sido o início de um processo de reflexão

sobre a necessidade de uma formação de professores que englobasse

89

elementos práticos e teóricos. A Escola Normal de São Paulo passou, assim,

por reforma no seu currículo e na maneira de ensinar, enfatizando bem mais a

pedagogia e a didática, bem como a filosofia.

Contudo, foi apenas na década de 1930 que passou a haver mudanças

significativas na formação de professores no Brasil. Vieira e Gomide (2008, p.

3843) veem isso como uma exigência dos novos tempos, especialmente da

abertura do Brasil para o capital externo, com a crise de 1930. Essa crise teria

levado o Brasil a aprimorar a produção interna de bens de consumo,

obrigando-se a importar tecnologia, e junto com ela professores. O resultado foi

uma mudança no papel social da escola, que passou a preparar também para

o mercado de trabalho. Isso exigiu mudanças na preparação dos professores.

Por sua vez, Saviani (2005) apresenta o movimento renovador como o

grande impulsionador das mudanças na área da educação nesse período.

Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, ambos inspirados na chamada Escola

Nova, implantaram mudanças no Distrito Federal e em São Paulo, que tinham

“como pedra de toque as escolas-laboratórios que permitissem basear a

formação dos novos professores na experimentação pedagógica concebida em

bases científicas” (SAVIANI, 2005).

De acordo com Amorim Neto (2008), a partir de 1939 foram criados os

cursos de Pedagogia e Licenciatura na Universidade do Brasil e na

Universidade de São Paulo. Isso foi consequência direta da vinculação da

Escola de Professores à Universidade do Distrito Federal e posteriormente ao

Instituto de Educação da Universidade de São Paulo. Assumiu-se um modelo

de seis anos, formando-se nos quatro primeiros anos regentes do ensino

primário e nos dois últimos, professores do ensino primário (cf. Saviani, 2005).

Até 1971 vigorou esse modelo de formação de professores. Com a

promulgação da Lei 5692/71, houve mudanças significativas e a

descaracterização e consequente desaparecimento da Escola Normal.

3.1.2 A formação de professores no Brasil – pós 1971

O ano de 1971, no auge do governo militar, aconteceu a promulgação da

Lei 5692/71, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Essa lei trouxe

algumas mudanças na educação, incluindo a formação de professores. Essa lei

90

modificou a educação básica, pois a Lei 5540/68 já havia reformulado o ensino

superior (cf. Saviani, 2005). A principal mudança na educação básica foi a

criação do primeiro grau com oito anos e do segundo grau com três anos.

Antes disso havia um ensino primário de quatro anos e um ensino médio de

sete. O segundo grau passou a ser de caráter profissionalizante, abrindo-se

amplamente o leque de cursos de segundo grau técnicos.

Isso afetou profundamente a Escola Normal, que perdeu em grande

parte o sentido de existir, e acabaram mesmo desaparecendo, para dar lugar à

Habilitação Específica de 2º grau para o exercício do magistério de 1º grau

(HEM) (cf. Saviani, op. cit.), ou simplesmente Magistério, como ficou

conhecido.

Ao tratar, no Capítulo V, dos professores e especialistas, a Lei n.

5.692 dispôs, no artigo 29, que “a formação de professores e

especialistas para o ensino de 1º e 2º graus” implicaria níveis

distintos, com elevação progressiva, conforme especificado no artigo

30, que teve a seguinte redação:

Art. 30 – Exigir-se-á como formação mínima para o exercício do magistério: a) no ensino de 1º grau, da 1ª à 4ª série, habilitação específica de 2º grau; b) no ensino de 1º grau, da 1ª à 8ª série, habilitação específica de grau superior, ao nível de graduação, representado por licenciatura de 1º grau obtida em curso de curta duração;

c) em todo o ensino de 1º e 2º graus, habilitação específica obtida em curso superior de graduação correspondente à licenciatura plena (BRASIL, 1971 apud SAVIANI, op. cit.).

Com essa formação de professores de natureza técnica, e mais

acessível à população, pois passou a ser oferecido em quase todas as escolas

de ensino médio, aumentou consideravelmente o número de professores, na

grande maioria mulheres, formados para trabalhar nas séries iniciais. Se por

um lado isso foi positivo, pois era mais fácil encontrar professores habilitados

para dar aulas, aumentando, consequentemente, o acesso de crianças à

escola, por outro lado o curso perdeu sua originalidade; deixou de ser um curso

específico para formar professores para se diluir num conjunto de cursos

técnicos (cf. Saviani, 2000).

Com altos e baixos, o curso de Magistério continuou formando

professores até 1996, quando da promulgação da Lei 9394/96, a nova Lei de

91

Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que reestruturou a formação de

professores, terminando com o curso de Magistério e criando novas estruturas.

3.1.3 – A Lei 9394/96

Em 1996, às vésperas de comemorar-se os dez anos da nova

Constituição da República Federativa do Brasil, foi promulgada, a 20 de

dezembro, a Lei 9394/96, estabelecendo as novas Diretrizes e Bases da

Educação Nacional. Esta lei veio encontrar um quadro um tanto quanto pobre

de formação de professores; praticamente toda a formação para a educação

infantil e primeiros anos do primeiro grau era feita em nível médio (cf. Saviani,

2005; Tanuri, 2000).

Diante disso, a lei teve a intenção de estabelecer que todos os

professores tivessem curso superior, determinando: “Até o fim da Década da

Educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior

ou formados por treinamento em serviço” (Lei 9394/96, art. 87).

A Década da Educação, então criada, estendia-se de 1997 a 2007. A

ideia era a de fazer com que, a partir de 2007, apenas professores com curso

superior fossem admitidos. Para que isso se concretizasse, foi dado ênfase ao

Curso de Pedagogia, para a preparação de professores para as séries iniciais

do ensino fundamental (a terminologia mudou, com a nova LDB: em vez de

primeiro grau e segundo grau, passou a chamar-se ensino fundamental e

ensino médio, respectivamente). Também foi criado o Normal Superior, espécie

de Magistério, só que em nível superior. Com isso, o antigo Magistério perdeu

sua razão de existir e, por alguns anos, foi considerado extinto.

Contudo, a mesma Lei diz:

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (Lei 9394/96, art. 62).

Esse artigo trouxe diversas possibilidades de interpretação, e serviu de

base para ressuscitar o antigo Magistério, agora chamado Curso de Formação

de Professores na Modalidade Normal em Nível Médio, conforme escrito na

92

Lei. Embasando essa ressurreição, em 1999 foram elaboradas as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Formação de Professores na Modalidade Normal

em Nível Médio, através do Parecer CNE/CEB nº 01/99, de 29 de janeiro de

1999. Assim, em diversas instituições de ensino, públicas e privadas, manteve-

se este nível de formação, para atender a educação infantil e as séries iniciais

do ensino fundamental. Com isso, o Normal Superior perdeu em parte a razão

de existir, e os cursos de Pedagogia foram reforçados, para poder formar

professores com título superior. É esse o quadro que temos hoje em nível

nacional.

3.3 Seguindo o fio condutor: o Parecer CNE/CEB 01/1999

Poucos anos após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional 9394/96, a 29 de janeiro de 1999, a Câmara de Educação

Básica e o Conselho Nacional de Educação aprovaram o Parecer CNE/CEB nº

01/1999. Este Parecer surgiu com o objetivo de estabelecer as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o curso de formação de professores na

modalidade normal em nível médio. Ele foi elaborado em uma época em que

se faziam questionamentos sérios acerca da validade ou não do antigo curso

de magistério, conforme já explicitamos. Se por um lado, em seu artigo 87, § 4,

rezava: “Até o fim da Década da Educação somente serão admitidos

professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em

serviço”27, por outro lado, no artigo 62 afirmava-se:

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (Lei 9394/96, Art. 62)

28.

A dificuldade em compreender a validade ou não do curso devia-se a

essa dupla interpretação possível a partir do afirmado nesses dois artigos da

mesma lei. Contudo, mesmo havendo essa ambiguidade, percebeu-se que era

27

A Década da Educação estendeu-se de 1997 a 2007. 28

Esse artigo foi regulamentado pelo Decreto nº 3276, de 07 de dezembro de 1999, mesmo ano em que foi aprovado o citado Parecer. Neste Decreto falava-se que a formação dos professores da educação básica far-se-ia preferentemente (grifo nosso) em cursos de licenciatura, deixando assim claro que a formação em nível médio ainda seria aceita.

93

possível enveredar por esse caminho, elaborando as diretrizes curriculares

nacionais, até chegar à regulamentação do Artigo 62 da LDB.

Após este brevíssimo resgate histórico, e necessário à compreensão do

parecer, já que este, como afirmamos, surgiu num momento de crise para a

formação de professores em nível médio, e deu identidade a um curso que

estava prestes a morrer. E é justamente esta identidade que vamos discutir

neste trabalho. Queremos entender que tipo de identidade transparece no

parecer e como os conceitos de narrativa e de estética estão presentes no

texto.

3.4 Buscando uma saída: Identidade do curso de formação de

professores na modalidade normal em nível médio

O antigo curso Normal, depois o Magistério, e agora com a nova

denominação, bastante extensa, sempre tiveram o óbvio objetivo de formar

professores para trabalhar com crianças, especialmente as mais novas em

idade e escolarização. Tempos houve em que, por falta de opção de cursos de

licenciatura, professores com Magistério lecionavam até o fim do ensino

fundamental ou mesmo no ensino médio. O fato é que ele tem sido, ao longo

dos anos, espaço propício para a aprendizagem de técnicas de trabalho com

crianças. Com a popularização dos cursos de Pedagogia, o Magistério acabou-

se tornando o “parente pobre”, ou considerado o curso que forma, mas não

forma direito.

De certa forma, o Parecer CNE/CEB 01/99 procura redimir essa falha.

Porém, citando o MEC e o Plano Nacional de Educação de 1998, o texto

afirma:

a formação em nível médio pode cumprir três funções essenciais: a primeira é o recrutamento para as licenciaturas, a segunda, a preparação de pessoal auxiliar para creches e pré-escolas, e a última, servir como centro de formação continuada (MEC. Plano Nacional de Educação. Apud BRASIL, 1999, p. 16).

Estes são, de acordo com o Plano Nacional de Educação, referendado

pelo presente Parecer, os objetivos da formação de professores em nível

médio. O fato de colocá-lo como recrutamento para as licenciaturas reforça a

ideia de que ele é apenas uma formação auxiliar, com pouco valor. Tanto

94

assim que, indo contra a própria Lei 9394/96, é aqui colocado como formação

para auxiliares de creche e pré-escola, sendo que, por lei, a formação em nível

médio é aceita para professores da educação infantil e séries iniciais do ensino

fundamental (cf. Lei 9394/96 art. 62). Além disso, essa função essencial da

formação em nível médio não aparece nessa citação que, embora não seja a

única referência ao curso de formação em nível médio no Plano Nacional de

Educação29, é a única citação do referido Plano no Parecer.

Verdade é que o Parecer não assume diretamente para si esses

objetivos, apenas os cita, deixando claro em outros momentos que quer um

curso no qual se formem professores “reais”, que possam trabalhar em sala de

aula e que saibam o que estão fazendo:

Isto ocorre na lei sem descaracterizar sua identidade. É um curso próprio para a formação de professores da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, que tem estrutura e estatuto jurídico específicos. Não é um ensino técnico adaptado. Sua identidade, em face do que estabelecem os dispositivos legais, é claramente definida pela contextualização da sua proposta pedagógica, no âmbito das escolas campo de estudo e das experiências educativas às quais os futuros professores têm acesso, seja diretamente, seja através dos recursos tecnológicos disponíveis. Em função dessa concepção, a formação de professores oferecida nessa modalidade requer um ambiente institucional próprio, com organização adequada à sua proposta pedagógica. No caso, os professores formadores deverão, ao longo do curso, orientar sua conduta a partir dos princípios a serem seguidos pelos futuros professores (BRASIL, 1999, p. 19-20).

Chama, aliás, a atenção o fato de, no documento, afirmar-se diversas

vezes não ser o curso um ensino técnico adaptado. Essa identidade é

importante porque mostra o tipo de curso que se quer. É de se crer que se

deseje um curso no qual os componentes curriculares consigam preparar os

professores para enfrentar o mundo que os aguarda após a conclusão do

curso.

Podemos considerar, contudo, ambicioso este projeto. Ambicioso,

porque visa um ideal bastante alto para ser alcançado em dois ou três anos,

29 O Plano Nacional de Educação não descaracteriza o Curso de Formação de Professores na

Modalidade Normal em Nível Médio, mas deixa claro que esta não é a melhor opção e deve ser usada apenas onde não for possível ensino superior para todos os professores: “Garantir que, no prazo de 5 anos, todos os professores em exercício na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, inclusive nas modalidades de educação especial e de jovens e adultos, possuam, no mínimo, habilitação de nível médio (modalidade normal), específica e adequada às características e necessidades de aprendizagem dos alunos (Plano Nacional de Educação, p. 81).

95

sendo que neste tempo ainda estuda-se as disciplinas comuns do ensino

médio. Além disso, as práticas que se tem observado em alguns dos raros

locais onde existe o curso, o ensino é, de fato, técnico. Além da observação, na

escola citada no início deste trabalho, de um currículo todo baseado em

competências e habilidades, o que por si só tecnifica-o, citamos também

afirmação de Gomide e Miguel, sobre a reimplantação do curso nas escolas de

ensino médio do estado do Paraná30:

No caso do curso de formação de professores, na modalidade normal, esta integração

31 foi definida como o diferencial da grade

curricular do curso, e está ocorrendo por meio da articulação entre os conhecimentos gerais e os específicos do curso em nível médio. Em nossa opinião, este é o desafio: formar tecnicamente os professores e supri-los de conhecimentos básicos e essenciais capazes de consolidar a sua formação inicial (GOMIDE e MIGUEL, 2009, p. 207).

Não podemos tomar um caso isolado nem uma opinião específica, como

acontece na pesquisa destas autoras, e definir como regra geral. Contudo, o

governo do Paraná definiu o curso como sendo de formação profissional, ou,

em outras palavras, profissionalizante. Embora, no Brasil, o ensino superior

seja profissionalizante, o ensino médio não o é, ou, pelo menos, de maneira

geral, não é mais. Identificar assim um curso de nível médio, especialmente de

formação de professores, leva de regresso à fase pré-LDB 9394/96.

Não podemos, conforme afirmado acima, transformar o caso do Paraná

em regra, mas, enquanto situação, não podemos deixar de citar aqui. O que

nos interessa, no entanto, é a identidade dada ao curso de formação de

professores em nível médio pelo Parecer CNE/CEB 01/99. Percebemos que

este é tratado como uma preparação real para o exercício do magistério, como

um curso completo a partir do qual os professores estarão aptos para enfrentar

30

O Paraná é um dos estados que re-implantou o curso de formação de professores em nível médio a partir de 2004. Primeiro, em 1996, havia sido o primeiro estado do Brasil a eliminá-lo das escolas, juntamente com os cursos técnicos, antes mesmo da promulgação da Lei 9394/96, que, em uma das suas interpretações, decretou o fim dos cursos técnicos de nível médio (cf. Gomide e Miguel, 2009). 31

Ao falar de integração, as autoras referem-se a anterior parágrafo do mesmo artigo, no qual

defendem para o ensino técnico, a integração entre “cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direito de todos e condição de cidadania e da democracia efetivas” (GOMIDE E MIGUEL, 2009, p. 307).

96

as dificuldades do dia a dia na escola; um curso não técnico, mas humano, que

leve os professores a um crescimento intelectual e humano32.

3.4.1 A identidade do professor

Tendo em vista a identidade do curso de formação de professores no

ensino médio, buscamos verificar também que tipo de identidade de professor

o Parecer CNE/CEB nº 01/99 apresenta. Observamos que também neste

quesito o documento é bastante ambicioso.

Partimos da concepção ricoeuriana de identidade, na qual existe uma

identidade dinâmica e uma que permanece, e é possível um ponto de fusão

entre as duas. No documento é possível perceber que a maneira como o curso

é apresentado condiz com a identidade que se quer para o professor. Por um

lado, a ideia de um professor que, terminado o curso, seja capaz de atuar

numa sala de aula, ou seja, uma identidade estável, na qual ele possa dizer:

sou professor. Por outro lado, almeja um professor em formação, que não vê

no curso de formação em nível médio um ponto de chegada, mas um ponto de

partida.

O documento parte de uma realidade bem concreta: há (em 1999) uma

carência de professores formados nas escolas. A tabela a seguir mostra a

realidade à época da elaboração do documento:

Nível de Formação

Fundamental Médio Superior

Incompl. Completo C/Magist. S/Magist. C/ Licenc.

S/Licenc. Total

Região C/Magist. S/Magist.

Norte

13.911

15.211

46.369

2.967

1.684

233

75

80.450 Nordeste

60.765

38.417

189.255

9.672

20.365

2.429

503

321.406 Centro-Oeste

2.584

3.938

31.626

2.317

12.389

1.182

203

54.239 Total

77.260 57.566 267.250 14.956 34.438 3.844 781 456.095

Fonte MEC/INEP/SEEC. TABELA 1 – Funções Docentes, por Grau de Formação dos Respectivos Ocupantes, nas Quatro Séries Iniciais do

Ensino Fundamental – Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste – 1996 (BRASIL, 1999, P. 24)

32

Falamos do documento e de sua abordagem do curso, e não necessariamente do que acontece nas escolas. A ideia é verificar a identidade do curso presente no documento.

97

Pelos números, recolhidos nestas três regiões do Brasil, as mais

deficitárias, compreende-se a necessidade de se pensar um curso mais voltado

para a formação humana, de professores que, além de conhecerem o

conteúdo, saibam lidar com as preocupações do dia a dia na sala de aula. E é

este o perfil esperado de um professor, de acordo com o documento ora

estudado:

(...) o curso deve formar professores autônomos e solidários, capazes de investigar os problemas que se colocam no cotidiano escolar, utilizar os conhecimentos, recursos e procedimentos necessários às suas soluções, avaliar a adequação das escolhas que foram efetivadas, e, ainda, devido às transformações por que passam as sociedades, deverão analisar as consequências dos novos paradigmas do conhecer. Implicam conhecimentos gerados a partir de um modo de refletir sobre a prática que mantém no direito do aluno aprender, no esforço nacional de construção de um projeto de educação escolar de qualidade para o país, e nas regras da convivência democrática, as referências que norteiam permanentemente a ação pedagógica (BRASIL, 1999, p. 26).

Deste ponto de vista, observa-se que o curso quer formar professores

conscientes de sua missão e de sua profissão. A autonomia como base do

projeto. Um professor autônomo, capaz de compreender a si mesmo como

educador. Capaz de perceber os novos paradigmas, e de ter visão crítica

suficiente para romper com os velhos. Capaz, também, de transformar a

informação em conhecimento, e este em saber. Em tese, é este o perfil de um

professor que conclui o curso de formação de professores na modalidade

normal em nível médio.

Como antes afirmei sobre a identidade do curso, este objetivo também é

ambicioso. Ele poderia ser colocado para um curso superior, e teria validade.

Não quero com isso afirmar que o curso normal não deva formar professores

com as características apontadas pelo documento. Ele é ambicioso na medida

em que se propõe alcançar um objetivo de certa forma distante da realidade,

tendo em vista que o curso é realizado em nível médio e o tempo de realização

do mesmo é repartido com as disciplinas que fazem parte da grade curricular

do ensino médio.

Propus-me, no título deste tópico, a discorrer sobre a identidade do

professor formado em nível médio. Todavia, partindo da premissa de Ricoeur

(1991; 1997; 2000) de que a identidade é pessoal, e desenvolve-se ao longo da

vida, não é possível dizer qual a identidade do professor neste nível de ensino.

98

Ela vai depender de uma série de fatores que devem acontecer durante a sua

vida, incluindo o próprio curso. Por isso, qualifico o perfil apresentado pelo

documento como ambicioso. Em todo o documento, fala-se do profissional que

se quer, mas não das maneiras de se trabalhar esse profissional para que ele

seja aquilo que dele se espera.

Apesar disso, merece destaque menção feita às histórias de vida como

importantes na construção da identidade:

Constroem, utilizando abordagens condizentes com o exercício da cidadania plena na sociedade contemporânea, as identidades dos alunos (futuros professores) (...). Suas histórias de vida são importantes. Aqueles que ensinam e aprendem têm uma história que se expressa em todas as suas atitudes, na postura profissional e no modo de ensinar, pensar e aprender. Ao considerar princípios éticos, políticos e estéticos na reinterpretação de histórias que se influenciam e modificam umas as outras, a escola reconhece as identidades pessoais e assegura a reelaboração crítica do conhecimento de si e do seu relacionamento com os demais durante o processo de formação (BRASIL, 1999, p. 26-27).

Reconhecer a importância das histórias de vida dos formandos é

fundamental para se compreender a construção da identidade pessoal e

docente no curso. Essa recordação mostra a nova importância dada ao curso,

e reforça a ideia de não mais considerá-lo como um curso técnico, mas sim um

curso capaz de formar pessoas.

O documento oferece as diretrizes curriculares para o curso normal em

nível médio, e as traça com bastante propriedade. Mostra um caminho

interessante a ser trilhado, e se compromete com o crescimento do profissional

da educação. Contudo, por estabelecer as ditas diretrizes, parece esquecer a

natureza prática das coisas, no sentido de que apresenta um bonito discurso,

mas não oferece meios nem elementos que ajudem as escolas que possuem o

curso a se apropriar desse discurso.

Essa omissão não é decisiva, mas pode ajudar a criar situações como a

anteriormente citada, em que o curso, mesmo sendo definido como não-

técnico, torna-se técnico em virtude de sua utilidade: formar professores que

são necessários nas escolas que não dispõem dos mesmos. E dificulta,

também, às escolas, a criação de programas que auxiliem no desenvolvimento

da identidade pessoal e profissional. Ricoeur (1997) afirma que as narrativas

são importantes elementos na formação da identidade; elas auxiliam no

99

conhecimento e na descoberta de si. O documento fala nas histórias de vida

dos formandos; contudo, ignora a dimensão da narrativa dessas próprias

histórias como momento formativo.

Traçar um perfil desejado para um profissional é importante, porque

direciona maneira de caminhar. Torna-se perigoso, no entanto, quando existe

um ponto de chegada, mas não um caminho, ou pelo menos uma indicação de

caminho. Claro que cada escola deve buscar, dentro do que é apresentado

pelas diretrizes curriculares, a melhor via de acesso ao ponto de chegada

indicado, pois do contrário não haverá criatividade nem respeito às condições

de cada realidade. Orientações, porém, pelo menos de ferramentas para se

construir o caminho são, a nosso ver, importantes, para que o objetivo não se

perca de vista.

3.5 O desenrolar do fio: a identidade narrativa como estética no Parecer

CNE/CEB 01/99

Cabe recordar que a visão de estética que adoto aqui é aquela

apresentada por Schiller (2002). Em Schiller, a estética representa o belo, a

arte, que é trabalhada pelo ser humano. O autor apresenta também a ideia

(não a expressão) de experiência estética, que são as sensações vividas pelo

ser humano em contato com uma determinada situação. Ademais disso, indica

a educação estética como fundamental para o crescimento enquanto pessoa,

introduzindo um elemento chamado lúdico, que se situa entre o formal e o

sensível. No lúdico está o jogo, a capacidade de mudar.

É a partir desta perspectiva que analiso o Parecer. Procurei no texto

referências à educação estética, ou simplesmente à palavra estética. Percebi

que não existe no texto qualquer uma dessas palavras. Existem, sim, citações

de “princípios éticos e estéticos”, relacionados a outros documentos, como no

caso a seguir:

Assim, as diretrizes curriculares para o curso Normal em nível médio deverão ser inspiradas nos princípios éticos, políticos e estéticos já declarados nos Pareceres de n

os 22/98, 04/98 e 15/98, a respeito da

educação infantil e do ensino fundamental e médio (BRASIL, 1999, p. 27).

100

Em outro caso, a recordação dos “princípios éticos e estéticos” está

relacionada à maneira de trabalhar os conteúdos:

Ao considerar princípios éticos, políticos e estéticos na reinterpretação de histórias que se influenciam e modificam umas as outras, a escola reconhece as identidades pessoais e assegura a reelaboração crítica do conhecimento de si e do seu relacionamento com os demais durante o processo de formação (BRASIL, 1999, p. 27).

Neste caso, é possível afirmar que há uma preocupação com as

dimensões ética e estética, mais relacionadas à visão de Freire (2003). Não

uma preocupação com a educação estética em si, mas com os princípios

norteadores da formação. Para que haja crescimento pessoal, é necessário

que eles sejam éticos e estéticos, uma vez que estes dois caminham juntos

(Freire, 2003), não deixando de lado o político, podendo-se aqui, sim, ver um

pouco de Schiller (2002). O estético, de acordo com o documento, está na vida

dos formandos, e aqui aparece algo de Ricoeur (1997). Para o Parecer, as

dimensões ética, política e estética presentes nas histórias de vida ajudam a

fortalecer a identidade pessoal e profissional.

O que claramente está ausente do Parecer é qualquer referência à

educação estética, no sentido mesmo schilleriano da palavra: aprender a arte,

a conviver com a arte, a sentir a arte. É uma omissão importante, pois revela o

distanciamento que há entre a educação e a arte. Se Schiller diz que a

educação estética “tem por fim desenvolver em máxima harmonia o todo de

nossas faculdades sensíveis e espirituais” (SCHILLER, 2002, p. 103), não é

sem razão a importância que ela tem num curso de formação de professores.

Aprender a conviver com a arte é fundamental para ensinar a conviver com a

arte.

Concluo esta análise com os questionamentos feitos por Perissé (2009):

A interpretação de obras de arte contribui para o nosso aperfeiçoamento ético? Ajuda-nos a repensar nossa maneira de viver e conviver? Pode nos fazer dimensionar o quanto é perigoso ser livres e saber quem somos? Pode ser, em resumo, uma interpretação educadora? (...) é possível responder sim às perguntas (...). Pensar a experiência estética não tanto ou não só pela ótica do prazer e da distração, ou do entretenimento, mas como fonte de descobertas existenciais, de aprendizado (PERISSÉ, 2009, p. 36).

101

O Parecer CNE/CEB nº 01/1999 traz contribuições importantes para a

educação no Brasil. Existe no texto uma riqueza grande no que se refere à

formação de educadores. O que se pode perceber é que o documento

procurou seguir à risca o que a Lei 9394/96 trouxe de novo, que foi uma nova

maneira de se conceber a formação profissional, entrando nessa nova visão

também a formação de professores.

Desde o início, o texto procura reforçar a ideia de que bons educadores

são aqueles que conseguem lidar com as situações mais variadas na sala de

aula. Também afirma ser fundamental que o curso de formação de professores

em nível médio tenha presente a vida dos formandos, e saiba como partir da

vida deles para fortalecer a sua identidade enquanto professores.

O perfil de professor que se espera após a conclusão do curso é

comparável ao de um professor que concluiu o ensino superior: determinado,

independente, autônomo, solidário, conhecedor dos alunos e sabedor de como

resolver as dificuldades encontradas. Concordo plenamente com a

necessidade de termos professores com essas características. O que parece

mais problemático é saber se as escolas terão condições de oferecer um curso

que prepare dessa maneira o professor. Ou mesmo se terão interesse, pelo

menos as escolas privadas que oferecem o curso.

A crítica aqui ao documento, contudo, refere-se à ausência de

referências à dimensão estética na formação dos professores, e a uma quase

apagada referência às histórias de vida. No que se refere às narrativas, a

omissão também é total. O texto menciona as histórias de vida como elemento

importante na formação da identidade, mas não se pronuncia a respeito de o

currículo do curso utilizar as histórias de vida como método.

Apesar de trazer uma contribuição no sentido de ter boas reflexões e de

insistir na formação de um professor bem qualificado e com consciência de sua

tarefa como educador, o documento assume o risco de passar despercebido.

Embora eu não tenha material de observação nos diversos cursos que existem

no país, nem isso seria possível, no curso do qual eu era coordenador ao

começar o Mestrado em Educação, o documento é citado no plano de curso,

mas apenas citado. No restante do plano, segue-se a linha tradicional, de

formação técnica de professores. Mesmo estabelecendo diretrizes curriculares,

carece de suporte teórico e de elementos práticos para as escolas.

102

3.6 Uma luz no final do labirinto: elementos conclusivos

Após percorrer as sendas do labirinto presentes no Parecer CNE/CEB nº

01/1999, percebemos que o modelo de formação proposto por Ricoeur passa

pela própria pessoa, ou seja, segue o caminho da autoformação, proposto por

Josso (2004).

Neste percurso, as narrativas desempenham um papel fundamental na

compreensão de si. A estética presente neste percurso é, por um lado, a

estética do humano, e por outro a estética do labirinto ou, poderíamos dizer, do

ser humano interior, daquele que é agente da própria formação e da sua

autonomia enquanto sujeito.

Desde o começo, quando trabalha a questão da identidade narrativa,

Ricoeur deixa claro que o papel das narrativas é levar o ser humano a

encontrar-se consigo mesmo, de maneira a desenvolver a própria identidade.

Neste percurso, diversos fatores estão presentes, e todos igualmente

importantes, como o reconhecimento da própria trajetória. Estes elementos são

as diversas variáveis que interferem na hermenêutica, ou na compreensão dos

fatos (ou simplesmente fazem parte da hermenêutica), como são os pré-

conceitos, ou então o fator tempo – e sua ligação com a memória e as

lembranças –, enfim, elementos que reforçam ou dificultam a compreensão,

mas que não podem ser deixados de lado.

Esses elementos, que já estão interligados entre si, formam outras

ligações que ampliam o campo por onde caminhar – mas dificultam encontrar o

caminho. Quanto mais encruzilhadas há, mais difícil saber por onde chegar

onde se quer chegar. Por isso, a narração de si não é tão simples, e muito

menos simples é encontrar na narrativa elementos que ajudem na construção

da própria identidade.

Observamos que a educação estética se cruza com a identidade

narrativa a partir do momento em que ambas têm a missão de levar a pessoa a

encontrar-se consigo mesma. Seja na visão de Ricoeur, de Schiller ou de

Freire, a educação estética ou a estética na escola levam a pessoa a

reconhecer um processo de construção da própria pessoa, ou da própria

identidade. Reconhecer-se como ser em formação é importante para sentir-se

sujeito da própria história. Isso quebra o paradigma da formação linear, seja

horizontal ou vertical. Numa formação linear, o formando apenas recebe a

103

formação que vem de fora, não participa dela. Ela costuma ser de caráter

conteudista e moralista; e o sujeito, que nesse caso não é sujeito, assiste as

coisas acontecerem.

Numa formação de professores, é importante que o fio condutor do

processo sejam os elementos que conduzem a pessoa a sentir-se educador e

saber o porquê disso. Note-se que esse sentir-se educador está relacionado

com o sentir-se pessoa, e isso está ligado ao reconhecer e conviver com a

própria história de vida. Mais uma vez, os caminhos se cruzam e se

entrelaçam.

É por esse motivo que buscamos no documento que estabelece as

diretrizes curriculares nacionais para o curso de formação de professores em

nível médio – Parecer CNE/CEB 01/1999 – o sentido de estética na identidade

narrativa. Um documento que trate da formação de professores precisa deixar

claro que tipo de relação o formando terá com a própria formação. Se for uma

relação linear (horizontal ou vertical), a escola terá um determinado tipo de

comportamento; se for uma relação não linear (labirinto; circular), será

diferente.

No documento aqui analisado, percebemos que, embora sejam

respeitados elementos como a história de vida dos formandos, a formação

prossegue dentro de um padrão linear e horizontal, ou seja, os conteúdos não

são impostos, cabendo a cada unidade escolar defini-los; contudo, as diretrizes

curriculares não abrem demasiado espaço para uma formação que não seja

técnica. A educação estética, por exemplo, tão cara a Freire e a outros autores,

não aparece em momento algum.

Percebemos que uma caminhada formativa que tenha por objetivo

formar o sujeito na sua autonomia precisa necessariamente reconhecê-lo como

pessoa e ajudá-lo a assumir a própria história. As narrativas na perspectiva de

Ricoeur são a melhor maneira de fazer com que isso aconteça, pois ao

encontrar-se consigo mesmo, ele será capaz de assumir seu próprio ser de

educador.

Apesar disso, há uma luz no final do labirinto. Não estamos perdidos. O

fio condutor – que podemos chamar fio de Ariadne – que vai levar o formando a

encontrar a saída do labirinto é justamente – e paradoxalmente – o próprio

labirinto. É a sua história, a sua narrativa, que vai conduzi-lo rumo à sua

104

identidade, ao seu ser. E mesmo que, nessa aventura por dentro do seu

labirinto, ele se perca e corra o risco de ser devorado pelo Minotauro (seus

medos, sua história, suas emoções, seus afetos), é seguindo o fio da própria

vida que ele poderá encontrar-se e sair vivo do labirinto, com força para

prosseguir viagem na aventura da vida.

105

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste trabalho de pesquisa, percebo o quanto é necessário

caminhar para se chegar a uma formação de educadores da maneira como é

sonhada por quem deseja uma educação mais humana. Depois de fazer um

longo percurso através de autores que, para mim, até então eram

desconhecidos, descobri que meu desconhecimento era maior do que eu

suspeitava.

O ingresso no Mestrado em Educação na Universidade Cidade de São

Paulo deu-se por meios não tão esperados. Desde que concluí a primeira

graduação, em 2002, decidi não fazer Mestrado. Foi uma daquelas decisões

que, uma vez tomadas, com o tempo acabam sendo alvo de arrependimento.

No meu caso, o arrependimento demorou a chegar. A ideia de ingressar num

programa de mestrado surgiu quando senti a necessidade de investigar mais a

fundo o sentido da identidade narrativa de Ricoeur na formação de educadores.

Acabei envolvendo-me mais do que imaginava e descobrindo relações que

nunca pensei que existiam.

No começo da pesquisa procurei apropriar-me das ideias de Ricoeur,

lendo diversos escritos seus, com especial atenção para “Tempo e Narrativa” e

“Identidade Narrativa”. Ricoeur é um autor rebuscado, e não foram pequenas

as dificuldades de compreensão. O que me ajudou, e na elaboração do

primeiro capítulo, foram leituras de outros autores que apresentam conceitos

de identidade e de narrativa. Com esses autores, consegui fazer um diálogo

que culminou nas páginas escritas do primeiro capítulo. Dele, concluo que a

identidade da pessoa é dinâmica. Mesmo havendo uma identidade estática,

que é a que me define como pessoa, ganha força aquela que vai sendo

moldada e me transformando cada vez mais em pessoa. Ricoeur ajudou-me

muito a compreender minha própria identidade.

O passo seguinte foi elaborar minha história de vida. Na ordem do

trabalho, ela aparece antes, mas foi elaborada depois deste primeiro momento

que acabo de descrever. Para escrevê-la, utilizei-me das lembranças que já

havia narrado na elaboração da Colcha de Retalhos, durante o programa de

Mestrado, sob a orientação da Profª Margaréte May Berkembrock-Rosito. As

lembranças surgiram primeiro a conta-gotas, depois foram jorrando de maneira

106

surpreendente. Reviver a infância e a adolescência e o que aconteceu nelas foi

uma experiência profunda, que em alguns momentos me fizeram ir às lágrimas.

É essa vivência que vem relatada no início do primeiro capítulo. Foi ali que

percebi a importância das narrativas na minha vida, e o verdadeiro motivo de

querer pesquisar este tema, bem como o porquê de a palestra do Prof. Roberto

Comte sobre identidade narrativa ter mexido tanto comigo.

A elaboração do segundo capítulo foi a que mais surpresas me trouxe.

Já havia estudado estética em tempos anteriores, no Curso de Filosofia, e

mesmo no Programa de Mestrado. Havia lido coisas sobre estética, havia

escrito. Mas foi Schiller, que até então era um ilustre desconhecido, quem me

mostrou que a dimensão estética é fundamental na vida humana. Foi também

em Schiller que descobri que o lúdico é uma experiência estética, e que não

pode ficar ausente da escola, muito menos da formação de professores.

Compreendi que enquanto eu der espaço na minha vida para o jogo, darei a

mim mesmo chance de crescer e de buscar sempre mais. A minha

incompletude se manifesta sempre, e as experiências estéticas me ajudam a

ser mais eu.

O terceiro capítulo me fez recordar elementos que havia há tempos

esquecido, especialmente no que diz respeito à formação de professores que

La Salle almejava. Mesmo tendo publicado há algum tempo um artigo sobre

este assunto, e tendo estudado este autor durante a minha formação, foi

relendo-o à luz da estética que redescobri muita coisa sobre ele. Para uma

escola ser bonita não basta uma estrutura bem feita, uma organização bem

constituída, um espaço físico amplo. É necessário pessoas, e pessoas que

saibam que são pessoas; que reconheçam o outro como gente, e que vejam

em si mesmas e no outro uma pessoa em desenvolvimento. Pessoas

inconclusas, de que Paulo Freire nos fala. Com Freire aprendi, que buscar o

crescimento é mais do que sentar-se nos bancos de uma escola e absorver

conteúdos e dinâmicas; é necessário viver esses conteúdos e essas dinâmicas,

e, mais que isso, descobrir que são as vivências, de dentro e de fora da escola,

que vão se transformar em experiências estéticas que, depois, poderão ser

narradas e ajudar a formar a identidade pessoal.

Além de aprender com estes autores, aprendi com a leitura do Parecer

CNE/CEB nº 01/1999. Ele mostrou-me que é possível elaborar um documento

107

muito bonito, com muita estética e boas teorias, e mesmo assim ele não ser

seguido da maneira correta. Para que um documento como esse seja seguido,

é necessário muito mais que belas teorias, é fundamental que seja feito com

convicção, e que abra possibilidades de ser conhecido e vivido pelas escolas.

Em relação a este Parecer, concluí que lhe faltam algumas coisas muito

importantes. Ele está bem escrito, numa linguagem facilmente assimilável,

mesmo para quem desconhece o assunto, mas dilui-se num mundo disperso,

de teorias. Falta falar de coisas fundamentais, como a questão da educação

estética. Nesse sentido, ele está incompleto. Embora seja generoso ao falar da

formação humana e da identidade do educador, e ambicioso ao descrever o

perfil do professor formado no ensino médio, pode-se dizer que ele coxeia pelo

caminho que ele mesmo trilhou.

O resultado é que os cursos de formação de professores em nível

médio, os que ainda bravamente resistem, não adquiriram a identidade que o

Parecer quis transmitir. Tornaram-se cursos técnicos, sem outra identidade,

que visam ao final de dois ou três anos ter professores diplomados que possam

atuar para suprir as carências de professores nas escolas públicas.

O papel das narrativas na formação de professores é importante.

Especialmente em se tratando das narrativas de vida. Narrar e narrar-se é uma

experiência estética fascinante, e que produz resultados fantásticos nas

pessoas. A identidade narrativa, que pode ser compreendida como a síntese

da própria pessoa, desenvolve-se e desenvolve a pessoa, a partir desta

experiência estética. A ausência de qualquer referência a isso nas Diretrizes

Curriculares Nacionais para o curso de formação de professores em nível

médio coloca em cheque o próprio documento e, por tabela, o curso. Quando

se fala no perfil do professor que se almeja, mas deixa-se em aberto às escolas

a maneira de conseguir esse professor, o risco que se corre é grande.

Enfim, percebo que formar professores é uma tarefa delicada. Antes de

qualquer curso, antes de elaborar um programa de formação, é preciso fazer-

se não apenas a pergunta: que professor eu quero? Mas sim perguntar-se:

com que pessoa eu vou trabalhar? De que mundo ela vem? Que pessoa eu

quero formar? Que mundo eu desejo no futuro? Dessa maneira, as ideias que

aparecem no Parecer poderão ser transformadas num programa que forma,

antes de tudo, gente.

108

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113

ANEXO I

Parecer CNE/CEB Nº 01/1999 Mantenedora/Interessado: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica – Brasília - DF Assunto: Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores na modalidade normal em nível médio. Relator(a) Conselheiro(a): Edla de Araújo Lira Soares Processo nº: 23001.000037/99-18 Parecer CEB nº: 1/99 CÂMARA OU COMISSÂO:CEB APROVADO EM:29/1/99

I – RELATÓRIO

Este Parecer dirige-se, especialmente, aos professores que, inspirados nos ideais

de solidariedade, liberdade e justiça social, pretendem exercer a docência na Educação Infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, tendo como perspectiva a educação escolar, direito de todos e dimensão inalienável da cidadania plena, na sociedade contemporânea.

É por essa convicção que os estudos e as reflexões sobre a formação de docentes, encontram no pensamento do Professor Paulo Freire pontos que são fundamentais para a organização e o desenvolvimento das propostas pedagógicas das escolas.

(...) O espaço de que disponho não me permite ir além de algumas rápidas considerações em torno de um ou dois pontos que me parecem fundamentais em nossa prática. Pontos, de resto, ligados entre si, um implicando no outro. O primeiro deles é o da necessidade que temos, educadoras e educadores, de viver, na prática, o reconhecimento óbvio de que nem um de nós está só no mundo. Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta constatação evidente, enquanto educadora ou educador, significa reconhecer nos outros – os educandos no nosso caso – o direito de dizer a sua palavra. Direito deles de falar que corresponde ao nosso dever de escutá-los. Mas, como escutar implica em falar também, o dever que temos de escutá-los significa o direito que igualmente temos de falar-lhes. Escutá-los, no fundo, é falar com eles, enquanto simplesmente falar a eles seria uma forma de não ouvi-los. Dizer-lhes sempre a nossa palavra, sem jamais nos oferecermos às palavras deles, arrogantemente convencidos de que estamos aqui para salvá-los, é um boa maneira

114

que temos de afirmar o nosso elitismo, sempre autoritário. Esta não pode ser, porém, a maneira de atuar de uma educadora ou de um educador cuja opção é libertadora. Quem assim trabalha, consciente ou inconscientemente, ajuda a preservação das estruturas dominadoras. O outro ponto, ligado a este, e a que eu gostaria de me referir é o da necessidade que temos os educadores e educadoras de “assumir” a ingenuidade dos educandos para poder, com eles, superá-la. Estando num lado da rua ninguém estará, em seguida, no outro, a não ser atravessando a rua. Se estou do lado de cá, não posso chegar ao lado de lá, partindo de lá, mas de cá. (...) Sejamos coerentes. Já é tempo. Fraternalmente,

Paulo Freire

São Paulo, abril de 1982.33

I N T R O D U Ç Ã O

A Lei 9131, de 20 de dezembro de 1996, que instituiu o atual

Conselho Nacional de Educação, consignou, entre as competências da

Câmara de Educação Básica – CEB, deliberar sobre as Diretrizes Curriculares

Nacionais – DCN. Nessa atribuição, a CEB identifica uma efetiva possibilidade

de suas ações contribuírem para consolidar o processo que busca um padrão

de qualidade para a educação básica no país. No encaminhamento dessa

missão, a Câmara iniciou estudos e solicitou, através de audiências públicas, a

valiosa colaboração de instituições e entidades com tradição no planejamento,

na execução e na avaliação de políticas educacionais, bem como no

desenvolvimento de pesquisas no campo educacional.

Até o momento, o processo de estudos e consultas resultou na

elaboração dos Pareceres, nos 22/98, 04/98 e 15/98 que tratam das diretrizes

norteadoras da educação infantil e do ensino fundamental e médio.

Ao serem aprovadas e homologadas, essas diretrizes adquiriram,

segundo a legislação vigente, a condição de mandatórias. Essa condição,

entretanto, não interrompeu as interlocuções que se instalaram, desde as

115

origens da sua elaboração; prosseguem as discussões e negociações, tendo

em vista traduzir as citadas diretrizes em efetivas possibilidades de articulação

das diversas propostas pedagógicas das escolas.

Sabe-se, neste caso, que o exercício das responsabilidades dos entes

federativos com a universalização da educação de qualidade, nos termos do

que estabelecem as DCN, pressupõem, simultaneamente, um efetivo regime

de colaboração e o controle público das políticas educacionais em curso no

país.

Com essa perspectiva, o presente parecer, ao propor diretrizes

curriculares nacionais para a formação de professores na modalidade Normal,

em nível médio, retoma os princípios das DCN até então aprovadas e observa

as contribuições contidas nos referenciais para formação de professores

sugeridos pela Secretaria de Ensino Fundamental do MEC, as orientações da

proposta de Curso Normal Superior a distância, formuladas pela Fundação

Darcy Ribeiro e as discussões que subsidiaram o programa de formação de

professores em exercício, coordenado pela Secretaria do Ensino a Distância do

MEC. Também, como não poderia deixar de ser, este parecer foi enriquecido

pelo instigante e atual debate sobre a formação do educador. Cabe ainda

destacar as relevantes contribuições oferecidas pelos Conselheiros da CEB,

durante o processo de construção dessa proposta, em especial as dos

Conselheiros Regina Alcântara de Assis e João Antônio Cabral de Monlevade e

da ex-Conselheira Hermengarda Ludke.

PROFISSIONALIZAÇÃO DO EDUCADOR: IDENTIDADE E FORMAÇÃO

O reconhecimento da centralidade da educação escolar no contexto das

transformações que perpassam todas as dimensões da nação brasileira tem

subsidiado um fecundo debate sobre os diversos fatores que influenciam na

democratização das políticas de Estado para o setor. O Brasil, em que pese ter

assegurado o acesso de 95% das crianças e jovens, dos 7 aos 14 anos, ao

ensino obrigatório, ainda convive com milhões de analfabetos, jovens e adultos.

Além disso, suas escolas registram significativos índices de evasão e

repetência.

116

Assim, enquanto a humanidade já produziu tecnologias de ponta que

aproximam o local, o nacional e o internacional e se lança para o cosmo, o país

ainda não conseguiu cumprir a meta de universalização do ensino fundamental

de qualidade, reduzindo com isso as possibilidades de inserção de amplos

segmentos da sociedade no espaço integrado e mundial do conhecimento e

das informações. Acrescente-se, ainda, que a agenda de mudanças para o

setor educacional nem sempre contempla compromissos com a modificação da

feição excludente dos sistemas de ensino. É o caso, por exemplo, das reformas

que se processam no bojo dos programas de ajuste estrutural. Esses, por sua

vez, implicam enormes custos sociais e dão especial destaque ao capital

financeiro, repondo com mais força a necessidade de se preservar direitos

sociais já conquistados.

Por outro lado, com o avanço do processo democrático, as demandas da

população no campo educacional têm um objetivo claro. Traduzem anseios por

melhoria da qualidade de vida e exercício da cidadania plena, no âmbito da

criação ininterrupta de novos direitos e subversão contínua do estabelecido34.

Nesse aspecto, verifica-se que o reconhecimento da importância do papel do

professor nas mudanças educacionais pretendidas tem estimulado a

formulação de proposições inovadoras para os sistemas de formação de

docentes, com visibilidade na legislação educacional e nos meios de

comunicação.

Em sintonia com essas expectativas, a Lei 9394/96 toma a escola como

foco de suas preocupações (art. 12), conferindo, quando comparada às

demais, um especial destaque às incumbências dos professores (art.13). Ao

mesmo tempo que a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os

estabelecimentos de ensino (art. 9, 10, 11), os educadores são convocados,

em articulação com as famílias e a comunidade, a assumirem um compromisso

ético com os alunos e as suas diferentes histórias de vida, no contexto do

atendimento escolar sob a ótica do direito. A redescoberta do valor da escola,

do professor e da participação da sociedade, nos termos da citada lei, retira o

processo de escolarização do isolamento social e da responsabilidade

117

individual, insistindo na dimensão coletiva do trabalho pedagógico e no caráter

democrático de seus propósitos, de sua execução e avaliação.

Neste sentido, o processo de escolarização vai adquirindo um novo

significado social e cultural, claramente expresso nos princípios e fins da

educação nacional, que estão inscritos nos termos da citada lei, manifestando

a vontade da nação.

Trata-se de estimular formas de pensamentos e ações que conectem as

instituições educacionais com as organizações da sociedade civil,

possibilitando interrogar sobre as relações do cotidiano escolar, as escolhas de

conteúdos, programas e atividades à luz do jogo de interesses e respectivos

valores que moldam a educação e a sociedade.

No art. 1º do Título I da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDBEN) é explicitada a concepção de educação que orienta os dispositivos do

conjunto do texto. De caráter abrangente, contempla os processos formativos

que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas

instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da

sociedade civil e nas manifestações culturais. Por sua vez, o segundo

parágrafo do mesmo artigo consagra a dimensão socialmente contextualizada

da educação escolar, estabelecendo que deverá vincular-se ao mundo do

trabalho e da prática social. Há, portanto, o propósito social e a referência a

uma práxis. Pressupõe, simultaneamente, saber, decidir e atuar. Desvenda, a

partir de uma visão global e integrada do processo educacional, a falácia da

oposição entre saber e fazer, conhecer e aplicar. Fica definido, a partir desse

Título, que a docência supõe a competência para remeter o conhecimento à

prática e ao conjunto das situações que enfrenta o profissional da educação no

cotidiano escolar.

No Título II, o propósito social que referenda a educação, a partir do seu

vínculo com o trabalho e a prática social, é ampliado. No caso, além de

estabelecer as responsabilidades da Família e do Estado com a educação,

declara sua inspiração nos princípios de liberdade e nos ideais de

solidariedade humana. Com isto, possibilita a busca de espelhos e imagens

para o desenvolvimento de um projeto de educação escolar que inclua a

diversidade e elimine a discriminação em todos os níveis de ensino.

118

Por certo, essa perspectiva aponta para ambientes de aprendizagens

colaborativas e interativas. Quer se considere os integrantes de uma mesma

escola, quer se eleja atores de projetos pedagógicos de diferentes instituições,

sistemas de ensino e lugares. Abre-se, assim, um horizonte interinstitucional de

colaboração que é decisivo para a formação dos professores.

Neste particular, delineia-se um significado social para o uso de novas

tecnologias e múltiplas linguagens, tendo em vista um trabalho conjunto e

solidário, com benefícios para comunidades locais, regionais, nacionais e

intercontinentais. Numa cultura que cresce em redes de conhecimento e em

relações de escala global, numa mídia em que verdades e mentiras se

encontram justapostas, o discernimento de conhecimentos e valores não

prescinde do mestre, um mestre distinto, afeito também a uma nova cultura, a

fim de desfazer equívocos e ressaltar informações pertinentes.

Na verdade, a LDBEN dá especial destaque ao papel do professor,

tornando público (art.13,III), que a sua função social é zelar, no contexto do

dever do Estado pela educação escolar, pelo exercício do direito de aprender

de cada aluno. Ao fazê-lo, a lei interpela o profissional da educação, enquanto

um intelectual que tem poder, face às várias possibilidades de escolha, de

firmar compromissos com os interesses mais gerais do conjunto do país.

Assim, como a CEB já manifestou no Parecer 04/98, a nação brasileira, através

de suas instituições, e no âmbito de seus entes federativos, vem assumindo,

vigorosamente, responsabilidades crescentes para que a Educação Básica,

demanda primeira das sociedades democráticas, seja prioridade nacional como

garantia inalienável do exercício da cidadania plena.

De fato, no estabelecimento desses compromissos encontra-se o valor

intrínseco da atividade docente e a principal contribuição para tecer a sua

legitimidade, aproximando a dignidade da profissão dos ideais da democracia.

Como se vê, a LDBEN está distante da visão instrumental que confinava

os professores ao papel de meros executores. Estabelece, para os mesmos,

entre outras atribuições, a sua participação na elaboração da proposta

pedagógica (art. 13, I) e garante-lhes tempo remunerado para preparação e

avaliação do trabalho pedagógico (art. 67, V), no contexto de progressivos

graus de autonomia da escola (art. 15). Nesse sentido, deve-se orientar a

tarefa de repensar a formação docente, considerada em toda a sua

119

complexidade. A referida tarefa tem influenciado o estado do debate a respeito

do que se denominou “crise de identidade” dos professores. Nas últimas

décadas, essa crise, provocada principalmente pela associação de fatores

como baixos salários e multiplicação de jornadas de trabalho, reduziu a

atividade docente à simples execução de atos fragmentados de “ensinar” ou

“dar matéria”. No caso, a formação desse profissional ficou reduzida à

transmissão de conteúdos e procedimentos indispensáveis ao como fazer e o

que fazer, estabelecidos nos limites da abordagem tecnocrática. Em

decorrência, retirou-se do foco dos debates e estudos sobre a educação

escolar as questões da natureza e do propósito da escolarização, da conexão

entre escola e sociedade, da relação entre poder e ensino, da escola como

organização social e da natureza do conhecimento escolar, entre tantas,

esvaziando o domínio do educador sobre as suas condições de trabalho. Tal

entendimento, no entanto, teve que enfrentar os protestos da sociedade

democrática, que reconhece a relevância da formação desses profissionais que

desempenham tão importantes papéis, notadamente no encaminhamento de

políticas que estimulem a autonomia e valorizem a diversidade, num contexto

de responsabilidade e liberdade.

Aqui, deve-se ressalvar a contribuição das análises que circunscrevem o

reconhecimento social do magistério no campo das relações entre educação e

cultura. Nunca é demais ressaltar a interação intrínseca entre ambas, dinâmica

essa reconhecida no art. 1o da LDBEN. O mundo da cultura é o mundo das

possibilidades, de um equilíbrio que nunca se completa, um território de riscos

e ousadias, onde se conflitam o que é tido como autorizado socialmente e a

insuficiência do estatuto da tradição, para legitimar sua incorporação na

proposta pedagógica das unidades educacionais. Na verdade, “não se confere

igual valor a todos os elementos constitutivos da cultura.”

Nesse cenário, o exercício da docência pressupõe uma arrojada tarefa,

que não pode prescindir de estratégias interpretativas, na análise da

pertinência social e dos desdobramentos das escolhas que são processadas.

Assim, passa a ser configurada, no mínimo, uma dupla exigência, a partir da

competência que tem o profissional da educação inspirada nos ideais da

educação nacional.

120

Em primeiro lugar, contribuir, no exercício da atividade docente, para a

produção de conhecimentos que favoreçam as leituras e as mudanças da

realidade e, também, influenciar no processo de seleção do que representa “a

experiência coletiva e a cultura viva de uma comunidade.” Em função disso, o

educador compartilha das decisões a respeito de quais saberes e materiais

culturais deverão ser socializados, tendo em vista o exercício pleno da

cidadania. Dessa forma, o professor assume sua condição de intelectual face à

possibilidade de integrar-se no fecundo debate a respeito dos valores, das

concepções e dos modos de convivência que deverão ser priorizados, através

do currículo.

Em segundo lugar, e como desdobramento, entende-se que o direito de

aprender, assegurado inclusive pela garantia das condições do direito de

ensinar, pressupõe por parte do docente a reelaboração da ciência do sábio,

da obra do escritor ou do artista35 e, ainda, do pensamento teórico e da paixão

geradora do sonho que se queira socializar, em situações específicas e nem

sempre previsíveis. Direito de aprender, de futuros professores, que não

respondem apenas a estímulos de seus formadores, mas exercitam a liberdade

de crescer no conhecimento, aprofundar as críticas, resolver os problemas,

cultivar os desafios da prática; mas, também, o dever de se preparar para a

interlocução e para responder às mais avançadas e desafiantes perguntas que

seus alunos vão lhes propor. Alunos não idealizados, mas reais, antecipados

na trama dos ambientes de aprendizagem que se constituem durante seu

processo de formação.

Trata-se, no caso da educação escolar, de fazer face a uma situação

singular e complexa, construindo respostas que trazem, sem a exacerbação do

passado, as tonalidades do que já é conhecido e, sem o otimismo ingênuo, a

radicalidade da utopia. Há sempre algo de inesperado que é próprio de uma

sociedade instituinte, onde a vivência da subjetividade ultrapassa a abordagem

exclusivamente científica de um projeto educacional. Assim, diversos e

surpreendentes cantos podem propagar o eco da vida cidadã, abrindo-se

também para a multiplicidade e desigualdade de contextos e desafios que

fluem a partir das relações de gênero, etnia, trabalho, entre outras.

121

Neste processo, o educador compreende que os conhecimentos não

podem ser simplesmente transferidos. Ensinar e aprender é sempre um ato

único e criativo. Exige um esforço de construção através de uma atividade que

é simultaneamente teórica e prática, individual e coletiva.

Aliás, refletir sobre a prática reorientando a ação docente constitui,

segundo o art. 61 da LDBEN, um dos fundamentos da formação dos

profissionais da educação. Nesse sentido, o ensino é uma atividade complexa

que supõe uma reflexão sistemática sobre a prática, requerendo, para tanto, a

constituição de conhecimentos, valores e competências estimuladoras de uma

ação autônoma e, ao mesmo tempo, colaborativa em face da responsabilidade

coletiva, com os procedimentos que deverão assegurar o direito dos alunos

aprenderem.

Assim, no cumprimento do que estabelece o texto legal, o professor

conduz sua própria formação, pensando a prática e tomando decisões sobre

ambientes de aprendizagem que concretizam o projeto pedagógico elaborado

pelo conjunto da escola. Ao se tornar sujeito da formação, torna-se também

sujeito de sua própria valorização, no âmbito do que está posto no art. 67 da

LDBEN.

Em vista disso, sua preparação é permanente e dá concretude, na

utopia do saudoso Gonzaguinha, à beleza de ser um eterno aprendiz. Só

assim, torna-se fator determinante da dinâmica educativa, aliado inconteste das

reformas que se apresentam como alternativas de qualificação do processo

educativo e, ainda, como declaram os teóricos da educação emancipatória, o

intelectual que une, no contexto da sala de aula, a análise crítica com a

possibilidade de mudança. Dessa forma, circunscreve o exercício da docência na

inteligência maior a respeito dos problemas e das soluções encontradas coletivamente

pela sociedade, assumindo de forma solidária sua condição de profissional.

Nesta direção, os legisladores consideram que a gestão democrática é

uma das principais âncoras do processo de seleção e reelaboração que se

instala na organização dos ambientes de aprendizagem escolar. Para tanto,

retomam, no texto da LDBEN, através do que estabelecem os arts. 14 e 15, o

que está disposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal (CF),

consagrando o princípio da gestão participativa e o controle público da

qualidade da educação:

122

Art. 1o

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por

meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta

Constituição.

CURSO NORMAL NA TRAJETÓRIA DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR

A complexa relação entre a formação dos professores e a qualidade da

Educação Infantil e do Ensino Fundamental (anos iniciais), vem sendo

analisada, predominantemente, sob a ótica da „universitarização‟ da formação

inicial. É uma abordagem que, pelo seu caráter específico, tem estimulado o

debate e o surgimento de inovações a respeito dos processos educacionais.

Do ponto de vista das organizações de educadores e das entidades que

desenvolvem estudos e pesquisas sobre a formação docente, o tema vem

sendo rigorosamente tratado no contexto de uma política global que contempla,

simultaneamente, formação inicial e continuada, condições de trabalho, salário

e carreira. Com isso, formulam severas críticas às análises que privilegiam

aspectos particulares de uma problemática cuja solução pressupõe políticas de

natureza global. Vale ressaltar, no entanto, que ao abordarem explicitamente a

formação inicial pleiteiam seja a mesma desenvolvida em níveis mais

elevados, tendo em vista a complexidade que consideram inerente à tarefa de

ensinar.

No Brasil, em que pese o debate sobre a profissionalização do

magistério apontar para esse patamar de escolarização mais elevado, a

LDBEN, em seu art. 62, sem desconhecer a tendência mundial de formação

docente em nível superior, admite a preparação do professor da educação

infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, tanto em nível médio,

quanto em nível superior:

Art. 62 – A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-

á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena em

universidades e institutos superiores de educação admitida como

formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e

123

nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível

médio, na modalidade Normal.

Tal flexibilidade é compatível com o esforço dos legisladores no sentido

de contemplar a diversidade e a desigualdade de oportunidades que

perpassam a realidade educacional no país. Sem criar impedimentos formais

para a oferta dessa modalidade de atendimento educacional, de fato, a lei

desafia os sistemas a repensá-la sob novas bases. A rigor, seu

reconhecimento expressa um movimento em busca da recuperação da sua

identidade, na medida em que é a única modalidade de educação profissional

em nível médio que a lei reconhece e identifica. As políticas educacionais

haverão de respeitar essa peculiaridade e envidar esforços para dar

conseqüência à valorização do magistério em todas as suas dimensões.

Os indicadores dessas mudanças podem ser identificados no conjunto

da LDBEN. Atente-se para os dispositivos a respeito das incumbências dos

docentes (art. 13), as disposições gerais que orientam a educação básica e

também as determinações para a educação infantil e o ensino fundamental

(Seções II e III do Título V, Capítulo II). Considere-se, ainda, o estabelecido no

art. 61 sobre os fundamentos da formação e, no art. 67, sobre as condições

pertinentes à profissionalização dos docentes.

Por sua vez, a Resolução nº 03 do Conselho Nacional de Educação

(CNE), que fixa Diretrizes para os Novos Planos de Carreira e de

Remuneração do Magistério dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,

retoma o que está determinado no art. 62 da LDBEN, nos seguintes termos:

Art. 4º - O exercício da docência na carreira do magistério exige, como

qualificação mínima:

I – ensino médio completo, na modalidade Normal, para a

docência na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino

fundamental.

Aproxima-se dessa linha o pronunciamento do Plano Nacional de

Educação. Encaminhado ao Congresso pela União, reafirma a contribuição do

124

curso de Magistério, propõe novas finalidades frente às demandas presentes

na sociedade e alerta para os limites do seu atual formato.

Quanto à habilitação para o magistério em nível de 2º grau, a Lei n.º

5692/71 descaracterizou o antigo Curso Normal, introduzindo o mesmo divórcio

entre formação geral e específica que já ocorria nas licenciaturas. Deve-se

observar ainda que, apesar da ênfase atribuída pela Lei de Diretrizes e Bases à

formação em nível superior, não se pode descurar da formação em nível

médio, que será, por muito tempo, necessária em muitas regiões do País. Além

disso, a formação em nível médio pode cumprir três funções essenciais: a

primeira é o recrutamento para as licenciaturas, a segunda, a preparação de

pessoal auxiliar para creches e pré-escolas, e a última, servir como centro de

formação continuada.36

Ainda que parcial, o reconhecimento do curso atribui significativa

importância a essa modalidade de formação e recomenda mudanças em seu

atual modelo de organização. Opondo-se aos efeitos da Lei 5692/71 que,

tornou obrigatória a profissionalização ao nível do 2o grau e transformou a

formação de professores em “Habilitação para o Magistério”, desprovida das

condições necessárias ao atendimento de suas reais finalidades, o PNE sugere

rever a estrutura fragmentada dos cursos, recomendando como princípio

orientador de formação, a articulação teoria e prática.

No âmbito do PNE, elaborado por diversos setores da sociedade

brasileira, ao qual foi apensa, no Congresso, a proposta da União, mantém-se

a desejabilidade da formação inicial em cursos de licenciatura, sem

desconhecer a formação admitida por lei. No caso específico dos professores,

a formação mínima exigida por lei é a modalidade Normal do ensino médio,

para o trabalho pedagógico na educação infantil e nas séries iniciais do ensino

fundamental. A formação desejável, e que será exigida a curto para médio

prazo, para todos os níveis e modalidades, far-se-á na educação superior, em

cursos de licenciatura plena.37

Ao tratar da questão em pauta, a Associação Nacional de Pós-

Graduação em Educação (ANPED) insiste em que a qualidade da formação

125

docente e a valorização da carreira devem ser consideradas de forma

integrada pelas políticas públicas. Ao mesmo tempo estabelece que essa

formação superior deve ocorrer nas universidades, pois é aí que se têm no

Brasil grande parte da pesquisa e da experiência acumulada sobre o ensino38.

Não tem sido diferente o entendimento da Associação Nacional pela

Formação dos Professores (ANFOPE) a respeito do tema. Em audiência

pública do Conselho Nacional de Educação (13/01/98 – PUC/Rio) sobre a

formação dos profissionais da educação, foi divulgado documento da entidade

que reafirmava a importância da universidade nesse processo e reconhecia a

tendência mundial de elevar a níveis cada vez mais superiores, a formação

inicial dos quadros do magistério39.

Em certo sentido, identificam-se, no bojo de tais análises, abordagens

que se diferenciam quanto ao reconhecimento, no momento, do papel histórico

do curso Normal. Convergem, por sua vez, quanto ao entendimento de que a

formação inicial está situada no trajeto do desenvolvimento profissional

permanente tendo, em função disso, que manter vinculações efetivas com o

processo de formação continuada. Também revelam-se estreitamente afinadas

com a preocupação de favorecer um processo de transição que deverá ocorrer,

no arco da diversidade que se configura no país, sem impedir a expansão da

educação infantil e a universalização do ensino fundamental.

Isto não prejudica, obviamente, o reconhecimento que os atuais

dispositivos legais conferem ao atendimento educacional através dessa

modalidade de educação profissional. Contudo, é preciso lembrar que diversos

setores do poder público e da sociedade em geral, ao acolherem essa

determinação, identificam nos citados dispositivos uma alternativa

essencialmente provisória. Ademais, a nova LDBEN também incorpora a

tendência mundial de formação do professor, em nível superior, independente

da etapa de sua atuação na educação básica.

Dessa forma, considera, sobretudo, que desde as origens do curso

Normal o debate sobre a qualidade da educação nunca se afastou do

126

entendimento que propugna por graus mais elevados de preparação dos

profissionais que vão exercer a docência. Por certo, este era o fundamento dos

cursos de especialização que ao lado dos dois ciclos do ensino Normal40, eram

previstos no Decreto-Lei nº 8530/46 que instituiu a Lei Orgânica dessa

modalidade de ensino. Verifique-se que o acesso a tais cursos, definido no art.

22, estava vinculado ao exercício prévio da docência, situando-se na

perspectiva da formação continuada41.

Em função disso, o que vai sendo observado ao longo da legislação

subseqüente é, cada vez mais, a perspectiva de preparação do professor em

níveis mais elevados. Em nome de uma formação mais sólida para o

magistério, os cursos normais de 4 e 5 anos, primeiro ciclo, para regentes do

ensino primário, bem como os estudos adicionais, foram extintos.

Posteriormente, a supressão das licenciaturas curtas traduziram, no

ordenamento jurídico, uma compreensão condizente com as novas

competências requeridas do professor, numa sociedade perpassada por

vertiginosas mudanças e crescente complexidade.

Mais recentemente, o curso Normal, em nível médio, foi inserido numa

trajetória cujo horizonte é traduzido, na sua forma mais atual, através dos arts.

62, 63, I e 87, IV da LDBEN. Estes, preconizam sua abertura para o curso

Normal superior e para as licenciaturas, sem conferir, no entanto, amparo legal

às iniciativas de curso Normal que possam vir a ser definidas fora do que está

determinado nos níveis aqui especificados. Isto ocorre na lei sem

descaracterizar sua identidade. É um curso próprio para a formação de

professores da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental,

que tem estrutura e estatuto jurídico específicos. Não é um ensino técnico

adaptado. Sua identidade, em face do que estabelecem os dispositivos legais,

é claramente definida pela contextualização da sua proposta pedagógica, no

âmbito das escolas campo de estudo e das experiências educativas às quais

os futuros professores têm acesso, seja diretamente, seja através dos recursos

tecnológicos disponíveis. Em função dessa concepção, a formação de

127

professores oferecida nessa modalidade requer um ambiente institucional

próprio, com organização adequada à sua proposta pedagógica. No caso, os

professores formadores deverão, ao longo do curso, orientar sua conduta a

partir dos princípios a serem seguidos pelos futuros professores. Exige,

também, o nível de estudo do ensino médio, voltado para a educação, nos

termos propostos pela LDBEN, nos arts. 21 e 22, enquanto direito de todos e

dimensão inalienável da cidadania, na sociedade contemporânea.

Aliás, a importância da educação básica foi enfatizada de forma clara,

na Emenda Constitucional 14/96, cujo texto declara o compromisso nacional

com a progressiva universalização do ensino médio gratuito, etapa conclusiva

do primeiro nível da educação no país. Assim, suas finalidades estão postas na

perspectiva da educação enquanto direito, numa sociedade que estabelece, do

ponto de vista formal, a possibilidade de universalização da Educação Básica

de qualidade, instaurando, sem dúvida, o campo histórico da luta para sua

tradução ao nível das condições concretas.

Sob essa ótica, o Parecer 04-98 da Câmara da Educação Básica do

CNE (CEB-CNE) contextualizou as diretrizes curriculares para o ensino

fundamental no âmbito da educação básica e, ao fazê-lo, associou a conquista

da cidadania plena, fruto dos direitos e deveres reconhecidos na Carta Magna,

à garantia desse patamar educacional.

Posteriormente, através das diretrizes curriculares para o ensino médio,

Parecer 15/98, a Câmara reafirmou essa perspectiva, atribuindo a esta etapa

da educação básica, a prerrogativa de direito de todo o cidadão. Ainda, com

base na legislação vigente, definiu que a sua natureza de formação básica e

comum para todo os cidadãos, mesmo incluindo a preparação básica para o

trabalho, não pode ser ajustada ou aligeirada face a outros objetivos, mas deve

estabelecer permanentemente a relação teoria e prática.

Sem dicotomizar, o citado parecer estabeleceu a diferença entre os

estudos de formação básica e os de natureza estritamente profissionalizante.

Aos primeiros, reservou, para assegurar o que está disposto nos arts. 35 e 36

da Lei 9394/96, 2.400 horas de trabalho pedagógico, distribuídos no período de

três anos letivos com, no mínimo, 200 dias para cada um. Também

estabeleceu que não há impedimentos, salvo a exigência de um limite

máximo de 25% da carga horária mínima deste nível de ensino

128

(estabelecidas no Decreto 2208/97), para aproveitamento de tais estudos em

cursos profissionais. O inverso não tem suporte legal.

Assim, é apropriado dizer que a formação geral inerente ao ensino

médio circunscreve-se no horizonte da cidadania de cada um e de todos. E,

neste sentido, é componente do curso Normal médio que subassume essa

etapa da educação básica com função habilitadora.

Com isto, o curso Normal, forma docentes para atuar na educação

infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, tendo como perspectiva o

atendimento a crianças, jovens e adultos, acrescendo-se às especificidades de

cada um desses grupos, as exigências que são próprias das comunidades

indígenas e dos portadores de necessidades especiais de aprendizagem.

Assim, além de assegurar titulação específica que habilita, o curso tem também

a validade do ensino médio brasileiro, para eventual prosseguimento de

estudos.

Na verdade, a legislação instaura um campo de tensão entre o instituinte

e o instituído. Ao acenar com a formação inicial, no horizonte da

“universitarização”, a perspectiva confronta-se com as dificuldades de uma

realidade que não dá conta, por inteiro, das condições necessárias à

implementação da inovação proposta. Depende, portanto, de negociações e

decisões que deverão contemplar as especificidade locais e os procedimentos

que fundamentam a convivência democrática.

Certamente, cabe ao poder público, como gestor das políticas

educacionais, “universalizar” o atendimento imediato do ensino obrigatório de

qualidade e responder, simultaneamente, às exigências que favoreçam a

transição do estágio atual para um novo padrão de formação inicial e

continuada do professor. Atingir este patamar pressupõe, por sua vez, a

possibilidade de ampliar o acesso às Instituições de Educação Superior, bem

como o desenvolvimento de pesquisas que tenham seu foco nas necessidades

das escolas e seus respectivos contextos.

Entende-se, com o atendimento dessas exigências, que é possível

ampliar o potencial de articulação a ser alcançado entre a melhoria da

Educação Básica e as Instituições de Ensino Superior, reduzindo-se os riscos

das mesmas transformarem-se em locus de investigação e produção de

conhecimentos voltados para a especialização exclusiva de seus próprios

129

docentes. Louvem-se, então, as iniciativas em curso que se anteciparam no

engajamento das citadas IES com as demandas dos sistemas de ensino.

Trata-se, como se vê, de um patamar a ser alcançado e de

condições a serem criadas, num país que ainda conta com um grande

contingente de professores leigos, com escolarização no nível do Ensino

Fundamental ou do Ensino Médio, sem a habilitação de Magistério. Exercem a

docência nas redes estaduais e municipais ( tabela 1), exigindo,

particularmente em algumas regiões, uma política de formação continuada que

assegure a curto e médio prazo, condições mínimas para o exercício

profissional.

TABELA 1 – Funções Docentes, por Grau de Formação dos Respectivos

Ocupantes, nas Quatro Séries Iniciais do Ensino Fundamental – Regiões

Norte, Nordeste e Centro-Oeste – 1996

Nível de Formação

Fundamental Médio Superior

Incompl. Completo

C/Magist. S/Magist. C/ Licenc.

S/Licenc. Total

Região C/Magist. S/Magist.

Norte

13.911 15.211 46.369 2.967 1.684 233 75 80.450

Nordeste

60.765 38.417 189.255 9.672 20.365 2.429 503 321.406

Centro-Oeste

2.584 3.938 31.626 2.317 12.389 1.182 203 54.239

Total

77.260 57.566 267.250 14.956 34.438 3.844 781 456.095

Fonte MEC/INEP/SEEC

Face a essa realidade, mecanismos disciplinadores da aplicação de

recursos na manutenção e no desenvolvimento do ensino obrigatório admitem

a possibilidade de financiamento para a formação de professores leigos em

exercício. É o caso da Lei 9424/96 que dispõe sobre o Fundo de Manutenção

e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e da Valorização do Magistério,

que em seu art. 7o, parágrafo único, estabelece: Nos primeiros cinco anos, a

contar da publicação desta lei, será permitida a aplicação de parte dos

recursos da parcela de 60%, prevista neste artigo, na capacitação de

professores leigos.

130

Na verdade, tanto do ponto de vista legal, quanto da diversidade que

perpassa a realidade educacional do país, considera-se que o ensino médio na

modalidade Normal, incorporadas as contribuições advindas da legislação

educacional e dos estudos recentes a respeito dessa habilitação, representa,

no trajeto da profissionalização do educador, uma das alternativas a serem

consideradas na definição de políticas integradas para o setor.

Desse modo, a oferta do curso Normal atende o que prescreve a lei e,

além de tudo, possibilita ao poder público proceder à passagem da formação

inicial de nível médio para a de nível superior, sem prejuízo da expansão da

educação infantil e da universalização do ensino fundamental. Para tanto,

deverá, no mínimo, cumprir os requisitos de qualidade exigidos para

profissionais que têm a atribuição de definir, no exercício da atividade

pedagógica, o quê e como ensinar.

Sobre o caráter autônomo dessa atividade, vale também observar, seu

compromisso com o princípio da liberdade e com o estatuto da convivência

democrática nos sistemas de ensino, ambos inspirados na LDBEN. Contudo,

seu significado maior está dado, na mesma lei, pelos ideais de solidariedade

e pela capacidade de vincular o mundo da escola ao do trabalho e da

prática social. Para tanto, no curso Normal em nível médio, os princípios que

fundamentam o projeto pedagógico e as práticas escolares que concretizam os

ambientes de aprendizagens deverão também ser coerentes com os princípios

que iluminam as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

(DCNEM), as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental

(DCNEF) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

(DCNEI).

BASES PARA AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS

... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto:

que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram

terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam

ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.

João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas

131

O curso Normal, em função de sua natureza profissional, requer um

ambiente institucional próprio com organização adequada à identidade de sua

proposta pedagógica. À luz da legislação educacional, deverá prover a

formação de professores, em nível médio, para atuar como docentes na

educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Na LDBEN as

incumbências dos professores estão claramente definidas no art. 13. e, nesse

dispositivo, a atividade docente é essencialmente coletiva e contextualizada

numa gestão pedagógica cuja pretensão maior é provocar, apoiar e avaliar o

processo de aprendizagem dos alunos.

Tendo como horizonte essa perspectiva, o curso deve formar

professores autônomos e solidários, capazes de investigar os problemas que

se colocam no cotidiano escolar, utilizar os conhecimentos, recursos e

procedimentos necessários às suas soluções, avaliar a adequação das

escolhas que foram efetivadas, e, ainda, devido às transformações por que

passam as sociedades, deverão analisar as conseqüências dos novos

paradigmas do conhecer. Implicam conhecimentos gerados a partir de um

modo de refletir sobre a prática que mantém no direito do aluno aprender, no

esforço nacional de construção de um projeto de educação escolar de

qualidade para o país, e nas regras da convivência democrática, as referências

que norteiam permanentemente a ação pedagógica.

Assim, as diretrizes curriculares para o curso Normal em nível médio

deverão ser inspiradas nos princípios éticos, políticos e estéticos já declarados

nos Pareceres de nos 22/98, 04/98 e 15/98, a respeito da educação infantil e do

ensino fundamental e médio. Na organização das propostas pedagógicas, as

escolas deverão assumi-los como ponto de partida e foco de iluminação para

todo o percurso da formação dos professores:

I - Na efetivação desses princípios, as práticas educativas

desenvolvidas no curso Normal são constitutivas de sentimentos e

consciências. Constroem, utilizando abordagens condizentes com o exercício

da cidadania plena na sociedade contemporânea, as identidades dos alunos

(futuros professores), que deverão vivenciar situações de estudos e

aprendizagens nas quais são consideradas as especificidades do processo de

pensamento, a realidade sócio-econômica, a diversidade cultural, étnica, de

religião e de gênero.

132

II – No exercício da autonomia, as escolas normais de nível médio

deverão elaborar propostas pedagógicas mobilizadoras de mentes e

afetos, propiciando, na perspectiva da cidadania plena, a conexão entre

conhecimentos, valores norteadores da educação escolar e experiências

que provêm das realidades específicas de alunos e professores. Suas

histórias de vida são importantes. Aqueles que ensinam e aprendem têm uma

história que se expressa em todas as suas atitudes, na postura profissional e

no modo de ensinar, pensar e aprender. Ao considerar princípios éticos,

políticos e estéticos na reinterpretação de histórias que se influenciam e

modificam umas as outras, a escola reconhece as identidades pessoais e

assegura a reelaboração crítica do conhecimento de si e do seu

relacionamento com os demais durante o processo de formação.

Ensinar/aprender é, portanto, um movimento sensível ao inesperado e aberto,

numa sociedade instituinte, à singularidade dos pensamentos e sentimentos.

Pressupõe, nesse sentido, a competência dos professores para tomar decisões

que nem sempre constam do elenco de saberes e experiências já vistos e

conhecidos, por inteiro.

III – A clareza a respeito das competências e capacidades

cognitivas sociais e afetivas pretendidas como objetivos do curso normal

de nível médio, é decisiva para o diálogo entre os integrantes da

comunidade escolar, o conjunto da sociedade e entre as áreas

curriculares na relação com os múltiplos aspectos da vida cidadã, com

vista ao desenvolvimento da proposta pedagógica. Na verdade, o diálogo é

proposto como a base do ato pedagógico, caracterizando o princípio da

autonomia da escola através de um modelo de gestão que é, de um lado, um

convite para “sair do isolamento e romper fronteiras” e, de outro, um esforço

especulativo e questionador da versão social do que vem sendo considerado e

aceito como aprendizagens significativas, num determinado contexto. De fato,

o diálogo reveste de especial importância, dada a repercussão que tem na

formação de futuros professores, a experiência vivida na condição de alunos do

curso Normal.

IV – Na estruturação das propostas pedagógicas, a ênfase dada ao

diálogo em todas as suas formas deverá preparar os professores para

lidar com um paradigma curricular que articule conhecimentos e valores,

133

em áreas ou núcleos curriculares que interagem no processo de

constituição de conhecimento, valores e competências necessárias ao

exercício da docência na educação infantil e nos anos iniciais do ensino

fundamental. Dessa forma, as áreas ou núcleos curriculares possibilitarão a

formação básica geral e comum, a compreensão da gestão pedagógica no

âmbito da educação escolar contextualizada e a produção de conhecimento a

partir da reflexão permanente sobre a prática. O diálogo também deve ser

instalado entre as áreas de conhecimento e o modo particular de inserção dos

alunos (do curso normal) na vida social, considerando, nos termos das DCN

para a educação infantil e o ensino fundamental, os diversos aspectos da vida

cidadã.

V – A formação básica, geral e comum, considerada direito

inalienável e condição necessária ao exercício da cidadania plena, deverá

assegurar, no curso Normal, os conhecimentos e competências previstos

para a terceira etapa da educação básica, nos termos do que estabelece a

Lei 9394/96, nos arts. 35 e 36, explicitados, posteriormente, no Parecer no

15/98 da CEB-CNE. Enquanto dimensão do processo integrado de formação

de professores em nível médio, sua abordagem é remetida aos ambientes de

aprendizagem planejados e desenvolvidos na escola campo de estudo e

investigação. Nesse sentido, além de contemplar conteúdos e competências de

caráter geral, incluirá as áreas que integram o currículo destinado à educação

infantil e aos anos iniciais do ensino fundamental em níveis de abrangência e

complexidade indispensáveis à (re)significação de conhecimentos e valores

nas situações pedagógicas em que são (des)construídos/(re)construídos por

crianças, jovens e adultos. Assim sendo, é necessário em articulação com as

demais áreas que constituem o curso, expor os estudantes a situações do

cotidiano escolar que sejam estimuladoras das competências e capacidades

cognitivas sociais e afetivas que serão exigidas, posteriormente, no exercício

da docência.

Por isso, o professor formador, independente de sua área de atuação

levará em consideração as influências do processo de comunicação na

formação dos docentes, pautando suas ações pelos mesmos princípios que

orientam a inserção dos alunos no conjunto das atividades do projeto

pedagógico das escolas campo de estudo.

134

VI – A reflexão sistemática sobre o saber do fazer de cada professor

e da escola como um todo é impulsionadora do processo de produção do

conhecimento que se instaura como uma atividade crítica desde as

origens da formação do professor. No curso Normal, a reflexão sistemática

sobre a prática deve conferir validade aos estudos e às experiências a que são

expostos alunos e professores. Ao eleger o fazer como o objeto da reflexão, a

formação é concebida a partir do envolvimento dos alunos e professores em

situações complexas, cuja intervenção exige a explicitação de conhecimentos e

valores que referenciam competências afinadas com uma concepção de

professor reflexivo, dotado da capacidade intelectual, autonomia e postura

ética, indispensáveis ao questionamento das interpretações que apoiam,

inclusive, suas intervenções no exercício da atividade profissional. O professor,

nesse caso, é sujeito do seu conhecimento e se define como intelectual no

âmbito de sua atividade profissional que é reconhecidamente „prática e

contextualizada‟.

VII – As escolas, com seus desafios e soluções, ao se tornarem

campo de estudo e investigação dos alunos do curso Normal, devem

enriquecer a sistematização da reflexão sobre a prática, submetendo-se a

um processo de avaliação permanente que identifique a adequação entre

as pretensões do curso e a qualidade das decisões que são tomadas pela

instituição. A educação escolar, espaço de igualdade e de direitos, é uma

prática social que se viabiliza sob a responsabilidade da Família e do Estado.

Enquanto atividade pública, que pretende assegurar as condições necessárias

ao exercício de um direito socialmente conquistado e legalmente constituído,

deverá, através da proposta pedagógica da escola, incorporar representantes

de todos os segmentos da escola, alunos da escola campo de estudo, futuros

professores, bem como as respectivas famílias, grupos sociais e comunidade,

num processo de avaliação que envolva todas as dimensões dessa proposta.

A perspectiva é construir a qualidade da educação escolar, ancorando-

se, para tanto, nos princípios da gestão democrática, nos termos da CF e da

LDBEN, garantindo o controle público das políticas dispostas.

VIII – A gestão pedagógica, no âmbito da educação escolar

contextualizada, deverá, em diálogo com as demais áreas ou núcleos

curriculares da proposta pedagógica, desenvolver práticas educativas

135

que integram os múltiplos aspectos constitutivos da identidade dos

alunos (futuros professores), que se deseja sejam afirmativas,

responsáveis e capazes de protagonizar ações autônomas e solidárias no

universo das suas relações. Nessa abordagem, a problematização das

escolhas e dos resultados que demarcam a identidade da proposta pedagógica

das escolas nas quais a gestão pedagógica da educação escolar observada é

vivenciada, tomam como objeto de análise a escola como instituição social

determinada e determinante, a legislação educacional e os diversos sistemas

de ensino no horizonte dos direitos dos cidadãos e do respeito ao bem e à

ordem democrática, os alunos em suas diversas etapas de desenvolvimento e

suas relações com o universo familiar, comunitário e social, o impacto dessas

relações sobre as capacidades, habilidades e atitudes dos alunos em relação a

si próprios, seus companheiros e aos objetos e materiais de estudo. Na

formação dos futuros docentes isto pode ser aprendido através de conteúdos

da sociologia educacional, psicologia educacional, antropologia cultural,

história, comunicação, informática, artes e cultura, entre outras. Valendo-se dos

conhecimentos específicos dessas e de outras áreas, os professores poderão,

ao tratá-los de forma integrada, fazer escolhas a partir do estudo crítico de

diferentes orientações teórico-metodológicas. Portanto, as práticas educativas

levam em consideração, não só a realidade cultural, social, econômica, de

gênero e de etnia, mas também a centralidade da educação escolar no

conjunto das prioridades consensuadas no país.

IX – A prática, circunscrita ao processo de investigação e

participação dos alunos no conjunto das atividades que se desenvolvem

na escola campo de estudo, é instituída no início da formação,

prolongando-se ao longo do curso e com duração mínima de 800 horas.

Em função da sua natureza, a prática antecipa situações que são próprias da

atividade dos professores no exercício da docência, gerando conhecimento,

valores e uma progressiva segurança dos alunos do curso normal , no domínio

da sua futura profissão. Na verdade, deve estabelecer o contato dos alunos

com o mundo do trabalho e a prática social, conforme determina o art. 1o da

LDBEN. A tematização da prática oferece informações para a compreensão

dos problemas que emergem do cotidiano escolar, gerando conhecimentos

para a formulação de soluções originais e adequadas. Nesse processo, a

136

proposta pedagógica da escola, utilizando os instrumentos tecnológicos

disponíveis deve oportunizar o acesso dos alunos, ao espaço mundial e

integrado de conhecimentos a respeito da qualidade social da educação

escolar.

X – O curso, considerada a flexibilidade da LDBEN, tem, a critério

da proposta pedagógica da escola, amplas e diversas possibilidades de

organização. Sua duração, no entanto, será de no mínimo 3.200 horas,

distribuídas em 4 (quatro) anos letivos. A possibilidade de cumprir a carga

horária mínima em 3 (três) anos, fica condicionada ao desenvolvimento do

curso em período integral, contemplando o que está previsto nos termos da

formação geral, básica e comum, estabelecida para o ensino médio que será,

por sua vez, desenvolvida no contexto das incumbências do professor da

educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental.

Assim, a formação inicial pressupõe conhecimentos e competências

referenciados às condições de profissionalização de educadores capazes de

estimular procedimentos e desenvolver práticas educativas que sejam

constituidoras de indivíduos autônomos e protagonistas da construção mais

significativa do processo educativo: o exercício da sua liberdade no contexto

das relações éticas que propugnam por uma trajetória da humanidade no

horizonte da democracia.

II – VOTO DA RELATORA

À luz do exposto e analisado, em obediência ao artigo 9º da Lei 9131/95

que incumbe à Câmara de Educação Básica a deliberação sobre Diretrizes

Curriculares Nacionais, a relatora vota no sentido de que seja aprovado o

texto ora proposto como base do Projeto de Resolução que fixa as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Curso Normal em nível médio.

Brasília(DF), 29 de Janeiro de 1999.

Conselheira Edla de Araújo Lira Soares

Relatora

137

III –DECISÃO DA CÂMARA

A Câmara de Educação Básica acompanha, unanimemente, o voto da

Relatora e aprova o Projeto de Resolução que se segue.

Brasília, 29 de janeiro de 1999.

Ulysses de Oliveira Panisset

Presidente da CEB/CNE

Francisco Aparecido Cordão

Vice-Presidente da CEB/CNE

Notas

1 GADOTTI, M. 1996. Paulo Freire – Uma Biobliografia.

2 LEFORT, Claude. 1987. A invenção democrática – os limites do

autoritarismo.

3 FORQUIN, Jean-Claude. 1993. Escola e cultura.

4 MEC. 1998. Plano Nacional de Educação.

5 Plano Nacional de Educação. Proposta da sociedade brasileira. 1997.

6 ANPED. 1997.

7 ANFOPE. 1997.

8 Um dos ciclos estava voltado para a formação de regentes de ensino

primário, em quatro anos, e o outro, o curso de formação de professores

primários, era desenvolvido em três anos, após o ginasial.

9 Art. 22 – Os candidatos à matrícula em cursos de especialização de

magistério primário deverão apresentar diploma de conclusão do curso de

segundo ciclo e prova de exercício do magistério primário por dois anos, no

mínimo; os candidatos à matrícula em cursos de administradores escolares, ou

funções auxiliares de administração, deverão apresentar igual diploma, e prova

do exercício do magistério por três anos no mínimo.

138

BIBLIOGRAFIA: ANFOPE. VIII Encontro Nacional. Documento gerador. Formação de

profissionais da educação. Desafios para o século XXI. Goiânia, 1996. (mimeo).

ANPED BRASIL Constituição da República Federativa. 1988. _______. Emenda Constitucional nº 14 de 12 de setembro de 1996. _______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – nº 9394/96. _______. Lei nº 9424, de 24 de dezembro de 1996. _______. Leis Orgânicas do Ensino. O Ensino Normal. 1946. _______. Plano Nacional de Educação. 1998. Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação e Diretrizes

Curriculares para a Educação Básica. 1998. COLL, César. Psicologia y Currículum. Barcelona: Paidós, 1991. _______. Desenvolvimento Psicológico e Educação – Psicologia da Educação,

Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. Educação, carinho e

trabalho. Petrópolis: Editora vozes, 1997. CURY, Horta e Vera Lúcia. Medo à liberdade e compromisso democrático: LDB

e Plano Nacional de Educação. São Paulo, Ed. Brasil, 1997. DOWBOR, Ianni e Rezende (orgs.) Desafios da globalização. Petrópolis, RJ:

Vozes, 1997. FERNANDES, Florestan. A formação política e o trabalho do professor. In

Universidade, Escola e Formação de Professores. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986.

FORQUIN, Jean-Claude. Educação e Cultura. 1993. GADOTTI, M.: Paulo Freire: uma bibliografia. 1996. GATTI, Bernadete Angelina. Formação de professores e carreira: problemas e

movimentos de renovação – Coleção formação de professores. Campinas, São Paulo, Autores Associados, 1997.

GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais: ruma a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

GONÇALVES, Carlos Luiz e PIMENTA, Selma Garrido. Revendo o ensino de 2º grau: propondo a formação de professores. São Paulo, Ed. Cortez, 1997.

KINCHELVE, Joe L. A formação do professor como compromisso político. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

LEFOR. C. A invenção democrática – os limites do autoritarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987

MEC/SEF/COEDI – Por uma Política de Formação do Profissional de Educação Infantil. Brasil, 1994.

MEC/SEF – Referenciais curriculares para a formação de professores. 1998

139

NÓVOA, Antônio. Para um estudo sócio-histórico e desenvolvimento da profissão docente. In: Teoria e Educação. Porto Alegre, Ed. Panorâmica, 1991.

PERRENOUD, Phillippe. Formar os professores do primeiro grau à Universidade: aposta de Genebra. Universidade de Genebra, Mimeo, 1996.

____________. Ensinar Saberes ou desenvolver competências. Universidade de Genebra. Mimeo.

PIMENTA, Garrido Selma. Didática e Formação de Professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. São Paulo, Ed. Cortez, 1997.

Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade Brasileira. 1997 ROMANELLI, Oliveira O. História da Educação no Brasil. Petrópolis, Vozes,

1978. TORRES, Rosa Maria. Formación Docente: Clave de la reforma educativa.

Texto apresentado no Seminário “Nuevas formas de aprender y de enseñar: Demandas a la formación inicial del docente”. CIDE/UNESCO-OREALC/UNICEF, Chile, Santiago, Mimeo, 1985.

_______. Profesionalización o Exclusion: Los educadores frente a la realidad actual y los desafios futuros. Texto apresentado na Conferência Internacional de Educação, organizada pela Confederação de Educadores da América (CEA), México, Mimeo, 1997.

140

ANEXO II

RESOLUÇÃO CEB Nº 2, DE 19 DE ABRIL DE 1999

Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Docentes da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, em nível médio, na modalidade Normal.

O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de

Educação, de conformidade com o disposto no art. 9º § 1º, alínea “c”, da Lei

9.131, de 25 de novembro de 1995, nos artigos 13, 26, 29, 35, 36, 37, 38,

58, 59, 61, 62 e 65 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e tendo em

vista o Parecer CEB/CNE 1/99, homologado pelo Senhor Ministro da

Educação em 12 de abril de 1999,

RESOLVE:

Art. 1º O Curso Normal em nível Médio, previsto no artigo 62 da Lei

9394/96, aberto aos concluintes do Ensino Fundamental, deve prover, em

atendimento ao disposto na Carta Magna e na Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, LDBEN, a formação de professores para atuar como

docentes na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental,

acrescendo-se às especificidades de cada um desses grupos as exigências

que são próprias das comunidades indígenas e dos portadores de

necessidades educativas especiais.

§ 1º O curso, em função da sua natureza profissional, requer ambiente

institucional próprio com organização adequada à identidade da sua proposta

pedagógica.

§ 2º A proposta pedagógica de cada escola deve assegurar a

constituição de valores, conhecimentos e competências gerais e específicas

necessárias ao exercício da atividade docente que, sob a ótica do direito,

possibilite o compromisso dos sistemas de ensino com a educação escolar de

qualidade para as crianças, os jovens e adultos.

141

Art. 2º Nos diversos sistemas de ensino, as propostas pedagógicas das

escolas de formação de docentes, inspiradas nos princípios éticos, políticos e

estéticos, já declarados em Pareceres e Resoluções da Câmara de Educação

Básica do Conselho Nacional de Educação a respeito das Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e

Médio, deverão preparar professores capazes de :

I - integrar-se ao esforço coletivo de elaboração, desenvolvimento e

avaliação da proposta pedagógica da escola, tendo como perspectiva um

projeto global de construção de um novo patamar de qualidade para a

educação básica no país;

II - investigar problemas que se colocam no cotidiano escolar e construir

soluções criativas mediante reflexão socialmente contextualizada e

teoricamente fundamentada sobre a prática;

III - desenvolver práticas educativas que contemplem o modo singular de

inserção dos alunos futuros professores e dos estudantes da escola campo de

estudo no mundo social, considerando abordagens condizentes com as suas

identidades e o exercício da cidadania plena, ou seja, as especificidades do

processo de pensamento, da realidade sócio-econômica, da diversidade

cultural, étnica, de religião e de gênero, nas situações de aprendizagem;

IV - avaliar a adequação das escolhas feitas no exercício da docência, à

luz do processo constitutivo da identidade cidadã de todos os integrantes da

comunidade escolar, das diretrizes curriculares nacionais da educação básica e

das regras da convivência democrática;

V - utilizar linguagens tecnológicas em educação, disponibilizando, na

sociedade de comunicação e informação, o acesso democrático a diversos

valores e conhecimentos.Art. 3º Na organização das propostas pedagógicas

para o curso Normal, os valores, procedimentos e conhecimentos que

referenciam as habilidades e competências gerais e específicas previstas na

formação dos professores em nível médio serão estruturados em áreas ou

núcleos curriculares.

§ 1º As áreas ou os núcleos curriculares são constitutivos de

conhecimentos, valores e competências e deverão assegurar a formação

142

básica, geral e comum, a compreensão da gestão pedagógica no âmbito da

educação escolar contextualizada e a produção de conhecimentos a partir da

reflexão sistemática sobre a prática.

§ 2º A articulação das áreas ou dos núcleos curriculares será

assegurada através do diálogo instaurado entre as múltiplas dimensões do

processo de aprendizagem, os conhecimentos, os valores e os vários aspectos

da vida cidadã.

§ 3º Na observância do que estabelece o presente artigo, a proposta

pedagógica para formação dos futuros professores deverá garantir o domínio

dos conteúdos curriculares necessários à constituição de competências gerais

e específicas, tendo como referências básicas:

I - o disposto nos artigos 26, 27, 35 e 36 da Lei 9.394/96;

II - o estabelecido nas diretrizes curriculares nacionais para a educação

básica;

III - os conhecimentos de filosofia, sociologia, história e psicologia

educacional, da antropologia, da comunicação, da informática, das artes, da

cultura e da lingüística, entre outras.

§ 4º A duração do curso normal em nível médio, considerado o conjunto

dos núcleos ou áreas curriculares, será de no mínimo 3.200 horas, distribuídas

em 4 (quatro) anos letivos, admitindo-se:

I – a possibilidade de cumprir a carga horária mínima em 3(três) anos,

condicionada ao desenvolvimento do curso com jornada diária em tempo

integral;

II – o aproveitamento de estudos realizados em nível médio para

cumprimento da carga horária mínima, após a matrícula, obedecidas as

exigências da proposta pedagógica e observados os princípios contemplados

nestas diretrizes, em especial a articulação teoria e prática ao longo do curso.

Art. 4º No desenvolvimento das propostas pedagógicas das escolas, os

professores formadores, independente da área ou núcleo onde atuam,

pautarão a abordagem dos conteúdos e as relações com os alunos em

formação, nos mesmos princípios que são propostos como orientadores da

143

participação dos futuros docentes nas atividades da escola campo de estudo,

bem como no exercício permanente da docência.

Art. 5º A formação básica, geral e comum, direito inalienável e

condição necessária ao exercício da cidadania plena, deverá assegurar, no

curso Normal, as competências gerais e os conhecimentos que são previstos

para a terceira etapa da educação básica, nos termos do que estabelecem a

Lei 9394/96 - LDBEN, nos arts. 35 e 36, e o Parecer CEB/CNE 15/98.

§ 1º Enquanto dimensão do processo integrado de formação de

professores, os conteúdos curriculares dessa área serão remetidos a

ambientes de aprendizagem planejados e desenvolvidos na escola campo de

estudo.

§ 2º Os conteúdos curriculares destinados à educação infantil e aos

anos iniciais do ensino fundamental serão tratados em níveis de abrangência e

complexidade necessários à (re)significação de conhecimentos e valores, nas

situações em que são (des)construídos/(re)construídos por crianças, jovens e

adultos.

Art. 6º A área ou o núcleo da gestão pedagógica no âmbito da educação

escolar contextualizada, em diálogo com as demais áreas ou núcleos

curriculares das propostas pedagógicas das escolas, propiciará o

desenvolvimento de práticas educativas que:

I – integrem os múltiplos aspectos constitutivos da identidade dos

alunos, que se deseja sejam afirmativas, responsáveis e capazes de

protagonizar ações autônomas e solidárias no universo das suas relações;

II – considerem a realidade cultural, sócio-econômica, de gênero e de

etnia, e também a centralidade da educação escolar no conjunto das

prioridades sociais a serem consensuadas no país.

Parágrafo Único. Nessa abordagem, a problematização das escolhas e

dos resultados que demarcam a identidade da proposta pedagógica das

escolas campo de estudo toma como objeto de análise:

I - a escola como instituição social, sua dinâmica interna e suas

relações com o conjunto da sociedade, a organização educacional, a gestão

144

da escola e os diversos sistemas de ensino, no horizonte dos direitos dos

cidadãos e do respeito ao bem comum e à ordem democrática;

II - os alunos nas diferentes fases de seu desenvolvimento e em suas

relações com o universo familiar, comunitário e social, bem como o impacto

dessas relações sobre as capacidades, habilidades e atitudes dos estudantes

em relação a si próprios, aos seus companheiros e ao conjunto das iniciativas

que concretizam as propostas pedagógicas das escolas.

Art. 7º A prática, área curricular circunscrita ao processo de investigação

e à participação dos alunos no conjunto das atividades que se desenvolvem na

escola campo de estudo, deve cumprir o que determinam especialmente os

artigos 1° e 61 da Lei 9.394/96 antecipando, em função da sua natureza,

situações que são próprias da atividade dos professores no exercício da

docência, nos termos do disposto no artigo 13 da citada Lei.

§ 1º A parte prática da formação, instituída desde o início do curso, com

duração mínima de 800 (oitocentas) horas, contextualiza e transversaliza as

demais áreas curriculares, associando teoria e prática.

§ 2º O efetivo exercício da docência na educação infantil e nos anos

iniciais do ensino fundamental, pelos alunos em formação, é parte integrante e

significativa dessa área curricular.

§ 3º Cabe aos respectivos sistemas de ensino, em cumprimento ao

disposto no parágrafo anterior, estabelecer a carga horária mínima dessa

docência.

Art. 8º Os cursos normais serão sistematicamente avaliados,

assegurando o controle público da adequação entre as pretensões do curso e a

qualidade das decisões que são tomadas pela instituição, durante o processo

de formulação e desenvolvimento da proposta pedagógica.

Art. 9º As escolas de formação de professores em nível médio na

modalidade Normal, poderão organizar, no exercício da sua autonomia e

considerando as realidades específicas, propostas pedagógicas que preparem

os docentes para as seguintes áreas de atuação, conjugadas ou não:

I – educação infantil;

145

II – educação nos anos iniciais do ensino fundamental;

III – educação nas comunidades indígenas;

IV – educação de jovens e adultos;

V – educação de portadores de necessidades educativas especiais.

Art. 10. Cabe aos órgãos normativos dos sistemas de ensino, em face

da diversidade regional e local e do pacto federativo, estabelecer as normas

complementares à implementação dessas diretrizes.

Art. 11. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 12.Revogam-se as disposições em contrário.

ULYSSES DE OLIVEIRA PANISSET

Presidente da Câmara de Educação Básica