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arquivo sobre contratos (direito civil)

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  • 1

    MATERIAL DE APOIO

    DIREITO CIVIL

    TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

    Apostila 01

    Prof. Pablo Stolze Gagliano

    1. Viso Geral dos Contratos no novo CC

    O Cdigo Civil de 2002 disciplinou os contratos da seguinte forma:

    a) Ttulo V Dos contratos em Geral, subdividido em dois

    Captulos (Captulo I - Das Disposies Gerais - e Captulo 2 -

    Da Extino do Contrato). Tais captulos so ainda

    estruturados em Sees, que versam sobre aspectos gerais da

    matria contratual;

    b) Ttulo VI Das Vrias Espcies de Contratos, subdividido em

    20 captulos, compartimentados em vrias outras Sees,

    cuidando dos Contratos em Espcie1.

    Nota-se, no estudo dessa disciplina, que o codificador inovou, ao tratar

    de temas no regulados pelo Cdigo anterior, a exemplo do contrato

    preliminar, do contrato com pessoa a declarar, da resoluo por onerosidade

    excessiva (aplicao da teoria da impreviso), da venda com reserva de

    domnio, da venda sobre documentos e do contrato estimatrio.

    Alm disso, disciplinou contratos novos, como a comisso, a

    agncia/distribuio, a corretagem e o contrato de transporte, deixando de

    fazer referncia a alguns outros institutos, como, por exemplo, a clusula

    comissria na compra e venda (art. 1163 do CC-16).

    1 Contratos em Espcie integram outra grade do Curso LFG.

  • 2

    Perdeu-se, todavia, a oportunidade de se regular, pondo fim a

    infindveis dvidas, algumas importantes modalidades contratuais j de uso

    corrente, como o leasing, o franchising, o factoring, o consrcio, os contratos

    bancrios e os contratos eletrnicos.

    Apesar dessas omisses, entretanto, devemos reconhecer que, em

    geral, o trabalho do codificador, na seara contratual, foi bem desempenhado,

    sobretudo por haver realado a necessidade de imprimir socialidade noo de

    contrato.

    2. Princpios do Direito Contratual

    Segue o painel dos princpios que analisaremos em sala de aula:

    a) o princpio da autonomia privada ou do consensualismo;

    b) o princpio da fora obrigatria do contrato (pacta sunt servanda);

    c) o princpio da relatividade subjetiva dos efeitos do contrato;

    d) o princpio da funo social do contrato;

    e) o princpio da boa-f objetiva;

    f) o princpio da equivalncia material.

    2.1. Observaes acerca do princpio da funo social do contrato

    Devemos, de logo, ressaltar que a funo social do contrato traduz

    conceito sobremaneira aberto e indeterminado, impossvel de se delimitar

    aprioristicamente.2

    HUMBERTO THEODORO JR., citando o competente professor PAULO

    NALIN, na busca por delimitar as suas bases de inteleco, lembra-nos, com

    acerto, que a funo social manifestar-se-ia em dois nveis3:

    2 Sobre o tema, confira-se a excelente obra: Funo Social dos Contratos, do Cdigo de Defesa do Consumidor ao Cdigo Civil de 2002. Coleo: Rubens Limongi Frana, 2 Ed. So Paulo: Mtodo, 2002, FLVIO TARTUCE.

  • 3

    a) intrnseco o contrato visto como relao jurdica entre as

    partes negociais, impondo-se o respeito lealdade negocial e

    boa f objetiva, buscando-se uma equivalncia material entre

    os contratantes;

    b) extrnseco o contrato em face da coletividade, ou seja, visto

    sob o aspecto de seu impacto eficacial na sociedade em que

    fora celebrado.

    2.2. Observaes acerca do princpio da boa-f objetiva

    Alm das finalidades interpretativa, integradora e delimitadora de

    direitos subjetivos, o princpio da boa-f objetiva ainda tem a funo

    constitutiva (normativa) de deveres anexos ou de proteo, implcitos em

    qualquer contrato4.

    CONTRATO VLIDO ------------------------ RELAO OBRIGACIONAL: (FONTE PRIMORDIAL

    DE OBRIGAES)

    a) dever jurdico principal:

    prestao de DAR,

    FAZER ou NO FAZER;

    b) deveres jurdicos anexos

    ou colaterais

    (decorrentes da BOA-F

    OBJETIVA): lealdade e

    confiana, assistncia,

    informao,

    3 THEODORO JR., Humberto. O Contrato e sua Funo Social. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 43. 4 Sobre a o tema: CORDEIRO, Antnio Menezes. Da Boa-F Objetiva no Direito Civil. Portugal: Almedina, 2001. Em nosso sentir, obra mxima, em lngua portuguesa, no estudo do princpio.

  • 4

    confidencialidade ou

    sigilo etc.

    A boa f objetiva, pois, o principio ou norma reguladora desses deveres,

    cuja enumerao no pode ser considerada taxativa5.

    3. Formao dos Contratos

    O contrato se forma quando as manifestaes de vontade, em geral

    contrapostas, contemporizam-se, conciliando os interesses divergentes, e

    formando o denominado consentimento.

    O consentimento das partes a pedra de toque de todo contrato:

    PARTE 1 ------------- CONSENTIMENTO ------------- PARTE 2

    5 Entre os deveres com tais caractersticas encontram-se, exemplificativamente: a) os deveres de cuidado, previdncia e segurana, como o dever do depositrio de no apenas guardar a coisa, mas tambm de bem acondicionar o objeto deixado em depsito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passvel de escolha para a satisfao de seu desideratum, o do consultor financeiro, de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do mdico, de esclarecer ao paciente sobre a relao custo/benefcio do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pr-contratual, o do sujeito que entra em negociaes, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formao da declarao negocial; c) os deveres de informao, de exponencial relevncia no mbito das relaes jurdicas de consumo, seja por expressa disposio legal (CDC, arts.12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em ateno ao mandamento da boa-f objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatrios, em sentido amplo; e) os deveres de colaborao e cooperao, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestao principal, ao qual se liga, pela negativa, o de no dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteo e cuidado com a pessoa e o patrimnio da contraparte, v.g., o dever do proprietrio de uma sala de espetculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prdio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omisso e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razo do contrato ou de negociao preliminares, pagamento, por parte do devedor etc (COSTA, Judith Martins-. A Boa-F no Direito Privado. So Paulo: RT, 1999, p.439).

  • 5

    Na denominada fase de puntuao, as partes discutem, ponderam,

    refletem, fazem clculos, estudos, redigem a minuta do contrato, enfim,

    contemporizam interesses antagnicos, para que possam chegar a uma

    proposta final e definitiva.

    No dizer de GUILLERMO BORDA,

    Muchas veces las tratativas contractuales se desenvuelven atravs de um

    tiempo ms o menos prolongado, sea porque el negocio es complejo y las

    partes quieren estudiarlo em todas sus consecuencias o porque quien lo firma

    no tiene poderes suficientes o por cualquier otro motivo.6

    A caracterstica bsica desta fase justamente a no vinculao

    (formal) das partes uma relao jurdica obrigacional, muito embora possa,

    em tese, haver responsabilidade civil pr-contratual por quebra de boa-f

    objetiva, caso haja leso legtima e firme expectativa de contratar

    alimentada por uma das partes, luz do princpio da confiana. Depender da

    anlise do caso concreto luz da principiologia constitucional aplicada s

    relaes de direito privado, consoante veremos em sala.

    Esses atos preparatrios, caractersticos da fase de puntuao, no se

    identificam com o denominado contrato preliminar, figura jurdica que

    especialmente posto no apenas - estudada no mbito da promessa de

    compra e venda.

    A proposta de contratar, tambm denominada de policitao, consiste na

    oferta de contratar que uma parte faz outra, com vistas celebrao de

    determinado negcio (aquele que apresenta a oferta chamado de

    proponente, ofertante ou policitante).

    Trata-se de uma declarao receptcia de vontade.

    6 BORDA, Guillermo A. Manual de Contratos. 19 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000, pg. 33.

  • 6

    O Cdigo Civil, ao disciplinar o tema, na Seo II, do Captulo I, Ttulo V

    (Da Formao dos Contratos), embora no haja elencado os seus elementos

    constitutivos, regulou-a, nos seguintes termos:

    Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o

    contrrio no resultar dos termos dela, da natureza do negcio, ou

    das circunstncias do caso.

    Observe-se, portanto, que a proposta de contratar obriga o proponente

    ou policitante, que no poder voltar atrs, ressalvadas apenas as excees

    capituladas na prpria lei (arts. 427 e 428).

    Cuida-se, no caso, do denominado princpio da vinculao ou da

    obrigatoriedade da proposta, diretriz normativa umbilicalmente ligada ao

    dogma da segurana jurdica.

    Da anlise desse dispositivo, conclumos que o legislador reconhece a

    perda da eficcia cogente da oferta, nas seguintes situaes especiais:

    a) se o contrrio (a no-obrigatoriedade) resultar dos termos

    dela mesma o caso de o proponente salientar, quando da sua

    declarao de vontade (oferta), que reserva o direito de retratar-se

    ou arrepender-se de concluir o negcio. Tal possibilidade,

    entretanto, no dever existir nas ofertas feitas ao consumidor, na

    forma da Lei n. 8078/90 (CDC);

    b) se o contrrio (a no-obrigatoriedade) resultar da natureza

    do negcio cite-se como exemplo, seguindo o pensamento de

  • 7

    CARLOS ROBERTO GONALVES, das chamadas propostas abertas

    ao pblico, que se consideram limitadas ao estoque existente7;

    c) se o contrrio (a no-obrigatoriedade) resultar das

    circunstncias do caso nesse caso, optou o legislador por

    adotar uma dico genrica, seno abstrata, que dar ao juiz a

    liberdade necessria para aferir, no caso concreto, e respeitado o

    princpio da razoabilidade, situao em que a proposta no poderia

    ser considerada obrigatria.

    Nessa mesma linha, vale registrar ainda que a proposta pode ter prazo

    de validade.

    o que dispe o art. 428 do CC-02 (correspondente ao art. 1.081, CC-

    16):

    Art. 428. Deixa de ser obrigatria a proposta:

    I - se, feita sem prazo a pessoa presente, no foi

    imediatamente aceita. Considera-se tambm presente a

    pessoa que contrata por telefone ou por meio de

    comunicao semelhante;

    II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido

    tempo suficiente para chegar a resposta ao conhecimento

    do proponente;

    III - se, feita a pessoa ausente, no tiver sido expedida a

    resposta dentro do prazo dado;

    IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao

    conhecimento da outra parte a retratao do proponente.

    7 GONALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigaes Parte Especial Tomo I Contratos (Sinopses Jurdicas). 6. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, pg. 16.

  • 8

    Para que entendamos tais situaes, preciso definir o que se

    entende por pessoa presente e pessoa ausente.

    Presentes so as pessoas que mantm contato direto e simultneo

    uma com a outra, a exemplo daquelas que tratam do negcio pessoalmente,

    ou que utilizam meio de transmisso imediata da vontade (como o telefone,

    por exemplo). Observe-se que, em tais casos, o aceitante toma cincia da

    oferta quase no mesmo instante em que a mesma emitida.

    Ausentes, por sua vez, so aquelas pessoas que no mantm contato

    direto e imediato entre si, caso daquelas que contratam por meio de carta ou

    telegrama (correspondncia epistolar).

    No tendo regulado os contratos eletrnicos, entendemos que tais

    regras, constantes no Cdigo Civil, devem, mutatis mutandis, lhes ser

    aplicadas.

    Nessa linha de raciocnio, poderemos considerar, entre presentes, o

    contrato celebrado eletronicamente em um chat (salas virtuais de

    comunicao), haja vista que as partes envolvidas mantm contato direto

    entre si quando de sua formao, e, por outro lado, entre ausentes, aquele

    formado por meio do envio de mensagem eletrnica (e-mail), pois, nesse caso,

    medeia um lapso de tempo entre a emisso da oferta e a resposta.

    Fora dessas hipteses (arts. 427, segunda parte e art. 428),

    portanto, a proposta obriga o proponente e dever ser devidamente

    cumprida, caso haja a conseqente aceitao.

    E o que se sentende por aceitao?

    Trata-se da manifestao de vontade concordante do aceitante ou

    oblato que adere proposta que lhe fora apresentada.

    Cumpre-nos observar que se a aceitao for feita fora do prazo,

    com adies, restries, ou modificaes, importar em nova proposta.

    Ou seja, caso a aquiescncia no seja integral, mas feita intempestivamente

  • 9

    ou com alteraes (restritivas ou ampliativas), converter-se- em

    contraproposta, nos termos do art. 431 do Cdigo Civil.8

    Nessa mesma linha, se a aceitao, por circunstncia imprevista,

    chegar tarde ao conhecimento do proponente, este dever comunicar o fato

    imediatamente ao aceitante, sob pena de responder por perdas e danos (art.

    430). Aqui est mais uma aplicao do dever de informar decorrente da boa

    f objetiva!...

    Finalmente, vale salientar que a aceitao poder ser expressa ou

    tcita, consoante se pode concluir da anlise do art. 432 do Cdigo Civil:

    Art. 432. Se o negcio for daqueles em que no seja

    costume a aceitao expressa, ou o proponente a tiver

    dispensado, reputar-se- concludo o contrato, no chegando

    a tempo a recusa.

    Por fim, importante questo a ser enfrentada diz respeito

    formao do contrato entre ausentes, especialmente o pactuado mediante

    correspondncia epistolar.

    Alis, como carecemos de uma disciplina especfica dos contratos

    eletrnicos, consoante j dissemos, a matria aqui exposta poder, mutatis

    mutandis, ser adaptada queles negcios pactuados via e-mail.

    Fundamentalmente, a doutrina criou duas teorias explicativas a

    respeito da formao do contrato entre ausentes9:

    a) teoria da cognio para os adeptos dessa linha de pensamento, o contrato entre ausentes somente se consideraria

    formado, quando a resposta do aceitante chegasse ao

    conhecimento do proponente.

    8 Norma muito semelhante vem prevista no Cdigo Civil Argentino: Art. 1152. Cualquiera modificacin que se hiciere em la oferta al aceptarla, importar la propuesta de um nuevo contrato. 9 Cf. PEREIRA, Caio Mrio da Silva, ob. cit., pg. 25 e RODRIGUES, Silvio. Direito Civil Dos Contratos e Declaraes Unilaterais de Vontade. vol 3. 25 ed. So Paulo: Saraiva, 1997.

  • 10

    b) teoria da agnio (dispensa-se que a resposta chegue ao

    conhecimento do proponente):

    b.1. sub-teoria da declarao propriamente dita o contrato se formaria

    no momento em que o aceitante ou oblato

    redige, datilografa ou digita a sua resposta.

    Peca por ser extremamente insegura, dada a

    dificuldade em se precisar o instante da

    resposta.

    b.2. sub-teoria da expedio - considera formado o contrato, no momento em que a

    resposta expedida.

    b.3. sub-teoria da recepo reputa celebrado o negcio no instante em que o

    proponente recebe a resposta. Dispensa, como

    vimos, que leia a mesma. Trata-se de uma

    sub-teoria mais segura do que as demais, pois

    a sua comprovao menos dificultosa,

    podendo ser provada, por exemplo, por meio

    do A.R. (aviso de recebimento), nas

    correspondncias.

    Mas, afinal, qual seria a teoria adotada pelo nosso direito positivo?

    CLVIS BEVILQUA, autor do projeto do Cdigo Civil de 1916 era,

    nitidamente, adepto da sub-teoria da expedio, por reput-la a mais

    razovel e a mais jurdica.10

    Por isso, boa parte da doutrina brasileira, debruando-se sobre o art.

    1086 do Cdigo revogado, conclua tratar-se de dispositivo afinado com o

    pensamento de BEVILQUA:

    10 BEVILQUA, Clvis. Direito das Obrigaes.So Paulo: RED, 2000, pg. 238.

  • 11

    Art. 1086 (caput). Os contratos por correspondncia

    epistolar, ou telegrfica, tornam-se perfeitos desde que a

    aceitao expedida, ... (grifamos)

    Na mesma linha, se cotejarmos esse dispositivo com o

    correspondente do Cdigo em vigor, teremos a ntida impresso de que foi

    adotada a vertente terica da expedio:

    Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se

    perfeitos desde que a aceitao expedida, exceto:

    I - no caso do artigo antecedente;

    II - se o proponente se houver comprometido a

    esperar resposta;

    III - se ela no chegar no prazo convencionado.

    (grifamos)

    Note-se, entretanto, que o referido dispositivo enumera situaes em

    que o contrato no se reputar celebrado: no caso do art. 433; se o

    proponente se houver comprometido a esperar a resposta (nesta hiptese, o

    prprio policitante comprometeu-se a aguardar a manifestao do oblato); ou,

    finalmente, se a resposta no chegar no prazo assinado pelo policitante.

    Ocorre que se ns observarmos a ressalva constante no inciso I

    desse artigo, que faz remisso ao art. 433, chegaremos inarredvel

    concluso de que a aceitao no se reputar existente, se antes dela ou

    com ela chegar ao proponente a retratao do aceitante.

    Atente para essa expresso: se antes dela ou com ela CHEGAR ao

    proponente a retratao do aceitante.

  • 12

    Ora, ao fazer tal referncia, o prprio legislador acabou por negar a

    fora conclusiva da expedio, para reconhecer que, enquanto no tiver havido

    a RECEPO, o contrato no se reputar perfeito, pois, antes do recebimento

    da resposta ou simultaneamente a esta, poder vir o arrependimento do

    aceitante.

    Dada a amplitude da ressalva constante no art. 433, que admite,

    como vimos, a retratao do aceitante at que a resposta seja recebida pelo

    proponente, entendemos que o nosso Cdigo Civil adotou a sub-teoria da

    recepo, e no a da expedio11.

    Nessa linha, inclusive, enunciado da Terceira Jornada sufraga a tese

    da recepo, aplicando-a para a contratao pela via eletrnica:

    E. 173 Art. 434: A formao dos contratos realizados entre pessoas

    ausentes, por meio eletrnico, completa-se com a recepo da aceitao pelo

    proponente.

    4. Classificao dos Contratos

    a) Quanto Natureza da Obrigao.

    a.1) Contratos Unilaterais, Bilaterais ou Plurilaterais - na medida

    em que o contrato implique em direitos e obrigaes para ambos os

    contratantes ou apenas para um deles, ser bilateral (ex.: compra e venda)

    ou unilateral (ex.: depsito), podendo se falar em contrato plurilateral (ou

    multi-lateral), na medida em que haja mais de dois contratantes com

    obrigaes (contrato de constituio de uma sociedade ou de um condomnio);

    a.2) Contratos Onerosos ou Gratuitos Quando a um benefcio

    recebido corresponder um sacrifcio patrimonial (ex: compra e venda), fala-se

    11 Nesse sentido, tb., GONALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigaes Parte Especial Tomo I Contratos (Sinopses Jurdicas). 6. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p.20/21.

  • 13

    em contrato oneroso. Quando, porm, fica estabelecido que somente uma

    das partes auferir benefcio, enquanto a outra arcar com toda obrigao,

    fala-se em contrato gratuito ou benfico (ex: doao pura (sem encargo) e

    comodato).

    a.3) Contratos Comutativos ou Aleatrios. Quando as obrigaes se

    equivalem, conhecendo os contratantes, ab initio, as suas respectivas

    prestaes, como, por exemplo, na compra e venda ou no contrato individual

    de emprego, fala-se em um contrato comutativo. J quando a obrigao de

    uma das partes somente puder ser exigida em funo de coisas ou fatos

    futuros, cujo risco da no ocorrncia for assumido pelo outro contratante, fala-

    se em contrato aleatrio, previsto nos arts. 458/461, como o caso, por

    exemplo, do contratos de seguro, jogo e aposta, bem como como o contrato

    de constituio de renda.

    Sub-diviso dos Contratos Aleatrios:

    a) Contrato de Compra de Coisa Futura, com

    Assuno de Risco pela Existncia (emptio spei): nessa

    primeira espcie, prevista expressamente no art. 458, o

    contratante assume o risco de no vir a ganhar coisa

    alguma, deixando sorte propriamente dita o resultado da

    sua contratao;

    b) Contrato de Compra de Coisa Futura, sem

    Assuno de Risco pela Existncia (emptio rei

    speratae): nessa segunda hiptese, prevista no art. 459,

    CC-02 (art.1.119, CC-16)12, no h a assuno total de

    riscos pelo contratante, tendo em vista que o alienante se

    comprometeu a que alguma coisa fosse entregue;

    c) Contrato de Compra de Coisa Presente, mas

    Exposta a Risco assumido pelo Contratante: a ltima

    12 CC-02: Art.459. Se for aleatrio, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, ter tambm direito o alienante a todo o preo, desde que de sua parte no tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior esperada. Pargrafo nico. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienao no haver, e o alienante restituir o preo recebido.

  • 14

    modalidade codificada a que versa sobre a venda de coisa

    atual sujeita a riscos, prevista nos art.46013.

    a.4) Contratos Paritrios ou por Adeso - Na hiptese das partes

    estarem em iguais condies de negociao, estabelecendo livremente as

    clusulas contratuais, na fase de puntuao, fala-se na existncia de um

    contrato paritrio, diferentemente do contrato de adeso, que pode ser

    conceituado simplesmente como o contrato onde um dos pactuantes pr-

    determina (ou seja, impe) as clusulas do negcio jurdico

    a.5) Contratos Evolutivos - Classificao proposta pelo Prof. ARNOLDO

    WALD, para se referir a figuras contratuais, prprias do Direito Administrativo,

    em que estabelecida a equao financeira do contrato, impondo-se a

    compensao de eventuais alteraes sofridas no curso do contrato, pelo que o

    mesmo viria com clusulas estticas, propriamente contratuais, e outras

    dinmicas, impostas por lei.

    b) Classificao dos Contratos quanto Disciplina Jurdica (civis,

    comerciais, trabalhistas, consumeristas e administrativos).

    c) Classificao dos Contratos quanto Forma.

    c.1) Solenes ou No-Solenes - Quanto imprescindibilidade de

    uma forma especfica para a validade da estipulao contratual;

    c.2) Consensuais ou Reais - Em relao maneira (forma) pela

    qual o negcio jurdico considerado ultimado, ainda nesta classificao

    quanto forma, os contratos podem ser consensuais, se concretizados com a

    simples declarao de vontade, ou reais, na medida que exijam a entrega da

    coisa, para que se reputem existentes.

    d) Classificao dos Contratos quanto Designao (nominados e

    inominados) - pode-se falar na existncia de contratos nominados e

    contratos inominados, na medida em que tenham terminologia ou 13 CC-02: Art.460. Se for aleatrio, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, ter igualmente direito o alienante a todo o preo, posto que a coisa j no existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato

  • 15

    nomenclatura definida e prevista expressamente em lei ou, em caso contrrio,

    sejam apenas fruto da criatividade humana.

    e) Classificao dos Contratos quanto Pessoa do Contratante.

    e.1) Pessoais ou Impessoais Quanto importncia da pessoa do

    contratante para a celebrao e produo de efeitos do contrato, podem

    tais negcios jurdicos ser classificados em contratos pessoais ou contratos

    impessoais. Os primeiros, tambm chamados de personalssimos, so os

    realizados intuitu personae, ou seja, celebrados em funo da pessoa do

    contratante, que tem influncia decisiva para o consentimento do outro, para

    quem interessa que a prestao seja cumprida por ele prprio, pelas suas

    caractersticas particulares (habilidade, experincia, tcnica, idoneidade etc).

    Nessas circunstncias, razovel se afirmar, inclusive, que a pessoa do

    contratante torna-se um elemento causal do contrato (ex: contrato de

    emprego). J os contratos impessoais so aqueles em que somente interessa

    o resultado da atividade contratada, independentemente de quem seja a

    pessoa que ir realiz-la.

    e.2) Individuais ou Coletivos - Tem-se como parmetro tambm o

    nmero de sujeitos envolvidos/atingidos. No contrato individual, sua

    concepo tradicional se refere a uma estipulao entre pessoas determinadas,

    ainda que em nmero elevado, mas consideradas individualmente. J no

    contrato coletivo, tambm chamado de contrato normativo, tem-se uma

    transubjetivizao da avena, alcanando grupos no individualizados,

    reunidos por uma relao jurdica ou de fato.

    f) Classificao dos Contratos quanto ao Tempo.

    f.1) Instantneos (execuo imediata ou execuo diferida) -

    Por contratos instantneos, compreendam-se as relaes jurdicas

    contratuais cujos efeitos so produzidos de uma s vez (ex: compra e venda a

    vista de bens mveis, em que o contrato se consuma com a tradio da coisa).

  • 16

    Tal produo concentrada de efeitos, porm, pode se dar ipso facto avena

    ou em data posterior celebrao (em funo da insero de um termo

    limitador da sua eficcia), subdividindo-se, assim, tal classificao em

    contratos instantneos de execuo imediata ou de execuo diferida. Tal

    subclassificao tambm tem interesse prtico, tendo em vista que, nos

    contratos de execuo diferida, aplicvel a teoria da impreviso, por

    dependerem de circunstncias futuras, o que, por bvio, inexiste nos contratos

    de execuo imediata.

    f.2) De durao (determinada ou indeterminada) - J os contratos

    de durao, tambm chamados de contratos de trato sucessivo, execuo

    continuada ou dbito permanente14, so aqueles que se cumprem por meio

    de atos reiterados, como, por exemplo, o contrato de prestao de servios,

    compra e venda a prazo e o contrato de emprego. Tal durao pode ser

    determinada ou indeterminada, na medida em que haja ou no previso

    expressa de termo final ou condio resolutiva a limitar a eficcia do contrato.

    g) Classificao dos Contratos quanto Disciplina Legal Especfica

    (tpicos e atpicos) - Quando h uma previso legal da disciplina de

    determinada figura contratual, estaremos diante de um contrato tpico; na

    situao inversa, ou seja, em que o contrato no esteja disciplinado/regulado

    pelo Direito Positivo, vislumbraremos um contrato atpico.

    h) Classificao pelo Motivo Determinante do Negcio (causais e

    abstratos) - Classificao (lembrada por SILVIO RODRIGUES), que toma, por

    base, o motivo determinante do negcio, para dividi-los em contratos

    causais e contratos abstratos. Os primeiros esto vinculados causa que os

    determinou, podendo ser declarados invlidos, se a mesma for considerada 14 Dbito permanente o que consiste em uma prestao tal que no possvel conceber sua satisfao em um s momento; mas, do contrrio, tem de ser cumprida durante certo perodo de tempo, continuadamente. A determinao de sua durao resulta da vontade das partes, mediante clusula contratual em que subordinam os efeitos do negcio a um acontecimento futuro e certo, ou da declarao de vontade de um dos contratantes pondo termo relao (denncia). So, por conseqncia, por tempo determinado ou indeterminado (GOMES, Orlando. Contratos, 24 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.79).

  • 17

    inexistente, ilcita ou imoral. J os contratos abstratos seriam aqueles cuja

    fora decorre da sua prpria forma, independentemente da causa que o

    estipulou. Seriam os exemplos dos ttulos de crdito em geral, como um

    cheque.

    i) Classificao pela Funo Econmica (de troca, associativos, de

    preveno de riscos, de crdito e de atividade)

    a) de troca: caracterizado pela permuta de utilidades

    econmicas, como, por exemplo, a compra e venda

    b) associativos: caracterizado pela coincidncia de fins, como

    o caso da sociedade e da parceria;

    c) de preveno de riscos: caracterizado pela assuno de

    riscos por parte de um dos contratantes, resguardando a

    possibilidade de dano futuro e eventual, como nos contratos de

    seguro, capitalizao e constituio de renda;

    d) de crdito: caracterizado pela obteno de um bem para ser

    restitudo posteriormente, calcada na confiana dos

    contratantes e no interesse de obteno de uma utilidade

    econmica em tal transferncia. a hiptese tpica do mtuo

    feneratcio (a juros);

    e) de atividade: caracterizado pela prestao de uma conduta

    de fato, mediante a qual se conseguir uma utilidade

    econmica. Como exemplos, podem ser lembrados os

    contratos de emprego, prestao de servios, empreitada,

    mandato, agncia e corretagem.

    j) Contratos Reciprocamente Considerados

    j.1. Classificao quanto Relao de Dependncia (principais e

    acessrios) - Os contratos principais so os que tm existncia autnoma,

    independentemente de outro. Por exceo, existem determinadas relaes

    contratuais cuja existncia jurdica pressupe a de outros contratos, a qual

    servem. o caso tpico da fiana, cauo, penhor, hipoteca e anticrese.

  • 18

    j.2. Classificao quanto Definitividade (preliminares e

    definitivos) - Por fim, quanto definitivamente, podem ser os contratos ser

    classificados em preliminares e definitivos. Os contratos preliminares (ou

    pactum de contrahendo), exceo no nosso ordenamento jurdico, nada mais

    so do que negcios jurdicos que tm por finalidade justamente a celebrao

    de um contrato definitivo.

    OBS.: Este tpico (classificao dos contratos) foi elaborado por RODOLFO

    PAMPLONA FILHO (co-autor da obra Novo Curso de Direito Civil Saraiva), a

    quem registramos o nosso agradecimento.

    Contato: [email protected]

    5. Textos Complementares

    Seguem textos, meus amigos, de dois grandes civilistas do Brasil, o Profs.

    Antnio Junqueira de Azevedo (sobre o Projeto do CC) e Flvio Tartuce.

    O princpio da boa-f nos contratos

    Antnio Junqueira de Azevedo15

    RESUMO

    Tece crticas referentes ao art. 421 do Projeto do Cdigo Civil, onde est

    presente a clusula geral da boa-f nos contratos. Como insuficincias,

    destaca: a) no se pode saber se o artigo representa norma cogente ou

    dispositiva; b) o artigo se limita ao perodo que vai da concluso at a

    execuo do contrato, no prevendo a aplicao da boa-f nas fases pr e ps-

    contratuais. Como deficincias do art. 421, cita a ausncia de disposies

    15 Fonte: www.cjf.gov.br

  • 19

    sobre: deveres anexos, clusulas faltantes e clusulas abusivas. A ltima

    crtica que o Projeto assenta-se em um paradigma ultrapassado, centrado na

    figura do julgador, devendo o paradigma atual centrar-se na Constituio, em

    normas cogentes.

    ABSTRACT

    The text criticises the Art. 421 of the Civil Code Project where the general

    clause on good faith in contracts is established. As inadequacies, it states that:

    a) it is not possible to know if the article is a reasonably necessary or specific

    norm, b) the article is only about the period between the conclusion and the

    execution of the contract, not predicting the good faith application in the

    phases before and after the contract. It also considers as inadequacies of the

    Art. 421 and mentions that there are not dispositions about attached rights,

    missing and abusive clauses. The last criticism is that the Project is based in an

    outmoded paradigm, centred in the judge figure. The actual paradigm should

    centred itself in the Constitution, in reasonably necessary norms.

    O tema "Boa-f nos contratos" uma homenagem que fao ao Prof. Clvis do

    Couto e Silva.

    Meu intuito fazer a crtica de um projeto de lei. Sinto-me nisso como quem

    cumpre um dever.

    A presena da boa-f no Projeto est em trs artigos: em um sobre o exerccio

    de direito, em outro sobre interpretao como se deve interpretar os

    negcios jurdicos e no que me diz respeito boa-f nos contratos, no art.

    421, cujo texto o seguinte: Os contratantes so obrigados a guardar, assim

    na concluso do contrato como em sua execuo, os princpios da probidade e

    da boa-f.

  • 20

    O artigo insuficiente, deficiente e, alm de tudo, revela que est num

    paradigma anterior aos tempos em que estamos vivendo. Ele est no

    paradigma do sistema que alguns dizem aberto, de clusulas gerais e conceitos

    indeterminados. No meu modo de entender, j estamos, no mundo, hoje, em

    outro paradigma.

    O primeiro paradigma se baseava inteiramente na segurana da lei naquela

    idia de que a lei deve ser universal, geral, prever tudo com preciso e, tanto

    quanto possvel, ser completa. O papel do juiz, nesse paradigma, era o de um

    autmato. o famoso juiz "boca da lei", la bouche de la loi, na linguagem de

    Montesquieu.

    Esse paradigma, no comeo do sculo XX, foi alterado, foi substitudo pelo

    segundo paradigma, que hoje alguns esto chamando de "sistema aberto".

    Nesse sistema, o ponto central deixou de ser a lei e passou a ser o juiz. Para

    isso, passou-se a utilizar conceitos indeterminados e clusulas gerais.

    A boa-f um conceito indeterminado. Quando se refere ao tipo de

    comportamento exigido por exemplo, dos contratantes configura-se em

    clusula geral.

    O artigo referido, com a evoluo do Direito, hoje insuficiente por vrias

    razes. Uma delas que no sabemos se representa uma norma cogente ou se

    uma norma dispositiva. O Projeto de Cdigo Civil no levou em considerao

    cdigos modernos, como o Uniform Comercial Code (Cdigo Comercial

    americano) na verdade, ainda que tenha horror aos americanos, os Estados

    Unidos so a Nao que est impondo as suas regras e nada mais lgico que,

    pelos menos, se verificasse aquilo que o cdigo prescritivo, normativo, no

    mundo americano. O Uniform Comercial Code diz sobre a boa-f: The

    obligation of good faith may not be disclaimed by agreement, ou seja, no

    Direito americano est muito claro que a obrigao de boa-f no pode ser

    afastada por contrato. Portanto, ele est imposto como cogente, mas, o

    mesmo artigo do Cdigo americano ainda mais completo porque acrescenta

  • 21

    que as partes podem, por contrato, determinar quais os standards by with the

    performance of such obligation is to be measured, ou seja, o standard pelo

    qual a "performance", a execuo da obrigao, ser executada. Naturalmente

    h determinaes possveis pelas partes, segundo o tipo de rea de atividade e

    de negcio que esto fazendo. J nas Ordenaes do Reino se dizia que quem

    compra cavalo no mercado de vora no tem direito aos vcios redibitrios. Se

    um sujeito vai negociar no mercado de objetos usados, em feira de troca, a

    boa-f exigida de um vendedor no pode ser igual de uma outra loja ou

    outro negcio, em que h um pressuposto de cuidado. Portanto, no caso do

    Projeto, no se sabe se a norma cogente e no se fala se as partes podem

    adotar outros standards ou quais standards e assim por diante.

    Segunda insuficincia: o art. 421 se limita ao perodo que vai da concluso do

    contrato at a sua execuo. Sempre digo que o contrato um certo processo

    em que h um comeo, prosseguimento, meio e fim. Temos fases contratuais

    fase pr-contratual, contratual propriamente dita e ps-contratual. Uma das

    possveis aplicaes da boa-f aquela que se faz na fase pr-contratual, fase

    essa em que temos as negociaes preliminares, as tratativas. um campo

    propcio para o comportamento de boa-f, no qual ainda no h contrato e

    podem-se exigir aqueles deveres que uma pessoa deve ter como correo de

    comportamento em relao ao outro.

    Cito um caso entre a Cica e plantadores de tomate, no Rio Grande do Sul, no

    qual, em pelo menos 4 acrdos, o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul

    reconheceu que a Companhia Cica havia criado expectativas nos possveis

    contratantes pequenos agricultores , ao distribuir sementes para que

    plantassem tomates e, depois, errou ao se recusar a comprar a safra dos

    tomates. Houve, ento, prejuzo dos pequenos agricultores, baseado na

    confiana despertada antes do contrato, fase pr-contratual. Logo, o caso do

    art. 421 deveria tambm falar em responsabilidade pr-contratual ou extenso

    do comportamento de boa-f na fase pr-contratual.

  • 22

    Fao um parntese para exemplificar, transformando em hiptese o que li nos

    jornais de hoje sobre o caso da Ford com o Governador do Rio Grande do Sul.

    A Ford, durante os dois anos em que teria procurado montar a sua indstria,

    certamente teve muitos gastos e, de repente, o negcio no teria sido

    efetivado. O problema da responsabilidade pr-contratual justamente esse,

    qual seja, o dos gastos que se fazem antes do contrato e quando h a ruptura.

    Se essa hiptese da Ford for pr-contratual no caso, suponho ter havido

    algum contrato anterior mas se no houvesse, e se fosse apenas um

    problema de negociaes, antes de qualquer efetivao do negcio, haveria

    dois pressupostos da responsabilidade pr-contratual: a confiana na

    realizao do futuro negcio e o investimento na confiana. Faltariam, talvez,

    outros dois pressupostos: o de poder atribuir uma justificao confiana que

    algum teve e, em segundo lugar, o de que essa confiana tenha sido causada

    pela outra parte. Assim, poderamos duvidar se o Governador chegou a criar

    essa confiana e, portanto, provocou a despesa da indstria; e, ainda, se a

    indstria no confiou demais e assim por diante. So problemas em aberto,

    mas de qualquer maneira, o meu primeiro ponto sobre a responsabilidade pr-

    contratual que h uma omisso do Projeto de Cdigo Civil, no artigo em

    causa.

    A terceira insuficincia na fase ps-contratual, porque se est dito "boa-f na

    concluso" e "na execuo", nada est dito sobre aquilo que se passa depois

    do contrato. Isso tambm assunto que a doutrina tem tratado a chamada

    "responsabilidade ps-contratual" ou post pactum finitum. Darei trs exemplos

    para comprovao de que, aps o contrato encerrado, ainda h possibilidade

    de exigir boa-f dos contratantes:

    1 O proprietrio de um imvel vendeu-o e o comprador o adquiriu por este ter

    uma bela vista sobre um vale muito grande, construindo ali uma bela

    residncia, que valia seis vezes o valor do terreno. A verdade que o vendedor

    gabou a vista e a fez a transferncia do imvel para o comprador negcio

    acabado. Depois, o ex-proprietrio, o vendedor foi prefeitura municipal,

    verificou que no havia a possibilidade de construir um prdio em frente, mas

  • 23

    adquiriu o prdio em frente ao que tinha vendido e conseguiu na prefeitura a

    alterao do plano diretor da cidade, permitindo ali uma construo. Quer

    dizer, ele construiu um prdio que tapava a vista do prprio terreno que havia

    vendido ao outro esse no era ato literalmente ilcito. Ele primeiramente

    vendeu, cumpriu a sua parte. Depois, comprou outro terreno, foi prefeitura,

    mudou o plano, e a construiu. A nica soluo para o caso aplicar a regra da

    boa-f. Ele faltou com a lealdade no contrato que j estava acabado. ,

    portanto, post pactum finitum.

    2 Uma dona de boutique encomendou a uma confeco de roupas 120 casacos

    de pele. A confeco fez os casacos, vendeu-os e os entregou para essa dona

    da boutique. A, liquidado esse contrato, a mesma confeco fez mais 120

    casacos de pele idnticos e vendeu-os para a dona da boutique vizinha. H,

    tambm, evidentemente, deslealdade e post pactum finitum.

    1. Um indivduo queria montar um hotel e procurou o melhor e mais

    barato carpete para colocar no seu empreendimento. Conseguiu

    uma fornecedora que disse ter o preo melhor, mas que no fazia

    a colocao. Ele pediu, ento, vendedora a informao de quem

    poderia colocar o carpete. A firma vendedora indicou o nome de

    uma pessoa que j tinha alguma prtica na colocao do carpete,

    mas no disse que o carpete que estava fornecendo para esse

    empresrio era de um tipo diferente. O colocador do carpete ps

    uma cola inadequada e, semanas depois, todo o carpete estava

    estragado. A vendedora dizia: cumpri a minha parte no contrato,

    entreguei, recebi o preo, o carpete era esse, fiz favor indicando

    um colocador. Segundo a regra da boa-f, ela no agiu com

    diligncia, porque, no mnimo, deveria t-lo alertado uma

    espcie de dever de informar e de cuidar depois de o contrato ter

    terminado a propsito do novo tipo de carpete. H

    responsabilidade ps-contratual.

  • 24

    Portanto, o art. 421 est insuficiente, pois s fala em concluso o momento

    em que se faz o contrato e execuo. No fala nada do que est para

    depois, nem falava do que estava antes. Finalmente, ainda a propsito das

    insuficincias, o artigo fala apenas em execuo, no momento final, e muitas

    vezes o caso na verdade no chega a ser de execuo, mesmo que dilatemos a

    expresso em portugus "execuo".

    A respeito da "substancial performance", ou seja, o contratante que executa

    em grande parte as suas obrigaes e somente no executa uma pequena

    parte, por no executar essa pequena parte no seria razovel que se

    rescindisse o contrato. O caso dessas clusulas que permitem uma resoluo

    por um contratante tendo em vista o inadimplemento de outro, de

    inexecuo e no propriamente de execuo. Mas uma clusula resolutiva pode

    ser empregada com m-f. O Cdigo deveria ter dito "execuo" ou "extino

    da obrigao". No s o Cdigo Comercial americano, a que vinha me

    referindo, fala em "performance" ou enforcement; outros cdigos mais novos,

    a exemplo do de Quebec, tambm se referem execuo ou extino da

    obrigao. At o Cdigo da Louisiana tratou do assunto.

    Refiro-me a esses cdigos porque so desta dcada. O que estou citando do

    Cdigo Comercial americano da ltima edio, de 1990; o Cdigo da

    Louisiana, edio de 1999, que foi revista; e o Cdigo de Quebec entrou em

    vigor em 1994.

    Os autores do Projeto de Cdigo Civil no tiveram conhecimento dessas leis,

    porque elas so posteriores. Mas esse o ponto: ficamos com um Projeto de

    Cdigo Civil feito antes de os atuais estudantes de Direito terem nascido! O

    mundo mudou muito; as coisas ficaram no-factveis na situao em que

    estamos.

    At aqui falamos das insuficincias; temos ainda as deficincias e o problema

    dos paradigmas o assunto vasto.

  • 25

    Com relao s deficincias, a regra da boa-f tem uma espcie de funo que

    chamo de "pretoriana" em relao ao contrato. O chamado "Direito

    Pretoriano", no Direito romano, foi aquele que os pretores introduziram para

    ajudar, suprir e corrigir o Direito Civil. Havia o Direito Civil estrito (o Direito

    Civil mais rigoroso) e o Direito Pretoriano veio adjuvandi, supplendi, vel

    corrigendi e juris civilis gratia.

    Essa trplice funo existe na clusula geral de boa-f, porque justamente a

    idia dessa clusula no contrato ajudar na interpretao do contrato,

    adjuvandi, suprir algumas das suas falhas, acrescentar o que nele no est

    includo supplendi e eventualmente corrigir alguma coisa que no de direito

    no sentido de justo corrigendi. Esse o papel da clusula de boa-f nos

    contratos feitos.

    So essas trs funes os pontos que, nos pases europeus, na doutrina da

    boa-f, mais so salientados. Houve um certo movimento, desde o comeo do

    sculo, a propsito da boa-f, ela j teve at mais importncia do que tem

    hoje e nos ltimos anos tem havido at um certo refluxo da mesma, mas

    continua fundamental para os contratos.

    A interpretao de acordo com a boa-f est bem tanto no art. 421 como no

    primeiro artigo da Parte Geral sobre interpretao dos negcios jurdicos. Mas

    as outras duas funes, aquela que supplendi e a outra que corrigendi, no

    esto no Projeto. No caso da funo supplendi, h dois aspectos: um o

    problema dos deveres anexos. A clusula de boa-f sempre comentada por

    todos os tratadistas, por todos os manuais cria deveres anexos ao vnculo

    principal. Existe aquilo a que as partes expressamente se referiram e, depois,

    h deveres colocados ao lado, ora ditos secundrios, ora anexos,

    especialmente o dever de informar, mais um dever negativo, o de manter

    sigilo sobre alguma coisa que soube da outra parte, ou at deveres ditos

    positivos, como o de procurar colaborar com a outra parte (da at uma viso

    talvez excessivamente romntica, de que os contratantes devem colaborar

    entre si).

  • 26

    Esses deveres anexos, nos Cdigos a que estava me referindo, hoje esto

    expressos. O Cdigo Civil holands, por exemplo, trata do assunto no art. 242

    do Livro das Obrigaes e diz que as partes devem respeitar aquilo que

    convencionaram. Ou seja, o contrato no produz somente os efeitos que foram

    convencionados entre as partes, mas igualmente aqueles que, segundo a

    natureza do contrato, decorrem das exigncias da razo e da eqidade. Razo

    e eqidade a maneira como o Cdigo Civil holands se refere boa-f. Os

    autores holandeses evitaram a palavra "boa-f", para que no houvesse

    confuso com a chamada "boa-f subjetiva" a boa-f no sentido de

    conhecimento ou desconhecimento de uma situao. Como o caso da clusula

    geral da boa-f no um problema de boa-f subjetiva, mas sim objetiva, no

    sentido de comportamento, os holandeses preferiram mudar a expresso para

    "exigncias da razo e da eqidade". De qualquer maneira, falam da boa-f

    criando deveres. Idem o art. 1.434 do Cdigo do Quebec que, no caso, j fala

    em boa-f. O Projeto, para estar pelo menos de acordo com os dias de hoje,

    deveria ter expressa a regra da criao dos deveres anexos.

    O outro ponto, a propsito do supplendi das funes da clusula de boa-f,

    refere-se s clusulas faltantes. s vezes as partes fazem o contrato e, por

    omisso, falta de previso ou incapacidade redacional, no incluem alguma

    clusula; teremos, ento, uma omisso. Tambm o Cdigo da Louisiana prev

    a falta de clusula e atribui boa-f a idia de pr a clusula que falta no lugar

    da omisso.

    A terceira funo corrigendi a que me referi e talvez a pior omisso do

    Projeto do Cdigo Civil no tema: "clusulas abusivas". O nosso Cdigo do

    Consumidor, que veio muito depois do Projeto do Cdigo Civil, est mais

    atualizado do que este. O assunto das clusulas abusivas no s tem um

    elenco no art. 51 do Cdigo como at o Ministrio da Justia publicou mais 29

    no ms de maro de 1999 clusulas abusivas em matria de planos de

    sade, de carto de crdito, de transporte areo etc.

  • 27

    O que se passa no resto do mundo, a propsito disso, so referncias boa-f,

    como maneira de evitar as clusulas abusivas. Por exemplo, no Cdigo de

    Quebec, em que se define o que clusula abusiva, feita a distino entre

    contrato de consumo (le consommateur) e contrato de adeso, porque pode

    haver contrato de adeso de quem no consumidor. Considera, portanto,

    abusiva a clusula que leva desvantagem o consumidor, ou aderente a

    clusula que, de uma maneira excessiva e irrazovel (draisonnable), v

    contra as exigncias da boa-f. Mais adiante torna a acrescentar que abusiva

    especialmente a clusula to afastada das obrigaes essenciais que desnatura

    o contrato. O Cdigo Civil holands tambm define, em seu art. 248, o que

    clusula abusiva e assim por diante.

    Apontei insuficincias e deficincias a propsito da boa-f nos contratos.

    Agora, passarei a uma viso mais global, que demonstra que o paradigma do

    Projeto de Cdigo Civil est ultrapassado. Em primeiro lugar, qualquer cientista

    hoje na Biologia, na Fsica ou na Qumica conhece um historiador das cincias

    chamado Thomas Kuhn, que escreveu um livro chamado A estrutura das

    revolues cientficas Traduo por Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira.

    So Paulo: Perspectiva, 1975. 262 p. (Debates; 115). No trata de Direito,

    mas define o que paradigma, dizendo que o mundo intelectual caminha por

    mudanas de paradigma. Um paradigma foi, por exemplo, na Astronomia, o de

    Ptolomeu; outro, o de Coprnico. Um paradigma o da geometria de Euclides;

    outro, o da geometria no-euclidiana. Um da Biologia antes da gentica, dos

    gens; outro, o da gentica, e assim por diante.

    No caso do Direito e isso senso comum , aquele paradigma do sculo

    passado, da lei, do juiz autmato, da lei geral, universal, em que o juiz no

    tinha papel algum, ficou ultrapassado.

    Veio, ento, um segundo paradigma, no qual o juiz ganhou um papel

    importante, inclusive com os trabalhos sobre hermenutica, o que trouxe

    mudanas ao tipo de soluo. E isso o que Kuhn diz a propsito de

    paradigma, que uma espcie de modelo de soluo que uma determinada

  • 28

    rea do conhecimento apresenta para os problemas. O paradigma na viso de

    Kuhn um modelo que serve a um grupo que se dedica a algum tipo de

    conhecimento, para solucionar os problemas que se apresentam.

    O mundo inteiro, em todas as reas, est acostumado a trabalhar com

    problemas. Todo bilogo tem problema; todo fsico tem problema. A maneira

    como se soluciona o problema o paradigma, e isso aprendemos na escola. O

    professor transmite para o aluno; o aluno aprende e ser operador do Direito

    com o paradigma que recebeu. Da uma certa dificuldade quando o paradigma

    est em mudana ou quando o anterior entrou em crise. Muitos juristas,

    muitos professores, no caso do Direito, recusam as inovaes.

    Aps o da lei, o paradigma dito do juiz, daquele tempo em que o Estado era

    intervencionista, era aquele que usava os famosos conceitos jurdicos

    indeterminados, as clusulas gerais; os conceitos indeterminados eram

    principalmente o que chamo de "bando dos quatro" moda daquela

    revoluo cultural comunista , quais sejam: funo social, boa-f, ordem

    pblica e interesse pblico.

    O problema todo desses quatro conceitos que eles no tm contedo, so

    vazios do ponto de vista axiolgico. Eles servem para retrica, e o mundo de

    hoje no se conforma mais com esses conceitos vazios. O paradigma, que

    antes era da lei, passou a ser o do juiz e hoje o do caso concreto e da

    Constituio. Hoje estamos fugindo do juiz. Essa fuga no um problema do

    Judicirio, ele vai decidir o que da misso dele, que conflito real, o caso

    difcil, que exige ponderao. Mas o juiz um julgador e, quando no h

    necessidade desse julgador, no preciso o juiz. Nesse sentido, h uma fuga

    do juiz.

    Aponto no s a Lei da Arbitragem, que evidente, mas as instituies como a

    Bolsa de Mercadorias e Futuros, como a CVM Comisso de Valores

    Mobilirios a OAB, Conselho de Medicina e vrias outras instituies cujos

    problemas no desguam no Judicirio. Fiquei perplexo quando tive de tratar

  • 29

    de um assunto acadmico uma tese sobre a Bolsa de Mercadorias e Futuros

    e verifiquei que todos os dias h milhes e milhes de reais que se

    transferem entre pessoas que negociam na Bolsa de Mercadorias e Futuros.

    Nenhum caso da Bolsa de Mercadorias e Futuros est no Poder Judicirio! As

    pessoas esto fugindo da estrutura do Judicirio, prpria do paradigma

    anterior. As escolhas, hoje em dia, recaem em apelar para a Constituio e

    outros tipos de solues. O Projeto de Cdigo Civil infelizmente volta a insistir

    na presena do juiz para muita coisa. O Projeto est no paradigma do Estado

    inchado.

    Os conceitos indeterminados o "bando dos quatro" a que me referi

    continuam a ser usados hoje, mas agora com diretrizes materiais. A

    Constituio, sobre a funo social, no se limitou a dizer que a propriedade

    tem funo social, como est no art. 5. Na verdade, disse o que era funo

    social no art. 182, 2, para os imveis urbanos e para a propriedade rural no

    art. 186. Ou seja, d diretrizes, no um jogo de palavras retrico.

    Com relao boa-f, todos os cdigos modernos do diretrizes. O Cdigo Civil

    holands diz que a boa-f deve ser vista de acordo com o Direito holands, de

    acordo com o interesse das partes, combinado com o interesse coletivo.

    Procura-se dar ao juiz alguma diretiva; uma diretriz para o conceito.

    Evidentemente, h normas de ordem pblica um tipo de situao da qual se

    fala tanto que so as cogentes: estas continuam, sem problema. O

    problema real do conceito indeterminado de ordem pblica quando se fala

    em "princpio" de ordem pblica e no em "regra" de ordem pblica. A regra

    de ordem pblica a cogente, mas, quando se fala em princpio e que a no

    tem definio, a tendncia hoje recusar esse emprego vago. Na verdade,

    deve-se fazer a distino entre ordem pblica de direo que era aquela

    econmica, prpria da primeira metade do sculo e a ordem pblica de

    proteo s pessoas mais fracas que se reflete em normas cogentes. A

    ordem pblica de direo, hoje encarada como princpio, est limitada

    dignidade humana. Quando alguma norma, alguma deciso, algum contrato

  • 30

    quebra a dignidade humana, podemos dizer que ela quebra o princpio de

    ordem pblica; mas da extravasar para uma ordem pblica de ordem

    econmica j no est no mundo de hoje.

    Todo cdigo implica um certo desgaste social e um trabalho muito grande para

    os operadores do Direito. O meu ponto de vista que o Projeto de Cdigo Civil

    um pouco, s um pouco mais adiantado do que o Cdigo Civil vigente. Claro,

    porque um de 1916 e o outro de 1970. Porm, no concordo tendo em

    vista as mudanas do mundo de hoje em adotarmos, para o ano 2000, um

    Projeto, que de 1970, por uma pequena melhora em relao ao Cdigo Civil.

    No vale, tudo posto na balana, o desgaste que isso representa e aquilo que

    vai resultar para ns. A questo no s o Cdigo Civil, e sim, todo o Direito

    Civil, e o Direito Civil como est superior ao Direito Civil como ficaria, se

    fosse aprovado o Projeto.

    O Dr. Antonio Junqueira de Azevedo Professor da Universidade de So

    Paulo.

    A FUNO SOCIAL DOS CONTRATOS, A BOA-F OBJETIVA E AS

    RECENTES SMULAS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA.16

    Flvio Tartuce.17

    Sumrio: 1. INTRODUO. 2. A SMULA 308 DO SUPERIOR TRIBUNAL

    DE JUSTIA: A RESTRIO DOS EFEITOS DA HIPOTECA.. 3. A

    SMULA 302 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA: A ABUSIVIDADE

    DA CLUSULA RESTRITRIVA DE INTERNAO EM CONTRATOS DE

    PLANO DE SADE. 3. AS SMULAS 297 E 285 DO SUPERIOR

    16 Artigo publicado na Revista cientfica da Escola Paulista de Direito (EPD So Paulo). Ano I. N. I. Maio/Agosto de 2005. Coordenao cientfica Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. 17 Graduado pela Faculdade de Direito da USP em 1998. Especialista em Direito Contratual pela COGEAE-PUC/SP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor dos cursos de ps-graduao em Direito Civil, Direito Civil e Processo Civil e Direito Empresarial da Escola Paulista de Direito (EPD). Autor e colaborador de obras jurdicas. Advogado em So Paulo. Site: www.flaviotartuce.adv.br.

  • 31

    TRIBUNAL DE JUSTIA. A APLICAO DO CDIGO DE DEFESA DO

    CONSUMIDOR S INSTITUIES BANCRIAS E FINANCEIRAS. 4. A

    SMULA 286 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA: A POSSIBILIDADE

    DE REVISO DE CONTRATOS OBJETO DE NOVAO. 5. REFERNCIA

    BIBLIOGRFICAS.

    1. INTRODUO.

    Em nosso livro A Funo Social dos Contratos, tivemos a oportunidade de

    demonstrar toda a evoluo pela qual vem passando o contrato,

    particularmente todas as alteraes substanciais pelas quais vem passando

    esse instituto, que basilar e fundamental no s para o Direito Civil, como

    para todo o Direito Privado.18

    No vamos, aqui, repetir todos os conceitos que constaram naquela obra.

    Na realidade, o presente trabalho serve como atualizao antecipada do nosso

    trabalho, trazendo novos tratamentos jurisprudenciais dados tanto em relao

    funo social dos contratos quanto boa-f objetiva. Isso, inclusive, para

    demonstrar que a jurisprudncia de nossos Tribunais superiores vm

    acompanhando essa tendncia.

    De qualquer forma, pertinente lembrar que, pela funo social dos

    contratos, os negcios jurdicos patrimoniais devem ser analisados de acordo

    com o meio social. No pode o contrato trazer onerosidades excessivas,

    despropores, injustia social.19 Tambm, no podem os contratos violar

    18 Flvio Tartuce. A Funo Social dos Contratos. Do Cdigo de Defesa do Consumidor ao Novo Cdigo Civil. So Paulo: Mtodo, 2005. 19 No se pode esquecer que o contrato importante fonte obrigacional. Nesse sentido, Nelson Rosenvald, um dos mais brilhantes juristas da nova gerao sintetiza muito bem como deve ser encarada a obrigao atualmente: A obrigao deve ser vista como uma relao complexa, formada por um conjunto de direitos, obrigaes e situaes jurdicas, compreendendo uma srie de deveres de prestao, direitos formativos e outras situaes jurdicas. A obrigao tida como um processo uma srie de atos relacionados entre si -, que desde o incio se encaminha a uma finalidade: a satisfao do interessa na prestao. Hodiernamente, no mais prevalece o status formal das partes, mas a finalidade qual se dirige a relao dinmica. Para alm da perspectiva tradicional de subordinao do devedor ao credor existe o bem comum da relao obrigacional, voltado para o adimplemento, da forma mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor. O bem comum na relao obrigacional traduz a solidariedade mediante a cooperao dos indivduos para a satisfao dos interesses patrimoniais recprocos, sem comprometimento dos direitos da

  • 32

    interesses metaindividuais ou interesses individuais relacionados com a

    proteo da dignidade humana, conforme reconhece Enunciado n. 23 do

    Conselho da Justia Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil.20

    Assim sendo, entendemos que a funo social dos contratos traz

    conseqncias dentro do contrato (intra partes) e tambm para fora do

    contrato (extra partes).

    Como efeito intra partes, citamos a previso do art. 413 do novo Cdigo

    Civil, exemplo tpico de relativao da fora obrigatria do contrato (pacta sunt

    servanda), justamente uma das conseqncias da funo social dos negcios

    jurdicos. Por esse dispositivo, o juiz deve reduzir o valor da clusula penal se

    a obrigao tiver sido cumprida em parte ou se entender que a multa

    excessivamente onerosa. Como o comando legal utiliza-se a expresso deve

    a reduo de ofcio, sem a necessidade de argio pela parte interessada.

    Isso confirmado pela natureza jurdica do princpio da funo social dos

    contratos, de ordem pblica, conforme previso do art. 2.035, pargrafo nico,

    do prprio Cdigo Civil.21

    Como exemplo de efeitos extra partes, citamos um caso em que o

    contrato, pelo menos aparentemente, bom para as partes, mas ruim para a

    sociedade. Podemos citar um contrato celebrado entre uma empresa e uma

    agncia de publicidade. O contrato civil e paritrio, no trazendo qualquer

    desequilbrio ou quebra do sinalagma. Entretanto, a publicidade veiculada

    discriminatria (publicidade abusiva art. 37, 2 do CDC), estando nesse

    ponto presente o vcio. Pela presena do abuso de direito, o contrato pode ser

    personalidade e da dignidade do credor e devedor (Dignidade Humana e Boa-F. So Paulo: Saraiva, 2005, p. 204). 20 Art. 421: a funo social do contrato, prevista no art. 421 do novo Cdigo Civil, no elimina o princpio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princpio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo dignidade da pessoa humana. 21 Entendemos que a funo social do contrato tem respaldo na Constituio Federal. Primeiro, na trade dignidade-solidariedade-igualdade, que consubstancia o Direito Civil Constitucional, constantes dos arts. 1, 3 e 5 da Norma Fundamental. Segundo, na funo social da propriedade (art. 5, XXII e XXIII e art. 170, III da CF/88) (Flvio Tartuce. Funo Social dos Contratos, ob, cit.). Sobre o Direito Civil Constitucional recomendamos a leitura da obra de Gustavo Tepedino (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004).

  • 33

    tido como nulo, combinando-se os arts. 187 e 166, VI, do novo Cdigo Civil

    nulidade por fraude lei imperativa diante do ato emulativo.22

    Ao lado da funo social dos contratos, a boa-f objetiva procura valorizar

    a conduta de lealdade dos contratantes em todas as fases contratuais (art. 422

    do novo Cdigo Civil - funo de integrao da boa-f).

    Na dvida, os negcios jurdicos devem ser interpretados conforme a

    boa-f (art. 113 do novo Cdigo Civil funo de interpretao da boa-f).

    Em reforo, lembramos a interpretao a favor do consumidor (art. 47 do

    CDC) e do aderente (art. 423 do novo Cdigo Civil).

    Por fim, a boa-f objetiva est relacionada com deveres anexos, inerentes

    a qualquer negcio. A quebra desses deveres caracteriza o abuso de direito

    (art. 187 do novo Cdigo Civil funo de controle da boa-f).

    Sem dvidas, esses dois princpios trazem uma nova dimenso contratual.

    Felizmente, antes mesmo do novo Cdigo Civil a nossa melhor jurisprudncia

    j vinha aplicando ao contrato esses novos paradigmas.

    Superou-se a tese pela qual o contrato visa principalmente a segurana

    jurdica. Na realidade, o contrato tem a principal funo de atender pessoa e

    aos interesses da coletividade, diante da tendncia de personalizao do

    Direito Privado.23 Essa a real funo dos contratos!

    As smulas a seguir, felizmente, servem para demonstrar essa tendncia.

    Passamos a analisar o seu contedo.

    2. A SMULA 308 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA: A

    RESTRIO DOS EFEITOS DA HIPOTECA.

    Prev a Smula 308 do Superior Tribunal de Justia que: A hipoteca

    firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior

    22 Vale citar uma passagem de Luigi Ferri, citando Acarelli no sentido de que o juiz dever anular qualquer acordo de vontades pela simples ocorrncia de um dano potencial sociedade, mesmo que haja algum outro interesse comum (Luigi Ferri. La Autonomia Privada. Traduo e notas em espanhol por Luis Sancho Mendizibal. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1969, p. 438) 23 Sobre a personalizao do Direito Privado, recomendamos as contribuies de Luiz Edson Fachin, particularmente a brilhante obra Estatuto Jurdico do Patrimnio Mnimo (Rio de Janeiro: Renovar, 2001).

  • 34

    celebrao da promessa de compra e venda, no tem eficcia perante os

    adquirentes do imvel. Trata-se de smula com relevante enfoque sociolgico.

    Ora, sabe-se que a hipoteca um direito real de garantia sobre coisa

    alheia, que recai principalmente sobre bens imveis, tratada entre os arts.

    1.473 a 1.505 do atual Cdigo Civil. Sem prejuzo dessas regras especiais, a

    codificao traz ainda regras gerais quanto aos direitos reais de garantia, entre

    os seus artigos 1.419 a 1.430.

    Um dos principais efeitos da hipoteca a constituio de um vnculo real,

    que acompanha a coisa (art. 1.419). Esse vnculo real tem efeitos erga omnes,

    dando direito de excusso ao credor hipotecrio, contra quem esteja o bem

    (art. 1.422).

    Exemplificando, se um imvel garantido pela hipoteca, possvel que o

    credor reivindique o bem contra terceiro adquirente do bem, o que traz o que

    se denomina direito de seqela. Assim, no importa se o bem foi transferido a

    terceiro; esse tambm perder o bem, mesmo que o tenha adquirido de boa-

    f.24

    A constituio da hipoteca muito comum em contratos de construo

    e incorporao imobiliria, visando um futuro condomnio edilcio. Como

    muitas vezes o construtor no tem condies econmicas para levar a frente

    a sua obra, celebra um contrato de emprstimo de dinheiro com um terceiro

    (agente financeiro ou agente financiador), oferecendo o prprio imvel como

    garantia, o que inclui todas as suas unidades do futuro condomnio.

    24 Marco Aurlio S. Viana comenta muito bem esse efeito da hipoteca: O que caracteriza o direito real de garantia a vinculao de um bem ao cumprimento da obrigao. Sua funo assegurar ao credor a satisfao do crdito, colocando-o a cavaleiro da insolvncia do devedor (Cf. Orlando Gomes, Direitos Reais, cit., v. 2, p. 468; Clvis Bevilacqua, Direito das Coisas, cit., v. 2, p. 10). O titular do direito goza de seqela e preferncia. Vinculado o bem garantia de uma prestao, sua transmisso implica na do gravame. Isso equivale a dizer que o titular do direito real de garantia acompanhar o bem, exigindo a satisfao do crdito, pouco importando em mos de quem ele esteja. O valor do bem est afeto satisfao do crdito. Assim, quem adquire imvel hipotecado, por exemplo, poder v-lo levado venda para pagamento da dvida que garantia. o direito de seqela (Comentrios ao Novo Cdigo Civil. Volume XVI. Coordenador: Slvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 700).

  • 35

    Iniciada a obra, o incorporador comea a vender as unidades para

    terceiros, que no caso so consumidores, pois evidente a caracterizao

    da relao de consumo, nos moldes dos arts. 2 e 3 da Lei n. 8.078/90.

    Diante da boa-f objetiva e da fora obrigatria que ainda rege os

    contratos, espera-se que o incorporador cumpra com todas as suas

    obrigaes perante o agente financiador, pagando pontualmente as parcelas

    do financiamento. Assim sendo, no haver maiores problemas.

    Mas, infelizmente, como nem tudo so flores, nem sempre isso ocorre.

    Em casos tais, quem acabar perdendo o imvel, adquirido a to duras

    penas? O consumidor, diante do direito de seqela advindo da hipoteca.

    A referida smula visa justamente proteger o ltimo, restringindo os

    efeitos da hipoteca s partes contratantes. Isso, diante da boa-f objetiva, j

    que aquele que adquiriu o bem pagou pontualmente as suas parcelas frentes

    incorporadora, ignorando toda a sistemtica jurdica que rege a incorporao

    imobiliria.

    Presente a boa-f do adquirente, no poder ser responsabilizado o

    consumidor pela conduta da incorporadora, que acaba no repassando o

    dinheiro ao agente financiador. Fica claro, pelo teor da smula, que a boa-f

    objetiva tambm envolve ordem pblica, pois caso contrrio no seria possvel

    a restrio do direito real.25

    Alis, conclumos que a boa-f objetiva princpio de ordem pblica

    interpretando o art. 167, 2, do novo Cdigo Civil, que traz a inoponibilidade

    25 A referncia boa-f expressa no recente julgado a seguir transcrito, do prprio STJ, j aplicando a recente smula 380: CIVIL E CONSUMIDOR. IMVEL. INCORPORAO. FINANCIAMENTO. SFH. HIPOTECA. TERCEIRO ADQUIRENTE. BOA-F. NO PREVALNCIA DO GRAVAME. 1 - O entendimento pacificado no mbito da Segunda Seo deste STJ no sentido de que, em contratos de financiamento para construo de imveis pelo SFH, a hipoteca concedida pela incorporadora em favor do Banco credor, ainda que anterior, no prevalece sobre a boa-f do terceiro que adquire, em momento posterior, a unidade imobiliria. Smula 308 do Superior Tribunal de Justia. 2 - Recurso especial conhecido, mas no provido (STJ, REsp 625045 / GO ; RECURSO ESPECIAL 2003/0229385-3, RELATOR: Ministro FERNANDO GONALVES, QUARTA TURMA, Julgamento: 17/05/2005, Publicao: DJ 06.06.2005).

  • 36

    do ato simulado frente a terceiros e boa-f. Esclarecemos. Como se sabe, a

    simulao gera, em regra, a nulidade absoluta do negcio celebrado. Mas essa

    nulidade absoluta, que envolve ordem pblica, no poder ser oposta frente a

    terceiros de boa-f. Pois bem, se o princpio da boa-f no envolvesse ordem

    pblica, a boa conduta no faria frente ao ato simulado.

    Superado esse ponto, entendemos que a smula 308 do STJ tambm

    mantm relao com o princpio da funo social dos contratos, j que visa

    preservar os efeitos do contrato de compra e venda do imvel a favor do

    consumidor, parte economicamente mais fraca. Por essa simples razo, j

    mereceria os nossos aplausos.

    Mas a smula visa tambm proteger o direito moradia, assegurado

    constitucionalmente, no art. 6 da Carta Poltica de 1988. Reforando, tende-

    se a preservar o negcio jurdico, diante do principio da conservao negocial,

    inerente concepo social do contrato.26

    Concluindo, percebe-se que a eticidade e a socialidade acabam fazendo

    milagres no campo prtico, relativizando o rigor formal da concepo dos

    direitos reais, em prol da proteo do vulnervel, do hipossuficiente, daquele

    que sempre agiu conforme a boa-f.

    3. A SMULA 302 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA: A

    ABUSIVIDADE DA CLUSULA RESTRITRIVA DE INTERNAO EM

    CONTRATOS DE PLANO DE SADE.

    No se pode esquecer da grande importncia do Cdigo de Defesa do

    Consumidor para os contratos, uma vez que a grande maioria dos negcios

    jurdicos patrimoniais so de consumo, enquadrados nos arts. 2 e 3 da Lei

    n. 8.078/90.

    Por muito tempo, afirmou-se que, havendo relao jurdica de consumo

    no seria possvel a aplicao concomitante do Cdigo Civil e do Cdigo de

    26 Interessante aqui transcrever o Enunciado n. 22 do Conselho da Justia Federal, tambm da I Jornada de Direito Civil, que traz a relao entre funo social e conservao contratual: Art. 421: a funo social do contrato, prevista no art. 421 do novo Cdigo Civil, constitui clusula geral, que refora o princpio de conservao do contrato, assegurando trocas teis e justas.

  • 37

    Defesa do Consumidor. Isso, na vigncia do Cdigo anterior, eminentemente

    individualista e muito distante da proteo do vulnervel constante da Lei

    Consumerista.

    Entretanto, atualmente e ao contrrio, tem-se defendido um dilogo das

    fontes entre o Cdigo Civil e o Cdigo de Defesa do Consumidor. Por meio

    desse dilogo, deve-se entender que os dois sistemas no se excluem, mas se

    complementam. A tese foi trazida para o Brasil por Cludia Lima Marques,

    utilizando os ensinamentos de Erik Jayme.27 Isso se d diante de uma

    aproximao principiolgica entre os dois sistemas legislativos, principalmente

    no que tange aos contratos.28

    27 Cludia Lima Marques demonstra as razes filosficas e sociais da tese do dilogo da fontes: Segundo Erik Jayme, as caractersticas da cultura ps-moderna no direito seriam o pluralismo, a comunicao, a narrao, o que Jayme denomina de le retour des sentiments, sendo o Leitmotiv da ps-modernidade a valorizao dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da ps-modernidade. O pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificao ou a imploso dos sistemas genricos normativos (Zersplieterung), manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteo do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relao, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relaes extremamente despersonalizadas. Pluralismo tambm na filosofia aceita atualmente, onde o dilogo que legitima o consenso, onde os valores e princpios tm sempre uma dupla funo, o double coding, e onde os valores so muitas vezes antinmicos. Pluralismo nos direitos assegurados, nos direitos diferena e ao tratamento diferenciado aos privilgios dos espaos de excelncia (JAYME, Erik. Identit culturelle et intgration: le droit internacionale priv postmoderne. Recueil des Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye, 1995, II, Kluwer, Haia, p. 36 e ss) (MARQUES, Cludia Lima. Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor. Introduo. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 24). 28 Sobre essa aproximao, alis, foi aprovado o Enunciado n 167 na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justia Federal em dezembro ltimo, com o seguinte teor: Com o advento do Cdigo Civil de 2002, houve forte aproximao principiolgica entre esse Cdigo e o Cdigo de Defesa do Consumidor, no que respeita regulao contratual, uma vez que ambos so incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos. As razes apontadas pelo magistrado paraibano e jovem civilista Wladimir Alcibades Marinho Falco Cunha, autor da proposta, so pertinentes, merecendo transcrio o seguinte trecho: Entretanto pode-se dizer que, at o advento do Cdigo Civil de 2002, somente o Cdigo de Defesa do Consumidor encampava essa nova concepo contratual, ou seja, somente o CDC intervinha diretamente no contedo material dos contratos. Entretanto, o Cdigo Civil de 2002 passou tambm a incorporar esse carter cogente no trato das relaes contratuais, intervindo diretamente no contedo material dos contratos, em especial atravs dos prprios novos princpios contratuais da funo social, da boa-f objetiva e da equivalncia material.Assim, a corporificao legislativa de uma atualizada teoria geral dos contratos protagonizada pelo CDC teve sua continuidade com o advento do Cdigo Civil de 2002, o qual, a exemplo daquele, encontra-se carregado de novos princpios jurdicos contratuais e clusulas gerais, todos hbeis a proteo do

  • 38

    Pretendemos analisar a Smula 302 do STJ luz desse dilogo de

    complementariedade entre os dois sistemas, a permitir a aplicao

    simultnea, coerente e coordenada das plrimas fontes legislativas.29 Prev a

    referida smula que abusiva a clusula contratual de plano de sade que

    limita no tempo o internao hospitalar do segurado.

    A smula somente consubstancia o que j vinha entendendo tanto a

    doutrina quanto a jurisprudncia.30 A abusividade da clusula flagrante,

    enquadrando-se inicialmente no art. 51, I, da Lei n. 8.078/90, pela qual nula

    a clusula que exonerem ou atenuem a responsabilidade do prestador do

    servio. Alm dessa previso, a referida clusula j era vedada expressamente

    pela Portaria n. 3, de 19 de maro de 1999, da Secretaria de Direito

    Econmico do Ministrio da Justia.31

    Fazendo um necessrio dilogo das fontes, a clusula de limitao de

    internao poderia tambm ser considerada abusiva pelo que consta do art.

    424 do atual Cdigo Civil, j que o contrato em questo assume a forma de

    adeso, sendo o seu contedo imposto unilateralmente pela empresa de plano

    de sade.

    Isso porque o comando legal em questo prev a nulidade absoluta, nos

    contratos de adeso, das clusulas que implicam em renncia prvia a direito

    consumidor mais fraco nas relaes contratuais comuns, sempre em conexo axiolgica, valorativa, entre dita norma e a Constituio Federal e seus princpios constitucionais. Cdigo de Defesa do Consumidor e o Cdigo Civil de 2002 so, pois, normas representantes de uma nova concepo de contrato e, como tal, possuem pontos de confluncia em termos de teoria contratual, em especial no que respeita aos princpios informadores de uma e de outra norma (Proposta enviada por e-mail pelo prprio Conselho da Justia Federal aos participantes da III Jornada). 29 Marques, Cludia Lima, Comentrios, ob. cit., p. 26. 30 Por todos os julgados, transcrevemos o seguinte: CONTRATO - Plano de sade - Contrato de adeso - Relatividade das volies contratuais - Clusula limitativa - Internao em unidade de terapia intensiva (UTI) - Prazo exguo de 15 dias anuais com prorrogao dependente unicamente do critrio da prestadora de servio - Nulidade - Predominncia do direito vida sobre qualquer outro - Criao de vantagem exagerada para o convnio e restrio do direito para o conveniado - Lei Federal n. 8.078, de 1990 (art. 5, IV) - Recurso provido. (Tribunal de Justia de So Paulo, Apelao Cvel n. 144.424-4/0 - So Paulo - 4 Cmara de Direito Privado de Frias Janeiro/2004" - Relator: Munhoz Soares - 29.01.04 - V. U.) 31 A portaria, regulamentando o art. 51 do CDC, considera abusivas, dentre outras, as clusulas que: 2. Imponham, em contratos de planos de sade firmados anteriormente Lei 9665/98, limites ou restries a procedimentos mdicos (consultas, exames mdicos, laboratoriais e internaes hospitalares, UTI e similares) contrariando prescrio mdica.

  • 39

    resultante da natureza do negcio. Ora, pela referida clusula est sendo

    limitado o uso do servio pelo aderente, que o principal objetivo do contrato

    celebrado entre as partes.

    Partindo-se para a anlise principiolgica da referida smula, observa-se,

    de imediato, que a mesma traz aplicao direta do princpio da funo social

    dos contratos, relativizando a fora obrigatria (efeito inter partes).

    Podemos tambm citar o j mencionado Enunciado n. 23 do Conselho da

    Justia Federal, uma vez que a autonomia contratual no pode prevalecer

    diante de um interesse maior, relacionado com a vida e com a integridade

    fsica do segurado, direitos da personalidade relacionados com a dignidade

    humana. Vale lembrar que os direitos da personalidade so irrenunciveis

    (art. 11 do novo Cdigo Civil). Pela clusula de limitao de internao, o

    contratante renuncia ao direito de ser tratado como se espera, principalmente

    num caso de gravidade, em unidade de tratamento intensivo (UTI). Sem

    prejuzo de tudo isso, entendemos que a clusula de limitao traz no seu

    contedo um abuso de direito (art. 187 do novo Cdigo Civil), a gerar a sua

    nulidade por fraude lei imperativa (art. 166, VI, do nCC).

    Em reforo, a parte que impe a referida clusula desrespeita o dever

    anexo de lealdade e, com isso, a boa-f objetiva que se espera nas relaes

    negociais.32 Percorre-se o mesmo caminho: pela quebra da boa-f, caracteriza-

    se o abuso de direito a gerar a nulidade absoluta do referida clusula.

    De qualquer forma, no se pode esquecer que a clusula nula, mas deve

    preservado todo o resto do contrato, aplicao direta do art. 51, 2 do

    Cdigo de Defesa do Consumidor, que consagra o princpio da conservao

    contratual na tica consumerista.33

    32 Sobre a quebra dos deveres anexos, relacionados com a boa-f objetiva, vale conferir o teor do Enunciado n. 24, tambm da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justia Federal: Art. 422: em virtude do princpio da boa-f, positivado no art. 422 do novo Cdigo Civil, a violao dos deveres anexos constitui espcie de inadimplemento, independentemente de culpa. 33 Art. 51. (...) 2 A nulidade de uma clusula contratual abusiva no invalida o contrato, exceto quando de sua ausncia, apesar dos esforos de integrao, decorrer nus excessivo a qualquer das partes. J tivemos a oportunidade de demonstrar a relao entre o princpio da conservao do contrato e a funo social, lembrando a proteo do ato jurdico perfeito, que consta do art. 5, XXXVI da CF/88 e a importante funo que o contrato exerce para a sociedade. Assim sendo, a nulidade deve ser o ltimo recurso (Tartuce,

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    Feitas essas observaes e ressalvas, manifestamos o nosso entusiasmo e

    a nossa concordncia integral em relao Smula 302 do STJ, que atende

    quela visualizao personalizada do Direito Contratual, pela qual o principal

    objetivo dos negcios jurdicos patrimoniais atender aos interesses da

    pessoa. Isso, sintonizada, com o Direito Civil Constitucional e os seus trs

    princpios mximos: a proteo da dignidade humana (art. 1, III, da CF/88),

    a solidariedade social (art. 3, I, da CF/88) e a igualdade em sentido amplo

    (art. 5, caput, da CF/88).

    4. AS SMULAS 297 E 285 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE

    JUSTIA. A APLICAO DO CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

    S INSTITUIES BANCRIAS E FINANCEIRAS.

    Ainda em relao ao Cdigo de Defesa do Consumidor, duas

    importantes smulas do Superior Tribunal de Justia prevem a sua

    aplicao em dois casos muito comuns da prtica contratual: aos contratos

    bancrios e financeiros. Transcreveremos o teor das ementas de forma

    destacada para uma anlise conjunta:

    Smula 297: O Cdigo de Defesa do Consumidor aplicvel s

    instituies

    financeiras

    Smula 285: Nos contratos bancrios posteriores ao Cdigo de

    Defesa do

    Consumidor incide a multa moratria nele prevista.

    As duas ementa sepultam de vez a suposta discusso quanto existncia

    ou no de relao de consumo nos contratos celebrados com as instituies

    bancrias e financeiras.

    Dizemos suposta, e de forma destacada, pois sempre nos pareceu clara a

    possibilidade de aplicao da Lei n. 8.078/90 ao contratos celebrados entre

    correntistas/destinatrios finais e instituies bancrias e financeiras. Alis,

    entender ao contrrio sepultaria a efetividade prtica do Cdigo de Defesa do

    Flvio. A Funo Social dos Contratos. Do Cdigo de Defesa do Consumidor ao Novo Cdigo Civil. So Paulo: Mtodo, 2005, p. 104). .

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    Consumidor em nosso Pas. Por certo que o grande interesse social relacionado

    com a norma consumerista v-la aplicada s relaes jurdicas que as

    pessoas mantm com as instituies bancrias e financeiras.

    A possibilidade ou, mais do que isso, a necessidade de aplicao do

    Cdigo de Defesa do Consumidor fica clara pelo que consta do art. 3, 2, da

    Lei n. 8.078/90, pelo qual servio qualquer atividade fornecida no mercado

    de consumo, mediante remunerao, inclusive as de natureza bancria,

    financeira, de crdito e securitria, salvo as decorrentes das relaes de

    carter trabalhista (destacamos). Norma mais clara no h!

    De qualquer forma, os bancos, por meio da Confederao Nacional do

    Sistema Financeiro (Consif) propuseram uma ao declaratria de

    inconstitucionalidade desse comando consumerista, que recebe o nmero

    2.591/2003. Nessa ao pretendem que o CDC no seja aplicado s relaes

    bancrias. Com todo o respeito em relao s razes que constam da referida

    ao, com ela no concordamos em hiptese alguma.

    A referida ADIN, para ns, totalmente destoada da principiologia

    adotada pela Constituio Federal de 1988 que protege os consumidores de

    forma expressa (art. 5, XXXII e art. 170, V). A no aplicao do CDC aos

    bancos viola a prpria dignidade humana e a solidariedade social,

    particularmente a tendncia de personalizao do Direito Privado. Essa no

    incidncia entra em conflito tambm com a funo social dos contratos e a

    boa-f objetiva, regramentos sociais indeclinveis que corporificam uma nova

    realidade contratual.

    Esperamos, portanto, que a ADIN n. 2.591/2001 no obtenha xito. Na

    verdade, entendemos que a mesma est prejudicada pela entrada em vigor no

    novo Cdigo Civil, que confirma a tendncia de proteo dos mais fracos, dos

    mais frgeis.34

    34 Concordamos integralmente com a notas do advogado e professor Paulo R. Roque A Khouri em relao referida ADIN: Ora, da forma como a questo colocada na ADIn n 2.591, o consumidor jamais poderia valer-se das normas protetivas do CDC, principalmente, do art. 6, V, para questionar, v. g., juros bancrios pactuados em 500% ao ano. Tal entendimento contraria, ao meu sentir, a prpria Constituio Federal que elegeu a defesa do consumidor, no seu art. 5, XXXII, como um direito e garantia fundamental. De mesma forma, ao lado da prpria funo social da propriedade, da livre concorrncia, a defesa do consumidor princpio da ordem econmica de acordo com o art. 170 da Constituio. Impedir ao consumidor o direito de questionar a justia da pactuao da clusula de juros implica negar vigncia a um direito e garantia

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    Com o insucesso da ADIN, continuaro a ter aplicao as referidas

    smulas, com a aplicao do CDC aos contratos bancrios e financeiros, entre

    os ltimos, o caso dos contratos de carto de crdito. De qualquer forma, o

    que falta ainda jurisprudncia brasileira limitar as taxas de juros cobrada

    por tais instituies, o que no vem ocorrendo, diante da vigncia de duas

    outras smulas de nossos Tribunais Superiores.

    A Smula 596 do STF prev que as instituies bancrias no esto

    sujeitas Lei de Usura (Decreto-lei 22.626/1933), sendo perfeitamente

    possvel a livre conveno de juros, o que vem sendo aplicado pelo STJ.35 A

    recente Smula 283 do STJ prev o mesmo para as empresas administradoras

    de carto de crdito. J manifestamos nossa discordncia em relao s

    referidas smulas.36

    Na situao descrita vemos um paradoxo: duas smulas prevem a

    aplicao do Cdigo de Defesa do Consumidor aos contratos bancrios e

    financeiros; mas duas outras trazem a livre conveno dos juros. Em outras

    palavras: as Smulas 297 e 285 do STJ tendem a proteger os consumidores; fundamental, como se fosse dada instituio financeira uma carta branca para