a ditadura de segurança nacional no rs - 1964-1985

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A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul 1 9 6 4 1 9 8 5 História e Memória

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  • A Ditadura de Segurana Nacionaln o R i o G r a n d e d o S u l

    1 9 6 4 1 9 8 5Histria e Memria

  • Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964

    Volume 1

    A DITADURA DE

    SEGURANA NACIONAL

    NO

    RIO GRANDE DO SUL

    (1964-1985):

    HISTRIA E MEMRIA

  • Enrique Serra Padrs

    Vnia M. Barbosa

    Vanessa Albertinence Lopez

    Ananda Simes Fernandes

    MesaPresidente: Deputado Ivar Pavan (PT)

    1 Vice-presidente: Deputado Luciano Azevedo (PPS)

    2 Vice-presidente: Deputado Francisco Appio (PP)

    1 Secretrio: Deputado Giovani Cherini (PDT)

    2 Secretrio: Deputado Nlson Hrter (PMDB)

    3 Secretrio: Deputado Paulo Brum (PSDB)

    4 Secretrio: Deputado Cassi Carpes (PTB)

    1 Suplente de Secretrio: Deputado Miki Breier (PSB)

    2 Suplente de Secretrio: Deputado Raul Carrion (PCdoB)

    3 Suplente de Secretrio: Deputado Marquinho Lang (DEM)

    4 Suplente de Secretrio: Deputado Ado Villaverde (PT)

    Escola do LegislativoPresidente: Dep. Ado Villaverde

    Direo: Vnia M. Barbosa

    Coordenao da Diviso de Publicaes: Vanessa Albertinence Lopez

    Organizadores

    Assembleia Legislativado Estado do Rio Grande do Sul

  • A DITADURA DE

    SEGURANA NACIONAL

    NO

    RIO GRANDE DO SUL

    (1964-1985):

    HISTRIA E MEMRIA

    Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964

    Volume 1

    Corag

    Porto Alegre

    2009

  • D615

    CDU 981.651964-1985(093)

    CDU: edio mdia em lngua portuguesaResponsabilidade: Biblioteca Borges de Medeiros Bib. Dbora Dornsbach Soares CRB-10/1700

    Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985) : histria e memria. / organizadores Enrique Serra Padrs, Vnia M. Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez, Ananda Simes Fernandes. Porto Alegre : Corag, 2009. v. 1 ; 272 p. : il.

    ISBN 978-85-7770-087-5

    Contedo: v. 1. Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964 v. 2. Represso e Resistncia nos "Anos de Chumbo" v. 3. A Conexo Repressiva e a Operao Condor v. 4. O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratizao.

    Realizao: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Escola do Legislativo.

    1. Ditadura Rio Grande do Sul. 2. Golpe civil-militar (1964) Rio Grande do Sul. 3. Grupo dos Onze. 4. Movimento Poltico. 5. Brasil Presidente (1961-1964 : Joo Belchior Goulart). I. Padrs, Enrique Serra (org.). II. Barbosa, Vnia M. (org.). III. Lopez, Vanessa Albertinence (org.). IV. Fernandes, Ananda Simes (org.). V. Ttulo: Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964. VI. Represso e Resistncia nos "Anos de Chumbo". VII. A Conexo Repressiva e a Operao Condor. VIII. O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratizao.

    CopyrightCapa - Projeto grfico - Diagramao - Dado Nascimento Equipe tcnica de apoioAlessandra GasparottoClaci Maria GasparottoGraciene de vilaMarcos MachryMariana Ferreira e SilvaMarla Barbosa Assumpo

    Reviso de Lngua Portuguesa

    Superviso TcnicaSnia Domingues Santos Brambilla - CRB 10/1679Dbora Soares - CRB 10/1700Diviso de Biblioteca

    Endereo para correspondnciaEscola do Legislativo Deputado Romildo BolzanPraa Marechal Deodoro, n 101 Solar dos CmaraCEP 90010-900 Porto Alegre/RS - BrasilOs conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade dos autores. permitida a reproduo parcial ou total, desde que citada a fonte e mantido o texto original.

    Andr Rousselet Sard, Dado Nascimento, Bernardo BertonAndr Rousselet Sard, Dado Nascimento, Bernardo Berton

    Dornsbach

    Departamento de Taquigrafia da Assembleia Legislativa RSGabinete de Consultoria Legislativa da Assembleia Legislativa RSEscola do Legislativo

    da Assembleia Legislativa RS

    Dados Internacionais de catalogao na fonte (CIP Brasil)

  • Dedicamos esta obra aos que ontemlutaram contra a ditadura

    e, tambm, aos que hoje lutam por Verdade e Justia.

  • Quero dizer teu nome, Liberdade,quero aprender teu nome novamentepara que sejas sempre em meu amor

    e te confundas ao meu prprio nome.Deixa eu dizer teu nome, Liberdade,

    irm do povo, noiva dos rebeldes, companheira dos homens, Liberdade,

    teu nome em minha ptria uma palavraque amanhece de luto nas paredes.

    Deixa eu cantar teu nome, Liberdade,que estou cantando em nome do meu povo.

    Thiago de Mello1966

    Ao peso dos impostos, o verso sufoca,a poesia agora responde a inqurito policial-militar.

    Digo adeus ilusomas no ao mundo.

    Mas no vida,meu reduto e meu reino.

    Do salrio injusto,da punio injusta,

    da humilhao, da tortura, do horror,

    retiramos algo e com ele construmos um artefato

    um poemauma bandeira.

    Ferreira Gullaragosto de 1964

  • Apresentao da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.......................................................Ivar Pavan

    Apresentao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul............................................................Temstocles Amrico Corra Cezar

    Prefcio...............................................................................................Luis Fernando Verissimo

    Prefcio...............................................................................................

    Vnia M. BarbosaVanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes

    Introduo 1964: O Rio Grande do Sul no olho do furaco...........................................Enrique Serra PadrsRafael Fantinel Lameira

    O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, "celeiro" do Brasil...............................................Claudia Wasserman

    Ausncias e presenas da resistncia na ditadura................................Raul Pont

    "Capito, vamos trabalhar juntos?".. ..................................................Emlio Neme

    SUMRIO

    15

    17

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    33

    51

    71

    93

    Enrique Serra Padrs

  • Grupos dos Onze: lembranas que contam a verdade histrica..............................................................................Srgio Gonzalez

    Meu primeiro comcio .....................................................................Wladimyr Ungaretti

    Memrias de um comunista...............................................................Joo Aveline

    Lies de 1964....................................................................................Pedrinho Guareschi

    Sobre Joo Goulart.............................................................................Christopher Goulart

    Mximas e mnimas: os ventos errantes da mdia na tormenta de 1964..............................................Luiz Cludio Cunha

    Cronologia O Rio Grande do Sul e o golpe civil-militar..........................................................................Graciene de vilaMarcos MachryMariana Ferreira e SilvaMarla Barbosa Assumpo

    Lista de abreviaturas e siglas...............................................................

    Anexo I Deputados estaduais do Rio Grande do Sul cassados (1964-1966)..........................................

    Anexo II Grande Expediente 45 anos do golpe 31 de maro de 2009..........................................................................

    ..

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    251

  • Tem dias que a gente se senteComo quem partiu ou morreu

    A gente estancou de repenteOu foi o mundo ento que cresceu...

    A gente quer ter voz ativaNo nosso destino mandar

    Mas eis que chega a roda vivaE carrega o destino pra l...

    Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio

    O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...

    A gente vai contra a correnteAt no poder resistir

    Na volta do barco que senteO quanto deixou de cumprir

    Faz tempo que a gente cultivaA mais linda roseira que h

    Mas eis que chega a roda vivaE carrega a roseira pra l...

    Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio

    O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...

    Chico Buarque, 1967Roda Viva

    A roda da saia mulataNo quer mais rodar no senhor

    No posso fazer serenataA roda de samba acabou...

    A gente toma a iniciativaViola na rua a cantar

    Mas eis que chega a roda vivaE carrega a viola pra l...

    Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio

    O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...

    O samba, a viola, a roseiraQue um dia a fogueira queimou

    Foi tudo iluso passageiraQue a brisa primeira levou...

    No peito a saudade cativaFaz fora pro tempo parar

    Mas eis que chega a roda vivaE carrega a saudade pra l...

    Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio

    O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...

  • APRESENTAO DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA

    DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SULIvar Pavan*

    * Presidente da Assembleia Legislativa-RS no ano de 2009.

    Democracia e valorizao do Parlamento constituem um dos

    eixos de atuao da Assembleia Legislativa durante esta gesto em 2009.

    Destacar importantes datas como a dos 30 anos da Anistia, dos 20 anos

    da Constituio Estadual e dos 45 anos do golpe de 64 so diretrizes das

    aes do Poder Legislativo gacho.

    Esta obra resultado de um importante esforo de

    sistematizao de pesquisa, testemunhos e reflexes sobre as condies,

    consequncias e perspectivas instauradas no Brasil desde o golpe de 1964

    at o perodo reconhecido como de transio democrtica.

    A riqueza da abordagem devida tanto diversidade de

    enfoques produzidos por competentes e comprometidos estudiosos e

    ativistas de direitos humanos como organizao em temas que

    destacam e detalham: o golpe em si; a represso e a resistncia; a

    Operao Condor; a anistia e a abertura polticas.

    A Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul

    apresenta, com esta coletnea, mais uma expresso de seu compromisso

    com a construo da democracia.

    15

  • APRESENTAO DAUNIVERSIDADE FEDERAL

    DO RIO GRANDE DO SUL

    O Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH) da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul sente-se honrado em

    apresentar ao pblico o resultado da primeira ao da parceria com a

    Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado do Rio

    Grande do Sul.

    A participao de professores e alunos dos cursos de graduao,

    mestrado e doutorado deste Instituto, na coletnea de livros intitulada A

    Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985):

    Histria e Memria, confirma o crescente envolvimento dos cursos do

    IFCH com a histria recente do Brasil e do Rio Grande do Sul.

    Nos ltimos anos, a UFRGS tem contribudo significativamente

    na produo de conhecimento especfico sobre a temtica relacionada

    com o perodo da ditadura. De forma concreta, isso pode ser aferido pelas

    inmeras pesquisas transformadas em dissertaes de mestrado e teses de

    doutorado e publicaes individuais ou coletivas. Por outro lado, essa

    produo vem acompanhando tanto as atividades de ensino quanto as de

    extenso, atravs de eventos regulares oferecidos para a comunidade

    gacha em geral.

    Temstocles Amrico Corra Cezar*

    * Diretor do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas/UFRGS.

    17

  • Temas como "A Abertura dos Arquivos Repressivos", "o Golpe

    de 64", "Os Expurgos da UFRGS", "O 68", "O Sequestro dos

    Uruguaios", "O AI-5", "A luta pela Abertura Poltica e pela Anistia" e "A

    Operao Condor", entre outros, tm sido contemplados nas atividades

    desenvolvidas pela nossa comunidade. Especialistas como Carlos Fico,

    Marcelo Ridenti, Maria Aparecida Aquino, Jessie Jane V. de Souza, Selva

    Lpez e lvaro Rico ministraram cursos e conferncias. E a casa acolheu,

    ainda, sistematicamente, depoimentos de Suzana Lisboa, Cludio

    Gutirrez, Joo Carlos Bona Garcia, Jair Krischke, Guillermo Rallo,

    Aurlio Gonzalez, Ignz Serpa, Luiz Cludio Cunha, Aveline Capitani e

    Universindo Rodrguez Daz, entre tantos outros.

    Neste sentido, trata-se de obra coletiva que articula o resgate de

    memrias, atravs da voz e do texto dos prprios protagonistas, anlise

    de especialistas, oferecendo um panorama diverso, rico em lembranas,

    sensibilidades e experincias, escritas sob forte rigor cientfico. Cumpre,

    ainda, uma funo vital que um compromisso do IFCH: a divulgao

    social do conhecimento produzido dentro do mbito acadmico.

    Assim, o IFCH, cujo nome lhe foi atribudo em 1970 pelo

    decreto da ditadura militar que fragmentou a universidade em diversas

    unidades, cumpre, como herdeiro que da antiga Faculdade de Filosofia

    da UFRGS, seu papel de protagonista na resistncia poltica e intelectual

    a todas as formas autoritrias de governo e de sociedade.

    18

  • A Histria, segundo um surrado e cnico adgio, sempre a

    verso dos vencedores. Uma mentira oficial se instala e se institucionaliza

    e com o tempo vira verdade. Mas o tempo nem sempre colabora. Com o

    tempo vem a resignao e a opo por no turvar guas passadas ou

    reabrir velhas feridas - mas tambm vem a distncia necessria para

    reexaminar mentiras estabelecidas. O tempo perdoa ou condena,

    confirma ou desmente. O tempo traz o esquecimento - ou agua a

    memria. E nada ameaa mais a verso dos vencedores do que memrias

    aguadas.

    Depois do fim do regime militar instaurado em 1964 vivemos,

    no Brasil, num curioso estado de faz-de-conta, exemplificado pela anistia

    geral dada a vencidos e vencedores. Buscava-se um "desarmamento dos

    espritos" (frase muito usada na poca, mas inadequada: no foram

    exatamente espritos armados que nos dominaram durante 20 anos), mas

    o verdadeiro objetivo era fingir que nada tinha acontecido. Assim os

    militares voltaram para as casernas sem remorso ou desculpas, os civis que

    os apoiaram continuaram suas carreiras polticas sem atos de contrio, as

    vtimas sobreviventes do regime refizeram suas vidas e - a ideia era esta -

    PREFCIO

    Luis Fernando Verissimo*

    *Luis Fernando Verissimo jornalista e escritor.

    19

  • no se falava mais nisso. Mas havia as memrias. Durante estes ltimos

    anos o pas conviveu com duas histrias, a oficial, a do deixa pra l, e a da

    memria das pessoas. Com o tempo este desencontro se agravou. A

    memria aguada - assim como a cobrana dos que reivindicam a

    verdade apenas para saber onde algum foi enterrado - exige o fim do faz-

    de-conta.

    E afinal, mesmo aceitando-se a realidade que so os vencedores

    que contam a histria, a exigncia no muda. O fim do regime militar foi

    uma vitria de uma democracia imperfeita e at agora no consolidada,

    mas democracia. O que se quer a verso democrtica da histria do

    Brasil.

    20

  • PREFCIO

    I.

    Este projeto foi, para ns, um percurso singular iniciado no dia

    31 de maro de 2009, quando relembramos, por meio da exibio do

    filme Jango, de Silvio Tendler, e do Seminrio 45 Anos do Golpe de 64 A

    Noite que Durou 21 Anos, a data de 1 de abril de 1964, comeo de um

    perodo que manchou de sangue e vergonha a democracia brasileira. O

    evento se completou com uma mesa temtica que debateu o Golpe e suas

    implicaes.

    Participaram do evento os historiadores da Universidade Federal

    do Rio Grande do Sul (UFRGS) Carla Simone Rodeghero, Caroline

    Silveira Bauer, Claudia Wasserman e Enrique Serra Padrs, alm da

    historiadora da Universidade de So Paulo (USP), Maria Aparecida de

    Aquino.

    A boa acolhida por parte do pblico presente, bem como a

    avaliao do registro ainda incipiente sobre a histria recente do Rio

    Grande do Sul, foram fatos fundamentais para amadurecer a

    possibilidade de um novo desafio: a publicao das intervenes dos

    professores convidados com a complementao de alguns depoimentos

    que marcaram presena naquele evento original. Aps inmeras

    reunies e avaliaes sobre o material disposio, surgiu a ideia de uma

    21

    Enrique Serra PadrsVnia M. Barbosa

    Vanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes

  • coletnea de textos que pudesse apresentar ao pblico, em geral, uma

    viso panormica de uma diversidade de manifestaes do que foi o

    embate poltico no Rio Grande do Sul, entre 1964 e 1985.

    Surgiu, assim, o projeto A Ditadura de Segurana Nacional no Rio

    Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria, constitudo de quatro

    volumes: 1) Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964; 2)

    Represso e Resistncia nos "Anos de Chumbo"; 3) A Conexo

    Repressiva e a Operao Condor; 4) O Fim da Ditadura e o Processo de

    Redemocratizao.

    Esta coletnea de livros torna-se uma espcie de certido, na

    medida em que possibilita a compreenso sobre a vida dos gachos, cujo

    destino foi alterado por um "suposto acaso histrico", um desvio

    inesperado que, por uma combinao de foras de poder, tornou-nos

    estranhos no prprio pas.

    A obra rene artigos cientficos escritos por especialistas no

    tema, textos testemunhais redigidos pelos prprios protagonistas e

    depoimentos orais obtidos por meio de entrevistas, transformando-os

    em fontes preciosas. claro que h evidentes lacunas e faltam muitos

    protagonistas essenciais. Desde j agradecemos, humildemente, toda

    colaborao que nos ajude a sanar possveis imprecises e at algum

    equvoco; do ofcio, sobretudo quando se parte de uma base de

    conhecimento ainda no sistematizada, pouco conhecida e restrita

    especificidade da pesquisa acadmica ou memria individual. Mas um

    primeiro esforo no sentido de comear a pensar coletivamente,

    respeitando a singularidade das trajetrias e as perspectivas das anlises, a

    experincia traumtica do perodo discricionrio sobre a populao do

    Rio Grande do Sul, suas instituies e seu cotidiano.

    Assim, da construo da coletnea, participaram mulheres e

    homens que foram generosos ao aceitar o desafio de, com

    22

  • desprendimento e coragem, contribuir para desvendar e lembrar um

    perodo da nossa histria que no pode se repetir jamais. E, claro, para o

    enriquecimento do nosso projeto tivemos a sorte de contar, tambm, com

    a colaborao de pessoas e instituies que nos permitiram acesso a

    arquivos privados ou disponibilizaram fotos e documentos.

    II.

    Em relao ao perodo da ditadura civil-militar, o Rio Grande do

    Sul apresenta as suas peculiaridades em termos das grandes anlises de

    conjunto construdas desde o centro do pas. Em primeiro lugar, pelo fato

    de ter uma forte tradio trabalhista, o que ajudou a configurar um

    grande apoio s Reformas de Base do governo de Joo Goulart. Em

    segundo, a marca deixada no imediato pr-golpe, pela Campanha da

    Legalidade, fundamental para reverter o quadro golpista deflagrado em

    1961, quando da renncia de Jnio Quadros.

    Alm disso, naquele contexto, a condio de ser um estado

    fronteirio da Argentina e do Uruguai foi uma particularidade que gerou

    cinco tipos de dinmicas, no necessariamente simultneas em termos

    cronolgicos:

    primeiro, referente ao fato de constituir uma espcie de base de

    projeo da influncia brasileira sobre o espao platino

    (lembrando, por exemplo, a preparao da "Operao Trinta

    Horas" e a construo de uma infraestrutura rodoviria ligando

    estrategicamente o centro do pas com o extremo sul do estado);

    segundo, vinculada percepo geopoltica de fronteiras

    nacionais ameaadas tanto pela mtua rivalidade e desconfiana

    da Argentina, quanto pela presena de "ameaadoras" foras

    subversivas, nacionais ou estrangeiras (com a consequente

    23

  • militarizao da regio e a conformao dela como rea de

    segurana nacional);

    terceiro, pela configurao do territrio estadual como corredor

    para o trnsito da resistncia ("pombos-correio" de Brizola,

    esquemas para retirar ou reintroduzir perseguidos polticos) e da

    represso;

    quarto, o reconhecimento de que o Uruguai, pas vizinho, virou

    santurio preferencial do exlio brasileiro entre 1964-1968,

    enquanto que o Rio Grande do Sul tornou-se uma rea acessada

    por organizaes perseguidas naquele pas e na Argentina desde

    o final dos anos 1960 e durante a dcada de 1970 o que deu

    especial conotao ao estado dentro da lgica da Segurana

    Nacional;

    finalmente, o Rio Grande do Sul foi alvo especial da ao da

    Operao Condor contra cidados uruguaios e argentinos.

    III.

    A memria, na medida em que se relaciona com o passado,

    constitui um elo indiscutvel entre o presente e esse passado (que pode ter,

    inclusive, uma temporalidade difcil de precisar). Trata-se de uma espcie

    de ponte que conecta, articula e relaciona elementos temporais, espaciais,

    identitrios e, tambm, histricos. Deve-se salientar ainda que, assim

    como a histria no neutra, tambm no h neutralidade nos registros

    da memria. As lembranas no so registros passivos ou aleatrios da

    realidade.

    Alm disso, a memria no sinnimo de histria ou de

    realidade histrica passada. Entretanto, a importncia da memria para a

    histria no pequena, pois ela constitui significativa fonte para o

    trabalho dos historiadores; as lembranas e reminiscncias da memria

    24

  • 1 LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 1996.2 BURKE, Peter. Variedades de histria cultural. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.

    coletiva auxiliam ao historiador que, com o rigor da sua metodologia de

    trabalho, as transforma em valiosas fontes para a produo do

    conhecimento cientfico. Ou seja, a histria identifica, contextualiza e

    analisa as memrias como fonte; entretanto, elas tambm podem ser o

    seu objeto de estudo.

    importante destacar que, assim como a histria, a memria

    lugar e objeto de disputa nas relaes de poder em confronto na realidade

    social. Jacques Le Goff esclarecedor quando afirma que: "Tornarem-se

    senhores da memria e do esquecimento uma das grandes

    preocupaes das classes, dos grupos, dos indivduos que dominaram e

    dominam as sociedades histricas. Os esquecimentos e os silncios da

    histria so reveladores desses mecanismos de manipulao da memria 1coletiva".

    A anlise da temtica da memria implica em reconhecer que h,

    como contrapartida, o esquecimento, os silncios e os no ditos. O

    esquecimento pode ser uma opo de restringir ao essencial certos fatos

    ou informaes a respeito deles. Mas tambm pode ser o resultado de

    uma ao deliberada de ocultamento. Diante dessa dupla possibilidade,

    pode ser til a proposta de Peter Burke de "examinar a organizao social

    do esquecer, as regras da excluso, supresso ou represso e a questo de

    quem quer que quem esquea o qu e por qu". Essa a frmula, para ele, da 2amnsia social, dos atos de esquecimento. Na disputa pelo que lembrar,

    possvel pensar em memrias subterrneas, que surgem e se mantm nos

    interstcios dos espaos compreendidos entre o esquecimento e a

    memria social. Elas expressam as memrias dos excludos, dos

    esquecidos da memria oficial.

    Sendo a memria coletiva uma construo social e um fator de

    identidade de uma comunidade, ento, como viver com esquecimentos

    25

  • impostos? Como lembrar ou esquecer o que no se permite conhecer?

    Como conviver diante do apagamento (desmemria)? Para uma dada

    coletividade, quais os prejuzos implcitos nesse acesso ao (des)conhecido

    passado bloqueado? Os responsveis pelos anos de chumbo latino-

    americanos sabem que o desconhecimento impede o posicionamento

    consciente; sabem, tambm, do potencial de inrcia que possui o

    esquecimento coletivo. "A impunidade filha da m memria. Sabiam disso

    todas as ditaduras militares de nossas terras", bem disse Eduardo Galeano.

    Na Amrica Latina do ps-ditaduras, as instituies do Estado,

    boa parte do setores polticos e empresariais, as Foras Armadas e

    importantes segmentos da economia internacional e da poltica externa

    norte-americana tm conspirado fortemente contra o lembrar. Se no

    fosse a resistncia pelo resgate da memria e da histria, por parte de

    determinados setores poltico-sociais, a tendncia vitoriosa teria sido a da

    imposio de um esquecimento acelerado.

    Os processos de anistia no Brasil, Chile, Uruguai e Argentina

    no s pouparam os vencedores das ditaduras de Segurana Nacional

    como os recompensaram. E as "redemocratizaes" fragilizaram-se

    diante da manuteno do entulho autoritrio que ainda hoje permanece

    fortemente arraigado ao poder. A institucionalizao do silncio oficial e

    a supresso da memria coletiva foram fundamentais para

    desresponsabilizar os culpados e impor o anestesiamento e a amnsia do

    silncio final. Diante de tamanha manipulao, pode-se coincidir com

    Yosef Yerushalmi, quando afirma que, em determinadas situaes, a

    anttese da palavra esquecimento e da palavra silncio talvez no seja 3memria, seno, justia.

    O conhecimento sobre os acontecimentos das ltimas dcadas

    no Cone Sul latino-americano exige o trabalho de resgate das memrias

    3 YERUSHALMI, Yosef H. et al. Usos del olvido. Buenos Aires: Nueva Visin, 1989.

    26

  • individuais e de elaborao de uma memria coletiva, mas tambm de

    recuperao da prpria histria. Tanto a recuperao da elaborao da

    memria contra o apagamento/esquecimento induzido/desmemria,

    quanto a procura da verdade do que foi dito que nunca ocorreu, so

    compromissos da histria e responsabilidade dos historiadores. Isto

    implica, tambm, em apurar, cada vez mais, a importncia do papel da

    memria na dinmica temporal onde o passado sempre objeto e motivo

    de reflexo para o presente e at para o futuro. Da mesma forma, isso

    tambm se configura para a afirmao do papel que a memria

    desempenha como matria-prima sobre a qual o historiador pode

    produzir, com seus mtodos de trabalho, o conhecimento histrico.

    IV.

    Nessa incurso foi preciso levantar, incansavelmente, o vu do

    esquecimento que paira sobre a vida dos brasileiros ao longo da histria.

    Mas esse trabalho de investigao nos serviu de estmulo para enfrentar

    os limites e desafios que, como era de se esperar, o longo trajeto nos

    imps.

    Eis aqui nossa coletnea aberta e intensa porm ainda

    incompleta, porque faltam muitos registros. Outras obras muito

    revelaram e com certeza outras viro, muito aprimoradas, com a incluso

    de novos fatos, crticas e contribuies. E para elas estaremos de braos

    abertos, firmes no nosso propsito de apoiar todo projeto voltado

    promoo dos direitos humanos.

    Deixamos aqui a nossa humilde contribuio; um pequeno gro

    de areia diante de tudo o que falta por fazer. Uma obra que foi tomando

    corpo durante a caminhada que se tornou muito especial. Caminhada

    marcada pela generosidade dos que socializaram suas experincias de luta

    e resistncia vividas e da solidariedade de todos os que se engajaram em

    27

  • este trabalho coletivo. Caminhada... como aquela cantada em outra

    lngua pelo poeta de outro tempo e de outro lugar; caminhada fraterna

    dos caminhantes que lutaram e lutam pela igualdade social e por um

    mundo realmente melhor:

    Caminante, son tus huellas el camino,

    y nada ms;caminante, no hay camino,

    4se hace camino al andar.

    V.

    O presente livro traz uma srie de depoimentos e textos que nos

    permitem acessar o cenrio brasileiro e gacho no momento do Golpe de

    1964 e refletir sobre tal acontecimento, seus antecedentes, protagonistas

    e desdobramentos.

    De incio, o texto da professora do Departamento de Histria e

    do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul, Claudia Wasserman, apresenta uma anlise

    aprofundada das contradies e disputas que estavam em curso no

    momento anterior ao Golpe, traando um panorama das lutas polticas

    em curso no pas e, especialmente, no Rio Grande do Sul. A autora traz

    uma srie de elementos que nos permitem compreender o cenrio

    poltico gacho da poca, marcado tanto pela atuao de Ildo

    Meneghetti, eleito governador em 1962 e apoiado pelas foras

    conservadoras, como pelo protagonismo poltico de Leonel Brizola e seu

    projeto nacionalista. Alm disso, a autora discorre sobre a histria do Rio

    Grande do Sul no momento posterior ao Golpe, comentando sobre os

    diferentes governos estaduais que se seguiram, e discute sobre a produo 4 Antonio Machado (Sevilla, 1875 Collioure, 1939). Proverbios y Cantares. Campos de Castilla

    (1912).

    28

  • historiogrfica recente, enfatizando a importncia dos novos estudos

    para a compreenso de nossa histrica recente.

    O deputado estadual Raul Pont apresenta algumas reflexes e

    memrias que abarcam importantes momentos. Recuando no tempo at

    a morte de Getlio Vargas, em 1954, Pont traa uma anlise sobre

    questes significativas para a compreenso do contexto que levou ao

    Golpe de 1964, como a Guerra Fria, o anticomunismo presente nos

    meios militares, as tentativas anteriores de golpe no Brasil e a falta de

    preparao, por parte da esquerda, para enfrentar o golpe. O ex-prefeito

    de Porto Alegre tambm discute sobre a resistncia contra a ditadura e

    seus limites, bem como as transformaes vividas pelos grupos e

    organizaes de esquerda no ps-abertura e a constituio do Partido dos

    Trabalhadores.

    O depoimento do Coronel Reformado da Brigada Militar

    Emlio Neme retrata um dos momentos mais marcantes da recente

    histria poltica gacha a Campanha da Legalidade. Em seu texto ele

    narra como se constituiu, dentro da Brigada Militar, a rede de apoio que

    garantiu ao ento governador Leonel Brizola as condies de resistir

    tentativa de impedir a posse de Joo Goulart em 1961. Neme, que

    tambm foi chefe de Segurana de Brizola e estava junto a ele no

    momento do Golpe, traz alguns apontamentos sobre a trajetria do ex-

    governador a partir daquele episdio, especialmente sobre a perseguio

    que sofreu e sua partida para o exlio.

    Srgio Gonzalez apresenta algumas reflexes acerca dos Grupos

    dos Onze, organizados em torno da figura de Leonel Brizola a partir de

    1963. Gonzales busca problematizar a forma como tem sido lembrada a

    trajetria e a atuao dos Grupos dos Onze no pas e traz algumas

    memrias de suas vivncias enquanto integrante de um dos grupos.

    29

  • Wladymir Ungaretti narra sua participao no grande comcio

    na Central do Brasil, em maro de 1964, e o comeo de sua militncia

    poltica. O jornalista estava ento iniciando sua participao no PCB, e

    aquele foi o seu primeiro comcio. Ungaretti relembra alguns episdios da

    poca, discorrendo sobre as utopias, os companheiros de militncia e as

    experincias que vivenciou.

    Apresenta-se, tambm, uma entrevista com Joo Aveline,

    jornalista e um dos mais destacados militantes do Partido Comunista

    Brasileiro no Rio Grande do Sul. Realizada em junho de 2005, meses

    antes de seu falecimento, a entrevista compreende diferentes momentos

    da histria de vida de Aveline, perpassando o incio de sua trajetria

    poltica e o ingresso no PCB, a militncia sob o governo Vargas, o

    processo que levou ao Golpe, sua atuao como jornalista, o

    recrudescimento da represso e sua priso em 1975, e o posterior

    processo de abertura poltica. O jornalista tambm traou um panorama

    das principais lutas travadas no campo da esquerda ao longo do sculo

    XX, oferecendo uma srie de subsdios para que possamos refletir sobre

    os partidos e organizaes de esquerda, suas prticas e projetos em nossa

    histria recente, especialmente no ps-1964.

    O texto de Pedrinho Guareschi, intitulado "Lies de 1964",

    traz algumas relembranas do autor sobre o perodo e reflexes que nos

    ajudam a compreender o complexo processo que culminou com a queda

    de Jango. Guareschi atenta para as dificuldades que temos para perceber

    certos processos quando estamos no turbilho dos acontecimentos,

    discute o que significa pensar no Golpe mais de quarenta anos depois e

    quais as lies que podemos tirar desse episdio. Para o autor, preciso

    perceber que a anlise daquele momento histrico pode nos auxiliar a

    compreender os desafios que se impem nos dias atuais.

    30

  • Para que no se esquea

    Para que nunca mais acontea!

    Os organizadores

    Christopher Goulart apresenta algumas consideraes acerca da

    biografia e da trajetria poltica do ex-presidente Joo Goulart. O neto de

    Jango conta sobre sua peregrinao pelo estado, atravs do Instituto Joo

    Goulart, com o objetivo de resgatar a histria de seu av, debatendo com

    a sociedade sobre o seu governo, sua postura de conciliao e o projeto

    reformista que foi derrotado em 1964.

    Por fim, o texto de Luiz Cludio Cunha traz algumas

    consideraes sobre o papel desempenhado por setores da grande

    imprensa no processo que levou ao Golpe de 1964. O jornalista analisa

    diferentes veculos de comunicao no perodo, buscando evidenciar a

    participao da grande imprensa na divulgao de ideias anticomunistas

    e na oposio a Joo Goulart, bem como seu apoio no momento do Golpe

    e sua posterior adeso ao projeto ditatorial. Cunha tambm discute sobre

    as campanhas patrocinadas pelo complexo IPES/IBAD (Instituto de

    Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ao Democrtica),

    disseminadas pela imprensa escrita, rdio e televiso, e seu papel no

    sentido de manipular a opinio pblica contra Jango.

    31

  • s 18horas e 10 minutos do dia 3 de abril de 1964, o ento

    governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, fazia sua entrada na

    capital do estado, em pose triunfal, acompanhado do recm-nomeado

    comandante do III Exrcito, general Mrio Poppe Figueiredo, que ainda

    trajava seu uniforme de campanha. Ambos retornavam de Passo Fundo

    em um veculo militar de combate frente de um "aprecivel cortejo" de

    viaturas militares e de nibus que conduziam foras militares do Exrcito

    e da Brigada. Chegaram juntos, a estes, o comandante da Brigada Militar

    coronel Otvio Frota, o chefe da Casa Civil do governo, Plnio Cabral, e o

    chefe da Casa Militar, coronel Orlando Pacheco. O tom triunfal marcado

    pela cena apotetica do simbolismo militar ficava por conta do xito do

    Golpe civil-militar que derrubou o ento presidente constitucional do

    Brasil, consumado no estado do extremo sul brasileiro apenas s 11 horas

    e 45 minutos do dia 2 de abril, quando o presidente Joo Goulart retirou-

    se de Porto Alegre. Ali havia estabelecido sua ltima tentativa de

    resistncia, no bem-sucedida. Partiu rumo ao exlio no Uruguai, de onde

    jamais retornaria em vida. Ficava mascarado o incmodo fato de que,

    dois dias antes, o prprio Meneghetti tivera que fugir de Porto Alegre

    INTRODUO

    1964: O RIO GRANDE DO SUL NO OLHO DO FURACO

    Enrique Serra Padrs*Rafael Fantinel Lameira**

    * Professor do Departamento de Histria e do PPG-Histria/UFRGS.** Mestrando em Histria/UFRGS. Est desenvolvendo a dissertao Os movimentos sociopolticos liberal-conservadores na construo e consolidao da ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul. Do Golpe de 1964 ao AI-5.

    33

  • diante do temor mobilizao das foras de oposio ao Golpe. Mas esta

    uma histria que precisa ser contada desde o comeo.

    No dia 1 de abril de 1964, em meio ao clima de apreenso e do

    desencontro, e at mesmo ausncia de informaes, noticiava-se a

    deflagrao de um movimento sedicioso, partindo de Minas Gerais sob o

    comando militar do general Mouro Filho, e poltico, do governador

    Magalhes Pinto. De imediato, o comandante do II Exrcito, general

    Amauri Kruel, compadre e amigo do presidente, aderiu revolta. Na

    justificativa destes, o "movimento" se dava pela preservao da liberdade

    e da democracia, contra a conspirao dos comunistas que

    "conspurcavam a ptria" e o prprio governo. Os acontecimentos j so 1bastante narrados e conhecidos.

    A deflagrao do movimento militar foi a culminncia e a parte

    mais visvel de um amplo movimento civil-militar que no pode ser

    considerado de forma simplista ou com base em binmios explicativos.

    Em termos conjunturais, pode ser pensado como um contragolpe

    preventivo, deflagrado contra a ascenso das lutas dos movimentos

    sociopolticos, baseados, majoritariamente, em um programa

    nacionalista e reformista. No jargo poltico destes movimentos, o

    objetivo era realizar reformas sociais para tornar o capitalismo mais

    humano e democrtico. Entretanto, esta viso no pode limitar a

    percepo de que se tratou tambm de um movimento sociopoltico que

    aglutinou amplos setores liberais e conservadores em nome de um

    projeto poltico baseado nas formulaes da Doutrina de Segurana

    Nacional e Desenvolvimento. Outra dimenso fundamental do Golpe de

    1964 est vinculada relao com as estruturas que lhe do significado;

    nesse sentido, ele tambm faz parte do contexto de radicalizao poltica

    da Guerra Fria, agravada, ainda, nas Amricas, pela Revoluo Cubana.

    1 Correio do Povo, Porto Alegre, 3 abr. 1964.

    34

  • Assim, o Golpe de 1964 constituiu um evento que, simultaneamente,

    toma significado a partir das estruturas sociais do sculo XX, na mesma

    medida em que confere significado s estruturas sociais brasileiras e sul-

    rio-grandenses, quais sejam: o elitismo e o conservadorismo polticos

    daqueles que se percebem como "responsveis pela ptria" e a constante

    identificao de democracia com ordem e harmonia social. Dentro dessa

    perspectiva, possvel compreender como o Golpe contou com total

    apoio e colaborao do governo dos Estados Unidos, atravs do

    embaixador Lincoln Gordon. Tal apoio no era somente poltico, mas

    tambm militar, consubstanciado num plano de contingncia que previa

    apoio logstico e de tropas aos setores golpistas, expresso na famosa

    Operao Brother Sam, caso houvesse resistncia. Tal plano contou com

    planejamento conjunto entre militares brasileiros e o governo dos EUA,

    atravs de seu Departamento de Estado. Sabe-se tambm da ampla

    participao desta potncia estrangeira na campanha de desestabilizao

    e na conspirao contra Goulart, junto com as entidades das classes 2 conservadoras do Brasil. Compreender este ponto fundamental para

    entender a relao entre o Golpe de Estado no Brasil e o contexto mais

    amplo da Guerra Fria, no qual tal conflito se situa. No se trata de pensar

    numa grande conspirao internacional, nem de imputar o protagonismo

    nem os males da nossa sociedade ao "outro", ao estrangeiro, mas

    compreender o processo histrico em sua totalidade, para no falsear a

    realidade ou isolar elementos importantes e complementares para

    entender como o Brasil mergulhou em mais de 20 anos de ditadura de

    Segurana Nacional.

    Frente deflagrao da movimentao militar do movimento

    golpista, Goulart nomeou o general legalista Ladrio Pereira Telles para

    2 FICO, Carlos. O Grande Irmo: da Operao Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008.

    35

  • assumir o comando do III Exrcito, que abarcava a regio sul (os estados

    do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran); seu Quartel-General

    era em Porto Alegre. Goulart pretendia estabelecer a sua resistncia na

    mesma cidade que lhe havia garantido a posse a partir da Campanha da

    Legalidade, em 1961, comandada pelo ento governador Leonel Brizola.

    Ladrio Telles chegou a Porto Alegre nas primeiras horas do dia 1 de

    abril, onde foi recepcionado pelo prefeito da capital, Sereno Chaise, do

    Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no mesmo momento em que o

    general Jair Ribeiro, recm-operado, reassumiu o Ministrio da Guerra.

    Ao chegar, o novo comandante lanou uma proclamao pblica,

    concitando o III Exrcito a permanecer fiel legalidade e ao mandato

    constitucional do presidente, juntamente com o povo e a resistncia civil.

    O governador do estado, Ildo Meneghetti, do Partido Social

    Democrtico (PSD), adversrio poltico declarado do PTB, fazia parte

    do movimento golpista, sendo uma das lideranas nacionais. Requisitou,

    por decreto, as emissoras de rdio e televiso sediadas na capital, sob a

    justificativa de "evitar a sua utilizao para a difuso de pronunciamentos

    que possam, de qualquer modo, perturbar a tranquilidade reinante no

    nosso estado", procurando evitar que se repetissem fatos como os de

    1961. Afirmou tambm que, diante da crise, manteria a ordem em todo o 3Rio Grande do Sul. O objetivo de Meneghetti era muito claro: evitar a

    reorganizao da Cadeia da Legalidade. Portanto, na prtica, imps a

    censura e o controle estatal, a fim de evitar a reao e rearticulao das

    foras contrrias ao Golpe no estado. No plano militar, o governo colocou

    a Polcia Militar e a Polcia Civil de prontido. A guarnio da sede do

    governo foi reforada e a rea adjacente ao Palcio Piratini foi interditada

    ao trnsito. Veculos policiais e militares foram colocados em prontido,

    3 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1964, p. 11.

    36

  • 4 na necessidade de utiliz-los para deslocar tropas. A sede do governo foi

    novamente transformada em quartel-general, protegido por barricadas,

    s que, desta vez, a favor do Golpe e contra a ordem constitucional,

    embora o discurso dos sediciosos dissesse o contrrio. Apesar do governo

    afirmar que as medidas eram apenas preventivas para assegurar a calma

    no estado, as mesmas visavam represso rpida dos focos de resistncia.

    Tanto o governador como todos os partidos e polticos que

    compunham o bloco da Ao Democrtica Popular (ADP), que

    comandavam o governo do estado (PSD, UDN, PL, PRP, PDC),

    vinham participando da campanha de desestabilizao do governo

    Goulart. Meneghetti participava de articulaes nacionais e locais. Foi

    assim que, no 22 de maro de 1964, recebeu o governador de So Paulo,

    Adhemar de Barros, para discutir a situao poltica nacional e os termos

    de um manifesto a ser redigido em conjunto pelos governadores da

    oposio. Nessa ocasio, em Porto Alegre, Adhemar de Barros afirmou 5que haveria eleies em 1965, mas tinha dvidas se Goulart as presidiria,

    indicando uma clara posio desestabilizadora. J em 24 de maro,

    tornou-se pblico o manifesto dos generais, alertando para os perigos

    representados pelo presidente da Repblica. Ainda antes, em 16 de

    maro, o mesmo Meneghetti enviou um telegrama ao presidente do

    Senado, Auro de Moura Andrade, com cpias ao presidente da Cmara,

    Ranieri Mazzilli, e a todos os governadores do pas. O telegrama

    alcanou repercusso nacional e "definiu" sua posio em face "situao

    nacional" e ao comcio da Central do Brasil, marcando sua adeso pblica

    conspirao em andamento. O texto, um pouco longo, merece ser citado

    pela gravidade do compromisso assumido:

    4 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1964, p. 11.5 Correio do Povo, Porto Alegre, 22 mar. 1964, p. 48.

    37

  • Neste momento em que a nao assiste alarmada e inquieta a tantos e to graves ataques s instituies dirijo-me a Vossa excelncia para hipotecar em nome do Rio Grande e em meu prprio irrestrita solidariedade ao Congresso Nacional que agora reabre seus trabalhos. A adoo das medidas que visem a modificar a estrutura econmica do pas a fim de que ela possa atender aos legtimos anseios do povo, pode e deve ser feita ao amparo das leis e da constituio, pois a democracia constitui exatamente o meio e o caminho para a soluo de todos os conflitos. [...] ante os ataques ao Congresso Nacional, lamentavelmente feitos na presena de autoridades responsveis pela salvaguarda da lei e da legalidade, no posso deixar de exprimir minha indignao e o protesto do povo rio-grandense. Assim como em mais de uma oportunidade, defendi a legitimidade integral do mandato do senhor presidente da Repblica, quando esta foi questionada, agora defendo com a mesma firmeza, o direito, as prerrogativas, e a dignidade do Congresso Nacional. A inquietao e a insegurana, que vm solapando a todos os setores da vida nacional, pem em grave risco as instituies democrticas. [...] Reafirmo a Vossa Excelncia que o Rio Grande do Sul, fiel a suas tradies, reagir a qualquer atentado constituio, parta de onde partir, e defender a legitimidade dos mandatos seletivos em qualquer circunstncia e por

    6qualquer meio a seu alcance. [...]

    No Rio Grande do Sul, os partidos da ADP e as

    autodenominadas Classes Produtoras foram protagonistas na construo

    das condies polticas para o Golpe. Vale ressaltar que a ao poltica

    destes havia iniciado, veladamente, ainda em 1961, mas se intensificou no

    final de 1963. Seu envolvimento concreto no Golpe foi inquestionvel.

    Logo nas primeiras horas da noite, aps a declarao de

    Meneghetti, Plnio Kroeff e Fbio de Arajo Santos, presidentes,

    6 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.

    38

  • respectivamente, da Federao das Indstrias do Estado do Rio Grande

    do Sul (FIERGS) e da FEDERASUL, foram ao palcio Piratini para

    apoiar o governador, em nome dos setores que representavam. Segundo

    eles, a mensagem do governador "expressa com fidelidade o pensamento

    das classes produtoras do Rio Grande do Sul". Da mesma forma, o

    governador recebia muitas manifestaes de apoio de entidades, polticos 7e militares de todo o Brasil.

    Os setores empresariais, no dia seguinte, divulgaram um

    manifesto central no processo de combate aberto ao governo Goulart.

    Nele, indicavam que as entidades dos setores empresariais, conscientes de

    suas responsabilidades como "foras vivas da nao, sentiram-se no dever

    de se manifestar frente generalizada apreenso" em funo das medidas

    tomadas pelo governo federal. Manifestaram

    seu veemente protesto contra o clima de agitao provocado em todos os setores da vida pblica nacional, criando situao de intranquilidade, incerteza, e, sobretudo, de insegurana que impede o normal desenvolvimento de todas as atividades e consequentemente, pe em risco, no s a prosperidade da nao, como a prpria sobrevivncia das suas instituies [].

    As entidades afirmavam, ainda no mesmo documento, que

    nunca se haviam negado a colaborar na resoluo dos problemas

    nacionais, mas que, em sua opinio, era preciso uma nova ordem e agir

    contra os que "procuram solapar o regime atravs da subverso". O

    Manifesto foi assinado pelos presidentes da FIERGS e do CIERGS,

    Plnio Kroeff, da Federao das Associaes Comerciais do Rio Grande

    do Sul e da Associao Comercial de Porto Alegre, Fbio Arajo dos

    Santos, da Federao das Associaes Rurais do Rio Grande do Sul,

    7 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.

    39

  • Oscar Carneiro da Fontoura e do Sindicato dos Bancos do Rio Grande 8do Sul, Joo da Costa Ribeiro.

    Quanto ADP, em 20 de maro, divulgou o manifesto conjunto

    dos partidos que a compunham, propondo um "estado de alerta para

    evitar o golpe". Seu contedo denunciava que o governo Goulart

    demonstrava "inadaptao ao sistema constitucional e legal que

    disciplina as instituies democrticas brasileiras" e, ao no conseguir

    cumprir suas obrigaes bsicas, nem conter a inflao, fugia das suas

    responsabilidades para atribu-las a outrem. O documento apontava,

    ainda, que:

    as greves comandadas por organismos esprios e insuflados por agentes do prprio governo, afetando servios pblicos essenciais, decretadas por motivos polticos e paralisando a vida da nao; a agitao dos meios rurais, com o desestmulo da produo, a organizao dos grupos de guerrilha revolucionria, ostensivamente proclamada e tolerada pelo governo; a pregao aberta ao fechamento do congresso, feita em comcio frente as mais altas autoridades da repblica; as ameaas de controle, supresso ou monopolizao dos meios de publicidade e comunicao, [...] esto a indicar um processo subversivo das nossas instituies. H, incontestavelmente, uma infiltrao comunista em todos os setores do governo.

    O manifesto finalizava com uma declarao contundente: "Na

    defesa intransigente das instituies, os partidos polticos, que somam a

    maioria esmagadora da opinio pblica rio-grandense, unem seus

    esforos, sob uma nica bandeira, e conclamam seus correligionrios 9resistncia at o ltimo sacrifcio".

    8 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.9 Correio do Povo, Porto Alegre, 20 mar. 1964, p. 7 e 16.

    40

  • Desta forma, os caminhos para os ataques ao governo estavam

    inteiramente abertos. O jornal Correio do Povo assumiu uma crtica

    violenta, acusando Goulart de agitador, violador da democracia,

    demagogo e de querer instalar um "neoperonocastrismo" no Brasil (seja l o

    que isso quisesse dizer). Adotava uma linha de questionamento como a

    que vinha sendo utilizada por Lacerda e a imprensa do centro do pas nos

    ataques tanto ao governo federal quanto ao prprio Brizola. Tratava-se

    de uma referncia explcita aos planos de instalar no Brasil um regime

    comunista aos moldes "caudilhescos" e populistas dos pampas; em

    decorrncia, uma mistura de Pern e Fidel Castro, dois dos maiores 10pesadelos das direitas latino-americanas.

    A partir de ento, a crise poltica passou a ser objeto de todos os

    debates e discursos na Assembleia Legislativa. Enquanto a Ao

    Democrtica Popular atacava Goulart e as reformas, o PTB e a Ao

    Republicana Socialista (ARS) faziam a sua defesa. A polarizao poltica

    era uma realidade. Na Assembleia Legislativa a bancada da ADP, por

    iniciativa do deputado Paulo Brossard, tentou votar um requerimento,

    manifestando solidariedade ao Congresso Nacional e contra o presidente

    Goulart, nos termos j colocados pelo governador. J o PTB, a ARS e o

    Movimento Trabalhista Renovador (MTR), em contraposio, tentaram

    colocar em votao um requerimento pedindo ao Congresso para ser

    sensvel s dificuldades do povo e necessidade de aprovao das

    reformas sociais de forma democrtica e popular. Na radicalizao, no

    debate e nos subterfgios regimentais, nenhum dos dois requerimentos

    foi votado. Em outra sesso, no entanto, a moo da ADP foi vitoriosa 11por 27 votos a 26. O resultado confirma o delicado equilbrio

    institucional entre as foras polticas dos dois campos. Isto indica que a

    10 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 4. 11 Correio do Povo, Porto Alegre, 18 mar. 1964, p. 7; Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mar. 1964, p. 7.

    41

  • propalada superioridade conservadora , no mnimo, um exagero do

    discurso poltico partidrio. Deputados e lderes polticos da ADP

    passaram a fazer constantes pronunciamentos em defesa da "unio dos

    democratas para salvar a democracia do comunismo e da demagogia". O

    presidente e as foras reformistas eram constantemente atacados por

    "criar uma situao que paralisava atividades vitais", numa srie de

    ultimatos que faziam parte de uma campanha aberta contra as

    instituies. O governo e as esquerdas teriam feito, segundo o discurso

    conservador/golpista, um ultimato democracia e isso no podia ser 12 tolerado. Nesse sentido, o pronunciamento do deputado Alexandre

    Machado, do PSD, na Assembleia Legislativa, foi exemplar. A defesa da

    interveno armada foi categrica.

    O deputado declarou abertamente que:

    a situao nacional chegou a seu ponto mais crtico. Ou reagimos agora ou seremos tragados pelos comunistas, hoje em nossa ptria, chefiados pessoalmente pelo presidente da Repblica. [...] Marchamos para a expropriao de tudo, em nome do povo, tudo se estatizar. [...] o golpe s instituies est iminente. [...] os inimigos da ptria, corruptos e corruptores, esto se preparando para dar o golpe final nas instituies democrticas, e pisaram, eles, fundo no acelerador da revoluo. Vamos agora, eles ou ns, para o abismo. [...] Sei que o governo do estado defender com as armas ao seu alcance a vigncia do regime que os totalitrios querem destruir e ultrajar. Estaremos ao lado do nosso governador, bem como dos governadores de Santa Catarina, Paran, So Paulo, Guanabara e tantos outros, que esto dispostos a dar suas vidas antes de permitirem, o criminoso, brbaro, ilegal, arbitrrio atentado s liberdades e democracia. [...] desejo dos rio-grandenses defenderem seus lares, suas esposas e seus filhos, contra os assassinos e inimigos da ptria, com as armas na mo, dispostos a tudo.

    12 Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mar. 1964, p. 22.

    42

  • Precisamos pr em arma todos os homens de bem. [...] o Rio Grande no trata de candidaturas. Trata da Salvao

    13Nacional.

    A Igreja Catlica tambm representou papel ativo e importante

    durante todo o processo de tentativa de construo do consenso poltico

    em torno do projeto conservador e contra as reformas sociais,

    principalmente atravs do arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente

    Scherer, que, atravs de sua atividade pblica, missas, jornais e seu

    programa de rdio A voz do pastor, associava as reformas ao avano do

    "comunismo materialista e ateu", contrrio tradio catlica e crist do

    pacfico povo brasileiro. O recado era claro. O arcebispo tambm

    inspirou e apoiou a formao, em 9 de maro de 1964, da Ao

    Democrtica Feminina (ADF), entidade liderada por Ilda Baumhardt e

    Ecilda Haensel, e que se definia "apartidria, sem preconceito de religio

    e de raas". Seu programa inclua: "Ensinar a amar a ptria, ajudar os

    jovens para que se tornem cidados conscientes, combater a demagogia, a

    subverso e a desordem e reformar o que est errado dentro da disciplina 14da ordem e da lei [...]".

    A ADF do Rio Grande do Sul era uma das entidades femininas

    catlicas e conservadoras que o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

    (IPES) financiava e orientava politicamente na desestabilizao e 15conspirao contra as foras nacionalistas e Joo Goulart. Por outro

    lado, cabe registrar que o IPES tinha uma seo Rio Grande do Sul, a

    IPESUL, fundada em maro de 1962, em Porto Alegre. Em meio a esta

    efervescncia social que vivia o estado, o IPES passava a ser

    propagandeado como uma "entidade plural" que defenderia a "reviso

    13 Correio do Povo, Porto Alegre, 26 mar. 1964, p. 7. 14 Correio do Povo, Porto Alegre, 10 mar. 1964, p. 4.15 DREIFUSS, Ren. 1964: a conquista do Estado: ao poltica, poder e golpe de classe.Petrpolis/RJ: Vozes, 1981. p. 295.

    43

  • integral dos padres sociais vigentes", "defensor das tradies

    democrticas, crists e ocidentais". Seus organizadores admitiam que a

    criao do Instituto na cidade era uma articulao anterior de homens do

    comrcio e afirmavam a necessidade das reformas "dentro da

    democracia". Entretanto, o IPES foi, junto com o Instituto Brasileiro de

    Ao Democrtica (IBAD), o grande organizador da conspirao contra 16Goulart no Brasil. O primeiro presidente da seo gacha (IPESUL)

    foi lvaro Coelho Borges, que, na sua posse, declarou que a organizao

    era uma aspirao de empresrios, profissionais liberais e democratas, na

    convico da necessidade de agir "para melhorar a vida do povo sem 17exigir a perda da liberdade". lvaro Coelho Borges era, tambm,

    presidente da FEDERASUL e da Associao Comercial de Porto

    Alegre (ACPA), fato que indicava, assim, a estreita ligao entre os

    setores empresariais do estado e as atividades golpistas desenvolvidas

    pelo IPES em nvel nacional e estadual. Embora a atuao do IPESUL

    tenha sido discreta (assim como a matriz nacional), a sua participao

    poltica na conspirao golpista foi altamente estratgica.

    Diante da profuso de manifestos dirigidos "Nao", entre os

    quais os de Mouro Filho, Juscelino Kubitschek, Magalhes Pinto, bem

    como os editoriais de jornais de grande circulao no pas, exigindo a

    deposio do presidente, chama a ateno, no Rio Grande do Sul, a

    tomada de posio do Correio do Povo. Assumindo um tom de

    dramaticidade latente, publicou em suas pginas um editorial intitulado

    "Pela Lei e Pela Ordem", atravs do qual afirmava que frente aos "graves

    acontecimentos de carter poltico militar" deveria se manifestar.

    16 . 17 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1962.

    DREIFUSS, op. cit

    44

  • Este jornal, fiel a linha que traou seu fundador Caldas Junior, como rgo independente, sem filiaes partidrias, nem vinculao de nenhum tipo, com grupos ou organizaes de qualquer natureza, segue, no entanto, acima de qualquer injuno uma impessoal postura programtica: a defesa das instituies democrticas e da ordem constitucional que as exprime. Mas da verdadeira ordem constitucional, daquela que est no apenas na letra, mas tambm e mais importante e decisivamente, no seu esprito e no seu exato e profundo significado, o qual no se compadece com atentados ou insuflamentos de atentados prpria dignidade das Foras Armadas e prpria autenticidade do regime, pela inverso da hierarquia e pela quebra de disciplina, com projeo na prpria ordem institucional estabelecida.

    Clamava, ainda, para que as Foras Armadas cumprissem sua

    "histrica misso", de serem "sustentculos da lei e da ordem", sob o

    esprito de sua vocao histrica, o cristianismo e o democratismo-

    liberal. O encerramento no poderia ser mais categrico: "O caminho a

    seguir nesta hora de deciso no comporta dvidas ou vacilaes: o do

    saneamento tico das cpulas polticas e administrativas e da anulao

    dos inimigos da ptria e da democracia, que se encastelaram

    funestamente na prpria cidadela do poder". O discurso golpista

    transparecia com toda a fora e justificava a necessidade de infringir a

    Constituio "pelo seu prprio bem e pela manuteno da ordem". O

    fundo poltico dos conspiradores estava explcito. Nessa perspectiva, a

    legalidade precisava estar a servio daqueles que realmente deviam

    decidir o que era a "verdadeira ordem constitucional". Tais posies pem

    por terra o argumento da suposta neutralidade da imprensa e confirmam

    sua tomada de posio inequvoca e responsabilidade na deflagrao do

    Golpe.

    45

  • Retomando o contexto imediato do golpe, a situao do

    governador Meneghetti se agravou ainda mais; soube, do ento

    comandante do III Exrcito, general Galhardo, que este estava disposto a

    apoiar o movimento golpista e prender o general Ladrio Pereira Telles,

    quando se apresentasse no Rio Grande do Sul. No entanto, quando este

    ltimo assumiu efetivamente o Comando do III Exrcito, ocupou

    emissoras de rdio, com tropas fiis legalidade, dando oportunidade

    para que setores civis organizados em apoio a Joo Goulart dessem incio

    ao processo de levante popular, sob liderana de Leonel Brizola e do

    prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, tentando repetir a Campanha

    da Legalidade de 1961. Um grande nmero de populares marchou para a

    Praa da Matriz, a fim de depor o governador e entregar o governo a

    Leonel Brizola. O clima no Palcio Piratini era de extrema tenso. A

    tropa de choque da Brigada Militar foi acionada e tomou posio

    defensiva. O impasse foi atenuado quando Sereno Chaise convocou a

    populao a acompanhar o desenrolar dos acontecimentos no Pao

    Municipal.

    De posse das rdios gachas, a Cadeia da Legalidade foi

    reeditada, divulgando notas e proclamaes de entidades, conclamando o

    povo resistncia contra o "golpe dos gorilas". O movimento culminou

    com a realizao de um comcio no Largo da Prefeitura que contou com

    oradores como Leonel Brizola, lvaro Ayala, Vilson Vargas, Floriano

    D'villa e o prprio Sereno Chaise. Todos pediram a unio das foras

    populares contra o golpe s instituies. Segundo o Correio do Povo, o

    prefeito Sereno Chaise permaneceu em seu gabinete desde o incio da

    crise, atento ao desenrolar dos acontecimentos, cercado por seus

    auxiliares e "elevado nmero de populares", que se colocaram em frente

    da prefeitura. Inmeras organizaes e entidades manifestaram apoio ao

    prefeito e ao presidente Goulart: Comando de Reivindicaes dos

    46

  • Servidores do Estado, Comando Nacionalista de Guaruj, Frente

    Nacionalista do Magistrio Gacho, Conselho Sindical Feminino,

    Comando dos Servidores Federais do Rio Grande do Sul, Comisso dos

    Profissionais Liberais, Sindicato dos Empregados no Comrcio

    Hoteleiro e Similares de Porto Alegre, funcionrios da Prefeitura

    Metropolitana, do MASTER, Sindicato dos Oficiais de Barbeiros e

    Similares, da Associao dos funcionrios da CEEE e do Sindicato dos

    Trabalhadores de Energia Eltrica em Porto Alegre, entre tantas outras.

    A sorte da limitada democracia brasileira estava sendo decidida, em

    grande medida, no Rio Grande do Sul, onde a resistncia depositou suas

    ltimas esperanas.

    O governador Meneghetti percebeu que fracassara a manobra de

    requisitar as emissoras de telecomunicaes (j ocupadas pelas tropas do

    III Exrcito leais a Goulart), e que se encontrava com pouca base social de

    apoio em Porto Alegre. Assim, no 1 de abril, sob presso do III Exrcito

    e do movimento civil pela legalidade, transferiu a sede do governo para

    Passo Fundo, na sede do 3 Batalho de Caadores da Brigada Militar.

    Desse local, conclamou o povo gacho contra Goulart e os inimigos da

    democracia.

    No dia 2 de abril, diante da notcia de que Goulart abandonara

    Braslia, anunciava-se a vitria do movimento "rebelde". O presidente

    desembarcou em Porto Alegre, acompanhado por ministros e auxiliares,

    entre os quais o general Assis Brasil. Cerca de duzentas pessoas o

    recepcionaram com "vivas ao presidente do Brasil". Depois de ser

    cumprimentado pelo comandante do III Exrcito, Ladrio Pereira

    Telles, pelo prefeito Sereno Chaise e pelo deputado Leonel Brizola, bem

    como por diversos deputados estaduais, Goulart foi escoltado at a

    residncia do comandante do III Exrcito. Especulava-se que o

    47

  • presidente vinha para o Rio Grande do Sul, regio onde contava com 18expressiva base poltica e militar para lutar pela retomada do poder.

    Entretanto, a situao militar no III Exrcito mostrava fissuras

    importantes. Embora o quartel-general anunciasse que exercia controle

    sobre todo o estado, os jornais informavam que tropas da Diviso de

    Cavalaria, em Uruguaiana, da 3 Diviso de Cavalaria, em Bag, e da 3

    Diviso de Infantaria, em Santa Maria, estavam sublevadas. Mais

    preocupante ainda para a resistncia, a 5 Regio Militar que controlava o

    Exrcito no estado do Paran, subordinada ao III Exrcito, tambm se

    sublevou, declarando adeso ao movimento golpista da mesma forma

    que as tropas sediadas em Santa Catarina, as quais aderiram ao comando

    do 5 Distrito Naval, cerrando fileiras com o levante. E se a 5 Zona

    Area, comandada pelo brigadeiro Othelo Ferraz, declarou-se fiel ao III

    Exrcito e Constituio, a Brigada Militar, que em 1961 foi de

    fundamental importncia na resistncia da Legalidade, agora, em 1964,

    colocava-se ao lado do governador Meneghetti e rejeitava a requisio da

    tropa feita pelo general Telles.

    Apesar da forte mobilizao popular e do controle de boa parte

    do Rio Grande do Sul, o presidente Goulart avaliou que no teria

    condies de resistir ao Golpe, dadas as condies militares existentes.

    Recusou-se, por sua vez, a distribuir armas populao que estava

    disposta a resistir, como fizera Brizola em 1961. Logo a seguir, agradeceu

    publicamente a lealdade do povo gacho e das foras do III Exrcito na

    defesa da legalidade e da democracia. Ao final da manh do 2 de abril,

    voou de Porto Alegre para o exlio no Uruguai, de onde no retornaria em

    vida, tornando-se o nico presidente brasileiro a morrer fora do pas.

    Anunciada a vitria do Golpe, os sediciosos desencadearam

    "aes de limpeza". Mesmo assim, durante os dias 3 e 4 de abril,

    18 Correio do Povo, Porto Alegre, 2 abr. 1964.

    48

  • ocorreram movimentos de resistncia, mas, como amostragem do que

    viria a seguir, foram duramente reprimidos. Com o controle da situao,

    Meneghetti voltou para Porto Alegre junto com o novo comandante

    nomeado para o III Exrcito, o general Poppe de Figueiredo. Os

    apoiadores e partidrios de Meneghetti, ento, comearam a aparecer e

    foi organizada a "festa da vitria da democracia", consubstanciada num

    comcio realizado pelo governador e pelas autoridades militares. O

    arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, a maioria da imprensa

    e as entidades empresariais manifestaram apoio reorganizao e

    "limpeza" da nao.

    Imediatamente aps o Golpe, a nova fase poltica, que marcaria o

    Brasil, comeou a tomar contornos. Centenas de pessoas foram presas,

    inclusive o prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, mesmo sob

    veementes protestos de vereadores e deputados. Leonel Brizola teve de

    fugir e se esconder. Ministros de Goulart, lideranas de esquerda e

    opositores do Golpe foram presos. A regio do Vale do Rio dos Sinos foi

    colocada sob interveno militar, com vrias pessoas presas, a fim de

    evitar "desordens". Em nvel nacional e estadual, teve incio o perodo de

    acusaes, expurgos e perseguies polticas. O clima de triunfalismo dos

    golpistas era evidente. Sob os louros e louvores de uma pretensa "nova

    democracia" iniciava-se, assim, a ditadura civil-militar de Segurana

    Nacional.

    O Golpe de Estado contra o governo do presidente Joo Goulart

    s pode ser compreendido dentro do contexto histrico da Guerra Fria e

    da polarizao poltico-ideolgico dela decorrente. A compreenso do

    Golpe s pode ser efetiva se percebermos a complexa luta poltica entre os

    dois projetos de sociedade naquele momento: o projeto nacional-

    reformista e o liberal-conservador. Diante da poltica de reformas,

    resposta parcial s demandas de uma populao historicamente

    49

  • esquecida e de um projeto de pas autnomo e soberano, os setores

    dominantes, atravs dos seus mais diversos mecanismos de dominao, e

    o capital internacional a eles associados, desestabilizaram e conspiraram

    abertamente contra a administrao Goulart. De qualquer forma,

    independentemente das contradies ou dos equvocos desta

    administrao e da radicalizao das esquerdas, houve um Golpe de

    Estado que foi perpetrado pelo amplo e variado campo da direita. Em

    nome do capital, da propriedade privada, da tradio, da famlia e do

    mundo ocidental, um governo democraticamente eleito foi derrubado, a

    Constituio virou letra morta, atos institucionais foram impostos,

    partidos polticos foram proibidos, o Congresso foi depurado, eleies

    foram canceladas, milhares de cidados foram vtimas de represso

    estatal e expurgos, censura, prises polticas, tortura e desaparecimentos

    se tornaram marcas profundas de um regime discricionrio que imergiu o

    Brasil em uma longussima noite... uma noite de 21 anos de arbtrio e

    autoritarismo.

    50

  • Assim como os bravos farroupilhas lutaram dez anos sem esmorecer, os gachos tambm sabero lutar at a vitria final, oferecendo seu sangue generoso pela causa da Ptria e a Constituio. Soldados e oficiais do bravo terceiro exrcito, soldados e oficiais da gloriosa Brigada Militar! A vs apelo neste momento para que participeis da nossa luta, irmanando-nos aos bravos companheiros de Minas, Gois, Mato Grosso, So Paulo e de todo o norte, que neste momento marcha para libertar a nossa Ptria da demagogia, da inflao e da misria poltica em que nos encontramos.Fragmento do Manifesto de Ildo Meneghetti, em Passo Fundo, dia 1 de abril de 1964

    Esse apelo aos gachos foi pronunciado pelo governador do

    estado do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, no dia 1 de abril de

    1964. Meneghetti j havia sido governador entre 1955 e 1959 e foi eleito

    para um segundo mandato em 1962. Representava as foras

    conservadoras no Estado, capitaneadas pelos partidos da Unio

    Democrtica Nacional (UDN), o Partido Libertador (PL) e o Partido

    Social Democrtico (PSD). Desde 1945, o principal enfrentamento

    poltico, ideolgico e partidrio no Rio Grande do Sul desenrolava-se

    entre os "trabalhistas", liderados por Leonel Brizola, com filiao ao

    Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e os "conservadores", liderados por

    O GOLPE DE 1964: RIO GRANDE DO SUL, "CELEIRO" DO BRASIL

    Claudia Wasserman*

    * Professora do Departamento de Histria e dos PPG-Histria e Relaes Internacionais/UFRGS.

    51

  • Ildo Meneghetti. Foram quatro embates eleitorais desde 1950 at 1962, a

    ltima eleio estadual do perodo democrtico. Entre 1951 e 1955, foi

    governador do estado Ernesto Dornelles, que representava o

    trabalhismo; entre 1955 e 1959, Ildo Meneghetti, representante dos

    conservadores, teve seu primeiro mandato no governo estadual; e, entre

    1959 e 1963, foi a vez de Leonel Brizola, lder dos trabalhistas, ocupar o

    governo do estado. A conspirao que preparou o golpe de 1964 comeou

    com a vitria de Ildo Meneghetti nas eleies estaduais de 1962.

    As eleies estaduais de 1962 foram como um divisor de guas na

    histria regional da ditadura civil-militar brasileira. Depois de negociada

    a soluo parlamentarista para a posse de Joo Goulart, o desfecho da

    crise foi praticamente transferido para os resultados eleitorais nos

    estados, em 1962. As campanhas de candidatos anti-Jango foram

    financiadas pelos Estados Unidos, atravs da Aliana para o Progresso,

    num valor aproximado de quatro milhes de dlares, e por intermdio do

    Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD), que teria investido

    aproximadamente dois milhes de dlares em candidaturas de deputados

    e governadores em vrios Estados, inclusive no Rio Grande do Sul.

    O Rio Grande do Sul apresentava-se como particularmente

    importante nas disputas polticas nacionais por causa da liderana de

    Leonel Brizola. Alm de ter sido responsvel pela campanha da

    Legalidade (1961), que permitiu a posse de Joo Goulart depois da

    renncia de Jnio Quadros, Brizola teve um governo (1959-1963)

    marcado pela nacionalizao e estatizao de empresas estrangeiras

    (telefonia, eletricidade e transportes), por assentamentos rurais e por

    vultuosos investimentos na educao pblica e nas reas estratgicas para

    o desenvolvimento econmico da regio. Brizola representava as foras

    nacionalistas do Pas, uma vertente poltica que preconizava o

    52

  • desenvolvimento autnomo do capitalismo brasileiro e que era

    hostilizada pelos defensores da integrao econmica do Pas aos centros

    hegemnicos do capitalismo.

    Ao lado dos nacionalistas estavam as classes populares e os

    partidos de esquerda, inclusive o Partido Comunista Brasileiro (PCB). 1 Por isso, a Doutrina de Segurana Nacional (DSN), que recomendava

    resguardar o Ocidente da ameaa comunista, no distinguia entre aqueles

    que eram socialistas de fato e os defensores do nacional-

    desenvolvimentismo. Mercedes Cnepa, em seu estudo sobre os partidos

    e a representao poltica no estado, observa a "tentativa de alguns

    deputados (PSD) em estabelecer ligaes de Brizola e de algumas

    lideranas do PTB [...] com o 'movimento bolchevista internacional',

    alertando ao Rio Grande do Sul e ao Pas do perigo representado por

    falsos democratas que se utilizavam de postos de comando para promover 2o caos social".

    O golpe de 1964 foi desferido supostamente contra o

    comunismo. Mas, alm dos comunistas, alvos dos Estados Unidos e dos

    seus aliados no contexto da Guerra Fria, o golpe tambm foi desferido

    contra o governo de Joo Goulart e contra os polticos que defendiam o

    projeto nacionalista, como o ex-governador do Rio Grande do Sul

    Leonel Brizola, e o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, cujo

    apoio a Francisco Julio, fundador das Ligas Camponesas, era visto como

    inadmissvel pelas foras conservadoras.

    1 A Doutrina de Segurana Nacional pode ser definida como um projeto intelectual produzido a partir dos Estados Unidos e reinterpretado pelos setores conservadores das elites civis e militares da Amrica Latina, que serviu para justificar os golpes de Estado nas dcadas de 1960/70.2 CNEPA, Mercedes Maria Logurcio. Partidos e representao poltica: a articulao dos nveis estadual e nacional no Rio Grande do Sul (1945/ 1965). Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2005. p. 299.

    53

  • Neste sentido, no que tange aos estudos sobre a ditadura, no

    mais possvel ignorar o papel das diversas foras estaduais brasileiras no

    golpe de 1964. Est mais do que na hora de ultrapassarmos o estgio da

    generalizao em nossos estudos sobre a ditadura civil-militar

    implantada a partir de 1964 no Brasil e nos voltarmos para anlises

    especficas das diversas regies do Pas a partir dos estados. O Rio

    Grande do Sul teve um papel bastante importante e pouco estudado at

    hoje no desenrolar dos acontecimentos que culminaram com a deposio

    de Goulart e o sucesso do golpe civil-militar de 1964.

    O fato de presos polticos serem tratados pelos guardas em

    prises e quartis do Rio Grande do Sul como "tupamaros" exemplifica a

    necessidade de aprofundamento das pesquisas regionais a respeito do

    perodo. O exemplo fornecido por Jorge Fischer Nunes, no livro O riso

    dos torturados. Em suas memrias, o autor conta sobre um episdio no

    qual um tenente queria encerrar uma conversa com um preso e teria dito:

    "Tupamaro bom, tupamaro morto", ao que podemos estabelecer uma

    longnqua conexo com a frase do general Philip Sheridan, que, ao

    participar do processo da conquista do Oeste dos Estados Unidos, no

    sculo XIX, teria dito: "os nicos ndios bons que j vi estavam mortos".

    Assim como nos Estados Unidos tratava-se da conquista de uma

    fronteira, no caso do Rio Grande do Sul tambm estvamos diante de

    uma situao em que a proximidade com o Uruguai provocava a confuso

    entre as denominaes dos militantes, guerrilheiros e revolucionrios de

    ambos os lados. Esse exemplo singelo retrata bem a pertinncia de

    estudos regionais para o caso da ditadura civil-militar implantada no Pas

    a partir de 1964.

    54

  • O ltimo governador do estado eleito atravs de sufrgio

    universal e democrtico foi Ildo Meneghetti, apoiado por uma sigla que

    reunia todos os partidos conservadores do estado, a Ao Democrtica

    Popular (ADP). O conservador Meneghetti assumia o comando do

    Executivo estadual, enquanto o Executivo federal se encontrava nas mos

    do PTB de Jango e Brizola. Por isso, o governador do Rio Grande do Sul

    conspirou para derrubar Joo Goulart desde o primeiro dia de seu

    mandato, em maro de 1963.

    O secretrio de Segurana de Meneghetti, deputado udenista

    Poty Medeiros, mantinha encontros sistemticos com o comandante do 3III Exrcito, general Benjamim Galhardo, e com o general comandante

    da 6 Diviso, Adalberto Pereira dos Santos, que em 1973 seria vice-

    presidente do general Ernesto Geisel. O Crculo Militar, comandado

    pelo coronel Ib Ilha Moreira, que se tornou secretrio da Segurana de

    Meneghetti depois do golpe, tambm fazia parte da conspirao que se

    reunia em um apartamento alugado na Av. Salgado Filho. O

    relacionamento entre civis e militares conferiu ao ato golpista,

    posteriormente, uma significativa coeso dos dois ambientes, ao menos,

    entre os setores reacionrios de um e outro meio.

    No final de 1963, em 14 de dezembro, Meneghetti se posicionou

    publicamente atravs de um manifesto, onde alertava para "os riscos da

    comunizao do Pas", pela fragilizao do quadro poltico e a conivncia

    de Jango com os comunistas. Mais contundente que o Manifesto do

    governador foram as respostas que alguns deputados da base aliada a

    3 Em artigo sobre o Servio Federal de Informaes e Contrainformao (Sfici), Wilson Machado Tosta Jnior faz a seguinte observao sobre o general: "o Conselho de Segurana Nacional, a cuja Secretaria-Geral era subordinado o Sfici, se ops nomeao de um oficial: o general Benjamin Galhardo, em 1963, para o Sul do Pas. Aconselhado pelo ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, o prprio Goulart foi contra a opinio do CSN e o nomeou para o posto. Segundo Corseuil disse a Carvalho, "a escolha era a pior do mundo" e, se em lugar de Galhardo tivesse sido nomeado o general Ladrio Telles, "o III Exrcito no teria se revoltado".

    55

  • Meneghetti deram nos dias seguintes. Um trecho da carta da bancada da

    UDN, lida na Assembleia Legislativa do estado pelo deputado Artur

    Banchini, constitui exemplo do clima no Rio Grande do Sul:

    Quando assistimos estarrecidos desenvoltura com que os esquerdistas ameaam impunemente as instituies e a tranqilidade da famlia brasileira, querendo, a pretexto de decantadas reformas, implantar no solo ptrio o regime fidelista, a palavra corajosa repulsa do governante rio-grandense ostensiva conspirao em marcha o toque de alerta aos democratas para que, unidos, se apresentem para luta, em defesa das instituies democrticas e das tradies

    4crists de nossa terra.

    Desde o incio do governo, Meneghetti teve o apoio da maioria

    do Legislativo a partir de um acordo realizado logo no comeo do ano,

    fruto de uma coalizo parlamentar que se propunha a lutar contra a 5bancada do PTB. O apoio parlamentar auxiliou nas medidas repressivas

    e autoritrias do governante que visava conter a mobilizao popular

    estimulada pelo governo anterior de Leonel Brizola. A Brigada Militar

    foi atuante e conivente com o poder Executivo estadual na represso aos

    movimentos populares rurais e urbanos. Um episdio exemplar foi a

    represso ao acampamento do movimento dos agricultores sem-terra em

    Passo Feio-Nonoai, no dia 4 de fevereiro: os sem-terra foram expulsos,

    seus ranchos incendiados e as lideranas sindicais foram presas. Depois

    deste episdio, muitos outros se seguiram dentro dos mesmos padres

    repressivos, na direo de outros acampamentos em diversas regies do

    estado, mas tambm contra os sindicatos urbanos, movimentos de

    trabalhadores contra os aumentos de passagens de nibus, movimento

    estudantil, entre outros. Neste sentido, Meneghetti antecipava, em nvel

    4 Artur Banchini, Anais da Assembleia Legislativa, v. 172, p. 220.5 CNEPA, op. cit., p. 393.

    56

  • regional, um modelo de comportamento repressivo na direo dos

    movimentos sociais que se repetiria a partir de 1964 no resto do Pas.

    No incio do ano de 1964, a situao do Rio Grande do Sul era

    to tensa quanto a conjuntura do restante do Pas, com o agravante da

    existncia de uma bancada parlamentar pr-Jango bastante significativa

    no estado, o que representava crticas contundentes a cada ato repressivo

    do governo estadual. Denncias da iminncia de golpe contra o governo

    Goulart, por exemplo, foram constantes neste comeo de 1964 e partiam

    do prprio governo do estado. Depois do Comcio da Central do Brasil,

    realizado no Rio de Janeiro no dia 13 de maro, sob os auspcios de Joo

    Goulart e que reuniu todas as foras do Pas favorveis s reformas de

    base, o governador Ildo Meneghetti encontrou-se em Porto Alegre com

    os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, e de So Paulo,

    Adhemar de Barros, para articular uma ao poltica contra o governo

    federal.

    Outro fator que parecia pesar bastante na diviso poltica dos

    gachos estava relacionado questo da economia do estado. O Rio

    Grande do Sul vinha enfrentando uma baixa produtividade, alm de

    dificuldades estruturais, decorrentes da escassez de transportes, energia e

    comunicaes. A atividade agropastoril sofria com os melhores

    rendimentos do centro do Pas, onde o setor era mais desenvolvido

    tecnologicamente. O xodo rural tambm comeava a criar problemas na

    precria estrutura urbana gacha, alm de refletir questes relacionadas

    concentrao de terras e reforma agrria.

    Aliado aos problemas rurais, o desenvolvimento da indstria, do

    comrcio e dos servios, ainda que em ndices inferiores ao padro

    nacional, tornava possvel a organizao dos trabalhadores industriais e

    de servios, como professores e policiais, no sentido de elaborarem suas

    57

  • reivindicaes e de realizarem greves e manifestaes. Estes

    trabalhadores pressionavam os representantes da sociedade a dirigirem

    suas aes em prol de medidas progressistas. O PTB de Brizola

    encampava estas reivindicaes e, mesmo que nem toda movimentao

    desses setores significasse necessariamente uma adeso a qualquer ideal

    mais progressista, revolucionrio ou "comunista", esta sinalizao foi

    suficiente para servir de pretexto aos golpistas de que estava na hora de

    bloquear estas atividades reivindicatrias, consideradas subversivas.

    Alguns outros episdios revelam o ambiente social e poltico no

    comeo dos anos 1960 no Rio Grande do Sul, tais como: a recusa do

    comando militar do Exrcito do estado em receber a visita de uma misso

    comercial sovitica na Base Area de Canoas; a vinda de Francisco Julio

    ao Estado, em 1961, e a polmica que se criou com o cardeal Dom

    Vicente Scherer a respeito da reforma agrria; a intensa atividade cultural

    de contedo social em Porto Alegre, como aquelas realizadas no Clube de

    Cultura e pelo Teatro de Equipe, assim como os movimentos de

    estudantes do Colgio Estadual Jlio de Castilhos (o "Julinho") e da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); a formao dos

    "Grupos de Onze Companheiros" de Brizola, para defender as reformas

    de Jango; o descontentamento de comandantes militares com a quebra da

    disciplina e com o incitamento "desordem" social, com destaque para o

    general Mouro Filho, que fora comandante da mesma unidade de Santa

    Maria que o general Poppe de Figueiredo sublevaria contra Jango, em

    1964; os encontros ocorridos entre o mesmo general Mouro Filho e a

    FARSUL para apoiar a candidatura de Meneghetti nas eleies estaduais

    de 1962; as relaes do governo Meneghetti com o embaixador

    estadunidense Lincoln Gordon. Isso tudo s para ficar em alguns

    exemplos relacionados ao Rio Grande do Sul, eventos que testemunham

    no estado gacho a repercusso de questes que ecoavam em todo o Pas.

    58

  • O Rio Grande do Sul tambm no ficou de fora das articulaes

    do dia do golpe, quando Mouro Filho, comandante da IV Regio

    Militar, deslocou suas tropas de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro,

    instituindo o primeiro ato do golpe de 1964 e obtendo apoio do 1 e 2

    Exrcitos. No mesmo dia, o governador Ildo Meneghetti deu incio

    Operao Farroupilha: na tarde de 31 de maro, reforou a segurana do

    Palcio Piratini e isolou a Praa da Matriz para evitar manifestaes

    populares; decretou feriado bancrio e escolar at o dia 3 de abril;

    requisitou todas as emissoras de rdio para evitar outra rede da

    Legalidade e se dirigiu para Passo Fundo, onde ficaria durante trs dias e

    de onde lanaria o manifesto de apoio ao golpe.

    O III Exrcito estava dividido e os clculos militares indicavam

    possibilidades de luta intensa, devido principalmente influncia do ex-

    governador do estado Leonel Brizola. O general Ladrio Pereira Teles,

    comandante do III Exrcito, leal ao presidente, determinou que suas

    tropas entrassem em "prontido rigorosa". Tudo parecia indicar que um

    ncleo de oficiais legalistas comandaria a reao contra os golpistas. A

    ao militar "golpista" foi, entretanto, bastante significativa. Teve como

    chefes principais os generais Poppe de Figueiredo, da 3 Diviso de

    Infantaria, em Santa Maria; o general Adalberto Pereira dos Santos, que

    assumiu o comando militar em Cruz Alta; o general Joaquim

    Camarinha, comandante da 2 Diviso de Cavalaria, em Uruguaiana, e o

    general Hugo Garrastazu, comandante da 3 Diviso de Cavalaria, em

    Bag.

    A capital do estado, Porto Alegre, seria o ltimo ponto de parada

    do presidente Joo Goulart antes de deixar o Brasil, onde esteve reunido

    com Brizola, Ladrio Pereira Telles e outros oficiais fiis ao governo.

    Nesta reunio, Jango ouviu avaliaes a respeito da situao e da

    59

  • convenincia de resistir ao golpe ou de partir para o exlio no Uruguai.

    Jango acabou optando por deixar o Brasil e evitar assim uma possvel

    guerra civil.

    Na madrugada do dia 1 de abril de 1964, o governador Ildo

    Meneghetti transferiu a capital para Passo Fundo e foi de l que enviou

    aquela mensagem aos gachos. A mensagem ainda completava: "Eu no

    poderia, nesta hora, fugir ao meu dever. Frente aos atentados autonomia

    do estado do Rio Grande do Sul, frente ameaa clara e aberta de

    interveno, cujo processo est em marcha, s tenho um caminho, que

    incorporar-me queles que agora, em todo o Brasil, lutam para restaurar a

    Constituio e o Direito, livrando nossa Ptria de uma ditadura 6comunista". Meneghetti tentava evitar uma tentativa de sua deposio

    pelas foras de resistncia ao golpe, fiis ao presidente Joo Goulart, que

    se articulavam em Porto Alegre. Trs dias mais tarde, quando foi

    anunciado o exlio de Jango no Uruguai, Meneghetti voltou para Porto

    Alegre, escoltado por uma fora combinada da 3 Diviso de Infantaria

    do Exrcito, de Santa Maria, e por tropas da Brigada Militar.

    Ao longo dos trs dias, enquanto o governador esteve em Passo

    Fundo, o chefe de polcia Armando Prates Dias ficou como a principal

    autoridade da capital e responsvel por inibir as manifestaes populares.

    Dois pequenos protestos foram reprimidos. No dia 1, a Brigada teve que

    dispersar manifestantes nas proximidades do abrigo da Praa XV e, no

    dia 2 de abril, nas proximidades do Mercado Pblico. No dia 4 de abril, o

    Exrcito e a Brigada ocupavam ostensivamente as ruas do centro da

    capital. As mais consistentes manifestaes contra o golpe se

    concentraram defronte prefeitura de Porto Alegre, onde o prefeito da

    capital, Sereno Chaise, do PTB, prometia resistir. N