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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS AMBIENTAIS (IM)POSSIBILIDADES DA PRÁTICA TURÍSTICA E COMPLEXIDADE AMBIENTAL: UM ESTUDO DE CASO EM PIRENÓPOLIS (GO) MARCO AURÉLIO FERNANDES NEVES GOIÂNIA-GO 2017

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS AMBIENTAIS

    (IM)POSSIBILIDADES DA PRTICA TURSTICA E

    COMPLEXIDADE AMBIENTAL: UM ESTUDO DE CASO EM

    PIRENPOLIS (GO)

    MARCO AURLIO FERNANDES NEVES

    GOINIA-GO

    2017

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  • 3

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS AMBIENTAIS

    (IM)POSSIBILIDADES DA PRTICA TURSTICA E COMPLEXIDADE AMBIENTAL: UM ESTUDO DE CASO EM

    PIRENPOLIS (GO)

    MARCO AURLIO FERNANDES NEVES

    Texto apresentado Banca de

    Defesa de Dissertao do

    Programa de Ps-Graduao em

    Cincias Ambientais, como parte

    dos requisitos para obteno do

    ttulo de Mestre em Cincias

    Ambientais.

    rea de Concentrao: Estrutura e

    Dinmica Ambiental.

    Linha de Pesquisa: Conservao,

    Desenvolvimento e Sociedade.

    Orientador: Prof. Dr. Fausto Miziara

    GOINIA-GO

    2017

  • 4

    MARCO AURLIO FERNANDES NEVES

  • 6

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    minha me e meu pai, Dra e Valdir, que sempre se desdobraram para que

    momentos como este de agora fossem possveis em minha vida.

    Aos meus irmos, Andr Gustavo e Luiz Felipe, companheiros desde a

    infncia, que com seus exemplos de luta me ajudaram a vencer minhas

    batalhas.

    minha querida irm Paula, alegria na minha vida desde seu nascimento.

    Agradeo suas leituras e releituras dos meus textos e as infindveis e

    apaixonadas conversas acadmicas.

    Ao meu orientador Fausto Miziara, obrigado pelas sensatas orientaes e

    crticas ao meu texto, resultado principal de sua sria carreira acadmica.

    Aos professores do CIAMB e tcnica-administrativa do Programa, Juliana,

    obrigado pelo apoio.

    FAPEG pelo apoio financeiro por meio da bolsa estudantil concedida.

    A todo corpo docente e tcnico-administrativo da Faculdade de Histria da

    UFG, obrigado pelo apoio e pela viabilidade da licena.

    Aos professores Leandro Gonalves Oliveira e Alexandre Martins de Arajo,

    pelas crticas e sugestes no exame de qualificao.

    minha companheira de vida, Joana Dark, obrigado por (re)construir o meu

    mundo todos os dias. Sabes que sem voc nunca teria chegado aqui.

  • 8

    Viajar trocar a roupa da alma.

    Mrio Quintana

  • 9

    RESUMO

    Esta pesquisa versa sobre as interseces entre complexidade ambiental e

    turismo. A complexidade ambiental um constructo terico do socilogo

    ambientalista mexicano Enrique Leff, que faz frente crise ambiental de nosso

    tempo, crise de racionalidade, de (des)construo das possibilidades de vida.

    Ao interpelar sobre uma possibilidade de se colocar em funcionamento a

    complexidade ambiental, por meio de outras racionalidades e saberes, ditos

    ambientais, esta pesquisa enveredou-se pelo campo terico-prtico do turismo,

    buscando descortinar tanto sua singularidade epistmica quanto sua

    complexidade prtica. Elementos tericos dos estudos do turismo foram

    levantados e forjou-se uma interface entre turismo e complexidade ambiental,

    em que a impossibilidade terica disciplinar de ambos, abriu campo para a

    possibilidade prtica de dilogo dos saberes. Assim, por meio do estudo

    emprico das dimenses econmicas, ambientais e socioculturais do turismo,

    da cidade de Pirenpolis-Gois, foi possvel constatar a perspectiva do turismo

    se apresentar como um lcus propcio arregimentao de elementos para

    efetivao de uma complexidade ambiental.

    Palavras-chave: complexidade ambiental; turismo; teoria do turismo;

    Pirenpolis.

  • 10

    ABSTRACT

    This research deals with the intersections between environmental complexity

    and tourism. Environmental complexity is a theoretical construct of the Mexican

    environmental sociologist Enrique Leff, who faces the environmental crisis of

    our time, crisis of rationality, (de) construction of life possibilities. When

    questioning about the possibility of putting environmental complexity into

    operation, through other rationalities and knowledges, environmental, this

    research was undertaken by the theoretical-practical field of tourism, seeking to

    uncover both its epistemic singularity and its practical complexity. Theoretical

    elements of tourism studies were raised and an interface between tourism and

    environmental complexity was forged, in which the theoretical impossibility of

    both disciplines opened the possibility for the practical possibility of a dialogue

    of knowledge. Thus, through the empirical study of the economic, environmental

    and socio-cultural dimensions of tourism in the city of Pirenpolis-Gois, it was

    possible to verify the tourism perspective as a propitious locus for the

    regimentation of elements for the accomplishment of an environmental

    complexity.

    Key-words: environmental complexity; tourism; tourism theory; Pirenpolis.

  • 11

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 - Consumo mundial de energia (sc. XIX e XX)................................... 21

    FIGURA 2 - Fases tericas do turismo................................................................... 40

    FIGURA 3 - Modelo de sistema de turismo proposto por Leiper............................ 48

    FIGURA 4 - Modelo SISTUR de Beni..................................................................... 49

    FIGURA 5 - Modelo existencial na sociedade industrial......................................... 54

    FIGURA 6 - Conjunto de percepes dos estudos tursticos................................. 57

    FIGURA 7 - Indissociabilidade dos campos disciplinares nos estudos tursticos... 59

    FIGURA 8 - Criao do conhecimento em turismo de Tribe.................................. 62

  • 12

    LISTA DE GRFICOS

    GRFICO 1 - Produto Interno Bruto a preos correntes (R$ MIL)...................... 79

    GRFICO 2 - PIB do municpio de Pirenpolis por setores da economia (2013) 80

    GRFICO 3 - Renda Familiar.............................................................................. 80

    GRFICO 4 - Gasto dirio................................................................................... 81

    GRFICO 5 - Turismo receptivo por motivao da viagem................................. 82

    GRFICO 6 - Motivao da viagem..................................................................... 82

    GRFICO 7 - Atividades realizadas..................................................................... 83

    GRFICO 8 - Percepo da preservao............................................................ 83

    GRFICO 9 - Atrativos tursticos......................................................................... 84

    GRFICO 10 Como avalia seu conhecimento sobre o meio ambiente

    local?..................................................................................................................... 84

    GRFICO 11 - Conhece a vegetao tpica da regio?....................................... 85

    GRFICO 12 - Qual a maior importncia do cerrado?......................................... 85

    GRFICO 13 - Avaliao da percepo dos impactos do turismo: degradao

    ambiental.............................................................................................................. 86

    GRFICO 14 - Tem interesse pela cultura local?................................................ 88

    GRFICO 15 - Avaliao da percepo dos impactos do turismo: valoriza a

    cultura local?......................................................................................................... 88

    GRFICO 16 - Avaliao do conhecimento sobre a cultura de Pirenpolis........ 89

    GRFICO 17 - Elementos cultura local: Culinria................................................ 89

    GRFICO 18 - Elementos cultura local: Festas populares.................................. 90

    GRFICO 19 - Elementos cultura local: Patrimnio histrico.............................. 90

    GRFICO 20 - Cidade de origem dos turistas..................................................... 91

    GRFICO 21 - Contato com a populao local................................................... 91

  • 13

    LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS

    ANA Agncia Nacional de guas

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IEA International Energy Agency

    IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change

    IPTur Instituto de Pesquisa em Turismo e Eventos Gois

    OMT Organizao Mundial do Turismo

    PIB Produto Interno Bruto

    UNTWO World Tourism Organization

  • 14

    SUMRIO

    1 INTRODUO...................................................................................................... 16

    2 PRESSUPOSTOS DA COMPLEXIDADE AMBIENTAL......................................

    20

    2.1 A crise de nosso tempo: a crise ambiental........................................................ 20

    2.2 Delineando conceitos: a Complexidade Ambiental............................................ 29

    2.3 Os elementos constitutivos da Complexidade Ambiental.................................. 31

    2.3.1 A Racionalidade Ambiental............................................................................. 31

    2.3.2 O Saber Ambiental.......................................................................................... 35

    3 AS (IN)DEFINIES DO TURISMO...................................................................

    39

    3.1 Epistemologia do turismo................................................................................... 39

    3.1.1 O turismo como objeto cientfico compreendendo-o por meio de fases...... 39

    3.1.2 Os estudos iniciais e a fase pr-paradigmtica............................................... 41

    3.1.3 A gnese de um alinhamento paradigmtico: Sistemas................................. 45

    3.1.4 A transio e as novas fases de abordagem do turismo................................ 48

    3.2 Agregando os conceitos.................................................................................... 51

    3.3 As (in)definies do turismo e as possibilidades indisciplinares........................ 60

    4 O TURISMO E AS (IM)POSSIBILIDADES DE UMA COMPLEXIDADE

    AMBIENTAL............................................................................................................

    64

    4.1 Construo metodolgica da pesquisa.............................................................. 64

    4.1.1 Peculiaridades da pesquisa emprica no turismo............................................ 67

    4.1.2 A formulao dos questionrios...................................................................... 70

    4.1.3 A concepo das entrevistas.......................................................................... 74

    4.2 Caracterizao de Pirenpolis e a turistificao de seu espao....................... 75

    4.3 Os aspectos econmicos do turismo na cidade de Pirenpolis......................... 77

    4.4 Os aspectos ambientais do turismo na cidade de Pirenpolis........................... 81

    4.5 Os aspectos socioculturais do turismo na cidade de Pirenpolis...................... 86

    4.5.1 Festa do Divino uma possibilidade de interao.......................................... 92

    4.5.2 As percepes em tempos comuns.............................................................. 104

    5 CONSIDERAES FINAIS..................................................................................

    108

  • 15

    REFERNCIAS........................................................................................................ 111

    APNDICES............................................................................................................. 117

    Apndice A............................................................................................................. 117

    Apndice B............................................................................................................. 118

  • 16

    1 INTRODUO

    Grande parte da produo intelectual j produzida sobre turismo

    perpassada por um marcante reducionismo dualista: se por um lado o turismo

    visto como um "osis econmico"1 salvador de comunidades empobrecidas,

    por outro tachado de "agente de aculturao"2 dessas mesmas comunidades.

    Segundo Moesch (2000), h na abordagem cientfica do turismo um

    reducionismo epistemolgico, em que os aspectos econmicos predominam

    sobre outras abordagens, uma vez constatada que a prtica dessa atividade

    em algumas regies foi uma forte influncia no desenvolvimento econmico.

    Desse modo, Moesch (2000) tambm afirma que a produo do saber turstico

    foi amplamente dominada por setores empresariais que destacavam

    sobremaneira os aspectos produtivos do fenmeno turstico. Devido a isso, boa

    parte da academia recebeu o turismo com certas ressalvas, principalmente as

    reas vinculadas s cincias sociais, pois havia uma pressuposio de que a

    importncia do turismo residia, quase que completamente, no fator econmico.

    Como diz Siqueira (2005), a rea de estudos sobre turismo passou a ser

    menosprezada na academia [...] justamente pela carncia de um corpo

    terico-metodolgico prprio (SIQUEIRA, 2005, p. 121). Tal circunstncia

    produziu uma espcie de ciclo vicioso, em que uma situao (abordagem

    econmica) justificaria a outra (desdm pelos estudos do turismo) e elas se

    retroalimentam, pois o desdm acadmico pelos estudos do turismo provoca a

    preponderncia da abordagem econmica.

    Ao no conseguir escapar do reducionismo dualista de nossa cincia, as

    abordagens das cincias sociais sobre turismo, muitas vezes, se transmutaram

    em crticas maniquestas em relao exacerbada exaltao econmica dessa

    atividade, entre as quais esto aquelas que relatam uma possvel aculturao

    da populao local, ou a produo de um no-lugar ou a fetichizao dos

    lugares. Todas essas abordagens destacam aspectos negativos da presena

    1 Essa caracterstica um forte vestgio dos estudos iniciais do turismo, voltados, sobretudo, ao aspecto econmico (no Captulo 02 desta pesquisa h um delineamento sobre a construo dos estudos acerca do turismo). tambm importante ressaltar que a prpria Capes guarda essa perspectiva economicista do turismo na medida em que a rea de avaliao do turismo na referida agncia est alocada no grupo Administrao, Economia e Turismo. 2Santos e Barretto (2006) trazem em seu texto, exemplos de autores que abordaram os temas aculturao e turismo: Nash (1996); Burns (2002); e tambm impacto cultural e turismo: Smith (1989); Santana (1997).

  • 17

    do turismo nas regies onde ocorrem. Carlos (2007), por exemplo, cita o

    turismo como um agente transformador dos espaos em cenrios

    espetacularizados. Segundo a autora, o real seria metamorfoseado para [...]

    seduzir e fascinar (CARLOS, 2007, p. 64). A partir dessa venda dos espaos,

    criam-se locais sem identidade e, portanto, no-lugares. Sob uma perspectiva

    semelhante, h autores que destacam que a produo desses (no) lugares

    tursticos fortemente permeado por um discurso de mercado, que fetichizam

    determinados espaos (SILVEIRA, 2002). Existem ainda abordagens que

    problematizam o contato entre diferentes culturas a partir das viagens

    tursticas. Nesses estudos, palavras como aculturao e impactos culturais

    transmitem a ideia de uma invaso da cultura do turista sobre a cultura do

    local visitado (SANTOS; BARRETO, 2006).

    Todas as anlises sumariamente descritas so lcidas e retratam um

    panorama verossmil com aspectos gerados pela atividade turstica. Mostram,

    sobretudo, impactos negativos sofridos pela populao local, gerados aps o

    turismo ser incorporado como atividade de uma regio. Apesar disso, a

    resposta contrria a essa abordagem economicista do turismo a expresso

    da dicotomia extrema presente nas anlises e minimizam a complexidade

    apresentada pelo turismo.

    Essas dicotomias analticas que reduzem os aspectos estudados em

    campos bastantes especficos so, dentre outras coisas, produto de uma

    racionalidade ocidental modernizante, marcadamente logocntrica e

    instrumental, segundo Leff (2004). Sob o manto dessa racionalidade, a

    contiguidade do mundo exacerbadamente fragmentada e, por isso mesmo,

    as anlises gestadas sob esse modelo so tambm excessivamente

    fragmentadas. Nossas categorias de anlise so muito reducionistas

    (SANTOS, 2007), pois provm dessa racionalidade dicotmica, dualista. Nota-

    se que a esse campo do conhecimento turismo relega-se essa feio

    dualista, que minimiza sua dinmica complexa.

    Alm disso, essa racionalidade provoca, dentre outras coisas, a crise

    ambiental (LEFF, 2007) de nosso tempo, pois ela (des)constri o mundo em

    seu reducionismo utilitarista: sempre constri algo em detrimento da

    desconstruo de outra enormidade de coisas. Soma-se a isto, segundo Leff

  • 18

    (2004), o fato de a maioria das medidas mitigadoras da crise ambiental ser

    concebida no interior dessa racionalidade, provocando, desse modo, aquilo que

    intentam combater.

    Nesse sentido, Leff (2007) prope que racionalidades e saberes que se

    encontram nas culturas de todo o mundo e que no operam em uma dinmica

    de alinhamento exclusivo com os propsitos da racionalidade ocidental devem

    ser colocadas em funcionamento como alternativas a esse modelo

    reducionista. Essa dinmica retratada sumariamente, em que h um forte

    questionamento a essa racionalidade reducionista homogeneizante e que se

    prope conjugao de novas racionalidades e saberes no jogo de poder,

    aquilo que no trabalho de Leff nomeou-se Complexidade Ambiental.

    Apesar da flagrante importncia da proposta da complexidade ambiental

    de Leff, principalmente na mitigao da crise ambiental, a sociedade se esbarra

    na grande dificuldade em colocar em prtica tal proposta. Isto ocorre, em boa

    medida, pois no exerccio da maioria de nossas atividades encontramo-nos

    mergulhados nessa racionalidade logocntrica, que gera a crise ambiental e

    nos impele a sustentar o modo insustentvel de vida.

    Do nosso lado, no acmulo das experincias terico-prticas no campo

    do turismo, o que se tem observado que essa atividade pode agir como uma

    oportunidade propcia reflexo no dicotmica ou fragmentria. No seu

    aspecto terico, mesmo aqueles autores que caminham em direo a uma

    anlise menos reducionista do turismo, h uma dificuldade em trat-lo sob um

    paradigma disciplinar, o que levanta a hiptese de o prprio turismo no ser um

    tema adequado para ser abordado pelo vis cientfico tradicional. J no campo

    prtico, o que se nota uma peculiar atividade econmica com estreita

    vinculao ao meio ambiente natural e cultural humano, que rene em um

    mesmo espao-tempo pessoas com diferentes percepes de construo

    social da vida.

    Em vista disso, por essas caractersticas terico-prticas apresentadas

    pela atividade turstica, este trabalho problematiza o turismo um lcus

    apropriado para reflexo sobre a complexidade ambiental proposta por Leff?

    Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo analisar a interpenetrao dos

    pressupostos conceituais entre complexidade ambiental e turismo, tanto no

    campo terico como no campo prtico. Alm disso, este trabalho procura

  • 19

    colaborar no aprimoramento do campo de estudos do turismo, ao contribuir na

    construo de uma teoria do turismo mais crtica e complexa.

    Isto posto, no primeiro captulo desta dissertao privilegiamos o

    aprofundamento sobre a explanao terica dos fundamentos da

    Complexidade Ambiental. Trilhamos a anlise feita nos trabalhos de Leff que se

    baseiam, em um primeiro momento, no diagnstico de nossa realidade, por

    meio da exposio da singular crise ambiental de nosso tempo. Ao entender as

    motivaes e causas dessa crise ambiental, consegue-se, quase em um

    encadeamento lgico, expor a tentativa de contraposio ao quadro de crise

    a complexidade ambiental. A partir desse ponto, no somente a complexidade,

    mas tambm outros conceitos da teoria de Leff sero pormenorizados, tais

    como racionalidade, saber ambiental e dilogo dos saberes.

    O segundo captulo ser reservado anlise terica da atividade objeto

    desta pesquisa o turismo. Neste captulo haver o delineamento da

    peculiaridade terica intrnseca dos estudos do turismo. Dessa maneira, esta

    parte da pesquisa se constituir em uma explicao conceitual do turismo, ao

    mesmo tempo em que procurar deslindar a interconexo terica entre turismo

    e complexidade ambiental.

    No terceiro captulo ser feito um estudo emprico do turismo,

    conjugando os aspectos de sua fluidez terica, estruturados no segundo

    captulo, que contriburam para a composio das categorias de anlise da

    prtica turstica, que perpassam os aspectos econmico, socioambiental e

    cultural. Dessa maneira, no terceiro captulo ser feito o estudo experimental

    de nossa pesquisa, que tem como campo emprico o turismo na cidade de

    Pirenpolis, no estado de Gois. Haver o levantamento de informaes

    estatsticas do municpio relacionados ao turismo, bem como o recolhimento de

    dados junto aos turistas, por meio de questionrios e entrevistas semi-

    estruturadas, que nos possibilitaro examinar como a prtica turstica est

    associada a uma complexa dinmica econmica, cultural e socioambiental.

  • 20

    2 PRESSUPOSTOS DA COMPLEXIDADE AMBIENTAL

    2.1 A crise de nosso tempo: crise ambiental

    Apesar de existirem relatos e registros sobre aes voltadas

    preservao do ambiente natural em sculos anteriores ao sculo XX3, os

    problemas ambientais somente comearam a receber destaque na agenda

    internacional a partir de meados da dcada de 1960 do sculo passado. Foi

    nessa poca que Rachel Carson, com sua Primavera Silenciosa4, inaugurou a

    anlise das questes ambientais contemporneas.

    A questo ambiental amplamente discutida a partir de ento no

    produto de meros desastres ecolgicos naturais. Ela no fruto de intempries

    csmicas ou de rearranjos estruturais no interior do planeta Terra. Ao contrrio,

    no foi o acaso das causas que conduziu as questes ambientais a

    conquistarem importncia crescente desde ento. A intencionalidade da causa

    a ao antrpica foi a geradora da relevncia abrangente alcanada pelo

    tema.

    Logo aps a Segunda Guerra Mundial, Europa e Estados Unidos

    registraram suas maiores taxas de crescimento econmico5. A Amrica Latina

    e outras regies subdesenvolvidas do globo, do ponto de vista da economia de

    mercado, tambm embarcaram em uma era desenvolvimentista, aumentando,

    mesmo que de forma mais moderada e dependente das grandes potncias

    econmicas, suas taxas de crescimento econmico. As taxas de urbanizao

    desses lugares elevaram-se desde ento. Um importante reflexo desse amplo

    crescimento econmico prontamente perceptvel na alta demanda por

    3 Os Parques de Yosemite e Yellowstone nos Estados Unidos, por exemplo, foram criados respectivamente em 1864 e 1872. (GODOY, 2000, p. 129-130). Apesar de motivos diversos daqueles concebidos hoje como preservao ambiental, a criao dos referidos parques foi uma forma de conservao de ambientes naturais. 4 No vero de 1962, a revista New Yorker publicou trs edies seguidas com trechos de Primavera Silenciosa, quarto livro de Rachel Carson (1907-1964), obra que s seria lanada trs meses depois, em setembro. Em linhas gerais, o livro explica como o uso desenfreado de pesticidas nos EUA alterava os processos celulares das plantas, reduzindo as populaes de pequenos animais e colocando em risco a sade humana (BONZI, 2013, p. 208). 5 Entre 1950 e 1973 a economia mundial cresceu 4,9%, em mdia anual, recorde histrico. Tal crescimento foi puxado pela Frana e Alemanha, na Europa, que cresceram 5,0% e 6,0%, respectivamente; pelo Japo, na sia, que cresceu 9,2%; e pelo Brasil, na Amrica Latina, que cresceu 6,8% (GONALVES, 2002, p. 108).

  • 21

    energia registrada a partir dos anos 1950 (Figura 1). Apesar do sempre

    crescente consumo energtico dos ltimos 200 anos, desde a Revoluo

    Industrial, foi somente no ps-Segunda Guerra que esses nveis de consumo

    se amplificaram de forma vertiginosa. Essa demanda energtica, reflexo da alta

    produo industrial e da crescente urbanizao mundial, aliada quase

    nulidade das preocupaes de seus impactos, comearam a tornar altamente

    perceptveis os problemas ambientais advindos dessa lgica produtivista. E

    como no poderia ser diferente, foi a partir de ento o incio das discusses

    acerca das relaes homem-meio ambiente.

    Figura 1 - Consumo mundial de energia (sc. XIX e XX)

    Fonte: La herencia del planeta. Metode - Universitat de Valencia (2012).

    Esse o panorama no qual se desenrola a crise ambiental de nosso

    tempo. Crise para a qual, pela primeira vez, no foi atribuda explicao sobre

    nenhum ente mitolgico ou ao divina e que tambm certificou-se no fazer

    parte de uma ao do prprio ambiente em mudana, mas sim uma crise

    totalmente originria do prprio homem, das relaes que ele estabelece com o

    meio a sua volta. Por isso mesmo Leff (2002, p. 194) nos diz:

    Mais do que uma crise ecolgica, a problemtica ambiental diz respeito a um questionamento do pensamento e do entendimento, da ontologia e da epistemologia pelas quais a civilizao ocidental tem compreendido o ser, os entes e as coisas; da cincia e da razo tecnolgica pelas quais temos dominado a natureza e economicizado o mundo moderno.

  • 22

    A crise ambiental est calcada na racionalidade que permeia as relaes

    homem-meio ambiente. Esta que uma racionalidade objetivista e

    fragmentria, que reserva ao ambiente natural o papel exclusivo de recursos

    naturais. Sob a tica economicista, o recurso despersonificado e

    desqualificado ele se torna um objeto, que pode ser usado em nico e estrito

    benefcio do sujeito.

    Este tipo de racionalidade que permitiu colocar em funcionamento tal

    sistema relacional com o meio ambiente no foi formada estritamente nas

    dcadas de crescimento ps-Segunda Guerra. O que ocorreu a partir desse

    perodo foi a coadunao dessa racionalidade com o alto desenvolvimento

    tecnolgico, proporcionando uma produo massificada nunca antes vista na

    histria.

    A racionalidade ocidental foi construda ao longo de sculos, sobretudo

    na formao da modernidade, com influncia principal do pensamento

    cartesiano. Ren Descartes, no sculo XVII, sintetizou o pensamento vigente

    poca: a busca da verdade em seu interior, na luz de sua razo. Segundo

    Descartes, somente o cogito comprovadamente existe, ou seja, todo o resto

    passvel de dvida. Assim, esse autor pressupe a existncia ao pensamento:

    tudo o mais pode ser falseado.

    Descartes hierarquiza ainda mais a j dicotomizada mente e corpo

    (PORTO-GONALVES, 2006), dividindo-os naquilo que verdadeiro

    (pensamento) daquilo que pode ser falseado (corpo).

    No podemos sequer afirmar a existncia do corpo, porque, sendo este material, de fato um objeto no mundo externo, sobre o qual no podemos ter certeza. O cogito, portanto, nos revela apenas isso: a existncia do pensamento puro, o que possvel pela evidncia do prprio ato de pensar. (MARCONDES, 2001, p. 169)

    Sob esta diviso entre mente e corpo, subjazem diversas outras que

    construram nossa racionalidade ocidental maniquesta, tais como sujeito-

    objeto e homem-natureza (PORTO-GONALVES, 2006). Esta ltima

    caudatria do paradigma de que somente o homem possui o cogito ou

    pensamento e, portanto, a verdade emana dele. O homem o sujeito,

  • 23

    enquanto a natureza o objeto, ou seja, somente o sujeito pode agir sobre o

    objeto.

    O logocentrismo da racionalidade ocidental moderna possibilitou a

    tecnologizao do mundo e o transformou em objeto. Somente esta

    racionalidade pode transformar a natureza em objeto a ser dominado pelo

    sujeito-homem. Foi nesse sentido que a razo ocidental e sua principal

    representante a cincia colocaram-se em um local privilegiado de anlise,

    como se se constitussem a partir de um local atemporal e universal de

    observao (CAJIGAS-ROTUNDO, p. 171, 2007). Castro-Gomez denominou

    tal caracterstica de hybris del punto cero, que significa:

    Refiro-me a uma forma de conhecimento humano que eleva pretenses de objetividade e cientificidade, partindo do pressuposto de que o observador no forma parte do observado. Esta pretenso pode ser comparada com o pecado da hybris, do qual falavam os gregos, quando os homens queriam, com arrogncia, elevar-se ao estatuto de deuses. Localizar-se no ponto zero equivale a ter o poder de um Deus absconditus, que pode ver sem ser visto, ou seja, que pode observar o mundo sem ter que dar conta a nada, nem sequer a si mesmo, da legitimidade de tal observao. Equivale, portanto, a instituir uma viso de mundo reconhecida como vlida, universal, legtima e garantida pelo Estado. Por isso, o ponto zero o do comeo epistemolgico absoluto, mas tambm o do controle econmico e social sobre o mundo. (CASTRO-GMEZ, 2005, p. 63 apud CAJIGAS-ROTUNDO, 2007, p. 171, traduo nossa6)

    A razo ocidental se constituiu como uma pretensa forma estril de se

    pensar o mundo. Uma forma de observao que proclama a distncia entre

    observador e observado, til na neutralizao das paixes emanadas do

    observador. Ao se construir discursivamente como algo que no um ideal

    sem paixes a racionalidade ocidental se colocou acima de outras

    6Me refiero a una forma de conocimiento humano que eleva pretensiones de objetividad y cientificidad, partiendo del presupuesto de que el observador no forma parte de lo observado. Esta pretensin puede ser comparada con el pecado de La hybris, del cual hablaban los griegos, cuando los hombres queran, con arrogancia, elevarse al estatuto de dioses. Ubicarse en el punto cero equivale a tener el poder de un Deus absconditus que puede ver sin ser visto, es decir, que puede observar el mundo sin tener que dar cuenta a nadie, ni siquiera a smismo, de la legitimidad de tal observacin. Equivale, por tanto, a instituir una visin del mundo reconocida como vlida, universal, legtima y avalada por el Estado. Por ello, el punto cero es el del comienzo epistemolgico absoluto, pero tambin el del control econmico y social sobre el mundo.

  • 24

    racionalidades, um deus absconditus que podia ver sem ser visto. Tal

    estratgia tornou inquestionveis suas aes, dentre as quais a

    economificao sempre crescente do mundo.

    As cincias no vivem num vazio ideolgico e semntico. Tanto por sua constituio a partir das ideologias tericas e as cosmovises do mundo no terreno conflitivo das prticas sociais dos homens, como pelas transformaes tecnolgicas que se abrem a partir das condies econmicas de aplicao do conhecimento, as cincias esto inseridas em processos discursivos onde se debatem num processo contraditrio de conhecimento/desconhecimento que mobiliza o lugar da verdade (BALIBAR, 1995), de onde derivam sua capacidade cognoscitiva e seu potencial transformador da realidade. A articulao desses processos de conhecimento com os processos institucionais, econmicos e polticos que condicionam o potencial tecnolgico e a legitimidade ideolgica de suas aplicaes, est regida pela confrontao de interesses opostos de classes, grupos sociais, culturas e naes pela apropriao diferenciada e pelas transformaes alternativas da natureza. (LEFF, 2000, p. 28)

    A cincia ocidental auxiliou na produo da crise ambiental: em seu af

    de objetividade e tecnologizao, empurrou para fora de seus domnios o meio

    ambiente. O ambiente o campo de externalidade das cincias (LEFF, 2000,

    p. 31). O ambiente at bem pouco tempo atrs no fazia parte do horizonte de

    perspectivas tericas e campos conceituais que formam um campo disciplinar7

    (LEFF, 2000).

    A exausto ambiental refletida nos nveis de qualidade da vida sobre a

    Terra o indcio da problemtica racionalidade pela qual a humanidade

    promove, com xito, sua prpria decadncia. Ou seja, estamos produzindo

    nossa existncia por meios que indubitavelmente, como vemos na atualidade,

    nos levaro a um amplo colapso8. Apesar disso, no inferimos a exclusividade

    7 A ttulo de exemplo, os estudos na rea da cincia agronmica elevaram as possibilidades de plantio em reas aparentemente no produtoras como no Bioma Cerrado. Se por um lado conseguiu-se aumentar a produo agrcola, por outro o desmatamento do Cerrado cresceu vertiginosamente. Na atualidade, aproximadamente 50% do territrio do Cerrado encontra-se convertido em reas de pastagens e agricultura. (SANO et al., 2010 apud FERREIRA et al., 2011) 8 A crise hdrica de So Paulo, ocorrida a partir de 2014, um exemplo da gnese de um colapso. No referido ano, a maior metrpole brasileira apresentou problemas graves de abastecimento de gua para sua populao. Tal situao reflexo de um conjunto de fatores onde se misturam, alta concentrao de demanda (a macrometrpole paulista corresponde a 50% da rea urbanizada do estado de So Paulo, e mais de 30 milhes de habitantes

  • 25

    do homem moderno ocidental capacidade de encurralar-se em um colapso

    produzido por si mesmo9. Entretanto, o que faz a crise ambiental de nossos

    dias adquirir caracterstica singular a produo de um colapso em escala

    global, com riscos drsticos inclusive espcie humana.

    O caminho unidirecional do progresso no Ocidente foi construdo sob a

    propagao do valor sempre positivo aliado s ideias sobre consumo e cincia.

    Isso revela-nos que concepes diversas de construo da realidade foram

    muitas vezes violentamente desconsideradas, mesmo que estas tivessem sido

    construdas em dinmicas complexas de relaes socioambientais milenares10.

    O monologismo e o desenho monotpico global do Ocidente relacionam-se com outras culturas e povos a partir de uma posio de superioridade e so surdos s cosmologias e epistemologias do mundo no-ocidental. (GROSFOGUEL, 2009, p. 406)

    Dentre os maiores exemplos de tal epistemicdio11, pode-se considerar

    aquele ocorrido nas Amricas, no qual os povos nativos desse continente

    foram exterminados fisicamente12 ou tiveram seus saberes e modos de vida

    violentamente subjugados.

    Emplasa, 2012) m gesto pblica e mal uso dos recursos hdricos, alm de secas prolongadas (JACOBI et al., 2015). Aliado a isto a Agncia Nacional de guas publicou em seu relatrio em 2013 que 80% das guas no Brasil se situam na regio menos povoada de nosso territrio, a Amaznia e que as cidades densamente povoadas apresentam quase metade de seus recursos hdricos em nveis ruins ou pssimos (44%). 9 O denso livro Colapso como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso (2005), do professor de geografia da Universidade da Califrnia Jared Diamond, nos fornece exemplos de povos ou civilizaes, tais como os famosos Maias ou os povos da Ilha de Pscoa, que se extinguiram devido convergncia de uma srie de pequenas catstrofes socioambientais. No entanto o professor Diamond ressalta em seu livro que as escolhas equivocadas dessas sociedades tiveram um peso determinante na derrocada das mesmas. 10 Tambm no livro Colapso h um exemplo que ilustra como a racionalidade ocidental age, na maior parte das vezes, quando em contato com culturas diversas. Nas terras altas da Nova Guin a iluso de primitiva tcnica agronmica fez com que os europeus convencessem os nativos a alterarem suas formas de plantar em declives acentuados. O resultado foi que nas primeiras chuvas aps a implantao da nova tcnica, a encosta desmoronou e toda plantao foi perdida. Na safra posterior, os nativos das terras altas da Nova Guin retomaram sua forma tradicional de plantar nas encostas. 11 Segundo Santos (2005, p. 22) o epistemicdo um conceito que designa a morte de um conhecimento local perpetrada por uma cincia aliengena. 12 O genocdio nas Amricas resultou em um nmero em torno de 70 milhes de mortes. (BAEZ, 2010, p. 35)

  • 26

    Esta razo excludente, ao buscar seus objetivos, compromete o meio

    ambiente de forma decisiva, pois se baseia em dois aspectos principais: 1 ela

    possui uma viso gulosa da realidade13 e 2 ela altamente racista.

    A viso gulosa est presente nas possibilidades de consumo que se

    construram com a expanso do capital. Segundo Escobar, este consumo

    continuamente alimentado no imaginrio mundial a partir da propagao da

    ideia de conforto associada a ele (ESCOBAR, 1996 apud CAJIGAS-

    ROTUNDO, 2007). Esta viso gulosa, sempre crescente, esbarra nos limites

    biofsicos de nosso planeta, tanto quando consideramos a produo dos

    produtos quanto ao seu descarte14.

    Alm disso, grande parte das propostas ambientais surgidas nas

    dcadas de 1970 e 1980, apesar de reconhecer tal viso gulosa, no consegue

    contrap-la. Ao contrrio, a refora em certo sentido, pois medida que

    propagou a sustentabilidade combinada ao desenvolvimento econmico, fez

    surgir o famigerado desenvolvimento sustentvel. Ou seja, tal medida

    procurou manter os nveis crescentes da economia e do consumo das

    potncias econmicas mundiais, aliado a medidas de diminuio de impactos

    ambientais.

    O discurso da sustentabilidade busca reconciliar os contrrios da dialtica do desenvolvimento: o meio ambiente e o crescimento econmico. Este mecanismo ideolgico no significa apenas uma volta de parafuso a mais da racionalidade econmica, mas opera uma volta e uma torcimento da razo; seu intuito no internalizar as condies ecolgicas da produo, mas proclamar o crescimento econmico como um processo sustentvel, firmado nos mecanismos do livre mercado como meio eficaz de assegurar o equilbrio ecolgico e a igualdade social. (LEFF, 2004, p. 27)

    13 Cajigas-Rotundo (2007) usa este termo para demonstrar a busca insacivel de novas fontes de consumo geradas na dinmica do capitalismo. 14 O exemplo mais associado aos limites biofsicos do planeta frente ao consumo desenfreado de nosso tempo relaciona-se a alta quantidade de Gs Carbnico (CO2) contido na atmosfera na atualidade. Isto o que nos expe os relatrios do IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change (Painel Mundial Intergovernamental sobre Mudanas Climticas). O CO2 dissolvido na atmosfera causa o efeito estufa, que provoca o aumento da temperatura global e consequentemente catstrofes naturais (tornados muito fortes, aumento do nvel dos mares, extremos climticos prolongados). O aumento de CO2 atmosfrico na atualidade produto direto da queima de combustveis fsseis, tais como carvo e petrleo, usados em abundncia desde meados da dcada de 1950 do sculo XX. Aliado a isto, outro fator do aumento de CO2 atmosfrico a derrubada de florestas que poderiam agir no sequestro (remoo) do gs carbnico atmosfrico.

  • 27

    O que se pode ver a hybris del punto cero se reinventado e agindo

    continuamente, pois a propagao da ideia de desenvolvimento sustentvel foi

    produzida pelos causadores dos problemas: os pases altamente

    consumidores. Novamente se cai no erro de generalizar um conceito com base

    numa viso nica sobre o mundo. Tal estratgia reflete mais uma vez o

    racismo epistmico da viso do norte global, pois o desenvolvimento

    sustentvel exclui os povos economicamente subdesenvolvidos do processo

    de formulao de alternativas aos problemas socioambientais.

    Alm do exposto, h outro fator, um conceito implcito de escassez que o

    termo desenvolvimento sustentvel carrega consigo. Tal caracterstica gera,

    principalmente aos pases centrais do capitalismo, a afetao da expectativa de

    consumo. Mas o que surge dessa expectativa e o que relativamente pouco se

    pergunta quem consome, j que a possibilidade de consumo dos pases

    perifricos do capitalismo sempre se encontrou afetada. Ao desconsiderar a

    escassez de que para quem, a razo ocidental age, como sempre, de forma

    excludente. Tal racismo esconde as solues no-ocidentais e

    [...] est relacionado com a poltica e a sociabilidade. O racismo epistmico descura a capacidade epistmica de certos grupos de pessoas. Pode basear-se na metafsica ou na ontologia, mas os resultados acabam por ser os mesmos: evitar reconhecer os outros como seres inteiramente humanos. (MALDONADO-TORRES, 2009, p. 345).

    Este racismo epistmico provm de uma razo preguiosa, indolente,

    como noz diz Boaventura de Souza Santos. Esta razo indolente aquela que

    no quer ver as possibilidades inesgotveis no mundo, dentre outras razes,

    porque no quer perder o domnio sobre o mesmo. Ela uma razo

    [...] preguiosa, que se considera nica, exclusiva, e que no se exercita o suficiente para poder ver a riqueza inesgotvel do mundo. Penso que o mundo tem uma diversidade epistemolgica inesgotvel, e nossas categorias so muito reducionistas. (SANTOS, 2007, p. 25)

    Este mesmo autor, ao explicar melhor o modelo pelo qual a razo

    indolente opera, divide-a em duas razes: uma dita metonmica e outra

  • 28

    prolptica. A razo metonmica age no sentido de homogeneizar as

    experincias, diminuindo o presente:

    Ento esse conceito de razo metonmica contrai o presente porque deixa de fora muita realidade, muita experincia, e, ao deix-las de fora, ao torn-las invisveis, desperdia a experincia. (SANTOS, 2007, p. 26)

    Ao fazer isso, a razo ocidental opera em direo a um tipo nico de

    realidade. Tudo o que est fora do referido presente ocidental est fora do

    presente e, por conseguinte, desconsiderado. Por isso nosso presente

    fulgaz e diminudo. No mesmo raciocnio, Santos (2007, p. 26) tambm nos fala

    sobre a razo prolptica:

    Nossa razo ocidental muito prolptica, no sentido de que j sabemos qual o futuro: o progresso, o desenvolvimento do que temos. mais crescimento econmico, um tempo ideal linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa: o futuro infinito.

    Nesse mesmo sentido, Santos (2009, p. 445) expe:

    Trata-se de uma histria que pe fim a todas as teleologias porque estas pressupem sempre a eleio de um passado especfico como condio da legitimao de um futuro nico.

    A razo indolente homogeneizante exclui, dessa forma, as experincias

    gestadas em diversos lugares do mundo, que no esto alinhadas ao

    desenvolvimento econmico ilimitado. Aqui se confirma no somente a viso

    gulosa do ocidente bem como o racismo epistmico no qual ele engendra sua

    lgica.

    A dificuldade que temos em colocar alternativas interrogadoras a essa

    razo indolente advm do fato de ela possuir uma base slida, conformada em

    longos perodos histricos. Para alm das contradies intrnsecas prpria

    lgica mercadolgica, onde as relaes de poder so extremamente desiguais,

    essa razo moderna produziu desenvolvimento econmico e tecnolgico de

    larga aplicao pela humanidade. Tanto assim que estamos chegando a

  • 29

    nveis populacionais nunca antes vistos, devido principalmente evoluo na

    rea de sade e certa distribuio desses recursos15.

    No entanto, ao colocar-se em funcionamento, essa razo tambm

    produziu a crise ambiental, a crise de nosso tempo, a crise civilizatria e de

    modos de conhecimento. Uma crise que anuncia realmente o fim da

    histria16. A cincia e a tecnologia se converteram na maior fora produtiva e

    destrutiva da humanidade (LEFF, 2000, p. 23). a partir dessa crise que

    diversos pensamentos tomam forma, ganham fora e se apresentam como

    possibilidade alternativa ao propalado unvoco crescimento econmico. Nesse

    bojo de sentimentos forjados nessa crise que Enrique Leff no se deixa tomar

    pelo niilismo e prope, de forma contundente, uma guinada rumo a uma

    complexidade ambiental.

    2.2 Delineando conceitos: a Complexidade Ambiental

    Como vimos, a crise ambiental de nosso tempo se apresenta como um

    fato impregnado em nosso cotidiano e no mais como alguma especulao

    mirabolante e longnqua. Desse modo, o enfrentamento dessa crise no

    somente necessrio, mas, sobretudo, urgente. No entanto, essa crise de

    civilizao, de nossa maneira de produzir a vida, no deve ser enfrentada a

    partir da proposio de alternativas de desenvolvimento, mas, ao contrrio, a

    partir do desenvolvimento de alternativas ao desenvolvimento. Na nsia de

    entender e estruturar uma possibilidade para essa alternativa, Enrique Leff

    Zimmerman, socilogo ambientalista mexicano17, forjou o conceito de

    complexidade ambiental:

    Na confluncia dos mltiplos interesses em jogo na transio para uma ordem econmica sustentvel, abre-se um amplo

    15 Segundo a ONU, os trs fatores principais para o aumento da populao mundial nos ltimos anos so: as taxas de fecundidade, o aumento da longevidade e a migrao internacional. Os dois primeiros, taxas de fecundidade e aumento da longevidade esto intimamente

    relacionados a evolues na rea de sade (World Population Prospects, The 2015 revision). 16 A inteno aqui fazer uma ironia ao citar o fim da histria, pois em seu sentido original este termo esteve relacionado ao fim das agonias da histria e vemos que a crise ambiental provocou o contrrio. 17 A referida denominao ao professor Leff foi retirada do Curriculum do docente na pgina da UNAM Universidade Autnoma do Mxico. Disponvel em: .

  • 30

    espao de concordncias e um espectro de modelos sociais alternativos. Neste processo, parece pouco realista enfrentar o projeto neoliberal to-somente com os valores de uma tica conservacionista. Um dos grandes desafios que a sustentabilidade enfrenta a construo do conceito de ambiente como um potencial produtivo sustentvel; isto , materializar o pensamento complexo numa nova racionalidade social que integre os processos ecolgicos, tecnolgicos e culturais, para gerar um desenvolvimento alternativo. (LEFF, 2004, p. 60)

    Diante do quadro de grave crise e riscos extremos que se apresentam

    medidas tpicas por vezes bem-intencionadas, como plantar uma rvore ou

    cuidar dos animais (PORTO-GONALVES, 2004, p. 19). Tais iniciativas soam

    como uma gota dgua no oceano e empresas e governos as utilizam como

    aes de desenvolvimento sustentvel, gerando um campo de aspecto

    positivo nas prticas predatrias por eles perpetradas, sobretudo em

    consumidores mais desavisados. Por outro lado, em uma via mais crtica,

    essas aes de carter tpico geram mais angstia e questionamentos. a

    partir desse segundo eixo questionador que a complexidade ambiental se

    forma.

    Mas, ao mesmo tempo em que a complexidade ambiental se forja na

    utopia de minimizao das angstias, ela se forma no exerccio de desmonte

    das certezas modernas. Ao mesmo tempo em que intenta fornecer alternativas

    ao modelo vigente, ela implode o aparentemente impenetrvel alicerce dos

    valores modernos.

    Nesse sentido, apreender a complexidade ambiental implica um processo de desconstruo do pensado para se pensar o ainda no pensado, para se desentranhar o mais entranhvel de nossos saberes e para dar curso ao indito, arriscando-se a desmanchar nossas ltimas certezas e a questionar o edifcio da cincia. (LEFF, 2002, p. 196)

    O principal exerccio da complexidade o questionamento da aparente

    inevitabilidade do modelo nico. Tal questionamento no deve partir da

    unicidade discursiva da cincia, pois esta foi formada no bojo da (e para) a

    racionalidade modernizadora.

    [...] a complexidade ambiental implica uma nova compreenso do mundo que problematiza os conhecimentos e saberes

  • 31

    arraigados em cosmologias, mitologias, ideologias, teorias e saberes prticos que se encontram nos alicerces da civilizao moderna, no sangue de cada cultura, no rosto de cada pessoa. (LEFF, 2002, p. 196)

    Apesar de contrapor a situao fragmentria formada na racionalidade

    modernizadora, que reserva ao ambiente o campo das externalidades, e a

    despeito do que seu nome possa deixar a entender, a complexidade ambiental

    no uma compiladora holstica das disjunes modernizantes.

    Esta perspectiva do saber ambiental questiona o pensamento da complexidade (Morin, 1993), concebido como resultado da evoluo ntica do ser, como um processo de auto-organizao da matria que, com a emergncia de uma conscincia ecolgica na noosfera, viria completar e recompor o mundo fragmentado e alienado, herdado desta civilizao em crise, atravs de uma viso sistmica. (LEFF, 2004, p. 418)

    Nesse sentido, Leff (2016, p. 300) ainda nos diz que tal complexidade

    reflexiva, baseada nas cincias da complexidade e nos sistemas

    autorreguladores, se constitui numa cincia ps-normal, que busca superar a

    pretensa objetividade da cincia. Contudo, mesmo a partir dessa nova

    perspectiva cientfica, Leff (2016, p. 301) questiona: para alm da eficcia

    desses processos [...] teramos que nos perguntar: como surge a agncia

    social?.

    Entende-se que o conceito de complexidade ambiental forjado por Leff

    uma tentativa de encontrar resposta ao questionamento acima, pois a

    complexidade ambiental indica uma perspectiva de transformao do

    conhecimento na interveno do mundo. Ou seja, para que isso ocorra,

    necessria a criao (ou reativao) de saberes e racionalidades outras, que

    no somente aquelas geradas no (e pelo) desenvolvimento econmico (LEFF,

    2004, p. 418).

    2.3 Os elementos constitutivos da Complexidade Ambiental

    2.3.1 A Racionalidade Ambiental

    Gerar uma racionalidade alternativa racionalidade vigente uma das

    premissas da complexidade ambiental. A tentativa de incrementar aes

    ambientais no interior de uma racionalidade predominantemente economicista

  • 32

    e instrumental leva internalizao de algumas normas ecolgicas para o

    centro da lgica capitalista. O desenvolvimento sustentvel aplicado pela

    maioria das empresas no mundo parte do princpio de que a sustentabilidade

    apenas mais um dentre os vrios custos de produo. Reitera-se que nessa

    perspectiva a sustentabilidade usada tal qual um engodo, pois ao assimilar

    mais este custo produo e desenvolver medidas ecolgicas compensatrias,

    cria-se a iluso de uma ao que controle a crise ambiental.

    O conceito de racionalidade ambiental pe em relevo o fato de que a construo da sustentabilidade no a fuso de duas lgicas ou a internalizao da lgica ecolgica na lgica do capital. (LEFF, 2004, p. 51)

    Por detrs dessas prticas sustentveis est presente, na maior parte

    das vezes, um estratagema ideolgico: as empresas prometem uma

    sustentabilidade que de antemo elas j sabem que no podem (ou no

    querem) cumprir, pois isso atrapalha o crescimento econmico almejado. Isso

    porque a racionalidade que fundamenta o funcionamento das empresas

    caminha em direo diametralmente oposta quela preconizada pelos

    fundamentos da sustentabilidade. O que torna tais prticas empresariais

    sustentveis ainda mais perversas o verniz cientificista que carreiam

    consigo. Por possurem essas caractersticas, so entendidas pelos seus

    consumidores como formas ideais de resoluo das irracionalidades e conflitos

    gerados pelo sistema. Nada mais ilusrio:

    Ao contrrio, a racionalidade cognitivo-instrumental da modernidade aparece como a causa principal da crise ambiental, reclamando a constituio de uma nova racionalidade social [...] (LEFF, 2004, p. 54)

    A racionalidade instrumental oferece para o enfrentamento da crise

    ambiental a sada da resoluo tcnica, que mais cmoda e aprisiona a

    humanidade na manuteno dessa racionalidade.

    H uma crena acrtica, de que existe, sempre, uma soluo tcnica para tudo. Com isso ignora-se que o sistema tcnico inventado por qualquer sociedade traz embutido nele mesmo a sociedade que o criou, com as suas contradies prprias traduzidas nesse campo especfico. (PORTO-GONALVES, 2011, p. 15).

  • 33

    Como visto acima, no se pode almejar um cientificismo exclusivista na

    resoluo da crise ambiental, pois o campo cientfico , ao mesmo tempo, parte

    do produto e produtora da racionalidade que (des)constri o mundo. Os

    saberes cientficos [...] serviram de suporte terico e meios instrumentais ao

    processo civilizatrio, fundado no domnio do homem sobre a natureza (LEFF,

    2004, p. 155). O caminho em direo a uma racionalidade ambiental passa

    pelo questionamento da cincia, sobre sua negao e externalizao do

    ambiente (LEFF, 2004).

    Alm de embasar a superao dos paradigmas do conhecimento, a

    racionalidade ambiental deve transcender a estrutura social (LEFF, 2012).

    Essas superaes cientficas e sociais no podem limitar-se formulao de

    novos paradigmas e incluses sociais. A sustentabilidade almejada pela

    racionalidade ambiental perpassa

    [...] um objetivo que transborda a capacidade das cincias, para converte-se num projeto poltico mediante a constituio de atores sociais movidos por propsitos e interesses inscritos dentro de matrizes de racionalidade, orientados por saberes e enraizados em identidades prprias e diferenciadas. (LEFF, 2012, p. 53)

    H de fato uma necessidade de ruptura dessa racionalidade.

    necessrio reconfigurar a compreenso do mundo, [...] ressignificando os fins

    e os meios os quais se dirigem as aes sociais (econmicas, polticas),

    iluminando novas teorias e renovando os sentidos de existncia (LEFF, 2012,

    p. 50).

    O que se almeja com a complexidade ambiental a construo de um

    tipo alternativo de racionalidade, baseado na [...] transformao dos processos

    econmicos, polticos, tecnolgicos e educativos [...] (LEFF, 2004, p. 133).

    Nesse sentido, a racionalidade ambiental

    [...] no a expresso de uma lgica, mas o efeito de um conjunto de interesses e de prticas sociais que articulam ordens materiais diversas que do sentido e organizam processos sociais atravs de certas regras, meios e fins socialmente construdos. (LEFF, 2004, p. 134)

  • 34

    A racionalidade ambiental no anseia o fim das contradies, nem muito

    menos a extino da racionalidade econmica e instrumental18, mas sim a

    instaurao de [...] um conjunto de processos que integram diferentes 'esferas

    de racionalidade' (LEFF, 2004, p. 142). A racionalidade ambiental no busca a

    aplicao de um modelo, ao contrrio,

    [...] desloca a hegemonia homogeneizante da racionalidade moderna (econmica, terica e instrumental), fazendo valer a categoria de racionalidade substantiva, que no campo da norma, seno dos valores [...]. (LEFF, 2012, p. 57)

    A racionalidade ambiental fragmenta o bloco monoltico pelo qual se

    apresenta o pensamento corrente na atualidade; insere possibilidades no

    interior da aparente unicidade de produo da vida.

    Aquilo que gera a crise ambiental a homogeneizao do mundo pelo

    modo de se produzir a vida foi fruto da desarticulao dos modos de vida

    diversos, no intuito de expanso do capital, provocado pela instaurao da

    racionalidade instrumental. A racionalidade ambiental intenta rearticular esses

    modos de vida ao

    [...] incorpora[r] um conjunto de valores e critrios que no podem ser avaliados em termos do modelo da racionalidade econmica, nem reduzidos a uma medida de mercado. (LEFF, 2004, p. 136)

    A compreenso, ou seja, a racionalidade pela qual se (des)constri o

    mundo, no se altera pela autoconscincia do sujeito isolado. Tal

    (des)construo emerge do confronto entre racionalidades. Diferentes

    racionalidades se edificam por meio da concepo de diferentes saberes,

    forjados em consonncia com a singularidade das relaes socioambientais de

    cada localidade. Nesse sentido, ao se firmar uma nova racionalidade, na

    realidade est se desinvisibilizando um antigo saber. nesse sentido que

    racionalidade e saber se convergem na composio de uma complexidade

    ambiental.

    18 Soaria incoerente exigir a qualquer racionalidade alternativa a aplicao de uma lgica que ela intenta desautorizar, ou seja, aplicar um sistema de extirpao racionalidade econmica e instrumental usar da ttica excludente que esta mesma se valeu para se sobrepujar sobre as outras racionalidades.

  • 35

    2.3.2 O Saber Ambiental

    A outra ponta que se junta racionalidade ambiental na formulao de

    uma complexidade ambiental o saber ambiental. De fato a construo de

    uma racionalidade ambiental implica a formao de um novo saber (LEFF,

    2004, p. 145).

    O saber ambiental problematiza o conhecimento fragmentado em disciplinas e a administrao setorial do desenvolvimento, para constituir um campo de conhecimentos tericos e prticos orientado para a rearticulao das relaes sociedade-natureza. [...] O saber ambiental excede as cincias ambientais, constitudas como um conjunto de especializaes surgidas da incorporao dos enfoques ecolgicos s disciplinas tradicionais antropologia ecolgica; ecologia urbana; sade, psicologia, economia e engenharia ambientais e se estende alm do campo de articulao das cincias (LEFF, 1986/2000), para abrir-se ao terreno dos valores ticos, dos conhecimentos prticos e dos saberes tradicionais. (LEFF, 2004, p. 145)

    Racionalidade e saber esto em estreita afinidade na conformao de

    um corpo social. H uma relao de complementaridade entre as duas

    instncias, em que os saberes do base racionalidade e, por conseguinte, a

    racionalidade sustenta os saberes que a formaram. Por isso iluso acreditar

    que um processo de degradao ambiental se encerra com aes tpicas que

    ecologizam a economia. O estabelecimento de paradigmas diversos de

    conhecimento basilar na construo de uma nova racionalidade social (LEFF,

    2004, p. 146).

    Assim como a racionalidade ambiental, o saber ambiental no

    excludente, ao contrrio, procura incluir aquilo que fora deixado de lado na

    objetivao do mundo. O saber ambiental no almeja somente alcanar um

    novo paradigma cientfico, mais complexo, abrangente e interdisciplinar, mas

    almeja um

    [...] dilogo e amlgama de saberes, desde os nveis mais altos de abstrao conceitual at os nveis de saber prtico e cotidiano onde se expressam suas estratgias e prticas. (LEFF, 2004, p. 153)

  • 36

    O campo do saber aquele que recupera, na prtica, o ambiente

    externalizado pela cincia. O saber ambiental prope reoxigenar os saberes

    esquecidos e abjetos que circulam no meio social e reintegrar-lhes poder

    (saberes indgenas, camponeses, populares) (LEFF, 2012, p. 51). Oferecer um

    campo de exerccio, no somente prtico, mas tambm poltico a esses outros

    saberes uma democracia ambiental (LEFF, 2016, p. 294) em que haja uma

    possibilidade de integrao e contraposio desses diferentes saberes, na

    formao de uma realidade socioambiental sustentvel (ARAUJO, 2015).

    Enfim, o que se prope o dilogo dos saberes:

    [...] [o] encontro (enfrentamento, entrecruzamento, hibridao, complementao, antagonismo) de saberes diferenciados por matrizes de racionalidade-identidade-de-sentido que respondem a estratgias de poder pela apropriao do mundo e da natureza. (LEFF, 2012, p. 55)

    O desejo de um saber ambiental emerge do no contentamento da falta

    de conhecimento da cincia (LEFF, 2012, p. 59); na falta de sentido que ela

    produz ao almejar uma objetividade e uma universalidade que no coadunam

    com a situao identitria localizada do ser. Construir um saber ambiental

    ambientalizar o saber (conhecimento), localiz-lo, para gerar um feixe de

    saberes nos quais se entrelaam diversas vias de sentido (LEFF, 2012, p. 55).

    Nessa perspectiva, Santos (2006, p. 32) reprova o discurso unvoco da

    cincia na produo da vida e diz que o mesmo gera uma ausncia, ou um

    desperdcio de experincia. Experincias estas que poderiam agir em uma

    produo mais sustentvel da vida. Vale ressaltar que o referido autor no

    dissemina a necessidade de expurgo da cincia, mas sim [...] tentar fazer um

    uso contra-hegemnico da cincia hegemnica (SANTOS, 2006, p. 32), ou

    uma contra-epistemologia (SANTOS, 2009, p. 51). Nesse seguimento, o autor

    coincide com o entendimento de Leff e prope em consonncia com o Dilogo

    dos Saberes, a Ecologia dos Saberes:

    [...] possibilidade de que a cincia entre no como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber cientfico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indgenas, com o saber das populaes urbanas marginais, com o saber campons. (SANTOS, 2006, p. 32-33)

  • 37

    Entretanto valendo-se de Santos (2006, p. 33), ressalta-se que [...] tudo

    no vale o mesmo, bem como no estabelecer que a cincia valha para tudo.

    Contudo, em lugar de subscrever uma hierarquia nica, universal e abstrata entre os saberes, a ecologia de saberes favorece hierarquias dependentes do contexto, luz dos resultados concretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber. (SANTOS, 2009, p. 51)

    Prosseguindo nesse ponto de vista, Grosfoguel (2009, p. 385) ainda

    assevera que se deve estabelecer [...] um dilogo crtico entre diversos

    projetos crticos polticos/ticos/epistmicos, apontados a um mundo pluriversal

    e no a um mundo universal.

    Nessa possibilidade de dilogo dos saberes, dessas diferentes formas

    de saber, que o lugar adquire funo precpua. Entre os extremos ilusrios

    propagados, de um lado uma atopia difundida pela globalizao, em que o

    ente se desvincula totalmente de seu lugar e torna-se global, e de outro da

    sabida impossibilidade de uma identidade fixa, monotpica, de identificao

    nica e exclusiva com o lugar (ESCOBAR, 2005, p. 133), o espao local torna-

    se o lugar onde o saber outro se forma. a partir do local que modelos

    alternativos de natureza so forjados.

    Uma das vantagens ambientais dos modelos locais de natureza e que

    justamente se contrape ao modelo moderno que essas [...] no dependem

    da dicotomia natureza/sociedade (ESCOBAR, 2005, p. 136). Dessa premissa

    parte a diferena que permite que o espao possa ser gestado de forma

    ambientalmente mais sustentvel, pois afasta-se da ideia de natureza o papel

    exclusivo de recursos naturais.

    Tambm na localidade, no lugar, que podemos enxergar com mais

    clareza a possibilidade de construo de imaginrios econmicos alternativos

    (ESCOBAR, 2005, p. 139).

    O lugar como a cultura local pode ser considerado o outro da globalizao, de maneira que uma discusso do lugar deveria oferecer uma perspectiva importante para repensar a globalizao e a questo das alternativas ao capitalismo e modernidade. (ESCOBAR, 2005, p. 139)

  • 38

    Ao preconizar a defesa do lugar para a ocorrncia do dilogo dos

    saberes, registramos que esta estratgia est vinculada a [...] uma relao

    entre lugar, cultura e natureza (ESCOBAR, 2005, p. 142). um projeto que se

    conecta ideia de transmodernidade, cunhada por Enrique Dussel, em que:

    Em vez de uma nica modernidade [...] se enfrente a modernidade eurocentrada atravs de uma multiplicidade de respostas crticas descoloniais que partam das culturas e lugares epistmicos subalternos de povos colonizados de todo o mundo. (DUSSEL, 2001 apud GROSFOGUEL, 2009, p. 408)

    Segundo Dussel, essa transmodernidade nos proporcionaria [...] uma

    diversalidade de respostas para os problemas da modernidade, conduzindo

    transmodernidade (DUSSEL, 2001 apud GROSFOGUEL, 2009, p. 408).

    Nesse sentido, Santos (2009, p. 472) nos diz que h um deslocamento

    pragmtico de hierarquias entre saberes, transformando assim [...] todos

    saberes em saberes experimentais (SANTOS, 2009, p. 472).

    Quando Dussel preconiza uma transmodernidade, ou quando Escobar

    defende o local como alternativa ao global, ou mesmo quando Santos diz sobre

    ecologia dos saberes, de fato o que se busca um dilogo dos saberes o

    empoderamento local por meio do saber. Neste trabalho, compreender todas

    essas alternativas ao modelo unvoco da modernidade tanto essencial

    tentativa de expandir os entendimentos acerca do mencionado campo terico

    do turismo, bem como nos ajuda a compreender as caractersticas da atividade

    turstica que favorecem a possibilidade do exerccio de uma complexidade

    ambiental.

    A fim de alcanar tais objetivos, no prximo captulo a abordagem

    pautou-se no entendimento da construo terica do turismo atravs do tempo

    bem como nos desdobramentos sobre as interconexes entre o campo terico

    do turismo e a complexidade ambiental.

  • 39

    3 AS (IN)DEFINIES DO TURISMO

    Ao analisar o turismo como atividade complexa, tanto em seu domnio

    terico bem como em seu campo emprico, intencionamos desatar as amarras

    analticas que simplificam a referida atividade em uma anlise economicista. Ao

    faz-lo, nossa inteno demonstrar que por detrs dessa prtica habitual

    contempornea se envolve uma intrincada rede de inter-relacionamentos que

    podem convergir em uma possvel complexidade ambiental.

    Nesse sentido, em um primeiro momento neste captulo, realizou-se um

    apanhado de vrias conceituaes sobre o turismo ao longo do tempo, na

    tentativa de apreender os entendimentos cientficos produzidos sobre o tema.

    Em seguida, trabalhou-se acerca da variabilidade conceitual,

    demonstrando pontos convergentes e divergentes na tentativa de estabelecer a

    complexa atuao do turismo.

    Logo aps, problematizou-se as possibilidades epistemolgicas do

    turismo, ao mesmo tempo buscando-se as compreenses tericas que

    sustentam a complexidade ambiental de Leff, explanadas no primeiro captulo,

    no sentido de estabelecer no interior da teoria do turismo elementos que atuam

    como agentes aglutinadores de uma complexidade ambiental.

    3.1 Epistemologia do turismo

    Os estudos acerca do turismo possuem um curto perodo histrico. Esse

    fato no reside no descuido de estudiosos acerca do tema, mas sobretudo na

    relativa novidade histrica da ocorrncia dessa atividade como uma prtica

    social. Foi sobretudo em meados do sculo XIX na Inglaterra que um crescente

    estilo de vida que coadunava acmulo de tempo livre, capital e

    desenvolvimento de transportes proporcionou um movimento de pessoas em

    busca de fruio.

    3.1.1 O turismo como objeto cientfico compreendendo-o por meio de fases

    Nesta seo, vrias definies sobre turismo sero exploradas, desde as

    primeiras noes ligadas ao incio das anlises sobre a atividade turstica at

    as formulaes mais complexas surgidas no acmulo dos conhecimentos

    produzidos. Este exerccio de resgate conceitual possibilitar perceber a

  • 40

    pluralidade dos desdobramentos tericos sofridos pelo campo do turismo ao

    longo dos anos na tentativa de explicao desse fenmeno.

    Para o fim apresentado no pargrafo anterior e como forma de estruturar

    didaticamente os conceitos a serem trabalhados neste tpico, dividiu-se esta

    anlise em trs momentos epistemolgicos do turismo ou Fases Tericas do

    Turismo, tal como proposto por Netto (2005 apud NETTO; TRIGO, 2009, p.

    171). O autor tomou por base a teoria dos Paradigmas de Kunh19, e delimitou

    as Fases Tericas do Turismo nos grupos abaixo especificados (Figura 2):

    Figura 2 - Fases Tericas do Turismo

    Fonte: Netto e Trigo (2009, p. 171).

    1 Fase Pr-paradigmtica uma fase terica inicial, onde os autores

    lanaram uma primeira tentativa de uma anlise terica do turismo;

    19 [...] uma constelao de realizaes concepes, valores, tcnicas, etc. compartilhada por uma

    comunidade cientfica e utilizada por essa comunidade para definir problemas e solues legtimos

    (KUHN, 1997, p. 15).

  • 41

    2 Fase Paradigma Sistema de Turismo formada por autores que utilizaram

    a Teoria Geral de Sistemas (TGS) para seus estudos na rea do turismo.

    rea de Transio nesta fase, Netto (2005) nos informa sobre um grupo de

    autores que ainda se apoiam na TGS, mas que j ensaiam outros tipos de

    abordagem nos estudos do turismo.

    3 Fase Novas Abordagens so autores que centralizam suas atenes s

    aes humanas, no interior da atividade do turismo.

    Importante ressaltar tambm que tal diviso, mostrada na Figura 2,

    apresenta certa ordem cronolgica. Ressalta-se aqui a utilizao da ideia de

    diviso feita pelo autor. Entretanto, tal esquema no fator que limita nossa

    anlise, medida que autores no listados por Netto (2005) aparecero em

    nossas abordagens.

    De uma forma geral, quase um consenso entre pesquisadores que

    grande parte das anlises na rea de estudos do turismo fornece relevncia ao

    carter econmico desta atividade (MOESCH, 2000). possvel entender tal

    caracterstica de pesquisa, pois o campo mais aparente do turismo aquele da

    flagrante dinamizao econmica que essa atividade mobiliza. Conjuntamente,

    a massificao sempre crescente das viagens a partir da segunda metade do

    sculo XIX est vinculada, principalmente, ampliao da economia mundial

    como um todo. No se pode ignorar tambm o fato de que a reserva de

    recursos financeiros para o custeio dos deslocamentos humanos na atualidade

    situao sine qua non para que o turismo ocorra. Todas essas questes

    colaboraram para que o turismo tivesse boa parte de suas anlises voltadas

    para o aspecto econmico.

    3.1.2 Os estudos iniciais e a fase pr-paradigmtica do turismo

    Quanto mais se recua no tempo para a anlise dos conceitos em

    turismo, observa-se que a viso permeada pelo vis econmico ainda mais

    marcante. De certa maneira simples entender tal condio, pois o incio da

    pesquisa cientfica de qualquer objeto consegue desvelar suas caractersticas

    mais aparentes. Alm disso, alguns desses estudos tinham por obrigao

    ressaltar a viabilidade do turismo em relao s finanas.

  • 42

    No incio do sculo XX, os primeiros estudiosos cientficos do turismo se ocuparam mais da questo estatstica, deste modo, suas primeiras anlises eram relacionadas a quem e quem no turista, de onde vem o turista, quanto gasta em suas viagens e como esse gasto reflete no destino. Entende-se, assim, o motivo de as primeiras abordagens cientficas de turismo e turista terem forte enfoque econmico. (NETTO, 2010, p. 22)

    Por meio da anlise dos conceitos cunhados pelos autores da Fase Pr-

    Paradigmtica, foi possvel verificar que Netto (2005) no cita em sua lista os

    autores dos estudos iniciais do turismo. Esses estudos iniciais possuem

    anlises diversas, mas que no conseguem escapar do destaque relevncia

    econmica que o turismo alcana. Como podemos ressaltar, um dos primeiros

    conceitos cunhados que se conhece sobre turismo, destacado abaixo, aponta

    que o:

    Turismo o conceito que compreende todos os processos, especialmente os econmicos, que se manifestam na chegada, na permanncia e na sada do turista de um determinado municpio, pas ou estado. (SCHATTENFHOFEN, 1911 apud MOESCH, 2000, p. 10)

    Ainda nessa fase bastante inicial de anlise temos as definies dos

    estudiosos da denominada escola berlinense20 (FUSTER, 1974, p. 24-28

    apud BARRETTO, 2003, p. 09), dentre os quais destacamos Morgenroth:

    Trfego de pessoas que se afastam temporariamente do lugar fixo de residncia para deter-se em outro local com o objetivo de satisfazer suas necessidades vitais e de cultura ou para realizar desejos de diversas ndoles, unicamente como consumidores de bens econmicos e culturais. (BARRETTO, 2003, p. 10)

    Josef Stradner destaca ainda que o turismo um trfego de viajantes

    de luxo e que esses viajantes buscam a satisfao de uma necessidade de

    luxo (BARRETO, 2003, p. 10). J fora dos estudos da escola berlinense, o

    ingls A. J. Norwall (1936) trouxe o conceito de turista, que em sua viso :

    20No final dos anos 1920, ainda na Alemanha, criou-se o Forcshung-sinstituts fur Fremdenverkehr (Centro de Pesquisas Tursticas) na Universidade de Berlim, cuja produo terica passou a ser conhecida como Escola Berlinense (REJOWSKI, 1996, p. 16).

  • 43

    [...] a pessoa que entra num pas estrangeiro sem a inteno de fixar residncia nele, ou de nele trabalhar regularmente, e que gasta, naquele pas de residncia temporria, o dinheiro que ganhou em outro lugar. (DE LA TORRE, 1992, p. 17 apud BARRETO, 2003, p. 11)

    Nos primeiros conceitos acima, alm do carter de uma atividade que

    impulsiona a economia, vemos que h quase sempre uma referncia aos

    deslocamentos que o turismo provoca, como nota-se no uso dos termos

    chegada e permanncia, trfego de pessoas, deter-se em outro lugar, entrar

    num pas estrangeiro. Pode-se eleger tal caracterstica como de segunda

    importncia nesses estudos incipientes do turismo, como nos diz Glucksmann,

    que o turismo um vencimento do espao por pessoas que vo para um local

    no qual no tm residncia fixa. Schwink, da mesma escola berlinense,

    destaca o turismo como movimento de pessoas que abandonam

    temporariamente o lugar de residncia [...].

    Outro centro de estudos importante surgido poca, que tambm deu

    destaque aos deslocamentos nos estudos do turismo, foi a escola polonesa.

    Lesczyck trouxe que: o movimento turstico aquele [] que durante um certo

    tempo residem num certo lugar, como estrangeiros [...].

    Um aspecto importante, iniciado no perodo pr-Segunda Guerra, foi o

    aumento da percepo dos impactos nas localidades que recebiam turistas

    (SANTANA, 2009). Desde ento, agregaram-se aos conceitos tursticos, alm

    da propagada movimentao econmica e dos deslocamentos, os olhares

    sobre as reas de destino. Logo aps essa etapa inicial das investigaes em

    turismo, mas ainda no interior daquilo que Netto (2005) denomina Fase Pr-

    Paradigmtica, viu-se crescer os estudos sobre turismo e consequentemente

    um aprofundamento das anlises nessa rea, como nos aponta Fuster (1971

    apud MOESCH, 2000, p. 11): [...] com a proliferao de monografias sobre a

    temtica, depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma qualificao nas

    novas conceituaes. Assim, na Fase Pr-Paradigmtica, por exemplo,

    encontramos a definio de Burkart e Medlik (1974, p. 39-40 apud BARRETO,

    2003, p. 12) [...] o turismo uma amlgama de fenmenos e relaes,

    fenmenos estes que surgem por causa do movimento de pessoas e sua

    permanncia em vrios destinos. Tambm nessa fase Hunziker e Krapf:

  • 44

    Turismo o conjunto das relaes e dos fenmenos produzidos pelo deslocamento e permanncia de pessoas fora do seu local de domiclio, sempre que ditos deslocamentos e permanncia no estejam motivados por uma atividade lucrativa principal, permanente ou temporria (HUNZIKER; KRAPF, 1942 apud MOLINA; RODRIGUEZ, 2001, p. 11).

    A introduo das localidades receptivas nas anlises tursticas fez com

    que as conceituaes, a partir de ento, ganhassem um aspecto de inter-

    relacionamento entre pessoas, de fenmeno social, de encontro de culturas,

    enfim, um carter sociolgico inserido nessas anlises. Lundberg (1974, p. 25

    apud BARRETO, 2003, p. 12) ressalta em seu conceito que o turismo possui

    um grande componente econmico, mas suas implicaes sociais so bem

    profundas. Beni (1998, p. 36), ao citar Jafari, esclarece que as definies

    passam a ficar um tanto quanto mais holsticas e tentam captar o fenmeno

    como um todo

    o estudo do homem longe do seu local de residncia, da indstria que satisfaz suas necessidades, e dos impactos que ambos, ele e a indstria, geram sobre os ambientes fsico, econmico e scio-cultural da rea receptora. (JAFARI, 1996, p. 11 apud BENI, 1998, p. 38)

    As conceituaes intentam abordar toda a complexidade observvel no

    turismo, como Fuster relata em extenso conceito:

    Turismo , de um lado, conjunto de turistas; do outro, os fenmenos e as relaes que esta massa produz em conseqncia de suas viagens. Turismo todo o equipamento receptivo de hotis, agncias de viagens, transportes, espetculos, guias-intrpretes, que o ncleo deve habilitar, para atender s correntes [...]. Turismo o conjunto de organizaes privadas ou pblicas que surgem, para fomentar a infra-estrutura e a expanso do ncleo, as campanhas de propaganda [...]. Tambm so os efeitos negativos ou positivos que se produzem nas populaes receptoras. (FUSTER, 1973, apud BARRETO, 2003, p. 11-12)

    Quando agrupou-se os autores nessa primeira fase de anlise,

    denominada por Netto (2005) de Pr-Paradigmtica, condensou-se uma

    enorme quantidade de autores, distribudos em longa faixa de tempo do final

    do sculo XIX at meados da dcada de 1960 do sculo XX. Realmente no se

    nota um paradigma unvoco que rege todos os conceitos delineados, mas isso

  • 45

    no foi impeditivo para o empobrecimento do conceito de turismo, ao contrrio,

    o que se notou foi o aumento da robustez do conceito de turismo ao longo do

    tempo, ao agregar incontestvel viso de impacto econmico que provoca as

    questes que envolvem o deslocamento de pessoas e os impactos sociais das

    localidades tursticas.

    As reas de estudos acadmicos, includo a o turismo, incorporam ao

    longo do tempo as inovaes ocorridas na cincia em geral e no somente em

    cada disciplina especfica. A produo de novos mtodos ou tcnicas so

    bastante comuns em cincia e levam um objeto de pesquisa experimentao

    contnua. Nessa perspectiva encontra-se a segunda Fase do Turismo de Netto

    (2005), a denominada Fase Sistema do Turismo (Figura 02).

    3.1.3 A gnese de um alinhamento paradigmtico: Sistemas

    Ao almejar o entendimento sobre a Fase Sistema do Turismo, deve-se

    deixar claro que os conceitos e teorias ao fenmeno turstico gestados nessa

    fase so caudatrias de um paradigma que percorreu no somente a rea de

    estudos do turismo, mas a cincia como um todo. Nesse sentido, foi importante

    elaborar um estudo introdutrio, destacando a emergncia cientfica do novo

    paradigma sistmico, expresso principalmente na Teoria Geral dos Sistemas

    TGS, para posteriormente nos concentrarmos sobre a Fase Sistema do

    Turismo.

    Em uma viso cientfica micromerista, o ser vivo um mosaico

    constitudo da associao de partes estruturais definidas rgos, tecidos,

    clulas, genes (BRANCO, 2014,). Comparativamente, essas partes so

    estruturas que exercem funes especficas e, tal qual uma mquina em bom

    funcionamento, resultado do bom funcionamento de suas engrenagens, ou

    seja, dessas partes estruturantes.

    Em contraposio a esta viso, decorrente sobretudo das descobertas

    subatmicas em fsica, as descries analticas atomsticas [...] de unidades

    elementares governadas pelas leis 'cegas' da natureza (BERTALANFFY,

    1977, p. 52) foram cedendo espao a vises mais holsticas, integradoras.

    Houve a necessidade de

  • 46

    [...] estudar no somente partes e processos isoladamente, mas tambm resolver os decisivos problemas encontrados na organizao e na ordem que os unifica, resultante da interao dinmica das partes, tornando o comportamento das partes diferente quando estudado isoladamente e quando tratado no todo. (BERTALANFFY, 1977, p. 53)

    Ou seja, estudos estruturalistas no satisfaziam mais a percepo

    cientfica a partir daquele momento. Tal situao abriu espao para a

    formulao de teorias sistmicas, dentre as quais destacamos aquela

    formulada por Bertalanffy (1977, p. 32) que diz que a teoria dos sistemas uma

    [...] tentativa de uma interpretao e uma teoria cientfica em assuntos nos quais anteriormente no existiam, e chegar a uma generalizao mais alta do que a das cincias especiais.

    A Teoria Geral dos Sistemas21 proposta por Ludwig von Bertalanffy,

    segundo o prprio autor, uma cincia geral de totalidade" (BERTALANFFY,

    1997 apud CAPRA, 1996, p. 43). Essa totalidade somente pode ser entendida

    no seu conjunto. Percebeu-se que entender as partes no possibilitava

    entender o todo:

    O sistema, [...] implica organizao (e no a mera coleo ou associao) de partes inter-relacionadas, de maneira a garantir o fluxo de energia. Portanto, no apenas uma unidade estrutural, mas, antes de tudo, funcional, e a funo no pode dispensar o deslocamento, o fluxo energtico. Finalmente, o sistema deve ser autorregulvel, de forma que seja mantido um perfeito equilbrio entre as partes, conservando constante o fluxo de energia. O sistema necessita, pois, uma fonte de energia externa, embora a energia possa ser acumulada, de alguma forma, dentro dele. O conjunto de elementos estruturais, perfeitamente inter-relacionados, garante o fluxo energtico e um mecanismo regulador controla o funcionamento geral por meio de processos de retroao. (BRANCO, 2014, p. 104)

    De fato, a TGS significou uma necessidade epistemolgica e

    metodolgica para explicar as descobertas mais recentes da cincia em seu

    tempo. Alm disso, temas j estudados em outras perspectivas de abordagem

    21 As ideias de Bertalanffy foram publicadas em vrios artigos e livros, mas o seu livro mais conhecido

    Teoria geral dos sistemas, publicado nos Estados Unidos, em 1968, no qual ele apresentou a sua teoria

    para os sistemas abertos. Tais sistemas poderiam ser de qualquer natureza, e a sua teoria geral de sistemas

    pretendia ser interdisciplinar. (NETTO; LOHMANN, 2008, p. 27)

  • 47

    eram submetidos a reanlises sistmicas. Foi nesse sentido, apoiados na

    Teoria Geral de Sistemas de Bertalanffy, que surgiram vrios modelos de

    anlises sistmicas do turismo.

    Segundo Netto e Lohmann (2008, p. 27), a primeira anlise do turismo

    utilizando a teoria geral de sistemas foi feita por Raymundo Cuervo (1967).

    Para Cuervo (1967, p. 29 apud NETTO; LOHMANN, 2008, p. 30) o turismo

    um conjunto bem definido de relaes, servios e instalaes que se geram em

    virtude de certos deslocamentos humanos. Segundo o mesmo autor, esse

    conjunto turstico um sistema com uma funo precpua de comunicao.

    Tal comunicao advinda do turismo pode adquirir tanto um papel positivo

    como negativo nas relaes humanas, sendo de evidente incentivo, segundo o

    autor, a busca da comunicao positiva do sistema turstico (CUERVO, 1967

    apud NETTO; LOHMANN, 2008).

    Outro sistema turstico bastante difundido o de Neil Leiper, conhecido

    por meio de sua publicao no peridico Annals of Tourism Research, em

    1979. A proposta de Leiper abarca cinco elementos, sendo trs de cunho

    geogrfico a regio de origem dos viajantes; uma regio de trnsito e a

    regio de destino turstico (NETTO; LOHMANN, 2008). Os dois elementos

    restantes so os turistas e a indstria de turismo e de viagens (os meios de

    hospedagem, os restaurantes, atrativos tursticos etc.) (Figura 03).

  • 48

    Figura 3 - Modelo de sistema de turismo proposto por Leiper

    Fonte: Netto e Lohman (2008, p. 34).

    A novidade na proposta de Leiper est atrelada ao que ele denominou

    de fatores ambientais externos fsico, tecnolgico, social, cultural,

    econmico e poltico (Figura 03). Segundo o autor, tais fatores no somente

    influenciavam a atividade do turismo, mas tambm sofriam influncia dessa

    atividade (NETTO; LOHMANN, 2008, p. 33). Segundo Cooper (1998 apud

    NETTO; LOHMANN, 2008, p. 33) o sistema de Leiper no somente possui uma

    aplicabilidade geral, mas tambm muito simples; caractersticas que

    impulsionaram a grande popularidade desse sistema, tornando-o frequente nas

    referncias dos trabalhos sobre turismo.

    Um brasileiro que se destacou no meio cientfico do turismo com o

    conceito SISTUR Sistema de Turismo o professor Mrio Carlos Beni, da

    Universidade de So Paulo USP. Assim como em outras anlises sistmicas

    do turismo, Beni estava interessado em explicar aos alunos as relaes

    existentes entre o turismo e as outras disciplinas e atividades humanas

    (NETTO; LOHMANN, 2008, p. 50). Esta afirmao coincide com a de Leiper

    (1979, p. 395) quando este encerra o turismo no interior de um sistema que

    demarcaria mais facilmente este fazer humano como uma atividade

    multidisciplinar:

  • 49

    Tal abordagem poderia facilitar os estudos multidisciplinares de aspectos particulares do turismo e de forma mais significativa daria estudos interdisciplinares de vrias facetas e perspectivas de um ponto de referncia comum; a diviso entre os dois campos do conhecimento acadmico poderia ser superada. (LEIPER, 1979, p.395, traduo nossa)22.

    O professor Beni reuniu em seu modelo um trip bsico que sustenta a

    atividade turstica, no qual denominou conjunto. Os trs conjuntos so:

    Conjunto de Relaes Ambientais RA; Conjunto da Organizao Estrutural

    OE; e conjunto das aes operacionais AO (Figura 04).

    Figura 4 - Modelo SISTUR de Beni

    Fonte: Netto e Lohman (2008, p. 51).

    O Conjunto de Relaes Ambientais composto pelos subsistemas

    cultural, social, ambiental e econmico. O Conjunto da Organizao Estrutural

    est dividido nos subsistemas superestrutura e infraestrutura. J no Conjunto

    das Aes Operacionais encontra-se a dinmica do sistema de turismo

    22 Such an approach would facilitate multidisciplinary studies of particular aspects of tourism and more significantly would give interdisciplinary studies of various facets and perspectives a common point of reference; the division between the two camps of academic scholarship could be bridged.

  • 50

    (NETTO; LOHMANN, 2008, p. 52), tomam parte dele os subsistemas oferta,

    mercado, demanda, produo, distribuio e consumo.

    Em 1985, Roberto C. Boulln publicou no livro Planificacin del espacio

    turstico sua teoria do espao turstico. Boulln afirma

    [...] que o turismo no uma cincia nem uma indstria, com ou sem chamins [...] o turismo consequncia de um fenmeno social cujo ponto de partida a existncia do tempo livre e o desenvolvimento dos sistemas de transporte. (BOULLN, 2002, p. 37)

    Ao conceituar o turismo como um movimento espontneo (BOULLN,

    2002, p. 37) sob o qual se agregam estruturas particulares e pblicas dos

    viajantes, Boulln marca a importncia de sua definio ao espao que se

    forma em torno dos atrativos tursticos. [...] o espao turstico consequncia

    da presena e distribuio territorial dos atrativos tursticos que, no devemos

    esquecer, so a matria-prima do turismo (BOULLN, 2001, p. 65 apud

    NETTO; LOHMANN, 2008, p. 56).