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HISTÓRIA DA FILOSOFIA Volume terceiro Nicola ABAGNANO DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO: ÂNGELO MIGUEL ABRANTES. HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME III TRADUÇÃO DE: ARMANDO DA SILVA CARVALHO CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1969 TíTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Bil, 2 cIE. - Lisboa TERCEIRA PARTE FILOSOFIA ESCOLÁSTICA i AS ORIGENS DA ESCOLáSTICA § 173. CARÁCTER DA ESCOLáSTICA A palavra escolástica designa a filosofia cristã da Idade Média. O termo scholasticus indicava nos primeiros séculos da Idade Média aquele que ensinava as artes liberais, isto é, as disciplinas que constituíam o trívio (gramática, lógica ou dialéctica, e retórica) e o quadrívio (geometria, aritmética, astronomia e música). Mais tarde passou a chaMar-se também scholasticus ao professor de filosofia ou de teologia, cujo título oficial era o de magister (magister artílim ou magister in theologia) e que a princípio dava as suas lições na escola do claustro ou da catedral e mais tarde na universidade (studium genei-ale). A origem e o desenvolvimento da escolástica encontram-se estritamente ligados às funções docentes, funções que determinaram também a forma e o método de actividade literária dos escritores escolásticos. Como as formas fundamentais do ensino eram duas, a

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HISTÓRIA DA FILOSOFIAVolume terceiroNicola ABAGNANO

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME III

TRADUÇÃO DE: ARMANDO DA SILVA CARVALHO

CAPA DE: J. C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO

TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1969

TíTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,LDA. - R. Augusto Bil, 2 cIE. - Lisboa

TERCEIRA PARTE

FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

i

AS ORIGENS DA ESCOLáSTICA

§ 173. CARÁCTER DA ESCOLáSTICA

A palavra escolástica designa a filosofia cristã da Idade Média. O termoscholasticus indicava nos primeiros séculos da Idade Média aquele queensinava as artes liberais, isto é, as disciplinas que constituíam o trívio(gramática, lógica ou dialéctica, e retórica) e o quadrívio (geometria,aritmética, astronomia e música). Mais tarde passou a chaMar-se tambémscholasticus ao professor de filosofia ou de teologia, cujo título oficialera o de magister (magister artílim ou magister in theologia) e que aprincípio dava as suas lições na escola do claustro ou da catedral e maistarde na universidade (studium genei-ale). A origem e o desenvolvimento daescolástica encontram-se estritamente ligados às funções docentes, funçõesque determinaram também a forma e o método de actividade literária dosescritores escolásticos. Como as formas fundamentais do ensino eram duas, a

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lectio, que consistia no comentário de um texto, e a disputatio, queconsistia no exame de um problema tendo-se em consideração todos os

argumentos que se possam aduzir pro e contra, a actividade literária dosEscolásticos assume sobretudo a forma de Commentari (à Bíblia, às obras deBoécio, à lógica de Aristóteles e mais tarde às Sentenze de Pedro Lombardo eàs outras obras de Aristóteles) ou de recolha de questioni. Recolhas destegénero são os Quodlibeta que compreendem as questões que os -aspirantes aograu de teologia deviam discutir duas vezes por ano (pelo Natal e pelaPáscoa) sobre qualquer tema, de quodlibet. As questiones disputatae sãomuitas vezes o resultado das disputationes ordinariae que os professores deteologÍa mantinham durante os seus cursos sobre os mais importantes problemasfilosóficos e teológicos.

A conexão da escolástica com a função docente não é um facto puramenteacidental e extrínseco; faz parte da própria natureza da escolástica. Todasas filosofias são determinadas na sua natureza pelos problemas que constituemo centro da sua investigação; e o problema da escolástica consistia em levaro homem à compreensão da verdade revelada. Tratava-se portanto de um problemade escola, ou seja, de educação: o problema da formação dos clérigos. Acoincidência típica e total do problema especulativo com o problema educativojustifica plenamente o nome da filosofia medieval e não explica os caracteresfundamentais. Em primeiro lugar, a escolástica não é, como a filosofia grega,uma investigação autónoma que afirme a sua independência crítica frente aqualquer tradição. A tradição religiosa é, para a escolástica, o fundamento ea norma da sua investigação. A verdade foi revelada ao homem através dasSagradas Escrituras, através das definições dogmáticas de que a comunidadecristã se serviu para fundamentar a sua vida histórica, através dos padres edoutores inspirados ou iluminados por Deus. Para o homem, trata-se apenas deaproximar-se dessa verdade, compreendê-la na

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medida do possível, mediante os poderes naturais e com a ajuda da graçadivina, e fazê-la sua para assumi-Ia como fundamento da própria vidareligiosa. Mas mesmo nesta perspectiva, que é a da própria investigaçãofilosófica, o homem não pode nem deve basear-se apenas nas suas faculdades; atradição religiosa ajuda-o e deve ajudá-lo fornecendo-lhe, através dos

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órgãosda Igreja, um guia esclarecedor e uma garantia contra o erro. Trata-se maisde uma obra comum que individual: de uma obra na qual o simples indivíduo nãopode nem deve basear-se apenas nas suas forças, mas pode e deve recorrer àajuda dos outros e especialmente daqueles que a própria Igreja reconhece comoparticularmente inspirados e apoiados na graça divina. Daí o uso constantedas auctoritates na especulação. Auctoritas é a decisão de um concílio, umaexpressão bíblica, uma sententia de um Padre da Igreja.O recurso à autoridade é a manifestação típica do carácter comum esuperindividual da investigação escolástica, na qual o indivíduo quer sentir-se continuamente apoiado e sustentado pela autoridade e

tradição eclesiástica.

Daqui deriva o outro aspecto fundamental da investigação escolástica. Estanão se propõe formular ex novo nem doutrinas nem conceitos. O seu principalobjectivo é o de compreender a verdade já dada na revelação, e não o deencontrar a verdade. Deste modo, como a norma da investigação resulta datradição religiosa, os instrumentos e os materiais dessa investigação sãoprovenientes da tradição filosófica. Esta vive substancialmente à custa dafilosofia grega; primeiro a doutrina platónico-agostiniana, depois aaristotélica, fornecem-lhe os instrumentos e os materiais de especulação. Afilosofia, como tal, é para ela simplesmente um meio: ancilla theologiae.Claro que as doutrinas o os conceitos que são adoptadas de acordo com aquele

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objectivo acabam por sofrer uma transformação mais ou menos radical quanto aoseu significado original. Mas a escolástica não se propõe realizar estatransformação de modo intencional o a maior parto das vezes não tem dissoconsciência. O sentido da historicidade é-lhe estranho. Doutrinas e conceitossurgem livres dos complexos históricos de que fazem parte e consideradosindependentes dos problemas a que se referem e da personalidade autêntica dofilósofo que os elaborou. A Idade Média coloca tudo num mesmo plano e fez dosfilósofos mais afastados da sua mentalidade, seus contemporâneos, dos quais élícito colher os frutos mais característicos para adaptá-los às suas próprias

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exigências.

Nesta estrutura formal que a filosofia medieva apresenta, reflecte-se aprópria estrutura social e política do mundo medievaL Este é um mundoconstituído como uma hierarquia rigorosa apoiada numa única força que do altodirige e determina todos os aspectos. Tem-se afirmado em regra que aconcepção medieval do mundo se inspira no aristotelismo: com efeito, essa ésubstancialmente a concepção estoico-platónica à qual acabam por se reduzir eadaptar as próprias doutrinas aristotélicas. O mundo é uma ordem necessária operfeita na qual todas as coisas têm um lugar e uma função determinados,permanecendo nesse lugar e nessa função pela força infalível que determina eorienta o mundo vindo do alto. Tudo o que o homem pode e deve fazer éconformar-se com esta ordem: o próprio livre arbítrio pode ser utilizado comutilidade desde que integrado nessa conformidade. As instituiçõesfundamentais do mundo medieval, O Império, a Igreja, o Feudalismo,apresentam-se como os defensores da ordem cósmica e como os instrumentos daforça que o rege. Essas são dirigidas substancialmente no sentido de fazersurgir todos os bens materiais e espirituais a que o homem pode aspirar,desde o

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pão quotidiano à verdade, como derivantes da ordem a que pertencem, assimcomo da hierarquia de que são intérpretes e os guardiães dessa mesma ordem.Num mundo assim constituído, a investigação filosófica não pode desenvolveros seus princípios e a sua disciplina senão a partir da hierarquia em quese concretiza a ordem universal ou da força que se

mantém causa dessa estrutura.

Como ideia directiva da vida individual e social, a noção desta ordem começaa afirmar-se a partir do século VIII, com o desaparecimento quase total dastrocas económicas e culturais e o desaparecimento ou decadência das cidades,deixando de pé apenas uma economia rural paupérrima e fechada. O despertar dotráfego comercial e das artes que se verifica a partir do século XI, asviagens e as trocas provocam a primeira crise da concepção medieval da ordemcósmica. Essas transformações vêm demonstrar, com a própria força dos factos,que o indivíduo pode adquirir para si os bens que se lhe oferecem,incrementá-los o defendê-los com a sua actividade e com a colaboração

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dosoutros. O poder hierárquico começa a surgir, agora, como um limite ou umaameaça, mais do que uma ajuda ou garantia, à capacidade humana de adquirir ouconservar os bens que são indispensáveis ao homem. A luta pela autonomiacomunal, pela libertação das limitações impostas pelo feudalismo, ésubstancialmente baseada na crença do homem em si próprio, na sua capacidadede providenciar sobre as suas necessidades e de organizar-se em comunidadesautónomas que, melhor que as hierarquias impostas de cima, podem providenciarpela sua própria defesa. Nestas condições, a investigação filosófica adquireum respirar novo e uma

nova dimensão de liberdade. Os seus pressupostos hierárquicos não são porenquanto postos em dúvida, os seus limites e as suas condições sobrenaturais

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continuam ainda a ser reconhecidos; mas a parte devida à iniciativa racionaldo homem começa a aumentar e a reforçar-se, e em certos domínios e em certosEmites tal iniciativa acaba por ser reconhecida como legítima e eficaz.Tenta-se em seguida estabelecer claramente os domínios e os limites de taliniciativa e julga-se haver realizado um perfeito acordo entre a razão e afé, ou seja, entre a verdade que o homem pode conseguir com os seus poderesnaturais o a que lhe foi revelada pelo alto e imposta pela hierarquia. Masaté este equilíbrio começa a romper-se a partir dos últimos decénios doséculo XIII; e agora não se renuncia à fé nem se denuncia, na sua totalidade,a concepção h-ierárquica da ordem cósmica, mas alarga-se e reforça-se oâmbito da iniciativa racional e a investigação filosófica debruça-se sobredomínios que já nada têm a ver com os objectos da fé e nos quais pode avançarcom a sua força autónoma.

Sobre este desenvolvimento, que compreende os aspectos sociais e políticoscomo os filosóficos do inundo ocidental nos séculos da Idade Média, se fundaa caracterização da filosofia escolástica como o problema da relação entrerazão e fé e a sua periodização fundada nas diversas formas de resolvertal problema. É evidente que deste ponto de vista o problema da relação

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entre razão e fé não é um problema puramente especulativo. É também umproblema especulativo considerável se nos basearmos no confronto entre ostextos filosóficos e os textos religiosos e as suas interpretações eimplicações; mas não é apenas isto. É sobretudo o problema do papel que podee deve ter a -iniciativa racional do homem na busca da verdade e da direcçãoda vinda individual e colectiva, perante a posição que deve ocupar a ordemcósmica e a hierarquia que a representa. Por isso é também o Problema daliberdade que o homem pode reivin-

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dicar por si e das limitações que tal liberdade deve encontrar as hierarquiasque governam o mundo. É, em suma, o problema dos novos domínios da indagação(a natureza, a sociedade) que se apresentam ao homem à medida que elereivindica, pela sua razão, uma maior autonomia. Se designarmos, nos

termos que assim ficam expostos, o "problema escolástico" pode ser facilmenteabordado para se poder dar conta da continuidade e da variedade, dasconcordâncias e das polémicas do pensamento medieval. Isso pode permitir quenos apercebamos de que a ortodoxia e a heterodoxia religiosas fazem parteigualmente deste pensamento como fazem parte as especulações políticas e osinteresses, que se mantiveram ou ressurgiram, pela natureza e pela ciência; eque as tendências heréticas, as rebeliões filosóficas, teológicas oupolíticas que, em certa medida, sempre o caracterizaram, não constituem osaspectos históricos fundamentais a mesmo título que as grandes síntesesdoutrinais nas quais a iniciativa racional do homem e as exigências da fé eda hierarquia eclesiástica parecem ter encontrado um compromisso efectivo. Oque este conceito do problema escolástico pretende excluir é a tentativa deconsiderar a própria escolástica no seu conjunto como uma síntese doutrinalhomogénea ria qual se hajam unificado e fundido os contributos individuais.Esta noção da escolástica parece sugerida pela vontade de privilegiar oaspecto da existência (real ou presumida) de uma concordância plena edefinitiva entre a razão e a fé: aspecto que é característico da síntesetomista. Mas este privilégio não tem nenhuma base histórica e não terá outroefeito que o de excluir da escolástica, considerada como a única filosofiaexistente na Idade Média, uma parte importante dos pensadores medievais. Umapreferência ideológica, historiograficamente insustentável, está na base

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deste privilégio. A filosofia medieval, tal

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como a filosofia de qualquer outro período, pode ser descrita o caracterizadaapenas com base no seu Problema dominante, e não nas soluções que foram dadasa esse mesmo -problema. A continuidade desta filosofia pode ser reconhecidaapenas com o fundamento da unidade do seu problema e das diferenças nassoluções apresentadas. E a periodização da mesma pode ser efectuada apenascom base na prevalência de uma ou de outra das soluções fundamentais.

A esta exigência responde a periodização tradicional que distingue quatrofases na escolástica. A primeira, chamada pré-escolástica, é a dorenascimento carolíngio, durante a qual é pressuposta e admitida pura esimplesmente a identidade da razão e da fé. Na segunda, chamada alta-escolástica, que vai da metade do século XI até ao fim do século XII, oproblema da relação entre a razão e a fé começa a esboçar-se e a ser postoclaramente na base da antítese potencial entre os dois termos. Na terceira,que vai de 1200 aos primeiros anos de 1300, organizam-se os grandes sistemasescolásticos que constituem o que se costuma chamar o "florescimento daescolástica". Na quarta, que compreende o século XIV, verifica-se adissolução da escolástica pela reconhecida insolubilidade do problema que foiseu fundamento.

Todavia, ainda que acabada como período histórico, a escolástica permaneceactual para exprimir a exigência, para o homem que vive numa tradiçãoreligiosa, de compreender e justificar racionalmente essa mesma tradição.Esta exigência surge com frequência ao longo da história da filosofia. Outrasformas de escolástica, recorrendo às formas filosóficas na altura dominantes,apresentar-se-ão no ulterior decurso do pensamento filosófico.

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§ 174. O RENASCIMENTO CAROLINGIO

Os séculos VIII e IX -assinalam a concentração das forças sobreviventes dacultura nos grandes impérios do Ocidente: o império árabe e o impériocarolíngio. Tanto um como o outro tomaram possível um -renascimento cultural.Carlos Magno, pela própria necessidade de garantir a unidade do seu império ede administrá-lo, necessidade que exigia o emprego de numerosos funcionários

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dotados de uma corta cultura, promoveu e encorajou os estudos. No períodoprecedente, estes eram cultivados apenas nas regiões periféricas: por umlado, nas cidades da Itália meridional, como Nápoles, Amalfi e Salerno; poroutro, nos mosteiros ingleses e irlandeses. Na época carolíngia converteram-se no património das grandes Abadias, que exerceram a função queprimeiramente havia pertencido às cidades.

Nos fins do século VIII, a obra de Alcuíno foi o início da -reconstruçãointelectual da Europa. Tendo nascido em 730 na Inglaterra, Alcuíno formou-sena escola episcopal de York; em 781 foi chamado pelo imperador Carlos Magnopara dirigir a Escola Palatina e transformou-se no organizador dos estudos noimpério franco. Morreu no ano de 804. As obras de Alcuíno são quaseexclusivamente constituídas por extractos tirados de outros autores. A suaGramática foi obtida em Prisciano, Donato, Isidoro, Beda; a sua Retórica numtexto de Cícero De inventione, a sua, Dialéctica num texto pseudo-agostinianosobre as categorias. Mesmo o texto De animae ratione ad Eulaliam Virginem,que é o primeiro tratado de psicologia da Idade Média, não passa de uma sériede extractos de Agostinho e Cassiano.

Alcuíno é o grande organizador do ensino no reino franco. Foi ele quemordenou os estudos segundo as sete disciplinas do trívio e do quadrívio, o aque chama as sete colunas da sabedor-ia (Patri.

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Lat., 101, 853 c). No seu escrito teológico sobre a Trindade (De fide Sanctaeet individuae Trinítatis, três livros), Alcuíno trata da essência divina, daspropriedades de Deus, da trindade das pessoas, da encarnação e da redenção,mantendo-se em tudo fiel à especulação de Santo Agostinho. Tal como este,insiste na impossibilidade de se conceber e exprimir a essência divina, emrelação à qual as categorias, que servem para compreender as coisas finitas,adquirem um novo significado. Em Deus tudo se identifica: o ser, a vida, opensamento, o querer e o agir, e no entanto Ele é a simplicidade absoluta.Num escrito seu sobre a alma, dedicado à Jovem Eulália, Alcuíno define a almacomo "o espírito intelectual ou racional, sempre em movimento, sempre vivo e

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capaz de boa ou má vontade>. A alma assume vários nomes consoante as suasfunções: chama-se alma enquanto vivifica; espírito quando contempla; sentidoenquanto sente; ânimo enquanto sabe; mente enquanto compreende; razãoenquanto julga; vontade enquanto consente; memória enquanto lembra. Mas estasfunções diversas não são próprias de várias substâncias, apesar de seremindicadas com nomes diferentes: constituem todas uma alma única (De animaeratione, 11). AIcuíno distingue nela três partes, de acordo com a doutrinaplatónica: a racional, a irascível e a apetitiva. As três partes da almaracional, memória, inteligência e vontade reproduzem a Trindade divina(segundo a doutrina de Agostinho). A alma é o fundamento da personalidadehumana, mas o eu na sua totalidade pertence não só à alma como também aocorpo. A alma é incorpórea o como tal imortal. O seu bem mais @levado é Deuse o seu destino é o de amar a Deus. Para tal destino a alma prepara-seatravés das virtudes; e entre estas Alcuíno coloca não apenas as cristãs: fé,esperança e caridade, como também as pagãs: pradêwia,

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justiça, força e temperança, das quais dá definições platónicas de Deofficiis de Cicero.

A obra de Alcuíno foi continuada pelos seus sucessores. Fredegiso, que lhesucedeu como abade de S. Martinho de Tours e foi, a partir de 819, até 834,ano da sua morte, chanceler de Ludovico o Pio, compôs uma obra na qual selevantava a questão de se saber se o nada é alguma coisa ou não (De nihilo ettenebris). Fredegiso conclui que o nada de certo modo é; e de facto, se senega ,isso, essa mesma negação é já alguma coisa e por isso o nada de certamaneira é (Patr. Lat., 105. .,751). O próprio facto de o nada ter um nome demonstra a sua realidade, umavez que um nome que não se refira a qualquer coisa real não pode ser pensado.A expressão bíblica de que o mundo foi criado do nada demonstra também a suarealidade; porque do nada procedem todos os elementos e ainda a luz, os anjose as almas dos homens.

Discípulo de Alcuíno foi Rabano Mauro. Nascido na Mogúncia no ano de 776 ou784, foi primeiro professor e depois abade no mosteiro de Fulda; em 847 foi

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nomeado arcebispo de Mogúncia, onde morreu no ano de 856. Rabano éconsiderado como o escritor da Escola da Alemanha. Da escola de Fulda saíramum grande número de doutores que foram ensinar pelas províncias vizinhas oque haviam aprendido com o seu mestre. Um caso anedótico ;revela-nos ahostilidade de alguns eclesiásticos do tempo contra a cultura e a fama queRabano tinha conquistado. O abade de Fulda apoderou-se um dia dos cadernos deRabano e dos seus alunos e declarou que proibia para o futuro a introdução dequalquer novidade no mosteiro; além disso empregou os monges mais aplicadosem trabalhos pesados e contínuos. Os monges apelaram para o rei que sepronunciou contra o abade. Rabano foi reintegrado na sua cátedra continuandoa leccio-

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nar. Os seus contemporâneos chamaram-lhe Rabano o Sofista.

Rabano preocupou-se sobretudo com a educação filosófica e teológica do clero.Com este fim, compÔs três livros Sobre a instrução dos Clérigos (Deinstitutione clericorum) que é uma compilação cujo material foi extraído dosPadres da Igreja, de Isidoro e de Beda. Rabano insiste na necessidade eimportância do estudo das artes liberais e também dos filósofos pa gãos e emparticular dos platónicos. Justifica a utilização da cultura profana com ateoria da injusta posse: "Se os filósofos disseram nos seus escritos coisasverdadeiras e que estão de acordo com a fé, não se deve recear e retomá-loscomo injustos possuidores" (111, 26). Na verdade, os filósofos descobriram-nas enquanto guiados pela verdade, isto é, por Deus: por isso elas não lhespertencem, mas a Deus.

Num tratado De Universo, tirado em grande parte das Etimologias de Isidoro eda De natura reruni de Beda, recolheu um rico material profano de ciênciasnaturais. Numa glosa às Categorias de Aristóteles, Rabano nega, referindo-seà doutrina deste filósofo, a univocidade do ser, isto é, nega que o termo"ser" conserve o mesmo significado referindo-se a tudo o que existe, eafirma, em contrapartida, a sua equivocidade, a diversidade dos seussignificados. A univocidade ou a equivocidade do ser devia converter-se, noséculo XIII, num dos ternas fundamentais da polémica filosófica.

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Um discípulo de Rabano, Servato Lupo, que foi abade de Ferrières desde 842até falecer, em 862, tem em grande conta a cultura humanística e nas suasCartas oferece o exemplo de um vivo interesse literário e filosófico. O seutratado Sobre três questões trata do livre arbítrio, da predestinação e daEucaristia, seguindo as pisadas dos padres e especialmente de Agostinho.

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Da escola de Alcuíno saiu também Pascásio Radoberto, abade de Corbie desde842 e falecido em860. Pascásio compôs em 831 a obra De corpore et sanguine Domini. A sua obramaJor é um Comentário ao Evangelho de São Mateus. Na obra intitulada De fide,spe et charitate, distingue três espécies de coisas críveis. A primeira é adas que se podem crer imediatamente, como as coisas visíveis; a segunda, adas coisas que se podem crer e compreender ao mesmo tempo, como os axiomas eas verdades racionais. A terceira é a das coisas que a revelação ensinaacerca de Deus; e estas não são simultaneamente críveis e compreensíveis,devem ser primeiramente cridas com todo o coração o com ,toda a alma, paradepois serem compreendidas. Pascásio exprime assim aquela precedência da fésobre a razão que devia ser a especulação de Anselmo.

Um outro monge de Corbie, Godescalco, falecido entre 866 e 869, sustentou comparticular energia, apesar das condenações de dois sínodos, a doutrina dadupla predestinação. Sustentava que Deus predestina tanto o bem como o mal eque alguns homens, pela predestinação divina que os constrange à morteespiritual, não podem corrigir-se do erro e do pecado, porque Deus os crioudesde o princípio incorrigíveis e destinados ao castigo.

Esta doutrina da dupla predestinação que era ensinada também pelo mestre deGodescalco, o monge Ratramno (falecido à volta de 868), foi combatida peloarcebispo de Reims Hinchmar e que chegou ao nosso conhecimento precisamenteatravés da refutação deste último.

§ 175. HENRIQUE E REMIGIO DE AUXERRE

Henrique de Auxerre (841-876) foi discípulo de Servato Lupo e continuou a

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tradição humanística

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do mestre. Com efeito, foi autor de uma Vita S. Germatú, em verso, queenriqueceu com glosas extraídas dos clássicos e também da Divisio Naiurae deJoão Escoto. A ele foram atribuídas algumas glosas marginais a um textopseudo-agustiniano sobre as Categorias. Estas glosas apresentam uma tese queserá a do conceptualismo posterior, isto é, que os conceitos universais nãosão realidades em si, e designam apenas as coisas particulares conhecidaspela experiência. A formação dos conceitos de género e espécie é feita poruma exigência de economia mental. Uma vez que os nomes dos seres individuaissão inumeráveis e o intelecto e a memória não bastam para conhecê-los e fixá-los, formam-se os conceitos de espécie (por exemplo, homem, cavalo, leão),com os quais se podem reconhecer e recordar facilmente inumeráveisindivíduos. Mas como os conceitos de espécie são, por sua vez, inumeráveis e,por isso, em grande parte incognoscíveis, agrupam-se em conceitos mais amplose menos numerosos, formando os conceitos de género, como animal ou pedra. Emseguida recorre-se a um grau mais elevado, a um conceito extensíssimo quepermite designar com um só nome todos os seres: é o conceito de substância.

Um discípulo de Henrique, Remígio de Auxerre (841-908) ensinou na escola deAuxerre todas as artes liberais e especialmente a gramática, a dialéctica e amúsica. Escreveu comentários às obras de gramáticos e poetas latinos; aoGénesis e aos S -

mos. O seu comentário a Marciano Capella possui significado filosófico. Aocontrário do seu mestre Henrique, Remígio inclina-se para o -realismo, ouseja, para a afirmação da realidade substancial dos conceitos. Remí giosustenta que o conceito mais geral que a inteligência pode alcançar é o daessência, que compreende todas as naturezas; e que tudo o que existe, existepela participação na essência.

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A essência divide-se nos géneros e nas espécies até à última espécie, que é oindivíduo, o qual, como a própria palavra -indica, é indivisível.

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Segundoesta doutrina, que se relaciona com a de João Escoto, o indivíduo seria oresultado da repartição sucessiva de uma realidade universal. Igualmente serelaciona com o platonismo a doutrina de Remígio sobre o conhecimento humano.A natureza humana possui em si todas as artes; mas estas foram ocultas pelopecado original e apenas podem ser reconquistadas mediante esforçosfatigantes, que pouco a pouco as libertam das trevas que as encobrem àinteligência. Assim se explica que nem todos possam ser oradores, dialécticosou músicos, apesar de todos possuírem em si as noções correspondentes. Comefeito, nem todos se empenham no esforço exigido para -trazerem de novo paraa luz o saber originário obscurecido pelas trevas do pecado.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 173. A tentativa de compreender a escolástica do ponto de vista doconteúdo, como uma síntese doutrinal, foi levada a efeito por De Walf,Histoire de Ia phil. méd., (V. ediç. 1924 e ediç. post.) que colocou osfundamentos desta síntese na geração da comunidade entre o ser divino e o serdas criaturas, na afirmação do valor da personalidade humana, na existênciade uma essência supra-material e na objectividade do saber humano. De Walfconsiderou anti-escolásticos os sistemas que se afastam destes fundamentos,por exemplo, o de Escoto Erigena, o panteísmo do sé culo XII, a averroísmo.Mas aqueles fundamentos são tão genéricos que não chegam para caracterizar aescolástica e explicar as suas mais importantes afirmações.

Para o estudo da escolástica são fundamentais, além da Patrologia Grega eLatina de MIGNE, aS seguintes colecções de textos e estudos: BARACH e WORBEL,Bibliotheca philosophiae mediae aetatis BAEUMKER, Reitrage zur Geschichte derPhilosophie des Mittelal-

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ters, textos e investigações, Mónaco, a partir de 1891; ElAuRÉAu, Notices etextraits de quelques manuscrits de Ia Bibliothêque Nationale, Paris, 1890-1893, 6. vols. Não se faz aqui referência às numerosas colecções nas quaisexistem e foram publicados textos e estudos de filosofia medieval (e quepossivelmente poderão estar indicados nos instrumentos bibliográficosre@ferid4Ds) uma vez que tais textos e estudos serão indicados na nota

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bibliográfica referente a cada um dos filósofos.

Obras de carácter geral sobre a escolástica: SOCKL, Geschichte derPhilosophie des Mittelalters,3 vols., Mogúncia, 1864-1866; HAuRÉAu, Histoire de Ia Philosophiescolastique, 2 vol., Paris, 1872-1880; PimVET, Essai d'une histoire généraleet comparée des philosophies médiéval,es, Paris, 1905, 2.1 ed., 1913;BAEUMKER, Die ehristliche Philosophie des Mittelalters, in Allgem-eineGeshichte der Philosophie, Leipsig,1913; GRABMANN, Geschichte der scholastischen Me@ thode, 2 vols., Freiburgo,1909-1911; 1956 (ed. fotoestática); DUHEm, Le systême du monde, de Platon àCopernic, 10 vols., Paris, 1913-1959; GILSON, La Philosophi,e au Moyen Age,1922, 1952; Wesprit de Ia philosophie médiévale, Paris, 1932, 1944; BRÉHIER,La philosophie du moyen áge, Paris, 1937; COPLESTON, A HistGry of Philosophy,H: Medieval Philosophy, Londres, 1958; VIGNAUX, La philosophie du moyen âge,Paris, 1958; VASOLI, La fiJ-osofia mediovale, Milão,1961.

Para bibliografia especial: UEBERWEG-GEYER, Die Patristische undscholastische Philosophie, Berlim, 1928; DE BRIE, Bibliographia Philosophica,1934-1945; 2 vols., Bruxelas, 1950-1954; MOSCIIETTi, Bibliografia criticageneral per Ia storia del pensiero cristiano, in Grande Antologia Filosofica,III, Milão, 1954; VASOLI, Op. Cit. Para ulteriores actualizaçõesbibliográficas: Repertoire Bibliographique de Ia Revue Philosophique deLouvain.

§ 174. Sobre o renascimento carolíngio: BRUNHES, La foi chrétienne et Iaphilosophie au temps de Ia renaissance carolingienne, Paris, 1903; PiRENNE,Mahomet et Charlemagne, Paris, 1937.

As obras de AIcuino em Pat. Lat., 100.,_101.o_ E. M. WILMONT-13UXTON, Alcuin,Londres, 1922.

O texto de Fredegiso em Pat. Lat., 105.1, 751-756. -GEYMONAT, 1 problemi delnulila e delle- tenebre in Fredegiso di Tours, in Saggi di filosofianeorazionalistica, Turim, 1953, p. 101-111.

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ALCUINO

As obras de Servato Lupo in Pat. Lat., 119.1,431-700.

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As obras de Pascásio Radúberto in. Pat. Lat., 120.o. As obras de Ratramno inPat. Lat., 121.o, 13-346. As obras de I-linkmar in Pat. Lat., 125.---126.o.Sobre este autor: J. A. ENDRES, em "Beitrage", XVII, 2-3.

§ 175. De Henrique de Auxerre, La vita de San Germano, editada em "Mon. Germ. Hist.". Poeti Latini dell'evo carolingio, M, 428-517. Excertos dasglosas ao texto pseudo-agustiniano em Cousin, inédits d'Abélard, p. 621, eHAUREAu, De Ia phil. schal., I, p. 131-143. De Remígio os Comentários in Pat.Lat., 131.1,51-134.-J. BURNAM, Commentaire anonyme sur Prudence d'après de ms. 413 deValenciennes, Paris, 1910.

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JOÃO ESCOTO ERÍGENA

§ 176. JOÃO ESCOTO: A PERSONALIDADE HISTÓRICA

Inesperadamente aparece, na primeira metade do século IX, a grande figura deJoão Escoto. Na pobreza cultural e especulativa do seu tempo, este homemdotado de um espírito extremamente livre, de excepcional capacidadeespeculativa e vasta erudição greco-latina, surge como um milagre. Através deSanto Agostinho, João Escoto relaciona-se como o mais genuíno espírito dainvestigação filosófica, tal como havia surgido na idade clássica da Grécia.Erígena tem consciência das exigências soberanas da investigação e afirma-asdecididamente. Quando tropeça com a realidade incompreensível de Deus ou daessência das coisas, não afasta as armas dialécticas nem prescreve oabandono, à fé, mas volta a assumir a mesma incompreensibilidade no âmbito dainvestigação, dialectiza-a e faz dela um elemento de clareza. A razãopreguiçosa, que neste período da história da filosofia descobre tantas formasde entrincheirar-se por detrás das exigências da fé, não consegueassenhorear-se dele.

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A obra de João Escoto teve uma importância decisiva para a ulterior evoluçãoda escolástica. As suas fontes principais são as obras de Santo Agostinho, doPseudo-Dionísio (que o próprio Escoto traduziu do grego) e dos Padres da

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Igreja, especialmente de S. Gregório e S. Máximo. Em toda a especulaçãoposterior, não há filósofo da escolástica que não se relacione com eledirecta ou poa. O papa Honório 111, -numa Bula de 23 de Janeiro de 1225,condenou a sua obra-prima: De divisione naturae. Muitos doutoresescolásticos, antes e depois da condenação, entram em polémica contra as suasafirmações; mas a sua especulação assinala em todos os pontos um marcofundamental na filosofia escolástica.

§ 177. JOÃO ESCOTO: VIDA E OBRA

João Escoto é chamado Erígena devido ao facto de ter nascido na Irlanda(Eriu-Erin, Irlanda). A data do seu nascimento deve andar à volta de 810. Nãose sabe com precisão o ano em que se dirigiu a França, para a corte de Carloso Calvo; mas deve ter sido nos primeiros anos do reinado deste rei. Comefeito, Escoto Erígena participou na controvérsia teológica suscitada pelatese do monge Godescalco sobre a predestinação, ora a condenação deGodescalco verificou-se em 853, depois de largos e solenes debates. Muitoprovavelmente, a vinda de João Escoto para França foi anterior ao ano de 847.Carlos o Calvo nomeou-o director da Academia do Palácio, a Schola Palatina,em Paris; a convite do mesmo rei, Erígena traduz as obras de Dionísio oAreopagita, cujos textos o imperador bizantino, Miguel Balbo, tinha oferecidoa Ludovico Pio no ano de 827. O papa Nicolau 1 queixou-se ao rei do facto deErígena não haver submetido essa tradução à censura eclesiástica antes de apubli-

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car e quis instaurar um processo contra as heresias que a mesma continha.Depois da morte de Carlos o Calvo, no ano de 877, não há notícias segurassobre João Escoto. Segundo alguns, teria morrido em França nesse mesmo ano;segundo outros, teria sido chamado pelo rei Alfredo o Grande, para a escolade Oxford e, mais tarde, como abade de Malmesbury ou de Athelney, teria sidoassassinado pelos monges.

A actividade filosófica de João Escoto pode ser dividida em dois períodos. Noprimeiro período, Escoto Erígena inspirou-se sobretudo nos Padres latinos,isto é, em Gregório Magno, Isidoro e especialmente em Santo Agostinho. A esteperíodo pertence o texto contra o monge Godescalco: De divinapraedestinatione. Num segundo período, Erígena sofre a influência dos

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teólogos e filósofos gregos. Em 858, traduz os textos do Pseudo-Dionísio oAreopagita; em 864, os Ambígua de Máximo o Confessor e o texto De hominisopificio de Gregório de Nisa. Estes trabalhos guiaram-no na criação da suaobra-prima, a De divisione naturae, em cinco livros. Escrita em forma dediálogo entre mestre e aluno, é o primeiro grande texto especulativo da IdadeMédia.

Esta obra denuncia já o carácter da investigação escolástica: o métodoapriorístico ou dedutivo que o autor maneja com grande mestria. As glosas deErígena aos Opuscula theologica de Boécio, são o comentário mais antigo aosescritos teológicos de Boécio. Muito conhecidas na Idade Média, mas nuncaimpressas, deviam ter sido escritas nos últimos anos da sua vida, à volta de870, e apresentam com a Divisio naturae a mesma relação que existe entre asRetractationes e as outras obras de Santo Agostinho.

A cultura e capacidade especulativa de João Escoto colocam-no acima do níveldos seus con-

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temporâneos. Não só conhece o grego e o traduz, como adquire dos escritores edo espírito grego, grande liberdade tanto no campo da investigação como daorientação especulativa.

§ 178. JOÃO ESCOTO: FÉ E RAZÃO

O pressuposto da investigação de João Escoto é o acordo intrínseco entrerazão e fé; entre a verdade a que chega a lIvre investigação e a que érevelada ao homem pela autoridade dos Livros Sagrados e dos escritoresiluminados. "Não há salvação para as almas dos fiéis se não em crer no que sediz com verdade sobre o único princípio das coisas, e em entender o que comverdade se crê" (De div. nat., 11, 20). A autoridade das Sagradas Escriturasé indubitavelmente indispensável ao homem, porque só elas podem conduzi-loaos lugares secretos em que reside a verdade (1, 64). Mas o peso daautoridade não deve, de forma alguma, afastá -lo daquilo que a recta razão opersuada. "A verdadeira autoridade não cria obstáculos à recta razão, nem arecta razão cria obstáculos à autoridade. Não há dúvida de que ambas dimanamde uma fonte única, isto é, da sabedoria divina" (1, 66). Mas a

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dignidademaior e a prioridade da natureza correspondem à razão, e não à autoridade. Arazão nasceu no princípio dos tempos, juntamente com a natureza: a autoridadenasceu depois. A autoridade deve ser aprovada pela razão, de contrário poderánão parecer sólida: a razão não precisa de ser apoiada ou corroborada porqualquer autoridade. Em suma, a própria autoridade nasce da razão, porque averdadeira autoridade não é mais que a verdade descoberta pela razão dosSantos Padres e por eles transmitidas por escrito em benefício da posteridade(1, 69). E João Escoto coloca na boca

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do mestre, que é o principal interlocutor do diálogo, um enérgico convite àlivre investigação: "Devemos, seguir a razão que procura a verdade e não estáoprimida por qualquer autoridade e que de nenhuma maneira pode impedir queseja publicamente exposto e difundido aquilo que os filósofos procuramassiduamente e com dificuldade conseguem encontrar" (11, 63).

Esta enérgica afirmação da liberdade de investigação, que faz de EscotoErígena um sobrevivente exaltado do espírito filosófico dos gregos, nãoimplica neste autor qualquer limitação ou negação da religião. E isto porquea religião não se identifica com a autoridade, mas com a investigação.Religião e filosofia são uma e a mesma coisa: "Que significa -lidar com afilosofia senão expor as regras da verdadeira religião, por meio das quais asuma o principal causa de todas as coisas, isto é Deus, é humildementeadorada e racionalmente investigada? (De praedest., 1). João Escoto, nesteponto, está muito próximo do espírito de investigação agustiniana, para aqual a fé é mais um ponto de chegada que de partida, e no término da longa elaboriosa via da investigação, e muito mais um princípio, uma direcção, umguia da investigação, do que um limito ou um obstáculo. E de facto, opressuposto agustiniano da Verdade suprema, que se revela e afirma nainvestigação humana, volta a repetir-se- em Escoto Erígena. A natureza humanaconsiderada por si, é uma substância em trevas que, não obstante, é capaz departicipar da luz da sabedoria. Quando o ar participa do raio solar nãosignifica que o mesmo seja luminoso por si, mas pelo esplendor do sol quenele aparece. Assim acontece com a parte racional na nossa natureza quandoparticipa do Verbo, ou seja, da Verdade divina, que por si só não

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compreendeas coisas inteligíveis e Deus e apenas as conhece por inter-

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médio da luz divina que nela existe (De div. nat.,11, 23).

Na investigação humana quem encontra, não é o homem que procura, mas a luzdivina que no homem procura. A palavra de Jesus, segundo S. João: "Não soisvós que falais é Deus que fala em vós" é entendida por Escoto da seguinteforma: "Não sois vós que me compreendeis, sou Eu que mo compreendo a Mimpróprio em vós, através do meti espírito" (Hom. in Joh., p. 291-A).

§ 179. JOÃO ESCOTO: AS QUATRO NATUREZAS

O título da obra principal de João Escoto: * divisão da natureza é de puraorigem platónica. * "divisão" a que se refere significa a operaçãofundamental da dialéctica platónica, operação que Erígena defende comoconstitutiva da própria estrutura da natureza; e a "natureza", segundo osensinamentos do Parménides e do Sofista, é o conjunto do ser e do não ser.Retomando um modelo de Santo Agostinho (De civ. Dei, V, 9). Erígena divide* natureza em quatro partes.

A primeira natureza cria e não é criada: é ela* causa de tudo o que é e que não é. A segunda é criada e cria, constitui oconjunto das causas primordiais. A terceira é criada e não cria e correspondeao conjunto de tudo o que é gerado no espaço e no tempo. A quarta não crianem é criada, é o próprio Deus, como fim último da criação (De div. nat., 1,1).

Faz parte destas quatro naturezas não só tudo o que é, como também tudoaquilo que não é. Pelo não-ser, não se entende o nada, mas a negação dasvárias determinações possíveis do ser. Deste modo poderá afirmar-se que nãosão as coisas que escapam aos sentidos e ao intelecto; ou as coisas infe-

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riores em relação às coisas superiores e celestes, ou as coisas futuras queainda não são; ou as que nascem e morrem; ou, em suma, as que transcendem oentendimento e a razão. To-das as coisas deste género, de certa forma, não

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são: todavia não se identificam com o nada e, constituem parte da realidadeuniversal a que Escoto chama natureza (1, 3 e segs.).

As quatro naturezas constituem o círculo vital do ser divino: "Em primeirolugar, Deus descende da super-essencialidade da sua natureza, na qual devedizer-se que Ele não é; criado por si próprio nas causas primeiras, converte-se em princípio de toda a essência, de toda a vida, de toda a inteligência, oque a teoria gnóstica considera como causas primordiais. Em segundo lugar,ele desce às causas primordiais que estão entre Deus e a criatura, entre ainefável super-essencialmente de Deus, que transcende toda a inteligência e anatureza que se manifesta aos que têm um espírito puro; encontra-se no efeitodas causas primordiais e manifesta-se abertamente nas suas teofanias. Emterceiro lugar, procede através das formas múltiplas de ta-is efeitos até àúltima ordem da natureza inteira que contém os corpos. Deste modo, procedendoordenadamente em todas as coisas, cria todas as coisas e acaba por ser tudoem tudo; e volta a si próprio, chamando a si todas as coisas, e apesar de seencontrar em todas as coisas, não deixa de estar acima de tudo" (111, 20).

Este círculo, pelo qual a vida divina procede a constituir-se constituindotodas as coisas e com elas torna a si própria, é o pensamento fundamental deJoão Escoto. Nele se encontra contida e determinada a relação entre Deus e omundo. O mundo

é o próprio Deus, enquanto teofania ou manifestação de Deus; mas Deus não é omundo, porque

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ao criar-se e converter-se em mundo, se mantém acima dele.

§ 180. JOÃO ESCOTO: A PRIMEIRA NATUREZA: DEUS

A primeira natureza é Deus, na medida em que não tem princípio, e é a causaprincipal de tudo o que procede d'Ele. Com efeito, Deus é o princípio, o meioe o fim: é princípio na medida que d'Ele derivam todas as coisas queparticipam da essência; é o meio, na medida em que n'Ele e por Ele subsistem

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e se movem todas as coisas; é o fim, na medida em que todas as coisas semovem para Ele, em busca do repouso do seu movimento e da estabilidade da suaperfeição (1, 11). Como princípio, meio e fim, a natureza divina não selimita a criar, é também criada. É criada por si própria nas coisas que elaprópria cria, tal como o nosso intelecto se cria a si próprio através dospensamentos que formula e das imagens que recebe dos sentidos (1, 12). Deus éincriado, no sentido em que não é criado por outro; como tal está acima detodos os seres e não pode ser compreendido nem definido adequadamente. Éunidade, mas unidade inefável que não se encerra esterilmente na suasingularidade; articula-se em três substâncias: a substância ingénita, o Pai;a substância génita, o Filho; a substância procedente da ingénita e dagénita, o Espírito Santo. João Escoto vai buscar ao Pseudo-Dionísio, adistinção das duas teologias: a positiva e a negativa. A primeira afirma deDeus todos os atributos que lhe correspondem. A outra nega que a substânciadivina possa ser determinada mediante os caracteres das coisas que são; istoé: que possa ser de algum modo compreendida ou exprimida.

Mas os mesmos caracteres que a teologia positiva atribui a Deus assumem nestareferência um valor diferente daquele que possuem quando se

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referem às coisas criadas. Deus não é propriamente essência, mas super-essência; não é verdade, mas supra-verdade, e o mesmo se deve dizer de todosos caracteres positivos que possam ser atribuídos a Deus. De modo que aprópria teologia positiva é na realidade negativa; a menos que não se lhequeira chamar positiva e negativa ao mesmo tempo; uma vez que, dizer que Deusé a super-essência, equivale a afirmar e negar ao mesmo tempo que ele sejaessência (1, 14). É certo que a Deus não se pode atribuir nenhuma dascategorias aristotélicas que, referidas a ele, assumem um significadodiferente. Se Deus caísse no âmbito de algumas categorias seria um género(como, por exemplo, animal). Ora Deus não é nem género nem espécie nemacidente e, deste modo, nenhuma categoria pode propriamente qualificá-lo (1-15). A conclusão é de que tudo o que a razão humana pode conseguir em relaçãoa Deus é demonstrar que nada se pode propriamente afirmar d'Ele. "Ele superatodo o entendimento e todo o significado sensível e inteligível, de modo queo conhecemos ignorando-o, e a ignorância acerca dele é a verdadeirasapiência" (1, 66).

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Mas se Deus é inacessível como natureza supra-essencial revela-se por sipróprio na criação, que é uma contínua manifestação d'Ele ou teofania. Aessência divina, que é em si incompreensível, manifesta-se nas criaturasintelectuais e é possível conhecê-la nelas. Teofania é o processo que descede Deus ao homem através da graça, para regressar do homem a Deus, com oamor. Teofania significa, também, toda a obra de criação, enquanto manifestea essência divina, que deste modo se torna visível nela e através dela (1,10; V, 23). Cada uma das pessoas divinas tem a sua própria função no processoda teofania. O Pai é o criador de tudo, o Filho cria as causas primordiaisdas coisas que

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subsistem nele de forma universal e simples; o Espírito Santo multiplicaestas causas primordiais nos seus efeitos; isto é, distribui-as por géneros eespécies, por números e diferenças, quer se trate das coisas celestiais, querdas sensíveis (11, 22).

§ 181. JOÃO ESCOTO: A SEGUNDA NATUREZA: O VERBO

A segunda natureza, a que é criada e cria, corresponde à segunda pessoa daTrindade. Contém as ideias e as formas das coisas; é portanto o Verbo divino,através do qual todas as coisas foram criadas. Escoto interroga-se sobre ovalor causal que podem ter as formas subsistentes no Verbo divino; se oscorpos do mundo são formados por elementos que foram criados do nada. Se onada fosse efectivamente a origem de tais corpos, teria sido também a suacausa. Sendo assim, o nada seria melhor que as próprias coisas de que foicausa, uma vez que a causa é sempre superior ao efeito. Escoto resolve adificuldade afirmando que os elementos que compõem o mundo não foram criadospelo nada, mas pelas causas primordiais. E volta a levantar o problema apropósito destas últimas. Teriam sido estas criadas do nada? Escoto respondeque também estas não foram criadas do nada; sempre estiveram com o Verboporque são coessências. A criação do nada não se refere às causasprimordiais, nem tão-pouco às coisas que dependem delas.O nada não encontra lugar nem dentro nem fora de Deus. O facto de as coisasterem sido criadas do nada significa apenas que existe um sentido no qual nãosão: com efeito, as coisas tiveram um princípio no tempo através da geração eantes desta não apareciam nas formas nem nas espécies do mundo

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sensível. Mas,noutro sentido, são sempre, já que subsistem como causas primordiais no Verbo

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divino, na qual nunca começam ou deixam de existir (111, 15). A teofaniadivina começa nas causas primeiras que subsistem no Verbo. Para elas, opróprio Criador é criado por si mesmo e por si se cria, isto é, começa porsurgir nas. suas teofanias, a emergir dos recessos da sua natureza o a desceraos princípios e às coisas, começando assim a existir juntamente com elas(111, 23). João Escoto, ao longo de toda a sua obra, insiste na identidadeessencial das criaturas com o Criador, na permanência da criatura na própriaessência do Criador, ria presença substancial deste naquelas. O mundo é opróprio Deus na sua auto-revelação. Tal é o princípio que domina toda aespeculação de Erígena. Deus não pode, certamente, subsistir antes do mundo.Deus precede o mundo, não no tempo, mas apenas racionalmente enquanto causadele. Mas não começa a ser causa num momento dado, uma vez que éessencialmente causa e, embora não fosse causa se não criasse o mundo, a suacriação deve ser eterna, co-eterna com Ele (111, 8). "Deus não existia antesde criar todas as coisas" Q, 72) afirma Escoto.

§ 182. JOÃO ESCOTO: A TERCEIRA NATUREZA: O MUNDO

A terceira natureza, criada e não criadora, é o próprio mundo-o conjuntouniversal das coisas sensíveis e não sensíveis que procedem das causasprimeiras pela acção distributiva e multiplicadora do Espírito Santo.

Escoto -sustenta que todos os corpos do mundo são constituídos de forma ematéria. A matéria, quando privada de forma e de cor, é invisível eincorpórea e é por isso, objecto não dos sentidos mas da razão. É resultadodo conjunto das diversas qualidades, por si mesmas incorpóreas, que a cons-

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tituem reunindo-se conjuntamente: e transforma-se nos distintos corpos àmedida que se lhe juntam as formas e as cores (111, 14).

Também a terceira natureza, isto é, o mundo, não se distingue na realidade doVerbo divino. A razão, afirma energicamente Escoto, obriga-nos a reconhecerque no Verão não só subsistem as causas primeiras, como ainda os seusefeitos, e do mesmo modo, nele se encontram os lugares e os tempos, as

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substâncias, os géneros e as espécies, até as espécies especialíssimasrepresentadas pelos indivíduos com todas as suas qualidades naturais. Numapalavra, subsiste no Verbo tudo o que está reunido no universo das coisascriadas, tanto o que é compreendido pelos sentidos, ou pela inteligênciahumana ou angélica, como o que transcende os sentidos e a própria mente (111,16). O mundo foi certamente criado: afirma-o a Sagrada Escritura.O mundo é certamente eterno, porque subsiste no Verbo; afirma-o a razão. Deque maneira se conciliam criação e eternidade, é problema que a mente humananão pode resolver. Mas, na realidade, tal-

vez o problema seja mais aparente do que real. As coisas que subsistem noespaço e no tempo e estão distribuídas nos géneros e nas formas do mundosensível não são, em verdade, distintas das causas primeiras que subsistem emDeus, e são o próprio Deus. Não se trata de duas substâncias diversas, mas dedois modos diversos de entender as mesmas substâncias; na eternidade do Verbodivino, ou na vida do tempo. Assim, não há duas substâncias "homem", uma comocausa primordial, o outra individuada no mundo; mas uma só substância, quepode ser entendida de dois modos, ou na sua causa intelectual, ou nos seusefeitos criados. Entendida da primeira forma, está livre de toda amutabilidade; entendida da segunda, surge formada por qualidades

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e quantidades diversas e é susceptível de ser conhecida pela inteligência(IV, 7).

Vê-se assim, que Deus não é apenas o princípio, mas também o fim das coisas.A Ele, portanto, retornarão as coisas que dele saíram e nele se movem eestão. A Sagrada Escritura ensina claramente o fim do mundo e é por outrolado evidente, que tudo o que começa a ser o que antes não era, deixarátambém de ser o que é. Pois bem, se os princípios do mundo são as causas deque saiu, estas mesmas causas serão o último termo do seu retorno. O mundonão será reduzido ao nada, mas às suas causas primeiras; e, uma vez terminadoo seu movimento, será conservado perpetuamente em repouso. Pois bem, ascausas primeiras do mundo são o próprio Verbo divino: ao Verbo divinovoltará, portanto, o mundo quando chegar o seu termo. Uma vez reunido a Deus,para o qual tende no seu movimento, o mundo não terá um fim ulterior aatingir o necessariamente repousará. Por isso o princípio e o fim do

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mundosubsistem no Verbo de Deus e são o próprio Verbo (V, 3, 20).

Se a tese típica do panteísmo é de que Deus é a substância ou a essência domundo, não há dúvida de que a doutrina de Escoto é um rigoroso panteísmo."Deus está acima de todas as coisas e em tudo, disse Escoto, só Ele é aessência de todas as coisas porque só ele é; e, sendo tudo em tudo, não deixade ser tudo fora de todas as coisas. Ele é tudo no mundo, tudo ao redor domundo, tudo ria criatura sensível, tudo na criatura inteligível, é tudo aocriar o universo, torna-se tudo no universo, está todo em todo o universo,está todo nas várias partes deste, porque ele é o todo e a parte e não é nemo todo nem a parte" (IV, 5).

Constantemente, o panteísmo, quer na filosofia medieval quer na moderna,assumiu como princípio seu a tese-deste modo expressa,-de que Deus é

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a substância do mundo. Por outro lado, poderá compreender-se que uma outraenérgica afirmação de Escoto Erígena, a de que Deus está fora de todo ouniverso e que não é nem o todo nem a parte, possa ser assumida como prova docarácter não panteísta da sua doutrina.

§ 183. JOÃO ESCOTO: O CONHECIMENTO HUMANO

O homem interior é uma imagem da Trindade divina. Escoto retoma e desenvolve,à sua maneira, este pensamento de Santo Agostinho. As três pessoas divinasrelacionam-se entre si como a essência (Ousia,) a potência (Dytzaniis) e oacto (Energheia). Na alma humana, a essência é a inteligência ou nous, que éa parte mais elevada da nossa natureza e pode perceber Deus e as coisas nassuas causas primordiais. A razão ou logos corresponde à virtus ou dynamis erefere-se aos princípios das coisas que vêm imediatamente a seguir a Deus. Osentido interior ou dianoia corresponde ao acto ou energheia e diz respeitoaos efeitos, visíveis ou invisíveis, das causas primordiais. Este sentidointerior é essencial à razão e ao entendimento, apesar de o sentido interior,que se serve dos cinco órgãos e reside no coração, pertencer mais ao corpo doque à alma e perecer com a dissolução do corpo (11, 23).

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A estas três partes da alma correspondem três movimentos diversos: segundo aalma, segundo a razão, segundo os sentidos. O primeiro movimento é aquelemediante o qual, a alma se move até ao Deus desconhecido, para além de siprópria e de toda a criatura. Através deste primeiro movimento, Deus apareceà alma como transcendente a tudo o que é e como absolutamente indefinível. Osegundo movimento é aquele pela qual a alma define o Deus desconhecido comocausa de todas as coisas, por-

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ANSELMO DE AOSTA

que nele estão as causas primordiais. O terceiro movimento é o que dizrespeito às razões das coisas singulares. Parte das imagens recolhidas pelossentidos externos e, a partir dessas imagens, ergue-se até às razões ú ltimasdas coisas das quais são imagens. Através deste movimento, a própria imagemsensível transfigura-se. De imagem impressa nos órgãos dos sentidos,transforma-se em imagem que a alma sente em si como própria; é precisamentedesta imagem espiritualizada que a alma parte para ascender até às razõeseternas das coisas (11, 23).

A correspondência entre a alma e Deus estende-se também àquilo que dizrespeito ao conhecimento que a alma tem de si própria. Como Deus écognoscível. através das suas criaturas, mas incompreensível em si próprio,já que nem ele próprio nem outro pode entender que coisa seja, uma vezque não possui um quid, uma essência determinada que se possa entender, assima alma humana sabe que é, mas de nenhuma maneira pode conhecer aquilo que é.E isto não é um limite ou uma imperfeição da própria mente. Assim como amelhor maneira de aproximarmo-nos de Deus não é a afirmação mas a negação,não é o conhecimento mas a ignorância, porque Deus, não tendo limites, nãopode ser definido nem restringido a uma essência determinada; também se àalma fosse possível conhecer a sua própria essência, isso significaria apossibilidade de circunscrevê-la e implicaria a sua dissemelhança com oCriador (IV, 7).

§ 184. JOÃO ESCOTO: DIVINDADE DO HOMEM

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Circula em toda a obra de João Escoto o sentido do valor superior e divino dohomem. O pessimismo próprio dos pensadores cristãos, e até de

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Santo Agostinho, sobre a natureza e o destino do homem, parece atenuar-seneste filósofo até se transformar em exaltação do homem, das suas capacidadese do seu êxito final. "0 homem, afirma, não foi chamado imerecidamentefábrica de todas as criaturas; com efeito, todas as criaturas se contêm nele.Compreende como o anjo. raciocina como homem, sente como animal irracional,vive como o verme, compõe-se de corpo e alma e não carece de nenhuma coisacriada". Em certo sentido, o homem é superior ao próprio anjo que, porcarecer de corpo, não tem sensibilidade, nem movimento vital (111, 37).

Muito significativas são as considerações que Escoto tece, com visívelcomplacência, em torno do tema "se o homem não pecasse ... ". Se o homem nãopecasse seria de certo omnipotente como Deus. Com efeito, nada o separaria deDeus, e ele, que é a imagem de Deus, participaria totalmente na perfeição doseu modelo. Pelo mesmo motivo, seria omnisciente, porque, tal como Deus,conheceria

nas suas causas primordiais todas as coisas criadas. Se o primeiro homem nãotivesse pecado, a semelhança entre a natureza angélica e a humana ter-se-iatransformado numa identidade, e o homem e o anjo ter-se-iam convertido numamesma coisa. E isto explica-se porque a mesma identidade se estabelece entrehomem e homem, quando reciprocamente se compreendem. "Se, afirma Escoto, eucompreendo 9 que tu compreendes, converto-me no teu próprio entendimento e decerta maneira inefável, converto-me em ti próprio. E quando tu compreendes oque, eu compreendo, convertes-te no meu entendimento, e dos doisentendimentos resulta um só, constituído por aquilo que ambos sincera ecorrectamente compreendemos. Porque o homem é verdadeiramente o seuentendimento, o qual se especifica e individualiza pela contemplação daverdade (IV, 9).

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A perfeição do homem é tão grande que nem

mesmo o pecado original chega para destruí-Ia. Com elo o homem não perdeu a

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sua natureza que, enquanto imagem de Deus, é necessariamente incorruptível;perdeu apenas a felicidade, à qual estava destinado se não houvessedesprezado o mandamento divino. "É preciso afirmar, diz Escoto, que anatureza humana, feita à imagem de Deus, nunca perdeu a força da sua beleza ea integridade da sua essência e nunca poderá perdê-las. Uma forma, divinacomo é a alma, permanece sempre incorruptível, além do mais, torna-se capazde suportar a pena do pecado" (V, 6).

Com o mesmo optimismo Escoto considera o destino último do homem. A morte épara o homem o princípio de uma ascensão que o leva a identificar-se comDeus. Não há morte para o homem, mas o retorno a um estado antigo que perdeuao pecar. A primeira fase deste retorno a Deus dá-se quando o corpo sedissolve nos quatro elementos de que é formado. A segunda fase é aressurreição, na qual cada um receberá de novo o seu corpo, através dareunião dos quatro elementos. Na terceira fase, o corpo transformar-se-á emespírito. Na quarta fase, toda a natureza humana voltará às suas causasprimordiais, que subsistem em Deus de forma imutável. Na quinta fase, anatureza humana, juntamente com as suas causas, mover-se-á em Deus "como oar se move na luz" (V, 8). Este triunfo final da natureza humana não será, noentanto, uma anulação em Deus. O dissolver-se místico do homemem Deus está excluído por João Escoto. O destino da natureza humana não é ode perder-se no ser divino, mas o de permanecer na sua verdadeira substância,de reintegrá-la nas suas causas primordiais e de subsistir na sua total perfeição o âmbito do serdivino, como o ar na luz. O misticismo neoplatónico é aqui corrigido

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pelo sentido do carácter irredutível da natureza humana, carácter pelo qualconserva, mesmo perante Deus, e em virtude de Deus, a sua autonomiasubstancial.

§ 185. JOÃO ESCOTO: O MAL E A LIBERDADE HUMANA

Esta mesma posição leva João Escoto a modificar a doutrina agustiniana daliberdade humana. De Santo Agostinho, retoma o ponto de partida para a suadoutrina do mal. Que o mal não é uma realidade, mas uma negação da realidade,é para Escoto Erígena um pressuposto evidente. Deste pressuposto tira aconclusão de que Deus não conhece o mal. Com efeito, o conhecimento divino éimediatamente criador: Deus não conhece as coisas que são, porque são: mas as

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coisas são porque Deus as conhece. A causa da sua essência é a ciênciadivina. Tudo o que é, é pensamento divino. O homem é definido por Escoto como"uma noção intelectual eternamente criada na mente divina"; e esta mesmadefinição aplica-se a tudo o que existe (IV, 7). Daqui se conclui que se Deusconhecesse o mal, se o mal fosse um pensamento divino, o mal seria real nomundo (11, 28). Mas o mal não é real. Não é algo substancial e as própriasaparências sedutoras de que se reveste perante os homens maus, não são porsi, más. Um objecto belo e precioso que inspira ambição no avarento podeinspirar, pelo contrário, admiração desinteressada no homem sábio. Não é,portanto, a aparência bela que leva ao pecado e é por si o mal, mas adisposição maléfica daquele que a contempla (IV, 16). Do mal, que não érealidade, não há portanto em Deus presciência; nem tão-pouco predestinação.A pena que recai sobre o que peca não foi predestinada por Deus; pois tambémela é dor e privação, e não uma realidade

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positiva. A pena é consequência do pecado e segue-se como se estivesse ligadaa ele por uma corrente; mas nem a pena, nem o pecado subsistem na mentedivina, na qual apenas encontra lugar o ser e o bem (De praedest., 15, 8).Quando as Sagradas Escrituras falam de predestinação ou de presciência divinado mal, há que entender estas expressões no sentido com que nós costumamossaber que, depois do sol se pôr vêm as trevas, que o silêncio vem depois dasaclamações e a tristeza depois da alegria. Mas as trevas, o silêncio, atristeza, não são mais que noções negativas e indicam. apenas a ausência dasrealidades -positivas correspondentes (ibid., 15, 9).

Para Escoto, tal como para Santo Agostinho, o mal reduz-se ao pecado, àdeficiência ou ausência de vontade. Mas enquanto para Santo Agostinho avontade livre é unicamente a vontade do bem, para Escoto Erígena a vontadelivre é o livre arbítrio, capaz de decidir-se quer pelo bem, quer pelo mal. Écerto que a causa do pecado está na mutabilidade da vontade. Estamutabilidade, que é causa do mal, é certamente ela própria um mal (Do div.,nat., IV,14). Mas sem ela o homem não seria verdadeira e plenamente livre. Se Deustivesse dado ao homem apenas a capacidade de querer o bem e de viver deacordo com a justiça, de forma a que o homem só se pudesse mover numadirecção, o homem não sena absolutamente livre, mas apenas livre em parte e

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em parte não livre. Ora uma liberdade parcial não é possível. Se mesmo numaparte mínima o homem não é livre, ele é absolutamente não-livre. Um livrearbítrio que oscila não pode permanecer de pé (De praedest., 5, 8). Se seafirma que não viria dano ao homem pelo facto de possuir um livre arbítrioclaudicante, poderá objectar-se que sem um verdadeiro e total livre arbítrioa justiça divina não poderia exercer-se. Uma vez que a jus-

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tiça consiste em dar a cada um o que é seu, e da parte de Deus em reconhecera cada homem o mérito de haver obedecido aos seus preceitos. Mas quesignificado poderiam ter esses preceitos para um homem que apenas pudessefazer o bem? Deus teve portanto, que dar ao homem um livre arbítrio pelo qualele pudesse pecar ou não pecar. Só um livre arbítrio assim criado torna ohomem capaz de usufruir livremente a ajuda que lhe oferece a graça divina(Ibid., 5, 9).

A liberdade do homem consiste portanto na possibilidade de pecar ou nãopecar, uma vez que só essa possibilidade torna o homem susceptível de serpremiado ou castigado segundo um juízo. E como só a vontade dotada de livrearbítrio é responsável pelo pecado, só a vontade pode ser castigada porDeus. Também os juízes humanos, se não são impelidos pela sede devingança, têm em vista a correcção dos réus e castigam não a sua natureza,mas apenas os seus delitos. Do mesmo modo, a punição divina do pecado dirige-se apenas à vontade que cometeu o pecado, mas deixa íntegra e salva anatureza do pecador, que permanece capaz de regressar a Deus, no triunfofinal (V, 31). Para este triunfo o homem é ajudado tanto pela sua naturezacomo pela graça divina. O homem deve à própria natureza o haver sido retiradodo nada e existir; à graça deve a sua deificatio pela qual regressa àsubstância divina. A natureza é dada, a graça é um dom gratuito, concebidopela divina bondade sem que tenha havido mérito por parte do homem.

§ 186. JOÃO ESCOTO: A LóGICA

De acordo com a orientação platonizante do sistema, a lógica de EscotoErígena é realista: pressupõe a realidade objectiva de todas as deter-

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minações lógicas universais, de todos os conceitos de género e espécie. Estáno espírito de uma lógica que quanto mais um conceito é universal, tantomaior é a sua realidade objectiva; assim os conceitos dos géneros supremossão mais reais que os dos géneros menos extensos; e os conceitos de génerosão mais reais que os conceitos de espécie, nos quais todo o género sesubdivide; enfim, as espécies especialíssimas, isto é, os indivíduos, têm uma-realidade menor que as espécies superiores ou mais extensas. Comentando umapassagem bíblica, Escoto afirma que Deus criou primeiro o género, porque nelese contêm e estão reunidas todas as espécies; o género divide-se em seguida emultiplica-se nas formas gerais e nas espécies especialíssimas. Daqui podetirar-se uma conclusão fundamental sobre o valor objectivo da dialéctica: "Aarte que divide os géneros em espécies e resolve as espécies e os géneros, achamada dialéctica, não foi criada através das investigações humanas, masbaseia-se na própria natureza e foi criada pelo Autor de todas as artes quesão verdadeiramente artes, descoberta pelos sábios e empregada para proveitode toda a classe de investigações sobre as coisas." (IV, 4". E assim a tábualógica dos conceitos dispostos segundo a ordem da sua universalidade,identifica-se, segundo Escoto, com a ordem metafísica das determinações doser.

A mais universal determinação lógica, e por conseguinte, a mais realdeterminação objectiva, é a essência (ousia), que é incorpórea, simples eindivisível. A essência existe nos géneros e nas espécies, mas não se divideneles, permanecendo não-multiplicada, mesmo que se multiplique nos géneros,nas espécies e nos indivíduos (1, 34). "A essência subsiste toda reunida,está eterna e imutavelmente nas suas subdivisões, e todas as suas subdivisõesconstituem simultaneamente e sempre, nela, uma

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unidade inseparável" (1, 49). Por isso, a essência de todas as coisas é narealidade uma só, é o próprio Deus (1, 1). É incognoscível, e incompreensívelcomo o próprio Deus; o que se percebe com os sentidos ou se compreende com ointelecto em toda a criatura, é apenas algum acidente da essência

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incompreensível (1, 3).

A lógica de Escoto, que nasceu dois séculos antes de a discussão sobre osuniversais se transformar no problema fundamental da dialéctica, apresentaantecipadamente a solução tipicamente realista do problema e é a fonte detodas as soluções do mesmo tipo que foram adoptadas depois. Representa tambémo papel de um termo de comparação polémico para as escolas anti-,realistas.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 177. As obras de João Escoto e as suas traduções do Pseudo-Dionísio e dosAmbígua de Mássimo o Confesor, in P. L. 122.1; De divisione naturae, ed.Schlüter, Munique, 1938; Commentarius ad Opuscula Boethii, ed. Rand, Mónaco,1906;Autographa, ed. Rand, Mónaco, 1912.

§ 178. J. Huber, Johannes Scotus Erigena, 1861, ed. fot., 1960; Bett, J. S.E., Cambridge, 1925; Cappuyns, J. S. E., Paris-Louvaina, 1933, com bibl.; DalPra, S. E., Milão, 1951 com bibliografia.

§ 181. Gregory, Sulla metafisica di G. S. E., in "Giorh. Crit. della Fil.Ital.", 1957; Mediazione e incarnazione, n~ filosofia dell'E.> Ib., 1960.

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III

DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS

§ 187. GERBERTO

As condições políticas do século X, sobretudo a dissolução do impériocarolíngio, detiveram quase por completo a recuperação intelectual doOcidente. Restabelecida a unidade do império com Otão o Grande, o movimentoda cultura tornou a prosseguir.

Neste período aparece uma grande figura de erudito e de mestre, Gerberto, quese formou na escola de Aurillac. A partir de 972 foi professor na escola deReims; em 982 foi designado abade de Bobbio, em 991, arcebispo de Reims; em998, arcebispo de Ravena; em 999, papa, com o nome de Silvestre 11. Morreu noano de 1003. Gerberto ocupou-se de todas as ciências mas sobretudo destacou-

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se no estudo da mecânica e das matemáticas. Atribui-se-lhe a invenção de umrelógio e de uma espécie de sirene a vapor de água. Para explicar a sua vastaerudição, um antigo cronista, Vicente de Beauvais (Speculum historiale, XXIV,98) conta que Gerberto tinha feito uma larga estadia em Espanha,

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país de nigromantes. Aí, conseguiu seduzir a filha de um desses doutoresdiabólicos e roubar-lhe, em seguida, os livros. O mago, advertido pelasconstelações celestes, dispôs-se a perseguir o ladrão; este, no entanto,aproveitando-se das indicações dos mesmos astros, conseguiu furtar-se àperseguição que aquele lhe movera, escondendo-se durante uma noite debaixo doarco de uma ponte destruída. O diabo em pessoa foi buscá-lo depois e levou-osobre o mar para que um dia algum dos seus adeptos pudesse ocupar a cátedrado príncipe dos apóstolos. Provavelmente, esta lenda fabulosa oculta arealidade de uma viagem de Gerberto a Espanha e da procedência árabe de boaparte da sua cultura.

Gerberto escreveu comentários à Isagoge de Porfírio, às Categorias e ao livroDe interpretatione, de Aristóteles, e aos Comentários lógicos de Boécio.O seu escrito, De rationali et ratione uti, uma questão que disputou emRavena com Otrício, na presença de Otão II, propõe-se investigar osignificado da expressão "empregar a razão". A questão apresenta-se, àprimeira vista, com carácter lógico-gramatical; mas a solução de Gerbertoeleva-a. a um plano metafísico. É regra fundamental da lógica aristotélicaque o predicado seja mais universal que o sujeito: por exemplo, na proposição"Sócrates é mortal", o predicado mortal é mais universal que o sujeito,porque pode referir-se a muitos outros seres além de Sócrates. Mas naexpressão que se encontra em Santo Agostinho (De ord., 11, 12, 35):Rationale, id est quod ratione utitur, o predicado "ratione utitur" é maisrestrito que o sujeito "rationale", porque nem sempre quem é racional seserve efectivamente da razão. Esta é a dificuldade que dá origem à discussão.Para resolvê-la, Gerberto distingue as substâncias necessárias e eternas dasmutáveis e caducas. As primeiras são suprasensíveis, cognoscíveis apenas pelarazão e sempre em acto.

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As outras são sensíveis e naturais, sujeitas a mudança e, por conseguinte, àgeração e à corrupção. Ora, uma vez que todas as substâncias da primeiraclasse estão sempre em acto, o ser -racional e o servir-se da razão são

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nelascompletamente coincidentes; porque são racionais precisamente no sentido deque a sua razão está sempre em acto, ou seja, que sempre se servem dela. Asituação é diversa quando se trata de substância da segunda classe. Na alma,que está unida ao corpo, a racionalidade não está em acto, mas em potência, epassa da potência ao acto precisamente quando se diz que a alma "se serve darazão". Daqui se conclui que, para a alma, o servir-se da razão não é umpredicado necessário, como para as substâncias supra-sensíveis, que são razãoem acto, mas um atributo acidental que pode acontecer ou não à racionalidadepotencial da pró pria alma. Deste modo, Cerberto, empregava os conceitosaristotélicos de potência e acto, para chegar a uma distinção entresubstâncias racionais puras e substâncias racionais sensíveis, que é degrande interesse para o posterior desenvolvimento da metafísica escolástica.

§ 188. DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS

A segunda metade do século XI e o século XII são, no Ocidente, um período deflorescimento intelectual. A cultura deixa de ser património das abadias e oensino tende a organizar-se na forma que há-de possuir no século XIII com asuniversidades. Este período representa a primeira verdadeira idade daescolástica que alcança a consciência do seu problema fundamental: o decompreender e justificar as crenças da fé. Alguns julgam encontrar a soluçãodo problema entregando-o à razão e à ciência que parece ser mais própriadele, a dia-

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Jéctica; outros desconfiam da dialéctica. e apelam para a autoridade dossantos e dos profetas, limitando a sua tarefa de investigação filosófica àdefesa das doutrinas reveladas. Daqui nasce a polémica entre dialécticos eteólogos e que ocupa o século XI. Na realidade, mesmo os mais hostis àdialéctica, mesmo os mais acérrimos defensores da superioridade da fé, nãoabandonam a investigação, propriamente escolástica, do melhor caminho paralevar o homem à inteligência das verdades reveladas.

Entre os dialécticos sobressai a figura de Berengário de Tours. Formou-se noconvento de Saint-Martin, em seguida frequentou a escola de Chartres,dirigida por Fulberto, de quem foi discípulo. Desdenhando as outras artesliberais, dedicou-se à dialéctica e em breve se divertia ao recolher nos

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escritos dos filósofos argumentos contra a fé dos simples. Conta-se queFulberto, no leito de morte, disse que Berengário era um diabo enviado pelosabismos para corromper e seduzir os povos. O seu êxito como professor foi,todavia, enorme. No ano de 1040 chegou a arquidiácono de Angers. Morreu em1088. Berengário põe a razão acima da autoridade e exalta a dialéctica,sobrepondo-a a todas as ciências. Baseando-se em Santo Agostinho, considera adialéctica como a arte das artes, a ciência das ciências. Recorrer àdialéctica significa recorrer à razão. E quem não recorre à razão pela qual ohomem é a imagem de Deus, abandona a sua dignidade e não renova em si, no diaa dia, a imagem divina (De sacra coena, edic. Vischer, p. 100). A mais famosadas polémicas de Berengário é a que se refere à Eucaristia, que sustentoucontra Lanfranco, e à qual está dedicado o seu escrito De sacra coenaadversus Lanfrancum. Berengário sustenta o

princípio aristotélico de que os acidentes ou qualidades de uma coisa nãopodem subsistir sem a substância dessa mesma coisa. Deste modo, no sacra-

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mento da Eucaristia os acidentes do pão e do vinho mantêm-se: a substâncianão pode, por conseguinte, ter sido destruída, e o pão e o vinho devempermanecer como tais, mesmo depois da consagração. Esta vem acrescentar àsubstância do pão e do vinho um corpo inteligível que é o corpo de Cristo.Tal doutrina impugnava a definição dogmática. da Eucaristia, que afirma atransformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo;e suscitou violentas polémicas. A doutrina de Berengário foi condenada pelaIgreja.

O mais notável adversário de Berengário foi Lanfranco de Pavia, nascido noano de 1010, aluno da escola de Bolonha, já então florescente. Lanfranco,dotado de um espírito aventureiro e entusiasta, percorreu a Borgonha e aFrança e fixou-se na Normandia. Aqui fez-se monge na abadia de Bec, queatravés dele se tornou famosa. Em 1070 foi nomeado arcebispo de Cantuária;morreu em 1089. Lanfranco é um adversário da dialéctica que é, segundo pensa,completamente incapaz de levar o homem a compreender os mistérios divinos.

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Declara energicamente que prefere ouvir discutir sobre os mistérios da fé comautoridades sagradas de que com razões dialécticas. (De corp. et sang.Domitú, 7). "Quem vive da fé, afirma, não procura analizá-la com aargumentação nem concebê-la com a razão; prefere prestar fé aos mistérioscelestes em vez de se cansar em vão, pondo de lado a fé, para compreender oque não pode ser compreendido" (ibid.17). Mas, não obstante estas afirmações, Lanfranco não deixou de ser umdialéctico. Se a dialéctica, abandonada a si própria, falha no campo dosmistérios da fé, guiada e sustentada pela fé, pode prestar úteis serviçosàquela. Com este espírito comentou as cartas de São Paulo, como nos dátestemunhos Sigiberto de Gemblou (De sctipt. eccles., c. 155; em Patr. Lat.,160, 582 c): "Lanfranco, dia-

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léctico e arcebispo de Cantuária, expôs as cartas do apóstolo São Paulo: esempre que teve oportunidade, apresentou as suas teses, os seus argumentos eas suas conclusões segundo as regras da dialéctica". Pode dizer-se que narelação entre a razão e a fé, Lanfranco escolheu a mesma posição que depoisfoi assumida pelo seu grande discípulo, Anselmo de Aosta.

Contra os dialécticos polemizou Pedro Damiano, nascido em 1007 em Ravena. Em1035 retirou-se para viver como ermitão em Fonte Avellana, e dali foichamado, no ano de 1057, para ser consagrado cardeal-bispo de Aosta. Morreuem Faenza em 1072. A maior parte da obra de Pedro Damiano é dedicada à ascesemonástica e a questões eclesiásticas. A sua posição perante a dialéctica e asciências mundanas está expressa na obra que compôs em 1067, De divinaomnipotentia. "Muitas vezes, afirmou, a virtude divina destrói os silogismosarmados pelos dialécticos e as suas subtilezas e confunde os argumentos queforam considerados Inevitáveis e necessários pelos filósofos" (De div.omnip., 10). A dialéctica e, em geral, toda a arte ou perícia humana não devechamar a si arrogantemente o trabalho principal e pelo contrário deve servirvelut ancilla dominae quodam famulatus obsequio (ibid. 5).

A tese típica de Pedro Damiano é a da superioridade da omnipotência divinanos confrontos da natureza e da história. Uma vez que as leis são atribuídasà natureza por Deus, as coisas naturais obedecem às suas leis até que Deus o

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queira; mas, quando Deus não quer, esquecem a sua natureza e obedecem a Ele.A omnipotência divina não encontra nenhum limite, nem mesmo no passado: poisDeus pode fazer com que as coisas que aconteceram não tenham acontecido:portanto o pode (no tempo presente) refere-se à vontade de Deus que é eternae está fora do tempo; e nós devemos antes dizer que podia

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não fazê-las acontecer. A muitos dos próprios Escolásticos consideraçõessemelhantes parecerão implicar a tese da superioridade da omnipotência divinaem relação ao próprio princípio da contradição: aquela tese pode, com efeito,exprimir-se com a afirmação de que Deus pode fazer com que não tenhamacontecido as coisas que aconteceram. De qualquer modo, Pedro Damiano servia-se da tese da omnipotência divina para retirar validade autónoma ao mundo danatureza e do homem; e mesmo no campo político (como testemunham asconsiderações desenvolvidas na sua Disceptatio Sinodalis) a sua preocupaçãodominante é a de retirar ao Imperador toda a dignidade de potência autónoma ede considerá-lo como um simples delegado do Papa.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 187. As obras de Gerberto, em Patrist. Lat., vol. 139, 57-338; outra ediçãode Olleris, Paris, 1867. Epistolae, ed. Havet, Paris, 1889; Operamathematica, ed. Bubnov, Berlim, 1899.-PICAVET, Gerbert ou le papephilosophe, Paris, 1897; LEFLON, Gerbert, P=3,1946.

§ 188. As obras de Berengãrio in P. L., 150.1; De sacra coena, ed. Vischer,Berlim, 1834; ed. Beekenkamp, L'Aya, 1941.-A. J. MACDONALD, Berengar and theReform of Sacramental Doctrine, Londres, 1930.

As obras de Lanfranco in P. L., 150.'.-MACDONALD, Lanfrane, Oxford, 1926.

As obras de Pedro Damiano in P. L., 144.o-145.o; De divina omnipotentia eoutros opusculos, ao cuidado de Brezzi e Nardi, com trad. ital., Florença,1943. -ENDREs, nei "Beitrãge", VLU, 3, 1910; J. GONSETTE, P. D. et Ia cultureprofane, Lovaina, 1956.

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IV

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ANSELMO DE AOSTA

§ 189. ANSELMO: A FIGURA HISTÓRICA

Anselmo de Aosta representa a primeira grande afirmação da investigação naIdade Média. Mas a sua investigação tem mais um valor religioso etranscendente do que humano. Com acentos agustinianos, abandona a Deus ainiciativa e a orientação das suas pesquisas; e no esforço de aproximar-se daverdade revelada não vê mais que a progressiva acção iluminadora da própriaverdade. "Ensina-me a procurar-te, diz (Pros., 1), e mostra-te a mim que teprocuro. Eu não posso procurar-te, se Tu não me ensinas, nem encontrar-te seTu não te mostras. Que eu te procure desejando-te, que eu te desejeprocurando-te, que te encontre amando-te e que te ame procurando-te.Reconheço-te, Senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta tua imagempara que me lembre de Ti, pense em Ti e te ame; mas esta imagem está tãogasta pela miséria dos vícios, tão ofuscada pela acumulação dos pecados, quenão pode fazer aquilo para que foi feita se Tu não a renovares e a nãoreconstituíres. Não pretendo,

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Senhor, penetrar na tua altíssima dignidade, porque não posso, de facto,comparar a ela o meu entendimento, mas desejo entender de alguma maneira atua vontade que o meu coração crê e ama. Também não procuro entender paracrer mas creio para entender. E também creio nisto: que senão acreditarprimeiro, também não poderei compreendem. A -prioridade da fé sobre acompreensão exprime claramente o carácter religioso da investigação deAnselmo, tal como a prioridade da compreensão sobre a fé exprimirá o carácterfilosófico da investigação de Abelardo.

Esta religiosidade encontra a sua melhor expressão no ponto culminante dainvestigação de Santo Anselmo, a prova ontológica da existência de Deus. Comoo próprio Anselmo reconhece, na sua resposta a Gaunilon, o pressuposto da -prova é a fé. Só a fé transforma em afirmação indubitável a possibilidade depensar o ser maior de todos. Se se pode pensar este ser, deve-se pensá-locomo existente; mas não se pode pensá-lo verdadeiramente apenas com a fé. Aprova ontológica é a própria fé que esclarece o seu princípio e se converteem certeza intelectual.

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§ 190. ANSELMO: VIDA E OBRA

Anselmo nasceu em 1033 em Aosta, no Piemonte. Entrou para o mosteiro de Bec,na Normandia, foi prior em 1063 e abade em 1078. A maior parte das suas obrassão o resultado das discussões que dirigia no mosteiro. De 1093 até1109, ano da sua morte, foi arcebispo de Cantuár@a.

O seu secretário, Eadmer, dá-nos uma pormenorizada descrição da sua vida. Denatureza dócil e contemplativa, Anselmo foi impelido para a vida do claustropor necessidade de recolhimento e de

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meditação. A sua fama de santo atribuiu-lhe bem cedo poderes sobrenaturais.Curou e levou à penitência um velho monge, de quem previu a morte, que severificou na altura e da forma que havia predito. Apagou um incêndio numacasa vizinha do mosteiro fazencio o sinal da cruz sobre as chamas. E uma vezque estava na sua cela meditando sobre o dom da profecia viu através, dasparedes, os frades que preparavam na igreja o ofício da meia-noite. Afastadocontra a sua vontade da vida contemplativa, teve que ocupar-se de negócios epolítica, primeiro como abade de Bec e depois como arcebispo de Cantuária. Naqualidade de arcebispo viu-se envolvido na vida agitada da Igreja inglesa nostempos de Guilherme o Vermelho que pretendia subordinar à sua vontade o cloroinglês e subtrair-se à vontade papal. Anselmo dirigiu-se a Roma para buscarapoio e conforto junto de Urbano 11. Regressado a Inglaterra teve novosdesentendimentos com Henrique 1, que queria conservar o direito deinvestidura dos bispos com o anel e a cruz. Conseguiu um compromisso peloqual o rei renunciava a conferir a investidura e os bispos rendiam-lhehomenagem (1106). Alguns anos depois, Anselmo, que nunca abandonara as suasmeditações, morria, quando procurava concluir as suas investigações sobro aorigem da alma.

Entre os anos 1070 e 1078 Anselmo compôs o Monologion, cujo primeiro capítuloera Exemplum meditandi de ratione fidei; em seguida o Proslogion, queprimeiramente se intitulava Fides quarens intellectum e o apêndice polémicoLiber apologeticus contra Gaunilonem; em continuação, compôs quatro diálogos,

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De veritate, De libero arbítrio De casu diabuli, De gramatico. Nos últimosanos da sua vida escreveu o Cur Deus homo e o seu apêndice De conceptuvirginali. Outras obras suas: De fide

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TritWatis, De concordia praescientiae et praedestinationis, Meditationes, e,além disso, homilias, discursos e cartas.

§ 191. ANSELMO: FÉ E RAZÃO

A frase que exprime a posição de Anselmo, sobre o problema escolástico é aseguinte: Credo ut inielligum (Pros., 1). A fé é o ponto de partida dainvestigação filosófica. Nada se pode compreender se não se tem fé; mas a fépor si só não basta, é preciso confirmá-la e demonstrá-la. Esta confirmação épossível. "0 que nós cremos pela fé sobre* natureza divina e as pessoas da mesma, excepto* encamação, pode ser demonstrado com razões necessárias, sem se recorrer àautoridade das Escrituras" (De fide Trin., 4). E, uma vez que isso épossível, passa a ser um dever: "É negligência não intentar compreender o quese crê, depois de havermos sido confirmados pela fé" (Cur Deus homo,12). A própria encarnação é apresentada por Anselmo, na obra que dedicou aeste tema, como uma verdade que a razão pode alcançar por si própria; nãoexiste dúvida, com efeito, de que os

homens não teriam podido salvar-se, se o próprio Deus não tivesseencarnado e não tivesse morrido por eles (ibid. prol.). Deste modo, Anselmoconsidera o acordo entre a fé e a razão intrínseca e essencial. Certamenteque, se uma contradição se produzisse, não seria necessário admitir a verdadedo raciocínio, mesmo quando este parecesse irrefutável (De concordiapraescientiae, 6); mas Anselmo está intimamente seguro de que não pode haveruma

verdadeira contradição, porque a inteligência está iluminada pela luz divina,exactamente como a fé.O que não implica, por outro lado, que a verdade se encontre inteiramente aoalcance do homem. "Seja o que for que o homem possa dizer sobre o saber,

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afirma Anselmo, as razões supremas, os mistérios da fé, -permanecem sempre

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escondidos" (Cur Deus homo, 1, 2). O que investiga uma realidadeincompreensível, como é a Trindade, deve bastar-lhe alcançar com ainteligência o conhecimento de que isso exista, ainda que não compreenda deque modo exista. (Mon., 64). Anselmo afirmou desta forma, em limitesextensos, o valor da investigação.

Distingue a verdade do conhecimento, a verdade do querer e a verdade dacoisa. A verdade do conhecimento consiste na conformidade do conhecimento coma coisa e consegue-se quando se conhece a coisa tal como é. Esta verdadedefine-a Anselmo como rectitudo cognitionis. A verdade da vontade é,analogamente, rectitudo voluntatis. Agir segundo a verdade, significa fazer obem, fazer o que se deve fazer. Mas também aqui o critério é objectivo; amedida está no objecto, isto é, na coisa. O fundamento de toda a verdade é averdade da coisa, a rectitudo rei. Mas esta verdade, por sua vez, estáfundada na verdade eterna, que é Deus: as coisas são verdadeiramente aquelasque estão na mente de Deus, na qual subsistem as suas ideias ou exemplares. Opróprio Deus é, portanto, a absoluta verdade, que é norma e condição dequalquer outra verdade (De verit., 2-10). Anselmo segue aqui os passos daespeculação de Santo Agostinho na sua De vera religione. No âmbito dopensamento platónico-agustiniano movem-se também as suas investigações sobrea existência de Deus.

§ 192. ANSELMO: A EXISTÊNCIA DE DEUS

O Monologion é um conjunto de reflexões sobre a essência divina que conduzema uma demonstração da existência de Deus. Anselmo parte do pressuposto de queo bem, a verdade, e em geral

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todo o universal, subsiste independentemente das coisas particulares e nãoapenas nelas. Há muitas coisas boas, quer sejam meios, isto é, por utilidade,quer sejam fins, isto é, pela sua bondade ou beleza intrínseca. Mas todas sãomais ou menos boas e não de forma absoluta; pressupõem, portanto, um bemabsoluto, que seja a sua medida e do qual obtenham o grau de bondade ouverdade que possuem. Este sumo bem é Deus. Da mesma maneira, tudo o que éperfeito e, em geral, tudo o que existe, existe por participação de um Serúnico e sumo. O sumo bem, o sumo ser, o sumo grau, tudo o que no mundo temverdade e valor, coincidem em Deus.

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O Monologion desenvolve uma argumentação cosmológica que vai do particular aouniversal e do universal a Deus. O Proslogion desenvolve, pelo contrário, umaargumentação ontológica que começa no simples conceito de Deus para chegar àdemonstração da sua existência. Está dirigido contra a negação pura e simplesda existência de Deus, contra o néscio do Salmo XIII "que disse em seucoração: Deus não existe". Evidentemente, mesmo o que nega a existência deDeus deve pensar no conceito de Deus, pois é impossível negar a realidade dealgo que nem sequer se pensa; a prova que vai do conceito à realidade é,portanto, a que não pode ser negada de modo nenhum. Portanto o conceito deDeus é o de um Ser maior de que não se pode pensar nada maior (quo maiuscogitari nequit). Mesmo o néscio deve admitir que o Ser, a respeito do qualnada maior pode ser pensado. existe no intelecto, mesmo que não exista narealidade. Com efeito, uma coisa é existir na nossa inteligência, e outracoisa existir na realidade; a imagem que o pintor quer pintar não existeainda na realidade, mas existe certamente no seu pensamento. Posto isto,aprova de Anselmo é a seguinte:

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"Certamente, aquilo de que não se pode pensar nada maior, não pode existirapenas no intelecto. Porque se existisse apenas no intelecto, poder-se-iapensar que existe também na real-idade e que, portanto, era maior. Assim, seaquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar existe apenas nointelecto, aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar é, por suavez, aquilo de que se pode pensar algo de maior. Mas isto é, certamente,impossível. Portanto, não há dúvida de que aquilo do qual nada maior se podepensar existe tanto no intelecto como na realidade. "(Prosl., 2). O argumentobaseia-se em dois pontos: 1.o que o que existe na realidade é "maior", oumais perfeito do que o que existe apenas no intelecto; 2.o que negar queexiste realmente aquilo em relação ao qual nada maior pode pensar-se,significa contradizer-se, porque significa admitir que se pode pensá-lomaior, isto é, existente na realidade. À objecção de que então não se vê comoé possível pensar que Deus não existe, Anselmo responde que a palavrapensar tem dois significados: pode pensar-se a palavra que indica a coisa epode pensar-se a própria coisa. No primeiro sentido pode pensar-se que

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Deus não existe, como, por exemplo, se pode pensar que o fogo é água; nosegundo sentido, não se pode pensar que Deus não existe (Prosl., 4).

Ao argumento ontológico, o monge Gaunilone, do mosteiro Mar-Montier, no seuLiber pro insipiente, opôs que, em primeiro lugar todo aquele quedecididamente nega a existência de Deus começaria por negar que tivesse o Seuconceito (que é o ponto de partida do argumento ontológico); e, em segundolugar, mesmo admitindo que se tenha o conceito de Deus como o de um serperfeitíssimo, deste conceito não pode deduzir-se a existência de Deus, damesma maneira que não pode deduzir-se

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a realidade de uma ilha perfeitíssima a partir do conceito de tal ilha.

Anselmo replicou com o Uber apologeticus. É impossível negar que se pode,pensar em Deus: para demonstrax esta impossibilidade basta a mesma fé de quetanto Anselmo como Gaunilonern estão dotados; e se se pode pensar em Deus,deve-se reconhecê-lo como existente, sendo impossível negar a existênciaàquilo que se pode pensar como a maior de todas as coisas. De uma ilhafantástica, ainda que se a conceba perfeita, não se pode dizer que ;sejaaquilo em relação ao qual nada mais perfeito pode pensar-se. Da possibilidadede pensá-la não se segue da simples possibilidade de pensar em Deus como oser mais perfeito de todos.

O argumento ontológico foi uma vez defendido e outras criticado durante aEscolástica e estas alternativas mantiveram-se no pensamento moderno. Narealidade, o argumento não é uma prova mas um princípio. Não é uma prova,porque a existência que se pretende deduzir está já implicitamente contida nadefinição de Deus como o ser em relação ao qual nada maior se pode pensar e,por isso, no simples pensamento de Deus: como prova é um círculo vicioso.Como princípio, exprime a identidade de possibilidade e realidade no conceitode Deus. Se se pode pensar Deus, deve-se pensá-lo como existente: opensamento de Deus é o próprio pensamento desta identidade da possibilidade eda existência, identidade que, como Anselmo afirma no Liber apologeticus, érealizada pela fé. A fé consiste precisamente em admitir, comonecessariamente real, a perfeição possível: o argumento ontológico, que deduzdessa perfeição aquela existência não é, por conseguinte, outra coisa senão a

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explicação da fé na sua expressão racional ou no seu princípio lógico. Trata-se uma vez mais das fides quarens intellectum, do credo ut intellígam: do

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processo através do qual o acto de fé se converte em acto de razão e ailuminação divina em investigação filosófica.

§ 193. ANSELMO: A ESSêNCIA DE DEUS

Das próprias provas que demonstram a existência de Deus, resulta que só Deusé o ser perfeito e absoluto e que as outras coisas quase não são ou apenassão (fere non esse et vix esse, Mon., 28). Sujeito ao devir e ao tempo, o serdas coisas finitas começa e acaba continuamente e continuamente muda; é porisso um ser aproximativo e apenas tal, não podendo ser comparado com o serimutável de Deus. Ao qual Santo Anselmo reconhece aquela necessidade, cujoconceito ia sendo elaborado pela escolástica árabe, a partir de Avicenas. Anatureza de Deus é tal que não pode proceder nem de si nem de outro; nem dá asi própria uma matéria da qual possa ser retirada, nem outro pode dar-lhe talmatéria (Mon., 6). É, portanto, originária e necessária.

Por conseguinte, as propriedades que se afirmam da natureza divina devem serpredicados dela quidditativamente e não qualitativamente: isto é, como partesou aspectos integrantes da essência divina, mas de forma alguma diversasdesta essência. Deus não pode ser justo ou sábio, se o não for em si e porsi; não é, certamente, pela participação de uma justiça ou sabedoriadistintas d'Ele. O melhor portanto, é dizer não que Deus é justo, mas que é *justiça; não que tem vida, mas que é a vida; * analogamente que é a verdade,o bem, a grandeza, a felicidade, a eternidade, o poder, a imutabilidade, aunidade e, em geral, todas as qualidades

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que implicam excelência e perfeição em quem as possui (Mon., 15-16).

Por outro lado, todas estas qualidades não podem subsistir na essência divinacomo uma multiplicidade numérica. A natureza divina exclui toda a composição

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e não pode constar de partes ou de aspectos diversos. As qualidades diversasque se lhe atribuem, enquanto idênticas a ela, são idênticas entre si; eassim a justiça ou a sabedoria e qualquer outra qualidade é a própriaessência divina e, quem afirma uma delas afirma também esta (Mon., 17). Distose conclui que a essência divina não é substância, no sentido de substractoou esteio de qualidades ou acidentes. É substância no sentido de que subsistepor si e em si; mas neste sentido não pode ser compreendida sob a categoriauniversal de substância, uma vez que está fora de todo e qualquer conceitogenérico. A única determinação que se pode atribuir à essência divina comosubstância é a espiritualidade; o ser espiritual é, com efeito, maisexcelente que o ser corpóreo e

por isso o único que é próprio de Deus (Mon., 27).

Uma tal substância está absolutamente para além das variações temporais. Navida divina, não existe sucessão, tudo está presente num único actoindivisível. Está completa de uma vez para sempre na sua totalidade o nãopode ter aumento ou

diminuição (ibid., 24). A sua imutabilidade exclui, em suma, que nela existamcaracteres acidentais, que, como tais, implicariam mutabilidade. Em Deuspodem subsistir tais caracteres, mas não analogamente ao que, por exemplo, éa cor do corpo, mas apenas como relações determinadas, puramente exteriores,como quando se diz que é maior que todas as outras naturezas. Só nesteslimites, a categoria de acidente não contradiz a natureza divina (Ibid., 25).

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§ 194. ANSELMO: A CRIAÇÃO

Uma vez que Deus é o ser e as coisas existem apenas pela participação do ser,toda a coisa tem o seu ser através de Deus. Tal derivação é uma criação donada. E de facto, as coisas criadas não podem proceder de uma matéria. Esta,por sua vez, deveria derivar de si própria, o que é impossível, ou danatureza divina. Neste caso, a natureza divina seria a matéria das coisasmutáveis e estaria sujeita às mudanças e à corrupção daquelas. Ela, que é oSumo Bem, estaria submetida à mutabilidade e à corrupção; mas o Sumo Bem nãopode deixar de o ser. A matéria das coisas criadas não pode ser nem por

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sinem de Deus; não há, portanto, matéria das coisas criadas. Só resta entãoadmitir que foram criadas do nada (ibid., 7).

Contra a interpretação (que se encontra, por exemplo em Erígena) de que o"nada" do qual as coisas procedem é algo positivo, por exemplo, uma causamaterial ou uma realidade potencial, Anselmo tem o cuidado de acrescentar queisso não é nem uma matéria nem outra coisa real; e que a expressão criação donada significa apenas que o mundo primeiramente não existia mas existe agora.A expressão "criação do nada" é idêntica à que se emprega dizendo que "se fezdo nada" um homem que agora é rico e poderoso e que dantes não era. Significao salto do nada para qualquer coisa (ibid., 8). Todavia, o mundo foiracionalmente criado e nada pode ser produzido de tal modo sem se supor nafrazão de quem produz um exemplar da coisa a produzir, isto é, uma forma,similitude ou regra dela. Deve existir, na mente divina, o modelo da ideia dacoisa produzida, como na mente do artista humano existe o conceito da obraque vai realizar: com a diferença de que o artista tem

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necessidade de uma matéria exterior para realizar a sua obra e Deus não, e deque o primeiro deve obter das coisas externas o próprio conceito da obra,enquanto Deus cria por si próprio a ideia exemplar (ibid., 11). Num e noutrocaso, não obstante, a ideia da obra é uma espécie de palavra interior; Deusmanifesta-se nas ideias, como o artista através do seu conceito, mas aexpressão não é uma palavra exterior, uma voz; é a própria coisa, à qual sedirige o engenho da mente criadora (ibid., 10).

A criação do nada é precisamente esta articulação interior da palavra divina.Sem a actividade criadora de Deus, nada existe e nada dura; Deus não só dá oser às coisas, como também as conserva e faz durar continuando a sua acçãocriadora. A criação é contínua (ibid., 13). Daqui se segue que Deus está edeve estar por todas as partes; onde Ele não está, nada existe e nada está depé. Isto não quer dizer, certamente, que Ele esteja condicionado pelo espaço

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e pelo tempo. N'Ele não existe nem o alto nem o baixo, nem o antes nem odepois: Ele está em todas as coisas existentes e em cada uma delas vive umavida interminável, que é toda ao mesmo tempo (totum simul) presente eperfeita (lbid., 14,22-24).

§ 195. ANSELMO: A TRINDADE

A palavra interior de Deus não é o som de uma voz, mas essência criadora.Este é o ponto de partida da especulação trinitária de Santo Anselmo. Aquelapalavra interior é a divina sabedoria, o Verbo de Deus: por isso tudo foidito e tudo foi feito. O Verbo, por um lado, é idêntico com a essência deDeus; por outro, idêntico com a essência da criatura. É idêntico com aessência de Deus, porque não é criatura, mas princípio da criatura, e porqueestá em Deus, no qual não subsiste nem

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diversidade nem multiplicidade. Por outro lado, é a própria essência dascoisas criadas: pois de que seria Verbo se não fosse Verbo das mesmas? Todo overbo é verbo de alguma coisa. É necessário portanto entender que nãoexistiria o Verbo se não existissem as criaturas? A coisa é inconcebível, porque o Verbo é necessário e eterno como o próprio Deus. Mas,por outro lado, se as criaturas não existissem, como poderia ser verbo do que não existe? A solução é de que o Verbo é, em primeiro lugar, ainteligência que Deus tem de si mesmo. Assim, tal como a mente humana temconhecimento e compreensão de si própria, o mesmo acontece com Deus: o Verboé, portanto, coeterno com Deus porque é a eterna inteligência que Deus tem desi. Mas, ao mesmo tempo, é também Verbo das coisas criadas. "Com um só emesmo Verbo o Sumo Espírito fala de si próprio e de todas as coisas criadas"(Ibid., 33). Se tais coisas em si mesmas são mutáveis, são todavia imutáveisna sua essência e no seu fundamento, que está no Verbo divino; e existemtanto mais verdadeiramente quanto mais semelhantes são a tal fundamento(Ibid., 34). Por seu lado, o Verbo, mesmo na sua identidade com o SumoEspírito, distingue-se dele: são dois, apesar de não ser possível exprimir aforma como o são. São distintos pela recíproca relação, porquanto um é o Paie outro o Filho; e são, por sua vez, idênticos na substância, porquanto noPai há a essência do Filho, e no Filho a essência do Pai. l@nica eindivisível é, com efeito, a essência de ambos (ibid., 43).

Portanto, uma vez que o Sumo Espírito se i-econ,hece o se compreende no

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Filho, deve também amar-se, seria inútil, com efeito, a inteligência sem oamor (ibid., 43). O amor depende, portanto, da inteligência que o SumoEspírito tem de si, isto é, depende do Pai e do Filho, conjuntamente. Esta

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dependência não significa geração: o amor não é filho. E, no entanto, é umadependência que supõe participação na sua natureza comum; e uma vez que talnatureza é espírito, o amor chama-se Espírito (Ibid., 57). Cada uma das trêspessoas divinas, participando da total natureza divina, recorda, compreende eama sem necessidade de outra. E, apesar de a memória ser própria do pai, ainteligência do Filho, o amor do Espírito, cada uma das pessoas éessencialmente memória, inteligência e amor. Da inteligência, memória e amorde cada uma delas não derivam nem outros filhos nem outros espíritos: nistoconsiste o mistério inexplicável da Trindade divina (ibid., 62-64).

Santo Anselmo procurou esclarecer com uma imagem este mistério. Consideremos,afirma (De fide Trinitatis, 8), uma fonte, o rio que nasce dela

e o lago no qual se recolhem as suas águas: damos ao conjunto destas trêscoisas o nome de Nilo. Trata-se de três coisas distintas uma das outras; nãoobstante, chamamos Nilo à nascente, Nilo ao rio, Nilo ao lago e, finalmente,Nilo a todo o conjunto. Não falamos de três Nilos, ainda que sejam trêscoisas distintas entre si. São três, a nascente, o rio e o lago; pois ésempre o único e o mesmo Nilo, um só fluir, urna só água, uma só natureza. Háaqui uma trindade no uno e uma unidade em três, que é a imagem da Trindadedivina.

§ 196. ANSELMO: A LIBERDADE

A investigação levada a cabo por Anselmo no Monologion e no Proslogion tendea compreender Deus na sua essência e na sua existência. Anselmo procuratraduzir com ela, a certeza da fé em verdade filosófica; e com isto oferecerum caminho de abordagem à verdade revelada, de modo que o

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homem consiga chegar junto desta o mais perto possível. Mas paralelamente aesta investigação, Anselmo empreende outra, dirigida ao homem e às suas

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possibilidades de elevar-se até Deus. O tema desta investigação é aliberdade. A ela Anselmo, dedicou duas obras: o De libero arbitrio, e o Deconcordia praescientiae et praedestinationis nec non et gratiae Dei cumlibero arbitrio, composta, esta última, no ano de 1109, depois do seuregresso a Inglaterra.

A liberdade supõe, em primeiro lugar, duas condições negativas: que a vontadeseja livre de coacção por parte do toda a causa externa e seja livre danecessidade natural interna, como é o instinto nos animais (De liberoarbitrio, 2, 5). A liberdade é essencialmente liberdade de escolha e estaestá ausente quando existe coacção e necessidade. Posto isto, Anselmo excluia ideia de que a liberdade possa definir-se (como havia feito Escoto) comopossibilidade de escolher entre pecar e não pecar. Se fosse assim, nem Deusnem os anjos, que não podem pecar, seriam livres. Em todo o caso, quem nãopode perder aquilo que o favorece é mais livre do que aquele que pode perder;e deste modo quem não pode afastar-se da rectidão de não pecar é mais livredo que qualquer outro que pode fazê-lo. A capacidade de pecar não aumenta nemdiminui a liberdade; por isso não é elemento ou parte daliberdade (De lib. arb., 1). O primeiro homem recebeu de Deus originariamentea rectidão da vontade, isto é. a justiça. Poderia ter podido e devidoconservá-la; e para esse fim precisamente lhe foi dada a liberdade. Portanto,esta, não é arbítrio de indiferença, isto é, vontade que se decideindiferentemente entre o bem e o mal; é a capacidade positiva de conservar ajustiça originária e de conservá-la pela mesma justiça, e não em vista de ummotivo estranho (lbi(l., 13).

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Este poder em que consiste a liberdade não o perde o homem em caso algum, nemsequer com o pecado. Como quem já não vê um objecto, conserva a capacidade devê-lo, porque o vê-lo ou não depende da distância do objecto e não da perdade vista, assim a capacidade de conservar a rectidão da vontade permanece nohomem mesmo através do pecado e entra em acção logo que Deus restitui aohomem a rectidão da vontade que perdeu.

Portanto, o homem pode perdê-la apenas por um acto seu de vontade e nunca porcausas externas. O próprio Deus não pode retirá-la ao homem. Uma vez queconsiste em querer o que Deus quer que se queira, se Deus a afastasse do

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homem não quereria que o homem quisesse aquilo que Ele quer que ele queira.Uma vez que isto não se pode imaginar, Deus não pode tirar ao homem a vontadejusta: só o homem pode perdê-la. Nada é portanto mais livre que a vontade(ibid., 11).

Não contradiz isto a frase bíblica de que o homem que peca se converte em"escravo do pecado". O converter-se em escravo do pecado significa apenas queperde a rectidão da vontade e que não tem a capacidade de voltar a adquiri-laa não ser por dádiva gratuita de Deus. A escravidão do pecado é a impotentianon peccandi: o homem que perdeu a rectidão da vontade não pode deixar depecar; mas mesmo assim permanece livre porque conserva a possibilidade deconservar aquele.

la

rectidão, se essa lhe for devolvida.

Disto :resulta que, tal como Santo Agostinho, Anselmo estabelece uma estreitarelação entre a liberdade humana e a graça divina. Não há dúvida de que avontade quer com rectidão apenas porque é recta. Mas como a vista boa não éboa porque vê bem, mas porque vê bem é boa, também a vontade não é rectaporque quer com rectidão, mas quer com rectidão porque é recta. Istosignifica que

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ABELARDO

a vontade recebe a sua rectidão não de si própria (a partir do momento em quecada acto recto seu a pressupõe), mas da graça divina (De concord. praesc. c.3, 3). A última condição da liberdade humana é, portanto, a graça divina.Como capacidade de conservar a justiça originária, a liberdade humana estácondicionada pela posse dessa justiça; e uma tal posse apenas pode vir-lhe deDeus.

§ 197. ANSELMO: PRESCIÊNCIA E PREDESTINAÇÃO

Como a liberdade humana não se opõe, em nada, à graça divina, assim tambémnenhum limite ou restrição produzem na liberdade humana a presciência e

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apredestinação divinas. É certo que Deus prevê todas as acções futuras doshomens, mas esta previsão não impede que as acções dos homens sejamefectuadas livremente. Com efeito, Deus prevê as acções dos homens naliberdade, que é atributo fundamental das mesmas. Não é preciso dizer, afirmaSanto Anselmo, "Deus prevê que eu vou ou não pecar" mas é necessárioacrescentar que Ele prevê que eu vou ou não pecar sem necessidade e assim,tenha eu pecado ou não, uma e outra coisa será liberdade, porque o próprioDeus prevê que isso acontecerá sem necessidade. (De concord. praesc., q. 1,3). Existe uma dupla necessidade: uma que precede o efeito, a outra que sesegue à realização da coisa. A primeira é verdadeiramente determinante, asegunda não. A primeira está, por exemplo, imcluída na afirmação "os céusnecessariamente giram"; a segunda está contida na afirmação "tu falarás". Defacto, a necessidade natural obriga os céus a moverem-se, embora não existanenhuma necessidade que obrigue o homem a falar. Mesmo neste caso, a previsãoverificar-se-á e, por conseguinte, é certa; mas a sua certeza em nada

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anula ou diminui a liberdade do facto previsto. indubitavelmente, o que é nãopode não ser. Uma acção livre, uma vez que se haja verificado, tem umanecessidade de facto, que obriga a admiti-Ia tal como é. Mas esta necessidadede facto não anula a liberdade, ainda que a torne previsível com absolutacerteza por parte de Deus. Análogas considerações valem para a predestinação.Deus predestina a salvação dos eleitos e aqueles que não predestina estãocondenados. Pode-se, por conseguinte, falar também de uma predestinação doscondenados, porquanto Deus permite a sua condenação: ainda que apredestinação só seja positiva e efectiva para os eleitos. A predestinaçãotem em conta a liberdade. Deus não predestina ninguém coagindo uma vontade,deixa sempre a salvação nas mãos do predestinado. Tal como a presciência quenunca se engana, sabe de antemão tudo o que acontecerá, quer aconteçanecessária quer livremente, também a predestinação, que nunca se altera,apenas prodestina em virtude e em conformidade com a presciência (Deconcordía praese. q. 2, 3). São predestinados à salvação aqueles apenas cujaboa vontade Deus conhece de antemão.

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§ 198. ANSELMO: O MAL

Relaciona-se com os conceitos agustinianos o tratado de Anselmo, sobre oproblema do mal. Como existem duas espécies fundamentais de bem, a justiça eo útil, assim existem também duas espécies fundamentais de mal: a injustiça(malum injustitiae) e odano (malum incommodi). O verdadeiro e próprio mal éapenas a injustiça. A injustiça é sempre algo de negativo; é a pura e sim lesnegação do

ZD p que deve ser, isto é, da justiça. E mesmo que obem seja verdadeiramente a justiça, o mal não tem em nenhum caso realidadepositiva: é uma pura

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negação e pode, com todo o direito, ser chamado o nada (De casu diaboli, 12-26).

Quanto ao dano, ou seja, o mal físico, também é na sua essência uma negação;mas como às vezes surge acompanhado de uma acção positiva, é nesta que sepensa quando se lhe chama mal. Não há dúvida de que a cegueira, por exemplo,é simples negação da vista; mas é acompanhada de tristeza e dor, que sãorealidades positivas e constituem o aspecto pavoroso do mal (Ibid., 26).Contudo, a tristeza, a dor e o horror que estas coisas determinam na alma,seguem-se à privação do bem, que é o verdadeiro fundamento de todo o mal. Overdadeiro e único bem é a justiça, pela qual são bons, isto é, justos, osanjos e os homens e pela qual a própria vontade é boa ou justa. Pois bem, ajustiça consiste na conformidade da vontade humana com a vontade divina. Avontade da criatura racional deve estar submetida à vontade divina e aquelaque não tributa a Deus esta honra devida, tira a Deus o que é seu e por issopeca. A Deus apenas pertence ter vontade própria, isto é, uma vontade que nãoestá sujeita a ninguém. Todo aquele que se atribui de uma vontade própriaesforça-se por tornar-se semelhante a Deus per rapinam e porprivar Deus, naquilo a que a Ele se refere, da sua dignidade e singularexcelência (De fide Trinit., 5).

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O traço característico destas formulações de Anselmo consiste na redução detodo o valor moral à vontade, a ú nica em que reside a justiça e a injustiça.Os apetites sensíveis, por seu lado, não são bons nem maus. O homem é justoou injusto, não porque os sente ou não, mas apenas porque os consente ou nãocom a vontade. O pecado consiste não em senti-los, mas em consenti-los (Deconcep. virg., 4). A única origem do mal é a própria vontade. A vontade podeperder a sua rectidão enquanto quer o que não deve querer; mas o

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poder perdê-la não é fundamento do mal; uma vez que não a perde porque podeperdê-la, mas apenas porque quer perdê-la. O mal não tem outra causapositiva. Também não se pode atribuir a Deus, porque não se pode afirmar queEle dê aos homens uma vontade má, senão no sentido de que não impede, podendofazê-lo, que uma tal vontade aconteça. Tudo o que há de bom na vontade e nasacções dos homens, procede da graça de Deus; só o mal procede do homem.

E assim como a vontade é o único sujeito das valorações morais, assim tambémapenas ela é responsável e pode ser castigada. Não existe pena que não estejadirigida contra a vontade e nenhuma coisa pode sofrer um castigo se não estádotada de vontade. Assim como é a vontade que actua sobre os membros e ossentidos, assim também é a vontade que, através dos membros e dos sentidos écastigada ou recompensada (ibid., 23). Num cas @ apenas o pecado não dependeda vontade, é o caso do pecado original. Adão pecou por livre vontade; osseus descendentes pecam por necessidade natural (lhid., 23). Mas em Adãoestava presente toda a natureza humana; nele, portanto, pecaram todos oshomens, não pessoalmente, mas na sua origem e na sua natureza comuns.

§ 199. ANSELMO: A ALMA

A doutrina de Anselmo sobre a alma segue de perto a agustiniana sobre o mesmotema, mas possui um notável avanço em relação àquela no que se refere àdemonstração da imortal-idade. O homem é formado por duas naturezas, a alma eo corpo (Medit., 19) a parte mais elevada, porque está mais pró)Qimo da sumaessência, é a alma e mais precisamente, o intelecto. De facto, só através dainte-

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ligência se pode conhecer e buscar a Deus e pode o homem aproximar-se d'Ele.A alma é como um espelho na qual se reflecte a imagem da Suma essência, quenão se pode contemplar face a face. Anselmo segue, neste ponto, SantoAgostinho: a alma recorda, compreende e ama-se a si própria; e desta formareproduz a Trindade divina, que é precisamente Memória, Inteligência e Amor(Monol.,67). A natureza da alma marca o seu destino. A alma deve exprimir com actosde vontade a imagem da Trindade divina que nela está impressa naturalmente:deve, por conseguinte, empenhar toda a sua vontade em recordar, compreender eamar o Sumo Bem; esse é o fim da sua existência (Ibid., 68).

Deste seu destino deriva a sua imortalidade. Se a alma está destinada a amarsem fim a sua essência é necessário que esteja viva sempre e que a morte nãovenha interromper, em certo ponto, sem demérito seu, o amor que deve a Deus.Nem Deus poderia reduzir a nada uma criatura que Ele criou para que o amasseou permitir que lhe seja retirada a criatura que ama a vida que Ele lho deu,quando ela ainda não O amava, para que possa amá-LO: tanto mais que o Criadorama toda a criatura que verdadeiramente o ama. É portanto evidente que umavida entregue ao amor de Deus não pode ser senão feliz. A alma tem, porconseguinte, assegurada pelo seu destino uma vida eterna e feliz (ibid., 69).Mas a imortalidade não se refere apenas à alma que ama a Deus. Se para a almaque ama Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um dom de amor, para aalma que despreza Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um acto dejustiça. Seria, com efeito, injusto que a alma que despreza Deus fossecastigada com a perda da vida e do próprio ser, e não tivesse outro castigoalém do de tornar ao estado em que se encontrava antes de toda a culpa, istoé, antes de existir. Mesmo

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a alma injusta deve, por conseguinte ser imortal, para sofrer uma pena, talcomo é imortal a alma justa para gozar do prémio eterno (Ibid., 71). Todas asalmas são, portanto, imortais, tanto as justas como as injustas; mesmo

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aquelas que não são capazes nem de uma coisa nem de outra, como as almas dascrianças, devem sê-lo, porque devem ter a mesma natureza (ibid., 72).

Sabemos pelo biógrafo Eadmer que Anselmo morreu quando tentava ansiosamenteesclarecer a natureza e a origem da alma. Com efeito, pouco nos dizem asobras que nos deixou. A investigação de Anselmo, que começa com Deus, terminacom a alma humana. Na verdade, Anselmo tinha feito suas as palavras de SantoAgostinho: "Desejo conhecer Deus e a alma: e nada mais".

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 190. As obras de Santo Anselmo em P. L.,158.---159.1, e>d. Schmitt 5 vols., Roma-Londres, 1938-1951. Operefilosofiche, trad. ital. de C. Ottaviano, 3 vols., Lanciano, 1938. - DeRémusat, Saint-Anselme de Canterbury; Vanni-Rovighi, SanVAnselmo, Milão, 1949com bibliografia; Levasti, SantIAnselmo, Bari, 1929; Domet de Vorges,Saint-Anselme, Paris, 1901.

§ 191. Heitz, Essai historique sur les rapports entre Ia philosophiee Ia foi Bérenger de Tours à Saint-Thomas, Paris, 1909; Betzendõrfer, Glauben und Wissen bei den grassen Denkern des Mittelalters,1931; Gilson, in "Arch. Hist. Doct. Lit. M<)yen Age"1934, 5-51.

§ 192. Koyré, L'idée de Dieu dans Ia philosophie de Saint-Anselme,Paris, 1923; K. Barth, Fides quaerens intellectum, Mónaco, 1931. Sobre oargumento ontológico na escolástica: Daniels, nei Beitrage, VII1@1-2. Muitissimos filósofos tomaram posição sobre o argumento ontológico e dasdiscussões referentes a esse ponto encontrar-,se-á eco na presente obra.

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§ 193. Seeberg, Dogmengeschischte, EI, 1913, p. 150 sgs., 207-226.

§ 194. Baeumker, nei Beitrâge, X, 6, 1912. § 195. Martin, La question depéché originel dans Saint-Anselme, in Reme des Sciences philos. et Théol.1911, p. 735-749.

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v

A DISCUSSÃO SOBRE OS UNIVERSAIS

§ 200. UNIVERSAIS: O PROBLEMA E O SEU SIGNIFICADO HISTÓRICO

A partir do século XII um dos tomas de discussão mais frequentes entre

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osescolásticos é o chamado problema dos universais. O problema parece tersurgido com uma passagem de 1sagoge (introdução) de Porfirio às Categorias deAristóteles e dos comentários de Boécio a elas referentes. A passagem dePorfirio é a seguinte: "Sobre os géneros

e as espécies não direi aqui se subsistem ou se estão s@mplesmente nointelecto, e, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos,separados das coisas sensíveis ou situados nas mesmas, exprimindo os seuscaeacteres uniformes". Das alternativas indicadas por Porfirio nestapassagem, uma apenas não obtém qualquer confrontação na história destapolémica: aquela, segundo a qual, os universais seriam realidades corpó reas.Em compensação, uma alternativa que, Porfirio não tinha previsto verificou-sehistóricamente: isto é, que o universal não existe

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nem no intelecto e não passa de um simples; nome, de um flatus vocis. Dequalquer modo, resulta da passagem de Porfirio que as duas soluçõesfundamentais do problema são aquelas que mais tarde se chamarão realismo (ouformalismo) e nom;inalismo (ou terminismo), a primeira das quais afirma,enquanto a outra nega, que os universais existem, de qualquer forma, fora daalma. As soluções que a discussão dos universais encontrou dentro daescolástica foram numerossímas: João de Salisbúria (Metalogicus, 11, 17) dá-nos disso uma primeira amostra, no entanto bastante incompleta (Cfr. PrantI,Geschishte der Logik, II, p. 121 sgs.).

Apesar do problema sobre o qual se discutia não fosse precisamente novo (comoveremos em seguida), o próprio facto da posição explícita do problema (aindaque mediante o recurso a um texto antigo) e o reconhecimento da possibilidadede resolvê-lo em mais direcções é já por si significativo e pode serconsiderado com um sinal do novo espírito que começa a invadir a escolásticaa partir dos últimos decénios do século XI. Anteriormente a este período,nenhum pensador conseguia pôr em dúvida que os géneros e as espécies fossemideias arquétipos na mente divina e formas dessa mesma mente impressas nascoisas. Deste ponto de vista, o problema dos universais não tinha sentido.Levantá-lo significa, com efeito, admitir que o mesmo pode ser Tesolvido deforma diferente das doutrinas que a primeira escolástica tinha deduzido dapatrística e que se tornaram o património da especulação teológica. A

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posiçãodo problema significa, portanto, a consideração do assunto de um ponto devista, que deixa de ser apenas teológico, para passar a ser tambémfilosófico: isto é, de um ponto de vista que vê nos universais não apenas osinstrumentos da acção criadora de Deus mas também, e sobretudo, osinstrumentos ou condições das operações82

cognoscitivas do homem. A posição deste problema é, já de per si, ainstauração de um ponto de vista que diz mais respeito ao homem que a Deus:com efeito, o problema colocado nos termos de Porfírio não é outro senão oproblema da validade do conhecimento racional em geral. Isso é o indício deuma nova importância atribuída ao homem; e. deste ponto de vista, também asinumeráveis subtilezas que desde logo possam ser consideradas como aexpressão da nova liberdade com que o homem se encara e encara os seusproblemas. Esta nova liberdade, que se manifesta, (como veremos no capítuloseguinte) na renovada atenção que os filósofos dispensam ao mundo da naturezae aos seus problemas, acompanha e suporta o ressurgir económico e social daépoca: que se exprime na formação ou na consolidação das repúblicas marítimase das comunas, nas trocas, nas viagens, na economia mercantil e, em geral, noprosseguimento da actividade e do espírito lógico.

Do ponto de vista da história da lógica, a posição do problema dos universaisestá condicionada pela possibilidade reconhecida de uma alternativa diferenteda metafísica ou da teologia que era aceite sem discussão no períodoprecedente. É esta a alternativa nominalística que em breve passa a chamar-sea via moderna da ló gica e que não é mais que a direcção cínico-estoicaapontada pela lógica, de harmonia com as obras de Boécio e de Cícero econtraposta à direcção tradicional platónico-aristotélica. Nominalismo erealismo correspondem, substancialmente, a estas duas direcções originárias.Para o realismo, isto é, para a tradição platónica-aristotélica, o universalé algo de diferente, um conceptus mentis, é a essência necessária ou asubstância das coisas e a ideia de Deus. Para o nominalismo, isto é, para atradição estoicizante, o universal é

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urna marca das próprias coisas e está em lugar (supponit) delas. Apesar dassuas querelas e de procurarem sempre novas soluções (que muitas vezes se

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distinguem umas das outras apenas por um cabelo), os Escolásticos, com o seueclectismo desenvolto, não renunciam, no entanto, aos resultados que no campoda lógica se possam obter, utilizando ora uma ora outra das duas orientações.A partir do século XIII os tratados lógicos justapõem simplesmente àsdoutrinas lógicas aristotélicas, as estóicas, dando igual importância tanto aumas como a outras sem se preocuparem com as divergentes orientaçõesteóricas. As Summulae logicales de Pedro Hispano constituem o mais famosomodelo desta justaposição.

O antagonismo entre o realismo e o nominalismo, entre a via antiga e a viamoderna, é no entanto um antagonismo de fundo que transcende o alcance dassubtis, abstractas e frequentemente aborrecidas querelas a que deu lugar. Dorealismo pode-se fazer uso teológico e cosmológico, com o nominalismo não.Por isso, as correntes da escolástica que se inspiraram no realismo foram asque se aplicaram a defender a teologia e a concepção teológica do mundo. Asque se inspiraram no nominalismo alinharam em geral contra a teologia eassumiram posições críticas nos confrontos da concepção teológica do mundo,conseguindo algumas vezes alcançar ousadas inovações que constituem como queo anunciar ou a preparação de novas

concepções da natureza e do homem. Compreende-se a razão porque, no final daescolástica, o nominalismo tenha prevalecido: os problemas da teologia,respeitantes ao domínio da fé, não interessavam já à filosofia, que sevoltava para outros campos, nos quais se poderiam deter, de forma maisoportuna e eficaz, os poderes racionais do homem.

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§ 201. ROSCELINO

A primeira e clamorosa fase da querela dos universais foi provocada peloaparecimento em cena de um nominalismo na sua forma mais extrema, defendidopor uma figura singular, a de Roscelino.

Otão de Freising, na sua crónica Sobre as proezas de Frederico, afirma queRoscelino "foi o primeiro nos nossos tempos, que propôs na lógica a doutrinadas palavras (setentiam vocum)". Sabemos que Roscelino nasceu em Compiègne,estudou em Soissons e Reims e ensinou como teólogo na escola-cátedra deCompiègne, depois na de Loches, Bretanha, onde teve entre os seus alunos

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Abelardo, e em seguida em Besançon e Tours. Devia ter morrido entre 1123 e1125, a julgar pelas apóstrofes que Abelardo lhe dirige nos seus escritos.

De Roscelino, temos apenas uma carta dirigida a Abelardo sobre a questão daTrindade. Não sabemos se escreveu mais alguma outra coisa ou se as suas obrasnão foram ainda descobertas entre os manuscritos medievais. É provável quenão tenha escrito mais nada, porque os seus adversários, Anselmo, Abelardo eJoão de Salisbúria não lhe atribuem nenhum livro e os Padres do Concílio deSoissons, que condenaram a sua doutrina trinitária, não deixariam de entregaràs chamas os seus escritos se tivessem existido. Não podemos, portanto,conhecer a doutrina de Roscelino a não ser a-través dos escritos dos seusadversários e, especialmente, de Anselmo e de Abelardo. Anselmo colocaRoscelino entre os dialécticos, mais ainda, entre os hereges dialécticos doseu tempo, "que acreditam que as substâncias universais não passam de umsopro de voz (flatus vocis); e que, por "com, apenas entendem o corpocolorido, e por "sabedoria" a própria alma do homem". Santo Anselmoacrescenta ainda a explicação de semelhante opinião: tais pessoas perma-

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n=m enredadas nos sentidos e não conseguem libertar deles a razão. "Nas suasalmas, a razão que deve ser a parte dominante e julgadora de tudo o que há nohomem, está de tal maneira submergida nas imaginações corporais que nãoconseguem livrar-se delas; e mantêm-se incapazes de discerni-la quando afinaldeveriam servir-se dela apenas para a especulação". (De fide Trin., 2). Estaincapacidade de Roscelino para seperar a razão do envólucro sensível é tambémmotivo, segundo Anselmo, da heresia trinitária defendida pelo clérigo deCompiègne: "Quem não compreende nem sequer a maneira como os homensconstituem a única espécie homem, como poderá compreender a maneira comoatravés da misteriosíssima natureza divina, várias pessoas, sendo cada umadelas um Deus perfeito, constituem as três um só Deus? E quem tem a mente tãoobscurecida que não sabe distinguir o cavalo da sua cor, como poderádistinguir o Deus único das suas diferentes relações? Em suma, quem nãocompreende que o homem não é o próprio indivíduo, de forma alguma poderáentender por homem a natureza humana" (ibid.). João de Salisbúria dá-nos umtestemunho análogo sobre o nominalismo de Roscelino: coloca-o "entre os queafirmam que os géneros e as espécies não são outra coisa a não ser vozes"

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(Metal., 11, 13, Policrat., VII, 12). Abelardo ilustra-nos outro aspecto detal nominalismo. Roscelino sustentou que é impossível que as coisas constemde partes e que as partes das coisas são, como as espécies, nomes diversosdas próprias coisas (Obras inéditas, edic. Cousin, 471).

Vimos já como Santo Anselmo relaciona com o nominalismo a heresia trinitáriade Roscelino. Ele próprio nos afirma que, segundo Roscelino, "as três pessoasda Trindade são três real-idades como três anjos ou três almas, apesar deserem absolutamente

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idênticas pela vontade e podem (De fide Tiin., 3); podendo-se acrescentar, sefosse costume admiti-lo, que constituem três divindades (Epist., 11, 41). Massobro esta doutrina temos algumas referências do próprio Roscelino na suacarta a Abelardo. Roscelino começa por identificar pessoa com substância, apropósito de Deus. Uma vez que, em Deus, diversos nomes não indicam real-idades diversas, mas a mesma única e simplicíssima realidade, a pessoa sópode significar substância. Mas se as pessoas são diversas porque uma gera ea outra é gerada, é evidente que são diversas as substâncias da Trindadedivina. A Trindade é una pela comunhão das três substâncias, não porque sejaconstituída por uma única substância. Reconhece-se, portanto, à Trindade umaunidade de semelhança ou de igualdade, mas não de substância. Daí se concluique Roscelino deduziu o seu trideísmo da identificação de substância e pessoa(que na tradição eclesiástica sempre foram distintas): e foi levado a essaidentificação por imaginar que as determinações diversas que se atribuem aDeus não são mais que nomes diversos de uma realidade única.

A heresia de Roscelino foi condenada pela primeira vez num Concílio que secelebrou em Reims em 1092 ou 1093. Roscelino foi obrigado a abjurar e a elese submeteu com receio de ser assassinado pelo povo de Reiras; mas tendoabandonado a cidade, voltou a defender as suas teses. Foi novamente condenadoem 1094 num concílio convocado pelo rei Filipe para celebrar as suas bodascom Bertrada. Expulso de França, dirigiu-se a Inglaterra, onde uma nova

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perseguição o obrigou a regressar a França. Tornou a aparecer para combater adoutrina de Abelardo, em 1121. O seu carácter surge-nos, através da carta queconhecemos dele, como pouco recomendável: ataca Abelardo nos

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é termos mais violentos e atira-lhe em cara cinicamente a mutilação que lhehavia sido infligida. 1

§ 202. GUILHERME DE CHAMPEAUX

O realismo de Guilherme de Champeaux opõe-se ao nominalismo de Roscelino.Guilherme nasceu em Champeaux, perto de Melun, à volta de 1070 e foidiscípulo em Paris de Anselmo de Laon (falecido em 1117), que contou entre osseus alunos alguns dos homens mais notáveis do seu tempo, entre os quais seencontravam Abelardo e Gilberto. Até 1108, Guilherme passou da escolacatedral de Paris para a abadia de São Victor, da qual foi prior e abade. Emseguida foi nomeado bispo de Chálons-sur-Marne. Viveu até morrer em grandeamizade com São Bernardo e faleceu no ano de 1121. Dos seus numerososescritos ficaram: o De eucaristia, o De origine animae e um diálogo Sobre afé católica.

No que se refere à doutrina sobre os universais,a nossa principal fonte é a polémica que contra ele desencadeou Abelardo.Guilherme sustentava a realidade substancial dos universais e afirmava quetal realidade se encontra inteiramente em todos os indivíduos, que semultiplicam e se diferenciam entre si por qualidades acidentais. Por exemplo,a espécie "homem" é uma realidade que permanece una e idêntica em todos oshomens; a ela se acrescentam depois as qualidades acidentais que sãodiferentes em Sócrates, Platão e nos outros indivíduos particulares(Abelardo, Obras inéditas, De gen. et. spec., 513).

Abelardo, que foi discípulo de Guilherme, vangloria-se de o ter obrigado amodificar, e mais ainda, a abandonar completamente esta tese. Eis o texto deAbelardo (Hist. calam., 2): "Guilherme corrigiu a

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sua opinião afirmando que a realidade universal se encontra nos indivíduosnão essencialmente, mas individualmente". Individualiza-se, isto é, nosindivíduos de modo que perde a sua unidade essencial e se multiplica

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neles, oque é uma renúncia a afirmar a realidade em si do universal. Mas com isto atese do realismo não se encontrava de todo abandonada: estava apenasabandonada a realidade separada do universal e admitia-se o universal in i-e,o universal individualizado e incorporado na mesma coisa individual. Esta éuma segunda fase do pensamento de Guilherme. Enquanto que a primeira negaefectivamente a realidade dos indivíduos, reduzindo-os a meras modificaçõesacidentais da essência universal, a segunda sustenta a realidade dosindivíduos, afirmando, não obstante, a presença neles da essência universalindividualizada. Um fragmento das Senientiae faz-nos conhecer uma terceirafase da doutrina de Guilherme sobre os universais; a essência comum dosindivíduos particulares nem seria a mesma: os diversos indivíduos teriamapenas essências semelhantes. Nesta terceira fase, a doutrina de Guilhermetransforma-se em puro conceptualismo.

§ 203. O TRATADO "DE GENERIBUS ET SPECIEBUS"

O tratado De generibus et speciebus foi considerado por Cousin como uma obrade Abelardo e incluído entre as suas obras inéditas. Ritter foi o primeiro anegar esta atribuição e atribui o tratado a Joscelino (Gausleno, 1125-1151),bispo de Soissons. Esta atribuição foi logo confirmada por outros eruditos,e, com efeito, João de Salisbúria, no seu Metalogicus (11, 17) atribui aGausleno a doutrina de que o universal é o conjunto das coisas siri-

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gulares; doutrina contida no tratado. Nele se define a espécie como todo oconjunto de indivíduos que têm a mesma natureza. "Essa colecção, apesar deser essencialmente múltiplice, chama-se tradicionalmente uma só espécie, umsó universal, uma só natureza da mesma maneira que se fala de um só povo,ainda que este seja constituído por muitas pessoas" (Abelardo, Obrasinéditas, edic., Cousin,527). Para o indivíduo, a espécie é matéria, a individualidade a forma. Porexemplo, Sócrates é composto da matéria "homem" e da forma "Sócrates",Platão, de uma forma semelhante, isto é, "homem", e de uma forma diferente,isto é, "Platão", e assim para os outros. E como a socratitas que constituiformalmente Sócrates não subsiste fora de Sócrates, também a essência "homem"

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que em Sócrates constitui a socratitas não subsiste se não está em Sócrates.O ponto de vista defendido neste tratado aproxima-se muito do de Abelardo.

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 200. Sobre a querela dos universais, que ocupa a actividade filos6fica detodos os escritos da época, veja-se a seguinte bibliografia.

§ 201. A carta de Roscelino a Abelardo está publicada nas obras de Abelardo,em Patr. Lat., verl.1.78.o, 357 e sgs. Nova ed. de Reiners, em Beitrage, VIII, 5, 66-80.PICAVETE: PosceZin, Paris, 1911. Sobre o nominalismo: Reiners, op. cit.

§ 202. As obras de Guilherme de Champeaux, em P. L., 163., 1037-1072. AsSententiae (ou Quaest"es), em LEFÈVRE, Les variations de G. de Ch. et de Iaquestion des universaux, Lille, 1898; GRABMANN, GeSchischte des scholast.Methode, n 136-168. @ 203. O De generibus et speciebus, encontra-se nas obrasinéditas de Abelardo, editadas por Cousin; RITTER, Gesch. d. Phil., VII,1844, 364; PRANTL, II,142-147; RoBERT, Les écoles et Ilenseignement de ta Theologie pendant tapreinière moitié du XII Mcle, Paris, 1909, 202, 205.

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vi

ABELARDO

§ 204. ABELARDO: A FIGURA HISTÓRICA

Abelardo é a primeira grande afirmação medieval do valor humano dainvestigação. Trata-se de urna figura que nem sequer a tradição medievalconseguiu reduzir ao esquema estereotipado de sábio ou santo; trata-se de umhomem que pecou e sofreu e que colocou todo o significado da sua vida nainvestigação; de um mestre genial que fez durante séculos a fortuna e a famada Universidade de Paris, e que encarna, pela primeira vez na Idade Média, afilosofia na sua liberdade e no seu significado humano. Dotado de grandepresença física (Heloísa dá-nos disso testemunho em Ep., H em Patri 178.*,col. 185, quando ele se dirigia ou Regressava das aulas, com o seu olharenérgico e a

cabeça erguida, despertava a admiração de todos), de uma eloquência precisa ecortante, de um extraordinário poder dialéctico que o tornava invencível emtodas as discussões, estava destinado ao êxito, que efectivamente lhe

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sorriu,acarretando-lhe invejas, perseguições e condenações. Mas o centro da sua

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personalidade é a exigência da investigação: a necessidade de resolver emmotivos racionais toda a verdade que seja ou queira ser como tal para ohomem, de enfrentar com armas dialécticas todos os problemas para levá-los aoplano de uma compreensão humana efectiva. Para Abelardo, a fé no que se nãopode entender é uma fé puramente verbal, privada de conteúdo espiritual ehumano. A fé, que é um acto de vida, é inteligência do que se crê: todas asforças do homem devem portanto dirigir-se para a compreensão. Nesta convicçãoreside a força da sua especulação e do seu fascínio como professor. Neletorna-se claro o significado, até então incerto e débil, da ratio medieval. Aratio é a investigação a que o homem se entrega para compreender e fazer asua verdade revelada e na qual realiza e encontra a sua substância humana. Arazão é para o homem o **tiruico gu ,ia possível; e o exercício da razão,que é próprio da filosofia, é a actividade mais elevada do homem. Portanto,se a fé não é uma obrigação cega que pode dirigir-se no sentido dopreconceito e do erro, deverá estar sujeita à joeira da razão. Deste ponto devista, não subsiste uma diferença radical entre os filósofos pagãos e osfilósofos cristãos; se o cristianismo constitui a perfeição do homem, tambémos filósofos pagãos, enquanto filósofos, foram cristãos na sua vida e na suadoutrina (Theol. christ., 11, 1).

§ 205. ABELARDO: VIDA E ESCRITOS

As movimentadas circunstâncias da vida de Abelardo são contadas por elepróprio numa carta que tem o título de Historia calamitaium. Pedro Abelardonasceu perto de Nantes, no ano de 1079, estudou dialéctica com GuilhermeChampeaux, de

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quem logo se tornou adversário e rival. Ensinou primeiramente dialéctica emvárias localidades de França, depois, em 1113, teologia na escola catedral deParis. O ensino de Abelardo desenrolou-se entre discussões clamorosas epolémicas violentas, suscitadas pela sua intemperança dialéctica e pelainveja que o seu êxito provocava.

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Em Paris, apaixonou-se por Heloísa, sobrinha de um tal Fulberto, cónego, queera bela e muito culta e de quem teve um filho, Astrolábio. Tendo casado comela para aplacar a ira do tio, quis manter secreto esse casamento, com receioque pudesse prejudicar a sua fama e carreira de professor, e enviou Heloísapara o convento de Argenteuil, perto de Paris, onde fora educada desdecriança. Mas os tios e os parentes de Heloísa, julgando que Abelardopretendia desembaraçar-se dela, vingaram-se e mandaram-no castrar enquantoele dormia. Coberto de vergonha pelo ultraje recebido, Abelardo entrou numconvento; e os dois esposos consagraram-se a

Deus: Abelardo na abadia de São Dionísio perto de Paris; Heloísa, no mosteirode Argenteuil. No epistolário de Abelardo conservam-se algumas cartas deHeloísa plenas de afecto e força de resignação

Depois deste infortúnio, Abelardo renovou com redobrado entusiasmo o ensino,num lugar afastado em Nogent-sur-Seine, para onde os discípulos oacompanharam e onde construíram um oratório que ele consagrou ao EspíritoSanto ou Paracleto. Em1136 reapareceu em Paris e reatou as suas lições na montanha de SantaGenoveva, onde tinha conseguido os seus primeiros êxitos como professor.Exaltado pelos seus discípulos pela eloquência e ardor da sua dialéctica,invejado pelos outros professores, em breve Abelardo deu aso a que fosseapontado como herege.O Concílio de Soissons condenou a sua doutrina trinitária e obrigou-o aqueimar por suas próprias

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mãos, o livro De unitate et trinitate divina (1121). Nos últimos anos da suavida manteve uma polémica com São Bernardo, que provocou a sua condenaçãopelo Sínodo de Sens (1140). Abelardo apelou para o Papa o resolveu dirigir-sea Roma para defender a sua causa; mas o abade Podro de Cluny convenceu-o apermanecer em Cluny e a reconciliar-se com a Igreja, com o Papa e com SãoBernardo. Abelardo compôs, nesta altura, uma Apologia e passou os últimosdias da sua vida na abadia de Saint Marcel. Aqui morreu em 20 de Abril de1142 com 63 anos. Os seus restos mortais foram sepultados no Paracleto o paraali foram levados e sepultados a seu lado, vinte e um anos depois, os restosmortais de Heloísa (1164).

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Abelardo é o autor de uma Dialéctica, escrita em 1121, de numerosas obraslógicas constituídas de comentários (Glossae) aos escritos lógicos dePorfírio e Boécio e de uma obra intitulada Sic et non, que é a típicaexpressão do seu método. Além disso, escreveu três obras sobre o problematrinitário: Tractatus de unitate et trinitate divina, Introductio adTheologiam, Theologia christiana. As referências contidas nestas obraspermitem conjecturar que a Theologia christiana foi escrita depois de Deunitate, e provàvelmente entre 1123-1124, e que a Introductio não é mais quea primeira parte da Theologia condenada no Concílio de Sens. Em continuação,Abelardo escreveu um Conientario sobre a Epístola aos Romanos e a Ética ouScito te ipsum. Posteriores ainda são as Cartas a Heloísa, os Sermões, osHinos, os Problemata, a Exposiiio in Exameron. A carta com o título HistoriaCalamitatum foi escrita entre 1133 e 1136. Nos últimos anos, passados emCluny, Abelardo escreveu Carmen ad Astrolabium e o Dialogus inter indaeum,philosophum et christianum (1141-1142).

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§ 206. ABELARDO: O MÉTODO

Abelardo exerceu sobre o desenvolvimento da filosofia medieval uma influênciadecisiva. Esta influência deve-se, em primeiro lugar, ao seu fascínio comomestre. Ele foi, senão o fundador, pelo menos o precursor da Universidade deParis. o seu prestígio como professor e a superioridade do seu métodoconsagraram a celebridade da escola de Paris e prepararam a formação daUniversidade. A obra na qual melhor esclareceu e pôs em prática o seu métodode investigação é o Sic et non. Trata-se de uma compilação de opiniões(sententiae) de Padres da Igreja, ordenadas segundo os problemas que abordam,de forma a que apareçam as diversas opiniões como respostas positivas ounegativas ao problema proposto (daí o título que significa sim e não). Oprocesso ameaçava lançar o descrédito sobre a unidade da tradiçãoeclesiástica, fazendo realçar os seus contrastes de forma evidente; mas afinalidade de Abelardo era a de expor os problemas de forma nítida parademonstrar a necessidade de resolvê-los. Com este fim, descreve no prólogouma série de regras. Começa por distinguir os textos do Velho e do NovoTestamento e os textos patrísticos. Os primeiros lêem-se com a obrigação decrer; os outros, com liberdade de juízo. Se se encontra nos primeiros algumacoisa que pareça absurdo, é preciso supor, não que o autor esteja enganado,

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mas que o código é falso ou que o intérprete se equivocou ou então somos nósque não conseguimos compreender. Mas no que se refere aos outros textos,muito do que contêm foi escrito mais segundo a opinião do que a verdade.Quando neles se encontram opiniões diferentes e opostas sobre o mesmo tema, épreciso ter em conta o fim que o autor tinha em vista, e é preciso distinguiras épocas em que a coisa foi dita, porque o que se

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admite numa época é Proibido noutra e o que é prescrito rigorosamente namaioria das vezes é depois suavizado pela dispensa. Em suma, esta é a regrafundamental, e muitas controvérsias podem facilmente ser resolvidas se setiver em conta que as mesmas palavras têm significados diversos na boca dediferentes autores.

Há que realizar, portanto, uma investigação completa para resolver oscontrastes entre os textos que têm autoridade em filosofia. E se seconsiderar que a disciplina que estuda e prescreve o uso das palavras e o seusignificado é a lógica, vê-se que a lógica terá, na investigação escolástica,como propõe Abelardo, um lugar predominante. A lógica equivale à razãohumana. A investigação de Abelardo é uma busca racionalista que se exercesobre os textos tradicionais para encontrar neles, livremente, a verdade quecontêm. Esta investigação deve ser entendida como uma constante interrogação(assidua seu frequens interrogatio). Principia na dúvida, porque só a dúvidapromove a investigação e só a investigação conduz à verdade (dubitando enimad inquisilionem venimus; inquirendo veritatem percipimus).

Nisto reside, sem dúvida, o motivo de fascínio que a personalidade deAbelardo exerceu sobre os seus contemporâneos e da eficácia do seu ensinosobre a escolástica. Abelardo é uma das personalidades que mais sentiu eviveu as exigências e o valor da investigação. Os resultados especulativossão para ele menos importantes que a investigação necessária para chegar aesses resultados. O ter encarnado o espírito da investigação racional numaépoca de despertar filosófico, levou-o a ser considerado o fundador do métodoescolástico.

Este método, em breve se fixou, depois dele, num esquema que foi seguidouniversalmente, o esquema da questio, que consiste em partir de textos que

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dão soluções opostas ao mesmo problema

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para chegar a elucidar, por um caminho puramente lógico, o própria problema.Este método, que a princípio foi tido como duvidoso e combatido, em breveprevaleceu em toda a escolástica.

§ 207. ABELARDO: RAZÃO E AUTORIDADE

O predomínio da investigação na especulação de Abelardo confere à razão opredomínio sobre a autoridade. Abelardo não nega a função da autoridade nainvestigação: "Enquanto a razão se mantém oculta, afirma, (Theol. christ.,111, Migne, col.1226), deve bastar a autoridade e deve respeitar-se sobre o valor daautoridade aquele conhecidíssimo princípio, transmitido pelos filósofos: nãose deve contradizer o que parece verdadeiro a todos os homens, ou aos que sãomais, ou aos que são doutos". Só à autoridade nos devemos confiar enquanto semantiver oculta a razão (dum ratio latet). Mas a autoridade passa a serinútil quando a razão possui meios para encontrar, por si, a verdade. "Todossabemos que, naquilo que pode ser discutido pela razão, não é necessário ojuízo da autoridade" (Theol. christ., 111, col, 1224). É certo que a razãohumana não é medida suficiente para compreender as coisas divinas (De unit.et trin., edic. StólzIe, 27). A propósito da Trindade, por exemplo, Abelardodiz explicitamente que não pode prometer com este argumento ensinar a verdadeà qual nenhum homem pode chegar, mas propor apenas uma solução verosímil oupróxima da razão humana e que, ao mesmo tempo, não seja contrária à fé(Int. ad Theol., H, 2).

Mas isto não implica que a fé não se deva alcançar e defender com a razão. Se não é preciso discutir, nem sequer sobre o que se deve ou não devecrer, que nos resta senão prestar fé tanto

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aos que dizem a verdade como aos que dizem o que é falso? (Ibid., 11, 3). Nãocremos numa coisa porque Deus a tenha dito, mas porque admitimos que Ele a

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disse, e assim nos convencemos de que a coisa é verdadeira. Uma fé cega,prestada com ligeireza, não tem nenhuma estabilidade, é uma fé incauta eprivada de discernimento: em qualquer caso é preciso discutir, pelo menos deantemão, se é necessário acreditar ou não (Ibid., 11, 3). A última convicçãode Abelardo está expressa na Historia calamitatum (cap. 9). Nela afirma queescreveu o livro sobre a Unidade e Trindade divina para os seus discípulosque, no campo teológico, procuravam argumentos humanos e filosóficos equeriam mais raciocínios do que palavras. É ingénuo pronunciar-se palavrascujo significado não se entende, uma vez que não se pode crer senão no que seentende, e é ridículo predicar aos outros aquilo que quem predica ou quemouve não consegue apreender. Não se pode crer senão no que se compreende.Nesta frase se contém o verdadeiro cerne da investigação de Abelardo. Aprópria verdade -revelada não é verdade para o homem, se não apelar para asua racionalidade, se não o deixa entender e apropriar-se dela.

§ 208. ABELARDO: O UNIVERSAL COMO DISCURSO

Na discussão sobre os universais, a posição de Abelardo é típica e vaiinfluenciar poderosamente o desenvolvimento posterior do problema. Comefeito, Abelardo foi o primeiro que baseou a sua

solução não já na verdadeira ou suposta realidade metafísica do conceito, masunicamente na sua função, que é a de significar as coisas.

Abelardo parte da definição de universal dada por Aristóteles (De interpr.,1, 6). "Universal é o

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que nasceu para ser predicado de muitas coisas". Em virtude desta definição,Abelardo acentua o carácter lógico e puramente funcional do universal e, porum lado, nega que possa, por qualquer título, ser considerado como umarealidade ou res, e por outro, que possa considerar-se como um puro nome. Nãopode ser considerado como realidade porque nenhuma realidade pode serpredIcada de outra. Rem de re praedicari monstrum dicunt, afirma João deSalisbúria no Metalogicus (11, 17) referindo-se a Abelardo e aos seuscontinuadores. Por outro lado, não pode ser uma pura voz, porque a própriavoz como tal é uma coisa, uma realidade particular que não _ pode serpredicada de outra. A fórmula de Roscelino: universal est vox, é substituídapor Abelardo pela fórmula universal est sermo: diferentemente de vox,

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sermo supõe predicabilidade, referenoia a uma realidade significada, o quea escolástica posterior chamará intencionalidade.

Este ponto de vista que encontra a sua expressão mais clara nas Glosas aBoécio, tem o grande mérito de ter clarificado a natureza puramente lógica efuncional do conceito. Trata-se de uma descoberta que o posteriordesenvolvimento da lógica medieval não irá esquecer. Através dela, Abelardopode justificar a realidade objectiva do universal sem ter de recorrer àshipóstases metafísicas do realismo. É evidente que não existe o universalfora das coisas individuais. Quando os filósofos afirmam que a espécie écriada pelo género, não pressupõem com isto que o género preceda às suasespécies no tempo ou exista antes delas. O género não é de forma algumaanterior à espécie, e nunca pôde existir um animal que não fosse nem racionalnem irracional: o género não pode existir senão com a espécie, tal como estanão pode existir senão com aquele. (Int. ad theol., 11, 13). Mas o facto de ouniversal não existir na realidade como tal, não significa que não

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seja nada. As coisas singulares, nas suas propriedades e na sua natureza, sãouniformes ou semelhantes, a~r desta uniformidade ou semelhança nãoconstituir, por sua vez, uma coisa singular. Todas as coisas separadas, comoSócrates e Platão, são opostas em número mas convergem nalguma coisa, porexemplo, no facto de serem homens. E esta convergência ou uniformidade éreal: Abelardo define-a, como um status, que não é nem uma res nem umnihilum. Quando se diz que todos os homens se aproximam pelo facto de seremhomens (In statu hominis), deve-se entender apenas que todos são homens e quenisto não diferem em nada. (Philosophische Schriften, ed. Glyer p. 19-20).Tal é a a tese típica do nominalismo medieval; e a lógica nominalistaintegrá-lo mais tarde, com a doutrina da suppositio: mediante a qual seexprime a função própria do conceito (como -sinal) de estar em lugar, nasproposições e nos raciocínios em que é utilizado, de um conjunto de objectosentre os seus similares.

§ 209. ABELARDO: O ACORDO ENTRE A FILOSOFIA E A REVELAÇÃO

O valor que a investigação racional como tal assume aos olhos de Abelardo,condu-lo naturalmente a reconhecer o valor de todos aqueles que se dedicam aomesmo tipo de investigação, mesmo que estejam fora do cristianismo.

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Abelardoreconhece assim que a verdade falou também pela própria boca dos filósofospagãos, que também poderiam ter reconhecido a natureza trinitária de Deus(Intr., ad. Theol., 1, 20). A distinção entre filósofos pagãos e cristãosdeixa de ter valor para ele: todos estão unidos pela razão. Tanto a vida comoa doutrina dos filósofos, afirma ele, encarnam o mais alto grau da perfeiçãoevangélica ou apostólica, e pouco

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ou nada se afastam da religião cristã (Theol., christ.,11, 1, col. 1184).

A intenção fundamental de Abelardo nas suas especulações teológicas, éprecisamente a de mostrar o acordo substancial entre a doutrina cristã e afilosofia pagã. Abelardo dá-se conta, todavia, de estar a forçar, nesta suatentativa, o sentido literal das expressões dos filósofos a que se refere,mas defende-se recordando que os próprios profetas, quando através delesfalava o Espírito Santo, não entendiam, senão em parte, o significado dassuas palavras: as quais muitas vezes são tomadas claras e interpretadas poroutros (Introd. ad theol., 1, 20).

De acordo com estes pressupostos, o tratamento racional do dogma trinitário éem Abelardo conduzido no sentido de demonstrar o acordo substancial dosfilósofos, em particular de Platão e dos neo-platónicos, com a revelaçãocristã. Com efeito, até mesmo os filósofos pagãos, segundo Abelardo,conheceram a Trindade. E admitiram que a Inteligência divina ou Nous nasceude Deus e é coeterna com Ele, e, além disso, consideraram a alma do mundo,como uma terceira pessoa, que procede de Deus e é a vida e a salvação domundo. " Platão, afirma Abelardo, reconheceu explicitamente o Espirito Santocomo a Alma do mundo e como a vida de tudo. Uma vez que na bondade divinatudo, de certo modo, vive; e todas as coisas estão vivas e nenhuma está mortaem Deus; o que significa que nenhuma é inútil, nem mesmo, os males, que sãodispostos da melhor maneira para bem do conjunto" (Theol., christ., 1, 27, c.1013). Se Platão afirma que a alma do mundo é em parte indivisível e mutávele em parte divisível e mutável, enquanto se multiplica nos vários corpos,isto deve ser entendido no sentido de que o Espírito Santo permanece

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indivisível em si mesmo; mas, enquanto multiplica os seus dons, aparecedividido na sua

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acção vivificadora. Quando Platão afirma que a

Alma foi colocada por Deus no meio do mundo e que a partir daí se estendeigualmente por todo o globo, o que ele quer afirmar, de forma elegante, é quea graça de Deus se oferece igualmente a todos, e que nesta casa ou templo queé seu, o mundo, ele dispõe todas as coisas de modo salutar e justo (Introd.ad theol., 1, 27). A doutrina Platónica coincide assim de forma substancial,com a fé na Trindade; e se Platão afirma que a Mente e a Alma do mundo foramcriadas, trata-se de uma expressão imprópria que quer significar a geração

e a providência das duas pessoas, divinas do Pai Ubid. 1, 10).

§ 210. ABELARDO: A TRINDADE DIVINA

Estas analogias guiam Abelardo nas suas interpretações trinitárias. Adistinção das três pessoas é baseada na distinção dos atributos. Com o nomedo Pai indica-se a potência da majestade divina pela qual pode fazer tudo oque quer. Com o nome

de Filho ou Verbo designa-se a sapiência de Deus, pela qual ele pode conhecertudo e de modo algum ser enganado. Com o nome de Espírito Santo exprime-se acaridade ou benignidade divina, pela qual Deus quer que tudo seja disposto domelhor modo e dirigido ao melhor fim. Estes três momentos da Trindadegarantem a perfeição divina, uma

vez que não é perfeito em tudo quem é importante em qualquer coisa, nem éperfeitamente santo quem pode enganar-se em qualquer coisa, nem éperfeitamente bondoso quem não quer que tudo seja disposto do melhor modo. Ostrês atributos de Deus, expressos nas três pessoas da Trindade, pressupõem-see reclamam-se uns aos outros. E assim, ainda que a sapiência pertença aoFilho e a caridade ao Espírito Santo, todavia, tanto o Pai como

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o Espírito Santo são inteira sapiência; e, do mesmo modo, tanto o Pai como oFilho são também caridade (Int. ad Theol., 1, 7-10). Em razão desta

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unidadedos atributos divinos, as várias pessoas derivam umas das outras. O Pai, queé a potência, gera em si a sua sapiência, que é o Filho, se bem que a própriasapiência divina, seja uma potência, isto é: um poder de Deus: o poder dediscernir a forma de evitar qualquer engano ou erro, de modo a que nada podesubtrair-se ao conhecimento de Deus. O Espírito Santo procede do Pai e doFilho, enquanto a bondade é própria do Espírito, a forma de produzir os seusefeitos deriva da potência e da sapiência de Deus: pois se não derivasse dapotência seria privado de eficácia e se não derivasse da sapiência nãoconheceria a melhor forma de explicar-se e de produzir os seus efeitos. OEspírito Santo designa portanto o proceder de Deus de si para as criaturas,que têm necessidade dos benefícios da graça divina, proceder que é ditadopelo amor de Deus (1b., 11, 14). O Filho e o Espírito Santo diferem, todavia,na sua derivação de Deus Pai: o Filho é gerado pelo Pai, e é da mesmasubstância do Pai, uma vez que a sapiência é uma determinada potência; oEspírito Santo não é da mesma substância do Pai e do Filho porque a caridade,que não é atributo, não é nem potência nem sapiência, ainda que estejacondicionada na sua eficácia, tanto por uma como por outra. Fala-se,portanto, de geração do Filho em relação ao Pai, e de processão do EspíritoSanto, tanto em relação ao Pai como ao Filho (1b., 11, 14).

A relação entre as três pessoas divinas e a sua geração ou processão éilustrada em Abelardo com uma comparação. A divina Sapiência é um aspectodeterminado da divina Potência do mesmo modo que um selo de bronze é umadeterminada parte do bronze. A divina Sapiência recebe o seu ser

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da divina Potência tal como O selo de bronze recebe o seu ser do bronze deque é formado. Para que seja um selo de bronze, é necessário que exista obronze; assim a divina Sapiência que é a potência de conhecer, exigenecessariamente que haja a divina Potência, de que é formada. E como o bronzese chama a substância do selo, assim a divina Potência é a substância dadivina Sapiência.

Nesta similitude, o Espírito Santo é aquele que se serve do selo e aquele quepressupõe o ser do próprio selo e do bronze que o constitui. Tal como aqueleque ao usar o selo se serve de qualquer coisa mole sobre a qual imprime

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aimagem que existe na substância do selo, assim o Espírito Santo, com adistribuição dos seus dons, reconstitui em nós, a imagem destruída de Deus,para que de novo sejamos feitos conforme a imagem do Filho de Deus, isto é:de Cristo. Em suma, tal como o bronze, o selo e o acto de selar são uma sócoisa na sua essência, ainda que se trate de três coisas distintas uma dasoutras; assim também o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são uma únicaessência, mas são distintos uns dos outros nos seus atributos pessoais, deforma que nenhuma pessoa pode ser substituída por outra. O bronze, comomatéria, não é a forma do selo e reciprocamente. Assim o Pai não é o Filho, ea Potência divina não é a divina Sapiência; e reciprocamente (Int. ad.theol., 11, 14).

Estas especulações trinitárias de Abelardo suscitaram a crítica de S.Bernardo que interpretou os atributos com que Abelardo caracteriza as trêspessoas divinas como se fossem omnipotência, semi. -potência, nenhumapotência (De erroribus Ab., 3, 8). E na verdade tal coisa é teológicamenteimprópria, uma vez que não assume a substancialidade das pessoas divinas quesão reduzidas, segundo o esquema de Escoto Erígena, a três momentos da vidadivina (modalismo). Por outro lado, a especulação de Abe-

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Abelardo conduz Heloísa para o

Convento do Paráclito

lardo tem uma intencionalidade mais cosmológica do que teológica. O seuobjectivo é mais o de esclarecer a estrutura e a constituição do mundo e arelação entre o mundo e Deus, do que propriamente esclarecer a natureza deDeus. E esta sua intencionalidade cosmológica foi aplicada e utilizada pelosfilósofos posteriores, especialmente os da escola de Chartres.

§ 211. ABELARDO: A UNIDADE DIVINA

No que se refere à natureza de Deus em si própria, Abelardo repete aespeculação negativa de Escoto Erígena. Não é possível definir a essência deDeus, porque Deus é inexprimível. Deus está fora do número das coisas, porquenão é nenhuma delas. Todas as coisas pertencem ou à categoria da substânciaou a outra categoria. Mas aquilo que não é substância não pode subsistir em

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si. Ora bem, Deus é o princípio e fundamento de tudo, portanto não podepertence- ao conjunto das coisas que não são substância. Mas tão-pouco podeser integrado nas substâncias. Com efeito, o que é característico dasubstância é o permanecer numericamente una e idêntica, ainda que possareceber em si determinações diversas e opostas. Mas Deus não pode recebernenhuma dessas determinações, porque nele não há nada de acidental e demutável. Por isso, mais que substância, deve-se chamar-lhe essência, dado quenele, o ser e o subsistir são absolutamente -idênticos. Nenhum nome, nenhumapalavra referida a Deus conserva o significado com a qual são referidas todasas coisas criadas. A natureza divina apenas pode ser exprimida com parábolase metáforas. Podemos distinguir, por exemplo, na substância do homem a vidaanimal, a razão, a mortalidade, etc., ainda que a essência do homem permaneçanumericamente una e idêntica. Do mesmo modo pode-

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mos supor que na divina Substância se podem distinguir atributos diversos,constitutivos de três pessoas diferentes, permanecendo, no entanto, aquelasubstância una e idêntica (Intr., ad theol., il, 12).

Para compreender a unidade das pessoas divinas é útil considerar uma outraimagem que Abelardo vai buscar à gramática. A gramática distingue trêspessoas: a que fala, aquela a quem se fala e aquela de que se fala; masreconhece que estas três pessoas podem ser atribuídas a um mesmo sujeito. Umapessoa pode falar de si a si própria; neste caso, referem-se ao mesmo sujeitotodas as três pessoas da gramática. Além disso, a primeira pessoa é ofundamento das outras, uma vez que não há ninguém que fale, também não háninguém a quem se fale e ninguém de que se fale. Em suma, a terceira pessoadepende das duas precedentes, pois que só entre duas pessoas que falam sepode falar de uma terceira pessoa. Em tudo isto podemos encontrar a imagem daunidade divina; ainda que a segunda pessoa, com efeito, pressuponha aprimeira e a terceira as outras duas. E como um e mesmo homem pode ser aprimeira, a segunda e a terceira pessoas gramaticais, sem que estas trêspessoas se confundam ou anulam; assim também em Deus a mesma essência podeser as três pessoas, sem que as três pessoas se identifiquem umas com asoutras (lbid., 11, 12).

§ 212. ABELARDO: DEUS E O MUNDO

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As relações entre Deus e o mundo são esclarecidas em Abelardo com ofundamento dos atributos divinos e em primeiro lugar o da omnipotência, que éo atributo próprio do Pai. A conclusão a que Abelardo chega, a propósitodeste atributo, é de que Deus não pode fazer nem mais nem menos

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daquilo que faz e por isso a sua acção é necessária. Com efeito, Deus apenaspode fazer o bem. Deus faz aquilo que quer, mas quer aquilo que é bom.O princípio da sua acção não é o sic volo, sic iubeo, sit pro rationevoluntas: Ele quer apenas que aconteça aquilo que é bom que aconteça. (Theol.christ., V, col. 1323). É claro pois, que, em tudo aquilo que Deus faz oudeixa de fazer, há uma justa causa... Tudo aquilo que ele faz, deve fazê-lo,porque se é justo que alguma coisa aconteça, é injusto que essa coisa sejaomitida (Intr., ad theol.,111, 5). Nem se pode dizer que, se Deus tivesse feito algo de diferentedaquilo que fez, esse algo seria também bom, porque seria feito por ele; umavez que, se aquilo que não fez, fosse bom como aquilo que faz, não haveriafundamento para a sua escolha nem motivo para fazer uma coisa e omitir outra.Se aquilo que faz é apenas o bem, Deus pode fazer apenas aquilo que faz.Tinha pois razão Platão ao afirmar que Deus não podia criar um mundo melhordo que aquele que criou (lb., 111, 5). Em Deus, possibilidade e vontade sãouma e só coisa: é verdade que ele pode tudo o que quer, mas é verdade tambémque ele não pode, senão aquilo que quer. Esta doutrina de Abelardo implica anecessidade da criação do mundo e o optimismo metafísico. O mundo foinecessariamente querido e criado por Deus. Tudo o que Deus quer, quere-onecessariamente, nem a sua vontade pode permanecer ineficaz; necessariamente,pois, Ele leva a seu termo tudo aquilo que quer (Theol., christ., V, col.1325 e segs.).

A necessidade do mundo não implica a essência da liberdade em Deus. Aliberdade não consiste em escolher indiferentemente o fazer uma coisa ououtra, mas antes em executar sem coacção, e com plena independência, aquiloque se decidiu consciente e racionalmente. Esta liberdade pertence também a

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Deus: pois tudo aquilo que ele faz, fá-lo apenas por sua vontade, e portantosem precisar de qualquer coacção (Intr. ad theol., 111, 5).

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Deus concedeu ao homem a possibilidade de pecar e de fazer o mal para que, emconfronto com a nossa fraqueza, nos surja na sua glória, uma vez que de formaalguma Ele pode pecar: e para que ao afastarmo-nos do pecado não atribuamosisso à nossa natureza, mas à ajuda da sua graça que dispõe para a sua glórianão só o bem como também o mal (Ib., HI, 5).

A necessidade que é própria de Deus reflecte-se nas acções de Deus no mundo.Deus prevê tudo: e se bem que a sua previsão não seja necessariamentedeterminante em relação aos acontecimentos singulares, não pode contudo serdesmentida e esses acontecimentos devem integrar-se na ordem das suasprevisões. Nesta ordem integra-se também a predeterminação. Deus predestinaos eleitos à salvação, mas mesmo aqueles que ele não predestina e que porisso estão condenados, integram-se na ordem providencial do mundo. A acção deDeus não é nunca sem motivo, ainda que o motivo permaneça oculto aos homens.Mesmo a traição de Judas integra-se na ordem providencial, porque sem a suaexistência não teria sido possível a redenção da humanidade. E, tal como atraição de Judas, todos os males que podem acontecer ou acontecem, estãoordenados pela Providência divina para o bem, o têm o seu motivo e o seuresultado inevitável, mesmo que o homem não possa dar-se conta disso Un Ep.ad Rom., col. 649-52).

§ 213. ABELARDO: O HOMEM

A alma humana é, segundo Abelardo, uma essência simples e distinta do corpo.Existe um sentido ao afirmar-se que até as criaturas intelectuais, como

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a alma ou o anjo, são corpóreas, enquanto estão ,limitadas no espaço; mastrata-se de um sentido impróprio que deriva de um conceito falar decorporeidade. A alma está toda presente em todas as partes do corpo e é oprincípio da vida corpórea. Só através da alma o corpo é o que é (Intr. adtheol., HI, 6). Como natureza espiritual, a alma traz em si a imagem da Trindade divina. O que na alma é substância, é na Trindade a pessoa doPai; o que na alma é virtude e sapiência é na Trindade o Filho, que é aVirtude e a Sapiência de Deus; aquilo que na alma é a propriedade de

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vivificar-se é na Trindade o Espírito Santo, ao qual corresponde a missão dedar vida ao mundo (1b., 1, 5).

A alma humana é dotada de livre arbítrio. "Por livre arbítrio, afirmaAbelardo, entendem os filósofos o livre juízo da vontade. O arbítrio é, comefeito, a deliberação ou o juízo da alma, pelo qual alguém se propõe fazer oudeixar de fazer qualquer coisa. Este juízo é livre quando nenhuma necessidadede natureza impõe a realização do que se decidiu e permanece em nosso podertanto o fazer como o deixar de fazem (lb., 111, 7). Os animais não têm livrearbítrio porque não têm raciocínio e mesmo nós estamos privados de livrearbítrio quando queremos aquilo que não está no nosso poder ou quando algumacoisa acontece sem a nossa decisão. Como capacidade de executarvoluntariamente e sem coacção a acção que se decide a seguir a um juízoracional, o livre arbítrio pertence quer aos homens quer a Deus e em geral atodos os que não estão privados na faculdade de querer. Pertence também, e emgrau eminente, aos que não podem pecar. O que não pode peca-r, não podecertamente afastar-se do bem; mas isso não implica que seja obrigado a fazê-lo por uma necessidade de coacção. Essa impossibilidade não deve confundir-secom uma constrição que impeça ou vincule o juízo racional

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da vontade (1b., 111, 7). Pode dizer-se, assim, que a liberdade de escolha émais ampla no âmbito do bem, quando aquele que escolhe está livre da servidãodo pecado (1b., 111, 7).

§ 214. ABELARDO: A ÉTICA

O ponto central da ética de Abelardo é a distinção entre vício e pecado eentre pecado e má acção. O vício, é uma inclinação natural da alma para opecado. Mas se tal inclinação consegue ser combatida e vencida, não só não dáorigem ao pecado, como torna ainda mais meritória a virtude.O pecado é, pelo contrário, o consentimento dado a essa inclinação e é umacto de desprezo e de ofensa a Deus. Consiste no não cumprir a vontade deDeus, no transgredir uma sua proibição. Trata-se de um não-fazer, ou de umnão-omitir; de um não-ser, de uma deficiência, de uma ausência de realidade:de algo sem substância (Scito te ipsum 3). A acção pecaminosa pode ser

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cometida mesmo sem o consentimento da vontade, mesmo sem pecado: comoacontece quando, por defesa. se mata um perseguidor furioso. O mal da alma éverdadeiramente apenas o pecado, o consentimento dado a uma inclinaçãoviciosa. A vida humana é uma contínua luta contra o pecado. "Desta forma, nósestamos sempre empenhados num combate interior para recebermos no outro mundoa coroa dos vencedores. Mas para que haja batalha é necessário que exista uminimigo que resista e que não deixe de surgir. Este inimigo é a nossa vontadepecaminosa, sobre a qual devemos triunfar submetendo-a ao querer de Deus; masnunca conseguiremos eliminá-la definitivamente porque devemos ter sempre uminimigo contra quem combatem (1b.).

Abelardo está na situação de -insistir, com base nestas premissas, sobre apura interioridade das valo-

Ho

rações mormis. A acção pecaminosa nada acrescenta ao pecado que é o acto peloqual o homem despreza o querer divino. Onde não existe consentimento davontade não existe pecado, ainda que a acção seja em si pecaminosa (como nocaso de quem mata coagido), e quando existe consentimento da vontade nainclinação viciosa, o facto de se seguir a ela uma acção pecaminosa nadaacrescenta à culpa. Deve-se chamar transgressor, não àquele que faz aquiloque é proibido, mas àquele que apenas consente no que é proibido por Deus: eassim a proibição deve entender-se como referida não à acção, mas aoconsentimento. "Deus tem em conta não as coisas que se fazem mas o ânimo comque elas são feitas; e o mérito e o valor do que actua não consiste na acçãomas na intenção" (1b.). Uma mesma acção pode ser boa ou má; por exemplo,enforcar um homem tanto pode ser um acto de justiça como de malvadez.

Nem sempre o juízo humano pode adequar-se a esta exigência da valoraçãohumana. Mas isso acontece porque os homens não têm em conta a culpabilidadeinterior, a não ser o acto pecaminoso externo, que é efeito da culpa. ApenasDeus que observa, não as acções, mas o espírito com que são praticadas, podeavaliar segundo a verdade, o valor das intenções humanas e julgar exactamentea culpa (1b., 5). O juízo humano afasta-se necessariamente do juízo divino. Oprimeiro castiga mais a acção do que a intenção, porque segue mais umcritério de oportunidade do que um dever de justiça e tem em mira, sobretudo,

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a utilidade comum; o segundo, pelo contrário, castiga exclusivamente aintenção e inspira-se na mais perfeita justiça, sem ter em conta asrepercussões sociais da culpa. Mas enquanto o juízo humano se conforma comnecessários critérios de oportunidade, tal coisa não é justificável com ofundamento da realidade moral

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do homem. Para esta real-idade não é a acção mas a intenção que conta, e aacção só é boa quando procede de uma boa intenção. Na verdade, a bondade daintenção deve ser real, não aparente; é necessário que o homem não se enganeao crer que o fim para que tende seja da vontade de Deus (1b., 11). Abelardoprocede coerentemente nesta ética da intenção e não se detém perante asconsequências teologicamente perigosas da mesma. Se o pecado está apenas naintenção, como se justifica o pecado original? Abelardo responde que o pecadooriginal não é um pecado, mas a pena de um pecado. "Quando se diz que ascrianças nascem com o pecado original e que nós todos, segundo o Apóstolo,pecámos como Adão, é como se se dissesse que do pecado de Adão derivou anossa pena, que é a sentença da nossa condenação" (1b., 14). Igualmenteimpróprio é chamar pecado à ,ignorância em que vivem os infiéis em relação àverdade cristã e as consequências que surgem de tal ignorância. "Nãoconstitui pecado o ser infiel, ainda que -tal coisa impeça a entrada na vidaeterna àqueles que chegaram ao uso da razão. Para ser-se condenado ésuficiente não acreditar no Evangelho, ignorar a Cristo não se aproximar dosSacramentos da Igreja, ainda que isto aconteça não por maldade, mas apenaspor ignorância" (1b., 14). Não se pode ter por culpa o facto de nãoacreditarem no Evangelho e em Cristo aqueles que nunca ouviram falar nem dumnem doutro. Afirmar que se pode pecar por ignorância significa entender opecado num sentido lato e impróprio, já que o pecado é verdadeiramente apenasa ignorância quando é efeito de negligência consciente.

NOTA BIBLIOGRÁFICA § 205. As obras teológicas de Abelardo in P. L.,178.o. Alguns escritos foram publicados parcialmente Por COUSIN, Ouvragesinédits d'Abélard, Paris, 1836

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(Cousin tem uma nova edição das obras já editadas, conjuntamente comJourdain, Paris, 1849-1859); outros por GYEER, Abaelards philosophieSchriften, nei "Beitrage", XX1, 1-4, 1933; e por DAL PRA, P. Abelardo

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Scrittifilosofici, Milão, 1954.

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RÉmuSAT, Abélard, 2 vols. Paris, 1845; OTTAVIANO. P. Abelardo, Roma, 1931;S1KES, P. Abelard, Oambridge, 1932; GILSON, Heloise et Abélard, Paris, 1938(Trad. ital., Turim, 1950); LLOYD, P. Abelard: the orthodox Rebel, Londres,1947; MOORE, He"se and Abelard, Londres, 1952.

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VII

A ESCOLA DE CHARTRES

§ 215. O NATURALISMO CHARTRENSE

O -problema dos universais, ao fim das suas primeiras manifestações,constitui o sinal de um novo interesse pelo homem e em especial pelos seuspoderes cognoscitivos; e o resultado imediato desse interesse é uma maisextensa autonomia reconhecida a tais poderes. Mas o século XII oferecetambém, nalguns caminhos abertos pela filosofia, o exemplo de um novointeresse pelo mundo da natureza; e também neste caso o resultado desseinteresse é o reconhecimento de uma mais extensa autonomia da natureza em

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confronto com o seu próprio criador. Este segundo aspecto da Escolástica doséculo XII, constitui o caminho seguido pelos filósofos que ensinaram naEscola catedral de Chartres, que foi fundada, no fim do século X, porFulberto (falecido1028). Mas juntamente com o interesse naturalístico, a escola de Chartrescultivou igualmente o interesse pelos estudos literários o gramaticais e pelalógica; tanto assim que nos oferece a melhor documentação sobro a viragem quea filosofia escolástica sofre no

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século XII; uma viragem através da qual o mundo do homem passa a serobservado e encarado com renovado interesse, ainda que no lugar subordinadoque apesar de tudo mantém perante as forças transcendentes que o dominam.

Os temas da filosofia naturalista, que os filósofos de Chartres preferem, sãomuito simples e todos se reconduzem à tentativa de Abelardo de inserir oTimeu platónico no tronco da teologia cristã. Abelardo tinha identificado aplatónica Alma do mundo com o Espírito Santo. Esta identificação é mantidapelos filósofos de Chartres, mas agora a identificação passa a ser entre aAlma do mundo e a Natureza. A natureza passa a ser a força motriz, ordenadorae vivificadora do mundo; e com estas características ganha uma dignidade euma potência autónomas. A natureza é designada força universal (vigoruniversalis) que não só faz com que existam todas as coisas individuais comotambém ela própria e de forma autónoma. E nas composições literárias queexprimem imaginosamente e segundo os modelos clássicos estes conceitos, elasurge personificada e exaltada como a filha de Deus, a genitrix de todas ascoisas, a ordem, o explendor e a harmonia do mundo. Mas o importante é que,reconhecida à natureza uma tal dignidade, se torna possível reconhecer-lhetambém uma certa autonomia: começa a dar-se conta de que é possível explicar-se a natureza com a natureza, e os filósofos de Chartres. utilizando asfontes clássicas e patrísticas (especialmente Cícero), recorrem de boavontade às doutrinas epicuristas e estóicas para as suas explicaçõescosmológicas. obviamente, a utilização de doutrinas assim heterogéneas -platonismo, epicurismo, estoicismo, todas filtradas pela retorta da teologiaabelardiana-dá lugar a construções conceptuais heterogéneas e confusas quetêm escasso valor científico e filosófico. Mas a importância destas

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tentativas não

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está nos seus resultados, mas antes nos caminhos filosóficos para queapontam; caminhos que se dispõem a dar um relevo cada vez maior à natureza eao homem, mesmo que a natureza e o homem sejam concebidos, não em oposição aotranscendente, mas como manifestações do próprio transcendente.

A direcção que encontra na escola de Chartres a mais rica expressãofilosófica tinha sido preparada, desde o século anterior, por um certoprosseguimento dos conhecimentos científicos devido sobretudo aos contactoscom os árabes. Antes da primeira metade do século XI, no que diz respeito àsciências naturais e à medicina, a cultura medieval tinha ficado onde adeixara as obras de Gerberto d'Aurillac. Mas nos princípios daquele século, omédico Constantino Africano traz para o conhecimento do mundo ocidental, comnumerosas traduções, a ciência e a medicina greco-árabe. Constantino nasceraem Cartago e viajara pelo Oriente e pelo Egipto. Em 1060 deteve-se em Salernoonde florescia uma grande escola de medicina. Mais tarde torna-se frade noclaustro de Montecassino. Traduz do árabe dois livros de medicina intituladosPantegni e Viaticum que foram em seguida atribuídos ao médico ebreu Isaac eimpressos com o seu nome (Lyon, 1515). Em seguida, Constantino traduz obrasmédicas do mesmo Isaac e dos grandes médicos gregos Hipócrates e Galeno,tendo chamado a atenção para a teoria atómica dos mesmos.

A obra de Constantino foi continuada pelo inglês Adelardo de Bath (nascido em1090) que ensinou durante alguns anos em Laon, na escola de Anselmo, e viajoupela Itália Meridional pela Espanha e pela Ásia Menor, para regressar, apóssete anos, a Inglaterra e dar a conhecer o que tinha aprendido com os árabes.Traduz então os Elementos de Euclides e tratados árabes de aritmética e deastronomia;

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compõe dois livros dos quais um, Quaestiones naturales, é uma obra de física;o outro, De codem et diverso, tem a forma de uma carta a um sobrinho o é umaalegoria na qual a filosofia e a filoscomia disputam o jovem Adelardo,vangloriando-se cada uma dos seus próprios méritos.

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Nas Quaestiones naturales Adelardo explicitamente contrapõe a razão àautoridade para aquele que tenta indagar o mundo natural. Nesta indagação,afirma ele, aquilo que é preciso deter o conhecer, é a razão das coisas(Quaest, nat., 6). Esta forma de agir não afecta, de modo algum, o poder deDeus; porque Deus tudo fez, mas não fez nada sem razão: e é no sentido deconhecer essa razão que se deve orientar a ciência humana (1b., 1). Nainvestigação dessa mesma razão, Adelardo recorre frequentemente à teoriaatómica que provavelmente, deduzia da obra de Constantino Africano e queneste período, como veremos em seguida, é frequentemente invocada, se bem queseja conhecida, mais do que através de Lucrécio, através das advertências dosescritores patrísticos: Calcídio (in Tim, 279), Ambrogio (in Hexam., 1, 2),Santo Agostinho (Epi.,118, 4, 28) e Isidoro (Etim., 13, 2, 1 e segs.). Por outro lado, Adelardointroduziu pela primeira vez no Ocidente latino a prova aristotélica daexistência de Deus, deduzida do movimento (Quaest, nat., 60). De tudo istopode, portanto, deduzir-se que teria conhecido através dos árabes a Física deAristóteles, que era ainda inacessível aos filósofos do Ocidente e que elecita (1b., 18). Quanto ao problema dos universais, Adelardo faz sua a soluçãode Abelardo, mas exprime-a de forma diferente. Os nomes "género", "espécie","indivíduo" , são impostos à mesma substância, mas de um ponto de vistadiferente. Assim o nome de género "animal" designa um sujeito dotado desensibilidade e de alma; o nome de espécie "homem" designa esse mesmo

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sujeito mas acrescentando-lhe o raciocínio e a mortalidade; o nome individual"Sócrates" designa todas as coisas precedentes com mais uma distinçãonumérica devida a caracteres acidentais. Adelardo conclui que Aristótelestinha razão ao afirmar que os géneros e as espécies existem apenas nas coisassensíveis; mas acrescenta que também Platão tinha razão em dizer que elesexistem na sua pureza, enquanto formas sem matéria, na mente divina.

Todos estes temas e motivos são abordados na escola de Chartres cujo primeirorepresentante de envergadura foi Bernardo, professor de 1114 a 1119 na Escolacatedral, e de 1119 a 1124, chanceler da Abadia. Dele não possuímos escritosmas conhecemos a sua doutrina através dos testemunhos de João de Salisbúria

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que no seu Metalogicus (IV, 35) lhe chama "o mais perfeito entre osplatónicos do seu século". O que sabemos das suas doutrinas aparece como umresumo do Timeu platónico visto através de Abelardo. Bernardo identifica osgéneros e as espécies com as ideias platónicas e sustenta que, tal como asideias, são eternos. Não são todavia coeternos com Deus no sentido em que sãocoeternas entre si as pessoas da Trindade. As ideias, enquanto subsistentesna mente divina, estão privadas de matéria e não são sujeitas ao movimento:na matéria estão apenas as imagens dessas formas ideais, impressas por Deus,imagens a que Bernardo chama formas inatas e que têm o destino das coisassingulares (1b., 11, 17). Mas Bernardo foi sobretudo (quanto sabemos) umgramático e um literato, admirador entusiasta dos autores antigos: dizia eleque nós somos, em relação aos antigos, como anões sobre os ombros degigantes: podemos ver mais além apenas porque podemos subir até à sua altura(1b., RI, 4).

O irmão mais novo de Bernardo, Teodorico, de Chartres, foi professor emChartres em 1121; em

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1140 ensinou em Paris onde João de Salisbúria foi seu aluno e em 1141 foichanceler de Chartres e ao mesmo tempo arquidiácono de Dreux. Morreu em 1150.Teodorico, é autor de um Heptateucon ou manual das sete artes liberais de quese servia no seu ensino e que é um documento do material de estudo utilizadonas escolas na primeira metade do século XII; de um comentário ao génesesHexameron ou De septem diebus e de um comentário ao De Trínitate de Boécio.Na especulação de Teodorico é sensível a influência das obras de EscotoErígena. Como este, Teodorico distingue quatro causas e que em seguida sãoquatro fases do processo de auto-realização de Deus no mundo: a causaeficiente, que é Deus Pai; a causa formal que é a Sapiência ou o Filho deDeus, que organiza a matéria; a causa final que é o Espírito Santo que animae vivifica a matéria já formada e organizada; e finalmente a causa materialque são os quatro elementos que o próprio Deus criou do nada no princípio.Como se vê, Teodorico, tal como Abelardo, identifica o Espírito Santo com aAlma do mundo e na sua obra é frequente a insistência neoplatónica

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(obtida emEscoto Erígena) sobre o primado ontológico da Unidade, que é o próprio Deus.Teodorico insiste também na sua noção de unidade ao considerar Deus, no seucomentário ao De Trh*ate de Boécio, como a única forma do ser (forma essendi)de que participam todas as coisas existentes, tal como da única matériaparticipam todas as coisas materiais. É provável que esta doutrina não tenha,para Teodorico, o significado panteístico que à primeira vista podeapresentar; mas com tal significado podia ser encarada, assim como foi, poralguns escolásticos, como veremos. É portanto característica de Teodorico(como de todos os filósofos de Chartres) a tese de que a obra miraculosamentecriadora de Deus se extingue

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com a produção dos quatro elementos; criados os quatro elementos, a acçãonatural da capacidade deles próprios produz o ordenamento do mundo e adisposição das suas partes: nesta acção tem grande papel o fogo com o seupoder iluminante e incandescente. Trata-se da velha doutrina estoica,extraída da tradição neoplatónica.

Aluno de Bernardo foi Guilherme de Conches de quem sabemos pouquíssimo.Nascido, provavelmente, em 1090, era ainda vivo em 1154 e foi professor degramática em Chartres. Escreveu uma Philosophia que é :a sua primeira obrasistemática, um Dragmaticon, composto entre 1144 e 1149 e que podeconsiderar-se a sua obra mais amadurecida. Extractos do Dragmaticon são o Desecunda e o De tertia philosophia. Escreveu também Glosas a Boécio, Glosas aoTimeu e um tratado de ética, Moralium dognw philosopharum, que é uma recolhade máximas de moral extraídas de autores pagãos e ordenadas sistemàticamente.A Guilherme costuma também ser atribuído um Compendium philosophiae em seislivros que é também atribuído a Hugo de São Victor, mas que é provàvelmenteobra de um compilador anónimo.

Em todos estes escritos podemos encontrar, com pequenas oscilações eretraimentos, a doutrina típica da escola de Chartres. Nas Glosas ao Timeuque parecem ser anteriores à Philosophia e que foram publicadas recentemente,Gui]herme afirma: "A alma do mundo é o vigor natural que permite a umascoisas terem movimento, a outras o crescimento, a outras o sentir, a outras o

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discernir. Quanto a mim julgo que este vigor natural é o Espírito Santo, ouseja, a divina e benigna concórdia da qual todas as coisas retiram o ser, omovimento, o crescimento, o sentir, o viver e o discernir". Com maisincerteza, esta doutrina vem repetida na Philosophia, mas desaparece doDragmaticon, talvez

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por efeito da condenação que, na pessoa de Abelardo, essa mesma doutrinatinha entretanto sofrido. Mais caracteristicamente, Guilherme insiste nacomposição atómica dos quatro elementos. Segundo Guilherme, a á gua, o ar, aterra e o fogo não são verdadeiramente elementos porque são divisíveis: osverdadeiros elementos são indivisíveis porque são simplicíssimos. No entanto,Guilherme chama elementata Ou elementos do mundo à água, ao ar, à terra e aofogo e reserva o nome de elementa apenas para os átomos aos quais atribui asqualidades fundamentais opostas: quente e frio, seco e húmido (Philosophia,1, 21).

Todos os temas da escola de Chartres encontram uma expressão imaginosa naobra de Bernardo Silvestre, autor de um poema intitulado De mundiuniversitate sive Megacosmus et Microcosmus escrito à volta de 1150 ededicado a Teodorico de Chartres. A obra está redigida em verso e em prosasegundo o exemplo do De consolatione de Boécio e do De nupliis de MarcianoCapella e é uma espécie de cosmogonia inspirada no Timeu de Platão. Bernardopersonifica as entidades teológicas e metafísicas da escola de Chartres: aMatéria ou Hyle, concebida como absolutamente informe, aparece reconduzida àordem e à harmonia do Intelecto ou Noys, pelos trâmites da Natureza ouPhysis; e no cume desta ordem foi colocado o homem, o Microcosmos. A oposiçãoentre o carácter informe, pavoroso e maligno da Hyle e a ordem racional que aPh),sis procura impor, dá colorido dramático à obra. Nela, os própriosatributos das pessoas da Trindade tomam-se puramente cosmológicos, isto é,relativos às funções que as pessoas desempenham perante o mundo ecaracterizadas como Potência, Sapiência e Bondade, segundo um esquema que nóspodemos encontrar frequentemente nos mestres de Chartres e que deriva deAbelardo.

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§ 216. GILBERTO DE LA PORRÉE

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O mais notável representante da escola de Chartres é Gilberto Porretano.Nascido em Poitiers, foi aluno de Bernardo de Chartres e de Anselmo e Rodolfode Laon. Ensinou em Chartres e em Paris com grande sucesso e foi bispo dePoitiers (1142-1154). Gilberto foi autor de numerosos escritos, quase todosmantidos inéditos. Os mais notáveis são o Commentario aos opúsculosteológicos de Boécio e um tratado das últimas seis categorias de Aristótelesque tem o título De sex principiis,- tem-se duvidado da autenticidade desteescrito, mas sem razões suficientes. De qualquer modo, trata-se de um escritoque contém as teses típicas de Gilberto e que em breve se tomou famoso; foiusado como texto de ensino na Universidade de Paris e comentado por diversosautores: a última vez pelo humanista Hermolau Bárbaro que o publicou na suaedição das obras de Aristóteles.

Gilberto define a fé como a "percepção, acompanhada de aprovação, da verdadede uma coisa" o sustenta que a fé precede a razão no domínio teológico, massegue-a no domínio filosófico. As coisas criadas não têm necessidadeverdadeira e própria: uma vez que nelas tudo é variável, mesmo aquilo que emregra se considera necessário. A necessidade existe apenas nas coisas divinase a fé precede a razão. Nós não acreditamos porque sabemos, mas sabemosporque acreditamos (non cognoscentes credinw sed credentes cognoscimus). Afé, prescindindo completamente dos princípios da razão, consegue compreendernão só o que a razão humana não pode compreender, mas também aquilo que elapode compreender com os próprios princípios. Justamente por isso, a fécatólica é considerada o exórdio não só do conhecimento teológico mas dequalquer outro; é privada de qualquer incerteza e

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é o fundamento mais firme e certo mesmo dos conceitos naturais (In Boeth. depraed. trium pers., in P. L., 64. , 1303). Com base neste pressuposto.Gilberto defende a estreita união entre a razão e a fé em toda a investigaçãofilosófica. "Une a fé à razão, afirma ele, para que a fé confira, em primeirolugar, autoridade à razão e em seguida a razão confira assentimento à fé"(Ib., 1310).

Segundo um testemunho de João de Salisbúria (Metal., 11, 17), Gilberto

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distinguia o universal in rem do universal ante rem. O universal in re, formainata ou espécie, considerava-o inerente às coisas criadas. A forma inataseria a cópia do exemplar existente na mente divina, tal como a espécieimanente nos indivíduos é, segundo Platão, a cópia da ideia. O intelectohumano abstrai o universal das coisas individuais para considerar melhor asua natureza e melhor compreender as suas propriedades. O universal não é umarealidade em si, numericamente una, mas a simples colecção das coisassingulares, unificadas segundo as suas propriedades comuns. Noutros termos,Gilberto participa aqui no ponto de vista de Abelardo: o fundamento objectivoda universalidade do conceito, o fundamento que garante ao conceito a suaverdade, é a semelhança que as coisas singulares têm entre si, a suauniformidade colectiva. O universal tinha já sido definido como colecção decoisas singulares por Joscelino ou Gauleno no tratado De generibus etspeciebus (§ 203). Mas Gilberto acrescenta aqui uma opinião sua: distinguedois significados na palavra substância. Num primeiro sentido, mais geral, ésubstância o que para subsistir não precisa de qualidades acidentais. Nestesentido, a substância é subsistência, isto é, essência e exprime o quo est dacoisa. Num segundo sentido, que é o próprio, a palavra substância significaaquilo que subsiste, a realidade existente ou subsistens, o quod est (InBoeth., de

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trin., in P. L., 64. , 1281). No primeiro sentido, os géneros e as espécies,ou seja, os universais, subsistem enquanto são subsistentiae ou essênciasdeterminadas, que não precisam de acidentes para existirem no modo que lhes épróprio. Mas no segundo sentido, apenas os indivíduos são substâncias porquesó esses, na realidade, existem. Os indivíduos, portanto, não só subsistem,subsistunt, mas também existem, substant, porque estão dotados de diferençaspróprias e específicas e constituem os sujeitos reais dos acidentes, enquantosão as suas causas e princípios. Quando o indivíduo subsistente tem também oatributo da racionalidade, toma o nome de pessoa (In Boeth. de duab. nat.,Ib., 1375 sgs.).

Com base na distinção entre subsistência e subsistente, Gilberto faz a

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distinção entre forma e matéria. A forma é o que determina uma coisa no seuser específico; a matéria é o sujeito determinável da forma. Por isso se podechamar também matéria às essências enquanto são os sujeitos dos seuscaracteres e são determinadas ou concriadas por tais caracteres. Existe umaforma simples que é "o ser do Artífice", isto é, Deus, como existe umamatéria simples que é a matéria-prima ou informe, a hyle de Platão. Entreestes dois extremos, estão as realidades compostas ou concretas, que sãomatéria e forma, conjuntamente, no sentido referido acima. A sua criação éuma concriação (concretio): isto é, a união sucessiva, num sujeitoindeterminado mas determinável, de essências ou subsistências que odeterminam. Neste sentido, a função criadora de Deus é uma função formadora eDeus é a forma originária de tudo (In Boeth, de trin., Ib., 1266). Se sequisesse exprimir esta doutrina nos termos do que em seguida se chamará oproblema da individuação, será necessário afirmar que, para Gilberto, oprincípio da individuação é a forma. Os seres singulares são determinados eindi-

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viduados pela essência de que são investidos o ser, a corporeidade, asensibilidade, a inteligência, etc. Dois seres que se distingam apenasnumericamente, por exemplo, dois homens, distinguem-se entre si pelaspropriedades formais que os constituem; e mesmo se tais propriedades lhesfaltassem, distinguir-se-iam pela sua diferença de lugar que é também ela umadiferença qualitativa ou formal.

Se por um lado Gilberto considera Intimamente unidas a fé e a razão, entendedistinguir nitidamente o domínio das disciplinas singulares e, em primeirolugar, o da teologia do da filosofia. Esta distinção não deve ser baseadanuma diversidade de actividade ou de atitude espiritual, mas apenas sobre umadiversidade de princípios objectivos. Toda a ciência deve partir defundamentos próprios, de princípios que são específicos da ciência einerentes ao seu objectivo. Gilberto gaba-se de ter feito pela teologiaaquilo que foi feito pela matemática, de ter determinado os conceitos eprincípios fundamentais da ciência teológica (In Boeth. de heMom., Ib.,1316). Nas disciplinas teológicas, todavia, é preciso servimo-nos deprincípios que são diferentes dos que são adoptados nas considerações dascoisas naturais. E, com efeito, o objecto da teologia é completamentediferente do objecto das ciências naturais. As coisas naturais são dotadas dematéria e de movimento, enquanto que Deus é privado de matéria e demovimento. Por tal motivo não são aplicadas a Deus as categorias e os

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conceitos que servem para compreender as coisas naturais. A própria categoriade substância é indevidamente referida a Deus, porque designa aquilo quesuporta as qualidades acidentais. Em relação a Deus será mais próprio falarem essência; mas em verdade, nem a sua realidade subsistente, o quod est, nema sua subsistência, o quo est, são apreendidas pela razão. De Deus apenas sepode afirmar que a singularidade da sua essência impedem qual-atribuição.Deus é portanto inteligível, compreensível (In Boeth. the duab. nat.,

Sobra a distinção entre essência e substância, entra subsistência osubsistente se baseia a doutrina de Gilberto sobre a Trindade. Gilbertodistingue entre deidade o Deus. A deidade é a única essência divina, da qualparticipam as três pessoas diversas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Astrês pessoas são três realidades singulares, numericamente distintas; a suaunidade é a forma comum da deidade, de que todas participam. Em virtude daforma de deidade cada uma delas é o que é, e cada uma delas é Deus. A fórmulade Gilberto é a seguinte: "Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo". Aessência divina que constitui a sua unidade é na verdade real, mesmo nas trêspessoas distintas. Esta doutrina trinitária atraiu sobre si a condenação daIgreja. Depois do encerramento do Concílio de Sens, dois arquediáconos dePoitiers foram junto do Papa Eugénio 111 e denunciaram o seu bispo comocriador de novidades teológicas heréticas. Dirigiram-se em seguida a Claravale informaram S. Bernardo da questão. O resultado foi que no Concílio de Parisem 1147 e no de Reiras em 1148, a interpretação trinitária de Gilberto foicondenada. S. Bernardo combateu a distinção entre deitas e deus; e o seusecretário Godofredo escreveu contra Gilberto o seu Libellus contracapitula Gilberti Porretani. A principal acusação de Godofredo contraGilberto é a de que a sua doutrina equivale a admitir não já uma trindade,mas uma quaternidade divina. Por um lado, existiria a forma da deidade, poroutro as três pessoas de Deus. Estas três pessoas seriam distintas umas dasoutras nas suas relações, pelas quais uma é o Pai, a outra o

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Filho e a terceira o Espírito comum e santificante: mas estas relações seriamestranhas à única essência divina que apareceria como uma quarta realidade,juntamente com a trindade das pessoas divinas.

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Gilberto explicava o dogma da encarnação sustentando que só a pessoa divina,isto é, Cristo, mas não a natureza divina, ou seja a forma da deidade,assumiu a natureza humana. Esta doutrina era consequência natural dadistinção entre a deidade e Deus (In Boeth. de duab., Ib., 1938).

A mesma distinção pode ser encontrada na doutrina antropológica de Gilberto.O ser da alma e o ser do corpo constituem, na sua unidade, a subsistência, oquo est do homem; apesar de o próprio homem constituir, como um todo, o quodest, a substância existente como tal. O homem não é nem a alma, nem o corpo,considerados por si. Com a morte, o homem como tal deixa de existir, mas asua parte fundamental, a alma, não perde a sua existência (1b., 1295). Comefeito, a alma não é privada de substância ou enteléquia, mas antes umasubsistência real, uma essência subsistente. Todavia, a alma como tal não éuma pessoa; a personalidade pertence apenas ao homem como um todo.

Gilberto fazia deste modo valer com lógica rigorosa, em todas as partes doseu sistema, a distinção entre subsistência e subsistente, entre essência esubstância. É evidente que na sua investigação a solução do problema dosuniversais havia de influir a de todos os outros problemas. Gilberto é,sobretudo, um lógico e no discorrer do seu pensamento obedece às exigênciasda sua doutrina lógica. E mesmo as suas investigações lógicas exerceram sobrea escolástica posterior a maior influência. O seu escrito De sex ptincipÚsbaseia-se na pretensa diferença entre as primeiras quatro e as outras seisrestantes categorias aristotélicas. As primeiras quatro

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(substância, qualidade, quantidade, relação) designariam, além da substância,o que é absolutamente inerente à substância, e seriam, por conseguinte,formas inerentes. As últimas seis designariam, por seu lado, modalidadesexternas que interviriam para alterar a condição da substância sem, noentanto, se unirem a ela, e seriam por isso formas assistentes. Precisamentedessas formas assistentes (acção, paixão, lugar, quando, situação, posse) éque se ocupa o texto de Gilberto.

§ 217. JOÃO DE SALISBúRIA

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João de Salisbúria está ligado à Escola de Chartres não só pelas relações queteve com alguns mestres daquela escola mas também pelo entusiasmo pelosestudos humanísticos e pela independência de pensamento que, tal comoaqueles, sempre demonstrou ter. No entanto, as suas doutrinas teológicas ecosmológicas afastaram-se das que eram defendidas na escola de Chartres: asquais foram além dos seus interesses porque suportadas por ele para lá doslimites da capacidade humana.

Nasceu na velha Salisbúria, em Inglaterra, entre1115 e 1120. Foi para França ainda jovem, à volta de 1136 e aqui permaneceaté finais de 1148. A sua educação filosófica divide-se entre Paris, ondeensinava Abelardo, e Chartres, onde foi discípulo de Guilherme de Conches eGilberto de Ia Porréc. Em1151 regressa a Inglaterra e é nomeado capelão do primaz de Cantuária,Teobaldo; depois da morte deste, foi secretário do seu sucessor, TomásBecket, com o qual travou relações de amizade. Em seguida foi nomeado bispode Chartres (1176) e nesta cidade viveu até morrer (1180).

O interesse humanístico de João de Salisbúria é evidente no seu Entheticussive de dogmate philosopharum (1155), um poema em dísticos, que é

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um manual de ensino cuja primeira parte é constituída por uma história dafilosofia greco-romana. Escreve também numerosas Epistolae, uma Historiapontificalis, de que existe um fragmento, uma Vida de Anselmo de Cantuária euma Vida de Tomás Becket. Em 1159, ou seja vinte anos depois do início dosseus estudos, escreve as suas principais obras: o Policratus, que é aprimeira obra medieval de teoria política, e o Metalogicus que se apresentacomo uma defesa do valor e da utilidade da lógica contra um tal que eledesigna com o nome fictício de Cornifício. Em Cornifício podemos ver, segundoos intérpretes modernos, a corrente que se opunha aos estudos humanísticos emproveito da física; ou que propunha uma extensão da pesquisa lógica dapalavra às coisas. Mas, a acreditar nas declarações de João de Salisbúria,Cornifício era um sofista que escarnecia do saber autêntico e da técnica dasartes para se entregar a exercícios confusionistas e à discussão de questõescomo esta: "Se o porco conduzido ao mercado é levado pelo homem ou pelacorda" (Metal., 1, 3).

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Toda a doutrina de João de Salisbúria é animada de um espírito autenticamentecrítico: o seu objectivo é o de estabelecer claramente os limites e osfundamentos das possibilidades cognoscitivas humanas. João de Salisbúriaafirma-se um académico e sustenta que a investigação se deve contentar, amaior parte das vezes, com o provável: "Como académico, em todas as coisasque possam ser para o filósofo objecto de dúvida, não juro que é verdadeiroaquilo que afirmo: no entanto, verdadeiro ou falso, contento-me apenas com aprobabilidade". E ainda: "Prefiro duvidar com os Académicos sobre as coisasindividuais, do que definir temerariamente, com simulação consciente eperniciosa, o que permanece oculto e ignorado" (Metal., prol.). Esta prudenteposição é justificada por João de Salis-

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búria com as próprias limitações da ciência humana, às quais se subtraem ascoisas futuras. "Sei com certeza que a pedra ou a seta que lanço às nuvensdeverá cair por terra, porque assim exige a natureza das coisas, todavia, nãosei se elas apenas podem cair no chão e porquê; com efeito, elas poderão cairou não. Também a outra alternativa é verdadeira, ainda que nãonecessariamente, como é verdadeira aquela que eu sei que acontecerá... Aquiloque ainda não é, não é ciência, mas apenas opinião" (Policrat., 11, 21).Daqui deriva que todas as afirmações que implicitamente e explicitamentedigam respeito ao futuro têm um valor provável, não necessário: a suaprobabilidade é baseada na indeterminação do seu objecto e é por issoimpossível de eliminar. Com efeito, deve-se chamar provável àquilo queacontece frequentissimamente: o que não acontece nunca de outra maneira éainda mais provável: e o que se crê que não pode acontecer de outra maneiraadquire o nome de necessário (Metal., 111, 9). Donde se conclui que o"necessário" segundo João de Salisbúria é limitado à "crença"; enquanto que o"provável" exprime a uniformidade objectiva dos eventos e baseia-se nafrequência com que acontecem. João de Salisbúria tira todas as consequênciasimplícitas neste ponto de vista. A dialéctica, como lógica do provável, é oinstrumento indispensável de todas as disciplinas (,Metal., 11, 13). Apretensão da astronomia divinatória de predizer infalivelmente o futuro éabsurda porque o futuro não é necessariamente determinado e é por issoimprevisível (Policrat., 11, 19). A infalível presciência que Deus tem dascoisas futuras não implica de forma alguma a sua necessidade (lb.,11, 21).

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No entanto, se o conhecimento humano se mantivesse encerrado no círculo doprovável, isso significaria para João de Salisbúria, um abandono à

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dúvida radical do cepticismo. Tem de haver um ponto firme qualquer ondepossamos apoiar o edifício das nossas limitadas certezas. Os sentidos, arazão e a fé fornecem o ponto firme dessa natureza. Afirma João deSalisbúria: "Parece ser importante aquilo que a autoridade dos sentidos, darazão o da religião nos persuade a admitir; e a dúvida em torno do ser tem ocarácter de doença, do erro ou do crime. Perguntar se o sol brilha, se a neveé branca, se o fogo aquece, é próprio do homem privado de sensibilidade.Perguntar se três é mais que dois, se o todo contém a metade, se quatro é odobro de dois, é próprio de quem não tem discernimento ou possui umarazão ociosa ou completamente doentia. Quem levanta o problema da existênciade Deus, do @@eu poder, da sua sabedoria ou da sua vontade é não apenas irreligioso como também pérfido e merecedor de uma pena que o castigue"(Policrat., VII, 7).

Os primeiros princípios da ciência estão entre estas coisas indubitáveis(1b.); e entre as ciências, a matemática é a única que atinge a necessidadepelo seu carácter demonstrativo (Metal., 11, 13). E no que se refere àreligião, João de Salisbúria, sustenta que é tão impossível demonstrar aexistência de Deus como negá-la. Reconhece, no entanto, o valor da provacosmológica que vai de causa em causa até à causa primeira (Policrat., 111,8); e sustenta, por outro lado, que a ordem finalista do mundo revelaclaramente a sabedoria e a bondade do criador (Metal., IV, 41). Que Deus sejapoderoso, sapiente, bom, venerável e amável é princípio único de toda areligião, princípio que todos admitem gratuitamente, sem provas, por puroespírito de religiosidade (Policrat., VIII, 7). Mas outras determinações sãoalheias à razão. A própria Trindade é, para a razão humana, um mistérioimpenetrável (1b., 11, 26). No entanto, pode-se reconhecer que

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Deus é o fundamento da ordem do mundo, mas não se pode conceber essa ordemcomo um facto inelutável, segundo a concepção dos Estóicos, porque isso nãoexclui a mobilidade das coisas e a liberdade da vontade humana (1b., 11, 20).João de Salisbúria insiste no carácter prático e de devoção da fé religiosa.

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Tal como a alma é a vida do corpo, também Deus é a vida da alma. Tal como ocorpo morre se a alma o abandona, também a alma perde a sua verdadeira vidase Deus a abandona (Entet.,181). Por isso o destino da alma o a sua felicidade consiste em entregar-se àacção da graça de Deus (Policrat., 111, 1).

Como se depreende, João de Salisbúria introduziu drásticas limitações àespeculação teológica e cosmológica ou, para melhor dizer, estabeleceu comolinha de princípios, a possibilidade e a eficácia. Debrucemo-nos sobre ostrês campos em que a investigação humana pode aplicar-se com uma certapossibilidade de sucesso: a matemática, a lógica, a política. Destes trêscampos, as obras principais de João de Salisbúria tratam dos dois últimos. OMetalogicus é o documento de interesse que João de Salisbúria escreveu sobreos problemas lógicos do seu tempo; além disso, é nesta obra que pela primeiravez se utiliza os livros Tópicos de Aristóteles. No que se refere ao problemados universais, João de Salisbúria ao mesmo tempo que dá notícia das soluçõesmais importantes oferece-nos importantes informações sobre as escolas lógicasdo tempo. A sua posição pessoal perante este problema é ecléctica masinclina-se bastante para a doutrina de Abelardo. Considera os universais comoformas ou qualidades comuns imanentes das coisas, formas que o intelectoabstrai das próprias coisas. Os universais (géneros e espécies) não sãosubstâncias que existam como natureza; na -realidade, só as substânciassingulares existem, substâncias a que Aris-

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tóteles chamou substâncias primeiras, e que são objecto do conhecimentosensível. Os géneros e as

espécies são produto da abstracção, figmenta rationis, que a razão cria a fimde melhor proceder na sua investigação sobre as coisas naturais (Metal., U,20). No entanto não são privados de verdade objectiva, porque correspondem auma conformidade efectiva das coisas singulares entre si: por issoAristóteles lhes chamou substâncias segundas, querendo com isto indicar que,sendo insubsistentes enquanto realidades singulares, são no entanto, algo dereal.

O intelecto humano pode erguer-se até aos universais apenas pela via daindução, partindo das coisas sensíveis. João de Salisbúria refere-se à

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doutrina aristotélica de que evidentemente aceita os resultados: "Osconceitos comuns são criados pela indução sobre as coisas singulares. Comefeito, é impossível chegar-se a considerar os universais senão através dasinduções que estão na base de todas as nossas noções abstractas. Mas éimpossível induzir aquilo que é desprovido de sensibilidade. Com efeito, ossentidos são a forma de conhecimento das coisas singulares e não é possívelter conhecimento das coisas singulares senão através dos universaisconseguidos pela indução; não é possível a indução sem a sensibilidade. Comefeito, dos sentidos deriva a

memória, da memória frequentemente repetida surge a experiência, e daexperiência os princípios da ciência ou da arte... E assim os sentidoscorpóreos, que são a primeira força e o primeiro exercício da alma, lançam osfundamentos de todas as artes e formam o conhecimento preexistente, que nãosó abro a vida aos primeiros princípios, como também aos géneros" (Metalog.,IV, 8). Trata-se, como é evidente, das mesmas considerações que encerram osSegundos Analíticos de Aristóteles, considera-

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ções cujo significado empirístico é sublinhado por João de Salisbúria.

O Policraticus é o único livro de filosofia política medieval anterior àdescoberta da Política de Aristóteles. As fontes da teoria nele exposta sãoCícero, Séneca e os textos patrísticos e a base da teoria é o conceitoestóico da lei natural como norma universal e perpétua à qual se submetem,mesmo as coisas. Esta norma é a imagem do querer divino, a custódia dasegurança, a unidade do povo, a regra do dever, o extermínio dos maus, apunição da violência e de todas as transgressões (Policrat., IV, 2). Nela sebaseia a relação entre o súbdito e o rei; e a diferença entre um príncipe eum tirano reside no facto de que o primeiro não só transgride a lei comoainda não se propõe a fazê-la respeitar a valer (1b., IV, 4). Por esta via,João de Salisbúria vai ao ponto de justificar o tiranicídio. Quanto ao resto,a sua doutrina, é inspirada nos princípios do teocracismo medieval.

§ 218. ALANO DE LILLE

Na direcção aberta pela escola de Chartres podemos integrar a obra de Alanode Lille (ab In.yulis, Lille ou Ryssel, na Flandres), chamado o DoctorUniversalis, falecido em Citeaux no ano de1203 e que foi professor em Paris. Entre as suas obras existe um

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Anticlaudiano que é uma espécie de enciclopédia do saber corrente; o Deplanctu naturae em verso e prosa, no qual as reminiscências mitológicas, asalegorias, e os ensinamentos morais se misturam com uma filosofia da naturezaproveniente da escola de Chartres; uma Ars praedicandi que é um manual depredicação; os Sermones; o Distinctiones dictionum theologicarum que é umaespécie de léxico das expressões bíblicas; o Contra135

haereticos e o Regulae de sacra theologia que são as suas obras teológicas.Recentemente foi atribuída também a Alano a paternidade de um Tractatus devirtutibus et vitiis e de uma Summa que começa com as palavras Quoniamhomines, ainda não publicada.

A figura de Alano poeta, cosmólogo e teólogo reproduz fielmente o cliché dosmestres de Chartres dos quais ele deduz, com igual fidelidade, todas as suasdoutrinas. Tal como os professores de Chartres, também ele é devedor deAbelardo, de quem reproduz, à letra, no seu Tractatus de virtutibus, asdoutrinas morais. A ú nica característica original da obra de Alano é a formasistemática que pretendeu dar às suas especulações teológicas, tendosobretudo em vista a tarefa a que se havia proposto: a de defender contradescrentes e heréticos (Maometarios, Judeus, Valdeses) a validade da fécristã. Por isso também Alano nos deixou uma clara definição dos limitesentre a razão e a fé. No prólogo do Contra haereticos, é assim que descreve oobjectivo proposto: "Ordenei diligentemente as razões prováveis da nossa féàs quais um espírito engenhoso e perspicaz dificilmente pode resistir, paraque aqueles que desdenham prestar fé às profecias e ao Evangelho sejam pelomenos convencidos pela razão humana. No entanto, se estas razões podeminduzir os homens a acreditar, não são suficientes para se conseguir uma féplena: não terá mérito aquela fé apoiada única e exclusivamente na razão. Anossa glória estará em compreender in patria (ou seja, no céu) aquilo queagora apenas podemos contemplar como num espelho e através de enigmas"(Contra haeret., prol.).

Começa aqui a distinção entre o domínio da razão e o domínio da fé e quereceberá a sua mais clara formulação em S. Tomás. A pretensão de compreendera verdade da fé na sua necessi-136

BERNARDO DE CLARAVAL (Retrato de El Greco)

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dade, de demonstrá-la como se fosse verdade de razão, pretensão que surge,por exemplo em Santo Anselmo, é aqui abandonada. O que é objecto de fé nãopode ser compreendido e por isso não é objecto de ciência. "Nada se podeconhecer que não se possa compreender, mas nós não apreende mos Deus com ointelecto, portanto não existe ciência de Deus. Somos, certamente, induzidospela razão a supor que existe Deus, mas não o sabemos com certeza,acreditamos apenas. Isto é a fé, uma presunção que nasce de razões certas,mas não suficientes para constituírem uma ciência. Como tal, a fé está acimada opinião, mas abaixo da ciência" (lb., 1, 17). A distinção entre ciência efé está aqui feita de forma bastante clara. A fé deve conservar o seu méritode conhecimento certo mas não demonstrativamente necessário; diferenteportanto da ciência.

Todavia, Alano tentou organizar cientificamente a teologia precisamente sobreo modelo da ciência mais rigorosa, a matemática. No escrito intituladoRegulae ou Maximae theologicae formulou os princípios da teologia, partindodo pressuposto de que "toda a ciência se baseia nos seus princípios como

nos seus próprios fundamentos", fixando, assim, as regras fundamentais daciência teológica, recolhendo e sistematizando os resultados da especulaçãoteológica. Destas regras, a primeira é a afirmação da unidade de Deus: "amónada é aquilo em virtude do qual todo o ente é uno": afirmação queóbviamente não é mais que o lugar-comum neoplatónico mas que assume umparticular relevo nos escritos de Alano, dada a posição polémica assumida porestes escritos.

Essa atitude polémica dirige-se em primeiro lugar contra a seita herética dosCátaros: cuja doutrina fundamental consistia no reconhecimento de um dualismofundamental de princípios: um óptimo e criador da ordem e da perfeição domundo, o outro

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Péssimo e criador da desordem, da luta e do mal. Deste segundo princípio aHyde de que falam os poemas chartrenses, informe, caótica e maligna, é umaboa expressão: no entanto, nesses poemas @i Ufle não tem força para secontrapor a Deus, é ela própria criada por Deus e submetida à ordem da

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Alma,do mundo-Natureza. Contra este dualismo (que implicava também o da condenaçãoe da salvação, considerados como dois estados não mediáveis entre si, nemmesmo através dos meios carismáticos da Igreja), a afirmação feita por Alanoda unidade de Deus como mónada primeira e absoluta, ainda que no seu carácterfilosófico já gasto, adquire um valor de novidade polémica. E não é po@ acasoque Alano utiliza e cita (na obra intitulada Aphorismi de essentia summaebonitatis Contra haeret., 1, 30, 3 1) o Uber de catísis: o texto de Próculoque está rigorosamente centrado sobre o conceito de Deus como absolutaunidade devia parecer a Alano o melhor antídoto contra qualquer concessãodualista. Com efeito, Alano afirma que a causa primeira, enquanto é simples eforma absoluta, é absoluta unidade, e, assim, a própria unidade absoluta; eque referidos a tal unidade, os atributos diversos exprimem sempre a mesmaessência simplicíssima (Reg. teol., 11). Como Abelardo, e muitos dos mestresde Chartres, Alano está ainda convencido que já os filósofos pagãos concebiamesta verdade e que, por exemplo, a conheciam Aristóteles e Hermes Trismegista(Contra haeret., 111, 3; Reg. theol., 3).

§ 219. O PANTEíSMO: AMALRICO DE BENA E DAVID DE DINANT

Algumas das mais importantes e mais debatidas teses da escola de Chartres têmum franco sabor panteístico. O panteísmo consiste em sustentar que

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a relação Deus-mundo seja necessária perante o próprio Deus: isto é, o mundoderiva de Deus como necessidade, quer como manifestação sua, quer como seuaspecto necessário, de tal modo que sem o mundo, Deus não seria Deus. Estatese está óbviamente implícita em todas as especulações teológicas quedefinem o ser de Deus ou o das pessoas da Trindade nos termos das suasrelações com o mundo: por exemplo, na tese de que o Espírito Santo é a Almado mundo e que a alma do mundo é a própria natureza; ou na tese de que o próprio Deus é a forma essendi ou essência de todas as coisas. A última tese ésem dúvida a mais explicitamente panteísta: entendida no sentido de que Deuscontém a essência (as formas, as ideias, os modelos de todas as coisas)

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leva-nos a considerar Deus como a essência das coisas e as coisas, na suaessência, como elementos necessários da essência divina. Estas conclusões vêmno entanto bastante esbatidas e atenuadas, por parte dos mestres de Chartres,com várias observações destinadas a acentuar a diferença entre o ser dascriaturas e o ser de Deus. Mas no período de que nos ocupamos, portanto dasegunda metade do século XII, essas mesmas concepções são ainda apresentadasem toda a sua crueza panteística por pensadores que não hesitaram em tirardelas as conclusões mais paradoxais. Temos notícia de dois destes pensadores,Amalrico de Bena e David de Dinant e sabemos que as suas ideias foramseguidas por numerosos grupos sobre os quais caíram as condenaçõeseclesiásticas.

E não se trata, na verdade, de teses que pertençam à esfera das discussõesteoréticas: pela única obra polémica que temos contra a seita de Amalrico, umescrito anónimo de 1210 e que tem o nome de Contra Amaurianos, sabemos que datese da presença de Deus em todos os seres, e portanto em todos os homenstambém, os sequazes de Amal-

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rico derivam a possibilidade para todos os homens de se salvarem mediante osimples conhecimento dessa presença divina, sem a necessidade de sesocorrerem dos dons carismáticos cuja eficácia era por eles negada: negandoassim todas as funções à administração eclesiástica que é a administradoradesses mesmos dons. Estas características relacionam estreitamente opanteísmo de Amalrico com as seitas heréticas que floresciam no século XII eque estavam todas ligadas na luta contra o privilégio, que a Igrejareivindica pela sua hierarquia, de administrar a salvação. Valdeses, Cátaros,Amaricianos, sustentam todos que o homem se salva através de uma relaçãodirecta com Deus ou que o próprio Deus o escolha manifestando-se nele ou aele: o panteísmo de Amalrico ou de David é antes de mais e sobretudo aexpressão metafísica de uma insurreição contra a hierarquia eclesiástica que,por seu lado, como é já assente, tinha raízes económico-sociais.

De Amalrico, nascido em Bena (no distrito de Chartres) sabemos apenas quemorreu em Paris, como professor de teologia em 1206 ou 1207. Das notíciasobtidas através de vários cronistas sabe-se que ensinava que Deus é a

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essência de todas as criaturas e o ser de tudo e que o criador e a criaturase identificam. Provavelmente estas teses, que se aproximam das que eramsustentadas por muitos mestres de Chartres, tinham para Amalrico osignificado mais próximo do que era defendido por Escoto Erígena; com efeito,ele afirmava que as ideias estão na mente divina, criam e ao mesmo tempo sãocriadas e que Deus é o fim de todas as coisas que a ele regressam e na suaunidade indivisível permanecem e estão (Gerson, Concordia nwtaphysicae cumlogica, in Opera, IV, 825). Mas a intenção de AmaIrico compreende-se melhorpelas

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consequências que ele tirava das próprias teses: Deus identifica-se com todasas coisas, disseminadas como estão no espaço e no tempo, identifica-se tambémcom o próprio tempo e com o espaço como se identifica com todos os homens queassim se unificam nele. Desta presença de Deus nos homens, Amalrico extrai anegação, como já foi dito, da validade dos sacramentos e do magistérioeclesiástico. Todas estas doutrinas foram condenadas no Sínodo de Paris de1210 e pela obra de Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão de 1215.

Do outro representante do panteísmo, David de Dinant (na Bélgica) não sabemosnada. Atribuem-se-lhe dois textos: De tomis hoc est de divisionibus quereproduz o título da obra principal de Escoto Erígena e Quaterni ouQuaternuli, nome por que foram indicados os escritos condenados a seremqueimados (Denifle, Chart., Univers. Paris., 1, 70). Mas provàvelmente estesegundo não é um título mas apenas o nome genérico dos opúsculos de David.Tomás de Aquino dá-nos a seguinte exposição da doutrina de David: "Daviddivide a realidade em três partes: corpos, almas e substâncias separadas. Aoprincípio indivisível de que são constituídos os corpos chamou hyle(matéria), ao princípio indivisível de que são constituídas as almaschamou noun ou mente; e chamou Deus ao princípio indivisível dassubstâncias eternas. David afirmou que estes três pii---ncípios são uma únicae idêntica coisa, concluindo-se assim que todas as coisas são pela suaessência uma só" (In Sent., 11, d. 17, q. 1, a. 1).

Segundo S. Tomás, a diferença entre a doutrina de Amalrico e a de David éque, para Amalrico, Deus é essência ou forma de todas as coisas, enquanto quepara David é a matéria. A mesma caracterização da doutrina de David é-

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nosdada por Alberto Magno (Sunma Theol., I, tract. IV, q. 20). Como seroriginário, Deus é o ser puramente poten-

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cial. David, provàvelmente, desenvolveu as implicações positivas da teologianegativa própria da sua época. Deus está fora de todas as categorias queconstituem o ser em acto; mas, fora das categorias, não há senão o ser empotência, que é a

primeira condição para a constituição de todas as coisas. David identificou oser em potência com Deus e uma vez que o ser em potência é a matéria-prima,identificou a matéria-prima com Deus.

§ 220. JOAQUIM DE FIORE

As seitas heréticas do século XII tinham entre si de comum a crença numaiminente e final renovação do mundo que elas designavam como o advento doreino do Espírito Santo. Sabemos que também os Amauricianos possuíam estacrença e sustentavam que depois da época do Pai e da do Filho, a época doEspírito Santo traria consigo a abolição de todas as formas legais esacramentais que tinham caracterizado a época precedente (Caesarius, Dialogusmiraculorum, ed. Strange, p. 306). Esta divisão das épocas históricas, paralá da esperança escatológica em que se baseia, parece ser sugerida pelasespeculações trinitárias que Abelardo tinha iniciado e que floresceram naescola de Chartres. A ela se encontrava, portanto, ligada a obra do maisfamoso e popular profeta do século XII, o abade Joaquim.

Joaquim de Fiore nasceu em 1145 em Dorfe Ceico, perto de Cozença. A partir de1191 foi abade do mosteiro por ele fundado em São João de Fiore, Calábria, eaí morreu em 1202. A lenda apoderou-se deste abade profético, cujos dadoshistóricos são escassíssimos. Segundo a biografia urdida por um frade deSeiscentos, Jaime Grego, que obteve informações pelas cartas do antigoconvento de Fiore,

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mas que certamente modificou e transfigurou, Joaquim de Fiore fez umaperegrinação à Terra Santa e passou por Constantinopla, tendo-se salvadomilagrosamente de uma epidemia, converteu-se ao ascetismo. Regressado àpátria, entrou no convento cistercense de Sambucina e passou depois para o deCorazzo, do qual foi abade. Em 1191 retirou-se para fazer a vida de

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anacoretae fundou então o convento de S. João em Fiore. Teria também de certo modoparticipado nos agitados acontecimentos históricos do seu tempo, dirigindo-sea Nápoles para

ZD ameaçar, pelas suas crueldades, Henrique IV que sitiava a cidade; e teriaobrigado a imperatriz Constança a prostrar-se a seus pés para obter o perdãodas suas culpas.

O abade Joaquim escreveu três grandes obras que mutuamente se completam:Concordia Novi et Veteris Testamenti, Expositio in Apocalypsim, Psalterimdecem cordarum. Além destas, escreveu também uma obra polémica de teologiacontra Pedro Lombardo De unitate seu essentia Trinitatis, que se perdeu: umtexto contra os judeus, Adversus Judeos; uma exposição sumária da fécatólica, De articulus fidei. Estas últimas obras são inéditas. Forameditadas recentemente os Tractatus super quattor Evangelia, cujaautenticidade levanta algumas dúvidas.

O interesse fundamental da obra de Joaquim de Fiore está na sua mensagemprofética. Pela sua visão da história chega a prenunciar uma renovaçãoiminente: o advento do reino do Espírito Santo. Mas a sua visão da história ébaseada num conceito da Trindade cristã; as suas especulações trinitáriasvinculam-se à sua mensagem profética. Essas especulações apresentam uma certaafinidade com as de Gilberto Porretano: ainda que não se possa falar de umadependência, dada também a diversidade de temperamento espiritual entre oteólogo Gilberto

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e o profético abade calabrês. A teologia de J. de Fiore está elaborada comvista à sua filosofia da história: insiste sobre a distinção e a autonomiadas pessoas divinas, para basear a distinção das três grandes épocashistóricas o para dar o necessário relevo à terceira, que é a futura, a doreino do Espírito. "Uma vez que também o Espírito em si mesmo é Deusverdadeiro, tal como o Pai e o Filho, também ele realiza alguma coisa àimagem e semelhança próprias, tal como aconteceu com o Pai e com o Filho"(Concordia, IV, 35). O saltério, título de uma das obras de Joaquim de Fiore,é precisamente a imagem da Trindade, na distinção das Pessoas e na unidadeque as liga. "Um altíssimo lugar ocupa o saltério de dez cordas entre as

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obras de Deus que sugerem o mistério da Trindade. Trata-se com efeito de uminstrumento musical unitário. Pode ser dividido em partes porque é feito dematéria, mas não pode sê-lo sem deixar de ser saltério. Como instrumento éuno; mas é triangular e está admiravelmente unido nos três lados. A unidadeindivisa vincula os três lados tão estreitamente que parecem um e cada um sereflecte nos três" (Psalt., fol. 230). A unidade de Deus não deve serportanto entendida de forma a que se anule a diversidade das pessoas: porque,nesses casos, seria impossível compreender a diversidade das obrAs e das,épocas históricas e deixaria de existir qualquer fundamento para a esperançanuma época de justiça e de salvação (Conc., fol. 8 e segs.).

Ás três pessoas da Trindade correspondem as três grandes épocas da história.O primeiro dos três estados é o que se desenvolve sob o domínio da lei,quando o povo do Senhor, ainda um pouco criança, servia sob os elementosdeste mundo, incapaz de alcançar a liberdade do Espírito, destinada a brilharquando tivesse surgido aquele que disse: "Quando o Filho vos vier libertar,sereis verda-

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deiramente livres". O segundo dos três estados é o da iniciação com oEvangelho, e que ainda perdura, em liberdade sem dúvida, se o compararmos como estado precedente, mas não em liberdade se pensarmos no futuro". "Por issodisse o Apóstolo (S. Paulo, 1 Cor., XIII, 12) "conhecemos agora apenas partee apenas em parte profetizamos: mas quando chegar a perfeição, tudo oque é parcial será anulado". O terceiro estado iniciar-se-á para o fim doséculo, não sob o véu opaco da letra, mas sim em plena liberdade deespírito... Como a letra do Antigo Testamento em virtude de uma certaanalogia parece pertencer ao Pai, e a letra do Novo Testamento ao Filho,assim a inteligência espiritual, que procede de um e de outro, pertence aoEspírito Santo. E como a ordem dos cônjuges, em virtude de uma analogiaevidente, pertence ao Pai e a ordem dos predicadores pertence ao Filho,também a ordem dos monges-a que estão destinados os grandes tempos finais,pertence ao Espírito Santo" ( Expositio, fol. 5 e segs.). O terceiro estadoque há-de vir será portanto caracterizado por uma inteligência da palavradivina, já não literal, mas espiritual: os homens conhecerão verdadeiramenteo seu significado real. Há um evangelho eterno que é a própria palavra

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deDeus, sob a letra das expressões evangélicas. Os próprios sacramentos sãosímbolos provisórios (mas nem por isso menos necessários) dessa realidade coma qual, no terceiro estado, o homem entrará directamente em comunicação(Super quattor evang., p. 8, 6). "0 primeiro estado viveu do conhecimento; osegundo desenvolve-se no poder da sapiência; o terceiro difundir-se-á naplenitude da inteligência. No primeiro reinou a servidão; no segundo aservidão filial; o terceiro dará início à liberdade. O primeiro estadodecorreu na flagelação; o segundo na acção, o

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terceiro decorrerá na contemplação. O primeiro viveu na atmosfera do temor; osegundo na da fé; o terceiro viverá na verdade" (Conc., V, 84, 112). Noterceiro estado, não só as almas, mas também os corpos serão transfigurados;o céu o a terra terão uma nova beleza e a morte e a dor desaparecerão.

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Guilherme de Conches: a Philosophia foi impressa com as obras de Beda In P.L., 90.,, 1127-1178; o Dragmaticon foi Impresso com o título Dialogus desubstantis physicis., Estrasburgo, 1567; ed. Parra, Paris, 1943; Glosas aoTimeu e Segunda e Terceira Filosofia, parcialmente em COUSIN, Ouvrage8inédits

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d'Abélard; outras partes das Glosas a Boécio o ao Timeu, em JOURDAIN, NOticeset extraits, ece., XX, 2, Paris, 1862, e no escrito de PARENT noutro ladocitado. -FLATTEN, Die Phil. des W. v. C., Coblenza, 1929; OTTAVIANO, Um ramoinédito da "Philosophia" de G. de C., Nápoles, 1935; PARENT, La doctrine deIa création dans 1'école de Chartres, cit.; GREGORY, op. cit.

Bernardo Silvestre: De mundi universitate, ed. Barach-Wrobel, 1nnsbruck,1876. - GILSON, La cosmogonie de B. d. S., In "Arch. Hist. Doet. de Ia Litt.m. a.", 1928; THORNDIRE, A History of Magic, 11, 1929.

§ 216. Gilberto de Ia Porrée: as Glosas a Boécio, juntamente com os opúsculosteolõgicos de Boécio, in P. L., 64.-, 1225-1412; de alguns destes comentáriosexistem edições recentes: De Hebdomadibus, in "Traditio", 1953; "ContraEutychen et Nestorium, in "Arch. Hist. Doctr. de Ia Litt. m. ã.", 1954;VANNI-ROVIGHI, La filosofia di G. P., in "Misc, dell'Università Catt. diMilano", 1956.

§ 217. João de Sa.Iisbúria: obras in P. L.@ 199.o: Policratus, ed. Webb,Oxford, 1909; Metalogicus, ed. Webb, Oxford, 1929; Historia pontificalis, ed.Poole, Oxford, 1927.-WEBB, J. of S., Londres, 1932; DAL PRA, G. di Salisbury,Milão, 1951 (com bibl.); HOHENLEUTNER, J. V. S. in der Literatur der letzenzehn Jahre, in " Hist. Jahrb.", 1958.

§ 218. Alano de Lille: obras in P. L.@ 210.o; Trac- tatus de virtutibus, aocuidado de Lottin, in "Medieval Studies", 1950; Suma quoniam homines, aocuidado de Glorieux, in "Arch. Hist. Doctr. de Ia Litt. m. ã.",1954; Anticlaudianus, nova ed. Bossuat, Paris, 1955. -BAUMGARTNER, em"Beitrage", 11, 4, 1896; PARENT, em "Beitrage", supp1. 111, 1935;

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VASOLI, Duestudi per Alano di Lilla, in "Riv. Crit. di St. della FiI.", 1961; Le ideefilofiche di Alano di Lilla, nel "De planctu" e neZ "Anticlaudianus", in"Giorn. Crit. delila ffios. itali.", 1961.

§ 219. Sobre AmaIrico de Bena e David de Dinant: HAUR£AU; Hist. de Ia philos.schol., 11, 1, p. 83-107; DUHEM, Système du monde, V, 244-260; CAPELLE, A. deB., Paris, 1932; DAL PRA, AmaIrico de Bena, Milão, 1951, com bibliografia.

§ 220. De Joaquim de Piore, as seguintes ediç.: Concordia Veteris et NoviTestamenti, Veneza, 1519: Expositio super apocalypsim, Veneza, 1527;Psalterium

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de-cem cordarum Veneza 1527; Super quattor Evangelia, Roma, 1930("Fonti,della Storia D'Italia"). Escritos menores: De articulis fidei, ed.Buonaiuti, Roma, 1936; Liber contra Lombardum (escola de J. de F.), ed.Ottaviano, Roma, 1934.-FOURNIER, Êtudes sur J. de F. et ses doctrines, Paris,1909; BUONAUTI, Gioacchino da Fiore: I tempi-La vita-II messaggio, Roma,1931; F. RuSso, Bibliografia Gioachimita. Florença, 1954; BLLOOMFIELD, J. ofP., "Traditio", 1957.

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VIII

O MISTICISMO

§ 221. CARACTERES DO MISTICISMO MEDIEVAL

O renascimento filosófico do século XII é também um renascimento domisticismo. Mais precisamente, esse renascimento torna possível oreconhecimento da mística como uma via autónoma de elevação para Deus, umavia que em qualquer caso é alternativa ou rival da investigação racional.Esta via não era ainda conhecida da primeira idade da escolástica: bastapensar nas obras de Escoto Erígena que punha na deificatio o último termo dainvestigação racional. Mas vendo bem, essa posição não surgia comoradicalmente distinta da posição racional e muito menos contraposta a ela. Ascondições históricas do século XII conduzem, pelo contrário, aoestabelecimento de tal distinção. Por um lado o número e a importância dascorrentes heréticas que florescem neste século, por outro a liberdadecrescente de que a razão faz uso no próprio domínio da especulação teológica,

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levam a encarar a via mística como correctivo

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eficaz que permite reconhecer em Deus e apenas em Deus a iniciativa e osustentáculo do esforço do homem na direcção da verdade. Com efeito, épróprio da mística a tentativa de aproximar-se da Verdade pela própria forçada Verdade; de se unir a Deus mediante a ajuda sobrenatural e directa de Deuse de deixar a ele apenas a iniciativa da investigação. O esforço do místico édirigido unicamente para o fim de se tornar digno de sofrer a iniciativadivina; já que é Deus que do alto o atrai a si e o ergue até à compreensãodos seus mistérios. Por isso a via mística consiste numa transumanizt@ção,vencendo os limites humanos para se abrir à própria vida de Deus e àbeatifica acção da sua graça.

Nos confrontos dos movimentos heréticos que concluíam todos por negarqualquer função ao aparelho eclesiástico, o misticismo oferecia a talaparelho um poderoso instrumento de defesa, porque lhe consentia reivindicarpara si a administração dos poderes carismáticos sem os quais a ascesemística não seria possível. E nos confrontos da razão, a que faziam apelo asescolas filosóficas contemporâneas, o misticismo oferecia ao mesmo aparelhoeclesiástico o modo de contrapor ao carácter incerto e até então erróneo dosresultados a que a razão conduzia, a certeza e a glória do êxito místico quepermitem reunir os poderes sobrenaturais da Igreja. Não é nada de espantar,portanto, que, na época de que agora nos ocupamos, o misticismo tenha servidoem primeiro lugar de arma polémica contra as aberrações das heresias e asdivagações da dialéctica; isto é , como arma polémica para afirmar o poder daIgreja e reforçar a ortodoxia doutrinal pela qual esse poder era justificado.

Mas não foi esta a única função do misticismo medieval. Decorrida a fasepolémica ou em concomitância com esta fase, o misticismo coloca-se,

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com o fundamento de uma mais nítida distinção dos limites entre a razão e afé, já não como alternativa rival da investigação racional mas comocomplemento e coroamento dessa mesma investigação. É nesta forma que aparecena escola dos Vitorinos e se conserva na escolástica sucessiva, até ao séculoXIV, em que a mística alemã assume de novo a posição anti-racionalista

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masdesta vez fora de qualquer preocupação de defesa da Igreja.

§ 222. BERNARDO DE CLARAVAL

Como arma de combate contra todas as formas de heresia religiosa oufilosófica e como instrumento de reforço do poder eclesiástico assim foientendido o misticismo por Bernardo de Garaval, chamado, pela sua eloquência,o doctor melifluus. Bernardo nasceu em Fontaines, perto de Dijon, em1091. Aos 21 anos torna-se monge em Citeaux e passados três anos abade doconvento de Claraval, onde morreu em 1153. Durante toda a sua vida foi umdefensor encarniçado da ortodoxia religiosa e da autoridade eclesiástica.Quando em 1130 foi oposto ao papa Inocêncio 11 o antipapa Anacleto II, a obrade Bemardo serviu para impedir o cisma e para convencer Anacleto a renunciarà sua oposição. No concílio de Sens de 1140 pregou contra os erros deAbelardo, que foram condenados. A segunda Cruzada de 1147 foi obra das suaspredicações. As doutrinas de Gilberto de Ia Porrée, encontraram nele umopositor violento. Fez igualmente valer, com idêntica força, as armas da suapolémica contra a seita herética dos Cátaros.

De grande importância histórica são as suas Epistolae. Contra Abelardodirigiu dois escritos: Contra quaedam capitula errorum Abelardi e Capitulahaeresum Petri Abelardi. Numerosos são, pois,

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os escritos místicos, entre os quais: De gradibus humilitatis et superbiae(composto em 1121); De deligendo Deo (em 1126); De gratia el libero arbitrio(1127); Sermones in cantica canticorum, De consideratione (1149-1152).

A doutrina de S. Bernardo, nos seus pontos essenciais, não é mais que o planoestratégico da luta contra as heresias, a favor da autoridade absoluta daIgreja. Os pontos fundamentais desta doutrina podem ser assim resumidos: 1) anegação do valor da razão; 2) a negação do valor do homem,3) a actuação do homem reduz-se à ascese e à elevação mística. Sobre oprimeiro ponto, Bernardo pronuncia-se sem reservas contra a razão e contra aciência. O desejo de conhecer surge-lhe como uma <dorpe, curiosidade" (Se. inCant., 36, 2). As discussões dos filósofos como "loquacidade cheia de vento"(Ib., 58, 7). " A minha filosofia mais sublime -proclama ele-é esta: conhecer

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Jesus e

a sua crucificação" (lb., 43, 4). Quanto ao segundo ponto, S. Bernardo afirmasem reservas que a única atitude possível ao homem é a da humildade, davirtude "pelas quais o homem, conhecendo-se verdadeiramente, sente vergonhade si próprio" (De gradibus humilitatis, 1, 2). Reconhecer-se a si própriocomo nada sendo é para o homem a condição indispensável para que possalibertar-se de todos os vínculos corpóreos e identificar inteiramente a

sua vida com o amor por Deus. O amor de que S. Bernardo fala baseia-se noconceito do De amicitia de Cícero e a linguagem do Cântico dos Cânticos éentendida por ele substancialmente como o

processo ascético de libertação do corpo e em geral de todos os vínculosnaturais e como pura obediência ou abandono à vontade divina. Os grausmais altos do amor consistem em amar a Deus por si mesmo e no amar-se a si próprio por amor de Deus: neste grau, o homem abandona a sua

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ALEGORIA DA CABALA

vontade inteiramente ao querer divino (De diligendo Deo, XIII, 36). Com esteascetismo do amor teológico coincide o processo da ascese mística, cujosgraus são significativamente identificados por S. Bernardo com os graus dahumildade. O primeiro grau da ascese mística é a consideração (consideratio),que é um intenso pensamento de investigação e uma intenção da alma queinvestiga a Verdade criadora.O segundo grau é a contemplação (contemplatio) que é a intuição corta, umaapreensão indubitável da verdade (De contemplatione, 11, 2). A primeiracontemplação é a admiração pela majestade divina que exige um coraçãopurificado do vício e do pecado. O supremo grau da contemplação é o êxtase ouexcessus mentis, pelo qual Deus desce sobre a alma humana e a alma se une aDeus. "Tal como uma gota de água que cai no vinho se dissolve e assume osabor e a cor do vinho; tal como o ferro candente e incandescente se tornasemelhante ao fogo e perde a sua forma própria; tal como o

ar que percorrido pela luz do sol se transforma em claridade luminosa atéparece mais que iluminado, transformado na própria luz; assim nos Santos todoo afecto humano necessariamente se dissolverá de modo inefável e quase

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setransformará na vontade de Deus. Com efeito, de que forma poderá Deus estarem todas as coisas, se algo de humano permanece no homem? É certo quepermanecerá a substância, mas com outra forma, com outra glória, com outropoder... Isto significa deificar-se" (De dil. Deo, 11, 28). O processo dedeificação do homem supõe que a alma olvide completamente o corpo. Conseguidoeste estádio, nada mais impede que o homem se afaste cada vez mais de si e seerga para Deus tornando-se semelhante a ele, na medida em que é possíveltornar-se semelhante a Deus. Neste estádio, o homem faz uma só coisa com oEspírito de Deus (lb., 11, 32; 15, 39).

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O único problema que S. Bernardo tratou filosoficamente é o da graça e dolivre arbítrio. Distingue três aspectos de liberdade: a liberdade danecessidade, a liberdade do pecado, a liberdade da miséria. A liberdade danecessidade é o livre arbítrio, que é próprio da vontade humana; não se perdenem com o pecado nem com a miséria, e não é maior no justo que no pecador, nem no anjo que no homem (De grat., 1, 2). O livre arbítrioconstitui a própria essência da liberdade humana. Tudo o que é voluntário é livre. A vida, os sentidos, o apetite, a memória, o engenho, e todas asoutras actividades humanas estão sujeitas à necessidade, quando não estãointeiramente submetidas à vontade (1b., 2, 5). A vontade é a faculdade deescolha: mas esta escolha não se exerce necessariamente entre o bem e o mal;Deus é livre nas suas acções, mas não se determina no mal. Contra EscotoErígena e com Sto. Anselmo, S. Bernardo nega que a liberdade consiste naescolha entre o bem e o mal. A possibilidade de escolher o mal não eessencial à liberdade, mas é antes uma imperfeição própria da liberdadefinita, o essencial da liberdade é a ausência de toda a coacção. Ao lado dolivre arbítrio está a liberdade do pecado e a liberdade da miséria. Mas,apesar do livre arbítrio fazer parte da nossa natureza, a liberdade do pecadoé-nos dada pela graça e a liberdade da miséria ser-nos-á reservada in patria,isto é, no céu: por isso o livre arbítrio pode ser chamado liberdade denatureza, a liberdade do pecado liberdade da graça, a liberdade da misérialiberdade de vida ou de glória (lb., 3, 7.)

Amigo de S. Bernardo foi Guilherme de S. Th,ierry, abade deste mosteiro de

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1119 a 1135 e falecido em 1148 ou 1153. Participou na luta contra Abelardocom um escrito redigido no Inverno de1138-1139, Disputatio adversus Abelardum e com

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uma carta na qual pedia a atenção de S. Bernardo para os erros de Abelardo. Étambém autor de obras místicas e exegéticas, Meditativae orationes, Decontemplando Deo, De natura et dignitate divini amoris. Nos dois livros Denatura corporis et animi, trata, no primeiro, da física do corpo humano e nosegundo da física da alma. O interesse desta compilação está no facto deGuilherme procurar a união da psicologia platónico-agustiniana com a damedicina greco-árabe, que conheceu através de Constantino Africano.

§ 223. ISAAC DE STELLA

O inglês Isaac foi monge em Citeaux, depois, de 1147 a 1169, abade de Stella,na diocese de Poitiers. A sua obra mais significativa filosoficamente é umaEpistola ad quendam familiarem suum de anima, escrita à volta de 1162.

lsaac parte de um pressuposto que tira de S. Agostinho e que voltaremos aencontrar em Descartes: para o homem, o conhecimento mais claro é o de Deus.Das três realidades, corpo, alma e Deus, o corpo é-nos menos conhecido que aalma e a alma menos conhecida que Deus. A alma é, de certo modo, a imagem dadivindade como disse Aristóteles, ela é a similitude de todas as coisas; eassim se transforma em meio entre o corpo e Deus. Cinco são os graus daactividade cognoscitiva da alma: o sentido corpóreo, a imaginação, a razão, ointelecto e a inteligência. Os sentidos percebem os corpos, a imaginaçãoconserva e reproduz as imagens sensíveis, mesmo na ausência dos corpos; arazão percebe as formas incorpóreas das coisas corpóreas. O processo da razãoé abstracção; e Isaac formula uma teoria da abstracção que será seguida edesenvolvida por S. Tomás de Aquino.*/*l155

"A razão, afirma ele, abstrai dos corpos as formas ou naturezas que no corposubsistem, mas abstrai-as não em acto, mas apenas ao considerá-las; o vendoque em acto subsistem apenas no corpo, percebe no entanto que elas não são opróprio corpo. Assim a razão percebe o que nem os sentidos nem a

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imaginaçãoconseguem perceber, ou seja, na natureza das coisas corpóreas as formas, asdiferenças, os atributos próprios e acidentais; todas as coisas ,incorpóreasque, não obstante, não existirem fora dos corpos, mas na própria razão" (P.L., 194.O,1884). Acima da razão, o intelecto é a força que percebe as formas das coisasincorpóreas, isto é, dos seres espirituais; e a inteligência. vê, na medidaem que é possível à sua natureza, o sumo ser, isto é, Deus na sua pureza eincorporeidade. Deste conhecimento supremo da inteligência, o homem recebe aluz para os conhecimentos inferiores. Aqui Isaac: reproduz a doutrinaagustiniana da iluminação exprimindo-a com os termos de Escoto Erígena: asverdades que através da inteligência descem de Deus ao homem são teofanias,manifestações de Deus (1b., 1888).

§ 224. HUGO DE S. VICTOR: RAZÃO E FÉ

S. Bernardo contrapõe a via mística à investigaçao racional. Aquela éconsiderada como a via da humanidade e da renúncia a toda a autonomia humana.No entanto, estas duas vias parecem fundir-se harmoniosamente em Hugo de S.Victor e concorrem para fazer dele uma das personalidades mais notáveis domundo medieval. Nasceu em 1096 em Hartingan na Saxónia e formou-se noconvento de Hamersleben, perto de Halberstadt. A partir de1115 foi para o convento de S. Victor em Paris e de

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1133 a 1141, ano da sua morte, foi professor naquele convento.

É, em primeiro lugar, autor de uma introdução à filosofia e à teologia com otítulo Eruditionis didascalicae libri VII ou, mais brevemente, Didascalioncujos três primeiros livros são dedicados às artes íiberais, os trêsseguintes à teologia, o último é um texto sobre a meditação. Dos quatrolivros de De anima apenas o quarto lhe pertence, enquanto o segundo pertenceprovávelmente a Alquério de Clairvaux. A sua obra maior é o De sacramentischristianae fidei que parece ter sido escrita entre1136 e 1141. Esta obra é a primeira summa teológica medieval. O obectivodeclarado da obra é o de fornecer um fundamento à interpretação alegórica dosmistérios cristãos. Com efeito, Hugo de S. Victor distingue em tais mistériosa alegoria que é o seu significado fundamental e a história que é o seu

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significado literal. Pretendo assim fornecer um guia para se poder ler asEscrituras com critério seguro e conseguir-se uma reconstrução alegórica quese subtraia à disparidade de pareceres. Juntamente com estas obras deinvestigação escolástica, escreveu também numerosos opúsculos místicos: Dearca Noe mystica, De arca Noe moral!, De arrha animae, De vanitate mundi,etc.

A atitude de Hugo de S. Victor perante a ciência é decididamente oposta à deS. Bernardo. Nada há de inútil no saber: "Aprende tudo, afirma, verás quenada é supérfluo" (Didasc., VI, 3). A própria ciência profana é útil àciência sagrada, à qual está subordinada: "Todas as artes naturais servem aciência divina o a sapiência inferior, ordenada com rectidão, conduz àsuperiom (De sacram., I, prol.5, 6). Em vez de contrapor entre si a ciência profana e a ciência sagrada, afé mística e a investigação racional, Hugo de S. Vietor procura estabelecerentre elas um equilíbrio harmónico e de as

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coordenar num único sistema. Desse modo tenta coordenar a via mística com ainvestigação racional: "Há dois modos e duas vias através das quais Deus, quepermanece primeiramente oculto no coração do homem, pode ser conhecido ejulgado: a razão humana e a revelação divina. A razão humana empreende deduas formas a investigação de Deus; em si e nas coisas que estão fora de si.Do mesmo modo a revelação de Deus actua de duas formas a fim de dissipar aignorância e a dúvida do homem: com a iluminação interior e com a doutrinaexteriormente transmitida e confirmada pelos miJagres" (1b., 1, 3, 3). Oscaminhos da razão são dados pela natureza, os da revelação pela graça. Uma eoutra servem-se tanto do interior como do que é exterior ao homem para oconduzir até Deus. E como se se coordenam entre si, tendo em vista o fimúnico do conhecimento de Deus, a investigação racional e a revelação, assimse coordenam também entre si para o mesmo fim os objectos da investigaçãohumana. Hugo de S. Victor distingue todos os objectos possíveis em quatrocategorias, determinadas pelas suas relações com a razão humana. "Certascoisas derivam da razão, outras são conformes com a razão, outras estão acimada razão, outras ainda estão contra a razão. As coisas que derivam da

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razãosão necessárias,- as que são conformes à razão, prováveís; as que estão acimada razão, admiráveis; e as contrárias à razão, impossíveis. As primeiras e asúltimas excluem a fé: as primeiras, derivando da razão, são absolutamenteconhecidas e não podem ser criadas porque se conhecem, as outras não podemser criadas porque a razão não pode assentar nelas. Portanto, podem serapenas objecto de fé as coisas que são conformes com a razão e as que estãoacima da razão. Nas primeiras, a fé é sustentada pela razão e é aperfeiçoadapela fé: se a razão não compreende a sua

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verdade, também não cria obstáculos a que a fé acredite nelas. Nas coisas queestão acima da razão, a fé não pode ser ajudada pela razão, que nãocompreende aquilo em que a fé crê; há nelas, no entanto, qualquer coisa queexorta a razão a venerar a fé, ainda que não a compreenda" (1b., 1, 3, 30).O domínio da investigação racional é agora rigorosamente distinto do da fé,como domínio da necessidade lógica absoluta: a fé não tem lugar no que édemonstrável ou evidente. Mas, por outro lado, a fé não se opõe à razãoporque o seu objecto seja incrível, mas porque é provável ou admirável, o quese aproxima da razão ou a transcende, sem no entanto a negar. O princípio deS. Tomás, o da graça que completa a natureza sem a destruir, encontra aquipela primeira vez uma clara formulação. A esta classificação dos objectos doconhecimento, corresponde a classificação das correspondentes posiçõessubjectivas. Estas posições são : a negação, a opinião, a fé e a ciência. Anegação, a opinião, e a fé dirigem-se não à coisa, mas ao que se ouve, dizerda coisa. Apenas na ciência a própria coisa está realmente presente; aciência é conhecimento perfeito, porque convalidade e garantida pela presençaprópria do seu objecto (1b., I,10, 2).

Viu-se já como a ciência é também o único conhecimento necessário; e estanecessidade vem-lhe da lógica que é o seu instrumento indispensável. Asciências experimentais, como a física, pressupõem as ciências puramentelógicas, tal com a própria lógica e a matemática; uma vez que a experiênciapor si só é falaz e só na pura razão existe e garantia indiscutível daverdade.

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Hugo de S. Victor extrai da obra de Abelardo * teoria aristotélica daabstracção. A matemática * a física constituem, graças à abstracção, o seuobjecto. A matemática considera distintamente os

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elementos que nas coisas naturais se encontram confusos entre si; e assim,ainda que, na realidade, a linha não exista sem a superfície e o volume, arazão considera, na matemática, a linha em si, prescindindo da superfície edo volume. Isto, porque a razão frequentemente considera as coisas, não comoelas são, mas como podem ser, isto é: não em si mesmas, mas em referência aela própria (Didasc.,11, 18). Do mesmo modo, a física considera distintos uns dos outros oselementos que nos corpos do mundo se encontram confundidos, isto é, o fogo, aterra, a água e o ar; e julga todos os corpos como um produto da composição eda força de tais elementos (1b., 11, 18). Como muitos representantes daescola de Chartres, Hugo de S. Victor admite a composição atómica doselementos (De sacram., 1,6, 37) e afirma o princípio da conservaçao da matéria, princípio que apoia naautoridade de Pérsio (Sat., 111, 84): de nihilo nihil, in nihilum nil possereverti (Didasc., 1, 7).

§ 225. HUGO DE S. VICTOR: A TEOLOGIA

Vimos já que tanto a investigação racional como a mística apoiada e baseadana graça se distinguem consoante partam do interior ou do exterior do homem.A demonstração racional da existência de Deus, como momento necessário dainvestigação filosófica, divide-se também consoante parta da consideração dohomem ou da consideração das coisas exteriores. O espírito humano reconhece-se a si próprio como uma realidade existente e com este reconhecimentodistingue-se dos corpos e de tudo o que conhece. Mas enquanto se percebeexistente, reconhece também que nem sempre existiu, que o seu ser teve umprincípio e que não é ele pró prio o princípio do seu ser. Por isso é levadoa reco-

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nhecer uma causa criadora que seja o fundamento da sua existência. E como nãopode pensar que esta causa criadora tenha s-ido por sua vez criada sem

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seintegrar num processo ad infitzitum deve admitir que tal causa subsiste em sie que o ser da mesma não tenha princípio, mas seja eternamente real (Desacram., 1, 3, 6-9). À mesma conclusão se chegará pela consideração dascoisas externas. Todas as coisas que têm nascimento e morte devem ter umaorigem e um criador. Tudo o que é mutável nem sempre existiu e por isso deveter tido um princípio. Deste modo as coisas externas confirmam o que a almaencontra em si; e a natureza revela o seu autor tal como o revela a própriaalma (1b., 1, 3, 10).

Tal como a existência de Deus, também a Trindade pode ser demonstrada atravésdas duas vias, interna e externa. No homem de palavra interior revela-se napalavra exterior; assim em Deus a palavra interior, qu,@ é a sua eternaSapiência, reveIa-se na palavra externa, que é o mundo criado. No nossoespírito, a razão, a sabedoria que- nasce da razão, e o amor, que procede deambas são uma única realidade-, assim em Deus espírito, sapiência e amorconstituem uma única substância. Mas, enquanto que no nosso espírito asabedoria e o amor não têm personalidade porque são puros acidentes ouafeições do espírito, em Deus a Sapiência, e o Amor são o próprio ser deDeus, são o que o próprio Deus é, por conseguinte, pessoas. Assim, em Deus hátrês pessoas numa só natureza, enquanto que no homem há uma só pessoa, aqual, com as diversas qualidades da sua vida interior, corresponde à TrindadeDivina, sem no entanto a reproduzir adequadamente (Ib., 1, 3, 25). As coisasexteriores reproduzem também a divindade. A grandeza do mundo corresponde aopoder divino, a sua beleza, à sabedoria, o seu finalismo e a sua

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conformidade às necessidades do homem, à bondade (lb., 1, 3, 28). Deus criouo mundo não apenas secundum se, mas também propter se. Secundum se, ou seja:em conformidade consigo próprio, porque não tomou do extenor ou que foi obrasua; propter se, ou seja: por sua própria causa, porque não recebeu de outroa causa da sua acção criadora (1b., 1, 2, 3). Hugo de S. Victor distingue, apropósito da criação, as coisas que são apenas causa, das que são apenasefeito, e as que são ao mesmo tempo causa e efeito O que é apenas causa e não é efeito é Deus, como causa suprema. No extremooposto está aquilo que é apenas efeito o não é causa, a matéria, de que sãocompostas as coisas criadas. Entre estes dois extremos estão e movem-se

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todasas outras coisas, que estão entro si numa relação de causa e efeito e assimvão desde a causa primordial até à matéria. Deus criou em primeiro lugar amatéria informe; mas tal matéria não era informe a ponto de ser absolutamenteprivada de forma, porque o que é privado de forma é privado de existência,era informe apenas no sentido de que era confusa e mesclada (formaconfusionis), privada de ordem e de disposição (forma dispositionis) que emseguida teve de Deus (lb., 1, 1, 4).

Em polémica com Abelardo, que tinha afirmado que Deus não pode fazercoisa diferente daquilo que faz, nem aquilo que faz pode fazê-lo melhor doque fez, Hugo de S. Victor sustenta que Deus teria também podido criar ummundo melhor. Com efeito, a razão porque Deus não pôde criar um mundo melhorpode ser devida ao facto de ao mundo não faltar qualquer possível perfeiçãoou ao facto de o mesmo não ser susceptível de urna maior perfeição. Más noprimeiro caso, o mundo seria semelhante ao Criador e assim o Criador seriacoagido aos limites do finito ou então o mundo

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elevado para além desses limites; e tanto uma hipótese como a outra sãoimpossíveis. Se se pode afirmar a incapacidade do mundo de assumir umaperfeição maior, isto é já uma prova de que o mundo não é o melhor nem o maisperfeito, porque esta incapacidade é, por si, defeito e imperfeição. Naverdade, apenas Deus é de tal modo perfeito que não pode ser mais perfeito. Omundo criado não participa destaperfeição absoluta e por isso Deus teriapodido criá-lo ainda melhor do que realmente o criou. Ele não pode fazerapenas o que é impossível, uma vez que "não poder o impossível não é nãopodem Ub., 1, 2, 22).

A criação não é uma acção necessária de Deus, mas uma livre manifestação dasua bondade. A decisão e a vontade de criar os homens estão desde aeternidade em Deus, mas a própria criação não é eterna. Deus quis sempre queo mundo existisse, mas não quis que ele fosse eterno: o querer criador deDeus é eterno, e o que é criado não é eterno (1, 2, 10). Na criaçãoparticiparam não só o poder e a bondade de Deus, como também a sua sabedoria.A sabedoria divina é ciência, presciência, disposição predestinação,providência: ciência das coisas existentes, presciência das coisas futuras,

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disposições das coisas a fazer, predestinação dos homens para a salvação,providência daqueles que estão sujeitos ao querer divino. Desde a eternidadeque todas as coisas criadas existiam no conhecimento divino; mas isso não astorna necessárias. As coisas não chegam necessàriamente ao ser porque forampensadas por Deus. Podem também não se tornarem reais e neste caso as ideiasdivinas não são causas das coisas. Só a vontade divina pode transformar asideias divinas em realidade criada (lb., 2, 16-18).

À vontade divina se referem todas as determinações de valor. Deus não quiscerta coisa apenas porque é bom e justo, mas tudo o que é bom e

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justo é-o porque Deus o quis. Com efeito, o ser justo é propriedade essencialdo querer divino. "Quando se pergunta porque é que é justo o que é justo épreciso responder: porque é conforme com a vontade divina, que é justa. Equando se pergunta porque é que a vontade de Deus é justa, é precisoresponder: não há causa da primeira causa e ela é por si o que é" (1b., 1, 4,1).

Se a vontade de Deus é o próprio bem, a presença do mal no mundo deve serexigida pela bondade conjunta do mundo. Deus fez o bem e permitiu quehouvesse o mal, apesar de não ser o seu autor. E apesar de o mal ser econtinuar a ser como tal, como tal é e continua a ser o bem, e é por bem queexiste o bem e o mal. Com efeito, o bem deriva não apenas do bem, mas tambémdo mal; através da oposição entre o bem e o mal resulta mais evidente abeleza e a ordem conjunta do mundo. Por isso é um bem existir o mal e esse éo motivo pelo qual Deus permitiu que o mal existisse (lbid., 1, 4, 5-6).

§ 226. HUGO DE S. VICTOR: A ANTROPOLOGIA

O homem está no cume do mundo sensível. Segundo a Sagrada Escritura, o homemfoi criado depois de todas as outras coisas, e isto aconteceu porque ele é oprimeiro de todas as criaturas sensíveis e todo o mundo sensível foi criadopara ele. Deus criou o homem para o servir; e criou o mundo para que estesirva o homem. O homem é um ser finito, precisa da ajuda exterior quer parase conservar tal como é, quer para chegar a ser o que não é ainda. Foi

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colocado no centro do mundo sensível para que dele se sirva como de uma ajudanecessária à sua conservação. Mas está destinado a

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servir a Deus e assim alcançar aquela plemitude e felicidade que não possuiainda. Para ele existe um duplo bem, um bem de necessidade e um bem defelicidade: o primeiro é-lhe dado pelas coisas do mundo, o segundo pelopróprio Criador. O primeiro suige criado por causa do homem e para se lhetornar útil; o segundo é o fim para que foi criado o homem (De sacrum, 1, 2,1). Sendo este o lugar do homem no mundo, distinguem-se na própria naturezado homem duas partes, o corpo e a alma. A alma é, em contraposição com ocorpo, uma substância simples e espiritual. Juntamente com Boécio, Hugo de S.Victor distingue o intelectível e o inteligível: o intelectível é o que não ésensível e não é semelhante ao sensível; o inteligível é que, apesar de nãoser sensível, tem relações de semelhança com o sensível. A alma éintelectível porque não é nem sensível nem semelhante ao sensível; mas é aomesmo tempo inteligível porque é dotada de sensibilidade e de imaginação epode assim compreender o sensível (Didase., 11, 3, 4). Como tal, por um lado,está em relação com o sensível e, por outro, em relação com o supra-sensível.A sua relação com o sensível é baseada na sua sensibilidade, a relação com osupra-sensível é baseada na inteligência. Entre as faculdades sensíveis e ainteligência está a razão, que é a faculdade discursiva (De sacrum., 1, 1,19). Definida com Boécio a pessoa como "uma substância individual de naturezaracional", Hugo atribui a personalidade à alma em si e por si. O corpo nãocontribui para formar a pessoa, e apenas se une a ela. A própria alma comotal, é pessoa (1b., 11, 1, 11). A característica fundamental da alma comopessoa é a autoconsciência. Nas pegadas de S. Agostinho, Hugo de S. Victorinsiste na necessidade e no valor da consciência da própria existência. "Nãoexiste sábio que não saiba que existe. E no entanto o homem,

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se começa a considerar verdadeiramente aquilo que é, compreende que não énenhuma das coisas que percebe ou pode perceber em si mesmo. O que em

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nós écapaz de razão, ainda que, por assim dizer, esteja confundido com a carne,distingue-se no entanto da substância da carne e compreende o que é distintodela (Didasc., VII, 17).

Este pensador reconhece ao homem a liberdade como faculdade de escolha,privada de determinações necessitantes. A liberdade é o fundamento da vidamoral do homem que sem ela seria impossível.* princípio objectivo desta vida é a lei de Deus.* bem é o que é conforme com esta lei, o mal é a negação daquiilo que a leiprescreve. Com o bem, o mal tem o seu fundamento na livre vontade, e não vêpositivo nem negativo; é um puro nada (1b., 1, 7, 16).

§ 227. HUGO DE S. VICTOR: o MISTICISMO

A via mística para alcançar a visão directa de Deus tem três momentosprincipais: o pensamento, a meditação e a contemplação. O pensamento(cogitatio) é determinado pela presença na alma de uma coisa em imagem, queou provém dos sentidos ou é suscitada pela memória. A meditação (meditatio) éo contínuo e sagaz exame do pensamento, que se esforça por explicar o que éobscuro e de penetrar no que está oculto. A contemplação (contemplatio) é alivre e perspicaz intu-ição da alma que se difunde sobre as coisasexaminadas. A contem- ,plação possui aquilo que a meditação procura: a visãomanifesta e completa. Por seu lado, a contemplação cinde-se na consideraçãodas criaturas e na contemplação do Criador, que é o seu grau último eperfeito (De nwd. dicend. et meditand., 8). Este último grau é a contemplaçãomística, na qual a

ascese para Deus se identifica com a clausura na

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própria intimidade espiritual: "Aquele que entra dentro de si e, penetrandointernamente em si próprio, se transcende verdadeiramente sobe até junto deDeus" (De vanitate mundi, 2).

§ 228. RICARDO DE S. VICTOR: A TEOLOGIA

O terceiro dos grandes místicos desta época é Ricardo de S. Victor. Escocêsde nascimento, cedo se dirigiu a Paris e entrou para o mosteiro de S. Victor.Aqui se cultivou guiado por S. Hugo e, pela morte deste, sucedeu-lhe no

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ensino e no priorado. Morreu em 1173. Ricardo é, como Hugo, escolástico emístico. Entre as suas obras escolásticas há um tratado em três livros Detrinitate e um texto De verbo incarnato. Entre as obras místicas: Depreparatione ad contemplationem chamado também Beniamin minor; De gratiacontemplationis chamada também Beniamin maior; De statu interioris hominis;De exterminatione mali.

Ricardo distingue a verdade fundada na experiência, da verdade fundada narazão e da verdade fundada na fé. O homem conhece as coisas temporais atravésda experiência; as coisas eternas em parte com a razão, em parte com a fé. Doque é eterno, com efeito, nem tudo pode ser conhecido através da razão, hámuito que só pode ser revelado por Deus e tem, por conseguinte, comopressuposto a fé (De trinit., 1, 1). Todavia, Ricardo não desiste deprosseguir na sua busca ideal da demonstração apodítica. Na sua obra Sobre aTrindade declara a sua intenção de acrescentar em apoio da fé razões não sóprováveis, como necessárias, e exprime a confiança de que tais razões nãofaltam (1b., 1, 4).

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Estas razões dizem respeito, em primeiro lugar, à existência de Deus. Talcomo Hugo, ele também prefere partir da experiência para a demonstração deDeus em homenagem ao princípio (sobre o qual insistirá S. Tomá s) de que"todo o nosso processo demonstrativo tem início naquilo que conhecemos pelaexperiência" (Ibid., 1, 7). A sua argumentação consiste essencialmente emascender das coisas finitas, que não têm ser por si, a um princípio que tem oser por si e é eterno. Se este princípio não existisse, as coisas que não têmser por si não teriam podido recebê-lo do nada e portanto não existiriam. Aexistência mutável do ser contingente demonstra a eternidade do sernecessário (1b., 1, 6).

Da experiência, Ricardo parte também para demonstrar a trindade de Deus. Aexperiência demonstra que o raio de sol, ainda que procedendo do sol e tendoa sua oriaem nele, é no entanto seu contemporâneo. O sol produz por si o raioe em tempo algum carece dele. Ora se a luz corpórea tem um raio que é seucontemporâneo, porque razão não terá também a luz espiritual um raio seu

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coeterno? Não é admissível que a natureza divina, princípio de toda afecundidade, tenha ficado estéril em si mesma e não haja gerado nada, ela quedeu a todas as coisas a possibilidade de gerar. É portanto provável que naincomutabilidade supraessencial de Deus haja algo que não existe por sipróprio e seja todavia ab aeterno (1b., 1, 9). Esta probabilidade torna-secerteza se se considerar a perfeição do poder, na beatitude e do amor divino.Esta perfeição implica a possibilidade de uma comunicação mediante a qualDeus possa difundir a abundância infinita da sua vida. Uma dualidade depessoas torna-se necessária para que Deus não seja privado dessa comunicação,sem a qual a sua vida seria estéril e solitária (Ibid. HI, 11). Mas umadualidade não basta: a comunicação não é perfeita se não

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se pode difundir além de si, para uma terceira pessoa co-igual. A perfeiçãodo amor pressupõe que tal possa estender-se a uma tercelra pessoa que sejaigualmente amada e que seja igual em dignidade e em potência. A perfeição doamor e em geral da vida divina requer portanto a trindade das pessoasdivinas, sem a qual não haveria a inte- ,-,ridade da sua plenitude (1b.,111, 11). A Trindade divina deve ser constituída por pessoas que tenham osnossos atributos. A perfeição da divindade ,implica a perfeição da Potência,a perfeição da Sabedoria, a perfeição do Bem. Assim como é omnipotente umadelas, assim são as outras; assim como uma delas é infinita, assim são asoutras: assim como uma delas é Deus, assim são Deus também as outras. Masexiste apenas um só Deus, porque assim como as três pessoas são igualmenteomnipotentes, assim as três são igualmente Deus.O que significa que as três pessoas tenham uma única e idêntica substância,ou melhor, que sejam uma única e mesma substância (Ibid., 111, 9). Enquantoque no homem existe mais que uma substância (alma e corpo) mas uma só pessoa,em Deus existe uma só substância e várias pessoas. À definição boeciana depessoa, aceite já por Hugo como "substância individual de natureza racional",Ricardo acrescenta a determinação "dotada de existência incomunicável" (Ib.,IV, 18). A interpretação trinitária de Ricardo constitui na escolástica umafórmula fundamental que foi seguida sobretudo pela escola franciscana.

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§ 229. RICARDO DE S. VICTOR: A ANTROPOLOGIA MíSTICA

O pressuposto de Ricardo é a unidade e a simplicidade da natureza humana. Aalma é uma essência simples e espiritual que comunica ao corpo vida

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e sensibilidade: A alma e o espírito não são no homem duas substânciasdiversas, mas constituem uma única essência; o espírito é a faculdadesuperior da alma, mas não se distingue substancialmente dela. Tal como osobjectos se dividem nas três classes do sensível, do -inteligível (mundoespiritual) e do intelectível (Deus) assim se dividem em três faculdades ospoderes da alma; imaginação, razão, inteligência. A função da imaginação é ade receber e conservar as percepções sensíveis. A razão é a capacidade depensamento discursivo, que procede demonstrativamente de uma verdade paraoutra. A inteligência são os olhos espirituais que vêem as coisas invisíveisna sua presença real, como os olhos da carne vêem o que é visível (Decontempl., 111, 9).

Nestas três faculdades se baseia a via mística ao procurar a união com Deus.O pensamento (cogitatio) baseia-se na imaginação; a meditação (meditatio) narazão e a contemplação (contemplatio) na inteligência. "0 pensamento vagueialentamente por aqui e por ali, sem se preocupar com uma meta. A meditaçãotenta esforçadamente prosseguir através de obstáculos e dificuldades nadirecção de um fim. A contemplação circula em voo livre, por onde quer queexpanda o seu ímpeto e com uma extraordinária agilidade.

A contemplação é o último estádio da via mística. Duas são as suas condiçõesfundamentais. Em primeiro lugar, a pureza de coração, condicionada pelavirtude; em segundo lugar, o conhecimento de si. Ricardo compara a razão e avontade do homem às duas mulheres de Jacob, Raquel e Lia. Tal como Jacob seuniu primeiro a Lia e dela teve sete filhos e sete filhas, e em seguidadesposou Raquel e gerou dela, assim também a vontade humana é primeirofecundada pelo espírito de Deus, que gera nela as virtudes; em seguida arazão humana, desposando a graça divina, gera o conhe-

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cimento mais alto. As virtudes são portanto os filhos de Lia, mas a vidamística começa apenas com o conhecimento que a alma tem de si. O último filhode Jacob e de Raquel, Benjamim, é o símbolo desse conhecimento de si,

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que éa verdadeira e própria -introdução à união mística com Deus (De praep. adcontempl., 67-71). "Aprenda o homem a conhecer o que há nele de invisível,antes de conhecer o que há de invisível em Deus. Se não te podes conhecer ati próprio, como pretendes poder conhecer aquele que está acima de ti?" (lb.,7).

Seis são os graus fundamentais da contemplação.O primeiro, in imaginatione et secundum imaginationem, considera o mundosensível como tal, relacionando a perfeição e a beleza com a potência,sabedoria e bondade de Deus. O segundo, in imaginatione et secundum rationem,considera o mundo sensível nos seus dois princípios e assim nos conduz domundo sensível ao mundo inteligível. O terceiro grau, in ratione et secundumimaginationem, relaciona o sensível com o supra-sensível e assim tem emconsideração as ideias das coisas. O quarto grau in ratione et secundumrationem considera a alma e os espíritos puros, como sejam os anjos.O quinto grau, supra rationem et non praeter rationem, dirige-se a Deus namedida em que ele é cognoscível pela nossa razão. O sexto e últrro grau,supra rationem et praeter rationem, considera os atributos da divindade quetranscendem em absoluto a razão humana, por exemplo, os que se referem àTrindade (De contempl., 1, 6).

Os graus de ascese progressiva da alma para a verdade suprema podemdistinguir-se também pela qualidade subjectiva dos seus actos. Alguns delesimplicam, com efeito, o dilatar-se (dilatatio) da mente, outros o levantar-se(sublevatio) outros a alienar-se (alienatio) da mente de si mesma. O dilatarda mente consiste em expandir-se e em agudizar

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as suas capacidades, sem que, no entanto, transcendam os limites humanos. Oelevar-se da mente é o estado em que ela permanece iluminada pela luz divinae transcende os limites da capacidade humana. Finalmente, o alienar-se damente é o abandono da memória de todas as coisas presentes e a transfiguraçãonum estado em que já não há nada de humano Ub., V, 2). O primeiro destesgraus é devido à actividade humana, o terceiro apenas à graça divina, osegundo a uma e a outra. No terceiro grau, está o ponto culminante dacontemplação, o êxtase ou excessus mentis. Som invólucro e sem sombras, nãomais per especulum et in enigmate, o homem contempla então a luz da sabedoria

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divina. Neste estado não existe já sensibilidade, nem memória das coisasexternas e a própria razão humana se cala. A mente é arrebatada lá de siprópria e todos os limites da razão são superados. Morre Raquel e nasceBenjamim. A morte de Raquel significa o desaparecimento da razão (De praep.ad contemp., 73).

A mística de Ricardo é a expressão fundamental e típica do misticismomedieval. Ricardo viu nitidamente que a via mística conduz à abolição detodos os limites humanos para colocar o homem face a face com Deus.

NOTA BIBLIOGRÁFTCA

§ 221. GEBRART, L'Italie mystique, Paris, 1890,8.a ed, 1917; BERNHART, Die philosophische M-.ystik des Mittelalters, Berlim, 1922; R. OTTO, West-õstliche Mystik, Berlim, 1926; STOLZ, Theologieder Mystik, Ratisbona, 1936; DANIÉLOU, Platonisme et théologie mystique,Paris, 1944.

§ 222. As obras de S. Bernardo em P. L., 182.---185.I.Uma edição crítica estáem preparação em Roma. Oeuvre8, escolha e tradução francesa de Davy, 2 vols.,Paris, 1945.-COULTON, St. B., Cambridge, 1923; MI-

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TERRE, La doctrine de St. B., Bruxelas, 1932; GILSON, La thélogie mystique deSt. B., Paris, 1934; BAUDRY, St. B., Paris, 1946; ANTONELLI, B. di C.,Milão, 1953 (com bibli.); DELHAYE, Le problème de Ia conscience morale chezSt. B., Namur, 1957.

As obras de Guilherme de S. Thierry, em P. L.,180.1, 205-726. Outros textos foram editados através das obras de S.Bernardo, em P. L., 184.o, 365-436. A carta que acompanha a Disputatio contraAbelardo, em P. L., 182.-, 531-532. Edições recentes: Meditativae orationes,ed. Davy, Paris, 1934; Epistola ad fratres de Monte, Dei, ed. Davy, Paris,1940; Commentario ad Cantico dei cantici, ed. Davy, 1958; De contemplandoDeo, ed. Hourlier, Paris, 1959;-DAVY, Thélogie et mystique de G. de St. T.,La connaissance de Dieu, Paris, 1954.

§ 223. As obras de Isaac, em P. L., 194.o, 1689-1890.-BERTOLA, La dottrinapsicologica di Isacco di Stella, in. "Riv. @di Fil. NeoscoI.", 1953.

§ 224. As obras de Hugo, em P. L., 175.---177.o. Dois outros escritos deHugo: Epitome in philosophiam e De contemplatione et eius speciebus forampublicados por I-IAuREAu, Hugues de St. Victor, Paris, 1859,

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2.1 @ed. com o titulo Les oeuvres de Hugues se St. Victor, Paris, 1886.

Outras edições: Didascalion, ed. Buttimer, Washington, 1939; La contemplationet ses espèces, ed. Baron, Paris, 1958. - BARKHOLT, Die Ontologie H. s. V.,Bonn, 1930; KLEINZ, The Theory of Knowledge of H. of St. V., Washington,1944; BARON, Science et sagesse chez H. de St. V., Paris, 1957.

9 225. Sobre as provas da existência de Deus: GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3,1907, p. 69-77.

§ 226. Sobre a psicologia: OSTLER em "Beitrãge", vi, 1, 1906.

§ 228. As obras de Ricardo, em P. L., 196. . Outras edições: Les quatredegrés, ed. Dumeige, Paris,1955; De trinitate, ed. Ribaillier, Paris, 1958; LibeT exceptionum, ed.Chatillon, Paris, 1958; Sermons et opuscules inédits, trad. frane., Paris,1951.-OTTAVIANO, Riceardo di S. Vittore, Roma, 1933; DUMEIGE, R. de St. V.,Paris, 1952.

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IX

A SISTEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA

§ 230. SENTENÇAS E SUMAS

A dificuldade de se encontrar os raros e custosos manuscritos tinhadeterminado na Idade Média o uso frequente de compêndios e excertos. Odesenvolvimen,to da cultura medieval manifesta-se com a modificação danatureza destas compilações. A princípio eram constituídas por excertostirados de um só autor ou também de vários autores, mas destituídos dequalquer ordem. Por exemplo, o Sancti Prosperi liber sententiarum exAugustino delibatarum é uma compilação de cerca de quatrocentos excertosquase todos de Santo Agostinho e reunidos sem nenhuma ordem. Os manuscritosmedievais contêm um grande número de excertos ou Sententiae deste gênero. Omais célebre é o Liber Pancrisis, que remonta ao século XII e contémsentenças dos Santos Padres e de mestres contemporâneos, como Guilherme deChampeaux, Anselmo de Laon e outros. Em seguida, os excertos foram agrupados

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segundo a ordem das Sagradas Escrituras. Os textos eram algumas vezes de umsó doutor, outras vezes de mais. A primeira compilação do gênero é a dePatério, secretário de S. Gregório, que reúne a explicação dos textosbíblicos contida na obra do Santo. De mais autores foram extraídos os textos

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recolhidos por Beda o Venerável e por Rabano Mauro, que acrescentaram aospróprios textos comentários pessoais.

Mas havia outras compilações nas quais as sentenças dos Padres eramreagrupadas segundo uma ordem mais ou menos lógica. Isidoro de Sevilha é oautor de uma obra deste gênero que intitulou Sententiarum libri tres, e queem seguida foi citada com o titulo De summo bono. Estas recolhas de textosque seguiam uma ordem mais ou menos lógica, eram designadas com o nome deSententiae.mas, progressivamente, a parte correspondente à elaboração pessoalna explicação e nos comentários dos excertos era cada vez maior. No entanto,as recolhas continuaram a manter o nome de Setaentiae, uma vez que o textooriginal não era mais que a explicação e o comentário das sentençastranscritas. Abelardo reformou profundamente este costume literário. A partirdele as obras que mantiveram o nome de Sententiae passaram a ser compêndiossistemáticos, completos e racionais, das verdades fundamentais doCristianismo.

Para exprimir este novo carácter adoptou-se o termo Summa. Abelardo serve-sedeste termo no prólogo da Introdução à Teologia: "Escrevi uma summa daerudição sacra como introdução às divinas Escrituras". E Hugo de S. Vietor noprólogo do 1 Livro do De sacramentis, que é a primeira verdadeira e própriasuma de teologia medieval, diz: "Reuní numa única cadeia (series), esta brevesuma de todas as coisas". No século XII o nome de

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Summa substitui o de Sententiae e os livros que continham a exposiçãosistemática das verdades cristãs chamavam-se Sumas de teologia.

§ 231. PEDRO LOMBARDO

Entro os mais notáveis autores de Sum~e há a salientar Robert Pulleyn, uminglês que ensinou em Paris e depois em Oxford e morreu em 1150; Roberto deMelun; que foi aluno em Paris, de Hugo de S. Victor e provà velmente tambémde Abolardo, do qual aceitou o principio da dúvida metódica, Simão deTournay, que ensinou em Paris entre a segunda metade do século XII e oprincipio do século XIII e defendia a fórmula de Anselmo do credo utintelligum, contraponda-a ao preceito da filosofia personificada porAristóteles: iniellige et credes. Mas a obra do gênero mais significativa,

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pela importância que teve como texto fundamental da cultura escolástica, é ade Pedro Lombardo.

Pedro Lombardo nasceu em Lumollo, perto de Novara; estudou em Bolonha odepois na escola de S. Victor, em Paris. A partir de ll^ ensina na escolacatedral de Paris; em 1159 torna-se bispo de Paris e morre provávelmente em1160. Escreveu um Commentario às cartas de S. Paulo e um outro aos Salmos. Osseus livros Libri quattor sententiarum foram escritos entre 1150 e 1152. Estaobra é um compêndio sistemático das doutrinas cristãs baseado na autoridadeda Bíblia e dos Padres mas no qual a parte pessoal é relevante. O maior pesoé constituído pela autoridade de Santo Agostinho, mas apirecem também citadosHilário, Ambrósio, Jerón-imo, Gregório Magno, Cassiodoro, Isidoro, Beda eBoécio. Dos escritores posteriores é utilizado sobretudo o De sacramentis, deHugo de S. Victor. Pela primeira vez, no Ocidente, aparece citado o

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texto De fide orthodoxa de João Damasceno que é a terceira parte, traduzidado latim em 1151 por Borgúridio de Pisa, da Fonte do conhecimento.

Mas a obra de Pedro Lombardo manifesta também com evidência a influência deAbelardo e do método por ele criado no Sic et non. Apesar da sua explícitaafirmação de que em matéria de fé "cré-se nos pescadores e não nosdialécticos", Pedro Lombardo é um dialéctico que procura fazer valer todo opeso da razão em apoio à autoridade dos textos citados.

Na própria divisão da obra, Pedro Lombardo segue um critério sistemático. Oconteúdo total da Bíblia é constituído por coisas e signos. A coisa é o quenão pode ser empregado para significar ou simbolizar outra coisa; o signo é,pelo contrário, o que serve essencialmente para esse fim. Entre os signos,Pedro Abelardo inclui os Sacramentos, que são símbolos da realidade supra-sensível. Por sua vez, as coisas distinguem-se, segundo são objecto de gozo(fruitio) ou objecto de uso. Objecto de gozo é a Trindade divina, objecto deuso são as coisas criadas. As virtudes são conjuntamente objectos de gozo eobjectos de uso, porque são meios para atingir o fim da beatitude. Das

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coisaspodemos distinguir os sujeitos que as gozam ou se servem delas.Consequentemente, Pedro Lombardo distingue a sua obra em duas partes, aprimeira referente às coisas, a segunda referente aos signos. A primeiraparte, diz respeito aos sujeitos e aos objectos da fruição e do uso, istoé; a Trindade divina, as coisas criadas em geral, os anjos e os homens emgeral e as virtudes. Estes argumentos formam o conteúdo dos primeiros trêslivros das Sententiae.O último livro é dedicado aos signos, isto é, aos Sacramentos.

O homem pode elevar-se ao conhecimento de Deus partindo das coisas criadas.Tudo o que nós

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vemos é mutável e tudo o que é mutável deve ter a sua origem numa essênciaimutável. O corpo e o espírito estão igualmente sujeitos à mudança: o ser deque obtêm a sua origem deve ser, por isso, superior a ambos. E uma vez quetodas as coisas corpos e espíritos, têm uma determinada forma e espécie, háque pensar numa forma originária, ou numa primeira espécie da qual, tanto oespírito como o corpo, recebam as suas formas ou espécies. Essa primeiraespécie é Deus (Sent. 1, dist 3, n. 3-5).

Os três caracteres fundamentais das coisas: a unidade, a forma e a ordem,constituem o reflexo da Trindade divina e consentem ao homem a sua elevaçãopara Ela. Na alma humana a memória, a inteligência e a vontade constituem umaúnica substância e também aqui se reflecte a imagem da Trindade divina, que émente (mens), conhecimento (notitia) e amor (amor) (lbid., 1, dist. 3, n.o 6sgs.). No entanto, nenhuma coisa criada pode dar-nos um conhecimento adequadoda Trindade. É preciso distinguir entre as coisas que podemos conhecer antesde crer e aquelas que para serem conhecidas pressupõem a fé. Entre osobjectos de fé, alguns não podem ser conhecidos e compreendidos, se nãoacreditarmos primeiramente neles; outros não podem ser cridos se não foremprimeiramente, compreendidos, e estes últimos são, por via da fé,compreendidos mais profundamente (1b. 111, dist. 24, 3).

O objectivo fundamental das interpretações teológicas de Pedro Lombardo é adefesa da omnipotência divina. Contra Abelardo e de acordo com Hugo de

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S.Victor (§ 225), Pedro Lombardo nega que Deus não possa criar nada de melhordo que aquilo que efectivamente criou. Na realidade, se o "melhor" se refereà actividade criadora de Deus, a afirmação é legítima: mas se se refere aoobjecto dessa actividade, isto é, ao mundo criado, a afirmação é fadsa,porque leva a pensar que ao mundo

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não falta qualquer perfeição, e em tal caso o próprio mundo seria semelhantea Deus: ou então Deus não poderia dar-lhe maior perfeição e assim o mundomanifestaria uma imperfeição que estaria em contraste com a tese, segundo aqual, é o melhor dos mundos possíveis (1b., 1, dist. 44, 2-3).

No que diz respeito ao homem, cujas três faculdades reproduzem, como sedisse, a Trindade divina, Pedro Lombardo afirma que a alma é-lhe transmitidad-irectamente por Deus. É preciso distinguir no homem a sensibilidade, arazão e a vontade livre. A sensibilidade está ligada a todos os órgãos dossentidos, e é receptiva e apetitiva. A razão é a mais alta faculdadecognoscitiva da natureza humana: dirige-se por um lado ao que é temporal; poroutro ao que é eterno. O livre arbítrio é a faculdade da razão e da vontadeconjuntamente, o por isso o homem ~lhe o bem, se a graça divina o ajuda, ou omal, se não existe a graça. Diz,se livre em razão da vontade, que podedeterminar-se por uma

coisa ou por outra; diz-se arbítrio em virtude da razão, da qual representa afaculdade ou poder de discernir o bem do mal, escolhendo umas vezes um,outras vezes o outro (lb., 11, dist. 24,5). O livre arbítrio pressupõ e,portanto, a vontade e a razão e não pode pertencer aos animais que sãoprivados de razão. A sua essência não está na capacidade de escolher entre obem e o mal, mas antes na capacidade de escolher, sem necessidade ou coacção,o que a razão estabelece. Para o homem o mal é duplo: o pecado e a pena dopecado. Um e outra são negatividade e privação do bem: o pecado é privaçãonum sentido activo, porque corrompe o

bem o priva dele o homem; a pena é privação em

sentido passivo porque é um efeito do pecado. Deus não é de forma algumacausa do mal: prevê infalivelmente o mal, não como obra sua, mas como obradaqueles que o fazem e suportam. A previsão do

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mal exclui o beneplácito da sua autoridade, enquanto que a previsão do bem,que é tudo aquilo que ele directamente opera no mundo, é sempre acompanhadade tal beneplácito (lb., 1, dist. 38, 4). Condição primeira para que o homemescolha o bem é a graça divina, que é sempre gratuitamente concedida (gratisdada), independentemente dos méritos humanos: com efeito, não seria graça senão fosse gratuitamente dada. Mas, enquanto que a misericórdia divina ésempre um acto de graça, a reprovação e a severidade de Deus perante o homemsão actos de justiça, determinados por aquilo que o homem mereceu. Areprovação divina consiste no não querer ser misericordioso, a severidade emnão sê-lo e uma e outra pretendem tornar melhor o homem (1b., dis. 41, 1).

As Setuenças de Pedro Lombardo tomaram-se, em breve, um dos livrosfundamentais da cultura filosófica medieval e foram objecto de numerososcomentários até ao fim do século XVI.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 230. Sobre o desenvolvimento das complicações de Sentenças: RoBERT, Lesécoles et 1'ense@gnement de Ia théol. pendant Ia première moitié du XIIesièc@e, Paris, 1909, cap. 6; DE GHELLINCK; Le mouvement thélogique du XIIe8ièc1e. Rruges-Bruxelas-Paris, 1948 (com bibli.).

§ 231. As obras de Pedro Lombardo, em P. L.,191.,-192.,. Edição critica das Sentenças, a cargo dos padres franciscanos deQuaracchi, 1916, 2 V018.-PROTOIS, Pierre Lombard, Paris, 1881; GRABMANN, DieGesch. d. 8chol. Methole, 11, 350-407; ERSPENBERGER, em "Beitrãge", 111, 5,1901.

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A FILOSOFIA ÁRABE

§ 232. FILOSOFIA áRABE: CARACTERíSTICAS E ORIGENS

Entre as causas que mais eficazmente estimularam a actividade cultural doOcidente no século XII, estão as relações com o mundo oriental sobretudo comos Árabes. Com efeito, o mundo árabe tinha já assimilado, nos séculos

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precedentes, a herança da filosofia e da ciência gregas, que aindapermaneciam em grande parte, ignoradas pela cultura ocidental: esta conheciadelas apenas o que tinha conseguido filtrar-se através da obra dos autoreslatinos e dos Padres da Igreja. Por outro lado, e sobretudo por isso, afilosofia árabe surgia aos olhos dos pensadores ocidentais como a própriamanifestação da razão e, por isso, como uma força de libertação dos entravespostos pela tradição. Adelardo de Bath não hesitava em contrapor o que tinhaaprendido " com os mestres árabes, orientado pela razão", ao "cabresto daautoridade" a que estavam submetidos os que seguiam a tradição (Quaest. nat.,6). Em terceiro lugar, a filosofia oci-

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dental tinha, em comum com a filosofia oriental, a própria natureza dos seusproblemas. Também a

filosofia árabe é uma escolástica, isto é, uma ten-

tativa para encontrar uma via de acesso racional à verdade revelada; e averdade que se pretende alcançar, a que está contida no Corão, tem muitascaracterísticas semelhantes à verdade cristã. Em suma, tal como a filosofiacristã, a escolástica árabe vive à custa da filosofia grega, especialmente doneoplatonismo e do aristotelismo.

Tudo isto explica a influência e a profunda penetração que o pensamento árabeexerceu na escolástica cristã no século XIII e XIV. Todavia, em certospontos, as duas escolásticas deviam revelar-se inconciliáveis. A síntese aque chegaram os maiores representantes da escolástica árabe, Al Farabi,Avicena e Averróis, surge-nos de acordo com o principio da necessidade. Anecessidade domina o mundo divino e humano; tal é a convicção dos grandesfilósofos árabes. E a isso não se furta o mundo das coisas finitas que énecessário não por si, mas pela sua dependência de Deus: nem mesmo a vontadehumana, dominada por uma cadeia causal que, através dos acontecimentos domundo sublu. nar e dos movimentos da esfera terrestre, tem como motor o Sernecessário. A escolástica latina, ainda que tenha recebido o aristotelismoatravés dos árabes, deverá no entanto tentar subtrai-lo ao princípio danecessidade e introduzir nele um princípio de contingência quepermitissesalvar, ao mesmo tempo, a liberdade criadora de Deus e o livre arbítrio

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dohomem.

A primeira actividade filosófica nasceu entre os Árabes da tentativa deinterpretar certas crenças fundamentais do Corão. Assim a seita dosQuadáries, afirmava o livre arbítrio do homem perante a vontade divina,enquanto que a dos Jabaries defendia o fatalismo absoluto. No século 11 daFIégira

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(732-832),. expande-se a seita dos Motazeis ou dissidentes, que afirmavamenèrgicamente os direitos da razão na interpretação da verdade xeligiosa.Foram eles que divulgaram o Kalam. (ciência da palavra), ou seja, a teologiaracional. A partir do califado de Haroun al-Raschid (785-809), os árabescomeçaram a familiarizar-se com a cultura grega. As traduções árabes dasobras de Aristóteles e dos outros autores gregos deveram-se, em geral, asábios cristãos sírios ou caldeus, que viviam, em grande número, como médicosna corte dos Califas. As obras de Aristóteles foram traduzidas em grandeparte das traduções sírias que, desde a época do imperador Justiniano, tinhamcomeçado a difundir no Oriente a cultura grega. Entre as obras que exercerammais profunda influência no pensamento árabe conta-se uma Teologia atribuídaa Aristóteles, que é formada por uma centena de passagens tiradas das Eneadisde Plotino, e o Liber de causis, que é a tradução dos Elementos de teologiade Próculo. Além destes textos e das obras de Aristóteles, contribuiram paraformar o pensamento árabe, os comentáfios de Alexandre de Afrodísia, osdiálogos de Platão, especialmente a República e o Timeu, e as obrascientíficas de Euclides, Ptolomeu e Galeno.

Uma reacção da ortodoxia religiosa contra as novidades introduzidas pelosfilósofos foi desenvolvida pelos Mutakallimun (os que discutem). A afirmaçãofundamental dos Mutakallimun é a novidade e discontinuidade do mundo, quetoma necessária a existência de um Deus criador. Adoptam a doutrina atómicade Dernócrito, que provàvelmente conhecem através da exposição deAristóteles. Segundo eles, os átomos não têm nem quantidade nem extensão, esão criados por Deus sempre que ele quer. As coisas resultam da agregação dosátomos e as suas qualidades não poderão durar dois

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instantes, ou seja, dois átomos de tempo, se Deus não interviessecontinuamente na sua criação. Quando Deus deixa de criar, as coisas, as suasqualidades e os próprios átomos, deixam de existir. A discontinuidade tomanecessária a acção incessante e criadora de Deus o garante a liberdade nacriação. A reforçar esta tese, os Mutakallium negavam a relação decausalidade entre as coisas. As coisas criadas não têm, entre si, relações decausa e efeito.O fogo tende a afastar-se do centro da terra e a produzir calor; mas a razãonão se nega a admitir que o fogo poderá mover-se em direcção ao centro e aproduzir frio, ainda que permaneça fogo. Os nexos causais não têm qualquernecessidade intxínseca; são estabelecidos únicamente por Deus. Mais que causaprimeira, Deus é causa agente e eficiente e produz directamente todos osefeitos do mundo criado.

No princípio do século estas doutrinas dos Mutakallium foram retomadas poruma outra seita, a dos Asharies, assim chamados devido a Abul-Hassan AI-Ashari (873-935), de Bassora. Os asharies exageram ainda a doutrina dacriação directa por parte de Deus, afirmando que todas as qualidadesacidentais nascem e desaparecem únicamente por um acto de criação da vontadedivina. Assim, por exemplo, quando um homem escreve, Deus cria quatroacidentes que não estão ligados entre si por nenhum nexo causal: a verdade demover a pena, a faculdade de a fazer mover, o movimento da mão, o movimentoda pena.

O movimento filosófico determinado pelas posições destas seitas vem a sersubstituído a seguir pela acção de verdadeiras e próprias personallidadesfilosóficas que, em parte, utilizam e continuam as doutrinas das própriasseitas, e em parte se opõem a elas na tentativa de se manterem ficis àdoutrina dos filósofos gregos e especialmente a Aristóteles.

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§ 233. AL.XINDI

A,I-,Kindi é o primeiro dos filósofos árabes que se relaciona explicitamentecom a tradição grega. Viveu em Bagdad, e devia ter falecido em 873. Escreveuum grande número de obras de filosofia, matemática, astronomia, medicina,política e música. Foi um dos autores que o califa AI-Mamún encarregou de

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traduzir as obras de Aristóteles e de outros pensadores gregos. Os Árabesderam-lhe o título de Filósofo por execelência. Foi autor de numerososcomentários aristotélicos.

Gerardo de Cremona traduz no século X11 um texto seu com o título VerbumJacob Al Kindi de intentione antiquorum in ratione. Um outro texto foitraduzido com o título De intellectu. A parte do comentário aristotélico deAI-Kindi que chamou a especial atenção dos escolásticos latinos é a que dizrespeito à doutrina do intelecto. Al-Kindi teve a pretensão de expor asopiniões de Platão e Aristóteles, mas, na verdade, segue de perto ainterpretação de Alexandre de Afrodísia (§ 111). Enumera quatro intelectos:"0 primeiro é o que está sempre em acto; o segundo é o que está em potênciana alma; o terceiro é o que na alma passa da potência a realidade efectiva; oquarto é o intelecto que chamamos demonstrativo: este último, Aristótelesassimila-o aos sentidos porque os sentidos estão próximos da verdade e emcomunicação com ela". Destes quatro intelectos os três primeiros correspondemrespectivamente ao nous poieticós, ao nous ylikós e ao nous epiktetós deAlexandre; o quarto é a alma sensitiva. Em AI-Kindi surge pela primeira vez,de uma forma nítida, o princípio típico do aristotelismo árabe que atribuidirectamente ao intelecto de Deus a iniciativa do processo de conhecer dohomem. "A alma, afirma ele, é inteligente em potência: passa a serinteligente de modo efec-

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fivo pela acção do Intelecto primeiro, quando dirige o seu olhar para este.Quando uma forma inteli-

1 givel se une à alma, esta forma e a inteligência da alma passam a ser umasó e mesma coisa, que é ao mesmo tempo aquilo que conhece e o que àconhecido. Mas o Intelecto que está sempre em acto, e que atrai a alma para aconverter em intelecto efectivo, de intelecto potencial que era, não seidentifica com o que é conhecido. Em relação ao Intelecto primeiro, portanto,o intelecto e o inteligível que a alma co"ece não são a mesma coisa; emrelação à alma, o intelecto que conhece e o inteligível que é conhecido são amesma coisa". Está implícita nesta doutrina de AI-Kindi a separação entre oIntelecto activo, que é o divino, e os outros intelectos, que são próprios dohomem.

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§ 234. AL FARABI

AI Farabi, assim chamado por ser natural de Farab e que foi célebre entre osmuçulmanos não apenas como filósofo peripatético, mas também como matemáticoo médico, continua a tradição enciclopédica de AI-Kindi. All Farabi ensinouem Bagdad e morreu em Dezembro do ano de 950. Escreveu uma obra sobre asciências, De scientiis, um texto sobre o intelecto, De intelectu, e aindaoutras obras de ética e de política, todas inspiradas no pensamentoaristotélico.

Em AI Farabi, encontra-se pela primeira vez a distinção entre a essência e aexistência e que iria ter uma tão grande Importância na filosofia de S.Tomás. Averróis faz Temontar esta distinção aos Mutakallimun, que teriam sidoos primeiros a distinguir o ser em possível e necessário e teriam afirmadoque para se pensar num ser possível há que pressupôr a existência de umagente que o

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faça passar a acto; e como o mundo no seu todo é possível, é preciso que oagente do mundo seja um ser necessário (Destr. destruct. Algazelis, 1, 4, 5).Na realidade, a primeira origem desta distinção está no Liber de causis que,como já foi dito, é uma das principais fontes de inspiração da especulaçãoárabe.O Liber de causis (cap. 9) distingue, nas coisas, a existência e a forma,ambas procedentes do exterior: a existência do primeiro Ser pela via dacriação; a forma das Inteligências subordinadas pela via das impressões. Masno Liber de causis a existência é o substracto receptivo da forma, e, porisso, a possibilidade da própria forma: funciona como matéria; no pensamentoárabe a relação inverte-se e a essência ou forma será considerada comomatéria ou possib',lidade e a existência como acto.

Segundo AI Farabi, tudo o que existe é ou possível ou necessário. Ao afirmar-se que uma coisa dotada de existência possível não existe, não se enuncianenhum absurdo, uma vez que para receber a existência essa coisa precisa deuma causa. Uma coisa possível não pode passar ao número das coisasnecessárias, senão através da acção de um ser nocessário. Pelo contrário, se

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afirmamos o ser necessário como não existente, fazemos uma suposição absurda,pois esse ser não tem uma essência distinta da sua própria existência. O sernecessário é único e nenhum outro além dele possui uma verdadeira substância:escapa a todas as categorias e a todas as distinções de matéria e de forma."É o acto de pensamento na sua pureza, o puro objecto pensado, o puro sujeitopensante. Nele, as três coisas seguintes são apenas uma: é sábio, sapiente evivente. Tem actividade perfeita e perfeita vontade. Goza de uma imensafelicidade na sua própria substância e é o primeiro amante e o primeiroamado". (Dieterici, Alfarabis philos. AbhandIungen, p. 93-96).

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A distinção entre o ser necessário e o ser possível será fundamental paratodo o pensamento árabe e também para a escolástica latina posterior. Do sernecessário, e precisamente do acto com que o ser necessário se pensa a sipróprio (segundo o esquema de Plotino), nascem, afirma AI Farabi, os váriosintelectos, que se relacionam entre si como a matéria e a forma, a potência eo acto. Do Ser necessário enquanto se conhece a si próprio, nasce o primeiroIntelecto, que por sua vez conhece o Ser necessário e a si próprio. E namedida em que conhece o Ser necessário, produz um segundo intelecto; noentanto, enquanto se conhece a si próprio, produz o primeiro céu na suamatéria e na sua forma, que é a alma. Do segundo intelecto dimana, do mesmomodo, um outro intelecto e um outro céu que se situa abaixo do primeiro. Eassim, de cada intelecto nasce sempre um intelecto o um céu, até se chegar aum intelecto privado de matéria e que por si não pode originar a formação deuma nova esfera celeste. Este último intelecto é a causa da existência dasalmas humanas e, em colaboração com as esferas celestes, é a causa dos quatroelementos que compõem o mundo sublunar. Trata-se do intelecto agente, do qualdependem os outros três intelectos (própriamente humanos): em potência, emacto e adquirido, cuja distinção AI Farabi retoma de AI Kindi. O princípioeficiente de todo o conhecimento humano é o Intelecto agente. À alma humanapertence o intelecto em potência, que pela acção do intelecto activo, setransforma em intelecto em acto e conhece as formas inteligíveis das coisas,formas que se identificam com ele. A elaboração destas formas

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conceptuais,dirigindo-se a noções mais gerais e mais elevadas é obra do intelectoadquirido. Deste modo o intelecto adquirido é forma do intelecto em acto,que, por sua vez, é forma do intelecto em potência (lb., p. 71-72). O totalmeranismo do conhecimento vem assim a ser dependente

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da acção do Intelecto agente. A esta acção AI Farabi faz ligar também aqualidade mais elevada que o homem pode alcançar, a sapiência e a profecia.Com efeito, quando o Intelecto agente consegue transportar o intelectopotencial de um homem ao seu grau mais alto, que é o intelecto adquirido,então o homem torna-se num sábio-filósofo; mas quando o próprio Intelectoagente actua, não sobre o Intelecto, mas sobre as faculdades representativasde um homem, este homem pode transformar-se num profeta, num iluminado, numvidente e esperar ser chefe na cidade ideal; porque nenhum está em posição deo dirigir mas ele está em posição de dirigir todos (lb., p. 59). De tal modoo Intelecto agente é considerado por AI Farabi que o considera um dom dailuminação divina, fazendo do homem um profeta ou um chefe; e o mecanismoatribuido ao intelecto é utilizado também para uma explicação racional darevelação religiosa original.

Mas o Intelecto agente, como se viu, nasce pela reflexão do Ser necessário: eassim também a sua acção se integra na necessidade própria deste ser. Anecessidade exclui toda a possibilidade de escolha: o conhecimento com que oSer necessário produz tudo está necessàriamente conexo com a sua própriaessência e não separa a necessidade (1b., p. 96). A necessidade reflecte-seportanto em todas as coisas do mundo: a própria vontade humana surgedeterminada pela cadeia das causas naturais que tem como origem primordial acausa absoluta. O Ser necessário.

§ 235. AVICENA: A METAFíSICA

Ibri-Sina, que os escolásticos latinos cognominaram de Avicena, era persa deorigem e nasceu em Afshana (perto de Bokara) em 980. Dotado de inteligênciaprecoce, aos 17 anos era já famoso como

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médico e teve a sorte de curar o príncipe de Bokara, que o colmou de

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favorese pôs à sua disposição a imensa biblioteca do seu palácio. Mais tarde,Avicena foi para Sorsan, onde abriu uma escola pública e deu início ao seucélebre Cânone de medicina. Obrigado a abandonar a cidade em virtude dasdesordens que surgiram, dirigiu-se para Hamadan, onde foi designado Visir dopríncipe dessa localidade. A sua actívidade como tal quase o levou à morte, porque as tropas descontentes comele, haviam-no prendido e pedido a sua morte. No entanto, o príncipe salvou-lhe a vida e manteve-o junto de si como médico. Avicena compõe então váriaspartes da sua grande obra sobre A Cura (AI Scifà). Depois da morte do seuprotector, partiu para Ispahan, onde se torna secretário do príncipe, queacompanhou frequentemente nas suas expedições. Estas viagens contribuirampara perigar a sua saúde, já de si comprometida por uma vida agitada elaboriosa: Avicena amava a vida, e dedicava-se de bom grado ao amor e àbebida. Tendo acompanhado o seu príncipe numa expedição contra Hamadan, caiuenfermo e morreu naquela cidade em 1307, com a idade de 57 anos. A Wa de1bn-Sina, escrita pelo seu discípulo Sorsanus foi traduzida para o latim eimprimida no início de diversas edições das suas obras.

A actividade de Avicena estende-se a todos os campos do saber. O seu Cânonede medicina foi a obra clássica da medicina medieval. As obras que interessamà filosofia são o Livro da Cura (AI Scífà) e o Livro da Libertação (AI-Najah): o primeiro era uma vasta enciclopédia de ciências filosóficas emdezoito volumes; o segundo, dividido em três partes, era um resumo doprimeiro. As edições latinas das obras de Avicena são traduções de uma ou deoutra parte das suas obras principais. No fim do século XII Gerardo deCremona traduz o Cânone de medicina; Domingo Gundisalvo e o judeu Avendeath

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traduzem a Lógica, uma parte da Física, a Metafisica, o De caelo e muitos dosescritos científicos. Rápidamente, entre o fim do século X11 o o princípio doséculo XIII, o Ocidente cristão vem a conhecer, através destas traduções deAvicena, quase toda a obra de Aristóteles, de que apenas conhecia a lógica.Mas com tudo isto, o ocidente latino conhece bem pouco a obra de Avicena. Comefeito, a sua obra é vastíssima (provàvelmente mais de 250 obras); e oreconhecimento da sua importância, quer pela filosofia oriental, como pelaocidental e ainda pela ciência (e especialmente pela biologia e

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medicina),levaram os estudiosos modernos a publicar e a traduzir algumas partesinéditas. Entre estas têm importância para a filosofia: Tratados místicos;Epístola das definições, Livro de ciência; Livro das directivas e das notas;Lógica oriental, que é parte de uma grande obra perdida, Juizo imparcialentre os orientais e os ocidentais. O título desta última obra levou a pensarnum ramo teosófico ou místico da filosofia de Avicena em contraste com asdirectrizes filosóficas e racionalistas das obras que conhecemos. Narealidade não existe qualquer base para uma tal laipótese: que é desmentida,não só pelos fragmentos das suas obras que temos sobre a lógica, como tambémpelo conteúdo do Livro das directivas que pertence aos últimos anos deAvicena e que não testemunha qualquer mudança sensível nas conclusões da suafilosofia. As fontes desta filosofia são Aristóteles, Plotino (que Avicena,contudo, não distingue do primeiro e a que atribui a Theologia, e uma centenade passagens das Eneadis) e AI Farabi; mas é sobretudo dos Estoicos que seaproxima o seu conceito do mundo como o domínio de uma força racional que oorienta com infalível necessidade.

Avicena descreve em termos nitidamente escolásticos o objectivo da filosofia:o de demonstrar e esclarecer racionalmente a verdade revelada. Os fun-

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dadores da fé ensinaram e transmitiram a sua doutrina por virtude dainspiração divina. Os filósofos acrescentaram à doutrina transmitida odiscurso e as considerações demonstrativas. Os fundadores da fé nãodistinguiram nem esclareceram o conteúdo das suas doutrinas, definiram apenasos princípios e os fundamentos: cabe aos filósofos expôr e elucidarclaramente o que está obscuro e oculto (De defin. et quaest., fol. 138, p.1). Mas se a filosofia vem acrescentar à tradição religiosa asconsiderações demonstrativas, por outro lado a tradição religiosa,representada pelos profetas, estende o domínio da verdade humana para ládos limites que a demonstração necessária pode alcançar. Com efeito, é elaque permite afirmar com certeza a Tealídade das coisas que o intelecto nãopode demonstrar ou apenas pode reconhecer a possibilidade (De divis scient.,fol. 144, p. 2).

O princípio da especulação de Avícena é, tal como o de AI Farabi, anecessidade do ser. Todo o ser enquanto tal é necessário. "Se uma coisa

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não énecessária em irelação a si própria, afirma Avicena, necessita que sejapossível em relação a si própria e necessária em relação a uma coisadiferente (Met.,11, 2, 3). A propriedade essencial do que é possível é precisamente esta: ade exigir necessàriamente uma outra coisa que a faça existir em acto. O que épossível perinanece sempre possível em relação a si próprio, mas podeacontecer sê-lo de modo necessário em virtude de uma coisa diversa (1b., 11,2, 3).

A existência em acto é portanto necessária.O possível mantém-se como tal até ter existência em acto: quando recebe aexistência em acto, recebe ao mesmo tempo a necessidade. Isto implica, emprimeiro lugar, que todo o possível exige e ff-eclama o ser necessário comocausa da sua existência actual. E, em segundo lugar, implica que o sernecessário exista por si, em virtude da sua própria essência;

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sendo inteligível apenas por essa essência. É um ser simples, sem vínculos,sem deficiências e sem matéria. No Livro das directívas, Avicena insiste nasuperioridade desta prova de Deus extraída da simples consideração do ser:"Quando consideramos o estado do ser, afirma, o ser é testemunho de sienquanto ser, e ele mesmo, em razão disso, testemunha tudo o que vem a terexistência depois dele". (1b., p. 146; trad. franc., P. 371-372).

Se o ser necessário é absolutamente simples, o que é possível e existe apenasem virtude do ser necessário já não é simples e implica em si dois elementos:aquele pelo qual é possível em relação a si mesmo, e aquele pelo qual énecessário em relação a outra coisa. A possibilidade e a necessidadeconjugam-se na formação da sua natureza respectivamente como a matéria e aforma. Com efeito, Avicena interpreta a distinção aristotélica de matéria eforma como distinção entre o possível e o necessário: a matéria épossibilidade, a forma, como existência em acto, é necessidade. O que não énecessário por si, ner-essáriamente é formado por matéria e por acto, porisso não é simples. O ser que é necessário por si é, no entanto,absolutamente simples, mesmo privado de possibilidade ou de matéria (Met.,11, 1, 3).

Este conceito do ser necessário (necesse esse) é o ponto de referência

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detoda a especulação de Avicena. Em primeiro lugar, ele é fundamento dadistinção real entre a essência e a existência que viria a tornair-se um dosmaiores temas especulativos da escolástica cristã no século XIII eespecialmente do tomismo. Com efeito, o ser necessário é o ser que existe poressência ou cuja essência implica a existência; em consequência, o ser quenão existe em virtude da própria essência existe apenas como efeito do sernecessário. Esta distinção será o fundamento do princípio da analogicidade doser, fundamental para o tomismo. Em segundo lugar, o ser

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necessário introduz em todos os ramos e formas da existência a sua próprianecessidade. Toda a contingência ou possibilidade real fica excluída uma vezque o possível não pode passar ao ser sem ser através da acção do necessário;mas com esta acção toma-se ele próprio necessário na sua existência (aindaque o não seja na sua essência). Esta eliminação radical da contingência doser (implica, além do mais, a necessidade da própria criação divina) é oponto fundamental em que a doutrina de Avicena surgia contrastante dasexigências da escolástica cristã, interessada em manter a liberdade dacriação e na

criação. Convém no entanto salientar que, não obstante esta exclusão de todoo possível da realidade, Avicenaexpõe um conceito do possível bastante maispreciso e rigoroso do que aquele que tinha sido admitido por Aristóteles.Avicena distingue, com efeito, dois sentidos do possível. No primeiro sentidopossível é o "não impossível"; neste sentido o que não é possível éimpossível e portanto o próprio necessário é possível. No segundo sentido,que é o próprio, o possível é uma terceira alternativa ailém do impossível e,do necessário em tal caso o possível é o que pode ser ou não ser; o nem oimpossível nem o necessário podem dizer-se possíveis (Livre des directives,p. 34, 35; trad. franc., p. 138-141). óbviamente, neste segundo sentido opossível subtrai-se a todos os paradoxos a que dava lugar na lógica. deAristóteles (§ 85).

A absoluta simplicidade do ser necessário consente em Avicena que sejaentendido como absoluta unidade, e com maior razão com a própria Unidade no

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sentido neo-platónico. Avicena, tal como acontecia já com AI Farabi, liga oconceito platónico do uno ao conceito aristotélico do Acto puro; e ao mesmotempo identifica o Uno e o Intelecto, que os neo-platónicos distinguiam."Como princípio de toda a

existência, o Uno conhece por si as coisas de que é

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princípio: sabe que é princípio das coisas cuja existência é perfeita na suasingularidade (as coisas celestes) e também das coisas que estão sujeitas àgeração e à corrupção. Estas últimas são por ele conhecidas quer atravé s dassuas espécies quer através das respectivas individualizações; mas quandoconhece estes entes mutáveis, não os conhiece a eles e à res- pectivamutação, enquanto seres mutáveis, não os conhece com uma inteligê nciaindividual" (1b., VIII, 6).

A derivação de todos os seres do Ser necessário não é uma criaçãointencional. Não subsiste uma intenção criadora na Causa primeira: estaintenção implicaria uma multiplicidade de elementos na natureza do Uno, queao invés é siraplicíssimo. Seria necessário que a ciência e a bondade daCausa primeira a coagissem a ter essa intenção ou que a mesma lhe fossesugerida pela consideração de uma utilidade ou de uma vantagem que lhepoderia advir; e tudo isto é absurdo. Não existe em Deus nem desejo, nemnecessidade, nem intenção: Deus é causa em virtude da sua própria essência.,e aquilo de que é causa, o mundo, procede necessàriamente da essência divina.O mundo é assim tão eterno como Deus. A derivação do mundo provemente de Deusverífica-se (como Ail Farabi havia dito, reproduzindo Plotino) através dopensamento isto é, através da ciência que Deus tem de si, da auto-reflexãodivina. "A Causa primeira é uma inteligência única, que se conhece a siprópria: daí o conhecer necessáriamente tudo o que de si resulta; sabe que aexistência de todos os seres surge de si, que ela é principio e que não hánada na sua essência que impeça às coisas de derivarem de si. A sua essênciasabe pois que a sua própria perfeição e a sua própria excelência consistemnisto: que o bem deriva dela" (lb., IX, 4). Também a Providência, ou seja ogoverno do mundo, se exercita do mesmo modo: Deus conhece a ordem,segundo aqual o bem

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se distribui no mundo e por este simples conhecimento o próprio bem derivad'Ele de tal forma que d'Ele deriva a ordem mais perfeita possível (Ib., W,6).

Avicena é verdadeiramente o filósofo da necessidade absoluta. Para ele, nadaescapa ao princípio de que todo o ser é necessário: nem mesmo a vontadehumana. As decisões da nossa vontade devem ter uma causa, como tudo o quepassa da simples possibilidade ao ser. Mas a série das causas que o produzemremonta mais além da própria alma, remonta aos acontecimentos terrestres. Oraos acon-

os celesLecimentos terrestres são determinados pel tes; portanto a série detodos os efeitos depende necessàriamente da necessidade da vontade divina."Se fosse possível a um homem conhecer, afirma Avicena, todas as coisas queacontecem no céu e na terra na sua natureza, conheceria todos osacontecimentos futuros e também o modo como aconteceriam" (Metaf., X, 1).Donde se deduz a justificação das predicções astrológicas. É claro que oastrólogo não pode pela simples observação do movimento dos corpos celestesobter predicções infalíveis, mas isso deve-se à multiplicidade dascircunstânoias de que depende o acontecimento futuro, muitas das quais sesubtraem às suas considerações, não se tratando portanto de falsidade ouinsuficiência da ciência astrológica.

§ 236. AVICENA: A ANTROPOLOGIA

O que distingue os animais dotados de razão daqueles que dela são privados éo poder de conhecer as formas inteligíveis. Este poder é a alma racional aque se costuma também chamar intelecto material, ou seja, o intelecto empotência ou intelecto possível. As formas inteligíveis formam a alma de trêsmodos distintos. Em primeiro lugar, mediante emanação

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ou infusão divina, sem qualquer ensinamento ou qualquer aquisição de origemsensível: é deste modo que ao homem é dado o conhecimento dos primeirosprincípios. Em segundo lugar, por meio do raciocínio discursivo e dopensamento demonstrativo: deste modo a alma conhece as espécies inteligíveisque são objecto da consideração lógica. Em terceiro lugar, e através dossentidos, com a ajuda de uma capacidade natural e inata. Mediante as espécies

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inteligíveis que assim advêm à alma, o intelecto em potência transforma-se emintelecto em acto, idêntico com as próprias espécies, de tal modo que é aomesmo tempo sujeito e objecto de conhecimento (intelligens et intellectum).

A inteligência em potência, a simples substância intelectual, encontra-seapenas nas crianças, que estão ainda privadas de toda a forma ou espécieinteligível. Em seguida, sem a ajuda de qualquer ciência ou de qualquermeditação, obtém-se o conhecimento dos primeiros princípios. Tais princípiossão as verdades imediatamente evidentes, a que se dá o assentimento de formaimediata como, por exemplo "0 todo é maior que a parte" ou "Dois contráriosnão podem simultâneamente pertencer a uma única coisa". Não podem derivaresses princípios da experiência sensível: não podendo portanto seremfundamento de um juízo necessário, porque não excluem o juizo contrárioàquele que sugerem. Estes princípios devem ser portanto o produto de umaimanação divina à qual a alma se encontra unida continuamente ou de formainterrupta. Uma vez que, em virtude de tal imanação, a alma adquire oconhecimento dos primeiros princípios, o intelecto está já em acto e a suaactividade pode enriquecer o património inteligível que lhe foisubrainistrado pelo alto. Intervém então a actividade discursiva dointelecto, que procede por composição e divisão, isto é, por análise esíntese, e este exercício é determinado pelos primeiros princípios que a alma

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possui. As outras formas inteligíveis ou conhecimentos racionais sãoadquiridos pela alma por via de abstracção da experiência sensível. Aabstracção e a

actividade discursiva que compõem e dividem, são pois os dois meiosfundamentais pelos quais a alma humana adquire e enriquece os seusconhecimentos racionais e constituem o intelecto adquirido. Existe uma viadirecta de aquisição, mas é excepcional e

reservada a poucos: "Em alguns homens a vigília prolongada e uma certa uniãoíntima com o Intelecto universal (isto é, o Intelecto em acto de Deus)conferiram ao poder da razão uma tal disposição que a alma racional desteshomens deixa de ter necess);dade de qualquer raciocínio discursivo ou dosocorro da reflexão para conhecer e aumentar a sua ciência. A esta disposiçãodá-se o nome de santidade e a alma que dela é dotada é uma alma santificada.Mas esta graça e esta dignidade são apenas concedidas aos profetas e aosapóstolos, nos quais se encontra a

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salvação" (De an., 8, fol., 24).

Mas isto é sem dúvida uma excepção: para os

outros homens a relação imediata com a imanação ou com o ser de que provem élimitada e não constante porque o corpo o impede. Desta situação Avicenaextraía, platónicamente uma prova de imortalidade da alma: " Quando a alma seencontrar separada do corpo, a continuidade que une a alma ao Ser que aaperfeiçoa e do qual depende não será suprimida. A união continua com arealidade, da qual deriva e da qual depende a sua perfeição, colocando acoberto de qualquer corrupção, a tal ponto, que ela nunca fica destruida nemmesmo quando se

afasta ou separa dessa mesma realidade. Por conseguinte a alma permanecedepois da morte sempre imortal, na dependência da substância superior que sechama Intelecto universal e que os doutores das diferentes religiões designampor Sapiência de Deus" (De an., 10, fol 34).

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MAIMõNIDAS

Deste modo, Avicena relaciona a imortalidade, tal como a santidade e asabedoria, com a acção do Intelecto divino, isto é, com o Ser necessário. Masuma vez que o Ser neccssário é também o bem, a felicidade consiste nacontemplação do ser necessário, ou seja, na ciencia deste ser, que éproporcionada pela filosofia. Através da filosofia o homem aproxima-sedo Bem supremo que é também a sua origem; e do bem supremo aproximam-seigualmente todas as coisas criadas, cada uma de acordo com o modo ou via quelhe são próprios.O amor de que Avicena fala nos Tratados místicos é portanto, e de harmoniacom as concepções aristotél;cas a tendência das coisas para o bem, para o fimsupremo, tendência que garante a ordem e a perfeição de tudo. No homem esobretudo no sábio, este amor é desejo de contemplação do ser necessário.Avicena insiste em sublinhar a superioridade do sábio sobre os outros homens:o sábio actwa desinteressadamente com o único objectivo de se

ar)roximar da verdade, enquanto que os outros homens actuam por uma espéciede troca comercial, renunciando a certos bens nesta vida para terem depois arecompensa na outra (Livre des directives, p. 199; trad. franc. p. 485-487).A via mística coincide assim com o conhecimento filosófico e a ambos se

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opõemtodas as formas populares de culto religioso que no entanto, segundo Avicena,não devem ser desprezadas pelo sábio (lb. p. 221; trad. franc., p. 524).

§ 237. AL GAZALI

Em oposição ao espírito filosófico de Avicena surge-nos o espírito xeligiosode AI Gazali, o mais célebre dos teólogos muçulmanos. AI Gazali, chainadopelos escolásticos latinos Algazel, nasceu em Tous do Khorasan, em 1059.Ensinou, em primeiro

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lugar no colégio de Bagdad, depois em Damasco, Jerusalém e Alexandria. Maistarde retirou-se para Tous, sua cidade natal, onde se dedicou a vidacontemplativa dos Súfi (místicos) e compõe grande número de escritos com oobjectivo de estabelecer a superioridade do Islamismo sobre todas as outrasreligiões e sobre a própria filosofia. O mais célebre destes textosteológicos, intitula-se, Restauração das ciências religiosas, obra deteologia e de moral dividida em quatro partes que tratavam das cerimóniasreligiosas, das prescrições relativas às diversas circunstâncias da vida, dosvícios e das virtudes. Tendo abandonado o seu retiro, AI Gazali retoma adirecção do colégio de Bao,,dad, mas nos últimos tempos da sua vida, regressanovamente a Tous, onde funda um mosteiro para os Súfi e passa o resto dosseus dias na contemplação e nas práticas religiosas. Morre em 1111.

Em meados do século XII, Domingo Gundisalvo traduz duas obras de AI Gazali:As tendências dos filósofos e A destruição dos filósofos. Na primeira, AIGazali não faz mais que expor em síntese os resultados da filosofia do seutempo, principalmente de AI Farabi e de Avicena. Neste livro, evita fazercríticas, de qualquer género, e limita-se a fazer um inventápio das doutrinasdestes filósofos. Na segunda obra, pelo contrário, propõe-se apresentarcertos raciocínios que se opõem à argumentação dos filósofos e que pretendemdemonstrar a nulidade destes. No final desta segunda obra, AI Gazali mostra-se essencialmente negativo. Na parte positiva do seu sistema remete para asua obra sobre a Restauração das ciências religiosas.

A única filosofia que AI Gazali toma em consideração, na sua Destruição dos

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Filósofos, é a de Avicena. E compreende-se. A doutrina de Avicena é umafilosofia da necessidade: Deus é o próprio ser necessário, e também o mundocomo

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realidade em acto é necessário em relação a Deus. AI Gazali, pelo contrário,ao ligar-se à tradição dos Mutalcallimun, dispõe-se a afirmar enérgicamente aliberdade da acção divina, pressuposto de toda a atitude religiosa. As suascríticas devem portanto dirigir-se no sentido de desmantelar as razões dessaordem necessária, a que Avicena tinha reduzido tanto Deus como o mundo. Comefeito, AI Gazali combate, em primeiro lugar, o conceito de necessidade nopróprio ser necessário, isto é, em Deus. Se este ser fosse, como Avicenaafirma, absoluta necessidade, dele não poderia derivar a multiplicidade dasemanações e das coisas criadas. Segundo Avicena, tudo é produto da causaprimei,ra, mediante o simples conhecimento que a mesma tem de si. Masconhecendo-se a si própria, conhece também todas as coisas criadas, o quesignifica que contém em si essas mesmas coisas e que, portanto, não é assimtão simples e necessária como se afirma. O mundo foi criado por um-a vontadeeterna que tinha decretado a existência e que tinha atribuído a talexistência limites definidos no tempo. Segundo Avicena, isso implicaria umaalteração na vontade divina, alteração que não pode conciliar-se com a suanecessidade eterna. Mas, para AI Gazali, esta alteração não oferece apoio aqualquer objecção, uma vez que ele não vê em Deus o ser necessário.

A crítica de AI Gazali à necessidade própria da essência divina, ànecessidade e também à eternidade do mundo, culmina com a crítica ao próprioconceito de necessidade, expresso no piincípio causal. Não parece que sejanecessário existir entre as coisas que acontecem, isoladamente, uma relaçãocausal. Causa e efeito são perfeitamente distintos uma do outro e não estãoligados entre si quanto às respectivas existências. A relação existenteentre o fogo e a combustão de um objecto qualquer, não

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é determinada pela acção do fogo, mas pela acção directa de Deus. "0 fogo éalgo de inanimado, não pode por si explicar qualquer acção. Porque razãohaveríamos nós de o considerar activo? Os fi-lósofos não têm outra

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razão paraafirmarem tal, a não ser a da evidência de que ao aproximar-squalquer coisado fogo se verifica a combustão. Mas esta evidência apenas se refere ao factode que a combustão se dá juntamente com o fogo, e não que ela provenha dofogo; não exclui portanto que haja outra causa, para além dele" (Destr.destruct., 1, dub. 3). Esta outra causa, a única verdadeira causa, é Deus.Mas a acção de Deus é livre e não está ligada a qualquer ordem determinada. Apossibilidade de existência do milagre permanece, deste modo, garantida.

A figura de AI Gazali representa a reacção da teologia muçulmana à filosofiada necessidade defendida por AI Farabi e por Avicena. A parte positiva dadoutrina de AI Gazali é a que trata da mística: AI Gazali atribui o máximovalor à prática da religião. Essa a razão porque as suas obras fundamentaissão as de moral-para ele "a ciência é a árvore, mas a prática é o fruto".

§ 238. IBN-BADJA

Ibn-Badja, que os escolásticos latinos cognominaram Avempace é o primeirofilósofo famoso entre os Árabes de Espanha. Nasceu em Saragoça no final doséculo X1; em 1118 encontrava-se em Sevilha. Esteve também em Granada e maistarde dirigiu-se a África onde alcançou grande consideração junto da cortedos Almorá vidas. Morreu relativamente novo em Fez, no ano de 1138. Algunsautores árabes relatam que ele foi envenenado por médicos que o invejavam.Avempace escreveu numerosas obras de ciência e de filosofia. Averróis cita

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dele uma carta Sobre a continuidade do intelecto com o homem, que fazia partedo seu escrito Sobre a alma e uma Carta de despedida (Epistola expeditionis).A sua obra principal é o Regime do Sol;tário, hoje perdida mas da qual existeum resumo elaborado por um filósofo do século XIV, Moisés de Narbona,incluído no seu comentário à obra de Ibrt-Tofail.

No Regime do Solitário, Avempace propunha-se dar a entender o modo como ohomem pode chegar a identificar-se com o intelecto em acto, mediante osucessivo desabrochar das suas faculdades. Avompace considerava o homem

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isolado da sociedade, ou seja, livre dos seus vícios, mas participando dassuas virtudes. O objectivo final do solitário é o de conseguir alcançar asformas inteligíveis isto é, a verdade especulativa; e as acções quecorrespondem a este objectivo integram-se no domínio do intelecto. Esseobjectivo é atingi-do, quando o homem consegue ser intelecto adquirido ouimanado. Este intelecto consiste na consideração das formas inteligíveis emsi, isto é, separadamente da matéria a

que estão ligadas nas coisas terrenas. O intelecto adquirido é o único quepode conseguir pensar-se a si próprio e desta forma alcançar o seu termo maisalto, que é a união com o intelecto em acto, ou intelecto separado de Deus.

Na obra de Avempace o problema aristotélico do intelecto passa a ser uma viade elevação e de purificação humana e deste modo se transforma de problema deespeculação lógica e metafísica em problema religioso.

§ 239. IBN-TOFAIL

Ibn-Tofail ou Abubekr nasceu à volta de 1100 em Uadi-Ash (Guadix), naAndaluzia, e foi célebre como médico, matemático, filósofo e poeta. Minis-

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tro o médico da corte dos almorávidas que atraiíu flustres sábios do tempo e,entre eles, Averróis que foi encarregado pelo rei, a seu conselho, de redigiruma análise clara exacional de Aristóteles. Abubekr morreu em 1185, emMarrocos.

Tal como aconteceu com lbn-Badja, também ele levantou o problema de encontrara via através da qual o homem possa conseguir unir-se ao mtelecto universal.Mas a sua originalidade consiste em ter criado sobre este problema umverdadeiro romance filosófico intitulado O vivente, filho do vigilante (Hajj-Jaqzân). lbn-Tofail faz nascer o protagonista, sem pai nem mãe, numa ilhadesabitada do Equador. A criança nasce da terra e uma gazela encarregi-se dealimentá-la. com o seu leite. Os diversos períodos da sua -idade sãoassinalados com os progressos sucessivos do seu conhecimento. Partindo doconhecimento sensível, o protagonista consegue, gradualmente, dar-se conta daunidade dos vários seres e a conceber as formas inteligíveis, sendo a

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primeira a da espécie. Debruçando-se sobre uma concepção do mundo, na suafflade, e através dos conceitos de forma e de matéria, Hajj chega aoconhecimento de um Ser activo que perpetua a existência do mundo e o põe emmovimento. O regresso a este Ser supremo torna-se então o objectivo da suavida. Pretende afastar-se dos sentidos e da imaginação e concentrar-se nopensamento, para poder identificar-se com ele. No grau mais elevado dacontemplação descobre o reflexo de Deus no universo e a proximidade da esferaceleste. Finalmente, no êxtase, vê a Deus dele dimanando diversas esferascelestes e descendo sobre diversos seres humanos, alguns puros e piedosos,outros impuros e condenados.

Para demonstrar o acordo entre a sua doutrina e a crença da religiãoislâmica, Ibri-Tofail imagina o seu protagonista encontrando-se, aoscinquenta

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anos, com um homem criado na religião e que por uma via diferente conseguechegar às mesmas conclusões que ele. Os dois juntam-se para criar umacomunidade religiosa, mas depois, reconhecendo a irrípossibilidade decomunicar a todos a verdade por eles alcançada, retiram-se de novo para oisolamento, para viverem uma vida contemplativa.

O romance de Ibn-Tofail exprime uma posição que é comum a todos os filósofosárabes: a de que a filosofia conduz a um resultado idêntico ao da religião,mas por uma outra via, que é a da busca individual e da demonstração. Alémdisso, a obra de Ibri-Tofail é também como que um resumo das doutrinascorrentes na filosofia árabe sobre o intelecto. O verdadeiro agente doconhecimento humano é o intelecto universal, a última emanação do Sersupremo. O @ntelecto humano ou potencial está dominado e dirigido por Aquele.

§ 240. AVERRóIS: VIDA E OBRA

Ibn-Ruslid ou Averróis, o mais célebre dos comentadores árabes deAristóteles, nasceu em Córdova em 1126. O avô e o pai eram jurisconsultos ejuízes, e à mesma carreira estava destinado Averróis, que no entanto sededicou com grande entusiasmo à medicina, à matemática e à filosofia. Sabemosjá como ele foi apresentado por Ibri-Tofail à corte do rei Yussuf. Este reiconfiou-lhe numerosos cargos políticos que o obrigaram a viajarfrequentemente pela Espanha e por Marrocos. O sucessor de Yussuf, Almansur,

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protegeu igualmente Averróis. Mas quando este foi acusado por suspo*,ta deheresia e, Ial como muitos outros sábios árabes da época, de promover oestudo da ciência e da filosofia dos gregos, em detrimento da religião

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muçulmana, Almansur desterrou-o para a cidade de El-isana (Lucena), perto deCórdova, proíbindo-o dela sair. Averróis teve então de suportar os insultosdos fanáticos. Ele próprio nos conta que uma vez, indo com o filho à mesquitapara assistir à oração da tarde, a turba o expulsou do lugar sagrado. Maistarde, foi enviado para Marrocos e não voltou mais a Espanha. Morreu em 10 deDezembro de 1198, com a idade de 73 anos. Por ordem de Almansur, as suasobras foram todas destruídas e o Ocidente teve delas conhecimento através deversões hebraicas.

Entre as obras de Averróis podemos destacar, em primeiro lugar, osComentários a Aristóteles e que se distinguem em grandes comentários,comentários médios e paráfrases ou análises. Pelas referências contidasnestas obras podemos supor que Averróis tenha redigido os comentários médiosprimeiro que os grandes e as paráfrases e análises contemporâneamente ouquase com os comentários médios. Além destes comentários, Averróis escreveu:1.` A destruição da destruição dos filósofos de Algazali e que é umarefutação da obra de Algazali; 2. Questões ou dissertações sobre diversaspassagens do Organon de Aristóteles; 3. Dissertações físicas ou pequenostratados sobre diversas questões da física de Aristóteles; 4. Duasdissertações sobre a união do intelecto separado com o homem; 5.O Umadissertação sobre o problema de se saber "se é possível que o intelecto(intelecto material ou hílico) compreenda as formas separadas ou abstractas"-,6.O Uma refutação do texto de Avicena Sobre a divisão dos seres; 7.O Umtratado sobre o acordo da religião com a filosofia; 8. Um tratado sobre overdadeiro significado dos dogmas da religião, escrito em Sevilha em 1179.

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§ 241. AVERRóIS: FILOSOFIA E RELIGIÃO

A intenção declarada de Averróis não é a de construir um sistema próprio, masapenas a de esclarecer o significado autêntico da filosofia de Aristóteles,que para ele é a expressão máxima do pensamento humano. "Aristóteles, afirma

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Avicena, é a regra e o exemplo criados pela natureza para demonstrar a máximaperfeição humana. A doutrina de Aristóteles é a verdade máxima, porque a suainteligência reflecte o ponto mais alto do intelecto humano. E bem se podeafirmar que foi criado e oferecido aos homens pela Divina Providência, paraque os homens pudessem saber tudo o que lhes é dado sabem (De an., 111, 14).Com tais considerações sobre o valor de Aristóteles e sobre a verdade da suadoutrina, Averróis evidentemente não pretende ter a presunção de ultrapassaro seu mestre ou de se afastar do caminho por ele traçado. No entanto, na suaobra de ilustração e de wmentários aos textos aristotélicos, perpassam osresultados fundamentais de toda a especulação árabe anterior; ele próprio semove dentro do clima dessa especulação, que é substancialmente umainterpretação neoplatonizante do oristotelismo.

Não obstante a suspeita de heresia que sobre ele pesou, Averróis não concebea investigação filosófica em desacordo com a tradição religiosa. Em primeirolugar, está consciente do valor absoluto dessa mesma investigação. "Naverdade, afirma, a religião própria dos filósofos consiste em aprofundar oestudo de tudo o que é, não se poderá render a Deus um culto melhor do queaquele que consiste em conhecer as suas obras e leva ao conhecimento dopróprio Deus em toda a sua realidade. Esta é, aos olhos de Deus, a acção maisnobre, enquanto que a acção mais desprezível é a de

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acusar de erro e de presunção vã aquele que se consagra a esse culto, que é omais nobre de todos, o que adora Deus com esta religião, que é a melhor detodas" (Muiik, Mélanges, p. 456). Por outro lado, no entanto, a investigaçãofilosófica não pode ser de todos, a religião do filósofo não pode ser areligíão do vulgo. Tal como certos alimentos são bons para certos animais emaus para outros, também os processos dos filósofos que são utilíssimos nassuas investigações são, no entanto, funestos para os não-filósofos. Se osfilósofos viessem demonstrar junto do vulgo as suas dúvidas e as suasdemonstrações, isso poderia dar aso aos incompetentes de levantar ainda maisdúvidas e argumentos sofísticos e de caírem em erro. Por isso, a religião que

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é feita para a maioria, segue e deve seguir outra via, uma via "simples enarrativa" que ilumine e dirija a acção. Este é o verdadeiro domínio darazão. À filosofia cabe o mundo da especulação, e à rehgião o mundo da acção.Quem nega, ou simplesmente duvida, dos princípios enunciados pela tradiçãoreligiosa, tornaria impossível o agir humano, do mesmo modo que tornariaimpossível a ciência aquele que negasse ou duvidasse dos princípios básicosem que ela se fundamenta (Destr. destruct., disp. 6, fol. 56, 79). AverrÓispretende nos seus livros "falar livremente com os autênticos filósofos" e nãoopor-se aos ensi-namentos da tradição religiosa.

Não se lhe pode portanto atribuir aquela doutrina da dupla verdade, que osescolásticos consideraram como pedra angular do seu sistema. Para ele nãoexiste uma verdade religiosa ao lado de uma verdade filosófica. A verdade éuma só: o filósofo procura-a através da demonstração necessária, o crenterecebe-a da tradição religiosa (a lei do Corão) numa forma simples enarrativa, que se adapta à natureza da maior parte dos homens. Mas não existeum contraste entre as duas vias, nem dua-

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lismo na verdade. Averróis escreveu, como já dissémos, dois tratados que sedestinavam a demonstrar o acordo que existe entre a verdade religiosa e afilosófica.

Todos os que são estranhos à especulação devem aproximar-se da forma que averdade recebeu por obra da tradição religiosa, para que assim possam seriluminados e guiados nas suas acções. Mas para os filósofos, ao invés, averdade adquire o aspecto severo da demonstração necessária e passa a ser otermo de uma investigação que é a melhor e mais elevada de todas as acçõeshumanas.

§ 242. AVERRóIS: A DOUTRINA DO INTELECTO

A doutrina que os escolásticos latinos recolheram como sendo típica doaverroísmo é a do intelecto. Com ela, Averróis, distingue-se dasinterpretações que dominam a filosofia árabe de Al Kindi a Ibrí-Tofail. Paraestes filósofos, o Intelecto agente é a última emanação divina e é por issouma

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substância separada de toda a matéria e da própria alma humana, pertencendoao número das substâncias divinas. Ointelecto potencial ou material (hílico)é, pelo contrário, para eles, o intelecto prè@prÍamente humano, a parteracional da alma humana. Este último, passa a acto por obra do primeiro,tornando-se assim intelecto em acto; por sua vez, o intelecto em acto,aperfeiçoando-se com o exercício do raciocínio discursivo, transforma-se emintelecto adquirido (adeptus). A esta doutrina que se encontra exposta edefendida, com poucas variantes, nos filósofos tratados atrás, Averróis vemtrazer uma modificação substancial: o intelecto material ou hílico não é aalma humana. E não é pela mesma razão porque não o é o intelecto activo: umavez que as formas inteligíveis que são o seu objecto

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potencial são universais, eternas, indestrutíveis e não o seriam se seguissema sorte da alma humana, que é diferente nos diferentes indivíduos; quealgumas vezes pensa e outras não; e que pensa diferentemente em cadaindivíduo. Por esses mesmos motivos também o intelecto adquirido ouespeculativo (adeptus, speculativus) que resulta da acção do intelecto agentesobre o íntelecto material ou possível é uno em todos os homens e separado daalma humana. Mas este último pode ter a participação da alma humana na suamultiplicidade e mutabilidade; e essa participação pode ter a forma de umhábito, de uma disposição, ou de uma preparação (habitus, dispositio,preparatio) e que constituem a perfeição da própria alma: uma preparação quesegue os acontecimentos, desde o nascimento à morte, da própria alma, porquepertence à sua capacidade imaginativa (que é dada ao corpo). O intelectoespeculativo, no entanto, pode ser considerado por um lado como ú nico, poroutro como múltiplo; como eterno ou como gerador corruptível. Em si próprio,é único e eterno. Como disposição e preparação da alma é múltiplo e submetidoao nascimento e à morte.

Segundo Averró@s, uma tal solução permite resolver todas as dificuldades quea doutrina do intelecto provocava nas soluções adoptadas pelos seuspredecessores. "Se o objecto inteligível, afirma Avarróis, fosseabsolutamente único em mim e em ti, aconteceria que, quando eu o conhecesse,tu também o conhecerias; e outras coisas impossíveis. Por outro lado, se oobjecto inteligível fosse diferente para os diferentes indivíduos,

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aconteceria que o mesmo estaria em ti e em mim, único, na sua espécie, duplonaindividualidade uma vez que haveria um outro objecto fora dele e este outropor sua vez um outro e assim sucessivamente. Seria ainda impossível nestecaso que o discípulo aprendesse,

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o mestre, a menos que a ciência que existe no mestre não seja umavirtude que gera e cria a ciência que existe no discípulo, do mesmomodo que um fogo gera outro fogo a ele semelhante: o que é impossível.Mas quando pensamos que o objecto inteligível que está em mim e emti é múltiplo para o sujeito para o qual é verdadeiro, isto é, para as formasda imaginação, e único para o sujeito que é o _;ntelecto existente ematerial, tais questões acabam totalmente por desaparecem (Comm. inagiuim Dean., 111, 5). Portanto, segundo Averróis, a virtude cognitiva própria dohomem limita-se à esfera das formas imaginativas, ou seja, das formasextraídas das imagens sensíveis; uma tal vàrtude é simples preparação doIntelecto material, ~elhante à preparação da matéria que se dispõe a recebera obra do artífice (1b., 111, 20).

Deste modo, o processo total do conhecimento iotelectivo, que vai da potênciaao acto, desenrrola-se independente e separadamente da alma humana, que selimita a reflecti-lo imperfeita e parcialmente. O processo integral é postodirectamente em movimento e mantido pelo intelecto activo. A acção deste écomparada por Averróis. de acordo com a imagem aristotélica, à do solenquanto que o intelecto potencial ou materiaí (hí,lico) é comparado àcapacidade de ver, que existe graças à luz solar; e as formas inteligíveis(verdades ou conceitos) existentes na alma humana são comparáveis às cores.Tal como o sol, que flumina, o meio transparente (o ar) e deste modo conduzao acto as cores que existem no objecto, o intelecto activo, ao iluminar ointelecto potencial, faz com que este disponha a alma de forma a que estapossa abstrair das representações sensíveis os conceitos e as verdadesuniversais. Por conseguinte, a alma individual não possui mais nada além domaterial das representações; mas é ela que abstrai

das referidas representações os conceitos, ao unir-se ao intelecto potencial;e este une-se a ela quando a ele se une o Intelecto agente.

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Desta doutrina resulta toda uma série de consequências paradoxais quedesencadearam uma polémica acalorada por parte da escolástica latina. Emprimeiro lugar, o intelecto material é único em todos os inffivíduos porque éa disposição que o Intelecto agente comunicou às respectivas almas.Multiplica-se nos diversos indivíduos como a luz do sol se multiplica aodistribuir-se sobre os diversos objectos que ilumina. Como S. Tomás explica(C. gent.,11, 73), a diversidade dos intelectos humanos é determinada pelo facto deque, actuando o intelecto material sobra as imagens, que não existem todas emtodos os indivíduos, nem são igualmente distribuídas por todos, as coisas queum certo homem pensa não são as mesmas que são pensadas por um outro homem.Em segundo lugar, não pode acontecer que umas vezes o intelecto materialcompreenda e outras vezes não, salvo no caso de determinado indivíduo e nuncano que se refere à espécie humana. Por exemplo, pode acontecer que Sócratesou Platão umas vezes compreendam e outras vezes não o conceito de cavalo;mas, no conjunto da espécie humana, o intelecto compreende sempre esteconceito, a menos que a própria espécie venha a desaparecer, o que éimpossível. Disto resulta que a ciência não pode reproduzir-se nem corromper-se, porque é eterna. Morre a ciência que existe em Sócrates ou em Platão coma morte do indivíduo: mas não morre a ciência em si, porque está ligada a umadisposição universal, essencialmente conexa com toda a espécie humana.

Nesta natureza do intelecto se fundamenta o destino da alma humana. Afelicidade do homem consiste em cultivar e ampliar a disposição que constituio intelecto material, a fim de aperfeiçoar

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e ampliar a capacidade especulativa e conhecer as substâncias separadas efinalmente o próprio Deus. Averróis retoma, na sua totalidade, a doutrinaaristotélica da superioridade da vida teorética. "0 intelecto prático,segundo ele, é comum a todos os homens, todos o possuem, uns em maior grauque outros; mas o imelecto especulativo é uma faculdade divina, que seencontra apenas nos homens excepcionais" (De an., 111, 10, fol. 494 a). Aciência é a única via da beatitude humana: uma beatitude que se atinge nestavida, através da pura investigação especulativa, uma vez que a vida humananão continua para além da morte. Com efeito, a única parte da alma

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humana quenão está ligada ao corpo e não se encontra portanto submetida à reprodução eà corrupção é precisamente o intelecto material. Mas esse intelecto se comosimples disposição faz parte da alma humana, como realidade substancialsubsiste separadamente e não é mais que o próprio intelecto agente. Na almahumana mantem-se apenas o intelecto aquisitivo ou especulativo; mas este,condicionado como está pela parte sensível que lhe fornece as imagens dasquais são abstraídas as formas inteligíveis, está ligado ao corpo, nasce emorre com ele (1b., 111, 1). Averróis é levado a negar a imortalidade da almae a colocar o fim último do homem na bealitude que se pode alcançar nestavida mediante a investigação especulativa e a contemplação das realidadessupremas.

§ 243. AVERRóIS: A ETERNIDADE DO MUNDO

Sobre o problema do intelecto e sobre as questões com ele conexas, entre asquais está a imortalidade humana, Averróis entra em contradição com ospensadores anteriores e especialmente com

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Avicena que identificava o intelecto material com o humano e sustentava aimortalidade própria da natureza e do destino da alma humana. Mas, no que dizrespeito às relações entre Deus e o mundo,

e em especial à criação, Averróis não faz mais que retomar a doutrina dosseus predecessores. A necessidade do ser, tão enèrgicamente defendida porAvicena, é também a pedra angular da metafísica de Averróis. É de notar quetal necessidade não exclui, mas antes exige, a criação: o ser possível emrelação a si mesmo exige o ser necessário que o conduza ao acto e o crie. Masesta criação é apenas, como já notou S. Tomás (§ 278), a dependência causaldo ser possível, que é a-penas necessário em relação a outro, desse outro queé Deus. Exclui assim o início no tempo do ser possível, ou seja do mundo, enada tem a ver com a criação tal como é concebida na Bíblia e no Corão. Estadepende de um acto de vontade do Criador, que dá início no tempo ao mundo e

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prescreve ao mesmo limites temporais definidos. Mas contra este conceito,Averróis Emita-se a repetir as objecções de Avicena. Se Deus criou o mundo donada, isso pode significar que ele o tenha criado por um motivo estranho àsua natureza ou que se tenha verificado na sua natureza uma alteração que decerto modo o haja determinado à criação. Ora ambas estas alternativas sãoimpossíveis. Nada existe fora de Deus, excepto o mundo, por isso Deus nãopôde buscar o inóbil da sua criação no exterior. Por outro lado, nenhumacoisa pode alterar-se a si própria; por conseguânte, a natureza de Deus nãopode também sofrer alteracão. Além disso, se a criação significa uma escolhaáivina, essa escolha deve ser contínua e eterna, a não ser que se verifiquealgum obstáculo ou se lhe apresente uma coisa melhor para escolher. Mas nãopodemos falar em obstáculos em relação a Deus, nem se pode conceber umaalternativa melhor na

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criação do mundo. A escolha de Deus deve ser por isso eterna e contínua e nãose pode falar de um princípio do mundo (Dest. destruct., disp. 1, dub. 1-2).

Averróis aceita a doutrina de AI Farabi e de Avicena, de que o mundo dimananecessàriamente da ciência de Deus e que esta dimanação não é motivo ouintenção particular, porque procede da natureza de Deus, na medida em queeste se conhece a si próprio (Ib., disp. 3, dub. 2). Deve por isso afirmar-seque a acção de Deus na formação e na conservação do mundo não é comparável àacção de nenhum agente Enito, nem natural nem voluntário, uma vez que Deusformou o mundo e mantem-no de um modo que não tem paralelo na acção dascoisas o dos homens.

O mesmo deve afirmar-se da acção de Deus ao governar o mundo. Deus dirige omundo com a sua ciência, mas a ciência de Deus nada tem a ver com a humana.Deus apenas se conhece a si próprio; mas ao conhecer-se a si próprio, conhecetudo. A sua ciência não diz respeito às coisas particulares porque está paraalém dos limites das mesmas. Mas o facto de não conhecer as coisasindividuais deste mundo na sua essência individual, não significa um defeitodo conhecimento divino, pois não é um defeito não conhecer de forma

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imperfeita aquilo que se conhece de um modo mais completo (Epit. metaf., IV,p. 138). A providência divina segue a ciência divina. Como Deus não conheceas coisas indâviduais também não as d-Jrige e governa com a sua acçãoprovidencial. A injustiça e o mal que existem no mundo demonstram clara-menteque, nem Deus nem as outras substâncias separadas que dimanam deledirectamente e regem as órbitas celestes, governam directamente asvissicitudes e o destino dos seres singulares (1b., IV, p. 155). Através domovimento dos corpos celestes Deus regula também os acontecimentos do mundo

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sublunar. Com efeito, o movimento do sol, ao determinar a sucessão dos dias edas noites e a alterriância das estações, regula a geração das plantas e dosanimais. Deus rege deste modo todo o mundo segundo uma ordem necessár@a einfalível. Mas o que é puramente individual ou casual, o que não se integrana ordem necessária de tudo, escapa à providência, assim como à ciência deDeus (Ib., IV, p. 152).

A própria vontade humana é determinada, na medida em que as suas deliberaçõesestão sujeitas à ordem necessária do mundo. Averróis sustenta que as nossasacções dependem,pelo menos em parte, do nosso livre arbítrio, mas afirma que,por outro lado, elas não podem furtar-se ao determinismo da ordem cósmica. Avontade humana é em si um agen!e livre; mas a sua acção manifesta-se no mundoque é regulado pela ordem necessária e eterna de Deus. A relação da vontadecom as causas externas é determinada pelas leis naturais: por isso o Corãofala de uma predestinação infalível do homem (Munk, Mélanges, p. 457-458).

A condenação pronunciada em Paris nos anos de1270 e 1277 contra o averroísmo, referia-se às seguintes proposições: ointelecto de todos os homens é numèricamente uno e idêntico; o mundo éeterno; a alma, que é a forma do homem enquanto homem, corrompe-se com acorrupção do corpo-, Deus não conhece as coisas singulares; o livre arbítrioé uma potência passiva, não activa, movida necessàriamente pelo objectoapetecido; a vontade do homem escolhe por necessidade (Denifle, Chart.Univers. Paris, 1,486-487). Estas proposições incluem aquilo que aos escolásticos latinossurgia como típico do averroísmo e em contraste irremediável com o dogmacristão. Mas o significado do averroísmo não reside apenas nestas

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proposições. Apresenta-se também como a ,grande tentativa de reconquistar,com o regresso a Aristóteles - o filósofo por excelência - a liberdade

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da investigação filosófica; o de dirigi-Ia no sentido de esclarecer essaordem necessária do mundo, cuja contemplação pareceu a Averróis ser o maisalto dever e a felicidade perfeita do homem.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 232. MUNK, Mélanges de philosophie juive et arabel Paris, 1852, 1927;DIETERECI, Die Philosophie der Arabern in Jahrhundert, 4 vol., Leipsig, 1865-1870; CARRA DE VAux, Les penseurs de LlIstam, Paris, 1921; M. HORTEN, DiePhilosophie des Islams, Mónaco, 1924; G. QUADRI, La filosofia degli Arabi nelsuo fiore, Florença, 1939, 2 vols. Da Teologia, a tradução Ia-tina feitasobre a tradução italiana do texto árabe (descoberto em Damasco em 1516, pelohumanista Francesco Rosso) foi publicada em Roma em 1519. O texto do Liber decausis, comentado, a partir do século XM por numerosos autores, encontra-senuma recolha de opúsculos de S. Tomás, Pedro de Auvernia e Egídio Romano,publicada em Veneza em 1507.

Sobre as escolas teológicas: HORTEN, Die philosophischen Probleine derspekulativen Theoloqie in Islam, Bonn, 1912; MACDONALD, Development of MuslimTheoZogu, Jurisprudence and Constitutional Thenry, New York, 1903; GARDET-ANAWATY, Introduction à Ia thèologie musulmane, Paris, 1948. -Sobre osMutakal!Iimun: S. PINES, Beitrãge zur islamichen Atomenlehre, Berlim1936.

§ 233. Os escritos de AI Kindi foram publicados pela primeira vez por ALBINONAGY, Die philosophischen AbhandIungen des AI-Kindi, em (Beitrãge" deBaeumker, 11, 5, 1897. Um escrito de introducão ao estudo de Aristóteles foipublicado por GUIDI e WALZER, em "Atti Aec. dei Lincei", 1940, série VI, vol.VI. Um escrito moral de WALzER e RITTER, V01. VIII.

AI Kindi foi também autor de escritos sobre astronomia, medicina e óptica: Deastrorum indiciis, Veneza,1507: Liber novem indicum, Veneza, 1509; De rerum gradibus, Argentorati,1531; De temporum mutationibus8ive de imbribus, Paris, 1540; De aspectibus, ed. Bjoernbo-Vogl, Leipsig,1912.

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Sobre a doutrina do intelecto: GILSON, Les sources gréco-arabes deIlaugustinisme avicénnisant, em "Arch. d'Hist. doctr. et @it. du m. â.",1930.

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§ 234. De AI Farabi: De scientiis, De intelectu, Paris, 1638; ed. com trad.frane. de Gilson, em "Arch. £I,Hist. doetr. et lit. du m. á.", 1929-30;Philosophische AbhandIungen, texto árabe, ed. Dieteríci, Leiden, 1890; DasBuch der Ringsteine, cd. Horten, em "Beitrãge", V, 3, 1906; De ortuscientiarum, ed. B&euml-er, Munster,1916; ed. com trad. ingl. ed. Harmer, Glasgow, 1934; De arte poetica, comtrad. ing1. ed. Arberry, em "FUvista di Studi Orientali", 1930; De Platonisphilosophia, ed. Rosenthal-Walzer, Londres, 1943; Compendium legum Piatonis,texto árabe e trad. lat., ao cuidado de Gabrieli, Londres, 1952.

MADICOUR, La place d'Al Farabi dans Fécolé philosophique musulmane, Paris,1934.

§ 235. De Avicena: a parte do Cânone de medicina traduzida na Idade Mádia, emOpera Omnia, Veneza,1495, 1508; Metafísica, trad. alemã, Horten, Lcíp@ig,1913, 1960; Compendium metaphysicae, ed. Carame, Roma, 1926; De anima, ed.Rahman, Londres, 1959; Traités mystiques, trad. frane. Mehren, Leiden, 1889-1899; Logica oriental (Mantigual-masriqiyyah), Cairo,1910; Epitre des définitions, trad. frane. Goiclwn, Bey- rut-Paris, 1951;Livre de sciences, trad. frane. Massé, Paris, 1955; Poème de Ia mèdicine,texto árabe com trad. frane. e lat,, ao cuidado de Jahier e Novreddine,Paris, 1956. -Bibliografia: SA'TI) NAFICY, Bib. des principaux travauxeuropéens sur A., Teerão, 1953; PUR-E SINA (A., his life, Works, Thought andTime) Teerão,1954; ANAWATI, Chronique avicénnienne, 1951-1960, em "Rev. Thomiste", 1960.

CARRA DE Vxux, A., Paris, 1900; SALIBA, Mudes sur métaphysique d'Avicenna,Paris, 1926; GoiCHON, La distinction de Vessence et de rexistence d'après IbnSina, Paris, 1937; La phil. dA. et son influence en Europe médiévale, Paris,1944, 1951; GARDET, La pemée religieuse d'A., Paris, 1951; La connaissancemystique chez Ibn-Sina, Cairo, 1952; RAHMAN, Avicenna's Psychology, Oxford,

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1952; AFNAN, A., His Life and Works, Londres-New York, 1958.

§ 237. De AI-Gazali: As tendências dos filósofos foram publicadas na trad.lat. com o título Logica et philosophiae, Veneza, 1516. A trad. lat. daDestructio philosophorum tem sido sempre editada juntainente com aDestructio, destructionum de Averróis; Tendentiae philosophorum, Leiden,1888; Destructio philosopharum,

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Cairo, 1888; Metaphysic. A Medieval Transtation ed. Muckl.e, Toronto, 1933.

ASIN PALACIOS, Algazei: Dogmatica, Moral, Ascética, Saragoça, 1901; CARRA DEVAux, Gazali, Paris,1902; OBERMANN, Der philosophie und religiose Subjektivismus Ghazalis, Viena-Leipsig, 1921; WATT, The Faith and Practice of al-Gazali, Liondres, 1953;FARID YABRF, La notion de certitude selon Ghazali dans ses origmespsychologiques et historiques, Paris, 1958.

§ 238. De Avempace: De plantis, Continuatio intellectus cum homine, Epistolaexpeditionis, Regime del solitario, textos árabes e= trad. espanhola a cargode Asin Palacios em "Al-Andalus", 1940, 1942, 1943.

MUNK, Mélanges, cit. p. 386-410; FARRUKH, Ibn Baajja (Avem pace) and thePhilosophy in the Modern West, Beirute, 1945.

§ 239. De Ibn Tofail: o tratado, cujo títu@o em árabe é Hajj ibn Jaqzân, vempublicado no original e numa tradução latina de E. Pococke, Oxford, 1671, como título: Philosophus autodidactus sive epistola in qua ostenditur quomodo exinferiorum contemplatione ad superiorum notitiam mens ascendere possit. Otexto árabe com tradução francesa foi publicado por Gauthier, Argel, 1900, eteve numerosas traduções em outras línguas.

GAUTI-11ER, Ibn Tofail, Paris, 1909. § 240. De Averróis: a tradução latinados seus escritos foi editada pela primeira vez em 1472 e depois editada emVeneza, várias, dezenas de vezes, juntamente com as obras aristotélicas: amelhor edição é a de 1552 a qual existe, uma reedição, Froncoforte do Meno,1962. Commentarium magnum in De anima, ed. Crawford, Cambridge (Mass.), 1953;Traité dé~f sur l'accord de Ia religion et de Ia philosophie, texto árabe e

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trad. frane. de Gauthier, Argel, 1942; trad. alem. Müller, Mónaco, 1875;trad. ing1. Jamil-ur-Rehman, Baroda, 1921; trad. esp. Alonzo, Madrid 1947; Degeneratione et corruptione, ed. Kurland, Cambridge (Mass.),1958; Parva Naturalia, ed. ShieIds, Cambridge (Mass.),1949.

RENAN, Averroes et Faverroisme, Paris, 1851, 1869; GAUTHIER, Ibn Roschd,Paris, 1948; ALLARD, Le rationalisme dAverràes d'après une étude sur Iacréation, Paris, 1955.

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xI

A FILOSOFIA JUDAICA

§ 244. A CABALA

Como acontece com a filosofia árabe, com a qual tem muitos caracteres emcomum, a filosofia judaica começa a constituir, a partir do século XIII, umadas componentes fundamentais da escolástica latina. Como acontece com afilosofia árabe e a filosofia cristã da Idade Média, a filosofia judaica éuma escolástica que tem em comum com as duas primeiras os problemasfundamentais (as relações entre a razão e a fé, entre Deus e o mundo, entre ointelecto e a alma) e empenha-se em resolvê-los com os mesmos dados ou comdados semelhantes: a filosofia grega e a tradição religiosa judaica. Maispróximo desta tradição e em polémica com as tentativas mais francamentefilosóficas para encontrar uma justifi- cação racional das crençasreligiosas, encontra-se o misticismo que assume predominantemente a forma daCabala.

A Cabala (que significa tradição) é uma doutrina secreta que a principio setransmitia oralmente e mais tarde foi recolhida num certo número de trata,

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dos, dois dos quais existem na totalidade ou quase: o Livro da Cri4ção (SeferYetsirá) e"o Livro do Esplendor (Zohar). Trata-se de escritos em cujacomposição entram elementos heterogéneos. Se bem que alguns destes elementossejam provàvelmente bastante antigos, o segundo destes escritos, o Zohar, naforma que chegou até nós, pertence, quase de certeza, à segunda metade doséculo XIII. Tal como são, estes textos apresentam uma doutrina emanenhista,substancialmente semelhante à dos Neopitagóricos e dos Neoplatónicos dos

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primeiros séculos. Neles se afirma que Deus é ilimitado (En Sof.), isto é,inacessível a toda a determinação e a todo o conhecimento. Como tal, é anegação de to-da a coisa determinada, não é nenhuma coisa, é portanto o não-ser ou o Nada. A criação do mundo surge mediante a aparição de substânciasintermédias chamadas Números (Sephiroth) que são, no tempo, os atributosfundamentais de Deus e as forças através das quais se realiza a criaçãodivina. A mediação dos Sephiroth serve para garantir a Deus a absolutaunidade, ainda que a sua acção se expanda na multiplícidade das coisas, eneste sentido podem ser comparados aos primeiros e mais directos raios doEsplendor divino. Os Sephi -

roth são dez: I.'- A Coroa; 2.'-A Sabedoria;3.'-A Inteligência; 4.'-a Graça; 5.'-a Justiça;6.'-a Beleza; 7.0-o Triunfo; 8.o-a Glória:9.---o Fundamento; 10.'-a Realeza. A acção destas substâncias produz toda arealidade do mundo visível, as três primeiras constituem o mundo inteligível,segundo o esquema da trindade neoplatónica.O munIo visível e o inteligível têm a sua proveniência comum no amor e tendema aproximar-se e a unir-se. O impulso deve provir do mundo inferior que devetender para o superior; em resposta a este impulso, o próprio mundo superiordeseja e ama o mundo inferior. Deus não ama senão aqueles que o amam.

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A alma humana -reproduz as três primeiras substâncias emanadas: em primeirolugar está o espírito vital, depois o espírito intelectual, e finalmente aalma verdadeira e própria, que domina sobre as duas precedentes e é o orgãoda santidade e da virtude superiores.

A Cabala não tem intentos filosóficos e à expressão ceptual prefere aconcepção imaginativa ou alegórica. A posição que pretende suscitar é a domisticismo, a base doutrinal que pretende defender é a ortodoxia judaicatradicional. Ainda que tenha extraído os seus conceitos do helenismo e daprópria obra dos filósofos judeus da Idade Média, os defensores ouexpositores que teve nos séculos XIII e XIV entendem fazer dela umaalternativa às obras dos filósofos e -polemizam com eles. Todavia, noRenascimento os próprios filósofos iriam buscar à Cabala parte da suainspiração e utilizaram-na frequentemente como instrumento de interpretaçãodos livros sagrados.

§ 245. ISAQUE ISRAELI

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Como já se disse, a filosofia judaica consiste substancialmente num encontroda tradição judaica com o helenismo; e sob este prima o mais antigo filósofojudeu da Idade Média é Isaque Ibri Salomão Israeli, que viveu no Egipto entre845 e 940. As suas obras de medicina foram traduzidas para o latim porConstantino Africano; os seus escritos filosóficos, Livros das Definições eLivro de Elementos, foram traduzidos do árabe para o latim, por Gerardo deCremona. Isaque não é um filósofo original, mas apenas um compilador que seserve sobretudo de fontes neoplatónicas, especialmente do Livro de Causas.Muitos latinos do século X111,

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entre os quais S. Tomás, foram buscar a Isaque a definição de verdade como"adequação entre o intelecto e a coisa".

§ 246. SAADJA

O verdadeiro fundador da escolástica hebra-ica é Saadja, que foi célebrecorno filósofo e teólogo, mas também como poeta. Nasceu em Fajjoum, noEgipto, em 892 e em 928 foi designado dirigente da academia de Sora (perto deBagdad) que era então a sede principal do rabinismo. Morreu em Sora em 942. Amais notável das suas obras é o Livro da Fé e da Ciência que escreveu emárabe, e em

verso, em 932.

Ao lado da autoridade da escritura e da tradição, Saadja reconhece a da razãoe afirma não apenas o direito, mas também, o dever, de compreendermos averdade religiosa para assim a consolidarmos e defendermos dos ataques quelhe são dirigidos. A razão ensina-nos as mesmas verdades que a revelação, masesta é necessária para que o homem possa atingir de modo mais rápido a ver-

dade que a razão, abandonada a si própria, só teria podido alcançar depois deum longo trabalho. Os pontos sobre que se debruça a especulação de Saadjasão: a unidade de Deus, os seus atributos, a criação, a revelação da lei, anatureza da alma humana, ete. A propósito de Deus, Saadja afirma que ascategorias aristotélicas lhe são aplicáveis. Defende a criação do nada,refutando os sistemas contrários a este dogma. Defende também a liberdade

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criadora de Deus e reconhece ao homem o livre arbítrio. Verificamos, noentanto, que no seu pensamento ainda não se faz sentir a influência doaristoteliismo: isso só vem a acontecer nos filósofos judeus de Espanha e, emprimeiro lugar, em Ibri- -Gebirol.

226

§ 247. IBN-GEBIROL: MATéRIA E FORMA

Salomão Ibn-Gebirol, foi reconhecido por Munk como o autor da Fons Vitae,aquele que os escolásticos latinos conheceram sob o nome de Avicebron comosendo árabe. Nasceu em Málaga em 1020 ou 1021, fez a sua educação em Saragoçae viveu provàvelmente até 1069 ou 1070. Foi célebre como poeta e, segundo umatradição lendária, foi morto por um muçulmano que tinha inveja do seu génio.A figueira sob a qual foi sepultado deu frutos de tal modo extraordináriosque atraiu a atenção do rei sobre o seu proprietário que foi obrigado acorifessar o crime. A sua obra, A Fonte da Vida, escrita em árabe, foitraduzida para o Iatim por João Hispano e Domingos Gundisalvo. Está compostaem forma de diálogo entre mestre e aluno e dividida em cinco livros.

A especulação de Ibn-Gebirol é dominada pelos conceitos aristotélicos dematéria e forma. O princípio de que parte é o da composição hilomórficauniversal; tudo o que existe, é necessàriamente composto de matéria e forma.Começa por reduzir a uma matéria única as díversas matérias e a uma únicaforma as diversas formas existentes. Com este objectivo, começa por reduzir àunidade a matéria e a forma das coisas sensíveis. Nestas, as várias espéciesde matéria, quer as artificiais, por exemplo, o bronze, quer as naturais (osquatro elementos), quer as celestes, têm todas a mesma natureza, que é a desubstracto da forma. Por outro lado, todas as formas sensíveis têm em comum acaracterística de serem formas corpóreas. Nas coisas sensíveis, portanto,existe uma só matéria, o corpo, e uma só forma, a forma corpórea oucorporeitas.

Mas a matéria não é apenas corpo, uma vez que se só torna corpo quando a elase junta a forma particular que é a corporéidade; e por outro

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lado, a forma não é apenas corporeidade porque esta é apenas a determinação

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de uma forma mais universal. Uma matéria que seja maas universal que amatéria corpórca deve ser comum não só aos corpos como também aos espíritos:é uma matéria que entra na composição quer das substâncias espirituais querdas corpóreas. As substâncias espirituais não são simples, são tambémcompostas de matéria e forma. Nos escolásticos latinos, a doutrina de Ibri-Gebirol aparece tipificada neste princípio da composiçao hilomórfica dassubstâncias espirituais.

Se se trata de uma matéria universal, comum também às substânciasespirituais, então tratar-se-á de uma forma universal comum a todos os seres.Esta forma universal é o conjunto das nove categorias de Aristóteles, queconstituem precisamente as determinações mais gerais do ser. A matériauniversal é a primeira das categorias aristotélicas, a substância, quesustenta (sustinet) as outras nove categorias (Fons vitae, 11, 6).

Assim unificadas e universalizadas, a matéria e a forma não subsistem em si,mas na mente do Criador. Na Sabedoria de Deus, matéria e forma subsistem nasua distinção. A criação comiste na união, determinada pela vontade divina,entre a matéria e a forma. Mediante ela, a forma une-se à matéria edetermina-a, comunicando-lhe, pouco a pouco, as suas sucessivasdeterminações: as qualidades primárias, a forma mineral, a forma vegetativa,a forma sensitiva, a forma racional, a forma inteligível. Mas o pressupostodesta união entre a matéria e a forma, e em que consiste a criação, é avontade de Deus.

§ 248. IBN-GEBIROL: A VONTADE

A matéria e a forma têm em comum entre si o desejo de se unirem uma à outra.A matéria

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anu a forma e deseja gozar a alegria que experimenta ao unir-se a ela; aforma deseja realizar-se na matéria para nela produzir a sua acção, segundo oimpulso que lhe é transmitido pelo próprio Criador (Fons vitae, 111, 13). Oamor e a tendência recíproca, que existem entre a matéria e a forma, devemderivar de uma substância superior de que ambas participam. Esta :substânciaespiritual, e más que espiritual, é o Verbo agenie (Verbum agens) ou vontadede Deus. "No ser, afirma Ibn Gebirol, apenas existern três coisas: a matériae a forma, por um lado, a Essência primeira, por outro; e a Vontade que

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é omeio entre os dois extreinos". A Vontade cria a matéria e a forma universaise por conseguinte, todos os seres que resultam da união da matéria e daforina. A Vontade está ligada à matéria e à forma tal como a alma está ligadaao corpo: funde-se nelas, penetrando-as completamente (1b., V, 36). Essa é avirtude da Essência primelira, de Deus, e por conseguinte, a intermediáriaentre essa mesma essência o a matéria e a forma.

No entanto, entre a Essência primeira ou Verbo agente, e a matéria, Ibn-Gebirol admite uma série de formas ou substâncias separadas, inspirando-seevidentemente no neo-platonismo do Liber de causais. Estas substâncias, deacordo com a ordem que vai do menos perfeito e menos simples ao mais perfeitoe mais simples, são as seguintes: a natureza, as três almas (vegetativa,sensitiva e racional), a inteligência. A inteligência compreende todas asformas e conhece-as. A alma racional compreende as formas inteligíveis econhece-as mediante um movimento discursivo que a faz passar sucessivamentede uma para outra. A alma sensitiva percebe as formas corpóreas e conhece-as.A alma vegetatíva apodera-se do corpo e faz com que este se mova. A naturezaune as partes do corpo, gera entre elas

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a atracção ou a repulsa e alterna-as entre si. Estas substâncias intermédiassão menos perfeitas à medida que se afastam da sua forma comum, a vontadecriadora de Deus. A sua crescente imperfeição explica-se com a diminuição dopoder da Vontade criadora, que, sendo infinita em si, é finita na sua acção epor isso vai enfraquecendo (como um ra;o luminoso que se afasta do centro queo produz) à medida que vai avançando (lb., IV, 19).

A filosofia de lbn-Gebirol apresenta, no seu conjunto, uma originalidade euma força que lhe asseguraram grande influência nos séculos seguintes. Aparte históricamente mais importante da mesma é a afirmação da matériauniversal. Combatida por S. Tomás, esta afirmação virá a ser retomada porGiordano Bruno que fará dela o pressuposto do seu panteísmo.

§ 249. filosofia judaica: REACÇÃO CONTRA A FILOSOFIA

A reacção da ortodoxia judaica contra a Elosofia é representada por algumas

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figuras que têm escasso relevo especulativo. No final do século XI, Baclijalbn-Pakudia, num texto seu, Deveres dos corações, coloca a moral práticaacima da especulação e representa na tradição hebraica o que Algazelrepresenta no mundo árabe. Em 1140 o poeta Yehuda Halevi num livro intituladoKuzari parte de uni facto histórico: a conversão ao judaísmo de um rei dosJazares (séc. VIII), para fazer a

apologia do judaísmo e uma condenação da investigação filosófica. Abraão BenDavid, de Toledo, escreveu em 1161, em árabe, um livro chamado A fé sublime para demonstrar o acordo entre a teologia liebraica e a filosofiaaristotélica. Mas esta tentativa teve pouca fortuna; e o único que consegueentre os Judeus alcançar um lugar importante na investigação filosófica éMaimónidas.

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§ 250. MAIMóNIDAS: A TEOLOGIA

Moshé lbn Maymon, chamado Maimónidas, nasceu em Córdova a 30 de Março de1135. Por causa da intolerância dos almohades, a sua família foi obrigada aabandonar a Espanha e a fixar-se, primeiro em Fez, Marrocos, e depois naPalestina. Daqui, Moisés passou para o Egipto, instalando-se na velha Cairo.Ao mesmo tempo que se dedicava ao comércio de pedras preciosas, dava cursospúblicos que lhe granjearam fama como filó sofo e teólogo, mas sobretudo comomédico. O rm,nistro do célebre sultão Saladino, que naquele tempo tinhaestendido o seu -Poder ao Egipto, assegurou-lhe os meios necessáriospararenunciar ao comércio e dedicar-so apenas à ciência, nomeando-se médicoda corte. Ma-imónidas consegue então obter grande celebridade e fortuna, epôde, com a ajuda do seu protector, furtar-se às acusações que lhe foramfeitas de haver regressado ao judaísmo depois de ter aceitado, durante a suaestadia em Espanha quando jovem, a fé muçulmana. Morreu em 13 de Dezembro de1204.

Maimónidas é autor de numerosos textos médicos e teológicos. Entre estesúltimos tem importância fLUosófica um chamado Oito capítulos. Um seuVocabulário da lógica foi traduzido para latim por Sebastião Munster. Mas asua obra fundamental é o Guia dos perplexos, na qual procurou levar a cabo aconciliação entre a Bíblia e a filosofia, a revelação e a razão. A obra estádirigida àqueles que rejeitam tanto a irreligiosidade como a fé cega e

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que,ao encontrarem nos livros sagrados coisas contraditórias ou na aparênciaimpossíveis, não ousam admiti-Ias para não irem contra a razão, nem rejeitá-las para não menosprezarem a fé; ficando por isso dominados por umaperplexidade dolorosa. A estes perplexos se dirige Maimónidas, com o

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propósito de utilizar todas as armas dialécticas, proporcionadas pelafilosofia árabe e judaica na defesa da fé tradicional.

Vimos já que o resultado substancial da filosofia árabe desde AI Kindi aAverróis foi a elaboração do princípio da necessidade do ser, princípio quetem como imediata consequência a eternidade do mundo. É certo que contra essemesmo princípio se fez sentir a reacção dos Mutalcalli-mun, dos Asharias e deAlgazel; mas esta reacção, que partia da ortodoxia -religiosa, era estranha àfilosofia e por isso contrária a todas as filosofias. Parecia que a defesa danovádade do mundo e da criação não podia ser feita a não ser em nome da fé ecom a renúncia de todas as vantagens que a investigação filosófica tinhatrazido à própria compreensão da verdade revelada. A originalidade deMaimónidas que, no entanto, se apresenta de início como defensor do mundo eda criação, reside no facto de ele não renunciar ao processo demonstrativo eaos resultados da filosofia da necessidade. Uma vez que a existência de Deuse as outras verdades fundamentais não permitem ser demonstradas rigorosamentea não ser através dos processos dessa mesma filosofia e na base do princípioque a mesma defende, parece ser de utilizar este princípio para seestabelecer as verdades fundamentais, para em seguida submeter a uma análiseo referido princípio. "Creio, diz Maimónidas (Guia, 1, 71), que o verdadeiromodo, o método demonstrativo que elimina a dúvida, consiste em estabelecer aexigência de Deus, a sua unidade e a sua corporeidade de acordo com oprocedimento dos filósofos, procedimento esse que se baseia na eternidade domundo. Não ,porque eu creia na eternidade do mundo ou faça a este propósitoqualquer concessão; mas porque só com este método a demonstração se tornasegura e se obtém uma certeza perfeita sobre estes pontos:

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que Deus existe, que é uno, que é incorpáreo, sem que isto implique decidir o

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que quer que seja quanto ao mundo, se ele é eterno ou se foi criado. Uma vezresolvidas, com uma verdadeira demonstração, estas três questões graves eimportantes, poderemos voltar em seguida ao problema da novidade do inundo epara isso deitaremos mão de todos os argumentos possiveis". Noutros termos,Maimónidas admite a título de hipótese provisória o princípio da necessidadedo ser para poder demonstrar certas verdades fundamentais-, deixando paradepois, num

segundo momento, a discussão do corolário fundamental daquele princípio, aeternidade do mundo.

Sob esta base, Maimónidas procede à demonstração da existência, de Deus e dosseus atributos fundamentais, a unidade e a corporcidade: e as suasdemonstrações não fazem mais que seguir de perto o que disse Avicena. Supondoque alguma coisa existia (e para que qualquer coisa exista. bastam os nossossentidos para o demonstrar), existe necessàriamente um Ser necessário. Já queaquilo que existe, ainda que seja apenas como possível, é necessário emrelação à sua causa; e esta causa é precisamente o Ser necessário (1b., 11,1). Deus conhece todas as coisas, mesmo as particulares; mas conhece-as comum único e imutável acto de ciência. A multiplicidade das coisas conhecidasnão implàca a multiplicidade do saber divino, que permanece único porque nãodepende das coisas, que por seu lado dependem dele (1b., 111, 20-21).

Estabelecida a existência de Deus, Maimónidas passa a considerar o problemado mundo. O argumento mais forte adoptado por Avicena a favor da eternidadedo mundo era o seguinte: o mundo, antes de ser criado, era possível; mas todaa possibilidade implica um substrato material; por conse- ,guinte, antes dacriação subsistia a matéria do mundo. Mas nenhuma matéria existe privada de

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forma; por conseguinte, antes da criação, subsistiam a matéria e a forma domundo, ou seja, o próprio mundo na sua totalidade. A este argumento e a todosos outros da mesma espécie, Maimónidas opõe que é impossível raciocinar sobre

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as condições em que se encontrava quando começava a nascer, uma coisa queagora está acabada e perfeita. Não podemos recuar do estado em acto de umacoisa para o seu estado potencial; por conseguinte, todos os argumentos quese servem desta forma de agir são viciosos e não têm qualquer forçademonstrativa. Se a tese da eternidade do mundo não pode ser demonstrada, atese oposta, da criação é, pelo menos, possível. Mas Maimónidas sustenta que,mais que possível, é certa e dá-nos disso a razão.

Essa razão consiste substancialmente no reconhecimento da liberdade do actocriador, liberdade que rompe com a necessidade do mundo, da qual derivaria asua eternidade. Pela negação da necessidade do ser, Maimónidas pretendechegar à negação da eternidade do mundo; e consegue chegar à negação da suanecessidade ao reconhecer em determinado momento do processo criativo umaliberdade de escolha por parte de Deus, uma decisão contingente, nãorigorosamente determinada pela exigência de garantir a ordem necessária dotodo. De qualquer modo, o mundo teria podido ser diferente do que é; noentanto ele é aquilo que é devido a uma livre escolha de Deus que exclui anecessidade absoluta e, por conseguiinte, a eternidade. "Se debaixo da esferaceleste existe uma tal disparidade de coisas, não obstante a matéria ser umasó, poderás dizer que essa disparidade se deve à influência das esferascelestes e às diferentes posições que a matéria assume perante elas, comoensinou Aristóteles. Mas a diversidade que, existe entre as esferas celestes,quem poderá determiná4a senão Deus?

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Se alguém afirmar que ela é produzida pelos intelectos separados isso nadaexplicaria: os intelectos não são corpos que possam ocupar uma posiçãorelativamente à esfora. Porque razão o desejo que atrai cada uma das esferaspara a sua inteligência separada arrastaria uma esfera para leste e outrapara oeste? Por outro lado, qual a razão porque uma esfera seria mais lenta eoutra mais rápida?" (-1b., 11, 19). A única resposta possível a estasperguntas é, segundo Maimónidas, a contingência do mundo. "Deus determinoucomo quis a direcção o a rap@dez do movimento de cada esfera, mas nósignoramos o modo como ele realizou o facto, segundo a sua sabedoria". E deste

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modo, Maimóffides partindo da hipótese da eternidade para chegar a Deusmediante uma demonstração necessária, consegue negar a própria hipótese einutilizar, no terreno da filosofia, a necessidade do mundo que era oresultado fundamental da especulação árabe.

§ 251. MAIMóNIDAS: A ANTROPOLOGIA

Tal como a metafísica de Maimónidas é dorninada pela exigência de ressalvar aliberdade criadora de Deus, ainda que nela não se negue a ordem do mundo nemse faça da realidade um milagre contínuo, também a antropologia é dominadapela exigência de ressalvar a liberdade humana, quer no

domínio do conhecimento quer no domínio moral. Vim-os já como a filosofiaárabe tinha constantemente atribuído ao Intelecto agente, separado e divino,a total iniciativa do conhecer humano. Ma,imónidas, ainda que reproduzindonos seus traços fundamentais a doutrina de Avicena sobre o intelecto,modifica-a no sentido de reservar ao homem e ao seu esforço deaperfeiçoamento a verdadeira e própria iniciativa do conhecer. A almaracional do homem

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é o intelecto hilico, material e potencial, que se encontra no corpo, talcomo as almas das esferas celestes se encontram nos corpos das própriasesferas. Este intelecto passa a acto e eleva a alma ao conhecimentoverdadeiro e próprio das formas inteligíveis, por acção do Intelectoagente que não é múltiplo, nem se encontra nos corpos diversos, como ainteligência hílica, mas único e separado de todos os corpos (1b., 1, 50-52).Até aqui nada de novo: trata-se da reprodução da doutrina de Avicena. MasMaimónidas acrescenta que para o Intelecto poder fazer passar a acto ointelecto hílico, precisa de encontrar uma matéria preparada para receber asua expansão. Conforme a alma racional esteja ou não convenientementedisposta, assim receberá ou não a influência do Intelecto agente, passará ounão a acto, e o realizar-se numa ou noutra das alternati,vas não depende doIntelecto agente, que permanece sempre idêntico, mas apenas no homem,Maimónidas retira assim ao Intelecto agente a iniciativa de conhecer erestitui-a ao homem. Consoante o grau de preparação da sua alma racional,assim recebe o homem mais ou menos a acção do intelecto agente e se erguemais ou menos para a perfeição; já que para ele a perfeição consiste emtornar-se inteligência em acto e em conhecer, de tudo o que existe, aquiloque lhe é dado conhecer (1b., 111, 27). A maior parte dos homens recebe

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doIntelecto agente apenas a luz que chega para alcançar a perfeição individual;outros recebem uma acção mais abundante, que os estimula a criar obras e acomunicar aos outros homens a sua própria iluminação. Quem recebe a imanaçãodo Intelecto agente na alma racional é um sábio que se dedica à especulação.Quem a recebe não só na alma racional, mas também na capacidade imaginativa,é um profeta. A profecla representa (como já acontecia em AI Farabi e emAvicena) a mais elevada

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perfeição do homem, porque só na alma melhor disposta a influência doIntelecto agente se expande para lá da razão, na faculdade imaginativa (1b.,11,36-37).

Maimónidas, assim como defende a actividade humana no domínio do con-heoimento, também defende a liberdade humana no domínio da acção. É certo quea providência divina se estende a todo o futuro e por conseguinte determinatambém as acções humanas que irão acontecer. Mas não se pode renunciar aadmitir a liberdade que é o princípio da acção e a condição daresponsabilidade humana. É preciso portanto afirmar que a predeterminaçãodivina e a liberdade humana são conciliávèis; só a forma como o são é que nosescapa. A própria providência exerce-se tendo em conta a liberdade, a razão eos méritos do homem, e não se deve impor ao homem o peso de uma ordem pré-constituída que lhe tolha a liberdade (1b., 111, 17-18).

Da sua doutrina do intelecto, Maimónidas deriva a da imortalidade. Aimortalidade não é para todos os homens, está reservada aos eleitos, àquelesa que a Bíblia chama as "almas dos justos" (1b., H, 27;1, 70). Mas não se trata de uma imortalidade singular. Maimónidas admite oprincípio aristotélico de que a diversidade entre os ind,ivíduos de uma mesmaespécie é devida à matéria. Para as inteligências separadas, este princípionão vale: estas são distintas únicamente pela razão causal, pela qual uma écausa e outra efeito. Mas as almas dos homens são distintas entre si apenaspelos corpos: e uma vez corrompido o corpo, a distinção entre os indivíduosdesaparece, pois apenas fica o puro intelecto (1b., 1, 74). A imortalidade do

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homem não é mais que a sua participação na eternidade do Inteler-to separado.O homem não é verdadeiramente, segundo Maimónidas, imortal como homem, mas

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apenas, como parte do Intelecto agente; e a medida da sua imorta-lídade édevida à medida da sua participação nesse intelecto, ou seja, à medida dasua elevação espiritual.

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 244. Sobre a filosofia judaica: MUNK, Méianges, cit., p. 461-511; STOCKL,Geschichte der Phil. des Mittelalters, II, p. 227-305; NEumARK, Geschichteder judischen Phil. des Mittelalters, Berlim, 1907-1928; HuSIK, A History ofMedieval Jewish Philosophy, New York, 1918; GUTTMANN, Die Philosophie, desJudentums, Munique, 1933; BERTOLA, La filosofia ebraica, Milão, 1947; ADLER,Philosophy of Judaism, New York, 1960.

O Livro da Criação foi imprimido em Basileia em1567, numa recolha com o título de Artis cabbalisticae scriptores; outra ed.Amesterdão, 1642, reeditada por GoIdschmidt, Francor-f do Meno, 1894. O Livrodo EsvIendor, impresso pela primeira vez em Mântua,1558-1560, teve depois várias edições com a tradução latina de Amesterdão, de1670 em diante. Traduções francesas de DE PAULY, Paris, 6 vols. 1905-1911.FRANK, Système de Ia Eabbale, Paris, 1842; PicK, The Cabala, Londres,1914; BOSKER, From the World of the Cabbalah, New York, 1954; SEROUYA; LaKabbale, Paris, 1957.

§ 245. As obras de Isaque com o titulo Opera Omnia, editadas em Lyon em 1515;esta edição compreende a tradução latina do Livro das Definições e do Livrodos Elementos; ed. Muckle, in "Archiv. d'Hist. doctr. et litt. du m. â."1937-38; trad. ing. de Stern, Londres, 1958.

GuTTMANN, Die philosophischen Lehren des Isaac, em "Beitrage", X, 4, 1911.

§ 246. De Saadja: Ouvres complètes, ed. Derenbourg, 6 vols., Paris, 1893-1896.

GRVNFELD, em "Beitrage", VII, 6, 1909; MALTER, Saadia Gaon,

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Filadelfia,1921; VENTURA, La phil. de S. G., Paris, 1934; FREIMANN; Saadia'sBibUography, New York, 1943.

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§ 247. O Fons Vitae de Ibn-Gebirol foi editado nas partes fundamentais emárabe e traduzido para francês por MUNK, Mélanges, cit. A tradução latina deJoão Hispano e Domingo Gundisalvo, por Ba,eumker, nos seus "Beitrage", 1, 2-4, 1892-1895.

MUNK, Mélanges, cit., p. 151 e sgs.; GUTTMANN, Die Philosophie des Salomonvon Gebirol, Cottingen, 1889; BERTOLA, Salomon ibn Gebirol (Avicebron),Pádua, 1953.

§ 249. O livro de Bachja Sobre os deveres dos corações teve idêntica ediçãona tradução hebraica; Nápoles, 1490; Leipsig, 1846; Viena, 1854. Com traduçãoalemã de STERN, Viena, 1856; tradução alemã de FURRSTENTHAL, 1836.

O livro Alcharari de Gluda Halevi foi publicado com a tradução latina emBasilei-a em 1660; com tradução alemã em Leipsig, 1841-1853, 2.1 ed., Leipsig,1869.

O livro de Ben David A fé sublime, na tradução hebraica acompanhada datradução alemã, foi publicado por WeiJ, Franefort do Meno, 1852.

§ 250. A tradução latina do Guia dos Perplexos de l@faimõnidas com o títuloDux seu doctor dubitantium seu perplexorum, foi editada em Paris em 1520. Otexto árabe foi publicado com tradução francesa por S. MUNK com o titulo Leguide des égarés, traité de théologie et de philosophie, 3 vols. Paris, 1856,1861, 1866; trad. ing. edlãnder, Londres, 1881, 1885; 2.1 ed. New York,1925.

LEVY, Maimónide, Paris, 1911, reedição em 1931, com bibl.; SÉROUYA,Maimónide, Paris, 1951; ZEITLING, Maimónides,. New York, 1955.

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xII

A POLÉMICA CONTRA O ARISTOTELISMO

§ 252. ARISTOTELISMO: AS TRADUÇõES LATINAS

DE ARISTóTELES

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O século XIII assinala o florescimento da escolástica. A tentativa de levar arazão humana à compreensão das verdades reveladas é o seu maior sucesso atédar lugar à grande síntese feita por S. Tomás. Esse sucesso apresenta-secondicionado pelo enriquecimento da razão nas suas forças e no seu conteúdoproblemático mediante a obra de Aristóteles que, por intermédio dos árabes,foi redescoberta pela filosofia ocidental.

Já na primeira metade do século XII, Raimundo, arcebispo de Toledo de 1126 a1151, havia dirigido uma escola de tradutoires, à qual muito ficou a dever aescolástica, do século seguinte. João Hispano traduz a Lógica de Avicena;Domingos Gundlisalvo, arquidiácono de Segóvia, com a ajuda daquele, traduz aFísica, o De coelo et mundo e os primeiros dez livros da Metafisica deAristóteles; e, além disso, a Metafísica de Avicena, a Filosofia de AIGazali,

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o escrito Sobre as Ciências de AI Farabi e a Fons Vitae de Algebirol. Umoutro membro da escola de Toledo, Gerardo de Cremona, falecido em 1187;traduz a Física. O De coelo, o De generatione, e os primeiros livros dosMeteorológicos, de Ar@stóteles; além do Cânone de Avicena, o Liber de causis

e outros textos.

Miguel Scoto (1180-1235), nascido na Escócia, ou, segundo outros, em Salermoou Toledo, famoso como mago ("veramente delle magiche frode seppe il giuo-co"afirma dele Dante, Inf., XX, 116), e autor de obras de astronornia, e dealquimia, foi encarre- ,gado pelo imperador Frederico Il de traduzirAristóteles. Traduziu a História animalium; e além disso, o comentário deAverróis ao De coelo e ao De anima e provávelmente a De generatione, Meteoree Parva naturalia.

Na metade do século XIII, Hermann, o Alemão, bispo de Astorga, traduziu ocomentário médio de Averróis à É tica a Nicómaco e depois à Retórica e àPoética.

Em 1120 existia em Paris uma tradução da Metafísica de Aristóteles; e emPádua descobriu-se uma tradução latina da mesma obra que remonta aos fins doséculo XII.

Em 1125, Alfredo Anglico traduz do grego o

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De anima, o De somnio e o De respiratione. Entre1240 e 1250, Roberto Grossatesta (§ 255) traduzia ou mandava traduzir aGrande Ética e outros opúsculos de Aristóteles.

Guilherme de Moerbeke, nascido em 1215, forneceu a S. Tomás a tradução dogrego de vários textos. Traduziu a Política e a Economia de Aristóteles; osComentários de Simplício às Categorias e ao De coelo; os Elementos deTeologia e outros opúsculos de Proclo. A tradução dos Elmentos permito a S.Tomás reconhecer neles o original do

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Liber de causis, já traduzido por Gerardo de Cremona.

Todo este trabalho de tradução revela um interesse profundo pela doutrina deAristóteles, na qual* escolástica do século XIII acabou por descobrir* expressão mais perfeita da razão humana e, por conseguinte, o melhorcaminho para alcançar a verdade revelada. Mas precisamente pelo facto da obrade Aristóteles ser a expressão perfeita da razzão com plena autonomia eindependência de qualquer pressuposto da fé, a mesma devia suscitar, esuscitou com efeito, oposições e desconfiança e à primeira vista i)areceuinconciliável com o dogma católico. O século XIII apresenta-nos as primeirastentativas de aproximação do aristotelismo bem como as reacções contrárias;virá mais tarde o equilíbrio conseguido com a síntese toraista.

§ 253 polémica comtra o aristotelismo: GUILHERME D'AUVERGNE

O primeiro contacto da escolástica latina com a doutrina de Aristótelesverificou-se através do aristotelismo, arabe. O conhecimento directo dostextos aristotélicos é ainda demasiado escasso e inseguro para que se possadiscernir o aristotelismo original dos acréscimos interpretativos dos Árabes;por outro lado, estes mesmos acréscimos aproximavam o aristotelismo damentalidade dos escolásticos e do problema que os preocupava, uma vez quesão, em parte, fruto da tentativa de procurar no aristotelismo uma respostapara os problemas da fé muçulmana que, em certos pontos essenciais(existência e espiritualismo de Deus, criação, imortalidade da alma) coincidecom a cristã.

O primeiro entre os escolásticos a tomar posição perante o aristotelismo éGuilherme d'Auvergne. Nascido em Aurillac, provàvelmente antes de 1180,

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foi mestre de teologia na Universidade de Paris; e de 1228 até morrer (1249),bispo de Paris. A sua obra principal é o Magisterium divinale, em setepartes, sendo de maior importância filosófica o De tritiitate (escrito entre1223 e 1228), De utúverso e o De aninw (escrito entre 1231 e 1236). Oobjectivo de Guilherme é polémico: pretende combater "os erros de Aristótelese dos filósofos que o seguem"; mas efectivamente pretende visar sobretudoAvicena, do qual depende directa e polèmicamente. Depende directamente namedida em que faz sua a distinção fundamental de Avicena entre o sernecessário e o ser possível, depende polèmicamente na medida em quetransforma essa distinção numa oposição, que lhe permite defender a não-necessidade do mundo, e por conseguinte, da criação. Nesta polémica,Guilherme foi levado naturalmente a utilizar a obra de Maimónidas, que eradominada pela mesma preocupação fundamental.

Guilherme começa por distinguir uma dupla predicação: uma predicação secundumessentiam e uma predicação secundum partecipationem. Todo o predicado que seaplica a uma coisa ou pertence à própria essência da coisa ou permaneceexterior à essência da coisa em que participa. A predicação por participaçãosupõe a predicação por essência. Se se afirma, por exemplo, que uma coisa éboa porque participa de uma outra coisa, e que essa outra coisa é boa tambémpor participação, dá-se início a um processo infinito, que apenas se evi-,tará quando se chegar a um ser que seja bom por essência (De trin., 1). Ora,quando se atribui o ser às coisas finitas faz-se uma predicação porparticipação, que pressupõe uma predicação por essência: ou seja, supomos um-ser que é ser por essência e, portanto, impensável como não existente. Aestes dois modos de predicação correspondem assim dois modos fundamentais doser: o Ser por

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essência, que inclui a existência na sua quididade ou substância; e o ser nãopor essência cuja quididade ou substância não inclui a existência. O Ser poressência não tem causa e é simples, porque privado de composição. O ser nãopor essência recebe a existência do exterior e precisamente do Ser poressência e é, por conseguinte, composto sempre pela sua qualidade ousubstância e pela existência que lhe é atribuída do exterior. Estesconceitos, derivados de Avicena, são esclarecidos por Guilherme com os

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próprios termos de Avicena: o Ser por essência é o ser necessário, o ser porparticipação é o ser possível ou potencial (De tric., 7).

Mas neste ponto, Guilherme afasta-se de Avicena para se aproximar deMaimón@idas. Para Avicena não existe oposição entre o ser necessário e o serpossível; o ser possível é, na realidade necessário por outrem; não podeconseguir a existência em acto a não ser ao converter-se ipso facto emnecessário. Pelo contrário, Gulilherme contrapõe nitidamente o ser necessário ao ser possível. "Procederei por outra via e dir-te-ei a razão porque o ser necessário e o ser possível são contrários entre si. Do mesmo modosão contrários a necessidade em si e a possibilidade em si, tal como aantiguidade e a novidade. Com efeito, como a necessidade em si é causa daeternidade ou antiguidade, assim necessàriamente a possibilidade em si serácausa da novidade ou temporalidade; e uma vez que a necessidade em si não seencontra no criador, nele se encontra apenas a eternidade ou antiguidade. Emais: como a necessidade em si não suporta a novidade ou temporalidade no serem que se encontra, assim é necessário que a possibilidade em si não suportea eternidade no seu próprio sujeito. Por isso é impossível que nenhuma dascoisas criadas seja eterna" (De univ. 1. 2). O primeiro resul-

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tado desta contraposição entre o ser necessário e o ser possível é, portanto,a negação da eternidade do mundo e a afirmação da necessidade da criação.Poss,ibilidade no ser -participado, signifea temporalidade, novidade; porconseguinte, criação. Guilherme introduz assim pela primeira vez naescolástica latina, a distinção real entre a essência e a existência dascoisas criadas, que iria tornar-se o cerne da metafísica de S. Tomás. "Umavez que o ente possível não é o ente por essência, ele e o seu ser, que nãolhe pertence por essência, são duas realidades distíntas e uma (o ser) surgeda outra (a essência), ainda que não se integre na sua razão ou quididade"(De trin., 1). As coisas criadas são, portanto, formadas pela essência e pelaexistênc;a e essa existência deriva de Deus por participação. O ser dascoisas criadas e o ser de Deus não são idênticos nem diferentes, sãoanálogos: de certo modo, assemelham-se e correspondem-se entre si, sem quetenham o mesmo significado (1b., 7). Este princíp;o da analogicidade do ser,

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irá ter também uma aplicação sistemática na metafisica de S. Tomás.

A criação supõe que Deus contenha em si os modelos ou exemplares das coisascriadas: esses modelos não constituem um mundo à parte, como queria Platão;são a própria Sabedoria ou Verbo, gerado por Deus desde a eternidade (Deuniv., 1,36-37). Deste modo, o platonismo aparece ligado à especulação doaristotelismo árabe e serve para conciliar este último com a fé cristã. OVerbo divino confere directamente ao homem os conhecimentos fundamentais ouprimeiros princípios a que Guilherme chama prima intelligibil,;a, primaeimpressiones, dignitates et communes animarum conceptiones, etc. Essesprimeiros princípios oferecem-se à alma humana como se fossem inatos ouinculcados nela de forma natural (De an., V, 15); com

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efeito, surgem i-ião do exterior mas do interior, e constituem não só asregras fundamentais da verdade, como também as do recto agir, ou seja, dahonestidade (1b., VII, 6). Através desta fluminação interior, que é um outroenxerto do agustinismo, Guilherme sustenta que é inúti,1 a acção do intelectoagente. Se os primeiros princípios são ffirectamente inculcados no homem pelaSabedoria divina, os outros conhecimentos inteligíveis derivam directamenteda realidade inteligível, sem qualquer força ou potência intermédias. "Entreos sentidos e as coisas naturais não é necessária nenhuma virtude intermédiaque actue sobre os sentidos de modo tal que faça com que os conhecimentossensíveis, que existem em potência nos órgãos dos sentidos, se transformem emacto. ]Para este efeito bastam os objectos sensíveis que são exteriores àalma. Para. quê, na verdade, uma potência intermédia e necessária aoconhecimento intelectual, como se não bastasse ao intelecto, para apreender arealidade inteligível, a acção dessa mesma realidade? (1b., VII,4). O intelecto agente é portanto uma ficção inútil.O iintelecto material, pelo contrário, é a verdadeira e própria essência daalma; mas não é apenas potência receptiva mas também activa e, por meio delae dos objectos inteligíveis, podemos explicar todo o conhecimento intelectualhumano. (1b., V, 6).

Entre os escritos de Guilherme figura uma reelaboração de um tratado Sobre aimortalidade da alma de Domingos Gundisalvo, arcebispo de Segóvia,

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conhecidosobretudo como tradutor (§ 252). O escrito é inteiramente dependente dasfontes árabes, das quais é extraída a prova da imortalidade da alma:independência da actividade intelectual em relação ao corpo; natureza da almacomo forma, imaterial o aspiração à felicidade pela alma intelectiva; posiçãointermédia da alma entre os puros espíritos e a alma das plantas e dosanimais; inde-

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pendência da alma em relação a qualquer factor destruidor; ausência de umórgão corpórco da alma intelectiva; relação da alma com a origem da vida.O escrito, muito pouco original, teve dentro da escolástica uma certaimportância histórica; entre outros, inspiraram-se nele S. Boaventura eAlberto Magno.

§ 254. ALEXANDRE DE HALES

A entrada do aristotelismo na escolástica latina está de certo modo ligadacom os acontecimentos da Universidade de Paris. Em Fevereiro de 1229, depoisde vários tumultos que tiveram início num dia de Carnaval, a Universidadeficara deserta e mestre e alunos abandonaram Paris. Em 1231, o papa GregórioIX reconstitui a Universidade, mas proíbe os professores de utilizarem oslivros de Física de Arístóteles (que haviam sido proibidos por um concílioprovincial em 1210) até que fossem expurgados de qualquer suspeita de erro.Da comissão para tal constituída fazia parte um mestre da própriaUniversidade, Guilherme d'Auxerre, autor de um comentário às sentenças dePedro Lombardo e que tinha o título de Summa aurea. Neste comentário, sãopoucas e imprecisas as referências a Aristóteles; nele se encontra, todavia,defendida a distinção entre um duplo ser das coisas criadas: o ser que existena criatura e o ser divino, do qual depende a criatura; distinção que parecereconduzir à que Avicena fazia entre o possível e o necessário. Mas é comAlexandre de Hales que a escolástica assume uma nítida posição relativamenteao aristotelismo.

Alexandre nasceu em Hales, no condado de Gloucester, em Inglaterra, entre1170 e 1180. Estudou em Paris e foi professor de teologia na faculdade das

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artes desta cidade. Em 1231, ingressou na ordem franciscana que, atravésdele, teve -pela primeira

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S.BOAVENTURA

vez um representante na escola parisiense. Conta-se que o papa Inocêncio IV,acabando por conhecer a fama que tinham as suas lições, o encarregou decompor uma Summa que servisse de regra aos doutores no seu ensino. A obraapresentada por Alexanúre ao papa foi em seguida submetida ao juizo de 70teólogos. Estes aprovaram-na e recomendaram-na como livro perfeito para toJosos mestres de teologia. Rogério Bacon, ao escrever alguns anos mais tarde asua Opus minus (1267) negava que fosse Alexandre de Hales o autor da Summatotiu theologiae: "A partir do momento em que Alexandre entrou para a ordemdos franciscanos, os frades colocaram-no nas nuvens, conferiram-lhe a máximaautoridade em todo o gênero de estudos e atribuiram-lhe esta grande Summa queé carga demasiada para um só cavalo". O que é certo é que a ordemfranciscana, a partir daí, se manteve fiel aos pontos fundamentais doneopla,tonismo agustiniano exposto na Summa de Alexandre e defendeu-osenèrgicamente contra o aristotelismo.

No entanto, ela ainda apresenta vasta ressonancia do aristotelismo árabe ejuda@ico e, em primeiro lugar, de lbn Gabirol. Deste, Alexandre aceita oprincípio da composição hilomórfica universal. Todos os seres criados sãoformados por matéria e forma; o mesmo acontece com os seres espirituais. Aalma é precisamente a forma do corpo; mas além de ser forma, isto éactividade, é também passividade ou capacidade de suportar a acção dosoutros seres e esta passividade, que é igualmente pertença da almaseparada do corpo, constitui a matéria da mesma (Sum. 11, q. 61, 1). Ascoisas criadas têm, por um lado, a composição de matéria e forma, poroutro, a composição de essência e de existência (quo est e quod est); estaúltima pertence também à alma como tal (lb., q. 20, 2).

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Mas se existe uma matéria das criaturas espirituais, ela não é, como queriaIbn Gabirol, idêntica à das coisas corpórcas. Não ex@ste uma matéria comum aambas; nem sequer existe uma matéria comum entre os corpos celestes e ossublunares, ainda que a matéria de uns e de outros pertença ao mesmo gênero

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(1b., 11, q. 44, 2).

A doutrina aristotélica das quatro causas é adoptada por Alexandre paradelerminar as relações entre Deus e o mundo. Deus é causa formal, é causaeficiente e causa final das coisas. É causa formal, na meJ,@da em que contémas ideias, que são os exemplares das coisas do mundo: estas ideias formam umtodo com a essência. É causa eficiente, na medida em que o mundo depende dasua omnipotência que pode levar a cabo tudo o que não contradiga a suaessencia e os seus atributos fundamentais. É a@nda causa final na medida emque é o bem supremo para o qual tendem as coisas, cada uma a seu modo. (Ib.,q. 21, 1; 11, q. 3, 2;11, q. 42). Tal como Guilherme d'Auvergne, Alexandre não admite senão umúnico modelo do mundo, o próprio Deus. As i@eias estão reunidades na essênciade Deus e só surgem na sua diversidade quando relacionadas com as coisasmúltiplas que dela provêm.

A propósito da questão do intelecto, Alexandre sustenta que não só ointelecto material, mas também o próprio intelecto agente faz parte da almahumana. "0 intelecto agente e o intelecto potencial são duas distinções daalma racional. O àntelecto a-ente é a forma pela qual. a alma é espírito; ointelecto possível é a matéria da alma, matéria pela qual a alma existe empotência relativamente às coisas congrioscíveis que contém. Tais coisasexistem na sua parte inferior e surgem sobretudo da alma sensível Ub., 11, q.69, 3). Também o inte-

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lecto agente faz parte da alma; mas, apesar de ser a-ente, não conhece emacto to-das as formas. Recebe do primeiro Agente uma iluminação relativa a umcerto número de forma inteligív&s; mas uma vez iluminado, aperfeiçoa por suavez o intelecto em potência (lb., 11, q. 69, 3). Deste modo, a alma humanaapresenta uma tripla distinção: o

intelecto material, que é o acto do homem no seu corpo; o intelecto empotência, que pertence à alma enquanto separável do corpo; o intelecto emacto, que lhe pertence porque, de certo modo, está já separada do corpo(lbid., II, q. 69, 4).

Tais são os pontos sobre os quais a Summa de Alexandre assume uma posição,

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frente ao aristotelismo árabe e judaico. Estes pontos implicam a aceitação depoucos conceitos fundamentais: a distinção real entre essência e existência;a composição hilomórfica de todas as criaturas; a distinção entre osintelectos. Mas a Summa é uma obra vastíssima que tem a pretensão de reunirtoda a tradição integral da escolástica latina para assim formar um diquecontra a invasão das novas correntes aristotélicas. Como tal é obra deescassa ou nenhuma originalidade. De destacar, contudo, a recapitulação quefaz das provas da existência de Deus, que se encontram expostas no primeirolivro da obra. Aí podemos descobrir a prova de Ricardo de S. Victor que, daexistência de coisas que dependem de outras, deduz a existência do Ser queapenas depende de si próprio; a prova causal extraída do De fide orthodoxa(1, 3) de João Damasceno; a prova agustíniana deduzida da verdade que existeno homem, e que Alexandre vai buscar a Hu_ao de S. Victor; a prova ontológicade Santo Anselmo; e a prova deduzida da necessidade da essência divina,tirada do Monologion do próprio Santo Anselmo.

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§ 255. ROBERTO GROSSETêTE: A TEOLOGIA

A Summa de Alexandre de Hales, além de ser uma assimilação parcial das tesesdo aristotelismo, é também uma tentativa de reacção polémica-o que representaum regresso à posição platónico-agustiniana, tradicional na escolástica. Oregresso ao agustinismo como método para conservar e reformar a tradiçãoorigináda da escolástica é levado a efeito, com o maior vigor, pelofranciscano Roberto Grossetête. Já Rogério Bacon se havia apercebido desteaspecto da obra de Roberto. "Monsenhor Roberto, bispo de LincoIn, de santamemoria, pos completamente de parte os livros de Aristóteles e as vias queele -indicou, e tratou os temas aristotélicos valendo-se da sua própriaexperiência, de outros autores e de outras ciências. Deste modo conseguiuescrever sobre os problemas de que se ocupava o estagirita coisas mil vezesmelhores do que aquelas que se podem aprender nas más traduções daquelefilósofo" (Comp. stud. phil.,8, Opera, ed. Brewer, p. 469). A observação de Bacon não significa queRoberto ignorasse os livros de Aristóteles. Pelo contrário conhecia-os ecitava-os: mas pretendia no entanto regressar à pura inspiração agustiniana.

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Roberto Grossetête (Greathead, Grossum caput) nasceu em 1175 em Stradbrok nocondado de Suffolk, em Inglaterra. Estudou em Oxford e em Paris, e em seguidatornou-se professor e chanceler da Universidade de Oxford. Em 1235 é nomeadobispo de LincoIn e morre em 12,53, excomungado pelo papa Inocêncio IV, a quemnos seus sermões havia acusado de avarento, tirano e vaidoso. Escreveu algunsComentarii aos Segundos Analíticos, às Refutações sofísticas e à Física deAristóteles; e traduziu do grego para latim a Ética daquele filósofo.

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Rogério Bacon. tinha-o entre aqueles "que souberam explicar as causas de tudocom o auxílio da matemática" (Op. maius, ed. Bridges, 1, 108); e, na verdade,a sua actividade abrange todos os ramos do saber: astronomia, meteorologia,óptica, física e disciplinas liberais. Os seus escritos respeitantes àfilosofia são: De unica forma omnium, De statu causarum, De poteidia et actu,De veritate propositionis, De sciência Dei, De ordine emanandi causatorum aDeo, De libero arbitrio.

Desde o princípio, isto é, desde o próprio conceito de Deus, que Roberto sebaseia na autoridade de Santo Agostinho. "Eis como a autoridade de SantoAgostinho afirma abertamente: Deus é forma e é forma das criaturas". Daprópria definição de forma se conclui que Deus é forma: uma forma é aquilopelo qual uma coisa é o que é. Por exemplo, a humanidade que é a forma dohomem, é aquilo pelo qual o homem é homem. Ora Deus é por si aquilo que é,porque a divindade, pela qual é Deus, é o próprio Deus. Por conseguinte, Deusé forma (De forma omtdum, edição Baur, 108).

Mas a afirmação de que Deus é forma das criaturas é típica da filosofia deEscoto Erígena (§ 180) e deste obteve Amalfico de Bene (§ 219) o seupanteísmo, considerando Deus como a própria forma das coisas. Pelo contrário,Roberto dá ao seu princípio um significado que exclui uma @nterpretaçãopanteísta. "Deus não é forma das criaturas no sentido de ser parte da suasubstância completa e precisamente aquela que ao unir-se com a matéria gera acoisa singular. Chama-se forma ao modelo que o artesão tem presente paraformar uma obra que imite e se assemelhe ao modelo. Chama-se forma também,àquilo que se aplica à matéria que se pretende formar, como o selo é

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forma dacera e o molde de barro é forma da estátua que nele toma corpo. Finalmente,forma é

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também o modelo que o artesão têm no seu espírito, quando apenas considera oque no seu espírito existe para produzir uma obra que a isso se assemelhe".(lb., 109). Estes três significados da palavra forma como modelo interior,modelo exterior e molde da coisa a produzir não são diversos uns dos outros;a forma é em qualquer caso o exemplar ou modelo: e, tratando-se de Deus, oexemplar ou modelo da sua obra não pode ser exterior a EleEle próprio, eprecisamente a sua Sabedoria ou o ,seu Verbo, é o exemplar, a causaeficiente, o agente que confere a forma, e conserva as criaturas na forma quelhes deu (M., 110). Roberto ilustra a função formadora do Verbo com adoutrina de Santo Agostinho do Verbo como verdade. As coisas foram criadaspara toda a eternidade pelo Verbo ou Discurso divino; a sua verdade consistena sua conformidade com o Discurso que as pronunciou. A conformidade dascoisas com o que foi eternamento enunciado é a rectitudo das próprias coisas,a norma da sua constituição. A verdade das coisas consiste em serem comodevem ser, em possuirem a plenitude de ser (plenitudo essendi) que éconforrnidade com o Verbo criador (De verit., ed. Baur,134-5).

Se o Verbo divino é a própria verdade, o homem não pode atingir a verdadesenão em virtude do próprio Verbo divino. No entanto, Roberto não admite umailuminação directa por parte de Deus.O empirismo aristotélico ganha aqui vantagem sobre o apriorismo agustiniano."Tal como os olhos do corpo não podem ver as cores se não receberem ailum,@nação da luz do sol, assim também os débeis olhos da alma nada vêem, anão ser através da luz da suma verdade. No entanto, não podem ver

a suma verdade em si próprio, mas só na medida em que ela se une, ou dequalquer forma se funde, com as -próprias coisas verdadeiras" (De verit., ed.

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Baur, 137-138). Condição para conhecer a verdade é, da parte do homem, aperfeição moral: Só os

puros podem ver a luz divina. Mas também os ámpuros têm, de qualquer forma,

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conhecimento da verdade, uma vez que, sem o saberem, vêem as coisas à luzdivina, tal como um homem vê as cores à luz do sol, sem necessidade de olharpara o sol Qb., 138).

Roberto dedicou um tratado ao problema da liberdade humana, o De liberoarbítrio. Nesta obra examina a relação entre a liberdade humana e apresciência d,ivinq e exclui a doutrina de Averróis, segundo a qual aprevisão divina apenas diria res-

peito à ordem universal do mundo; não aos acontecimentos singulares.Contràriamente à definição de Santo Anselmo, que afirma que o "livre arbítrioé a faculdade de conservar a rectidão da vontade pela própria rectidão",Roberto afirma a exigência de incluir na definição de liberdade, a

capacidade de a vontade se inclinar ou dirigir para uma coisa ou para outra,indiferentemente (flexibilitas vel vertibilitas ad utrantque). Com ele, aliberdade aparece definida como "a própria e natural capacidade da vontade dese inclinar a querer uma ou outra de duas coisas opostas quando consideradasem si" (De lib. arb., ed. Baur, 225). Deste niodo definida, a liberdade é overdadeiro e próprio arbítrio da indiferença: já não é um conceito moral masmetafísico: pertence à natureza do homem e

é por isso designada, por Roberto, como capacidade natural e espontânea. Esteconceito deveria permanecer tradicional e típico na corrente platónico-agustiniana tal como permanecerá típico, na própria corrente, o primado davontade afirmado claramente por Roberto (Opera, ed. Baur, 23.1).- "0 ser danatureza racional é duplo: o querer e o aprender. Mas o ser primeiro e máximoé o querer, uma vez

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que é nele e não no apreender que consiste orig;nàriamente e por si afelicidade."

256. ROBERTO GROSSETÊTE: A FíSICA

A especulação sobre o mundo natural tem na obra de Roberto um importantelugar. A sua originalidade consiste em ter afirmado um principio que serádefendido por Rogério Bacon e se tomará mais tarde o fundamento da ciênciamoderna: o estudo da natureza deve ser baseado na matemática. "A utilidade,afirma (De luce, ed. Baur, 59), do estudo das linhas, dos ângulos, das

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figuras é enorme, uma vez que sem ele é impossível conhecer seja o que for dafilosofia natural. E isto vale de formi absoluta para todo o universo ou paraqualquer das suas partes". Por outro lado, Roberto exprime exactamente a leide economia que regula os fenômenos naturais e que será mais tardecorroborada por Francis Bacon e por Galileu, todas as operações da naturezase verificam da forma mais determinada, mais ordenada e mais breve que épossível (lb., 75).

Entre as doutrinas físicas que lhe são próprias, merecem especial relevo asque dizem respeito aos motores do céu e à luz. Os céus têm dois motores,segundo ele: a alma que existe em cada céu e o motor que existeseparadamente. Este motor é único* move-se infinitamente com movimento uniforme* contínuo: é o próprio Deus. Pelo contrário, as almas são múltiplas, umapara cada céu, e cada uma se move no seu céu de forma diversa (De motu super-celestium, ed. Baur, 100). Esta doutrina, que Roberto apresenta comoexposição da que se encontra no X11 Livro da Metafisica de Aristóteles, narealidade nada tem a ver com esta, uma vez que Aristóteles não falava dealmas ligadas à maté-

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ria dos céus, mas de motores separados, em tudo semelhantes ao primeiro (§78).

No que diz respeito ao universo corpóreo, a física de Robeito ésubstancialmente uma teoria da luz. Tal como Ibri Gebirol, e ao contrário deAlexandre de Hales, Roberto admite que todos os corpos tenham uma formacomum, que se liga à matéria primeira antes de receber as formas particularesdos vários elementos. Esta pÊrneira forma ou corporeidade é a luz. "A luz,afirma ele, (De inchoactione formarum, ed. Baur, 51-52), difunde-se em todasas direcções, de forma que de um ponte, luminoso pode @,er gerada uma esferade luz do tamanho que se quiser, a menos que se forme algum obstáculo comcorpos opacos. Por outro lado, a corporeidade é aquilo que tem porconsequência necessária a extensão da matéria nas três dimensões". Robertoidentifica a difusão instantânea da luz nas três dimensões com atridimensionalidade do espaço; e por conseguinte, a luz com o espaço. Atravésdo processo de extensão, de agregação e de desagregação detern-iinado pelaluz, são formadas as treze esferas do mundo, ou seja, as nove esferas

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celestes e as quatro esferas terrestres do fogo, do ar, da água e da terra(Ib., 54). A luz, segundo Roberto, explica todos os fenómenos da natureza.Ela é o instrumento mediante o qual a alma actua sobre o corpo e é a causa dabeleza do mundo visível.

Roberto Grossetête pode ser considerado o iniciador do movimento que, contraa influência do aristotelismo, se torna partidário de um decidido regresso aoplatonismo agostiniano. Este movimento será continuado pelos representantesda ordem franciscana e terá como característica constante, o interesse pelomundo natural; o que se torna objecto de uma investigação que não se contentacom os257

textos aristotélicos, procedendo também com o raciocínio e com a experiência.

§ 257. JOÃO DE LA ROCHELLE

Foi discípulo de Alexandre de Hales e sucessor deste na cátedra ocupada pedosfranciscanos na Universidade de Paris.

João de Ia Rochelle nascido à volta de 1200 e falecido em 1245, é autor deuma Summa de anima que apresenta uma interpretação, no sentido agost@iniano,da teoria de Avicena sobre o intelecto. João de ]a Rochelle identifica ointelecto agente com Deus. "Segundo Avicena, afirma (De an., 11,37), a função do intelecto agente é a de iluminar e difundir o fogo dainteligência nas formas sensíveis existentes na imaginação e, iluminando-as,abstrair as referidas formas de todas as suas condições materiais, para emseguida uni-Ias e ordená-las no intelecto possível". Identifica a ac@ão dointelecto activo, de que fala Avicena, com a acção iluminadora de Deus, deque fala Santo Agostinho. Deste modo pode afirmar que "a alma humana nadacompreende se não for iluminada pelo princípio de toda a iluminação, Deusnosso pai" (M., 1,3). A capacidade que a alma humana possui de abstrair a forma sensível dasimageris do corpo deriva da acção iluminadora de Deus. Este autor utilizatambém a teoria aristotélica da abstracção (que conhece de Avicena) e agrup3.elementos díspares, ao tentar reconduzir aos princípios tradicionais do

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agostinianismo as doutrinas do aristotelismo árabe.

§ 258. VICENTE DE REAUVAIS

Puras compilações, privadas de qualquer elaboração original, são os escritosdo dominicano

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Vicente de Beauvais, falecido em 1264. Continuador da tradição dosenciclopedistas medievais, a sua obra apenas se destaca pelo facto de incluirpassagens de autores árabes e judeus, contribuindo assim para a sua difusãono mundo latino. O seu Speculum maius compreende quatro partes (Speculumdoctrinale, Speculum historiale, Speculum naturale, Speculum morale), dasquais apenas as três primeiras são autênticas.

Foi perceptor do filho de S. Luís, rei de França, e deixou-nos um textopedagógico intitulado, Acerca da educação dos filhos dos reis ou dos nobres.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 252. Sobre as traduções aristotélicas: A. e C. JOURDAIN, Recherchescritiques sur 1'áge et 1'origine des traductions dAristote, 2.a ed., Paris,1843; DUHEM, Systême du monde, III, Paris, 1915, p. 179 e segs.; GRABMANN,Forschungen über die lat. Aristoteles-Ubersetzungen d. XIII Jahrh., em"Beitrage", XVII, 5-6,1916; MUCKLE, Greek Works Translated directly into Latin before 1350, in"Medieval Studies", 1943.

§ 253. De Guilherme d'Auvergne, as Opere foram editadas: Nürnberg, 1946;Venetiis, 1591; e em edição mais completa; Aureliae, 1674.

VALOlS, Guillaume dAuvergne, Paris, 1880; MuRÉAu, Histoire de Ia phil. scal.,11, 1, Paris, 1880, p. 142-170, DUHEM, Système du monde, II, p. 249-260, V. p. 261-283; MASNovo, Da Guglielmo d'-4uvergne a S. Tommasod'Aquino, 2 vols., Milão, 1930; GILSON,M La notion d'existence chezG. d'A., in "Arch. d'Hist. doetri. et lit. du m. â.", 1946.

§ 254. De Guilherme de Auxerre, a Summa aurea foi editada em Paris,1500 e 1518, e em Veneza, 1951, GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3, 1907,87-911; MINGES, in "Theolog. Quartaschrift", 1915, 508-529; OTTAVIANO, G.d'Auxerre, Roma, 1929 (com bibl.).

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Da Summa de Alexandre de Hales fizeram-se as seguintes edições: Venetiis,1475; Norimbergae, 1482; Papiae, 1489; Norimbergae, 1502; Lugduni, 1515;Vene-

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tiis, 1576; Coloniae, 16622; edição critica ao cuidado dos franciscanos deQuaracchi, Quaracchi, 1924-1948.

HA~Au, Histoire de Ia phil. médiév., 11, 1,130-141; GUTMANN, Die Scholastik des 13 Jahrhundert in ihrer Beziehungen zumJudentum, 1902, p. 32-46; WITTMANN; Die SteWng des M. Thomar von Aquin zuAvenceprol, 1900, p. 20 e segs.; HERSCHER, A Bibliography of A. of Hales, in."Fran. Stud.".,1945-6.

§ 255. De Roberto, Grossetête: Os seus escritos tiveram uma primeira ediçãoem Veneza, 1514; e uma nova edição critica ao cuidado de BuAR em "Beitrage"de Baeumker, vol. IX, 1912. Para a indicação dos textos não compreendidosnesta recolha, ver o volume de BAUR e UEBERWEG-GEYER, p. 358-359. PRANTL,Gesch. der Logik, IU, p. 85-89; STEVENSON, Robert Grossatesta, Londres, 1899;BAUR, Intr. à citada edição; DUHEM, Système du monde, V, p. 341358; ALEssio,Studi e richerche di LincoIn (Grossatesta), in "Rivista Crit. di Stor. deTIaFil.", 1957; Storia e teoria nel pensiero scientifico di Roberto Grossatesta,na mesma revista, 1957.

§ 257. De João de Ia Rochelle, a Summa de Anima, foi editada em Prato, 1882.HAURÉAU, HiSt. de Ia phil. scol., 11, 1, 192-213; MANSER, in "Jahrb. fürphilos. und spek. Theol.", 1912, 290-324; in. "R-evue Thomiste", 1911, 89-92;MINGES, in "Archivum Franciscanum Historicum", 1913, 597-622; in "Philos.Jahrb.@>,1914, 461-77; in "Franzisk. Studien", 1916, 365-378; FABRO, in. "DivusThomas", 1938.

§ 258. De Vicente de Beauvais o Speculum maius teve várias edições: Venetils,1484, 1494, 1591; Duaci, 1624; GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3, 112 e segs.;DUHEM, Êtudes sur Léonard de Vinci; 11, Paris, 1909,318 e segs.; ID., Système du monde, M, 346-348.

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XIII

S. BOAVENTURA

§ 259. S. BOAVENTURA: O REGRESSO A SANTO AGOSTINHO

O regresso a Santo Agostinho, que na Summa de Alexandre de Hales eprincipalmente na obra de Roberto Grossetête se apresenta como a reacção daescolástica latina contra o progresso do aristotelismo, encontra em S.Boaventura a sua máxiima expressão teológica e mística. Contra o assalto deuma filosofia que à primeira vista parece -impossibilitar a resolução doproblema escolástico, dado que conduz a investigação filosófica a conclusõesinconciliáveis com a fé, a escolástica concentra-se sobre si própria, retornaàs origens e procura alcançar uma nova vitalidade a partir da doutrinaagostiniana, a qual, apesar de ter permanecido sempre como a sua principalfonte de inspiração, havia perdido a sua autenticidade e força original aolongo de vários séculos de laboriosas e incertas elaborações. Santo Agostinhoregressa. A primeira consequência paradoxal do aparecimento de Aristóteles nohorizonte filosófico do século XIII consistiu na revivescência das tesesfundamentais do bispo de

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Hipona, como que redescobertas na sua enorme capacidade de persuação. Frentea estas teorias, o aristotelismo aparece à escolástica latina como uma forçaestranha, possível de ser utilizada dentro de certos limites, mas à qualdevemos fazer o menor número possível de concessões. Os doutores escolásticosvão adquirindo uma maior familiaridade com essa mesma força, à medida que oseu conh,.cimento da obra de Aristóteles se vai tornando mais amplo e maisprociso; mas aquela estranheza permanecerá até ao aparecimento das obras deAlberto Magno e de S. Tomás, e tudo o que os doutores aproveitarão da obraaristotélica não passará de simples sugestões ou doutr3nas particulares, queprocurarão integrar o melhor possível no corpo das doutrinas tradicionais.

Esta é a atitude de S. Boaventura frente ao aristotelismo. A sua palavra deordem, tal como a de Alexandre de Hales e Roberto Grossetête, é o regresso a

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Santo Agostinho. O conhecimento da obra de Aristótoles permite-lhe aproveitarelementos e sugestões a inserir no tronco de uma filosofia que eloexplicitamente reconhece e deseja como tradicional. "Não pretendo, diz ele(In Sent., 11, pról.), combater as novas opiniões, mas conservar aquelas quesão comuns e aprovadas. E ninguém pense que eu queira ser o fundador de umnovo sistema". Nenhum novo sistema: S. Boaventura só quer voltar a percorreros caminhos já desvendados, voltar a tecer a trama ininterrupta do pensamentocristão, que vai de Santo Agostinho ao seu mestre Alexandre. As novasdoutrinas, tal como as aristotélicas, parecem-lhe estar tão afastadasdaqueles caminhos batidos e seguros que nem sequer se propõe combatê-las.Para ele, Aristóteles é um filósofo, não o filósofo: é um autor cujasafirmações podem ser ocasionalmente utilizadas, não é a própria encarnaçãodarazão humana.

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§ 260. S. BOAVENTURA: VIDA E OBRA

Giovanni Fidanza, chamado Boaventura na ordem franciscana, nasceu emBagnoregio (Viterbo), em1221. Conta uma lenda que, tendo-o S. Francisco curado ainda em criança deuma doença mortal, desde logo a mãe fizera o voto de o consagrar à ordemfranciscana. Ao certo, sabemos que desde novo ingressou nessa ordem, aos 17(ou 23) anos. Não é contudo verdade que tenha sido aluno, em Paris, deAlexandre de Hales. Nos fins de 1253 ou princípios de 1254 foi nomeado mestreregente da Universidade de Paris. No ano seguinte, devido à luta travadapelos mestres seculares dessa Universidade, dirigidos por Guilherme de SantoAmor, foram excluídos do ensino parisiense todos os representantes das ordensmendicantes (franciscanos e dominicanos). S. Boaventura, assim como o seuam,igo S. Tomás, continuou a luta através das suas obras, e um ano maistarde o papa Alexandre IV decidiu a disputa a favor das ordens mendicantes.S. Boaventura foi reintegrado na Universidade, provàvelmente ainda em 1256;a sua nomeação oficial em Outubbro de 1257 coincide com a de S. Tomás, o qualfoi então nomeado mestre pela primeira vez. Mas já desde Fevereiro de 1257que desempenhava o cargo de geral da ordem franciscana, a qual foi por elecompletamente reorganizada. Em1273 foi nomeado arcebispo de Albano e cardeal. Faleceu durante o

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Concílio deLião, em 1274.

As obras de S. Boaventura ocupam dez volumes na edição dos padresfranciscanos de Quaracchi. A sua obra fundamental é o Comentário às Sentençasde Pedro Lombardo, em quatro livros, escrito a partir de 1248, durante o seuensino em Paris. A sua obra mística mais -importante é o 1t1nerarium mentisin Deuni escrito no Outono de 1259. Outras obras importantes são: De scientiaChristi, Qitaes-

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tiones disputatae, Breviloquiuni, Collationes in Hexaênzeron. Escreveu aindamu,itos comentários exegéticos a livros da Bíblia, numerosos opúsculosmísticos, sermões e escritos relativos à sua actividade na ordem franciscana.Nos opúsculos místicos, S. Boaventura inspira-se em S. Bernardo, Hugo de S.Vítor e Ricardo de S. Vítor. Quer dizer, enquanto que na sua obra teológicaprocurava, remontando a Santo Agostinho, retomar toda a tradição escolástica,na sua obra mística recolhia paralelamente a tradição mística medieval.

§ 261. S. BOAVENTURA: FÉ E CIÊNCIA

S. Boaventura declara prèviamente a superioridade da fé sobre a ciência.Tratando do problema de se ser maior a certeza da fé do que a da ciência,distingue uma certeza relativa às verdades da fé e uma outra relativa à sverdades da razão. No que respeita às verdades da fé, é mais certa a fé doque a ciência. Mesmo que um filósofo chegue a demonstrar uma verdade de fé,por exemplo, que Deus é criador, nunca poderá alcançar mediante a sua ciênciaa certeza que o verdadeiro fiel recebe da verdadeira fé. No que se refere àsoutras verdades, a fé possui uma certeza de adesão maior do que a da ciênciauma certeza do, especulação maior do que a da fé. A adesão relaciona-se com oafecto, a especulação com o puro intelecto. A ciência elimina a dúvida, comose nota claramente no conhecimento dos axiomas e dos primeiros princípios masa fé faz com que o crente adira à verdade de tal forma que nem os argumentos,nem os tormentos, nem as lisonjas o conseguirão afastar dela. Seria louco ogeórnetra que enfrentasse a morte pela sua certeza dum dado teorema;

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mas ocrente enfrenta e deve enfrentar a morte pela sua fé (In

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Sent., 111, dist. 23, a. 1, q. 4). A certeza científica é assim reduzida a umpuro facto intelectual, simples indubitabilidade teorética, que não exige umcompromisso pessoal; enquanto que a certeza da fé é exaltada como acto deafecto e adesão, isto é, como um compromisso efectivo da pessoa.

Fé e ciência, fé e opinião, podem todavia coexistir em relação à mesmaverdade. Se por opinião se não entende o consentimento dado a uma alternativapor temor da outra, mas sim o consentimento sugerido por razões prováveis,desde logo verificamos que muitos fiéis têm, para apoiar aquilo que crêem,muitas razões prováveis: pelo que, neste caso, a opinião não só não exclui afé, como ainda a ajuda e a serve. Por outro lado, a fé não exclui a ciência em relação à mesma verdade e não a exclui porque temuma certeza superior. Pode demonstrar-se com razões necessárias queDeus existe e que é uno; porém, dilucidar essa mesma essênciad-ivina e essa mesma unidade de Deus e ver como essa unidade não exclui apluralidade das pessoas, isso só poderá conseguir-se através da fé.

Por conseguinte, a ciência não torna inútil a iluminação da fé, antes a exigee a torna necessária. Os filósofos que conseguiram conhecer muitas verdadesacerca de Deus, acabaram, por falta de fé, por incorrer em erro ou pordesconhecer muitas outras Un Sent., 111, dist. 24, a. q. 3). Portanto, nuncaa ciência poderá deixar de valer-se da f4 A fé é a adesão integral dohomem à verdade, pela qual o homem vive da verdade e a verdade vive no homem.

§ 262. S. BOAVENTURA: O CONHECIMENTO

Na teoria do conhecimento, apresenta S. Boaventura a primeira e a maisnotável concessão ao aristotelismo. À pergunta de se todo o conheci-

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mento deriva dos sentidos, ele responde que não: tem de adraitir que a almaconhece Deus, se conhece a si mesma e a tudo o que há em si sem o auxílio dossentidos externos (In Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. 2). Mas por outro

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ladotem também de admitir que alma não pode fornecer por si só todo oconhecimento. O material desse conhecimento deve provir necessàriamente doexterior, através dos sentidos, já que é constituído por semelhanças dascoisas, abstraídas das imagens sensoriais (De scientia Christi, q. 4). Diz S.Boaventura: "As espécies e as semelhanças das coisas adquirem-se mediante ossentidos, como diz explicitamente o filósofo (isto é, Aristóteles) em muitaspassagens; e também o ensina * experiência. Com efeito ninguém poderiaconhecer * que é o todo ou a parte, ou o pai ou a mãe, se não recebe aespécie de um dos sentidos externos" (lt-i Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. s).Se entendemos por espécie as semelhanças das coisas, que são como queretratos das próprias coisas, teremos de dizer que a alma foi criadavazia de toda a esp&e, e que Aristóteles tinha razão ao afirmar que ela éuma tábula rasa (In Sent., 1, dist. 17, a. q. 4).

Porém, a alina recebe sómente dos sentidos o material do conhecimento: a espécie, isto é, os conceitos, os termos objectivos de que parte oconhecimento. Mas o conhecimento está condic@onado na sua constituicão, noseu funcionamento, e portanto no SCLI valor de verdade, por princípios quesão independentes dos sentidos e, portanto, inatos, porque são infundidosdirectamente por Deus. S. Boaventura regressa aqui completamente à teseclássica do a-ustinianismo. É dada à alma humana um lumen directivum, umadirectio naturalis, da qual ela obtém a certeza do conhecimento. E esta luzdirectiva, esta direcção que é impressa naturalmente nela e a dirige, vem-lhedirectamente de Deus. Uma linfluên-

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cia indirecta da razão eterna não bastaria para garantir a verdade aoconhecimento. S. Boaventura refere-se expressamente às palavras de S.Agostinho "o qual, com toda a clareza e razão, demonstra que a mente, paraconhecer com certeza, tem de ser regulada por normas imutáve@s e eternas, nãoatravés da sua própria disposição (habitus), mas directamente por essasnormas, que estão acima dela, na Verdade eterna" (De scientia Christi, q. 4).O nosso intelecto está pois unido com a própria Verdade eterna. "Para quehaja conhecimento certo requere-se necessàriamente uma Razão eternareguladora e motriz, uma Razão que não permaneça isolada na sua clareza, masse una com a razão criada e seja intuída pelo homem segundo as possibilidades

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da sua condição terrena" (De scientia Christi, q. 4).

O Itinerário oferece-nos a análise das condições a priori do conhecimentohumano. O mundo externo, ou macrocosmos, penetra na alma, ou microscosmos,através dos sentidos, produzindo no homem a apreensão, o prazer e o juizo. Ascoisas externas entram na alma não em si, isto é, na sua substância, massómente na sua senzelhança. A semelhança, ou espécie não é po,i@s asubstância da coisa, mas únicamente uma sua imagem: S. Boaventura está aquiafastado do princípio aristotélico segundo o qual a alma aprende a própriaforina substancial da coisa. A proporção entre o objecto percebido e osentido perceptor determina o prazer. À apreensão e ao prazer segue-se ojuízo que explicita um e outro e, portanto, purifica e abstrai a espéciesensível, levando-a dos sentidos até ao intelecto. O juizo é a faculdadeintermédia da razão, através da qual a espécie se purifica das condiçõesmateriais de tempo e lugar e é elaborada conforme as exigências do intelecto(Itín., 2). Mas o acto do juízo supõe já a iluminação divina. O juizo é um

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acto da razão que abstrai do lugar, do tempo e do movimento; mas o que estáfora do tempo, do lugar e do movimento é eterno, é portanto Deus ou umelemento divino. No juizo, a razão vale-se pois de uma regra infalível, que éo próprio Deus como verdade, segundo as palavras de Santo Agostinho (Ib., 2).

A espécie, abstraída das coisas sensíveis pelo juízo, constitui o ponto departida e o objecto da actividade intelectual. Esta actividade desdobra-se emtrês momentos: a percepção dos termos, das proposições e das ilacções. Ointelecto compreende o significado dos termos quando compreende, porintermédio da definição, aquilo que é cada um deles. Mas a definição dumtermo faz-se recorrendo a um termo superior ou mais extenso; e remontandoassim a termos cada vez mais extensos, chega-se a termos supremos ogeneralíssimos, ignorando os quais se não podern entender nem definir ostermos inferiores. O termo mais extenso, condição de qualquer outradefinição, é o de ser. O ser pode ser parcial ou total; imperfeito ouperfeito, em potência ou em acto; mas dado que, tal como afirma Averróis (Dean., 111, 25), a negação ou privação só pode conceber-se relativamente àafirmação, o

nosso intelecto não poderá entender o ser reduzido, imperfeito ou potencialdas coisas criadas se não for em referência ao Ser puríssimo, actualíssimo e

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completíssimo, no qual residem na sua maior pureza as razões de todas ascoisas. Tal como a apreensão dos -termos também os outros dois actos dointelecto pressupõem a revelação directa de Deus ao ,intelecto do homem. Comefeito, a nossa mente, que é mutável, não poderia compreender a verdadeimutável das proposições, se não fosse iluminada por uma luz imutável; nempoderia, sem essa luz, formular ilacções, nas quais a conclusão se segue

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necessàriamente das premissas. "A necessidade de tal ilacção, diz S.Boaventura, não deriva da existência material da coisa, dado que ela écontingente, nem da existência da coisa na alma, porque seria uma ficção senão se encontrasse também na realidade. Deriva pois do modelo que existe naarte eterna de Deus (ab exemplaritate in arte aeterna) porque as coisas têmentre si as relações que a arte criadora divina estabelece entre os seusmodelos". Daqui conclui S. Boaventura, uma vez mais com Santo Agostinho, que"o nosso intelecto está unido à própria verdade eterna e nada de verdadeiropode compreender com certeza senão mediante o ensinamento daquela". Echega às mesmas conclusões ao considerar a actividade do intelecto prático: o

conselho, que consiste em procurar o que seja melhor e que, portanto, supõe anoção do óptimo, ou seja, o sumo bem, que é Deus; o juízo, que versa sobre osobjectos do conselho e supõe um critério ou

lei que é o próprio Deus; o desejo, que tende para a felicidade, a qualconsiste na posição do fim último, isto é , do Sumo Bem, e que portantodepende dele (Itin., 3).

A doutrina do conhecimento de S. Boaventura mostra da forma mais clara ostraços característicos do seu procedimento. Permanecendo fiel aos pontosessenciais do apriorismo teológico de Santo Agostinho, aceita a teseempirista de Aristóteles, limitando-a ao material do conhecimento; prescinde,porém, completamente das posições que o problema do conhecimento haviarecebido de Aristóteles e

dos seus intérpretes muçulmanos. Um ponto isolado do sistema aristotélico,ponto julgado carente de consequências, é tudo quanto ele utiliza da obra deAristóteles. Este procedimento encontra-se ainda noutros aspectos da suadoutrina.

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§ 263. S. BOAVENTURA: METAFíSICA E TEOLOGIA

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A relação intrínseca que o intelecto humano tem com Deus não implica que lheseja dado conhecer Deus directamente e em si. "É preciso dizer que, tal comocada causa brilha no seu efeito e a sabedoria do artífice se manUesta na suaobra, assim também Deus, que é artífice e causa da criatura, se conheceatravés da criatura. E para isso existe uma dupla razão: uma de conveniênciae outra de indigência. De conveniência: porque não podendo Deus, como luzsupremamente espiritual, ser conhecido pelo intelecto na sua espiritualidade,a alma, para o poder conhecer, necessita como que de uma luz material, istoé, da criatura" (In Sent., 1, dist.3, a. 1, q. 2). Dever-se-ia esperar, dada esta nova concessão ao empirismo,que S. Boaventura seguisse, na demonstração da existência de Deus, a via aposteriori, escolhida e seguida por S. Tomás, e que por isso recusasse oargumento de Santo Anselmo. Na realidade não foi assim: S. Boaventurareproduz e defende o argumento ontológico: "A verdade do ser divino, diz ele,é tal que não pode pensar-se com consentimento [isto é, crer efectivamente]que ele não exista, a não ser por ignorância daquilo que significa o nome deDeus" (1b., 1, dist. 8, a. 1, q. 2). O argumento de Santo Anselmo move-se noâmbito da especulação agustiniana e dificilmente pode ser negado por quem,como S. Boaventura, considera que a mente humana, para entender e julgar,deve estar unida a Deus. Não se pode pôr Deus como pressuposto e condição doconhecimento de todas as coisas particulares, sem admitir que a sua realidadeé certa e demonstrável independentemente dessas coisas, portanto a priori. Seo conhecimento das coisas é condicionado pelo conhecimento de Deus, e nãoinversamente, só através da relação directa com Deus é que o intelecto pode

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entender e julgar as coisas. Que o homem se eleve das coisas até Deus é umapossibilidade condicionada pela relação do homem com Deus: não pode, pois,condicioná-lo. O argumento ontológico reentra na lógica da posiçãoagustiniana da relação entre o homem e Deus: tal como S. Boaventura,considerá-lo-ão válido todos os que se novam no âmbito do pensamentoagustiniano.

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Deus, como causa criadora das coisas, é também o seu modelo. A ideia ou omodelo das coisas na mente divina identifica-se com a essência divina, e mul-tiplica-se só em referência às coisas criadas, mas não no próprio Deus (lb.,1, dist. 35, a. 1, q. 2-3). Na sua omnipotência infin-ita, Deus é a causa detodas as coisas, que ele criou do nada. A criação não implica nenhumproblema insolúvel, é um ponto sobre o qual coincidem plenamente a fé a arazão, quer no que se refere à dependência causal do mundo em relação a Deus,quer no que se refere ao início do mundo no tempo. Que o mundo tenha sidocriado do nada resulta evidente de que sendo Deus, pela sua omnipotência, oagente mais nobre e mais perfeito, a sua acção é portanto radical, edetermina todo o ser da coisa produzida, não sendo condicionada por nada deestranho (1b., 11, dist.1, a. q. 1). Mas é impossível, segundo S. Boaventura, afirmar ao mesmo tempoque o mundo foi criado e é eterno. É impossível que seja eterno aquilo quechegue a ser depois de não-ser; e é este o caso do mundo, enquanto criado apartir do nada. Além disso, a duração infinita do mundo implicaria infinitasrevoluções celestes. Mas aquilo que é infinito não pode ser ordenado; noinfinito não existe um primeiro, portanto, não existe ordem. Mas é impossívelque haja revoluções celestes que não sejam ordenadas. Além disso a eternidadedo inundo suporia a existência simultânea de infinitas almas humanas, o que éimpossível. Poder-se-ia

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negar este último argumento admitindo uma palingenesia, uma real unidade dasalmas dos homens: mas isto não só é contrário à fé cristã como também édeclarado falso pela filosofia (1b., 11, dist. 1, a. 1, q. 2). A criação comoinício do mundo no tempo é pois uma verdade necessária. S. Boaventura assumeaqui, como dotadas de valor demonstrativo as razões aduzidas por MaÀmónidas(§ 250) e procede sem a mínima hesitação. A sua atitude está neste ponto emfranco contraste com a prudente cautela com que o próprio Maimónidas (e maistarde S. Tomás) considera a questão, declarando impossível a sua soluçãodemonstrativa.

S. Boaventura aceita do aristotelismo hebraic-,) (Avicebrão) o

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princípio dacomposição hilomórfica universal. Matéria, diz ele, deve ser atribuída não sóaos seres corporais, mas também aos espirituais. Com efeito, o serespiritual, enquanto criado, não é absolutamente simples; mas sim compostopor potênc@a e acto. Ora potência e acto são convertíveis com matéria eforma: deve pois ser também atribuído aos seres espirituais o conjunto dematéria e forma. A matéria espiritual não está sujeitta, como a das coisascorpóreas, à privação e à corrupção; está privada de todas as determinaçõescorporais (lb., 11, dist. 3, a. 1, q. 1; dist. 17, a. 1, q. 2). É purapotência e constitui, com a matéria corpórea, uma única matéria homogénea,como único é o ouro de que são feitos diversos objectos (lb.,11, dist. 3, 1, a. 1, q. 3). Esta doutrina, que já Alexandre de Hales tinhadefendido, torna-se com S. Boaventura, num dos pontos básicos doagustinianismo franciscano.

Todos os seres são pois compostos por matéria e forma. A forma é a essênciaque restringue e define a matéria a um determinado ser. Mas esta essência ésempre universal, porque tem em si a capacidade de se realizar numamultiplicidade de

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indivíduos. Qual é pois o princípio de individuação que determina eindividualiza a forma universal? É evidente que tal princípio não pode serexterno à constituição do indivíduo, mas deve coincidir com os seus princípios constitutivos. E como tais princípios são precisamente a matéria e aforma, a individuação derivará da união e da acção recíproca (cominunicalio)entre a matéria e a forma. E é, com efeito, pela unidade de matéria e formaque o inJivíduo, é constituído, o qual é um hoc aliquid no qual o hoc éconstituído pela matéria, o aliquid pela forma (1b., 111, dist. 10, a. 1, q.3). Esta solução contrasta com a tradição aristotélica que põe na matéria oprincípio da individuação, e também ela se tornará uma doutrina comum do novoagustinianismo.

Este novo agustinianismo tomará também de S. Boaventura o conceito de matériacomo potência. quer passiva quer activa, capaz de determinar por si mesma aemergência das formas. A potência activa da matéria é a razão seminal. Anoção de razão seminal (logos spermatikós) que passara dos Estóicos aos

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Neoplatónicos, foi retomada nestes últimos por Santo Agostinho, do qual aretomou S. Boaventura. "A razão seminal é.a potência activa radicada namatéria; e esta potência activa é a

essência da forma, porque dela se gera a forma mediante o procedimento danatureza, que nada produz do nada" (lb., 11, dist. 18, a. 1, q. 3).

§ 264. S. BOAVENTURA: A FíSICA DA LUZ

Tal como Roberto Grossetête, S. Boaventura elabora uma doutrina física, que éuma teoria da luz. A luz não é um corpo, mas a forma de todos os

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corpos. Se fosse um corpo, dado que é próprio dela multiplicar-se por simesma, seria necessário admitir que fosse possível a um corpo multiplicar-sesem adjunção de matéria, o que é impossível. A luz é a forma substancial dequalquer corpo natural. Todos os corpos dela participam em maior ou menorquantidade, e conforme a sua participação, assim é maior ou menor a suadignidade ou valor na hierarquia dos seres. A luz é o princípio da formaçãogeral dos próprios corpos; a sua especial é devida à adição de outras formas,elementares ou mixtas (In Sent., 11, dist. 13, a. 2, q. 1-2).

Isto implica que na constituição dum corpo podem entrar várias formas, quecoexistem no próprio corpo. A forma comum da luz, efectivamente, coexiste emcada com a forma própria desse mesmo corpo (1b., 11, dist. 13, a. 2, q. 2). Oprincípio da pluralidade das formas substanciais constituirá um outro pontobásico da metafísica do agustinjanismo.

§ 265. S. BOAVENTURA: A ANTROPOLOGIA

"Deus criou o homem de duas naturezas màximamente d-istintas entre si,conjugando-as numa única pessoa" (Brevil., 11, 10). A alma e o corpo entrampois, ao mesmo nível e na mesma meJida, na constituição da unidade nanatureza e da pessoa humana, embora estando tão distantes uma da outra. Noque se refere à alma, S. Boaventura prefere a definição platónica que fazdela o motor do próprio corpo, à aristotélica, que a considera comoenteléquia ou forma perfeita do corpo (1b., 11, 9). Mas dado que a alma é nãosó uma forma natural, mas também uma substância, e uma substância espiritualé separável do corpo, segue-se que ela é, por natureza, incorruptível e

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imortal. O seu nascimento não é devido à acção duma forma natural, mas àcriação

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directa de Deus. O seu destino é alcançar a beatitude em Deus, pelo que podeser definida como uma "forma beatificável" (Ib., 11, 9).

S. Boaventura preocupa-se com o garantir ao homem, no campo do conhecimento,a capacidade de iniciativa, e, no campo prático, a liberdade. Contra aidentificação do Intelecto agente com Deus, sustentada por Alexandre de Halese João de Ia Rochelle, afirma a oportunidade de reconhecer o poder activo queDeus concedeu à alma humana. "Se bem que esta solução, diz ele (Opera, ed.Quaracchi, 11, 568 b) afirme a verdade e esteja de acordo com a fé católica,não é, todavia, oportuna (a,d propositum): já que à nossa alma foi dada apossibilidade de outros actos; e Deus, embora sendo o agente principal nasacções de qualquer criatura, deu, todavia, a alguns dos seres uma forçaactiva, que os conduz às acções que lhe são próprias". Ainda que falando comoAristóteles do intelecto possível e do intelecto agente, S. Boaventuraconsidera-os como duas partes da alma, dois aspectos do intelecto humano.

No domínio prático o homem é livre, porque deve merecer a beatitude e não hámérito sem liberdade. A liberdade pertence à natureza da vontade e de nenhummodo lhe pode ser arrebatada, ainda que se torne miserável pela culpa eescrava do pecado. A liberdade não é um instinto natural, mas supõe adeliberação e o arbítrio. A sua essência consiste na possibilidade daescolha, a qual é sempre escolha de indiferença, pois supõe que a vontadepossa, em cada caso, decidir-se por uma ou por outra de duas alternativasopostas. Mas dado que esta indiferença pressupõe uma deliberação prel-iminar,à qual se junta a decisão da vontade, o livre arbítrio é simultâncamente umafaculdade da razão e da vontade (Brevil., 11, 9).

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A livro escolha do homem é guiada e iluminada pela sindérese 1. S. Boaventuraaceita de Aristóteles a distinção entre, intelecto especulativo e intelectoprático; mas, ainda com Aristóteles, nega que se trate de dois intelectosdiferentes. "0 intelecto especulativo torna-se prático quando se une à

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vontade e à acção, determinando-as e dirigindo-as" (In Sent., II, dist. 24,p. 1, a. 2, q. 1). Na realidade o intelecto prático e o intelectoespeculativo são a mesma faculdade: o primeiro é sómente a extensão dosegundo ao domínio da acção (1b., II, dist. 39, a. 1, q. 1). Aquilo que aciência é para o intelecto especulativo, é a consciência para o intelectoprático. "A ciência é a perfeição do nosso intelecto enquanto especu-lativo,a consciência é a disposição (habitus) que aperfeiçoa o nosso intelectoenquanto prático". Mas como a actividade do intelecto especulativo pressupõe,segundo v-imos, a iluminação directa pela parte de Deus, assim também épressuposta a mesma iluminação pela actividade do intelecto prático. "Nomomento da criação da alma, o intelecto recebe uma luz que é para ele umcritério natural de juízo (naturale iudicatorium) que dirige o própriointelecto no conhecer: também da mesma forma o afecto tem em si um peso(pondus) natural que o dirige no desejam (lb., 11, dist., 39, a. 2, q. 2).Este peso natural que faz mover o intelecto prático em direcção ao bem é

1 O conceito de si~rese aparece pela primeira vez em S. Jerónimo (Comm. inEzechiele, in P. L., 25.o, cãI. 22) como a "faísca da consciência, que não seextinguiu ne peito de Adão depois de ter sido expulso do Paraiso". Encontra-se noutros Padres (Basílio, Gregório o Grande) e nos Vitorinos. Porém só emS. Boaventura e em Alberto o Magno (§ 271) se torna urna faculdade natural dojuizo, que atrai o homem para o bem e lhe dá o remorso do mal.

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a disposição nele determina pela acção iluminadora de Deus; a sindérese. "Asindérese, diz S. Boaventura (Ib., 11, dist. 39, a. 2, q. 1) é a faísca daconsciência: a consciência não pode mover, incitar, estimular, senão mediantea síndérese, que é como que o seu estímulo e o seu fogo animador. Tal como arazão não pode mover senão mediante a vontade, assim também a consciência nãopode mover senão mediante a sindérese". O remorso não é produzido pelaconsciência, mas sim pela disposição que regula a consciência, por aquelafaísca que é a sindérese (1b., 11, dist. 39, a. 1, q. 1).

No Itinerário, a sindérese é denominada "o ápice da mente" e consiste noúltimo grau da elevação até Deus, aquele que imediatamente precede o raptofinal.

§ 266. S. BOAVENTURA: A ASCESE MíSTICA

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O misticismo de S. Boaventura inspira--se no dos Vitorinos, entroncandotambém na corrente agustiniana chefiada por aqueles. O Solilóquio, diálogoentre o homem e a sua alma, insipra-se em Hugo de S. Vítor; o Itinerário damente para Deus, que é a obra-prima mística de S. Boaventura, inspira-se emRicardo de S. Vítor. Tal como Hugo de S. Vítor, distingue S. Boaventura trêsolhos ou faculdades da mente humana: o que esitá voltado para as coisasexteriores e que é a sensibilidade; o que está voltado para si próprio e queé o espírito, o que está voltado para cima de si próprio e que é a mente.Cada uma destas faculdades pode ver Deus per speculum, isto é, através daimagem de Deus reflectida nos entes criados, ou in speculo, isto é, na marcaou traço que o ser e a bondade de Deus deixam nas próprias coisas. Cadafaculdade se desdobra deste modo e ficam assim determ-inadas sds potências daalma pelas quais se -passa

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das coisas ínfimas às supremas, das exteriores às interiores, das temporaisàs eternas. Estas seis potências, em cuja enumeração S. Boaventura segueIsaac de Stella (§ 223), são as seguintes: o sentido, * imaginação a razão,o intelecto, a inteligência, * o ápice da mente ou faísca da sindérese.

A estas seis potências da alma correspondem seis graus da ascese para Deus. Oprimeiro consiste na consideração das coisas na sua ordem e na sua beleza eem todos os atributos que permitem remontar à sua origem divina. O segundoconsiste na consideração das coisas não em si próprias, mas na alma humanaque delas apreende as espécies que purifica, abstraindo-as das condições,sensíveis, com* faculdade do juízo. No terceiro grau contempla-se* imagem de Deus reflectida nos poderes naturais da alma: a memória, ointelecto e a vontade. No quarto grau contempla-se Deus na alma iluminada eaperfeiçoada pelas três virtudes teologais. No quinto grau contempla-se Deusdirectamente no seu primeiro atributo que é o ser. No sexto grau contempla-seDeus na sua máxima potência que é o bem, pelo qual Deus se difunde e searticula na Trindade. Com este sexto grau termina a investigação mística, masnão a ascese mística. À alma que já percorreu os seis graus da investigação "

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resta únicamente transcender e superar não só o mundo sensível, mas também asi própria". Neste ponto, necessita abandonar todas as operações intelectuaise projectar em Deus todo o afecto. "Pois que aqui nada pode a natureza, e bempouco a actividade humana, pouca importância se deve dar-se à investigação, àeloquência, às palavras, ao estudo, à criatura, e muito à piedade, à alegriainterior, ao dom divino, ao Espírito Santo, isto é, à essência criadora, Pai,Filho e Espírito Santo" (Itin., 7). Esta condição de êxtase (excessus mentis)é descrita por S. Boaventura com as palavras do Pseudo-Dio-

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nísio (De myst. theol., 1, 1) e é definida como um estado de doutaignorância, na qual a escuridão dos poderes cognosciltivos humanos setransfornia em luz sobrenatural. "0 nosso espírito é arrebatado acima de simesmo, na escuridão e no êxtase, por uma espécie de dou-ta ignorância"(Brevil., V, 6). O êxtase não é portanto um estado intelectual, mas sim umestado vital: é a união viva do homem com o criador, união pela qual o homempode participar na vida de Deus e conhecer a essência.

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 260. Os dados biográficos do texto estão conforme as investigações dePELSTER, Literargeschichtlíche Problem im Anschluss an dieBonaventuraausgabe, in "Zeitschrift für kotholische Theologie", Innsbruck,1924, vol. 48, p. 500-532, Das obras de S. Botaventura há a edição feitapelos padres de Quaracchi, 10 volumes e um de indices, Quaracchi, 1882-1902.Outras edições: Breviloquium, Itinerarium mentis in Deum, De reductio,n,eartium ad theologiam, Quaracchi, 1911; Collationes in Hexaêmeron, ed.Delorme, Quaracchi, 1934; Opera teologica selecta, Quaracchi, 1934-1949;Questions dispputées, De caritate, De novisimis, ed. Glorieux, Paris, 1950.

GILSON, La phil. de St. B., Paris, 1924, 1953 3 (COM bibl.); STEFANINI, Ilproblema religioso in PTatone e S. Bonaventura, Turim, 1934; BRETON, St. B.,Paris,1943; LAzZARINI, S. Bonaventura, filosofo e mistico del cristianesimo, Milão,1946 (com bibl.).

§ 261. Acerca das relações entre fé e ciência: ZIESCHE, Die h1. B. Lehre vonder logisch-psychologischen analys-, des Glaubensaktes, Breslau, 1908.

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TAVARD, Transi~ and Permanence. The Nature of Theology According to St. B.,Saint Bonaventure (New York), 1954.

§ 2644. Sobre a filosofia da luz: BAEumKER, Wítelo, in "Beitrãgc", 111, 2,1908, p. 394-407.

§ 265. Sobre a antr~ogia: LUTZ, in "Beitráge", VI, 4-5, 1909; 0- DONNFL, ThePsychology of St. B. and St. Thom" Aquinas, Washingtm, 1937.

§ 266. Sobre o misticism<>: GRONEWALD, Fra"iskanische Mystik, Mónaco, 1931;PRENTicE, The Psychology of Love According to St. B., Saint Bonaventura (NewYork), 1951, 19572

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í N D 1 C E

TERCEIRA PARTE

FILOSOFIA ESCOLÃSTICA

I-AS ORIGENS DA ES0OI@ÃST1CA ... 9

§ 173. Carácter da Escolástica ... ... 9 § 174. O renascimento carolíngio... ... 17 § 175. Henrique e Remigio de Auxerre 21

Nota bibliográfica ... ... ... ... 23

II - JOÃO ESCOTO ERIGENA ... ... ... 27

§ 176. A personalidade histórica ... ... 27 § 177. Vida e Obra ... ... ... ... ... 28 § 178. Fé e Razão ... ... ...... ... 3!p § 179. As quatro naturezas ... ... ... 32 §180. A primeira natureza: Deus ... 34 § 181. A

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segundanatureza: o Verbo ... 36 § 182. A terceira natureza: o Mundo ... 37 § 183. O conhecimento humano ... ... 40 §184. Divindade do homem ... ... ... 41 § 185. O mal e aliberdade humana ... 44 § 186. A lógica ... ... ... ... ... ... 46

Nota bibliográfica ... ... ... ... 48

281

DIALr@,

§ 187. § 188.

ANSEI,

§ 189. § 190. § 191. § 192. § 193. § 194. § 195. § 196. § 197. § 198. § 199.

CTICOS E ANTIDIAL1,=ICOS

Gerberto ... ... ... ... ... ...

49

4951

55

57

5758606165676870737476

78

V_A DIS

SAIS

§ 200.

Page 213: 55549519 Historia Da Filosofia 3

§ 201. § 202. § 203.

VI - ABE

§204. §205. §206. §207. §208. §209.

§210. §211.

CUSSÃO SOBRE OS UNIVER- ... ... ... ... ... 81

o problema e o seu significado @@ 4.f_; ... ... 81

Dialécticos e antidialécticos ...

Nota bibliográfica ... ... ... ...

MO DE AOSTA ... ... ... ...

A figura histórica ... ... ... Vida e Obra ... ... ... ... ...

s - ... ... ... ... r-?-scelino ... ... ... ... 85

Guilherme de Champe-aux ... ... 88 o tratado "de Generibus etspeelebus" ... ... ... ... ... ... 89

Nota bibliográfica ... ... ... ... 90

LRDO ... ... ... ... ... ... --- 91

r e e Razão ... ... ... ... ...

A existência de Deus ... ... ...

A essência de Deus ... ... ...

A Criação ... ... ... ... ...

A figura histõrica ... ... ... ... 91 -ida e Escritos ... ... ...... 92

... ... 95

A Trindade ... ... ... ... ...

o o ... ... ... Razão e Autoridade ... ... ... 97O universal como discurso ... ... 98O acordo entre a filosofia e a

1. X ... 100

A Liberdade ... ... ... ... ...

Presciência e predestinação ... o ai . ... ... ...

Page 214: 55549519 Historia Da Filosofia 3

A Alma ... ... ... ... ... ...

r~ aç o ... ... ... ... A Trindade Divina ... ... ... 102 AUnidade Divina ... ... ... 105

283

Not- biblio ráfica

... ... ... ...

282

§ 212. §213. §214.

VII-A ESC

§215. §216. §217. §218. §219.

§220.

viu -o MIS

§ 221.

§ 222.

Deus e o mundo ... ... ... ...

106108110112

115

115123129135

138142146

149

149151

§ 223. § 224. § 225. § 226.

§ 227. § 228. § 229.

IX - A SIS

Page 215: 55549519 Historia Da Filosofia 3

§ 230. § 231.

X-A FIL

§ 232. § 233.

Isaac de Stella ... ... ... ...

155156160

164166167

169172

175

175177181

183

183187

O homem ... ... ... ... ...

Hugo de S. Victor* Razão e Fé

Hugo de S. Victor: A Teologia Hugo de S. Victor: A Antropoloma ... ... ...

A Êtica ... ... ... ... ... ...

Nota bibIioLyráfica ... ... ... ...

OLA DE CHARTRES ... ... ...

O naturalismo chartrense ... ... Gilberto de ia Porrêe, ... ... ... T-5- A.Salisbúria

Hugo de S. Victor: O Misticismo Ricardo de S. Victúr: A Teologia Ricardo deS. Victor- A Antro-

olo-ia Mistica

k

Nota bibliogrãfica ... ... ... ...

Page 216: 55549519 Historia Da Filosofia 3

... ... ... ... Alano de Lille ... ... ... ...

TEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA

Sentenças e sumas ... ... ...

T->.A,- T-1-1-

O Panteismo: AmaIrico de Bena e Davi-d de Dinant ... ... ... Joaauim deFlore ... ... ... ...

Nota biblio--%fica .. ...

TICIS O ... ... ... ... ... ...

... ... ... ...

Nota biblio@ráfica . ... ...

OSOFIA ÁRABE ... ... ... ...

Caracteres do misticismo medieval ... ... ... ... ... ...

Caracíceristicas e origens ... ... Al-Kindi ... ... ... ... ... ...

Bernardo de CJáraval ... ... ...

284

285

§234. AI Farabi ... ... ... ... ... 188 §235. Avicena: aMetafisica ... ... 191 §236. Avicena: a Antropologia ... ... 198 §237. AI Gazali. ... ... ... ... ... 201 §238. Ibn-Badja ... ... ... ... ... 204 §239. Ibn-Tofail ...... ... ... ... 205 §240. Averróis: Vida e Obra ... ... 207 §241. Averróis: FiIosofia e Religião ... 209 §242. Averróis: a Doutrina do Intelecto 211 §243. Averróis: a Eternidade do Mundo 215

Nota bibliográfica ... ... ... ... 219

XI -A FILOSOFIA JUDAICA ... ... ... 223

§244. A cabala ... ... ... ... ... ... 223 §24,5. Isaque Israeli ... ... ... ... 225 §246. Saadja ... ... ... ... ...... 226 §247. Ibn-Gebiroil: Matéria e Forma ... 227 §248.

Page 217: 55549519 Historia Da Filosofia 3

Ibn-Gebirol: a Vontade ... ... 228 §249. Reacção contra a Filosofia ... 230 §250. Maimónidas: a Teologia ... ... 231§251. Maimõnidas: a Antropologia ... 235

Nota bibliográfica ... ... ... ... 238

286

XH --A POLI=CA CONTRA O ARISTOTELISMO ... ... ... ... ... ... ...... 2@

§ 252. As traduções latinas de Aristó-

teles ... ... ... ... ... ... ... 24 § 253. Guilherme d'Auvergne ... ... ... 2@ § 254. Alexandre de Hales ... ... ... 2@ § 255. Roberto Grossetê te: A Teologia 2,1 § 256. RobertoGrossetête: A Física ... 2,1 § 257. João de ia Rochelle ... ... ... 2,1

258. Vicente de Beauvaís ... ... ... 2!

Nota bibliográfica ... ... ... ... 2!

XIIII S. BOAVENTURA ... ... ... ... , - 21

§ 259. O regresso a Santo Agostinho ... 21 § 260. Vida e Obra ... ... ... ... ... 21 § 261. Fé e Ciéncia ... ... ... ... ... 21 § 262. O conhecimento ... ... ... ... 2 § 263. Metafisica e Teologia ... ... ... 2 § 264. A física da luz ... ... ... ... 2 § 265. A antropologia ... ... ... ... 2 § 266. A ascese mística ... ... ... ... 2

Nota bibliográfica ... ... ... ... 2

287