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cosmosecontexto.org.br http://www.cosmosecontexto.org.br/?p=1705 A construção do tempo: Tempo da transcendência PALESTRA / Leonardo Boff* // - – - – - “Ao falar sobre tempo de transcendência é necessário começar definindo o tempo. Quero defini-lo como o grande poeta argentino, Martín Fiero, o entende. Ele diz que o tempo é a tardança daquilo que está por vir. Creio que a transcendência é, talvez, o desafio mais concreto e escondido do ser humano. Porque nós, seres humanos, homens e mulheres, na verdade somos essencialmente seres de protestação, de ação, de protesto. Desbordamos todos os esquemas, nada nos encaixa. Não há sistema militar mais duro, não há nazismo mais feroz, não há repressão eclesiástica mais dogmática que possam enquadrar o ser humano. Sempre sobra alguma coisa nele. Porque com seus pensamentos ele habita as estrelas, rompe todos os espaços. Por isso, nós, seres humanos, temos uma existência condenada a abrir caminhos sempre novos e sempre surpreendentes. O que é anterior e o que subjaz às expressões imanência e transcendência? É a experiência do próprio ser humano como ser histórico, um ser que está se fazendo continuamente. É o que chamamos de experiência originária. Quando falamos filosoficamente em existência, falamos ex-istência . Estamos sempre nos projetando para fora, construindo o nosso ser. Nós não o ganhamos pronto, nós os moldamos mediante a nossa liberdade, mediante os enfrentamentos e intimidações do real. Nessa experiência emerge aquilo que somos: seres de imanência e de transcendência, como dimensões de um único ser humano. Imanência e transcendência não são aspectos inteiramente distintos, mas dimensões de uma única realidade que somos nós. Possuímos essa dimensão de abertura, de romper barreiras, de superar interditos, de ir para além de todos os limites. É isso que chamamos transcendência, essa é uma estrutura de base do ser humano. A dimensão da transcendência não tem nada a ver com as religiões, embora elas procurem manipular a transcendência. Elas afirmam, Deus está na transcendência, habita uma luz inacessível, e nós temos a sua revelação, a chave para falarmos Dele. Isso é pura metafísica, uma tradução da experiência originária, mas não A Experiência Originária. O que é o ser humano então? É um ser de abertura, é um ser concreto, situado, mas aberto. É o nó das relações, voltado em todas as direções. Nem mesmo nosso moderno sistema globalizado dentro do pensamento único, que afirma não haver alternativa fora dele e reforçado pelo fundamentalismo da economia de hoje que garante que só existe um modo de produção capitalista global. Essa concepção supõe um conceito pobre do ser humano, transforma-o, no fundo, em um mero consumidor, que só tem boca para consumir, mas não possui cabeça para projetar. Onde fazemos cotidianamente a experiência da transcendência? Considero que há alguns eixos existenciais pelos quais todos nós passamos e onde fazemos uma experiência de transcendência límpida, cristalina. Para mim, a experiência mais fundamental é a do enamoramento. A experiência da transcendência também se manifesta de modo especial na cultura popular.

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A construção do tempo Tempo da transcendência

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cosmosecontexto.org.br http://www.cosmosecontexto.org.br/?p=1705

A construção do tempo: Tempo da transcendência

PALESTRA /

Leonardo Boff* //

- – - – -

“Ao falar sobre tempo de transcendência é necessário começar definindo o tempo. Quero defini-lo como ogrande poeta argentino, Martín Fiero, o entende. Ele diz que o tempo é a tardança daquilo que está por vir. Creioque a transcendência é, talvez, o desafio mais concreto e escondido do ser humano. Porque nós, sereshumanos, homens e mulheres, na verdade somos essencialmente seres de protestação, de ação, de protesto.

Desbordamos todos os esquemas, nada nos encaixa. Não há sistema militar mais duro, não há nazismo maisferoz, não há repressão eclesiástica mais dogmática que possam enquadrar o ser humano. Sempre sobraalguma coisa nele. Porque com seus pensamentos ele habita as estrelas, rompe todos os espaços. Por isso,nós, seres humanos, temos uma existência condenada a abrir caminhos sempre novos e sempresurpreendentes.

O que é anterior e o que subjaz às expressões imanência e transcendência?

É a experiência do próprio ser humano como ser histórico, um ser que está se fazendo continuamente. É o quechamamos de experiência originária. Quando falamos filosoficamente em existência, falamos ex-istência.Estamos sempre nos projetando para fora, construindo o nosso ser. Nós não o ganhamos pronto, nós osmoldamos mediante a nossa liberdade, mediante os enfrentamentos e intimidações do real.

Nessa experiência emerge aquilo que somos: seres de imanência e de transcendência, como dimensões de umúnico ser humano. Imanência e transcendência não são aspectos inteiramente distintos, mas dimensões de umaúnica realidade que somos nós.

Possuímos essa dimensão de abertura, de romper barreiras, de superar interditos, de ir para além de todos oslimites. É isso que chamamos transcendência, essa é uma estrutura de base do ser humano.

A dimensão da transcendência não tem nada a ver com as religiões, embora elas procurem manipular atranscendência. Elas afirmam, Deus está na transcendência, habita uma luz inacessível, e nós temos a suarevelação, a chave para falarmos Dele. Isso é pura metafísica, uma tradução da experiência originária, mas não AExperiência Originária.

O que é o ser humano então? É um ser de abertura, é um ser concreto, situado, mas aberto. É o nó das relações,voltado em todas as direções.

Nem mesmo nosso moderno sistema globalizado dentro do pensamento único, que afirma não haver alternativafora dele e reforçado pelo fundamentalismo da economia de hoje que garante que só existe um modo deprodução capitalista global. Essa concepção supõe um conceito pobre do ser humano, transforma-o, no fundo,em um mero consumidor, que só tem boca para consumir, mas não possui cabeça para projetar.

Onde fazemos cotidianamente a experiência da transcendência?

Considero que há alguns eixos existenciais pelos quais todos nós passamos e onde fazemos uma experiência detranscendência límpida, cristalina.

Para mim, a experiência mais fundamental é a do enamoramento.

A experiência da transcendência também se manifesta de modo especial na cultura popular.

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Mas a transcendência se dá principalmente no encontro com as pessoas. Às vezes acontece de você estar numacrise existencial, sem rumo, e encontra alguém que tem palavras seminais, que lhe acende uma luz, que colocaa mão no seu ombro, que aponta um caminho.

Há também uma pseudotranscendência que a cultura atual promove de forma inflacionada. Todo esse universodo marketing, do show business, do entretenimento nacional e mundial são campos onde se produz experiênciasde pseudotranscendência. A maior dessas pseudo-experiências é a droga.

Somos todos seres desejantes. Talvez o desejo seja nossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, maisprofunda. A grande chave da pseudotranscendência é manipular nossa estrutura de desejo, é canalizar todanossa potencialidade de desejo para uma coisa limitada. É então que nos frustramos, porque o desejo quer otodo e só alcançamos a parte.

Transcendência não é algo que temos ou não temos. Todos têm. Precisamos transformar essa dimensão detranscendência num estado permanente de consciência e num projeto pessoal e cultural.

Por fim, qual é a singularidade do cristianismo em face dessa experiência universal da transcendência? Aexperiência que o cristianismo traz não é propriamente a transcendência. A tradição judaico-cristã fala emtranscendência. “Somos convidados não apenas a superar e voar para cima, mas, fundamentalmente, a descere a buscar o chão.”

Para começar, não quero deixar de dizer uma palavra de agradecimento por esses quatros anos de semináriosrealizados aqui no Planetário onde se criou, efetivamente, um centro de excelência do pensamento mais aberto,mais criador, de um pensamento que vem das várias procedências das buscas humanas. Faço votos que essaherança não se perca, porque já é um patrimônio dessa cidade.

E quero agradecer muito ao Planetário que sempre manteve esse espaço aberto a essas discussões, eu mesmojá tendo participado várias vezes, e é um dos poucos lugares onde sinto um axé fantástico, e me inspiro paraalém daquilo que me preparo.

Bom, dito isso, queria hoje refletir com vocês, e se o espírito criador nos auxiliar, também fazermos umaexperiência de espiritualidade. Porque o tema é esse, o tema é espiritualidade no contexto da nossa cultura, dosdramas que estamos vivendo no nível mundial, e uma reflexão que quer captar a urgência da espiritualidade.

Porque nós vivemos certas situações dramáticas hoje e circulam na nossa cultura mitos como o da exterminaçãoda espécie, da liquidação da biosfera, da ameaça do nosso futuro. Em momentos assim, dramáticos, o serhumano mergulha na profundidade do ser e se coloca questões básicas: o que estamos fazendo nesse mundo?Qual é o nosso lugar? O que podemos esperar para além dessa vida? E como devemos agir para garantirmosum futuro que seja esperançoso para todos os seres humanos?

É nesse contexto que devemos colocar a questão da espiritualidade, pois ela é uma das fontes primordiais deinspiração da esperança humana, da geração de um sentido pleno, e da capacidade do ser humanoautotranscender. O ser humano só é humano sendo super-humano. Isso que nós dizíamos numa palestrarealizada anteriormente aqui – O Ser Humano como Projeto Infinito. Palestra que foi muito bem acolhida pelaeditora Sextante, e que transcrevi num livro cujo resumo abre essa nossa conversa de hoje.

Bem, voltemos ao nosso tema. Todos falam de espiritualidade, esse é um tema recorrente da nossa cultura nãosó no âmbito das religiões, que é seu lugar natural. Mas no âmbito das buscas humanas, dos jovens, dosintelectuais, de grandes cientistas, e, por surpresa nossa, de grandes empresários. Além do povo, que semprevive uma dimensão mística, espiritual, como fator natural à sua própria cultura.

Tenho falado nos últimos tempos, nos últimos dois, três anos, para grupos daqui e de fora do país, ligados aogrande poder econômico, executivos de grandes empresas, que colocam como tema questões como mudançassociais, novos paradigmas, produtividade e espiritualidade. Às vezes, começo dizendo que no fim da vida até odiabo costuma virar sacristão. A crise deve ser realmente muito grande para que grandes empresários demultinacionais, empresas das maiores desse país, coloquem-se em questões de espiritualidade. Significa que osbens materiais que eles produzem, que as lógicas produtivas que eles incentivam e que o universo de valores

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que inspira suas práticas não deve estar suficiente. Há um vazio profundo, um buraco imenso dentro dessesseres que suscita questões como essa da espiritualidade.

Embora sempre devamos manter nosso espírito crítico, porque com espiritualidade também se pode fazerdinheiro e às vezes há verdadeiras empresas que manejam os discursos da espiritualidade para criar um exércitode seguidores, e muitas vezes falam mais aos bolsos deles do que aos seus corações, mas pouco importa. O fatoé que a nível mundial, independentemente de que países sejam, há uma demanda importante por valores nãomateriais e por uma redefinição do ser humano. Na medida em que os seres humanos buscam sentido e,portanto, os valores que inspiram profundamente a vida, é natural que se sintam indignados com um destinopreviamente definido em termos políticos, pelos quais a humanidade está tendo que trilhar. É quando dizem: nósmerecemos um destino melhor e temos que beber de outras fontes para encontrar luz que ilumine o nossocaminho.

Voltando ao tema da espiritualidade, certa vez perguntaram ao Dalai Lama o que era espiritualidade e elerespondeu: espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança interior.

E essa pessoa perguntou novamente: mas se eu praticar a religião e observar as tradições, tudo isso não éespiritualidade?

E o Dalai Lama comentou: pode ser espiritualidade, mas se isso não produz em você nenhuma transformaçãonão é espiritualidade. Um cobertor que não é mais um cobertor, porque ele não aquece, ele deixa de ser cobertor.

Então atalhou a pessoa: a espiritualidade muda?

E o Dalai Lama disse: como diziam os antigos, os tempos mudam e as pessoas mudam com eles. O que ontemfoi espiritualidade hoje não precisa mais ser. O que comumente se chama de espiritualidade não é outra coisaque a lembrança de antigos caminhos e métodos religiosos.

E arrematou: corte de tal maneira um manto para que ele se ajuste aos homens, não corte os homens para queeles se ajustem ao manto.

Desse pequeno diálogo me parece que o principal que devemos reter é isto: que a espiritualidade é aquilo queproduz dentro de nós uma mudança. E não necessariamente a religião produz dentro de nós uma mudança.

Dessa forma, o primeiro que temos que distinguir, mas também não separar, é religião e espiritualidade. Aliás, odiálogo acima mostra que ele o fez de uma forma extremamente brilhante nesse livro que está entre os bestSellers não só no Brasil mas no mundo inteiro: Uma ética para o movo milênio, sua santidade o Dalai Lama . Éum livro que merece ser lido.

Creio que hoje há uma confusão de ideias muito grande ao redor do tema da espiritualidade e da religião, e aoredor do tema da ética e da moral.

Todos falam disso, mas não temos ideias claras sobre esses temas. Nunca vi alguém com tanta claridade e comtanto poder de convencimento falar dessas realidades como Dalai Lama. Eu o tenho escutado muitas vezes pelomundo afora. Por três vezes participei das mesmas mesas que ele e, então, pudemos conversar rapidamente, eeu o considero uma das figuras mais messiânicas desse final de século. Porque é uma das pessoas que maisconsola os aflitos, que mais gera sentido aos desesperados e o que mais prega a paz como o diálogo entre asreligiões, como abraços entre os povos, se quisermos salvar a humanidade como família, e garantir um futuropara nossa casa comum, que é o planeta. Ele corre pelo mundo todo pregando isso.

Certa feita, em Berlim, numa conversa informal ele me dizia: “olha Boff, eu acho que nós tibetanos que estamosno exílio, que perdemos nossa pátria, estamos realizando a vocação dos judeus quando perderam sua pátria eestavam no exílio babilônico, e foi no exílio babilônico que eles escreveram as escrituras judaicas e queespalharam o monoteísmo entre os povos, isto é, que Deus é único, e por isso é Deus de todos os povos”.

E ele disse que talvez o sentido espiritual do nosso exílio seja o de nós sermos obrigados a correr o mundo parafalar de espiritualidade, de paz entre os povos, de diálogos entre as religiões. E nós estamos fazendo isso com

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profundo empenho e grande humildade.

Acredito que Dalai Lama, mais que outros lideres espirituais, realiza isso com grande leveza, cheio de humor,mas, ao mesmo tempo, com uma linguagem que nasce do fundo do coração, por isso mesmo profundamenteverdadeira, profundamente convincente.

Então, a primeira diferenciação que cabe fazer é entre religião e espiritualidade. Nós conhecemos as religiões,nós habitamos as nossas religiões e as religiões são edifícios culturais grandiosos. O que primeiramente todareligião promete ao ser humano? Promete salvação, promete vida, promete eternidade e mostra o caminho parase chegar a essa eternidade, que é o caminho da reta doutrina. Ao elaborar doutrinas, mostra uma visão sobreDeus, sobre o céu, os caminhos da luz, sobre quem é o ser humano e o que se deve fazer nesse mundo.

Mas não só anuncia prédicas, acentua práticas. As religiões são fontes de uma ética, isto é, de comportamentos.E no caso do cristianismo os comportamentos são tão importantes que são eles que definitivamente salvam. Nãosão as prédicas, mas as práticas, e no budismo – e o Dalai Lama diz muitas vezes isto em seu livro –, da mesmaforma que o cristianismo, a salvação, o ingresso no nirvana e a transfiguração das pessoas humanas, só ocorrese elas conseguirem transformar toda a sua visão reta do mundo numa prática profundamente coerente, numaamorosidade para com o próximo, numa compaixão com todos os que sofrem, num sentido de responsabilidadepela vida dos outros, e numa vida de total despojamento para poder estar aberto a colher tudo o que vier darealidade. Se conseguirmos essa prática, então conseguimos construir um caminho que nos levainexoravelmente para aquilo que é o céu, que é o nirvana, que é a suprema realização do ser humano.

As religiões constroem edifícios teóricos que são as doutrinas; práticos, as morais; celebrativos, as liturgias e osritos, mas também artísticos, que são os grandes templos e catedrais. Talvez ninguém tenha construído templosmais fantásticos que o hinduísmo, na Índia, ou as grandes catedrais medievais, que são verdadeiras sumasteológicas. A música sacra, a arte pictórica, todas são formas de, pela arte, chegar a Deus. As religiões são, pois,uma das construções mais extraordinárias do ser humano e todas elas trabalham com o divino, com o sagrado,com o espiritual, mas elas não são o espiritual. Espiritualidade é outra coisa.

Porque as religiões podem substantivar, os poderes religiosos se articulam com outros poderes. Os poderesreligiosos podem ganhar hegemonia, como durante três séculos no Ocidente teve o cristianismo. E que talveztambém sejam os séculos de maior violência religiosa que o Ocidente conheceu, com cerca de dois milhões de‘bruxas’ que foram queimadas, os milhares silenciados e supliciados pela inquisição, as guerras religiosas de altadevastação.

As religiões podem substantivar-se, perder a fonte a partir de onde elas vivem. E de onde vivem as religiões? Senós pensarmos nos pais fundadores dos caminhos espirituais, pode ser um Buda, um Isaias, um Jesus Cristo,um São Paulo, ou pode ser, modernamente, um Luther King, um Gandhi. São sempre pessoas profundamentecarismáticas, que fizeram um mergulho fantástico no mistério do Ser, que tiveram e testemunharam o encontrocom a realidade última. Pessoas que se encontraram com Deus, e esse encontro modificou suas vidas, por issoelas tiveram uma profunda mudança interior.

Penso que Jesus, já que ele é a referência da nossa religião dominante, teve duas experiências de base e queestão como pilastras sustentando o cristianismo como religião. A primeira experiência é a de que ele se sentefilho de Deus, porque experimenta Deus como paizinho, como abá, como um pai que tem todas as característicasda mãe, porque é de infinita misericórdia, perdoa os ingratos e os maus. É o pai do filho pródigo, que olha nacurva da estrada para ver se o filho volta, e quando volta corre ao seu encontro e o cobre de beijos.

É um Deus que tem entranhas, por isso se comove disso, é um Deus que é mais pai do que mãe, e mais mãe doque pai, ou melhor, é uma mãe paternal, ou um pai maternal. E quem fala e chama Deus de pai, sente-se filho, eessa é a consciência de Jesus, e essa consciência abriu a todos nós a possibilidade de que cada um, pormenores que sejamos, possamos nos sentir também filhos e filhas de Deus que é a nossa suprema dignidade.

A segunda experiência é que Deus não atua indiferentemente no mundo, ele tem uma política na sua criação e aessa política ele chamou de Reino de Deus, que é aquela presença de Deus dentro do Universo, uma presençacósmica, comunitária, social, pessoal, na intimidade de cada pessoa humana, porque dentro de cada um de nós

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está o Reino de Deus. Ele é a presença transformadora de Deus, é a forma pela qual Deus se acercou a nós eveio buscar o que é seu, veio buscar seus filhos e filhas, veio resgatá-los, purificá-los e, por isso, transfigurá-los.

Então Jesus anuncia uma grande utopia, uma revolução absoluta, que é o Reino de Deus, que anuncia tentandoatualizar em todas as pessoas o fato de cada um ser filho e filha de Deus. Desse Deus libertador, que começapelos últimos, os pobres, os destituídos, e a partir daí engloba o universo inteiro.

Mas como se traduz essa experiência? Ao traduzir essa experiência, surge a religião, surgem os credos, portantoos quatros evangelhos; surge a ética, e então temos todas aquelas listas de obras boas e más, e de como deveser a ética cristã. Surge o sermão da montanha que é o resumo daquilo que o cristão se propõe a viver emtermos de comportamentos; surgem as celebrações, não mais aos sábados, mas aos domingos da ressurreição,as missas, o cultivo da memória dos mártires, a celebração das várias situações da vida quando nascemos,quando decidimos, quando casamos, quando morremos, quando adoecemos, isto é, a religião procura cobrirtodo o ser humano a partir dessa fonte originária.

O que conta em Jesus, portanto, é fundamentalmente a sua experiência – e nós somos herdeiros de Jesus – enão apenas se habitamos a instituição cristã (e ela pode ser muito contraditória), mas se nós tentarmoscontinuamente refazer a experiência de Jesus, entrarmos no seu movimento de nos sentirmos como filhos e filhasde Deus – e ao mesmo tempo olhar os outros também como filhos e filhas –, num ato vivo, como Deus nascendodentro de cada um e fazendo de cada mulher e de cada homem seus filhos e filhas.

Se a religião produzir continuamente essa experiência, ela se transforma em espiritualidade. Se ela nãotransforma a nossa interioridade, ela continua apenas religião, que pode ser usada, manipulada, pode ir paramídia, pode se tornar negócio, pode armar exércitos e convencer pessoas para certas causas. Mas se ela nãoreconduzir o ser humano continuamente à dimensão espiritual, ela pode ser o ópio do povo, pode se transformarnum fetichismo, e, mesmo com a religião, podemos pecar continuamente contra Deus. Por isso sábio é o profetae condutor de povos que foi Moisés ao dizer para não se usar o nome de Deus em vão. O segundo mandamentotalvez seja o mandamento contra o qual as religiões mais pecam, porque usam o nome de Deus para todas ascoisas.

Especialmente hoje, e isso é comum para as religiões midiáticas, dos cristianismos televisivos e mercadológicos,Deus é uma grande fonte de mobilização e de fazer dinheiro. Então, nós usamos o nome de Deus para osnossos interesses, não para o interesse de Deus, ou no interesse da natureza, mesmo do sagrado e do espiritual.

Gostaria de sistematizar rapidamente quais são as duas experiências básicas que a humanidade conhece e queestão por detrás da espiritualidade, sustentando os grandes edifícios religiosos que nós conhecemos nahumanidade.

Uma é do Ocidente e é a experiência de Deus, no qual captamos o todo. A outra é a experiência do Oriente, quecapta o todo e dentro do qual está Deus. São caminhos diferentes, mas ambos os caminhos sãocomplementares e estão na base de duas propostas espirituais que hoje, no encontro das civilizações, sãooferecidos aos seres humanos. E nós, cada um segundo a conaturalidade da sua experiência, escolherá qual é amais fecunda para ele. Não quero ser dogmático e dizer, por que somos do Ocidente dentro do qual se deu aexperiência cristã, ipso facto, que ela é a única .

Aqui, mais uma vez, volto ao Dalai Lama. Certa vez lhe fiz uma pergunta, não sem certa malicia, e ele deu umaresposta, com suprema sabedoria, que me impactou muito.

Perguntei a ele qual era a melhor religião. Ele fez uma pequena pausa, deu um sorriso, me olhou bem nos olhose disse: “A melhor religião é aquela que te faz melhor”. Eu que esperava que ele dissesse que era o budismotibetano, as religiões orientais, muito mais antigos do que o cristianismo, me surpreendi. E para sair daperplexidade, perguntei: e o que me faz melhor?

E ele disse: “Aquilo que te faz mais compassivo. E aí sentimos a ressonância tibetana, budista, taoista, aquilo quete faz mais sensível, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável, quem conseguir fazer isso de você,essa é a melhor religião”.

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Então não podemos dizer, como nosso contraente em polêmicas, o Cardeal Ratzinger, que o cristianismo, ipsofacto, tem o arsenal absoluto, completo e perfeito para caminharmos para Deus, dispensando qualquercolaboração das outras religiões.

Além de ser arrogante essa afirmação, ela é equivocada, porque todo o oceano não cabe no nosso copo, toda agrandiosidade de Deus não se exaure nos nossos discursos. Então, cada um é desafiado a dizer qual é ocaminho no qual desabrocha melhor a minha humanidade, onde eu possa ter um encontro mais radical comDeus e dar a ele o nome da minha referência. E ser realmente um ser de radiação que, junto com outros,possamos crescer e ter mais humanidade, mais perdão, mais capacidade para a inclusão de todos, para queninguém fique de fora do nosso mundo, da nossa comunidade e do nosso amor.

O caminho do Ocidente fundamentalmente foi marcado pela experiência judaico-cristã. Ela é centrada em umencontro com um Deus que aparece dizendo o seu nome, Javé – aquele que está aí com você e que teacompanha – e com o qual você estabelece um diálogo, e nesse diálogo de eu/tu é que cresce a profundidadehumana.

E foi a partir do tu que nós descobrimos o nosso próprio eu, que se sente envolto por essa realidade divina que éuma experiência fundamentalmente de encontro amoroso. Não é um encontro meramente intelectual, por queentão Deus caberia só na nossa cabeça. É um encontro na sua totalidade, na medida em que move a nossainterioridade, e nós caímos de joelho como Moisés ou como São Pedro. Nós dialogamos com Deus e queremosconhecer mais o outro, num processo de enamoramento.

Quando nos enamoramos por uma pessoa, tudo dela parece interessante. Desde o lugar onde ela nasceu, atéquem são os amigos, onde estudou, seus gostos, enfim, cada detalhe é importante, porque é nesse encontro quenós crescemos, nos extasiamos, e fazemos a experiência da nossa mais radical humanidade.

Então, voltando ao que dizia anteriormente, a experiência que o Ocidente fez é uma experiência de encontro comDeus, de encontro no amor. E quanto mais amamos uma pessoa, mais a queremos entender, nos sintonizar comela, e até mudamos nossos hábitos para que isso aconteça. Às vezes nem fazemos caso do tempo e dasdificuldades.

Quem leu os grandes místicos cristãos, como São João da Cruz, Santa Tereza, o Mestre Eckhart, por exemplo,já vivenciaram essa experiência. Ainda hoje estava lendo um pouco do Mestre São João da Cruz , onde eleapoliticamente diz: “Se encontrares aquele a quem eu amo digam a ele o quanto sofro, o quanto gemo, que eumorro de saudade dele”. Só é possível isso numa relação mística, numa relação de encontro, onde tambémsempre há o desencontro. Onde, por mais que nos encontramos e conhecemos a pessoa, nunca desvendamoscompletamente os mistérios, pois ele se vela e se revela, se dá e se retrai, por isso é um encontro de magias ede fascínio, onde entra muito cuidado e reverência. Onde ninguém pode atropelar porque um pequeno gestopode obnubilar toda a experiência do encontro.

A partir de Deus encontramos o todo, porque tudo está ligado a Ele. E o Cristianismo criou até uma expressãoque é o panteísmo – Deus está em todas as coisas e todas as coisas estão em Deus. Não é o panteísmo de todoindiferentemente a Deus, não é isso. É que nós descobrimos que Deus está presente em todas as coisas, quenão há distância para ele, que ele está na profundidade do nosso coração e por isso nós não estamos longe dele,porque nele nós vivemos, nele nós nos movemos, nele nós somos, como o ar que respiramos.

É aquilo que Teilhard de Chardin chamava meio de vida – Le moyen de vie . Nós estamos dentro de Deus e porisso nunca fugimos dele, nunca vamos à Deus porque estamos sempre dentro de Deus, e a tarefa da fé édescobrir esse Deus que está presente mas também oculto sobre mil sinais.

Então se Deus está em todas as coisas, se o universo é um grande sacramento, a matéria é sagrada, por que anatureza é espiritual? Porque é templo de Deus e o Universo não é indiferente a Deus, está no seu coração. OPapa atual (João Paulo II) diz muitas vezes isso e acho que é profundamente consolador que nos diga que nósnascemos de um ato amoroso de Deus, que nós estamos ancorados no coração de Deus.

Se nós traduzimos isso em uma doutrina, pode ser uma entre tantas outras. Mas se nós transformamos a

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doutrina em uma comoção do coração, então nós fazemos uma experiência de espiritualidade e uma experiênciade profunda libertação.

Por que temer se Deus está no nosso meio? Por que temer se nós estamos em suas mãos? Por que frear nossocoração se ele é habitado por Deus? A vida é leve, é um encantamento, é uma poesia, porque, como no cânticoespiritual de São João da Cruz, tudo pode falar de Deus, é a ovelha, a campina, é o ar, é a água, são outrosacenos de Deus, e quem vive essa experiência da fé viva, que não é mais doutrina, mas que é a comoção docoração.

Bem dizia Pascal: “Crer em Deus não é pensar Deus, crer em Deus é sentir Deus”. E quem sente Deus é ocoração, então, nosso desafio é como passar do catecismo, que está na nossa cabeça, para o coração, que estánosso sentimento.

São João, na primeira carta, diz tão bonito isso: “Aquele que nós tocamos, que nossos olhos viram, que nossosouvidos ouviram, esse nós vos comunicamos”. Então, é uma experiência de tocar, de sentir, de falar.

O cristianismo Ocidental fez essa experiência, e a partir daí sintetiza a realidade, como São Francisco de Assisque faz seu cântico de Irmão Sol e Irmã Lua, as irmãs doenças, a irmã morte, porque se tudo está dentro deDeus, nele estão também as coisas que não são alegres. Deus está tão presente na cruz como está naressurreição. Então a fé deve ser tão vigorosa que possa ver Deus até nas torturas dos campos de concentraçãonazistas. Isto não está fora de Deus, por mais terrível que isso possa parecer a uma inteligência instrumental eanalítica.

Como Tomás de Aquino diz: “Nós, cristãos, não entendemos o mal, mas cremos que Deus é tão poderoso quepode tirar do mal, um bem”. Porque se não fosse isso Deus não seria poderoso, e então podemos dizer: felizculpa pela qual caímos, porque experimentamos a misericórdia de Deus. E não é um Deus pequeno, como oSalmo 141 diz tão bem, Deus sabe do pó que nós fomos feitos e por isso sabe que nós somos frágeis e pecamosmuitas vezes, por isso a sua misericórdia não tem limites. O problema não é o pecado, é a misericórdia que tornapequeno o nosso pecado, por pior que seja.

Então a fé transfigura a partir dessa experiência do encontro, e a partir daí vão as muitas famílias espirituais quese alimentam desse encontro com Deus, de toda a mística do sufismo dos muçulmanos, e de tantos outrosmísticos, que têm a mesma estrutura que a tradição judaico-cristã, do antigo testamento, do novo testamento edos grandes místicos cristãos.

O Oriente fez outro caminho e de certa forma até mais grandioso do que o nosso, mais ancestral e maisabrangente. A experiência primeira que a pessoa, que o monge, o professante, e o caminho espiritual principalque o Oriente faz é o da unidade da realidade, da grandiosidade do universo, que as coisas não estão colocadasuma ao lado das outras, em justaposição, mas que todas elas estão sincronizadas, conectadas. Uma grandeunidade de toda realidade, mas uma unidade complexa, feita de muitos níveis, de muitos seres diferentes, mastodos eles ligados e religados entre si, e por isso de forma profunda e em um grande dinamismo.

Nós somos toda essa realidade, somos parte e parcela do todo. O drama do ser humano é ele sentir-se parte deuma totalidade e perder a memória de que ele é parte dessa totalidade, dele sentir-se um elo vivo e esquecer queesse elo é um elo de uma corrente de vida.

Então como combinar a nossa consciência que é singular, que é pessoal, com essa totalidade? Toda a busca dosorientais é refazer um caminho que nos leve a uma experiência que eles chamam de não dualidade. De eu sentir-me junto da pedra, junto ao animal, junto da planta, junto da estrela, sentir-me o universo.

O próprio Dalai Lama conta que certa vez grandes cientistas, em Harvard, o levaram ao centro de pesquisanuclear e mostraram a ele em um aparelho os sinais que os elétrons deixam, porque ninguém consegue ver oselétrons e muito menos o átomo.

O Dalai Lama sorriu e disse: “Desde jovem eu via todos os átomos, todos os elétrons, todos os prótons; eu via asestrelas mais distantes porque fui iniciado à comunhão com todas as coisas, então não é que o elétron esteja lá,o elétron está aqui. E o primeiro exercício que o místico oriental faz no caminho da yoga, no caminho do Tao, é o

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exercício da luz, que vocês todos conhecem, que é representar se uma luz que venha do mais profundo douniverso, incide sobre você, que interioriza essa luz, e essa luz vai tomando o teu corpo primeiro, a tuacentralidade, teu coração e cada parte do teu organismo, todo o teu corpo, e ela se expande, e engloba asparedes, engloba as árvores que nos cerca, engloba os oceanos, as montanhas, e se estende para todo ouniverso, até o ponto que você não se sente mais você, você é a totalidade. Você faz a experiência da nãodualidade, eu sou tudo isso”.

O caminho espiritual do Oriente é o caminho que busca a interioridade do ser humano. Nosso caminho ocidentalbusca a exterioridade: Cristo está lá, Deus está lá, o universo está lá. Vamos à Lua, vamos às estrelas maisdistantes, é o caminho para fora. O Oriente não, é o caminho para dentro.

Como diz um dos místicos do Sri Lanka, que o caminho para dentro é tão perigoso como o caminho para fora. Étão arriscado como ir à Lua, à Marte, às galáxias mais distantes, porque podemos nos perder, podemos nosequivocar. Então toda a mística oriental procura criar um centro com tal força e vigor, que catalisa toda arealidade ao redor e refaz a percepção da totalidade, e você se move nessa totalidade como na sua casa, comprofunda serenidade, sem nenhum medo, porque nada pode ameaçá-lo, porque tudo está envolto no entornodesse centro poderoso, conseguido pela meditação, pelo desprendimento e pelo caminho ético extremamentecoerente.

Essas duas experiências construíram os edifícios históricos do budismo, do hinduísmo, das religiões do Tao, sejano Japão, seja na Coreia, que são formas culturais de traduzir essa experiência, e como no cristianismo, ou noOcidente, produziu-se muitas instituições religiosas atrás das quais está uma experiência religiosa.

Seria interessantíssimo, mas nós não temos tempo para isso, analisar essa grande experiência espiritual queestá por detrás das religiões afrobrasileiras, que são experiências profundamente ecológicas e que se dão contaque o axé é como nosso Espírito Santo, é energia cósmica que prevalece por todo o universo e se concentra noser humano. Fundamentalmente mais na mulher do que no homem. E, por isso, faz com que toda realidade sejaviva.

E o Exu não é aquele demônio que nós devemos expulsar; é o portador, por excelência, do axé, da energiauniversal, que atua dentro de nós como força de irradiação, com abertura para captar mais energias e colocá-lasa serviço dos demais. Seria longo o caminho e não quero entrar por ele.

O que quero dizer é o seguinte, para retornar ao nosso tema: que nós falamos de espiritualidade quandomergulhamos nessa profundidade e experimentamos essa realidade. Espiritualidade tem a ver com experiência enão com doutrina, não com dogmas, não com ritos, não com celebrações.

Podem esses caminhos institucionais até nos ajudar na espiritualidade, e grandioso é quando a religiãoconsegue canalizar a experiência espiritual e beber continuamente da sua fonte. Então uma religião que guardaa sua altura, a sua reverência, a sua grandeza, não manipula os seres humanos, nem os aterroriza nas suasconsciências, nem os prende na trama dos seus dogmas, mas entende tudo isso como acenos sobre o mistério,como indicações sobre o inefável, e só está contente quando leva o ser humano a mergulhar nessa realidade enão prendê-lo nas suas instituições.

Nós vemos isso de forma paradigmática e exemplar no livro de Jó. São quarenta e dois capítulos em que Jócomeça brigando com sua mulher, depois com seus quatros amigos, depois com todo mundo que se acerca e, nofim, ele se enfrenta com Deus. E Deus aceita o desafio e diz: vem cá, já que você quer litigar comigo, vamoslitigar. Porque é a suprema arrogância de Jó e a suprema dignidade nossa, nós não queremos brigas pequenas,mas com Deus mesmo. Por isso os Salmos estão cheios de lamentações, blasfêmias, gritos com Deus elouvações, essa é a experiência do sagrado.

Então Deus desafia Jó a dialogar com ele, e Deus começa grande, e diz: onde você estava Jó quando eu criei ouniverso? Joguei as estrelas, coloquei as montanhas, criei os mares com seus monstros, onde você estava? EJó fica cada vez menor e diz: sou tão pequeno, não quero litigar, não digo mais nenhuma palavra. E Deuscontinua descrevendo os grandes monstros, os crocodilos, contando a história de Israel e sempre desafiando Jó,onde você estava? E até que Jó se cala e diz: agora não falo mais. E termina o capitulo quarenta e dois, que é

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quase o fim do livro, dizendo: agora eu sei de Deus, não por ouvir dizer, não por que os catecismos disseram, aspessoas religiosas contaram, as instituições transmitiram, eu sei de Deus porque meus olhos o viram, porque euexperimentei Deus, agora eu sei Deus.

Então, o que nós todos queremos não são pessoas como eu aqui falando sobre Deus. Estamos cansados deteologias, livros – eu mesmo já escrevi muitos. Nós estamos cansados de encíclicas, discursos e pessoas quefalam sobre Deus. Nós queremos encontrar pessoas que falam a partir de Deus, que falam a Deus.

Certa vez fui pregar num retiro espiritual para bispos e fiz um círculo para que cada um falasse como rezava, ecada um fazia um discurso sobre a oração. Até que chegou a vez de Pedro Casaldáliga, que é um místico e fezuma belíssima oração. Ele não falou sobre a oração, ele fez uma oração começando com o universo e agrandiosidade de Deus, a proximidade de Deus junto aos pobres e a indignação contra a injustiça. Essa é umaexperiência de um místico que não fala sobre a oração, mas ele reza, ele fala a Deus, não expõe doutrinas sobreDeus. Desses seres nós temos fome e sede, e é por isso que quando surgem eles atraem multidões, porque sãopessoas seminais, que funcionam como sementes, que alimentam nosso chão e despertam em nós essadimensão do profundo.

A dimensão espiritual é essa dimensão que vai para além dos nossos interesses de trabalho, para além dacompetição que nossas profissões nos obrigam, que vai para além da luta cotidiana para ganharmos nosso pão.A espiritualidade vive da gratuidade, da disponibilidade e da capacidade de enternecimento, de compaixão, deescuta da mensagem que vem da realidade, portanto, uma relação não de posse das coisas, mas decontemplação com as coisas.

Quando estamos diante do mar e daquelas ondas grandiosas, nós não vemos o mar, vemos a majestade, aimponência. Ou, se nós estamos lá no alto do Corcovado, vemos a beleza, é mais do que a pedra. A pedra e omar têm mensagens, falam a nós. E se nos vergamos sobre uma criança recém-nascida, nos enchemos deenternecimento diante do mistério da vida e do brilho do seu olhar. E quando encontramos uma pessoa sábia,apesar de sem cultura, nós nos enchemos também de reverência, de respeito, e queremos escutar essa pessoa.

Então desenvolver essa capacidade é desenvolver a nossa capacidade de contemplação, de escuta dasmensagens e dos valores. Então não existem só coisas e não existem só fatos; existe irradiação nas coisas,existe o sentido que vem a partir dos fatos. Mesmo as crises mais profundas que passamos, quando perdemosum ente querido e entramos em profunda crise, se destruímos nosso matrimônio, se perdemos um filho na droga,e podemos perguntar qual é o significado que vem disso tudo para mim? Não basta chamar o psicólogo e nem omédico. Não basta tomar um remédio e dormir horas e horas. Nós devemos confrontar e perguntar que sentidomais profundo essa realidade traz para mim, que pode me fazer crescer, e especialmente naquelas situaçõesquando não se tem mais nada o que fazer.

Em momentos assim é fundamental a espiritualidade, de poder sentir a temporalidade das coisas, a usura dotempo, e que nós não vivemos apenas por que não morremos, mas porque a vida é um desafio para crescer,para aceitar nossas canseiras, nossos limites, nosso envelhecimento. E que vamos passando pela vida epreparando um grande encontro, o grande mergulho na realidade suprema de Deus. E nos habituarmos a esseencontro, a essa amorosidade e enamoramento com Deus.

É importante encontrar pessoas assim, para as quais Deus é uma experiência de pele. E me desculpem se contoa experiência de minha mãe que era analfabeta e nunca quis aprender a ler. Um dia trouxe-lhe de presente umcaderno e um lápis bento pelo Papa Paulo VI. Jogou tudo longe e disse: “Para quê? Eu tenho onze filhos quefizeram universidade, quase todos se doutoraram, para que eu quero aprender a ler e a escrever? Eles sabempara mim”.

Mas ela era uma mulher de uma grande sabedoria existencial e uma profunda piedade. E eu costumava gravarcoisas minhas para ela escutar, e ela dizia: “onde você aprendeu tudo isso? Eu nunca te ensinei”.

Em uma dessas gravações, em que eu falava da experiência de Deus, ela me olhou e disse: “você já viu Deus”?

E respondi: “Minha mãe, a gente não vê Deus. Deus é espírito, Deus é invisível”.

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Ela deu como que um suspiro, colocando a mão no peito, me olhou com infinita tristeza e disse: “Você tantosanos padre e nunca viu Deus!” E continuou: “Você não vê Deus e eu vejo todos os dias. Quando o sol se põe elepassa com um manto fantástico, lindo. Ele vem sempre sério e teu pai, que já faleceu, vem atrás, olha para mim,dá um sorriso e vai junto com Deus. Eu o vejo todos os dias”.

Bom, eu fiquei parado e disse, quem é o teólogo aqui? É ela ou eu? Então, há pessoas que têm essasexperiências e nós temos que aprender que a fé é uma experiência tão global, que entra nos olhos, no coração,na fantasia e nas projeções. Deus é substância da sua própria substância. Essas pessoas não creem em Deusporque sabem de Deus, experimentam Deus.

Para finalizar queria enfatizar o seguinte: que a espiritualidade não é monopólio das religiões e nem doscaminhos espirituais codificados, que a espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano, cada um de nóstem uma dimensão espiritual, cada ser humano tem a dimensão do amor, da sensibilidade, da responsabilidade,do cuidado, a percepção de valores para os quais vale sacrificar a vida para defender um filho ou a pessoaamada. E se a pessoa não faz isso, mesmo que ninguém a culpe, estará sempre fugindo da sua própriaconsciência.

Toda pessoa escuta uma voz, uma mensagem que vem do universo, de toda a realidade, e se pergunta o que seesconde atrás das estrelas. Nos nossos escritórios, nos nossos gabinetes de trabalho, nós podemos ser cínicos,podemos acreditar em qualquer coisa, e desacreditar de qualquer coisa. Nós não podemos desprezar a auroraque vem, não podemos odiar o olhar inocente de uma criança que nasce. Não podemos ser indiferentes frente àprofundidade do céu estrelado sem cair no silêncio e na profunda reverência, e se perguntar o que se escondeatrás das estelas, qual é o caminho da minha vida, o que posso esperar depois da minha vida estar tão cansadae longa, o que me espera.

O ser humano se coloca sempre essas questões. Elas estão sempre na agenda de cada pessoa. Quando noscolocamos tais questões, nos revelamos seres espirituais e quando nos abrimos a escutar essas mensagens,orientar nossa vida para que isso produza leveza, irradiação, humanidade, aí exercemos a nossa dimensãoespiritual.

Quero ler um texto de uns dos grandes conhecedores, junto com Freud, da psique humana, que foi Carl Jung. Eledeu muita importância à religião no processo de individuação porque a religião trabalha com a mística eespiritualidade trabalha grandes sonhos, projeta grandes esperanças e aí diz Jung: “Em todos os meus clientes,na segunda metade da vida, isto é, tendo mais de trinta e cinco anos, não houve um só cujo problema maisprofundo não fosse constituído pela questão da sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavamdoentes por terem perdido aquilo que uma religião viva sempre deu em todos os tempos aos seus seguidores, enenhum ancorou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto está claro,independente de uma adesão a um credo particular ou tornar-se membro de uma igreja, mas tem que integrar asua dimensão espiritual”.

Creio que isso é profundamente verdadeiro. Nós estamos acostumados a analisar nossos problemasfinanceiramente, psicologicamente, juridicamente, Penso que devemos analisar nossos problemas tambémespiritualmente. Muitas das nossas angústias, das nossas doenças, vêm por uma dimensão espiritual nãodesenvolvida, ou anêmica, ou distorcida, ou totalmente ocultada. Então há dentro de nós uma chama sagrada,mesmo nessa cultura coberta de cinzas, de consumo, da busca de bens materiais, de uma vida distraída dascoisas essenciais.

Devemos tirar essas cinzas e despertar a chama sagrada. Talvez esse seja o significado maior da festa quedentro de pouco tempo celebramos, que é a festa do Natal, que o espírito do Natal, exatamente oposto aoespírito dominante na cultura contemporânea, que é um espírito marcado pelo mercado, pelo consumo, pelacompra, pelo negócio, pelo interesse e pela mercadoria.

O Natal vive da gratuidade, da singeleza, vive da doação, o dom, um fazer presente ao outro, vive da alegria dever uma vida nascendo, e não pode haver tristeza quando nasce a vida. E saber que essa criança, divina einfante que está aí somos nós fundamentalmente, porque é uma dimensão de criança que nunca se perdeu, eque mesmo para além da idade adulta ela está aí reclamando seus direitos, que é de entender a vida também

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como algo lúdico, leve, algo que vale por ele mesmo. Pouco importa os interesses que nós investimos na nossavida, que a vida valha por ela mesma, porque é um valor absoluto.

O Natal quer ressuscitar essa dimensão espiritual no ser humano e dizer que é nessa atmosfera que Deustambém se acercou a nós, não veio como um César poderoso, nem como um sumo sacerdote no auge da suasantidade, mas se acercou na forma de uma criança pobre, que nasce no subúrbio, no meio de animais, para queninguém se sentisse distante dele, e que todos pudessem ter o sentimento de ternura para com a criança quenós carregamos no colo, e nos vergamos sobre ela maravilhados, pois esse é o caminho que Deus escolheupara acercar-se de nós, para poder caminhar conosco. Talvez seja um Deus que não nos explique por que o malexiste no mundo, mas ele sofre junto, que não nos dê as razões de tanto trabalho para tão pouca felicidade, masele trabalha junto, é carpinteiro, isto é, não deixa de assumir nada do que seja radicalmente humano.

Assim é que encontramos Deus dentro de nós. Não precisamos buscá-lo aqui e ali, mas na nossa interioridade,porque aí ele penetrou e nunca mais saiu, nos fazendo filhos e filhas, e depois ele vem e toma o que é Dele eleva para o seu reino. Nos leva cada um para a sua casa, porque nós pertencemos à casa Dele. Esse para mimé o significado maior da encarnação e do mistério, do Natal que nós celebramos, que é um dos pontos altos daespiritualidade cristã. Que mesmo dentro de um mundo altamente conflitivo, ameaçado por diversos fatores,podemos quase fazer um intervalo e dizer: agora não, agora vamos festejar, vamos comer, vamos ser todosirmãos e irmãs, vamos acender a luz na convicção de que a luz tem mais direito que todas as trevas. Então senós reservarmos um pouco de espaço em nossas vidas para essa espiritualidade, ela vai se transformar de umabrasa em uma chama, e dessa chama em um grande fogo interior que produz e irradia calor e nos dá mil razõespara vivermos como seres humanos que caminham serenos na direção da fonte de toda a espiritualidade, que éfonte de espírito, de vida, de grandiosidade e de absoluta realização.

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*Leonardo Boff, pseudônimo de Genézio Darci Boff (Concórdia, 14 de dezembro de 1938), é um teólogobrasileiro, escritor e professor universitário.

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