33 comunicação performativa do corpo: o fazer-dizer da contemporaneidade

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Tese de doutorado - Para se comunicar publicamente, o corpo hoje enfrenta um tipo de superexposição midiática que se torna uma moldura a enfrentar quando não deseja fazer parte do processo em curso. Embora pareça aos menos atentos que vivemos em uma época na qual o corpo tornou-se um dos assuntos mais explorados, aqueles que refletem sobre a cultura contemporânea chamam a nossa atenção para o fato de que esse corpo hiper-exposto nas mídias está sempre atrás de um mesmo tipo de filtro. Em certos segmentos da cultura, o corpo optou por outra forma de comunicação e, por ferir as suas imagens hegemônicas da cultura de massa, é por elas detido em nichos periféricos. A dança contemporânea é um deles. A hipótese que resultou na pesquisa aqui apresentada sob a forma de uma tese dedoutorado partiu da teoria dos atos de fala de J. L. Austin a respeito da linguagem verbal e a estendeu para a linguagem corporal, pondo as suas formulações em diálogo com a teoria corpomídia, desenvolvida por Katz & Greiner (1999, 2000, 2001, 2004, 2005) e com a bilbiografia de críticos da cultura como Negri (2004, 2005) e Foucault. Propondo que o corpo é corpomídia da contemporaneidade quando instaura um outro modo de atuar, a hipótese é a de que isso se dá quando o seu dizer inaugura o seu fazer. Esse fazer-dizer distingue corpos humanos ou institucionais. A partir do arcabouço teórico aqui apresentado, a tese propõe-se a investigar a relação da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia com os grupos que produziu. Seriam elescorposmídia da instituição que os gerou e abrigou? A pesquisa deparou-se ainda com a questão da visibilidade/ invisibilidade da própria dança contemporânea, que entendeu como um subproduto do jornalismo cultural praticado no Brasil.

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  • JUSSARA SOBREIRA SETENTA

    Comunicao Performativa do Corpo: o fazer-dizer da contemporaneidade

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Comunicao e Semitica PUC/SP

    So Paulo - 2006

  • JUSSARA SOBREIRA SETENTA

    Comunicao Performativa do Corpo: o fazer-dizer da contemporaneidade

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutora em Comunicao e Semitica, na rea de concentrao Signo e Significao nas Mdias, sob a orientao da Prof. Dr. Helena Tania Katz

  • Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao/tese por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos. Assinatura:______________________Local e Data:_______________

  • Banca Examinadora:

    _________________________________________

    _________________________________________

    _________________________________________

    _________________________________________

    _________________________________________

  • Dedico este trabalho s instncias que instigam o exerccio de aes compartilhadas: minha Famlia, a Escola de Dana da UFBA, a rea da Dana.

  • Querida Helena Katz pela generosidade, solidariedade, carinho e amizade Ao PQI/CAPES por fomentar a realizao desta pesquisa Juara Brbara Martins Pinheiro pelo acompanhamento e incentivo carinhoso dispensado Adriana Bittencourt Machado pela amizade, cumplicidade e parceria Tomas pelo gentileza do acolhimento Dulce Aquino, Marli Sarmento, Conceio Castro, Leda Iannitelli, Tnia Bispo, Edleuza Santos, Sueli Ramos por compartilharem informaes dos grupos GDC, ODUND e TRANCHAN Aos artistas Wagner Schwartz e Jorge Alencar pela permisso e confiana na citao de suas invenes Aos amigos paulistas que no deixaram chegar o frio: Neli Casimiro e famlia, Maurioleo, D.Soave, Dora Leo, Fabiana Britto, Nirvana Marinho, ngela DAmbrosis Fernando Passos pela apresentao de autores que contriburam significantemente para o trabalho Aos Professores, Colegas e Funcionrios da PUC/COS pela troca e compartilhamento de informaes

  • Resumo Para se comunicar publicamente, o corpo hoje enfrenta um tipo de superexposio miditica que se torna uma moldura a enfrentar quando no deseja fazer parte do processo em curso. Embora parea aos menos atentos que vivemos em uma poca na qual o corpo tornou-se um dos assuntos mais explorados, aqueles que refletem sobre a cultura contempornea chamam a nossa ateno para o fato de que esse corpo hiper-exposto nas mdias est sempre atrs de um mesmo tipo de filtro. Em certos segmentos da cultura, o corpo optou por outra forma de comunicao e, por ferir as suas imagens hegemnicas da cultura de massa, por elas detido em nichos perifricos. A dana contempornea um deles. A hiptese que resultou na pesquisa aqui apresentada sob a forma de uma tese de doutorado partiu da teoria dos atos de fala de J. L. Austin a respeito da linguagem verbal e a estendeu para a linguagem corporal, pondo as suas formulaes em dilogo com a teoria corpomdia, desenvolvida por Katz & Greiner (1999, 2000, 2001, 2004, 2005) e com a bilbiografia de crticos da cultura como Negri (2004, 2005) e Foucault. Propondo que o corpo corpomdia da contemporaneidade quando instaura um outro modo de atuar, a hiptese a de que isso se d quando o seu dizer inaugura o seu fazer. Esse fazer-dizer distingue corpos humanos ou institucionais. A partir do arcabouo terico aqui apresentado, a tese prope-se a investigar a relao da Escola de Dana da Universidade Federal da Bahia com os grupos que produziu. Seriam eles corposmdia da instituio que os gerou e abrigou? A pesquisa deparou-se ainda com a questo da visibilidade/ invisibilidade da prpria dana contempornea, que entendeu como um sub-produto do jornalismo cultural praticado no Brasil. Palavras-chave: corpo performativo, atos de fala, Escola de Dana da UFBA, jornalismo cultural, dana contempornea.

  • Abstract

    In public communication, the body currently encounters a kind of overexposure by the media that can be seen as a frame to be confronted if the principle intent is to not participate in the media process as such. Although it may seem to a averagely attentive person that we live in a time where the body has become one of the most explored of subjects, those who reflect upon contemporary culture call attention to the fact that this highly exposed, mediated body is always behind the same type of filters. In certain cultural areas, the body chooses other forms of communication and, in challenging the hegemonic images of mass culture, is by them confined to peripheral niches. Contemporary dance is one such peripheral niche. The hypothesis that resulted in the research herein presented as a doctoral dissertation was developed out of the speech acts theory of J. L. Austin, regarding verbal language, which was extended to body language by placing its formulations in dialogue with the corpomdia [body-media] theory developed by Katz & Greiner (1999, 2000, 2001, 2004, 2005), as well as with works of critics of culture such as Negri (2004, 2005) and Foucault. Proposing that the body is corpomdia of contemporaneity in installing other forms of behavior, the hypothesis is that this happens when its saying initiates its doing. This doing-saying distinguishes human and institutional bodies. Based on the theoretical frame here presented, this dissertation investigates the relationship between the Dance School of the Federal University of Bahia and the dance companies it produced. Could they be considered as corposmdia of the institution that created and supported them? The research also deals with the question of the visibility/ invisibility of contemporary dance itself, understood here as a sub-product of the cultural journalism practiced in Brazil. Key-word: performative body, speech acts, Dance School of the Federal University of Bahia, cultural journalism, contemporary dance.

  • ndice Apresentao....................................................................................................10 Captulo I Falas que se enunciam..................................................................13

    Atos de fala no corpo.........................................................................................26

    Ao e corpomdia.............................................................................................35

    Corpomdia e performatividade.........................................................................38

    Diferentes fazeres-dizeres da dana.................................................................41

    Captulo II Do corpo-sujeito para o corpo-institucional...................................52

    Ao-atitude-comportamento: processos de semiose e agncia......................52

    O poder formativo/performativo das Instituies...............................................64

    A forma(ao) disciplinar do corpo....................................................................66

    Atuao performativa corpo-dana-instituio..................................................69

    Visibilidade e invisibilidade dos processos artsticos da Escola de Dana da

    UFBA.................................................................................................................72

    Captulo III A contemporaneidade e o fazer-dizer..........................................83

    Por que performatividade?.................................................................................83

    Possveis conseqncias ..................................................................................87

    Tema 1: autoria..................................................................................................90

    Tema 2: novas formas de organizao..............................................................94

    Tema 3: outro tipo de sociedade (comum)........................................................96

    Tema 4: uma dana interessada nas singularidades coletivas.......................101

    Hbitos e Performatividade.............................................................................104

    Em vez de concluses, proposies...............................................................108

    Referncias Bibliogrficas...............................................................................112 Anexos.............................................................................................................128

  • 10

    APRESENTAO

    A dana coloca em cena corpos em movimento que produzem

    significados e estabelecem diferentes modos de enunciao. As maneiras como

    esses corpos organizam as idias e as expem de fundamental importncia

    para a proposio que entende o corpo que dana como indissocivel do

    contexto onde apresenta suas propostas. Indispensvel tambm o jeito como a

    dana observa e tem observado seu fazer.

    O jeito como se pratica a observao, de modo geral, est comprometido

    com crenas e compreenses de mundo ainda muito estabelecidas por

    entendimentos de essncia, origem, verdade, certeza. Provavelmente, esta

    maneira de enunciar idias de dana reproduza a lgica do indizvel vinculada a

    propostas artsticas que destacam individualidades e lidam com as idias de

    dana como propriedades privadas.

    Na contramo dessa maneira de tratar a dana, esta tese apresenta a

    dana enquanto fazer que tambm dizer. Neste fazer-dizer, dana e poltica

    compartilham o mesmo processo de constituio das propostas e idias

    artsticas e coletivas. O acolhimento da tnica poltica no processo de

    organizao do fazer em dana, se constri como um acontecimento singular.

    Criar e enunciar vo se dar ao mesmo tempo, produzindo corpos especficos

    para cada enunciado.

    A percepo e a produo de aces-movimentos do corpo que dana no

    prescindem das informaes que esto no mundo e, num compromisso crtico-

    reflexivo, aproximam a dana daquilo que ela enuncia. Pensar a dana como um

    fazer que dizer e, onde, dana e poltica co-existam aciona outros modos de

    agir artisticamente, capaz de discutir, com o seu fazer, qual o lugar da dana

    na sociedade atual. Para tal empreendimento, esta tese considera poltica como

  • 11

    performatividade que se enuncia em corposmdias que danam. Corpos

    implicados e comprometidos com as relaes que estabelecem com o ambiente.

    Alm disso, constrem condies de contaminao do pensamento para

    produo de danas que organizam e enunciam suas idias de diferentes

    modos. Em alguns desses modos, os processos tendem a abordagens

    interrogativas e investigativas pertinentes ao fazer dana. Importa instigar o

    exerccio de aes-atitudes performativas, trabalhadas em corpos que so

    mdias de si mesmos e, que, abordam e discutam questes da diferena no

    fazer-dizer artstico. Estes assuntos vo estar discutidos e distribudos em trs

    captulos que trabalham para modificar o modo como a rea da dana se

    observa, e o modo como ela observada.

    O primeiro captulo discute o corpo que dana com interesse na

    constituio e organizao da fala do corpo. Prope-se um jeito diferenciado de

    observar o corpo que dana que, no seu fazer, se torna um fazer-dizer. A

    performatividade trazida para discutir e problematizar corpos que organizam

    pensamentos-falas na forma de dana. A observao da produo desse falar

    propicia a percepo de que o corpo que dana organiza e constitui sua fala no

    fazer, alm de destacar que esta fala construda no e pelo corpo.

    Compreender as muitas maneiras de enunciar falas de dana passa pela

    observao destas falas como cena e em cena, onde, as enunciaes podem

    expor configuraes distintas e singulares. A questo da performatividade ajuda

    na discusso que trata da posio/condio de visibilidade da rea da dana. A

    discusso distancia-se da compreenso de que a dana indizvel.

    No segundo captulo o corpo que dana observado enquanto corpo-

    sujeito e corpo-instituio e, no trato com questes de poder implicadas nesses

    corpos. As operaes de poder viabilizadas por estes corpos desviam-se de

    caractersticas impeditivas e assumem caractersticas produtivas. Busca-se

  • 12

    perceber se existe algum vnculo entre os fazeres institucionais de dana e os

    fazeres artsticos. A instituio em pauta a Escola de Dana da Universidade

    Federal da Bahia (UFBA). A Escola atua a quase 50 anos na sociedade e

    carrega no seu currculo a constituio de grupos artsticos: O GDC, o Odund e

    o Tranchan. Estes vo ser trazidos para a discusso e investigao da produo

    de um fazer-dizer que tenha configurao performativa.

    O captulo terceiro trata das implicaes polticas provenientes do fazer-

    dizer performativo. Destaca questes que focalizam a utilizao das idias de

    performatividade na organizao do corpo que dana na contemporaneidade.

    Indica a importncia de aproximar a idia de performatividade aos fazeres da

    dana contempornea. Busca-se, ainda, apresentar a potencialidade da rea da

    dana que trabalha de maneira compartilhada e coletiva, ou seja, atua enquanto

    comunidade artstica comprometida com o durante, o antes e o depois. Em

    comunidade, existe a possibilidade de negociar, transformar e traduzir prticas,

    pensamentos, posicionamentos, idias e ideais de modo diferenciado.

  • 13

    CAPITULO I Falas que se enunciam

    No trato com questes relativas ao corpo humano, as formulaes

    seguem definies diversas que se abrigam em discusses psicolgicas,

    fisiolgicas, sociolgicas, antropolgicas, psicanalticas, polticas, tecnolgicas,

    artsticas, culturais, dentre outras. Em cada um desses espaos ocorrem

    subdivises, de acordo com as hipteses que vo sendo formuladas, ao longo

    do tempo. O captulo I, que aqui comea, tem o corpo como assunto e privilegia

    o corpo que dana como seu recorte. Na sua investigao, parte-se da proposta

    de que a organizao da dana em um corpo pode ser tratada como sendo uma

    espcie de fala desse corpo. Atravs da observao do modo como esse falar

    se produz surge a percepo de que existe, dentre os distintos tipos de fala, um

    que inventa o modo de dizer-se. Ele se distingue exatamente por no ser uma

    fala sobre algo fora da fala, mas por inventar o modo de dizer, ou seja, inventar

    a prpria fala de acordo com aquilo que est sendo falado. Essa modalidade de

    fala ser aqui denominada de fazer-dizer.

    O corpo que dana ser tratado fora da compreenso de que a dana

    indizvel. Para tal, a argumentao se iniciar com a abordagem do corpo

    humano e, mais adiante, se ampliar para a do corpo-instituio. Para

    possibilitar isso foi necessrio eleger uma bibliografia que permitisse sustentar a

    existncia de uma construo de fala no e pelo corpo, e que tambm facilitasse

    a compreenso das maneiras de enunciar essa fala e de observ-la como cena

    e em cena.

    As teorias aqui apresentadas obedecem ao interesse em inventar um jeito

    de aplicar, sem perder o rigor, em um corpo que dana, os conceitos

    trabalhados nelas. Vale recorrer ao dispositivo denominado de reducionismo

    interterico (Churchland e Churchland: 1995) para compreender uma forma de

    normatizar o trnsito entre os saberes.

  • 14

    ...pode-se dizer que o exerccio de reduo interterica, tambm

    chamado de materialismo eliminativo, ajuda a perceber questes que

    antes no pareciam pertinentes ou vagavam totalmente desconhecidas e

    alheias nossa ateno. A idia parte do princpio de que quando

    aplicamos uma teoria que normalmente no usada para observar

    determinados fenmenos, iluminamos de modo inusitado a discusso.

    Isso pode acontecer entre teorias (como propem os Churchlands) e

    tambm entre diferentes fenmenos. assim que os deslocamentos

    conceituais parecem se transformar no trunfo de novas descobertas, no

    no sentido de explicar os fenmenos do mundo, mas no de reformul-los.

    (Greiner 2005:18)

    Aqui, o entendimento do corpo que dana, por sua vez, se d a partir da

    teoria do corpomdia. Esto aqui colocados em rede pensamentos que

    investigam modos de constituir e organizar a fala do corpo e as implicaes

    polticas produzidas nesse fazer. Tratar o corpo que dana como um fazer-dizer

    significa conjugar pensamentos que se distanciam da noo causa/efeito e da

    moldura fato/prova. Vai, ento, sustentar modos de pensar que percorrem

    caminhos indiretos, imprecisos, circunstanciais e arriscados na maneira de

    enunciar e implementar idias no corpo.

    Para tratar da dana como um fazer-dizer, toma-se como ponto de partida

    a teoria dos atos de fala trabalhada por Austin1 (1990). Considera-se aqui que

    Austin traz para a rea verbal um tipo de questo compartilhvel com a rea da

    dana. Apresentada de modo suscinto, a sua teoria vai considerar a linguagem

    como uma forma de ao esse sendo o interesse maior em descrev-la aqui -

    levando-se em conta convenes, contextos, finalidades e intenes dos

    falantes. A partir de uma abordagem pragmtica, a linguagem passa a ser

    pensada como produtiva e no apenas reprodutiva. Nessa perspectiva, o falar

    1 John Langshaw Austin (1911-1960), era um filsofo da linguagem que desenvolveu a teoria dos atos de fala.

  • 15

    (comunicar) pode deixar de ser entendido somente como uma mera transmisso

    e veiculao de informao, pois ocorre um outro tipo de atribuio de valor ao

    que comunicado. Manifesta-se no ato de fala a inteno de um sujeito em se

    comunicar com outro sujeito a partir do reconhecimento da inteno do primeiro.

    ...geralmente o proferimento de certas palavras uma das ocorrncias,

    seno a principal ocorrncia, na realizao de um ato (seja de apostar ou

    qualquer outro), cuja realizao tambm alvo do proferimento, mas este

    est longe de ser, ainda que excepcionalmente o seja, a nica coisa

    necessria para realizao de um ato [...] necessrio que o prprio

    falante, ou outras pessoas, tambm realize determinadas aes de certo

    tipo, quer sejam fsicas ou mentais, ou mesmo o proferimento de

    algumas palavras adicionais. (Austin 1990:26)

    A hiptese que legitima o translado de Austin para os domnios do cnico

    se apia no respeito s regras que ele prope. Isso significa eleger, dentro do

    arcabouo por ele montado, sobretudo as aes sempre no presente, sempre na

    primeira pessoa e sempre sendo um verbo de ao. Este tipo de verbo aquele

    que constitui um ato de fala ou uma cena no caso da dana - que no usa a

    linguagem para descrever o que est fora dela.

    Na dana, possvel localizar exemplos que acompanham as regras

    explicitadas acima e, outros, que no as acompanham. Desse ltimo exemplo,

    traz-se o espetculo Saur (1982) do coregrafo Carlos Moraes para a

    companhia estvel e oficial da cidade de Salvador, o Bal do Teatro Castro

    Alves. Nela se percebe um processo de fazer que se orienta por vocabulrios

    referenciados em informaes anteriormente aprontadas. Ou seja, com um

    vocabulrio nascido da tcnica do bal, a obra elege um tema de outra natureza

    (no prximo aos assuntos habitualmente tratados no bal). O vocabulrio existe

    antes da escolha do assunto e no sofre grandes mudanas quando usado para

    explicitar o assunto sobre o qual a obra falar. Nesse tipo de criao, o assunto

  • 16

    no inventa nem a lngua na qual quer ser falado nem um modo prprio ao

    assunto, que o faa articular-se dentre de uma lngua j pronta.

    A predisposio a um fazer que se apronta na ao do fazer - pode ser

    exemplificado no espetculo A Lupa (2005), do coregrafo Jorge Alencar,

    apresentado no Ateli de Coregrafos de 2005, no Teatro Castro Alves, em

    Salvador, Bahia, onde est perceptvel a transformao dos vocabulrios da

    dana, pela necessidade de inventar o modo de dizer, em tempo presente. Vale

    salientar que, na escolha destes dois exemplos, no h pretenso de fazer

    julgamento de valor dos trabalhos, mas de indicar a observao, no exerccio do

    fazer dana, das regras propostas por Austin. Ou seja, no se trata de levar

    Austin para compreender toda e qualquer forma de dana, mas somente

    aquela(s) na(s) qual(is) a sua proposio pode ser verificada. Eis alguns dos

    elementos que revelam o porqu da eleio da proposta de Austin (1990): a

    formulao do enunciado performativo que no descreve a ao, mas a realiza;

    a significao como ao mais que um significado referencial; a diferena entre

    proferimento constativo (aquele que descreve e afirma) e performativo (aquele

    que se produz enquanto ao de linguagem); linguagem como uma articulao

    produtiva e no apenas reprodutiva.

    Entende-se que, assim como tais proposies operaram transformaes

    nos estudos da linguagem, elas tambm podem colaborar na rea dos estudos

    do corpo, ajudando a entender melhor como, por exemplo, o corpo que dana

    est dizendo enquanto est fazendo a sua dana. Compreender a natureza dos

    proferimentos constativos e performativos, atentar para o diferencial entre

    ao/atuao, pode ajudar a tratar com mais clareza as diferentes danas que

    um corpo dana. Serve tambm para tratar o corpo como produtor de questes

    e no receptculo reprodutor de passos ordenados e, longe de pretender

    encontrar solues e respostas definitivas, investigar de que maneira os

    questionamentos do corpo esto se resolvendo no corpo.

  • 17

    A teoria dos atos de fala parte da premissa de que falar uma forma de

    ao. Tais aes, diferentemente de andar ou comer, so aquelas que

    realizamos quando falamos o que no ocorre fora da linguagem, isto , aquilo

    que acontece quando se enuncia. Exemplos que deixam mais claro: um

    perguntar, um afirmar, um jurar, um propor, um concordar. Sua premissa diz que

    se a linguagem o instrumento da realizao de tais aes, elas no ocorrem

    fora da linguagem, uma vez que ela mesma que as constitui.

    Pode ser que esses proferimentos sirvam para informar, mas isso

    muito diferente. Batizar um navio dizer (nas circunstncias apropriadas)

    as palavras Batizo, etc.. Quando digo, diante do juiz ou no altar, etc.,

    Aceito, no estou relatando um casamento, estou me casando. (Austin

    1990:25)

    Nem sempre se utiliza a linguagem para representar um estado de coisas

    exterior si mesma. Quando um juiz enuncia: declaro o ru culpado, ele no

    est descrevendo uma ao fora do ato de sua enunciao, ele a est

    realizando. Esse tipo de enunciado ganha nome de enunciado performativo. O

    resultado dessas aes de linguagem um significado que envolve um sujeito e

    outro sujeito, numa relao de falar e ouvir.

    A importncia dessa proposta reside em nos fazer pensar na linguagem

    como uma encenadora de falas e de suas respectivas significaes. Pensar

    sobre os momentos em que a linguagem encena uma ao. Sobre essa

    questo, Austin (1990) diverge da compreenso de que a linguagem

    significativa porque representa algo que est fora da prpria linguagem, dando

    mesma uma funo de referncia (referir-se a algo do mundo). Sua teoria dos

    atos de fala traz o entendimento de significao como ao de linguagem, pois,

    quando falamos, significamos mais do que o significado referencial daquilo que

    proferimos: realizamos uma ao.

  • 18

    vamos tomar alguns proferimentos que no podem ser enquadrados

    em nenhuma das categorias gramaticais reconhecidas, exceto a de

    declarao; tampouco constituem casos de falta de sentido, nem

    encerram aqueles indcios verbais de perigo que os filsofos j

    detectaram [...] proferir uma dessas sentenas (nas circunstncias

    apropriadas, evidentemente) no descrever o ato que estaria praticando

    ao dizer o que disse, nem declarar o que estou praticando: faz-lo

    (Austin 1990:24).

    Ao diferenciar enunciados constativos (afirmao, descrio) dos

    enunciados performativos (ao da palavra), Austin (1990) vai mostrar que a

    significao no deve ser entendida apenas como referncia ou representao,

    mas como ao de linguagem. Ento, vai considerar linguagem como

    performance:

    O termo performativo ser usado em uma variedade de formas e

    construes cognatas, assim como se d com o termo imperativo.

    Evidentemente que esse nome derivado do verbo ingls to perform,

    verbo correlato ao substantivo ao, e indica que ao se emitir um

    proferimento est se realizando uma ao [...] caracterizamos, de modo

    preliminar, o proferimento performativo como aquela expresso lingstica

    que no consiste, apenas, em dizer algo, mas em fazer algo, no sendo

    um relato verdadeiro ou falso sobre alguma coisa. (Austin 1990:25, 38)

    A diferena entre descrio e ao dos enunciados constativo e

    performativo, parece aproximar a linguagem verbal da linguagem corporal. A

    nfase no agir em vez de descrever traz um modo de organizao de fala que

    remete a uma certa configurao tpica do corpo. No caso de uma descrio (ato

    constativo), os elementos se distanciam do corpo porque so buscados em

    referentes fora dele. O que conta a referncia a algo fora, uma linguagem

  • 19

    sobre, enquanto na ao/realizao, a proximidade corporal definitiva para a

    ocorrncia do enunciado, que deixa de ser sobre e passa a ser um enunciar-se.

    A partir dessas referncias, torna-se possvel pensar o corpo que dana

    dentro dos modos de organizao que propem e que nos permitem aprender

    que existem diferentes modos de enunciar. O modo constativo de enunciao,

    portanto, pode equivaler a um corpo que, ao danar, simplesmente relata os

    seus assuntos, sejam quais forem, sempre com uma linguagem j pronta, pronta

    antes dos assuntos. Trata-se do uso da linguagem da dana como um universal

    pronto para ser usado para relatar qualquer tema. Esse tipo de dana se

    diferencia de outro, que realiza - performatiza e no se interessa apenas pelo

    relato do assunto na linguagem j pronta. Assim como na linguagem sero os

    verbos presentes nas aes constativas e performativas que vo dar a

    articulao entre a linguagem e seus temas, precisaremos atentar para o que

    corresponde a esses verbos nas aes produzidas no/pelo corpo que dana

    quando da constituio e enunciao de sua fala.

    Adriana Banana: Desenquadrando as possibilidades de movimentos (2004)/Foto: Gil Grossi

    interessante destacar a ocorrncia da dupla articulao

    (constativo/performativo) que se enuncia tanto no fazer verbal quanto no

    corporal. Um modo de enunciar no anula o outro e ambos podem estar em

    exerccio concomitante na produo de fala. Porm, considera-se importante

    ressaltar que, assim como na teoria dos atos de fala em Austin (1990) a

  • 20

    enunciao verbal produz falas que se distinguem (aquelas que apenas

    descrevem e aquelas que agem), nos enunciados corporais da dana, essa

    distino tambm pode ser observada, ou seja, torna-se imprescindvel observar

    as diferentes maneiras de como se organiza a fala da dana2 no corpo em

    movimento de dana. O modo performativo de enunciao da linguagem, aquele

    que utiliza sempre verbos no presente, faz pensar nas aes corporais de dana

    que possam privilegiar idias-movimentos, que se processam no fazer (o

    presente do movimento). Elas vo constituir-se em processos significativos que,

    pela natureza da relao entre significao/uso tendem a exercitar uma reflexo

    critica na enunciao em dana.

    Na teoria dos atos de fala, a significao passa a ser objeto de um campo

    particular de estudo: a pragmtica. Passa a ser entendida no como unidades

    lingsticas independente da utilizao dos falantes, mas a partir da

    considerao de que produzida pelo uso. Ou seja, o ambiente (onde acontece

    o uso) interfere na significao. Passa, tambm, a ser estudada fora da moldura

    verdade-mentira, pois um enunciado performativo no tem aptido para

    assegurar um valor de verdade, uma vez que seu objetivo no o de enunciar

    algo sobre algo fora da enunciao que, ento, necessita ser a mais clara

    possvel. A partir de uma abordagem pragmtica, a linguagem passa a ser

    pensada como produtiva e no apenas reprodutiva.

    ... quanto mais consideramos uma declarao, no como uma sentena

    ou proposio, mas como um ato de fala (a partir do qual os demais so

    construes lgicas), tanto mais estamos considerando a coisa toda como

    um ato. (Austin 1990:35)

    2 A fala no corpo aqui trabalhada como a organizao das idias em movimento de dana e vinculada a

    uma bibliografia que uso atualmente. Est, ento, desencompatibilizada de argumentaes que identificam (de modo enftico e primordial) essa fala com o sinnimo de expressividade e comunicao do corpo.

  • 21

    Nesse sentido, possvel acompanhar o raciocnio de Austin e traduz-lo

    para a linguagem corporal da dana a partir da observao das falas produzidas

    para perceber se, elas, tm seu foco na produtibilidade e/ou reprodutibilidade de

    significados. A produo ao de um tipo de fazer que pode ser pensado no

    sentido de um verbo no presente o que se afigura como bastante diferente de

    reproduzir uma feitura j aprontada. O tempo de referncia o tempo presente,

    que aponta para o momento de sua feitura e no para referentes fora do fazer.

    Neste modo de apresentar a questo, ocorre o encontro de duas referncias

    tericas, a saber, a teoria dos atos de fala e a do corpomdia. A ao

    performativa da linguagem verbal pode ser relacionada linguagem corporal

    atravs do entendimento de corpo como corpomdia. Nessa teoria, corpo e

    ambiente encontram-se implicados e as informaes e experincias vivenciadas

    se transformam em corpo. O corpo vai se aprontando num processo co-evolutivo

    de fluxo constante e num fazer no presente, construdo atravs do uso de

    metforas pelo corpo. Trata-se de um corpo-sempre-verbo-no-presente.

    O conceito metafrico representa um modo de estruturar parcialmente

    uma experincia em termos de outra [...] Nesta perspectiva, o ato de

    danar, em termos gerais, o de estabelecer relaes testadas pelo

    corpo em uma situao, em termos de outra, produzindo, neste sentido,

    novas possibilidades de movimento e conceituao. (Greiner 2005:131-

    132)

    A aproximao dessas teorias colabora para a percepo dos modos de

    constituio do corpo que dana. Podemos entender, ento, que a ao dos

    enunciados performativos - seja na linguagem verbal, seja na linguagem

    corporal possui caracterstica marcada por um verbo que est sempre no

    presente do indicativo e na primeira pessoa. E expressa uma ao de linguagem

    que figura num enunciado com a funo de realizar tal ao.

  • 22

    Na primeira conferncia caracterizamos, de modo preliminar, o

    proferimento performativo como aquela expresso lingstica que no

    consiste, ou no consiste, apenas, em dizer algo, mas em fazer algo, no

    sendo um relato, verdadeiro ou falso, sobre alguma coisa (Austin

    1990:38).

    As aes performativas vo ainda estabelecer relaes comunicativas. E

    a maneira de tratar ao e comunicao tambm trazida discusso pela

    teoria corpomdia. Em Austin (1990), a depender da situao em que seja

    proferido um enunciado performativo e das pressuposies de quem fala e de

    quem ouve sobre a situao e as expectativas da ao, tais enunciados podem

    ser explcitos ou no explcitos. No caso do ltimo, a ao leva em conta dados

    situacionais para serem interpretados, e, no anterior, especifica, na sua forma

    lingstica, a ao que se realiza. Ambos visam dar uma informao. Sendo

    assim, reside nos enunciados performativos uma peculiaridade de que neles

    est explicitada uma propriedade comum a todo enunciado, que a de

    comunicar certo contedo e, ao mesmo tempo, estar realizando uma ao

    constri-se o conceito de ato ilocucionrio descrito adiante.

    Cristina Moura: I was born to die (2004)/Foto: Gil Grossi

    Trata-se de um ponto de grande importncia a ser bem compreendido. A

    significao de um enunciado, nos atos ilocucionrios, abrange mais do que a

    significao das unidades lingsticas que o constituem. Um ato ilocucionrio

  • 23

    (inteno comunicativa) constitui-se de um enunciado produzido efetivamente. O

    ato ilocucionrio uma ao do falante em direo a um ouvinte, e atua no

    processo de emisso de um enunciado em que o produto dessa ao um

    efeito de significado.

    Nessa relao entre o falante e o ouvinte surgem os conceitos de

    inteno ilocucionria e efeito ilocucionrio. A inteno corresponde fora

    ilocucionria, que a parte da significao geral de um enunciado que

    especifica o ato ilocucionrio que se realiza atravs da frase enunciada, e que

    se manifesta atravs dos seguintes indicadores: frmula performativa, forma

    sinttica do enunciado, a presena de certas marcas (palavras ou expresses),

    a entonao e as caractersticas da situao. Est implicada na inteno

    ilocucionria uma necessidade de ser reconhecida.

    Essa caracterstica leva para o conceito de efeito ilocucionrio, pois no

    basta haver a inteno do falante no proferimento de um enunciado para que o

    mesmo se realize. Existe a necessidade de que o ouvinte reconhea e acolha o

    enunciado. Ento, a inteno ilocucionria do falante se realiza enquanto efeito

    ilocucionrio no ouvinte. No ato ilocucionrio, a inteno e o efeito encontram-se

    vinculados. V-se aqui estabelecida uma conveno e o aparecimento de

    regras. Para que ocorra, num ato ilocucionrio, a ligao entre a inteno e o

    efeito, existe o envolvimento de determinadas regras que especificam quais

    condies esto pressupostas na sua realizao. Essas regras no so

    reguladoras, so regras constitutivas. No se trata do que adequado para o

    ato, e sim o que efetivo para a realizao de um ato ilocucionrio. As regras

    constitutivas no regulam, mas definem a prpria atividade. Regras de um jogo

    que precisam ser seguidas para que o jogo esteja sendo jogado.

    Essa proposta de comunicao vincula o ato de comunicar realizao

    de uma ao e, apesar desse agir comunicativo constituir-se sobre regras, a

    ao produzida comunica ao mesmo tempo em que realiza uma idia. Percebe-

  • 24

    se, ento, que a comunicao trabalhada no corpo e por ele acionada. A

    compreenso aqui proposta para a relao corpo-ao-comunicao, onde o

    corpo no apenas comunica uma idia, tem como prioridade apresentar o corpo

    como o realizador da idia que comunica. A comunicao transformada em

    corpo, em vez de ocupar o corpo como um lugar de sua ocorrncia ou faz-lo

    funcionar como mero veculo de transmisso. Mais uma vez, percebe-se uma

    aproximao com a abordagem corpomdia, que trata o corpo no como meio

    por onde as informaes passam nem como lugar onde as mesmas se abrigam.

    Em vez disso, entende que a mdia qual o corpomdia se refere diz respeito ao

    processo evolutivo de selecionar informaes que vo constituindo o corpo. A

    informao se transmite em processo de contaminao. (Greiner 2005: 131)

    Apesar de afirmar em suas conferncias que seus ditos no eram difceis

    nem polmicos e que continham um carter provisrio e passvel de

    reformulao, Austin (1990) vincula circunstncias apropriadas a possibilidade

    de acontecimento dos enunciados performativos. Para tanto, indica condies

    para que os enunciados no fracassem numa relao de comunicao

    performativa. S so considerados aqueles enunciados que ocorrem em

    circunstncias ordinrias, em linguagem ordinria. As enunciaes fora dessa

    conveno so tidas como vazias e referentes ao campo do estiolamento3 da

    linguagem: O que quero dizer o seguinte: um proferimento performativo ser,

    digamos, sempre vazio ou nulo de uma maneira peculiar, se dito por um ator no

    palco, ou se introduzido num poema, ou falado em solilquio. (Austin1990: 36).

    Entretanto, do lugar onde Austin (1990) se exclu aquele da

    apresentao de uma obra artstica - que a presente argumentao se constri,

    a saber, buscando a especificidade do proferimento performativo realizado, em

    cena, no e pelo corpo que dana. Ou seja, estamos saindo do domnio do escrito

    3 O significado literal desse termo o enfraquecimento, definhamento. Na Teoria dos Atos de Fala o estiolamento tomado para identificar o empobrecimento, a no vitalidade de um ato de fala proferido em

    um contexto exterior ao da linguagem ordinria; em um contexto no literal.

  • 25

    e do verbal. Austin acompanha a transferncia de domnios porque a sua

    proposta de tratar a linguagem como ao instiga a discusso sobre o corpo que

    dana buscando nele a percepo de como o seu mover pode ser entendido

    como um enunciador de falas. Talvez Austin no tenha conseguido, por falta de

    domnio sobre outros tipos de linguagem que no a verbal, fazer a dilatao da

    sua teoria dos atos de fala para essas outras linguagens. Para tal, torna-se pr-

    requisito ser capaz de observar, no movimento do corpo que dana, um dizer e

    avaliar se se trata de um fazer-dizer ou de um dizer sobre algum objeto fora do

    dizer.

    Quando se trata o corpo como um auto-organizador de enunciados, est

    implicado nesse seu fazer a compreenso de que ele se d em estados de

    provisoriedade, transformao, inquietude, permeabilidade, investigao e

    reflexo crtica. Esse entendimento possvel atravs da adoo da teoria

    corpomdia para falar de corpo e, mais especificamente, do corpo em movimento

    de dana. Entretanto, percebe-se que nem sempre assim que dele se fala ou

    com ele se trabalha em processos artsticos em dana. Nem sempre os

    inventores de dana apresentam o corpo como um apresentador de indagaes

    e solues provisrias. Ele (o corpo) est todo o tempo processando

    informaes e, nesse constante movimento, vai se constituindo como corpo

    um estado de coleo de informaes que somos, cada um de ns, a cada

    instante de nossas vidas.

    Adriana Banana: Desenquadrando as possibilidades de movimentos (2004)/Foto: Gil Grossi

    Mario Nascimento: Escambo (2004)/Foto: Gil Grossi

  • 26

    Esse corpo-coleo de informaes pode lidar de maneiras distintas com

    a dana. Pode privilegiar o exerccio descritivo de referncias, pode preferir a

    narrativa em seqncia linear, pode priorizar o processo e no a obedincia a

    um produto, pode optar por vrias outras escolhas. Evidentemente, para ser

    capaz de distinguir essas possibilidades tanto quanto outras tantas, h que se

    exercitar uma reflexo crtica. a sua prtica que favorece a indicao do

    performativo.

    Trabalhar com a idia do performativo, provoca uma certa instabilidade de

    informaes muito assentadas entre os praticantes da dana. Abala crenas

    sobre representao. Aponta para desvios. Revolve as idias. Desmistifica

    ideais. Prope uma ateno sobre a ao que no tem como objetivo expressar

    algo fora dela (existente antes). Nesse sentido, a prpria possibilidade de

    traduzir elementos discutidos no ambiente da linguagem para o ambiente do

    corpo que dana pode ser tomada como uma empreitada performativa.

    No performativo, as aes se configuram nelas mesmas e no em

    referentes fora dela. Isso interessante para pensar o corpo que dana sem se

    descolar dele. Observ-lo no seu fazer. Sem deix-lo em segundo plano. A partir

    do corpo que, em sua produo, constitui sua fala. O seu fazer-dizer leva esse

    entendimento para outro espao, mais ampliado de compreenso do termo

    performativo e culmina na aproximao ao conceito de performatividade.

    Atos de fala no corpo

    A partir da teoria de Austin, Butler (1997, 1998,2000) vai expandir o

    conceito de performativo para o conceito de performatividade. De maneira mais

    ampliada, trata os atos e a organizao da fala como aes no apenas

    fontica. O ato de fala passa a ser entendido como um ato corpreo e, dessa

    maneira, constitui-se um cruzamento sinttico da fala, que j corpo, com a

    lingstica. De partida, o que chama a ateno na abordagem de Butler o

  • 27

    estado corporal da ao indicando outros modos de falar e expressar idias. a

    performatividade do performativo. E vale destacar, desde j, a importncia do

    contedo poltico da fala que se constri no e pelo corpo e comunica-se atravs

    desse fazer.

    A implicao poltica no entendimento do corpo como realizador de atos

    de fala performativos, de performatividade, indica a existncia de situaes de

    poder na relao do social e do corporal e, por conta disso, provoca a

    mobilizao de aes que recontextualizam condies pr-estabelecidas.

    Decorre da uma tomada de ateno para situaes de falas consideradas

    dizveis e aquelas consideradas indizveis. Essas consideraes sero

    trabalhadas no captulo seguinte que transporta questes focalizadas no corpo-

    sujeito para o corpo-instituio a partir da indicao de situaes de dizibilidade

    e indizibilidade. Torna-se vivel, ento, observar tanto falas institudas pelo corpo em configurao humana, quanto em configurao institucional alm de

    question-las nas esferas do pblico e do privado.

    Trazer essa compreenso e discusso para o ambiente do corpo que

    dana, permite o emprego do conceito de poltica no restrito a fatos relativos a

    partidos polticos ou governos, mas como um modo de operao do corpo4. O

    uso de conceito de poltico nesse sentido vincula-se compreenso de que se

    as idias se organizam no corpo, o corpo assim formado sempre poltico, isto

    , sempre age no mundo a partir de uma determinada coleo de informao.

    Cada coleo implica em um determinado modo de se agir no mundo cada

    qual com sua conseqncia poltica. Faz pensar ainda nos procedimentos do

    corpo que dana a partir de modelos convencionalizados, sistematizados. Ser

    que as suas aes tambm questionam e refletem criticamente o mundo, tal

    4 Esse modo de operar se baseia no entendimento de poltica trabalhado por Espinosa (Tratado Poltico) que trata poltica como ao para o bem comum, de vnculos que se estabelecem entre sujeitos e

    sociedades incidindo na formulao do indivduo poltico (indivduos so conatus). Ver mais em CHAUI,

    Marilena. (2003). Poltica em Espinosa. So Paulo: Companhia das Letras.

  • 28

    qual no fazer dizer performativo? Esse constitui um ponto fundamental para a

    aceitao da dana enquanto ato de fala, com conotaes polticas que indicam

    uma condio de dizibilidade que se expresse como um fazer que dizer.

    Importa aqui discutir a constituio da fala da dana que se organiza no corpo

    tendo em vista que ela tambm resulta do vnculo com a sociedade e com as

    estruturas de poder. E sustentar que ela se distingue de outras falas da dana

    que se formulam com outros pressupostos.

    A performatividade ento, no opera em contextos prontos a priori. Ela os

    apronta e, nesse sentido, no da instaurao do dizer que precisa inventar o

    modo de ser dito que a sua ao pode ser pensada como sendo poltica. A fala

    construda no corpo e pelo corpo que assume a responsabilidade pelas

    invenes de seus modos de apresentao. uma fala que no totalmente

    livre e configura-se atravs da operao de regulao determinada pela relao

    com o social. Para Butler (2000), o ato de fala est relacionado ao corpo e

    tambm linguagem. A fora do ato de fala numa relao corprea comunica-se

    atravs do fazer. Um fazer-dizer que no comunica apenas uma idia, mas

    realiza a prpria mensagem que comunica.

    ...sustento que um ato de fala um ato corpreo, e que a fora do

    performativo nunca totalmente separada da fora corprea: isso

    constituindo o quiasma da ameaa enquanto ato de fala ao mesmo

    tempo corpreo e lingstico [...] em outras palavras, o efeito corpreo da

    fala excede as intenes do falador, propondo a questo do ato de fala

    ele mesmo como uma ligao do corpreo e foras psquicas. (Butler

    2000:255) 5

    5 ...maintained that the speech act is a bodily act, and that the force of the performative is never fully

    separable from bodily force: this constituted the chiasm of the threat as a speech act at once bodily and

    linguistic [] In other words, the bodily effects of speech exceed the intentions of the speaker, raising the

    question of the speech act itself as a nexus of bodily and physics forces.

  • 29

    Na abordagem de Butler, a realizao do ato de fala implica na ruptura

    com contextos previamente dados. Como esse ato de fala processo corporal,

    esto reunidas no corpo informaes transitrias que colaboram na organizao

    da fala performativa. Na especificidade do corpo que dana e que processa

    performativamente a fala no corpo, ocorre produo de signos que so

    percebidos e transformados na contnua relao de troca das informaes que

    esto no dentro e no fora, no sujeito e no mundo. Ento, faz valer a condio de

    possibilidade enquanto sistema complexo, capaz de organizar e compartilhar

    diferentes informaes, permanecendo num fluxo contnuo de transformao.

    Assim procedendo, o fazer-dizer da dana complexifica sua existncia. Arrisca-

    se dizer que a performatividade da fala performativa configura-se e organiza-se

    no trnsito das informaes. Instala-se uma comunicao que tambm uma

    forma de conduta.

    A partir do entendimento lingstico de que a fala no est s no verbo,

    mas tambm no corpo, Butler (1997, 1998,2000), inicia a investigao na qual os

    atos de fala so construdos como conduta. Esse modo de investigar vai discutir

    o que e o que no considerado dizvel no exerccio de constituio da fala. A

    noo de proferimento corporal, impressa nas discusses de Butler, faz com que

    seja possvel pensar o corpo que dana como inventor de modos prprios de

    proferir idias. Ajuda a trabalhar com o entendimento de que o corpo, quando

    faz algo, ele est dizendo algo e, se esse fazer necessita inevitavelmente de

    uma inveno do corpo para a sua realizao (pode ser dito), tem-se a situao

    de um corpo que dana o seu fazer-dizer. Refora-se da o interesse em abordar

    as idias de Butler e traduzi-las para o corpo que dana costumeiramente

    considerado em sua indizibilidade.

    A performatividade significa no s o modo de se apresentar no mundo,

    mas a prpria constituio epistemolgica de um tipo de mundo. Os corpos

    compem textos, falas que se constrem para serem percebidas e

    reconhecidas. No processo de organizao dos campos de fala h o exerccio

  • 30

    de reconhecer, selecionar, censurar e excluir informaes (essa censura ser

    tratada no somente no vis habitual, castrador, mas sobretudo como censura

    produtiva, a partir de Butler).

    O modo de tratar o vocabulrio expe situaes de poder na regulao e

    produo da fala. A censura trabalhada por Butler (1998) como forma mais

    incisiva de poder e, por isso, reconhecida como produtiva na constituio do

    sujeito e dos atos de fala ... nessa viso que sugere que censura produz fala

    [...] censura precede o texto (no qual eu incluo fala e outras expresses

    culturais), e em algum sentido responsvel por sua produo. (Butler

    1998:248) 6. Nesse sentido, a produo da fala, que tambm corpo, se d

    numa relao ambivalente da censura e do censurvel. Ou seja, no

    exclusividade do sujeito que censura ser censurador, ele tambm censurado.

    Luis de Abreu: Samba do Crioulo Doido (2004)/Foto: Gil Grossi

    Isso provoca uma dinmica na atuao do sujeito que busca trabalhar a

    censura produtivamente em vez de fixar-se numa ou noutra condio (de

    censurado ou censurador). Desconsiderada a produtibilidade da restrio, o

    processo de construo e constituio do discurso pode apresentar a

    6 ...in the view that suggest that censorship produces speech [...] censorship precedes the text (by which I

    include speech and other cultural expressions), and is in some sense responsible for its production.

  • 31

    reproduo de modelos dados previamente. A restrio vai operar no trnsito

    desse duplo poder, fazendo-os atuar sem determinaes somente de um no

    outro. Da a possibilidade de movimentao em vez de fixao/limitao, o que

    permite a sobrevivncia do exerccio de produzir e promover outras maneiras de

    constituio. Essa argumentao remete a Austin (1990) que, ao propor a

    linguagem como ao, sugeria ainda que a linguagem no se fechasse na

    restrio da lngua. Ai esto proposies/questes7 polticas de um jeito de

    entender censura e de lidar com a restrio.

    Entendida como forma produtiva de poder, a censura pode trabalhar em

    duas dimenses: implcita e explcita. Em ambos os casos trata-se de regulao

    da fala. O que pode ou considerado dito e o que pode ou considerado no

    dito. No modo implcito, o poder opera impondo regras que determinam o que

    ou no dizvel e essa restrio vai ser qualificada por Butler (1998) como

    apropriada para a constituio social dos sujeitos. Apesar disso, so as

    dimenses em conjunto que vo operacionalizar a formao do discurso.

    Pode-se pensar que ao distinguir analiticamente entre formas de censura

    explcita e implcita mais nos aproximamos da ao dual da censura como

    forma de poder. Porm pode acontecer que as formas explcita e implcita

    existam em um contnuo no qual a regio do meio consiste em formas de

    censura que no so rigorosamente distinguveis nesse sentido.

    Realmente, as formas simuladas ou fugidias de censura que tm ambas

    dimenses (explcita e implcita) so, talvez, as mais conceitualmente

    confusas e, por conta dessa confuso, quem sabe as mais politicamente

    eficazes. (Butler 2001:249, 250) 8

    7 As questes polticas sero melhor tratadas no captulo 3 8 We might think that by distinguishing analytically between explicit and implicit forms of censorship that we more closely approximate the dual workings of censorship as a form of power. Yet it may well be that explicit

    and implicit forms exist on a continuum in which the middle region consists of forms of censorship that are

    not rigorously distinguishable in this way. Indeed, the masquerading or fugitive forms of censorship that

  • 32

    Vale lembrar que todo o entendimento de corpo aqui trazido se apia na

    compreenso de corpo trabalhado pela teoria corpomdia. Sendo assim, as

    ocorrncias se do no corpo e esse negocia com a informao a partir de

    acordos que se estabelecem no ato de sua constituio. Da possvel observar

    falas de dana que inventam seu dizer a partir da escolha de assuntos que

    emergem no fazer e, aquelas que selecionam assuntos que j foram trabalhados

    em outros fazeres. Acredita-se que o questionamento levantado por Butler

    acerca da construo da fala que corpo, encontre-se com a compreenso de

    corpo do corpomdia. Isso tendo em vista os processos de organizao dos atos

    performativos na dana que agem numa repetio de aes de troca, onde se

    estabelecem relaes entre as informaes externas e internas.

    Na produo da fala da dana necessrio perceber a existncia de

    instantes de manuteno e excluso. Isso pode ser observado a partir das

    consideraes de Butler acerca da operao dos modos explcitos e implcitos

    que regulam os atos performativos. Alm disso, sendo o corpo que dana aqui

    trabalhado luz da teoria corpomdia, na organizao da fala como um fazer-

    dizer devem acontecer trocas de informaes num processo de mediao com o

    ambiente para que o sistema dana possa permanecer e produzir diferentes

    percepes.

    Importante observar que o entendimento de Butler (2000:251, 252) sobre

    os modos explcitos e implcitos que regulam e organizam a fala, esto

    configurados como agncia. Nessa configurao os processos de escolha no

    sofrem a soberania do sujeito, no so propriedade do sujeito que exerce o

    poder. Trata-se da agncia enquanto ps-soberania do sujeito que promove

    delimitaes imprevistas. Baseando-se nessa observao, considera-se a

    ocorrncia de escolhas na organizao da fala processada no e pelo corpo que

    have both explicit and implicit dimensions are perhaps the most conceptually confusing, and, by virtue of

    that confusion, may be the most politically effective.

  • 33

    dana; que constri sua fala enquanto se move. No trato com o movimento, o

    corpo que dana experimenta a censura a partir da escolha de aes corpreas

    que emergem e/ou se repetem no processo de produo da fala.

    Lia Rodrigues: Aquilo de que somos feitos (2000)/Foto:Tatiana Altberg

    Esse procedimento indica que, no fazer da dana, as escolhas so

    determinantes na formulao do discurso e na apresentao das idias no

    corpo. O que fica (escolhido) e o que no fica (no escolhido) expressam a

    maneira como o corpo lida com as informaes externas e internas. Entender a

    organizao da fala da dana com essa viso permite observar a censura como

    escolha e, portanto, descolada de um sentido de restrio como privao da

    ao da fala. Explica Butler (2000:252) que A censura procura produzir sujeitos

    de acordo com normas implcitas e explcitas, e essa produo do sujeito tem

    tudo a ver com regulao 9 .

    Mais atentamente, vale notar que as implicaes dessas escolhas na

    formulao da fala da dana indicam a ocorrncia de processos distintos na

    produo artstica em dana. No processo de construo dessa fala, a presena

    de aes reguladas (censura/escolha e formas de poder) transforma restrio

    em possibilidade produtiva, alm de dar forma legitimidade da fala. A restrio

    9 Censorship seeks to produce subjects according to explicit and implicit norms, and this production of the subject has everything to do with the regulation of speech.

  • 34

    encarna-se na censura enquanto instrumental necessrio para realizao,

    processamento e concepo de uma fala performativa, agindo no processo de

    seleo, escolha e produo dos campos de fala.

    Vera Sala: Impermanncias (2004)/Foto: Cndida Almeida

    O proferimento da fala performativa atende, por conseguinte, a uma

    operao normativa de poder (j traduzida como produtiva), que qualifica o

    relacionamento intersubjetivo e lida ainda, com a inteligibilidade e ilegibilidade da

    mesma. Expe-se ento, modos de ao como tambm sentido de

    independncia e autonomia construdos sob o vnculo das convenes sociais.

    Tanto a performatividade da fala (proferimento verbal) quanto a performatividade

    da fala da dana (proferimento corporal) configuram-se enquanto sistemas

    abertos que se permitem encenar fragmentos do real.

    Visto dessa maneira, o corpo em ao rene e troca informaes

    produzindo textos que ampliam os seus discursos, onde possvel perceber

    formas de poder, de censura, e de excluso. Sob essa considerao, os atos de

    fala so entendidos como atos insurrecionrios10, e os proferimentos podem

    ganhar fora precisamente na quebra do contexto ou posio a priori que o ato

    de fala realiza.

    10 As aes performativas so consideradas enquanto atos insurrecionrios (Butler) por desafiarem e

    modificarem a relao com as convenes sociais. Os atos performativos reconhecem as regras, mas no se acomodam no lidar com elas. Em vez disto, trabalham para subvert-las.

  • 35

    Para dar conta de tais atos de fala, todavia, deve-se compreender a

    linguagem no como um sistema fechado e esttico cujos proferimentos

    so funcionalmente assegurados previamente pelas posies sociais s

    quais so mimeticamente relacionadas. A fora e o significado do

    proferimento no so exclusivamente determinados pelo contexto

    antecedente ou posies; um proferimento pode ganhar sua fora

    exatamente em virtude da quebra do contexto que ele performa. (Butler

    2000:257) 11

    As aes corporais organizadas na fala performativa indicam a

    possibilidade de ocorrer relaes e/ou conexes entre diferentes elementos

    numa ao de troca e compartilhamento de informaes. Os proferimentos

    performativos reestruturam as condies de possibilidade do ato de fala para

    viabilizar a ocorrncia de outras falas que questionem a existncia de um

    contexto dado e atuem para a inaugurao de novos contextos. Ao e corpomdia

    A teoria Corpomdia12 emprega um princpio co-evolutivo, que se revela

    pertinente para explicar os processos de comunicao do ato de performar. A

    mdia de que o corpomdia fala um processo co-evolutivo e transformador, e

    11 To account for such speech acts, however, one must understand language not as a static and closed system whose utterances are functionally secured in advanced by the social positions to which they are

    mimetically related. The force and meaning of an utterance are not exclusively determined by prior context

    or positions; an utterance may gain its force precisely by virtue of the break with the context that its

    performs

    12 A compreenso da vida como produto e produtora de uma rede inestancvel de troca de informaes, marca uma diferena bsica. Nela, a idia de corpo como mdia ocupa posio central. GREINER e KATZ.

    A Natureza Cultural do Corpo In: Lies de Dana 3.1. Ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002. Vale

    reforar que essa mdia de si mesmo, e no de uma informao que o atravessa. No corpomdia a

    informao vira corpo.

  • 36

    no somente difusor e transmissor de informao um entendimento peculiar,

    muito distinto do de outros, mais conhecidos sobre a mdia. Esse aspecto

    transformador justamente o que distingue essa proposta da acepo comum

    de mdia reduzida a meios e/ou veculos.

    Com a mdia do corpomdia escapa-se da concepo do corpo-caixa

    preta, aquele que recebe inputs, os processa e os devolve na forma de outputs

    (modelo computacional), e torna-se possvel perceber que dentro de tal modelo

    o corpo sempre visto como um processador de informao. Na proposta do

    corpomdia h uma nfase na permeabilidade do prprio corpo e o abandono do

    entendimento de corpo processador. Trata-se de uma relao de constante co-

    autoria entre corpo e ambiente. Ambos se ajustam permanentemente, por isso a

    mdia do corpomdia se refere ao seu modo de estar no mundo: uma mdia de si

    mesmo.

    Os processos de troca de informao entre corpo e ambiente atuam, por

    exemplo, na aquisio de vocabulrio e no estabelecimento das redes de

    conexo. H algumas evidncias em teoria de sistemas dinmicos de que

    o ato de aprender um movimento implica num acoplamento entre

    sistemas de referncia que vo mudando gradualmente de moldura.

    Tendo a estrutura de fluxo, o movimento irriga para frente e para trs

    plugando o corpo cadeias cada vez mais gerais. Nesse aspecto, v-se

    instalada no corpo a prpria condio de estar vivo e ela se apia

    basicamente no sucesso da transferncia permanente de informao.

    (Katz e Greiner 2001:7)

    Assim, o corpo sempre o estado de um processo em andamento de

    percepes, cognies e aes mediadas. O corpo organiza as suas mediaes

    e a sua relao com o mundo, onde tanto opera a regularidade quanto o acaso.

    O corpo mdia no no sentido de ser um primeiro veculo de comunicao,

    mas como produtor da comunicao de si mesmo, daquilo que ele no

  • 37

    momento em que se comunica. As negociaes desencadeadas pela relao de

    troca com o ambiente constrem o corpo que atua de modo singular numa

    presentidade imediata.

    O corpo resultado desses cruzamentos, e no um lugar onde as

    informaes so apenas abrigadas. com essa noo de mdia de si

    mesmo que o corpomdia lida, e no com a idia de mdia pensada como

    veculo de transmisso. A mdia qual o corpomdia se refere diz respeito

    ao processo evolutivo de selecionar informaes que vo constituindo o

    corpo. A informao se transmite em processo de contaminao. (Greiner

    2005:131)

    O corpo , portanto, movimento em permanente comunicao. Relao

    dinmica no espao tempo, declarando-se como processo e produto histrico,

    resultante de conquistas evolutivas e conexes efetuadas atravs de memria e

    novas trocas comunicacionais geradoras de novas linguagens que intervm e

    transformam sua trajetria. Focalizar no corpo importante porque

    quando se olha para o corpo humano, percebe-se que se trata de um

    exemplo privilegiado. No h melhor lugar para deixar explcito o tipo de

    relacionamento existente entre natureza e cultura. No h outro to apto a

    demonstrar-se como um meio para que a evoluo ocorra. Corpo mdia,

    nada alm de um resultado provisrio de acordos cuja histria remonta a

    alguns milhes de anos. H um fluxo contnuo de informaes sendo

    processadas pelo ambiente e pelos corpos que nele esto. (Katz

    2003:263)

    Essa abordagem trabalha ainda com a idia de corpo que age como

    reorganizador de propriedades, modelos, funes, para, de maneira objetiva,

    disseminar-se em rede informacional. Como produtor de significados

    factualmente contextualizados pelos mltiplos instantes que so valorizados

  • 38

    indistintamente num processo de trocas evolutivas, o corpo produz signos que

    so sempre culturais, se organizam em sistemas complexos, e sobrevivem

    exatamente da possibilidade de acordos e negociaes que mantm viva a

    multiplicidade, sobretudo no ambiente evolutivo da comunicao. A idia de

    corpo como enunciador de pensamentos e produtor de significados abordada

    por Katz (2004)

    Quando considera que o corpo comunica a si mesmo e no algo que o

    atravessa sem modific-lo [...] tambm carrega requisitos e limites para se

    realizar. Todavia, como se trata de um projeto de design em que natureza

    e cultura no esto separadas, o corpo vive em permanente estado de se

    fazer presente. E tal condio invalida as tentativas de trat-lo como

    objeto pronto, sujeito ou agente de influncias. O mais indicado, seria

    pens-lo enquanto articulador, propositor e elaborador de informaes

    que o singularizam, pois as trata de modo sempre nicos afinal, cada

    corpo um, apesar de todos compartilharem informaes com o

    ambiente. (Katz 2004:121, 122)

    A percepo de corpo em fluxo permanente de transformao e agindo

    num processo de construo de diferenas traz como questo que aquilo a que

    se denomina corpo sempre um estado provisrio de negociaes com o que

    habitualmente se denomina de mundo interno e externo, e que atua de modo

    circunstancial. No h um resultado nico nem ltimo.

    Corpomdia e performatividade

    A provisoriedade apontada do corpo ajuda a pensar o corpo que dana

    como enunciador de idias, conceitos e imaginaes que deixam de ser tratadas

    como de outra natureza, diferentes da natureza do corpo para serem

    apresentadas como idia-carne, conceito-carne, imaginao-carne. Auxilia,

    ainda, a pensar o corpo que dana como ao performativa que apresenta

  • 39

    idias, conceitos e imaginaes encarnadas e suscetveis a exposies que

    aciona mltiplas e diversas percepes.

    Christian Duarte: Chris Basic Dance (2006)/ Production LISA Inge Koks

    Tais entendimentos so imprescindveis para compreender, refletir e

    discutir a ao de performar enquanto ato de fala na enunciao de dana. E

    tambm como se organizam as falas do corpo (campos de fala) em aes

    performativas e como se d o processo de comunicao dessa ao. Essa

    compreenso tem inicio no entendimento de que a dana, enquanto ao

    performativa e organizadora de sua fala, tem voz. Sua fala est nos modos de

    fazer dana que ecoam o fazer-dizer materializado como aes corpreas que

    apresentem traos, vestgios e caractersticas de inmeras informaes que so

    grudadas, trocadas e negociadas atravs da relao sujeito-mundo. Organizada

    performativamente a dana, produz atos de fala performativos.

    A organizao corporal da fala da dana faz das informaes trocadas

    entre corpo e ambiente, o seu material no mundo. Registros, traos e vestgios

    de vida; histrias de vida. Do contato que se estabelece entre as informaes

    que vm de fora com as informaes existentes em um corpo, ocorre um

    movimento de reorganizao, que desencadeia a produo de outras

    informaes. O movimento nascido dessas informaes pode tomar a forma de

    falas construdas, estruturadas e organizadas como um discurso de dana onde,

    a cada nova situao do estar no mundo, j outras informaes se configuram.

  • 40

    O trnsito dessas informaes traz outras dimenses, propriedades e

    configuraes percepo. Um ato de fala em dana no visa o mesmo tipo de

    compreenso ambicionada pela linguagem verbal. Esse fato, todavia, no

    inviabiliza o uso da teoria de Austin na dana como, por exemplo, Butler,

    demonstrou com sua proposio de uso da performatividade (ver pg. 29).

    Na base da construo-organizao da fala da dana repousa a

    compreenso de que seu discurso seja, talvez, ainda mais aberto e proliferador

    de significados que o do verbal. A intencionalidade dessa fala reside nela

    mesma, ou seja, no fazer. O corpo em movimento de dana participa de um

    processo contnuo, onde as informaes no desaparecem, mesmo depois da

    apresentao da obra, e isso independe do acompanhamento de um libreto ou

    um texto de apresentao. Embora fugaz, a dana imprime algo no corpo de

    quem dana e no de quem assiste que vai participar do processo de

    continuidade das transformaes que caracterizam o corpo. No toa, a fala

    encontra diferentes espaos de percepo nos diversos sistemas corporais com

    que entra em contato.

    A fala da dana, ento, pertence a um processo de muitas possibilidades

    de percepo e organizao: pertence a um coletivo. A informao gruda em

    todos os envolvidos, seja no processo de construo, no de apresentao ou no

    de percepo da fala. Dana, na organizao de sua fala, no existe para ser

    entendida, compreendida no sentido em que o senso comum atribui a esses

    termos, mas sim, trabalhada pela percepo como uma coleo de idias que

    arranjou um certo modo de se organizar no corpo.

    No processo de organizao da fala da dana, no trnsito de informaes

    at a apresentao do discurso, ocorrem operaes de regulao. Da gerao

    das idias, seleo e traduo h informaes que so mantidas e informaes

    que so excludas. O movimento de manuteno e excluso de informaes

    promove a permanncia (parmetro sistmico que implica numa conectividade

  • 41

    temporal). Numa aproximao ao princpio ontolgico de que todas as coisas

    tendem a permanecer, o movimentar dessas informaes torna-se importante na

    existncia de informaes armazenadas, no reconhecimento da entrada e sada

    de informaes e, na organizao e produo da fala performativa.

    A dana, enquanto sistema complexo organiza sua fala, sua ao

    performativa, num discurso. Expressas nesse discurso encontram-se

    informaes diversas que, num processo contnuo de transformao, combinam,

    emitem, recebem, trocam e produzem informao. As aes performativas se

    constrem nesse processo, que da natureza do continuum, que aposta na

    experincia das aes para a produo de significados.

    Um corpo de dana contempornea ser performativo quando tiver uma

    marca no seu modo de enunciar a dana: precisar ser um fazer-dizer com

    investimento em aes e organizaes corporais que busquem realizar

    (performativizar) as idias em movimentos e em trat-las de maneira crtico-

    reflexiva. Esta diferena entre os fazeres representa um ponto poltico crucial na

    compreenso e discusso da performatividade na dana contempornea. Diferentes fazeres-dizeres da dana

    Esta tese vai considerar que na produo da fala da dana ocorrem

    diferentes fazeres. Cada um deles deve ser observado a partir do modo como

    lidam com as informaes. No fazer da dana, operam-se diferentes maneiras

    de lidar com o corpo, da a possibilidade de se discutir os distintos

    procedimentos e modos de enunciao. No processo de produo da fala da

    dana possvel observar os modos de fazer ressaltando a necessidade de

    reconhecer a existncia de diferentes maneiras de organizar a fala no corpo.

    A indicao da diferena nos fazeres em dana, no supe valores

    qualitativos nem inclinao para classificao em grupos opostos. A abordagem

  • 42

    da diferena feita para ressaltar modos e estratgias distintas que se

    apresentam nas experincias desse fazer artstico. O tratamento dado ao corpo

    que se move, o entendimento de como o corpo resolve situaes que se

    apresentam no processo de produo de falas, as maneiras de relacionarem-se

    com elementos externos e internos ao corpo, as escolhas no processo e para

    apresentao da fala, vo se dar a ver nas diferentes formulaes.

    Aqui se prope pensar o fazer da dana enquanto um fazer-dizer e,

    portanto, implica em perceber a experincia artstica em dana sob tal

    abordagem. Entende-se que esse j um outro modo de observar e perceber

    dana. Um modo diferente de compreender as idiossincrasias pertinentes ao

    processo de criao, que materializa suas idias sem modelos prvios em

    corpos que possuem especificidades fsicas, sociais e culturais.

    Lia Rodrigues: Formas Breves (2002)/Foto: Lcia Helena Zarembe

    O corpo possui um elenco de informaes que se estabilizam no

    processo de sua constituio como corpo. Esto impregnadas no corpo variadas

    experincias que colaboram no processo de produo de falas. O corpo que

    dana est exposto a distintas formas de preparao corporal e, ainda, a

    distintas instrues que disparam o processo de criao. Corpos em movimento

    na dana expem peculiaridades e refletem sobre o seu fazer. Entretanto, faz-se

    importante apontar que nem sempre ocorre a reflexo crtica desses fazeres.

    Nem sempre os corpos em processo encontram-se disponveis para investir em

  • 43

    perguntas em vez de respostas. O corpo propicia o encaminhamento de muitas

    perguntas que no precisam ser respondidas, mas merecem ser levantadas.

    Uma proposta de reflexo crtica viabiliza a existncia de proposies que

    apaream no decorrer do fazer e, instiguem o corpo a apresentar tantas

    questes quantas se fizerem necessrias, at o proferimento de falas

    provisoriamente finalizadas.

    As diferentes falas da dana ganham configurao poltica ao entender

    que no corpo que questes do dentro e do fora podem ter acomodamento, que

    o corpo, alm de trocar com o ambiente onde est, tambm o ambiente onde

    ocorre as discusses e decises provenientes do processo de fazer dana e,

    ainda, no corpo que se explicitam as condies de produzir fala. O processo

    do fazer est acompanhado por exerccios de reflexo crtica que colaboram na

    formulao do discurso, provocando desestabilizaes que propiciem a

    emergncia de informaes renovadas.

    A co-existncia de dana e poltica no corpo que dana, vai ocorrer num

    espao intersticial, no entre, onde a possibilidade necessidade. Esse entre -

    lugar requer ainda um deslocamento da ateno do poltico como prtica

    pedaggica, ideolgica, da poltica como necessidade vital no cotidiano a

    poltica como performatividade. (Bhabha 1998:37). No entre, ocorre a mescla

    das informaes existentes com aquelas que ainda no ganharam existncia no

    corpo. Ambas vo ser trabalhadas pelo corpo. Nem s uma nem s a outra.

    Desse mesclado vai surgir uma informao, que carrega traos das outras, mas

    que se apresenta como informao singular. No interstcio se d, ento, o

    trnsito de idias, informaes, proposies.

    Pensar em corpos que, em movimento de dana, agem dessa maneira

    pensar em movimentos de corpos-idias e no corpos ideais. Importa destacar,

    nessa discusso, as aes corporais na dana que privilegiam questes/feituras

    implcitas no fazer. Dessa maneira, pode-se estar prximo do entendimento de

  • 44

    fala performativa que construda no corpo e pelo corpo, e onde as aes

    investem na investigao e na experimentao de outras falas. O corpo

    performativo vai agir produzindo intervenes na produo da fala. O modo de

    agir performativamente procura no se fixar a modelos pr-estabelecidos e

    trabalha com a possibilidade de reorganizar as informaes existentes no corpo

    e inventar uma maneira de movimentar-se que enuncie as indagaes e

    transformaes ocorridas no processo do fazer.

    Importa notar que formulaes renovadas s podem ocorrer no corpo que

    se coloca em estado de disponibilidade. Ser preciso a disposio em acolher

    informaes estrangeiras, estranhas a ele para que transitem pelo corpo e

    possam ganhar existncia ou no. Entende-se que estar em disponibilidade no

    significa despir o corpo das informaes existentes. Essas no podem ser

    descartadas. interessante que ocorra o aproveitamento das informaes,

    estrangeiras e conhecidas, no exerccio do fazer, no processo de produo da

    fala. A reflexo crtica, mais uma vez, pode colaborar para percepo do como

    se aproveitam as informaes.

    Essa compreenso serve para ressaltar que no fazer da dana

    performativa, se inventa um modo de dizer prprio, urdido no fazer. Um fazer

    que tem um tempo de feitura vinculado ao prprio fazer. Ento, para produzir

    esse dizer s seu, o corpo trabalha experimentando/testando as informaes,

    movimentando-as. Atravs da repetio de movimentos vai-se acionando o

    corpo para a organizao da fala. Entretanto, na fala performativa, essa

    repetio est relacionada a um processo citacional. Trata-se de citao como

    iterao13.

    O processo performativo adota um movimentar-se onde as aes retiram-

    se de determinado contexto e inserem-se em outro, configurando uma operao

    13 O conceito de iterao trabalhado por Derrida (1990) para demarcar a diferena na escrita. A iterabilidade tratada como marca de qualquer tipo de escrita e une repetio a alteridade.

  • 45

    de repetio que pode ser interrompida, questionada, contestada. Nesse

    procedimento de interrupo so ativadas reorganizaes de experincias e

    possibilidades de produo que no ambicionem somente reproduzir contextos

    pr-estabelecidos. Ocorre um investimento no processo de reorganizao que

    produz aes renovadas nos enunciados performativos. E ainda ocorre a

    inveno de falas prprias do fazer do corpo.

    Wagner Scharwtz: Transobjeto 1 (2004)/Foto: Gil Grossi

    Para ilustrar esse modo de lidar da repetio como citao, vale citar o

    espetculo wagner ribot pina miranda xavier le schwartz transobjeto14. Composta

    pelo coregrafo de Uberlndia, Minas Gerais, Wagner Schwartz, um exemplo

    da possibilidade de produzir fala performativa na dana. Ele permite a percepo

    de um modo de organizar o pensamento que se enuncia como um fazer-dizer.

    O corpo apresentado na cena um corpo que expe a reflexo critica

    sobre o fazer do seu e de outros corpos. O trabalho faz muitas citaes. Fora da

    cena - no ttulo do trabalho, esto citados vrios corpos que danam: corpo pina,

    14 Trabalho criado/inventado pelo artista da dana Wagner Schwartz e observado durante a apresentao no Projeto Rumos Dana, na cidade de So Paulo em 2004.

  • 46

    corpo la ribot, corpo xavier, corpo schwartz. As marcas desses corpos so

    aproveitadas por um nico corpo. O que ele enuncia, , ento, no entendimento

    aqui apresentado, uma fala performativa. As vozes desses outros corpos esto

    processadas no fazer daquele corpo que dana, mas esto digeridas e

    transformadas. J corpo encenando uma voz prpria. Em cena, o corpo

    Wagner Schwartz, vai citando ao mesmo tempo em que vai inventando sua fala.

    possvel observar no corpo em cena a existncia de propostas crticas. Isso se

    d no jeito como o corpo-wagner relaciona informaes de matria corpo e de

    outras matrias.

    A movimentao expe aes simples e de fcil reconhecimento, porm,

    elas no se expem desvinculadas de outros elementos em cena que se

    organizam como outros corpos: corpo-msica, corpo-texto, corpo-copo, corpo-

    vinho, corpo-frutas, corpo-banco, corpo-cigarro, corpo-vestido, corpo-lao,

    corpo-metrnomo, corpo-microfone. Na maneira de organizar a fala, os

    elementos que se diferem da matria corpo so aproveitados e digeridos,

    transformados em corpo. O corpo-wagner que dana provoca nos corpos que

    assistem, um pensar em como se do as escolhas do que apresentado na

    cena. Levanta questes acerca de relaes corporais e culturais. Acena com

    posicionamento crtico na forma como mescla tantos corpos diferentes no seu

    fazer. Inventa um corpo que enuncia a fala daquele fazer. Nem de outros

    produzidos por esse corpo, nem da produo de outros corpos.

    A performatividade da fala corporal desse espetculo expe o modo de

    tratar o corpo que dana como propositor de pensamentos de dana. A

    relevncia do fazer enquanto espao de emergncia de idias em movimento,

    substancializa o exerccio de um fazer que dizer. As formulaes se organizam

    em rede, tecendo opes de escolha, renovando dados existentes, acolhendo

    dados emergentes, refletindo criticamente sobre as aes-movimentos

    experimentadas no contnuo do fazer corpreo. O corpo se prepara adaptando-

    se s necessidades que se apresentam no decorrer do processo de produo da

  • 47

    dana performativa. Ele pode ter experenciado ou experenciar diversas tcnicas

    de dana, diferentes instrues motoras, mas o que vai prevalecer a

    experimentao do seu fazer naquele momento, a sua adaptabilidade corporal

    para a enunciao daquela fala performativa.

    Quando o corpo no se prope a inventar seu fazer, o corpo tratado sob

    outros enfoques. Ainda o corpo o ambiente onde se processam a

    experimentaes que, ento, se apresentam vinculados a algo fora deles. Um

    mesmo movimento pode ser empregado para dizer falas distintas, pois, nesse

    caso, os movimentos so geralmente organizados e no inventados

    especificamente para cada situao.

    A transformao que ocorre a partir da oportunidade de experimentar no

    corpo outra informao, parece despercebida e traduzida como uma concesso

    corporal para realizao daquela experimentao corprea. quase um corpo-

    transmissor que d passagem para a exposio daquela fala. O corpo

    desempenha o papel do outro corpo. No parece interessado em discutir a

    ocorrncia de mudanas corporais desencadeadas pela experimentao de

    outras propostas. Como se estivesse sempre em estado de pronta resposta para

    solicitaes. Pronto a responder sem formular qualquer pergunta sobre o fazer.

    Se o corpo mudou a partir do contato com outras informaes, essa mudana

    quase sempre ser indicada pelo corpo instrutor que aponta a eficincia na

    realizao de sua proposta.

    Mas se em cada corpo, particularizado, onde ocorre a transformao,

    quem, seno ele mesmo, para falar dessas modificaes? No corpo que age

    sem interessar-se em inventar, como se ele se entendesse como uma folha

    em branco onde fosse possvel rabiscar e exibir contornos e formas. So

    processadas falas onde o dizer enuncia algo que, mesmo quando indito, no

    produz modos de dizer tambm inditos, mas organiza materiais j existentes de

    modo especfico ao seu objetivo. um dizer que no se inventa. Expe-se um

  • 48

    fazer-dizer que tende a apresentar movimentos j autenticados. Percebe-se que

    o agir permite a expresso de movimentos produzidos pelo treino-modelo, pelo

    uso dos materiais da aprendizagem das tcnicas de dana, e isso que fica

    exposto em primeiro plano na representao. Parece que h uma fronteira clara

    entre o fazer e o dizer. Porque o dizer est pronto antes do fazer.

    Nesse tipo de enunciao, as questes ocupam o corpo como um lugar.

    Assim, esse modo de organizar o corpo que dana parece descartar como

    prioridade um encontro com o novo que no seja parte do continuum de

    passado e presente [...] uma idia do novo [...] que inova e interrompe a atuao

    do presente. (Bhabha 1998:27). O corpo geralmente lida com cdigos de

    movimento como materiais espera de novas combinaes. A codificao se d

    em passos e seqncia de passos que mais parecem ordenados do que

    organizados. Na ordenao, os movimentos seguem princpios de categorizao

    rgidos e so dispostos por meio de classificao. Onde esto alguns, outros no

    podem estar.

    Os acordos entre os passos privilegiam uma montagem/colagem. Nessa

    organizao, as aquisies que ganham estabilidade no corpo do ao mesmo o

    status de corpo hbil, talentoso e virtuoso. Um corpo que executa com preciso

    os exerccios de imitao de informaes que j dispe. Aquelas informaes

    que ganharam estabilidade no processo e foram classificadas como eficientes,

    tendem a fixar-se numa condio de impermeabilidade e de serem

    supervalorizadas na ordenao da fala que no se inventa. Ao invs de trabalhar

    para organizar as percepes e aes que, possibilitam a renovao das

    informaes estabilizadas, o corpo tende sistematizao dos modos de

    combinar as experincias de movimento.

    Os bals de repertrio so um bom exemplo dessa maneira de enunciar

    dana. Suas idias remetem para mundos de iluso. A encenao do bal

  • 49

    Giselle15, por exemplo, pode ocorrer com corpos do oriente ou do ocidente e,

    apesar da distino desses corpos, eles mantero em cena as seqncias de

    passos j prontos no sculo 19. Evidentemente, cada montagem carregar os

    acordos dos corpos especficos com a partitura j existente, mas esses corpos

    no inventaro seus modos prprios se escolheram repetir a coreografia criada.

    Como se sabe, h coregrafos, como Mats Ek (Giselle-1982, Lago dos Cisnes-

    1987, Carmem-1992) que inventam modos seus de encenar o mesmo roteiro,

    atestando que a questo da performatividade no diz respeito somente dana

    contempornea, mas permite vrios entendimentos. Que mesmo a negociao

    baseada na referncia, como nos exemplos citados, carrega mais complexidade

    do que a que habitualmente se usa para tratar do assunto.

    Mats Ek: Lago dos Cisnes (1987) Mats Ek: Carmem (1992)

    A fixao de movimentos j estabilizados termina por encobrir qualquer

    aspecto de instabilidade no processo de produo de falas. A preocupao com

    a singularidade substituda pelo exerccio de imitao que leva o corpo a imitar

    outro(s) corpo(s) sem intencionalidade de diluir normas fixas ou mesmo

    transgredi-las. Faz com que o corpo repita o fazer tornado visvel pelo outro.

    Esse um exerccio de imitao onde o corpo age para se transformar no outro

    corpo, para tornar invisvel sua diferena. Considera-se que, na organizao da

    15 O Ballet Giselle estreou em Paris (Opera de Paris) em 1841. A coreografia de Jean Coralli, Jules Perrot, revisada por Marius Petipa. A danarina que encenou Giselle, nessa estria foi Carlotta Grisi.

  • 50

    fala que no se inventa ocorra a preocupao com o referente (um outro corpo,

    ou informao, idia, pensamento, formulao artstica) como determinante da

    produo de falas. O fazer-dizer dessa dana, ao lidar com o procedimento de

    repetio para produzir sua fala, impossibilita o corpo de inventar um modo

    prprio de se enunciar.

    Os diferentes fazeres da dana obedecem ento, a dinmicas distintas

    para a produo da fala. O falar despreocupado com propostas inventivas se

    aproxima mais de arranjos para enunciados de um discurso j referenciado. No

    falar que se inventa e, que pode ser traduzido num falar performativo, o

    processo tende a subverter e desestabilizar as referncias. Como se trata de

    atos de fala que existem na e como linguagem, cada proferio precisa buscar

    os materiais que melhor lhe sirvam. Dessa maneira, parece perceptvel que na

    dana que se inventa, as falas do corpo exercitem hipteses que so levantadas

    no corpo e l realizadas. No exerccio que no se disponibiliza a procedimentos

    inventivos, as experincias so colocadas no corpo e l referenciadas.

    A produo das diferentes falas da dana vai, ainda, por em discusso a

    possibilidade de atuao onde ocorra falas/aes hbridas, realizadas num

    espao de agncia que lida com questes de ambivalncia16. Nesse espao

    ocorrem negociaes, traduzidas na articulao de diferentes informaes e na

    possibilidade de deslocamentos de idias e pensamentos que produzam a re-

    inscrio e re-configurao dos modos de organizar e enunciar a fala na dana.

    O interesse em pesquisar a dana que se organiza como um fazer-dizer

    ajuda a enfoc-la priorizando condies de traduo e transformao de idias

    em movimentos. A dana indica seu estado de existir com as

    imagens/pensamentos/informaes que lhe do forma. Como um sistema

    16 A discusso acerca desses conceitos relacionando-os ao processo de criao em dana ser feita no captulo seguinte.

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    dinmico e em permanente fluxo, vai atuar contaminando, ao mesmo tempo em

    que contaminada, descrevendo em tempo real o estado em que se encontra.

    Entender a produo em dana como um fazer que dizer pode ser a