wall–e na sociedade do descarte – uma reflexÃo...

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WALL–E NA SOCIEDADE DO DESCARTE – UMA REFLEXÃO SOBRE O CONSUMO COMO ORGANIZADOR DA VIDA CARLA SIMONE CORRÊA MARCON (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL), SANDRO FACCIN BORTOLAZZO (ULBRA). Resumo Um robô responsável por compactar lixo deixado pelos seres humanos é o núcleo do longa–metragem WALL–E, animação da Pixar. Este artigo procura articular perspectivas a partir de algumas preocupações permanentes frente a uma era movida pela instantaneidade e caracterizada pelo desperdício, consumo excessivo e o constante descarte. O filme revela um panorama do planeta no ano de 2700, expondo questionamentos de cunho ambiental, político, tecnológico e sociológico. Ferramentas teórico–conceituais tomadas de Zygmunt Bauman são empregadas neste trabalho para assinalar características da contemporaneidade diante dos problemas enfrentados pela sociedade do efêmero, da velocidade e do espetáculo. Para tal análise, utiliza–se o conceito de pedagogia cultural a partir de Shriley Steinberg e Joe Kincheloe com ênfase no seu caráter pedagógico. A utilização de um texto fílmico imerso no campo dos estudos culturais tem o intuito de apontar o cinema como um meio para o “ensinar”. Tendo como ênfase as questões relacionadas ao consumo e a educação, bem como suas repercussões na vida contemporânea, a película como um instrumento pedagógico tem se mostrado um importante artefato para pensar a formação de sujeitos na contemporaneidade. WALL–E, além de ter sido indicado ao Oscar e levado a estatueta, traz ao público um alerta com relação ao meio ambiente, o uso das novas tecnologias e suas conseqüências sociais. Palavras-chave: Educação, Pedagogias Culturais, Sociedade de Consumidores. WALL-E NA SOCIEDADE DO DESCARTE - UMA REFLEXÃO SOBRE O CONSUMO COMO ORGANIZADOR DA VIDA Carla Marcon* [email protected] Sandro Bortolazzo* [email protected] Resumo Um robô responsável por compactar lixo deixado pelos seres humanos é o núcleo do longa-metragem WALL-E, animação da Pixar. Este artigo procura articular perspectivas a partir de algumas preocupações permanentes frente a uma era movida pela instantaneidade e caracterizada pelo desperdício, consumo excessivo e o constante descarte. O filme revela um panorama do planeta no ano de 2700,

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WALL–E NA SOCIEDADE DO DESCARTE – UMA REFLEXÃO SOBRE O CONSUMO COMO ORGANIZADOR DA VIDA CARLA SIMONE CORRÊA MARCON (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL), SANDRO FACCIN BORTOLAZZO (ULBRA). Resumo Um robô responsável por compactar lixo deixado pelos seres humanos é o núcleo do longa–metragem WALL–E, animação da Pixar. Este artigo procura articular perspectivas a partir de algumas preocupações permanentes frente a uma era movida pela instantaneidade e caracterizada pelo desperdício, consumo excessivo e o constante descarte. O filme revela um panorama do planeta no ano de 2700, expondo questionamentos de cunho ambiental, político, tecnológico e sociológico. Ferramentas teórico–conceituais tomadas de Zygmunt Bauman são empregadas neste trabalho para assinalar características da contemporaneidade diante dos problemas enfrentados pela sociedade do efêmero, da velocidade e do espetáculo. Para tal análise, utiliza–se o conceito de pedagogia cultural a partir de Shriley Steinberg e Joe Kincheloe com ênfase no seu caráter pedagógico. A utilização de um texto fílmico imerso no campo dos estudos culturais tem o intuito de apontar o cinema como um meio para o “ensinar”. Tendo como ênfase as questões relacionadas ao consumo e a educação, bem como suas repercussões na vida contemporânea, a película como um instrumento pedagógico tem se mostrado um importante artefato para pensar a formação de sujeitos na contemporaneidade. WALL–E, além de ter sido indicado ao Oscar e levado a estatueta, traz ao público um alerta com relação ao meio ambiente, o uso das novas tecnologias e suas conseqüências sociais. Palavras-chave: Educação, Pedagogias Culturais, Sociedade de Consumidores.

WALL-E NA SOCIEDADE DO DESCARTE

- UMA REFLEXÃO SOBRE O CONSUMO COMO ORGANIZADOR DA VIDA

Carla Marcon*

[email protected]

Sandro Bortolazzo*

[email protected]

Resumo

Um robô responsável por compactar lixo deixado pelos seres humanos é o núcleo do longa-metragem WALL-E, animação da Pixar. Este artigo procura articular perspectivas a partir de algumas preocupações permanentes frente a uma era movida pela instantaneidade e caracterizada pelo desperdício, consumo excessivo e o constante descarte. O filme revela um panorama do planeta no ano de 2700,

expondo questionamentos de cunho ambiental, político, tecnológico e sociológico. Ferramentas teórico-conceituais tomadas de Zygmunt Bauman são empregadas neste trabalho para assinalar características da contemporaneidade diante dos problemas enfrentados pela sociedade do efêmero, da velocidade e do espetáculo. Para tal análise, utiliza-se o conceito de pedagogia cultural a partir de Shriley Steinberg e Joe Kincheloe com ênfase no seu caráter pedagógico. A utilização de um texto fílmico imerso no campo dos estudos culturais tem o intuito de apontar o cinema como um meio para o "ensinar". Tendo como ênfase as questões relacionadas ao consumo e a educação, bem como suas repercussões na vida contemporânea, a película como um instrumento pedagógico tem se mostrado um importante artefato para pensar a formação de sujeitos na contemporaneidade. WALL-E, além de ter sido indicado ao Oscar e levado a estatueta, traz ao público um alerta com relação ao meio ambiente, o uso das novas tecnologias e suas consequências sociais.

Palavras - Chave: educação, pedagogias culturais, sociedade de consumidores.

Abstract

A robot responsible for compact garbage let by human being is the heartwood of feature film WALL-E, from Pixar production. This article search to articulate perspectives from some permanents worries in face an era moved by instantaneity and characterized by wastefulness, excessive consumption and the constant discard. The movie reveals a planet panorama on year 2700, exposing environment, politic, technologic and sociologic questions. Theoric-Conceptions tools took from Zygmunt Bauman are invested in this work to assign contemporaneous characteristics on faced problems in front of this ephemerality, velocity and spectacle society. For this analysis, it's used Cultural Pedagogy Conception from Shriley Steinberg and Joe Kincheloe with an emphasy in its pedagogic character. The use of a filmic text immersed on Cultural Studies field has an ntuit to point the cinema as one way to "educate". For that reason, there was an emphasis to questions related to consumption and education, as well as their repercussions in contemporary society, the film as a pedagogic instrument has been shown an important artefact to think about subject's formation in contemporaneous. WALL-E, besides to be indicated to Oscar e took the prize, has shown the public an alert about the environment, uses of new technologies and their consequences.

Keywords: education, cultural pedagogy, and consumption society

Introdução

Após soterrarem a Terra de lixo e poluição, os humanos são forçados a deixar o planeta e passam a habitar uma estação espacial chamada Axion. O plano era viver no espaço até que os robôs (deixados em solo) conseguissem eliminar toda a sujeira. WALL-E é a última máquina remanescente deste projeto, graças ao auto-conserto de suas peças. Ele perambula pela superfície terrestre executando a árdua tarefa de recolher detritos.

A vida deste robô consiste em compactar o lixo e organizá-lo em grandes arranha-céus. WALL-E é um trabalhador solitário mas também um colecionador de artefatos descartados pelos humanos tais como um cubo mágico, um aparelho de VHS e uma

fita de seu filme favorito, Hello, Dolly! É importante deixar claro que no decorrer do longa metragem, WALL-E acaba desenvolvendo consciência e personalidade.

Um dia, repentinamente, surge uma grande nave e, junto dela, um robô altamente moderno chamado EVA, enviado pela Axion para examinar as condições da Terra e vistoriar a existência de vegetação viva no solo do planeta. WALL-E, de pronto, se apaixona por EVA, mas ela é chamada de volta à estação, (já que localiza e colhe um broto de planta, que serve como confirmação de vida). O robozinho, desesperado em ver sua amada sendo levada para longe, agarra-se à nave e passa a segui-la numa corrida incansável.

O longa, de humor simples e composto por poucas falas, utiliza artifícios da tradicional escola muda de Chaplin, não como diretiva, mas como opção de linguagem.

Todo o passeio que se faz pelo enredo da trama fílmica pretende discutir algumas questões que a obra apresenta. Quais suas nuances frente uma sociedade de consumidores? Que relações estão em jogo entre uma era movida pela instantaneidade, caracterizada pelo constante descarte e a maneira como a Terra vem sendo tratada? São muitas as perguntas suscitadas, tanto pela relevância do tema como por sua discussão. Ao longo da análise, procura-se articular algumas cenas do WALL-E com imagens e debates recorrentes no cenário contemporâneo.

Portanto, este artigo propõe uma reflexão (a partir da obra WALL-E) acenando preocupações permanentes de uma era movida por movimentos instantâneos, pelo consumo excessivo e por um constante descarte. Néstor García Canclini, Zygmunt Bauman e David Harvey são alguns dos autores que discorrem sobre o cenário contemporâneo e, por isso, são empregados neste trabalho para assinalar características desta sociedade. Como ferramenta central de análise, utiliza-se o conceito de pedagogia cultural de Shriley Steinberg e Joe Kincheloe com ênfase no seu aspecto pedagógico.

O cinema é visto aqui como um meio para o "ensinar". Tendo em destaque as questões relacionadas ao consumo e a educação, a película como um instrumento pedagógico tem se revelado um importante artefato para pensar a formação de sujeitos na contemporaneidade.

1 Consumir, descartar e educar: o cinema como pedagogia

Com o intuito de iniciar as análises, parte-se da definição de pedagogia cultural proposta por Steinberg e Kincheloe. Entende-se aqui pedagogias culturais como sendo aquelas que atravessam a vida dos indivíduos para além das pedagogias escolares tradicionais. Steinberg e Kincheloe (2001), apresentam o termo pedagogia cultural para abranger um campo pedagógico onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinema, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc. Dentro dessa perspectiva, estas pedagogias, que estão além das convencionais, também apresentam um caráter pedagógico. Isto porque são capazes de nos ensinar determinadas formas de ser, pensar e agir.

Imersos em uma cultura imagética, somos constantemente expostos, estimulados e convidados a inúmeros aprendizados. Assistir a um filme com a finalidade de entreter-se ou mesmo como objeto de análise, pressupõe determinadas aprendizagens. As técnicas de produção, filmagem e edição características do fazer

cinematográfico, bem como todo um circuito comercial e mercantil, viabiliza a concatenação de processos significativos. São histórias contadas através de imagens seqüenciadas que atravessam nossos sentidos e incitam a imaginação, sonhos e fantasias.

Na obra WALL- E, o excesso de lixo fez com que a Terra se tornasse um lugar inabitável, sujo e poluído. A sociedade da demasia produziu uma grande indústria do descarte, da sobra, daquilo que não tem mais uso. A rotatividade e a constante injeção de novos produtos no mercado consolidou um problema estático, imóvel e prejudicial - o lixo urbano. Tudo em nome de uma experiência incessante de busca do deleite e da felicidade.

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros estão instados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada "agora" sucessivo. [grifos do autor] (Bauman, 2008: 60)

WALL-E não é simplesmente um robô lixeiro capaz de selecionar peças para seu auto-conserto. A obra cinematográfica propaga um discurso recheado de alusões às relações interpessoais. A ambientação, a princípio, parece assumir uma harmonia melancolicamente marcada pela solidão do protagonista, porém, o padrão artístico exibe um empenho de cunho sociológico na trama dos personagens, a começar por sua companheira - uma baratinha de estimação chamada Spot.

É possível observar que hoje, as relações amorosas entre humanos estão marcadas por um individualismo crescente, onde permanecer longe fisicamente garante segurança. As tecnologias de comunicação permitem o abastecimento de um supermercado virtual volátil onde seria possível a escolha do (a) parceiro (a) ideal. O terror da solidão "remete as pessoas aos computadores, enquanto o perigo representado pelos estranhos estimula o adiamento dos encontros da vida real". (Bauman, 2008: 24).

Os contatos físicos passam a ser desenhados pelo virtual, mediados eletronicamente, mais seguros e com poucos riscos. Os humanos, na Axion, dependem exclusivamente dos aparatos tecnológicos construídos em vista de sanar necessidades e manter os habitantes afastados entre si. No filme, a afetividade humana fica relegada às máquinas e foi eliminada da vida humana.

Um simples encostar de mãos compõe cena estranha, não habitual, à margem. O sentido do tato é minimizado, já que não oferece, obviamente, a segurança do distanciamento. Trata-se de uma individualidade estabelecida pelas máquinas e que vão instituir o limite, a barreira entre o eu e o outro.

Na obra WALL-E, o distanciamento entre os habitantes da Axion revela um ambiente impessoal, onde a tecnologia é usada como redoma de proteção e resguardo contra os perigos frente ao próximo, ao desconhecido. O medo do "outro", característica marcante na sociedade contemporânea justamente pela produção dessa atmosfera tecnológica, corrobora uma aliança pessoal corrompida, nebulosa e abandonada em face de outros espaços.

Um texto cultural fílmico, entre outras coisas, pode ajudar a enxergar e conhecer a sociedade em que vivemos. Redes de produção significativas estão imersas dentro de obras de ficção e contribuem para exames críticos nas diversas culturas em que circulam. A educação fora da escola tem sido tema de ampla discussão entre

estudiosos, o que faz com que se amplie a concepção de espaço pedagógico para além dos ambientes escolares.

2 Consumir e descartar ou descartar e consumir?

Uma montanha de lixo vem sendo produzida nas últimas décadas, fato gerado pela constante movimentação dos artigos consumíveis, envolvidos em processos velozes e de curta duração.

Imaginar uma forma de limpar o mundo de toda a "sujeira" resultante de práticas que não colaboraram para a sustentabilidade do planeta é o objetivo do personagem-robô WALL-E. A incessante jornada repetitiva do "robozinho" ilustra e, de certa forma, dá conta de algumas questões relacionadas à sociedade de consumo.

O conceito de consumo formulado por Canclini (2006) é entendido como um conjunto de processos socioculturais em que se realizam o uso e a apropriação dos produtos. E, para pensar o termo sociedade de consumidores, Bauman (2008) garante que existe uma interpelação para com seus membros essencialmente pelo viés consumista. Uma sociedade que avalia seus integrantes pelas capacidades e condutas em relação ao consumo.

A constante busca pelos mais diversos artefatos está inscrita na ação de que "a ideologia do consumo pode ser um ótimo pretexto para a produção ou transformação das subjetividades" (Rocha et al. 2006: 19). O consumo pós-moderno não se encontra tão somente cercado pela satisfação das necessidades, mas envolvido em processos de identificação marcados pelo consumo dos signos e remetendo-nos à noção de abundância. O que se observa é que os objetos a serem consumidos estão intrinsecamente relacionados ao conforto, bem-estar, status e deleite.

Bauman (2008) em seus escritos tem reiteradamente nos chamado a atenção para a ênfase que se dá ao consumo em nossos tempos e também para as transformações nos modos de consumir. O consumo, em sua obra, é delineado como eixo das sociedades atuais, diferenciando-se de tempos regressos quando o que interessava era a produção.

O consumo perde sua aura banal e acaba se transformando em um mecanismo organizador das sociedades. O molde dos contornos sociais e das relações, na perspectiva do autor, passa a ser gestado a partir da pauta de que na sociedade de consumidores é preciso consumir e ser consumido.

Os usos e significados do espaço e do tempo acabaram se modificando com a transição do fordismo[1] para a acumulação flexível, devido à implantação de novas formas organizacionais e do advento de novas tecnologias. O "mundo fordista" gerou um modelo de industrialização, de acumulação e de regulação. A engenharia social encontrava-se orientada pela ordem e pelo impedimento da mobilidade. No "capitalismo pesado", a produção, o capital e os trabalhadores estão fixados, enraizados e estáveis dentro de uma rotina ordenada e sólida.

Com a aceleração generalizada dos processos de produção de artefatos e bens de consumo, acentua-se uma volatilidade que perpassa modismos, técnicas de

produção, processos de trabalho, ideologias, valores e práticas estabelecidas. No "capitalismo leve", o mundo se torna uma coleção infinita de possibilidades.

O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha. [grifos do autor] (Bauman, 2001: 75)

A angústia é constante devido ao grande volume de objetos à disposição e, por isso, a possibilidade de chegar à satisfação inexiste. A regulação normativa não se faz necessária para a vida organizada em torno do consumo, pois esta é norteada pelo desejo, pela sedução, pelo hedonismo, pela vontade, etc.

Na estação espacial mostrada no filme, gigantescos outdoors saúdam as novas tendências da moda e as cores do momento. Os consumidores vorazes pela cor da estação, ao simples apertar de um botão, mudam de azul para vermelho todas suas vestimentas. O estar bonito, na moda, andar em sintonia, imediatamente cadenciam os habitantes da Axion, sempre antenados nos últimos produtos do mercado tornando-se visíveis e consumíveis.

Você pode escolher o seu visual. Escolher em si, optar por algum visual não é a questão, uma vez que é isso que você deve fazer, só podendo desistir ou evitar fazê-lo sob risco de exclusão. (Bauman, 2008: 110)

Para Bauman (2008), o ato de consumir está indissociável da condição dos vivos, tornando-se imperativo e permanente. A condição real da pós-modernidade em relação ao consumo se vincula a noção da valorização do ter e não do ser.

O envolvimento do sujeito nas relações de compra e venda o transporta para o consumismo que apresenta-se de forma central nas relações sociais. "O ‘consumismo' chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho." [grifos do autor] (Bauman, 2008: 41)

A idéia da sociedade do descarte de David Harvey (1993) mistura-se ao conceito da sociedade de consumidores de Zygmunt Bauman (2008), uma vez que ambas defendem uma superexposição às "novas tentações" como pré-requisito para a funcionalidade do sistema. A satisfação das necessidades não é o objetivo final, mas ao contrário, tem-se como alvo desejos excessivos e em intensidade crescente.

Novas necessidades exigem novas mercadorias, que por sua vez exigem novas necessidades e desejos; o advento do consumismo augura uma era de "obsolescência embutida" dos bens oferecidos no mercado e assinala um aumento espetacular na indústria da remoção de lixo. [grifos do autor] (Bauman, 2008: 45)

Bauman (2008) assegura que para o mercado seduzir é preciso consumidores que desejam ser seduzidos. Para estes consumidores ideais, amadurecidos, a impossibilidade de viver de outra forma se apresentaria disfarçada como livre exercício da vontade. Pode-se escolher qualquer coisa entre o universo infindável de opções disponíveis, exceto a própria opção de não escolher entre nenhuma delas.

A questão presente na animação WALL-E nos instiga para além de: o que fazer com os resíduos que não nos interessam mais? Ali estão questionamentos que conduzem às práticas da sociedade de consumo.

É preciso esclarecer que o consumo não está inscrito apenas no âmbito material, mas também de forma simbólica e abstrata. A cada encontro entre seres humanos, os limites da soberania do consumidor se fortalecem.

A vida na Terra, de acordo com o filme WALL-E não é possível devido às intensas ações de descarte promovidas pelos humanos. O movimento de compra e rejeição tornou a vida insustentável no planeta, fazendo-nos questionar determinados valores tais como necessidade, desejo, prazer. O filme também aponta problemas relacionados a um consumo desenfreado e um descaso quanto ao meio ambiente.

O descarte aqui significa "[...] mais do que jogar fora bens produzidos, [...] significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de ser e agir." (Harvey, 1993: 230)

A necessidade de novas mercadorias para ratificar ou reelaborar identidades exige, de forma vertiginosa, a obtenção constante de novos produtos. Por isso, o descarte é inevitável, uma vez que o artefato não produz mais o encantamento necessário para continuar circulando.

Os resíduos expurgados da sociedade de consumidores produzem depósitos de lixo. Tudo isso interligado a uma lógica instantânea de adquirir, colecionar, fazer sentido, para depois descartar e substituir.

Desta forma, um trabalho proposto com base no WALL-E não é finito em suas interpretações e suscita tantas outras indagações que não serão exauridas neste trabalho.

3 As marcas do bem viver

Em uma das cenas de WALL-E, o capitão da aeronave busca informações sobre a Terra, até então desconhecida para ele. Para isto, utiliza uma espécie de enciclopédia virtual, ferramenta que passa a revelar conteúdos sobre o planeta (como o que significa o verbo dançar ou o que é um oceano). Porém, o modo de apresentação é uma explosão de mídias. Nada de textos corridos e explicativos. A tela, tal qual uma de cinema, combina imagens e sons. Uma versão enciclopédia-espetáculo, digna de uma sociedade sempre pronta a satisfazer as necessidades de um consumidor apressado. Através de uma compilação de imagens e sons é possível ilustrar qualquer termo que se queira pesquisar. A tecnologia, nesse sentido, explora elementos educacionais que apresentam-se em compasso com a contemporaneidade.

A mesma tecnologia que informa, também auxilia. Isto é visível quando algum habitante da Axion sofre qualquer tipo de acidente (como cair de uma cadeira comandada eletronicamente). O dano é consertado em instantes. "Robôs-hospitais" estão sempre em alerta para salvar e ajudar, já que na nave, qualquer tipo de contato físico entre os humanos deve ser evitado. Uma atividade simples como cair e levantar do chão já não é tão simples assim. Em WALL-E, os aparatos eletrônicos passam a substituir as atividades físicas corporais, e, portanto, o caminhar, o cair,

o levantar e até mesmo o andar se tornam atividades complexas para os tripulantes e passageiros, todos obesos e destituídos de agilidade e com as habilidades motoras totalmente prejudicadas.

Os inúmeros estímulos da sociedade (visuais, auditivos, palatáveis) produzem uma coletividade ambígua. Ao mesmo tempo em que carregam consigo um copo gigante de refrigerante, também se tem na mão um estojo de maquiagem. Uma caneca de milk-shake na mão direita e o novo relógio na esquerda. Uma comunidade como a desses habitantes acaba produzindo consumidores obesos, mas também consumidores de lojas e institutos de beleza. Aqui estão unidas as facilidades tecnológicas e as possibilidades de inserção no mundo dos socialmente aceitos através do consumo de cores, símbolos e signos. Consumidores sempre prontos para ingerir e jogar fora, usar e descartar.

4 Algumas considerações

É com base nas análises do sociólogo Zygmunt Bauman que norteamos as discussões deste artigo. Os conceitos relacionados à existência de uma vida para o consumo (que acaba por transformar também as pessoas em mercadorias) nos oferece subsídios para a análise da animação WALL-E.

Concebendo a obra como um artefato cultural, podem ser estabelecidas inúmeras relações interligadas ao campo da educação. Um cuidado para com o corpo, o uso indevido dos recursos naturais do planeta, o consumo e o descarte contínuo, a impessoalidade das relações afetivas, o uso das tecnologias a serviço da sociedade. Todas essas abordagens permitem-nos enxergar o filme de forma critica.

Na sociedade de consumidores a oferta de objetos, sentimentos e relacionamentos são vertiginosos e a quantidade de opções acaba por provocar um mal-estar. Na realidade, o consumidor nunca tem a certeza de ter feito a escolha certa, ou a mais próxima de lhe oferecer o máximo de satisfação. Aliás, a satisfação das necessidades não é objetivo desta sociedade de consumidores.

Segundo Bauman:

Os consumidores podem estar correndo atrás de sensações - táteis, visuais ou olfativas - agradáveis, ou atrás de delícias do paladar prometidas pelos objetos coloridos e brilhantes expostos nas prateleiras dos supermercados, ou atrás das sensações mais profundas e reconfortantes prometidas por um conselheiro especializado. (Bauman, 2008: 95)

O descarte, portanto é inevitável. Os consumidores já não se sentem culpados por destinarem algo para o lixo uma vez que os objetos se apresentam destinadas ao uso momentâneo. Acabam se conformando com a vida curta dos artefatos.

Estar inserido ou ainda fazer parte desta sociedade significa poder consumir o que o mercado oferece. Porém, isto não significa que devemos ignorar os cuidados com o planeta, a saúde, as relações pessoais e o uso das tecnologias como salvo conduto da vida em sociedade.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.

. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

. A sociedade individualizada - vidas contadas e histórias vividas. Trad. José Gradel. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

COSTA, Marisa Vorraber. O consumismo na sociedade de consumidores. A Página da Educação. Ano XVII, n. 183, novembro de 2008, p. 7.

. Educar-se na sociedade de consumidores. A Página da Educação. Ano XVII, n. 184, dezembro de 2008, p. 7.

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural. Trad. Adail Sobral e Maria Estela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1993.

ROCHA, Everardo; ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de; EUGENIO, Fernanda (orgs.). Comunicação, consumo e espaço urbano: novas sensibilidades nas culturas jovens. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006.

*Mestranda na área de Estudos Culturais em Educação (Universidade Luterana do Brasil)

*Mestrando na área de Estudos Culturais em Educação (Universidade Luterana do Brasil)

[1] Fordismo é um sistema produtivo baseado numa linha de montagem, tendo como objetivo a produção industrial elevada. Esse conjunto de princípios foi criado pelo americano Henry Ford em 1909. Sua meta principal era buscar o aumento da produção no menor espaço de tempo, utilizando o trabalhador que reproduzia mecanicamente a mesma ação durante todo o dia.

WALL-E NA SOCIEDADE DO DESCARTE - UMA REFLEXÃO SOBRE O CONSUMO COMO ORGANIZADOR DA VIDA

Carla Marcon*

[email protected] Sandro Bortolazzo*

[email protected]

Resumo Um robô responsável por compactar lixo deixado pelos seres humanos é o núcleo do longa-metragem WALL-E, animação da Pixar. Este artigo procura articular perspectivas a partir de algumas preocupações permanentes frente a uma era movida pela instantaneidade e caracterizada pelo desperdício, consumo excessivo e o constante descarte. O filme revela um panorama do planeta no ano de 2700, expondo questionamentos de cunho ambiental, político, tecnológico e sociológico. Ferramentas teórico-conceituais tomadas de Zygmunt Bauman são empregadas neste trabalho para assinalar características da contemporaneidade diante dos problemas enfrentados pela sociedade do efêmero, da velocidade e do espetáculo. Para tal análise, utiliza-se o conceito de pedagogia cultural a partir de Shriley Steinberg e Joe Kincheloe com ênfase no seu caráter pedagógico. A utilização de um texto fílmico imerso no campo dos estudos culturais tem o intuito de apontar o cinema como um meio para o “ensinar”. Tendo como ênfase as questões relacionadas ao consumo e a educação, bem como suas repercussões na vida contemporânea, a película como um instrumento pedagógico tem se mostrado um importante artefato para pensar a formação de sujeitos na contemporaneidade. WALL-E, além de ter sido indicado ao Oscar e levado a estatueta, traz ao público um alerta com relação ao meio ambiente, o uso das novas tecnologias e suas consequências sociais. Palavras – Chave: educação, pedagogias culturais, sociedade de consumidores. Abstract A robot responsible for compact garbage let by human being is the heartwood of feature film WALL-E, from Pixar production. This article search to articulate perspectives from some permanents worries in face an era moved by instantaneity and characterized by wastefulness, excessive consumption and the constant discard. The movie reveals a planet panorama on year 2700, exposing environment, politic, technologic and sociologic questions. Theoric-Conceptions tools took from Zygmunt Bauman are invested in this work to assign *Mestranda na área de Estudos Culturais em Educação (Universidade Luterana do Brasil) *Mestrando na área de Estudos Culturais em Educação (Universidade Luterana do Brasil)

contemporaneous characteristics on faced problems in front of this ephemerality, velocity and spectacle society. For this analysis, it’s used Cultural Pedagogy Conception from Shriley Steinberg and Joe Kincheloe with an emphasy in its pedagogic character. The use of a filmic text immersed on Cultural Studies field has an ntuit to point the cinema as one way to “educate”. For that reason, there was an emphasis to questions related to consumption and education, as well as their repercussions in contemporary society, the film as a pedagogic instrument has been shown an important artefact to think about subject’s formation in contemporaneous. WALL-E, besides to be indicated to Oscar e took the prize, has shown the public an alert about the environment, uses of new technologies and their consequences. Keywords: education, cultural pedagogy, and consumption society Introdução

Após soterrarem a Terra de lixo e poluição, os humanos são forçados a

deixar o planeta e passam a habitar uma estação espacial chamada Axion. O

plano era viver no espaço até que os robôs (deixados em solo) conseguissem

eliminar toda a sujeira. WALL-E é a última máquina remanescente deste projeto,

graças ao auto-conserto de suas peças. Ele perambula pela superfície terrestre

executando a árdua tarefa de recolher detritos.

A vida deste robô consiste em compactar o lixo e organizá-lo em

grandes arranha-céus. WALL-E é um trabalhador solitário mas também um

colecionador de artefatos descartados pelos humanos tais como um cubo

mágico, um aparelho de VHS e uma fita de seu filme favorito, Hello, Dolly! É

importante deixar claro que no decorrer do longa metragem, WALL-E acaba

desenvolvendo consciência e personalidade.

Um dia, repentinamente, surge uma grande nave e, junto dela, um robô

altamente moderno chamado EVA, enviado pela Axion para examinar as

condições da Terra e vistoriar a existência de vegetação viva no solo do planeta.

WALL-E, de pronto, se apaixona por EVA, mas ela é chamada de volta à

estação, (já que localiza e colhe um broto de planta, que serve como

confirmação de vida). O robozinho, desesperado em ver sua amada sendo

levada para longe, agarra-se a nave e passa a segui-la numa corrida incansável.

O longa, de humor simples e composto por poucas falas, utiliza artifícios

da tradicional escola muda de Chaplin, não como diretiva, mas como opção de

linguagem.

Todo o passeio que se faz pelo enredo da trama fílmica pretende discutir

algumas questões que a obra apresenta. Quais suas nuances frente uma

sociedade de consumidores? Que relações estão em jogo entre uma era movida

pela instantaneidade, caracterizada pelo constante descarte e a maneira como a

Terra vem sendo tratada? São muitas as perguntas suscitadas, tanto pela

relevância do tema como por sua discussão. Ao longo da análise, procura-se

articular algumas cenas do WALL-E com imagens e debates recorrentes no

cenário contemporâneo.

Portanto, este artigo propõe uma reflexão (a partir da obra WALL-E)

acenando preocupações permanentes de uma era movida por movimentos

instantâneos, pelo consumo excessivo e por um constante descarte. Néstor

García Canclini, Zygmunt Bauman e David Harvey são alguns dos autores que

discorrem sobre o cenário contemporâneo e, por isso, são empregados neste

trabalho para assinalar características desta sociedade. Como ferramenta

central de análise, utiliza-se o conceito de pedagogia cultural de Shriley

Steinberg e Joe Kincheloe com ênfase no seu aspecto pedagógico.

O cinema é visto aqui como um meio para o “ensinar”. Tendo em

destaque as questões relacionadas ao consumo e a educação, a película como

um instrumento pedagógico tem se revelado um importante artefato para pensar

a formação de sujeitos na contemporaneidade.

1 Consumir, descartar e educar: o cinema como pedagogia

Com o intuito de iniciar as análises, parte-se da definição de pedagogia

cultural proposta por Steinberg e Kincheloe. Entende-se aqui pedagogias

culturais como sendo aquelas que atravessam a vida dos indivíduos para além

das pedagogias escolares tradicionais. Steinberg e Kincheloe (2001),

apresentam o termo pedagogia cultural para abranger um campo pedagógico

onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinema,

jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc.

Dentro desta perspectiva, estas pedagogias, que estão além das convencionais,

também apresentam um caráter pedagógico. Isto porque são capazes de nos

ensinar determinadas formas de ser, pensar e agir.

Imersos em uma cultura imagética, somos constantemente expostos,

estimulados e convidados a inúmeros aprendizados. Assistir a um filme com a

finalidade de entreter-se ou mesmo como objeto de análise, pressupõe

determinadas aprendizagens. As técnicas de produção, filmagem e edição

características do fazer cinematográfico, bem como todo um circuito comercial e

mercantil, viabiliza a concatenação de processos significativos. São histórias

contadas através de imagens seqüenciadas que atravessam nossos sentidos e

incitam a imaginação, sonhos e fantasias.

Na obra WALL- E, o excesso de lixo fez com que a Terra se tornasse um

lugar inabitável, sujo e poluído. A sociedade da demasia produziu uma grande

indústria do descarte, da sobra, daquilo que não tem mais uso. A rotatividade e a

constante injeção de novos produtos no mercado consolidou um problema

estático, imóvel e prejudicial - o lixo urbano. Tudo em nome de uma experiência

incessante de busca do deleite e da felicidade.

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros estão instados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. [grifos do autor] (Bauman, 2008: 60)

WALL–E não é simplesmente um robô lixeiro capaz de selecionar peças

para seu auto-conserto. A obra cinematográfica propaga um discurso recheado

de alusões às relações interpessoais. A ambientação, a princípio, parece

assumir uma harmonia melancolicamente marcada pela solidão do protagonista,

porém, o padrão artístico exibe um empenho de cunho sociológico na trama dos

personagens, a começar por sua companheira - uma baratinha de estimação

chamada Spot.

É possível observar que hoje, as relações amorosas entre humanos

estão marcadas por um individualismo crescente, onde permanecer longe

fisicamente garante segurança. As tecnologias de comunicação permitem o

abastecimento de um supermercado virtual volátil onde seria possível a escolha

do (a) parceiro (a) ideal. O terror da solidão “remete as pessoas aos

computadores, enquanto o perigo representado pelos estranhos estimula o

adiamento dos encontros da vida real”. (Bauman, 2008: 24).

Os contatos físicos passam a ser desenhados pelo virtual, mediados

eletronicamente, mais seguros e com poucos riscos. Os humanos, na Axion,

dependem exclusivamente dos aparatos tecnológicos construídos em vista de

sanar necessidades e manter os habitantes afastados entre si. No filme, a

afetividade humana fica relegada às máquinas e foi eliminada da vida humana.

Um simples encostar de mãos compõe cena estranha, não habitual, à

margem. O sentido do tato é minimizado, já que não oferece, obviamente, a

segurança do distanciamento. Trata-se de uma individualidade estabelecida

pelas máquinas e que vão instituir o limite, a barreira entre o eu e o outro.

Na obra WALL–E, o distanciamento entre os habitantes da Axion revela

um ambiente impessoal, onde a tecnologia é usada como redoma de proteção e

resguardo contra os perigos frente ao próximo, ao desconhecido. O medo do

“outro”, característica marcante na sociedade contemporânea justamente pela

produção dessa atmosfera tecnológica, corrobora uma aliança pessoal

corrompida, nebulosa e abandonada em face de outros espaços.

Um texto cultural fílmico, entre outras coisas, pode ajudar a enxergar e

conhecer a sociedade em que vivemos. Redes de produção significativas estão

imersas dentro de obras de ficção e contribuem para exames críticos nas

diversas culturas em que circulam. A educação fora da escola tem sido tema de

ampla discussão entre estudiosos, o que faz com que se amplie a concepção de

espaço pedagógico para além dos ambientes escolares.

2 Consumir e descartar ou descartar e consumir?

Uma montanha de lixo vem sendo produzida nas últimas décadas, fato

gerado pela constante movimentação dos artigos consumíveis, envolvidos em

processos velozes e de curta duração.

Imaginar uma forma de limpar o mundo de toda a “sujeira” resultante de

práticas que não colaboraram para a sustentabilidade do planeta é o objetivo do

personagem-robô WALL-E. A incessante jornada repetitiva do “robozinho” ilustra

e, de certa forma, dá conta de algumas questões relacionadas à sociedade de

consumo.

O conceito de consumo formulado por Canclini (2006) é entendido como

um conjunto de processos socioculturais em que se realizam o uso e a

apropriação dos produtos. E, para pensar o termo sociedade de consumidores,

Bauman (2008) garante que existe uma interpelação para com seus membros

essencialmente pelo viés consumista. Uma sociedade que avalia seus

integrantes pelas capacidades e condutas em relação ao consumo.

A constante busca pelos mais diversos artefatos está inscrita na ação de

que “a ideologia do consumo pode ser um ótimo pretexto para a produção ou

transformação das subjetividades” (Rocha et al. 2006: 19). O consumo pós-

moderno não se encontra tão somente cercado pela satisfação das

necessidades, mas envolvido em processos de identificação marcados pelo

consumo dos signos e remetendo-nos à noção de abundância. O que se

observa é que os objetos a serem consumidos estão intrinsecamente

relacionados ao conforto, bem-estar, status e deleite.

Bauman (2008) em seus escritos tem reiteradamente nos chamado a

atenção para a ênfase que se dá ao consumo em nossos tempos e também

para as transformações nos modos de consumir. O consumo, em sua obra, é

delineado como eixo das sociedades atuais, diferenciando-se de tempos

regressos quando o que interessava era a produção.

O consumo perde sua aura banal e acaba se transformando em um

mecanismo organizador das sociedades. O molde dos contornos sociais e das

relações, na perspectiva do autor, passa a ser gestado a partir da pauta de que

na sociedade de consumidores é preciso consumir e ser consumido.

Os usos e significados do espaço e do tempo acabaram se modificando

com a transição do fordismo1 para a acumulação flexível, devido à implantação

de novas formas organizacionais e do advento de novas tecnologias. O “mundo

fordista” gerou um modelo de industrialização, de acumulação e de regulação. A

engenharia social encontrava-se orientada pela ordem e pelo impedimento da

mobilidade. No “capitalismo pesado”, a produção, o capital e os trabalhadores

estão fixados, enraizados e estáveis dentro de uma rotina ordenada e sólida.

Com a aceleração generalizada dos processos de produção de artefatos

e bens de consumo, acentua-se uma volatilidade que perpassa modismos,

técnicas de produção, processos de trabalho, ideologias, valores e práticas

estabelecidas. No “capitalismo leve”, o mundo se torna uma coleção infinita de

possibilidades.

O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha. [grifos do autor] (Bauman, 2001: 75)

A angústia é constante devido ao grande volume de objetos à disposição

e, por isso, a possibilidade de chegar à satisfação inexiste. A regulação

normativa não se faz necessária para a vida organizada em torno do consumo,

pois esta é norteada pelo desejo, pela sedução, pelo hedonismo, pela vontade,

etc.

Na estação espacial mostrada no filme, gigantescos outdoors saúdam

as novas tendências da moda e as cores do momento. Os consumidores

vorazes pela cor da estação, ao simples apertar de um botão, mudam de azul 1 Fordismo é um sistema produtivo baseado numa linha de montagem, tendo como objetivo a produção industrial elevada. Esse conjunto de princípios foi criado pelo americano Henry Ford em 1909. Sua meta principal era buscar o aumento da produção no menor espaço de tempo, utilizando o trabalhador que reproduzia mecanicamente a mesma ação durante todo o dia.

para vermelho todas suas vestimentas. O estar bonito, na moda, andar em

sintonia, imediatamente cadenciam os habitantes da Axion, sempre antenados

nos últimos produtos do mercado tornando-se visíveis e consumíveis.

Você pode escolher o seu visual. Escolher em si, optar por algum visual

não é a questão, uma vez que é isso que você deve fazer, só podendo desistir

ou evitar fazê-lo sob risco de exclusão. (Bauman, 2008: 110)

Para Bauman (2008), o ato de consumir está indissociável da condição

dos vivos, tornando-se imperativo e permanente. A condição real da pós-

modernidade em relação ao consumo se vincula a noção da valorização do ter e

não do ser.

O envolvimento do sujeito nas relações de compra e venda o transporta

para o consumismo que apresenta-se de forma central nas relações sociais. “O

‘consumismo’ chega quando o consumo assume o papel-chave que na

sociedade de produtores era exercido pelo trabalho.” [grifos do autor] (Bauman,

2008: 41)

A idéia da sociedade do descarte de David Harvey (1993) mistura-se ao

conceito da sociedade de consumidores de Zygmunt Bauman (2008), uma vez

que ambas defendem uma superexposição às “novas tentações” como pré-

requisito para a funcionalidade do sistema. A satisfação das necessidades não é

o objetivo final, mas ao contrário, tem-se como alvo desejos excessivos e em

intensidade crescente.

Novas necessidades exigem novas mercadorias, que por sua vez exigem novas necessidades e desejos; o advento do consumismo augura uma era de “obsolescência embutida” dos bens oferecidos no mercado e assinala um aumento espetacular na indústria da remoção de lixo. [grifos do autor] (Bauman, 2008: 45)

Bauman (2008) assegura que para o mercado seduzir é preciso

consumidores que desejam ser seduzidos. Para estes consumidores ideais,

amadurecidos, a impossibilidade de viver de outra forma se apresentaria

disfarçada como livre exercício da vontade. Pode-se escolher qualquer coisa

entre o universo infindável de opções disponíveis, exceto a própria opção de não

escolher entre nenhuma delas.

A questão presente na animação WALL-E nos instiga para além de: o

que fazer com os resíduos que não nos interessam mais? Ali estão

questionamentos que conduzem às práticas da sociedade de consumo.

É preciso esclarecer que o consumo não está inscrito apenas no âmbito

material, mas também de forma simbólica e abstrata. A cada encontro entre

seres humanos, os limites da soberania do consumidor se fortalecem.

A vida na Terra, de acordo com o filme WALL-E não é possível devido

às intensas ações de descarte promovidas pelos humanos. O movimento de

compra e rejeição tornou a vida insustentável no planeta, fazendo-nos

questionar determinados valores tais como necessidade, desejo, prazer. O filme

também aponta problemas relacionados a um consumo desenfreado e um

descaso quanto ao meio ambiente.

O descarte aqui significa “[…] mais do que jogar fora bens produzidos,

[...] significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida,

relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos

adquiridos de ser e agir.” (Harvey, 1993: 230)

A necessidade de novas mercadorias para ratificar ou reelaborar

identidades exige, de forma vertiginosa, a obtenção constante de novos

produtos. Por isso, o descarte é inevitável, uma vez que o artefato não produz

mais o encantamento necessário para continuar circulando.

Os resíduos expurgados da sociedade de consumidores produzem

depósitos de lixo. Tudo isso interligado a uma lógica instantânea de adquirir,

colecionar, fazer sentido, para depois descartar e substituir.

Desta forma, um trabalho proposto com base no WALL-E não é finito em

suas interpretações e suscita tantas outras indagações que não serão exauridas

neste trabalho.

3 As marcas do bem viver

Em uma das cenas de WALL-E, o capitão da aeronave busca

informações sobre a Terra, até então desconhecida para ele. Para isto, utiliza

uma espécie de enciclopédia virtual, ferramenta que passa a revelar conteúdos

sobre o planeta (como o que significa o verbo dançar ou o que é um oceano).

Porém, o modo de apresentação é uma explosão de mídias. Nada de textos

corridos e explicativos. A tela, tal qual uma de cinema, combina imagens e sons.

Uma versão enciclopédia–espetáculo, digna de uma sociedade sempre pronta a

satisfazer as necessidades de um consumidor apressado. Através de uma

compilação de imagens e sons é possível ilustrar qualquer termo que se queira

pesquisar. A tecnologia, nesse sentido, explora elementos educacionais que

apresentam-se em compasso com a contemporaneidade.

A mesma tecnologia que informa, também auxilia. Isto é visível quando

algum habitante da Axion sofre qualquer tipo de acidente (como cair de uma

cadeira comandada eletronicamente). O dano é consertado em instantes.

“Robôs-hospitais” estão sempre em alerta para salvar e ajudar, já que na nave,

qualquer tipo de contato físico entre os humanos deve ser evitado. Uma

atividade simples como cair e levantar do chão já não é tão simples assim. Em

WALL-E, os aparatos eletrônicos passam a substituir as atividades físicas

corporais, e, portanto, o caminhar, o cair, o levantar e até mesmo o andar se

tornam atividades complexas para os tripulantes e passageiros, todos obesos e

destituídos de agilidade e com as habilidades motoras totalmente prejudicadas.

Os inúmeros estímulos da sociedade (visuais, auditivos, palatáveis)

produzem uma coletividade ambígua. Ao mesmo tempo em que carregam

consigo um copo gigante de refrigerante, também se tem na mão um estojo de

maquiagem. Uma caneca de milk-shake na mão direita e o novo relógio na

esquerda. Uma comunidade como a desses habitantes acaba produzindo

consumidores obesos, mas também consumidores de lojas e institutos de

beleza. Aqui estão unidas as facilidades tecnológicas e as possibilidades de

inserção no mundo dos socialmente aceitos através do consumo de cores,

símbolos e signos. Consumidores sempre prontos para ingerir e jogar fora, usar

e descartar.

4 Algumas considerações

É com base nas análises do sociólogo Zygmunt Bauman que norteamos

as discussões deste artigo. Os conceitos relacionados à existência de uma vida

para o consumo (que acaba por transformar também as pessoas em

mercadorias) nos oferece subsídios para a análise da animação WALL-E.

Concebendo a obra como um artefato cultural, podem ser estabelecidas

inúmeras relações interligadas ao campo da educação. Um cuidado para com o

corpo, o uso indevido dos recursos naturais do planeta, o consumo e o descarte

contínuo, a impessoalidade das relações afetivas, o uso das tecnologias a

serviço da sociedade. Todas essas abordagens permitem-nos enxergar o filme

de forma critica.

Na sociedade de consumidores a oferta de objetos, sentimentos e

relacionamentos são vertiginosos e a quantidade de opções acaba por provocar

um mal-estar. Na realidade, o consumidor nunca tem a certeza de ter feito a

escolha certa, ou a mais próxima de lhe oferecer o máximo de satisfação. Aliás,

a satisfação das necessidades não é objetivo desta sociedade de consumidores.

Segundo Bauman:

Os consumidores podem estar correndo atrás de sensações – táteis, visuais ou olfativas – agradáveis, ou atrás de delícias do paladar prometidas pelos objetos coloridos e brilhantes expostos nas prateleiras dos supermercados, ou atrás das sensações mais profundas e reconfortantes prometidas por um conselheiro especializado. (Bauman, 2008: 95)

O descarte, portanto é inevitável. Os consumidores já não se sentem

culpados por destinarem algo para o lixo uma vez que os objetos se apresentam

destinadas ao uso momentâneo. Acabam se conformando com a vida curta dos

artefatos.

Estar inserido ou ainda fazer parte desta sociedade significa poder

consumir o que o mercado oferece. Porém, isto não significa que devemos

ignorar os cuidados com o planeta, a saúde, as relações pessoais e o uso das

tecnologias como salvo conduto da vida em sociedade.

Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, Zahar, 2001. . Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. . A sociedade individualizada – vidas contadas e histórias vividas. Trad. José Gradel. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. COSTA, Marisa Vorraber. O consumismo na sociedade de consumidores. A Página da Educação. Ano XVII, n. 183, novembro de 2008, p. 7. . Educar-se na sociedade de consumidores. A Página da Educação. Ano XVII, n. 184, dezembro de 2008, p. 7. HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural. Trad. Adail Sobral e Maria Estela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1993. ROCHA, Everardo; ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de; EUGENIO, Fernanda (orgs.). Comunicação, consumo e espaço urbano: novas sensibilidades nas culturas jovens. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006.