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MONTEIRO LOBATO EM HQ: NOVAS FORMAS DE LER A LIJ NA CONTEMPORANEIDADE PATRÍCIA KÁTIA DA COSTA PINA (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC). Resumo A presente proposta de Comunicação Oral reflete sobre os desafios que cercam a leitura de obras de literatura para crianças e jovens na contemporaneidade, associando–a às práticas escolares, em face das novas, diferentes e sedutoras mídias que nos cercam, a partir da comparação entre a edição de Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato e a edição em quadrinhos dessa obra, elaborados pela equipe da Editora Globo. A preocupação deste trabalho é o lugar que o texto literário ocupa no cotidiano de jovens e adultos hoje, bem como as estratégias autorais, editoriais e/ou docentes para torná–lo prazeroso e competitivo, em relação aos games, à TV, ao cinema etc. O objetivo, aqui, é investigar como a leitura do texto literário, publicado em outras formas de mídia, enfatiza o lúdico, podendo funcionar como forma de apreensão do mundo e construção simbólica de identidades. Para tanto, discutir–se–ão as teorias de Scholes, Iser, Huizinga, bem como as afirmações de Yunes, Pondé, Lajolo, entre outros, no sentido de se definir o ato da leitura como ação lúdica, como jogo, que envolve uma interação autor/editor–texto/imagem–leitor e que prevê inúmeras possibilidades de mediação. Como resultado, pretendo provocar um fecundo debate sobre as múltiplas maneiras de levar o texto literário ao leitor, dessacralizando o livro e realocando mídias historicamente pouco conceituadas, como os quadrinhos. Dessa forma, ampliam–se os conceitos de leitura, de literatura e de cultura, uma vez que são tomados em constante interação. Palavras-chave: LIJ, Leitura, HQ. A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder. Márcia Abreu, "Prefácios: Percursos da Leitura", p.15 A leitura, pode-se inferir a partir do fragmento posto em epígrafe, é fruto de um confronto entre a obra e o leitor, entre o imaginário da obra e o de seus interlocutores. Na verdade, a leitura é o próprio confronto. Esse processo tenso não tem nada de "inocente": autores, editores e demais mediadores do livro e de outros bens culturais impressos desenham simbolicamente seus "alvos" - os leitores -, introjetando-os, de diversas maneiras, nas páginas que lhes são destinadas. O jogo de "sedução" construído pelas variadas instâncias autorais e editoriais que circundam o impresso é sempre lançado sobre o público de maneira estratégica. As armadilhas do texto/livro/revista/jornal são construídas de forma a interagir com o segmento do leitorado que as citadas instâncias de poder desejam transformar em consumidores do produto oferecido.

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MONTEIRO LOBATO EM HQ: NOVAS FORMAS DE LER A LIJ NA CONTEMPORANEIDADE PATRÍCIA KÁTIA DA COSTA PINA (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC). Resumo A presente proposta de Comunicação Oral reflete sobre os desafios que cercam a leitura de obras de literatura para crianças e jovens na contemporaneidade, associando–a às práticas escolares, em face das novas, diferentes e sedutoras mídias que nos cercam, a partir da comparação entre a edição de Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato e a edição em quadrinhos dessa obra, elaborados pela equipe da Editora Globo. A preocupação deste trabalho é o lugar que o texto literário ocupa no cotidiano de jovens e adultos hoje, bem como as estratégias autorais, editoriais e/ou docentes para torná–lo prazeroso e competitivo, em relação aos games, à TV, ao cinema etc. O objetivo, aqui, é investigar como a leitura do texto literário, publicado em outras formas de mídia, enfatiza o lúdico, podendo funcionar como forma de apreensão do mundo e construção simbólica de identidades. Para tanto, discutir–se–ão as teorias de Scholes, Iser, Huizinga, bem como as afirmações de Yunes, Pondé, Lajolo, entre outros, no sentido de se definir o ato da leitura como ação lúdica, como jogo, que envolve uma interação autor/editor–texto/imagem–leitor e que prevê inúmeras possibilidades de mediação. Como resultado, pretendo provocar um fecundo debate sobre as múltiplas maneiras de levar o texto literário ao leitor, dessacralizando o livro e realocando mídias historicamente pouco conceituadas, como os quadrinhos. Dessa forma, ampliam–se os conceitos de leitura, de literatura e de cultura, uma vez que são tomados em constante interação. Palavras-chave: LIJ, Leitura, HQ.

A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder.

Márcia Abreu, "Prefácios: Percursos da Leitura", p.15

A leitura, pode-se inferir a partir do fragmento posto em epígrafe, é fruto de um confronto entre a obra e o leitor, entre o imaginário da obra e o de seus interlocutores. Na verdade, a leitura é o próprio confronto. Esse processo tenso não tem nada de "inocente": autores, editores e demais mediadores do livro e de outros bens culturais impressos desenham simbolicamente seus "alvos" - os leitores -, introjetando-os, de diversas maneiras, nas páginas que lhes são destinadas.

O jogo de "sedução" construído pelas variadas instâncias autorais e editoriais que circundam o impresso é sempre lançado sobre o público de maneira estratégica. As armadilhas do texto/livro/revista/jornal são construídas de forma a interagir com o segmento do leitorado que as citadas instâncias de poder desejam transformar em consumidores do produto oferecido.

Esta Comunicação se propõe a estudar como a adaptação do livro Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato, para HQ, suporte cuja linguagem híbrida joga com as habilidades do jovem leitor contemporâneo, pode funcionar como instrumento de formação do gosto pela leitura literária, ou seja, como a referida adaptação pode "virar o jogo" do descaso pelo impresso.

O Dom Quixote das crianças da Editora Globo é uma apropriação do livro lobatiano, o qual, por sua vez, é uma apropriação do livro de Cervantes. Quando aborda questões relativas ao processo de apropriação dos textos impressos, Roger Chartier aponta a presença de instruções que funcionam como...

...uma dupla estratégia de escrita: inscrever no texto as convenções, sociais ou literárias, que permitirão a sua sinalização, classificação e compreensão; empregar toda uma panóplia de técnicas, narrativas ou poéticas, que, como uma maquinaria, deverão produzir efeitos obrigatórios, garantindo a boa leitura. Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que esteja. (CHARTIER, 1996: 95-96)

Se, do lado do autor, há dispositivos textuais inscritos na obra impressa para servirem de guia ao leitor, do lado do editor, há instruções que também se fazem presentes: ilustrações, diagramação, divisão dos textos e seções são fatores que dirigem o olhar sobre o impresso. Essas estratégias de escrita e publicação balizam o processo de leitura, ainda que não o constranjam, mas direcionam possíveis apropriações, tanto por parte de leitores com vasto repertório, como por parte dos neófitos das letras impressas.

As adaptações constituem apropriações que cristalizam determinadas formas de interação do escritor/editor com o texto-fonte. Isso significa que as adaptações trazem sentidos e valores agregados ao texto original, os quais o atualizam e transformam-no em um novo texto. O adaptador é uma espécie de "consumidor" primeiro do texto e, como afirma Martín-Barbero, em Dos meios às mediações (2003: 302), o consumo é o lugar de uma luta que implica mais que a posse do objeto, implica seus usos sociais e as competências culturais com que objeto e consumidor interagem.

A apropriação lobatiana conta com uma cúmplice poderosa: Dona Benta, a encantadora avó de Narizinho e Pedrinho, que toma para si a dificultosa tarefa de educar os netos brincando, exatamente nos períodos de férias de Pedrinho, menino urbano, que escapole poucos dias por ano para o Sítio da avó.

Wolfgang Iser afirma que "Toda interpretación transforma algo em outra cosa."(2005: 29) Lobato lê Cervantes e leva sua leitura, isto é, sua interpretação, na voz de Dona Benta, para seus pequenos leitores. Nesse processo, ele transforma o texto-fonte em outro texto. O mesmo ocorre na adaptação da Editora Globo, o que é potencializado pelo jogo entre verbal e não-verbal próprio das HQs.

No início do Dom Quixote das crianças, Emília, personagem mais irrequieta da ficção infantil de Monteiro Lobato, carrega o Visconde de Sabugosa para mais uma

de suas peraltices. Dona Benta arrumava a estante de livros, colocando nas prateleiras mais baixas os que supunha - com base em critérios de valor não explicitados, mas facilmente identificáveis como aqueles que regem a formação do cânone literário ocidental - serem de melhor compreensão para os meninos e, nas mais altas, aqueles que leriam quando tivessem habilidades para isso. Essa arrumação da estante parece simbolizar os níveis gradativos de formação do "bom leitor". A boneca, insubordinada e teimosa, quer exatamente os que estão nas prateleiras mais altas.

Essa ordem dos livros no Sítio me parece representar o poder do impresso, isto é, a força da palavra concreta sobre aqueles que estão além da página. Insatisfeita, Emília convoca, então, o Visconde para auxiliá-la numa desobediência: ela quer ajuda para pegar uns volumes grossos e grandes:

Emília estava na sala de Dona Benta, mexendo nos livros. Seu gosto era descobrir novidades - livros de figura. Mas como fosse muito pequenina, só alcançava os da prateleira debaixo. Para alcançar os da segunda, tinha de trepar numa cadeira. E os da terceira e quarta, esses ela via com os olhos e lambia com a testa. Por isso mesmo eram os que mais a interessavam. Sobretudo uns enormes. (LOBATO, 1967: 12)

Emília não aceita apenas contemplar a obra, vê-la à distância, "lambê-la com a testa" - para ela, a simbologia da formação do "bom leitor" não funciona, ela desarranja essa ordem superior e questiona os valores que lhe dão forma e substância: acabou tomando o volume que lhe interessava, com o socorro do sabugo de milho falante. Este, no entanto, foi quem mais sofreu com a desordem instalada pela boneca que, ao pegar Dom Quixote, deixa-o cair e esmaga o Visconde. O desejo impositivo de Emília quase custa a vida de seu "sogro". Tudo por querer ler aquilo que lhe estava vetado, por um censor abstrato e autoritário.

Dona Benta, então, na tentativa de saciar a sua curiosidade e a dos meninos, se propõe a fazer uma leitura seletiva da obra, na verdade, a fazer uma interpretação das histórias de D. Quixote e Sancho Pança. Ela conta os episódios que julga mais interessantes e adequados ao tipo de repertório e de expectativas que seus netos e os bonecos teriam - ela reduplica o processo de censura e controle da leitura observado na arrumação da estante.

A mediação necessária de Dona Benta enfatiza a distância que o mundo da escrita e do impresso ainda guarda em relação ao auditório composto pelos meninos, pela cozinheira e pelos bonecos. Talvez de forma bastante crítica, Lobato metaforize, aí, a ação dos escritores e demais intelectuais, no que tange à divulgação da cultura impressa: ele facilita o acesso à obra. Essa marca da adaptação é responsável pelo preconceito que a cerca. Mas, por outro lado, essa facilitação do acesso ao texto pode funcionar como instrumento de formação do gosto pela leitura literária. Amaya Prado, ao estudar o livro lobatiano aqui enfocado, afirma:

Lobato elaborou suas adaptações de modo que ficassem fortemente vinculadas, amalgamadas, à produção de obras originais. Para tanto, lançou mão de dois importantes artifícios. Em primeiro lugar, há a configuração de um universo

narrativo facilitador da inserção de outras histórias e da construção de uma instância narrativa propícia à apresentação de outros textos. É a criação do Sítio do Picapau Amarelo como o local por onde transitam livremente as mais diversas personagens. Em segundo lugar, há a participação de Dona Benta como leitora que se torna narradora-adaptadora, mediando as leituras de seus netos e, por extensão, dos leitores em geral.(PRADO, 2008: 331)

No Brasil do primeiro novecentos, ainda eram poucos os que podiam ter em mãos os grandes livros da humanidade. Dona Benta tinha, era uma senhora culta, versada em diferentes assuntos. E esse saber erudito dava-lhe uma autoridade mascarada sobre os netos e os demais habitantes das páginas lobatianas, bem como sobre a criança que se debruçasse sobre a obra em questão.

Se, por um lado, ela relativiza a simbólica arrumação da estante e cede aos desejos dos netos e da boneca, ao adaptar o livro para seu auditório, por outro lado, coloca todos em "seus lugares", apontando a necessidade da mediação, por não terem os interlocutores o repertório que lhes permitiria compreender o livro e ressaltando, de forma indireta, a relevância de uma assimetria entre leitores comuns, leitores "preparados" e obra, implicitamente definindo o ato da leitura como uma atividade adequada apenas a iniciados.

A vantagem é que sua intervenção é lúdica e interativa: Dona Benta interpreta, na verdade, o que lê. Essa apropriação/adaptação é passada aos netos e aos demais ouvintes. Embora a associação entre leitura, interpretação e poder fique clara, através das intervenções das crianças e das diferentes formas de apropriação das histórias representadas no livro, ressalta nesse processo a viabilização de certa liberdade imaginária.

Alessandra El Far, em O livro e a leitura no Brasil, aponta que as maneiras de ler e os tipos e objetos de leitura são práticas culturais que respondem a provocações históricas. Segundo ela, "Se alguns tomam um livro entre as mãos para melhor conhecer o mundo ao seu redor, (...), muitos entregam-se ao prazer da leitura por diversão ou simplesmente pelo gosto de ver impresso no papel um arranjo ilimitado de tipos gráficos."(EL FAR, 2006: 64) Essas diferentes maneiras de apropriação de cada produto impresso resultam de um processo de interlocução não apenas com o texto, mas com seu suporte também.

Muito se discute ainda hoje no Brasil, e fora do Brasil, a questão da pouca ou nenhuma leitura literária que compõe o repertório das crianças e dos jovens, acusando-se a TV, a HQ, o cinema, a internet de serem os vilões malvados que corrompem o gosto de nossos pequenos e potenciais "grandes" leitores. Há, implícita nessa discussão, uma gama enorme de valores seletivos e hierarquizantes, que excluem do campo literário as novelas, as minisséries, os filmes, as narrativas híbridas das histórias em quadrinhos, os blogs, os chats etc. Essas vozes preconceituosas que se multiplicam pelas famílias, igrejas, escolas e universidades, definem o "leitor" como aquele que lê da lírica trovadoresca à obra de Proust e Joyce, passando por Cervantes, é claro, e pela Bíblia Sagrada, podendo, após a leitura, encetar edificantes discussões sobre o sentido de cada texto. Tal forma de definir "leitor" e "leitura" arrasta-se há alguns séculos.

O início do século XX brasileiro, com suas incessantes rupturas com as tradições, aproximou-se de algumas práticas culturais não-eruditas, desenvolvendo um processo iniciado por alguns estudiosos oitocentistas da cultura, como Sylvio Romero. Foi também nesse início de século XX, em suas primeiras décadas, que o

irrequieto intelectual de Taubaté resolveu fazer do Brasil um país de livros e de homens - e mulheres - leitores (as). A princípio, Monteiro Lobato, esse jovem empreendedor das Letras, interagiu com o público adulto, assumindo, a seguir a feliz tarefa de formar um público consumidor do impresso literário entre as crianças e os jovens.

Lobato tem uma visão "moderna" do livro: para ele, trata-se de uma mercadoria fundamental para o progresso da nação. Sua visão do livro, do impresso, é típica desse Brasil que se capitalizava, que se tecnologizava, no início do século XX. Como empresário que dependia duplamente do mercado, Lobato parece se propor a criar grupos específicos e fiéis de consumidores para os bens culturais que produzia, como afirma a Godofredo Rangel, em maio de 1926:

Ando com idéias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. [...]. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar... (1961: 293)

Quando esse moço de Taubaté afirma que quer fazer com que as crianças morem nos livros, como ele próprio o fez em sua infância, na verdade, ele está se propondo a produzir uma obra infantil que prime pela provocação ao imaginário infantil e juvenil, que se sustente no incentivo à criatividade da criança e do adolescente que se aventurar a invadir as páginas por ele criadas e editadas.

Monteiro Lobato ressentia-se das traduções de obras clássicas que circulavam por aqui e dois de seus projetos editoriais eram publicar boas traduções e boas adaptações para crianças. É o que ele afirma a Godofredo Rangel, em carta de 11 de janeiro de 1925: "Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos de refazer tudo isso - abrasileirar a linguagem."(1961: 275) Em março, ele convida o amigo para participar dessa empreitada:

Andas com tempo disponível? Estou precisando de um D. Quixote para crianças, mais correntio e mais em língua da terra que as edições do Garnier e dos portugueses. Preciso do D. Quixote, do Gulliver, do Robinson, do diabo! Posso mandar serviço? É uma distração e ganhas uns cobres. Quanta coisa tenho vontade de fazer e não posso!(1961: 276)

Fazer boas traduções/adaptações para crianças é uma ação nada "inocente": se um pequeno leitor toma o volume de Cervantes e lê por sua própria conta, sendo atravessado somente pela tradução, vai negociar com o texto, no processo de construção de significados, tendo como parâmetros seu repertório, suas expectativas - isso implica afirmar que a criança vai insinuar-se na obra de acordo suas possibilidades.

Por outro lado, ao ler uma adaptação da obra, ela não estará dialogando com o Quixote de Cervantes, nem com o Quixote do tradutor (que não tem tanta liberdade assim em sua ação), mas com o Quixote do adaptador, que introjetará na

obra seus valores, seu mundo, sua percepção da vida. É muito mais que "abrasileirar a linguagem": é construir um outro Quixote, jogando com o texto-base, de maneira a dar conta da perspectiva desse novo construtor.

Johan Huizinga trabalha com a importância do jogo na vida social:

As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza. (HUIZINGA, 2001: 7)

Para fazer as crianças morarem nos livros, Lobato precisaria jogar com elas: ele cria, então, um mundo à parte, um mundo mágico, composto de aventuras fantásticas. Lendo a obra infantil lobatiana pelo conceito de jogo trazido por Huizinga, é possível pensar que a tensão que preside o jogo é que funcionaria como instrumento de provocação e de "sedução" dos pequenos leitores. Essa tensão, no âmbito do literário, preside o ato interpretativo, ou melhor, o ato da leitura, o que me remete à epígrafe desta Comunicação.

A Editora Globo, em 2007, desdobra a ação lobatiana, publicando Monteiro Lobato em quadrinhos: Dom Quixote das crianças. Trata-se de uma edição que usa recursos variados. A capa traz a imagem do Dom Quixote, representado pelo Visconde de Sabugosa, ocupando todo o lado direito, sendo o lado esquerdo destinado a alguns dos quadros que marcam as partes da história escolhidas pelos editores para comporem o volume.

A apresentação dessa adaptação é feita por Emília, "vestida" de Dom Quixote, com uma bacia na cabeça e uma vassoura na mão. Sorridente, a bonequinha de macela começa apelando para o caráter aventureiro e aventuresco das narrativas que envolvem as personagens da obra lobatiana. A seguir ela dá a motivação da empreitada da Editora Globo: "Claro que eu não podia deixar vocês de fora dessa. Foi por isso que fizemos este livro, para que todo mundo pudesse conhecer o grande cavaleiro andante."(LOBATO, 2007: 3)

"Todo mundo" deve ler, "todo mundo" deve conhecer Lobato e Cervantes. "Todo mundo" deve aprender a gostar de ler. Na mesma página, logo abaixo, Emília pergunta: "Ficou com sede de aventura? Então, está no lugar certo!"(Ibidem). O livro de HQ é o lugar certo, talvez aquele em que as crianças de hoje poderão morar, como as de ontem moraram nos livros de Monteiro Lobato. Segundo Nelyse Salzedas e Pedro Padovini,

O texto de Lobato foi adaptado primeiramente no período inaugural da televisão brasileira e, desde então, suas narrativas são editadas sob novos contextos históricos e sociais, com intervalos entre uma produção e outra. Em todos os casos de edição, abrem-se novas audiências, que determinam novas interpretações. (SALZEDAS e PADOVINI, 2008: 247)

Trazendo a reflexão dos pesquisadores para o campo da produção impressa atual, com as Histórias em Quadrinhos abrem-se novos modos e tipos de leitura da obra lobatiana, talvez não tão amplos quanto os abertos pela TV, que chega aos mais distantes vilarejos do país, mas, ainda assim, os quadrinhos agregam ao texto-fonte novos segmentos de consumidores.

DJota Carvalho, em A educação está no gibi, afirma:

Seja pela atraente mistura de texto e desenho, seja pelos diversos tipos de histórias ou, ainda, por heróis (e super-heróis) inesquecíveis, os quadrinhos sempre foram uma mídia sedutora para o público infanto-juvenil. Assim, naturalmente, as HQs são também um instrumento potencial para educar. (CARVALHO, 2006: 31)

A adaptação criada pela Editora Globo não traz exatamente um super-herói, mas ao associar a imagem de Dom Quixote à do Visconde de Sabugosa (anexo1), apela para a memória da criança que viu a série de TV e para seu imaginário, construindo um herói tão ou mais cativante que o de Cervantes e o de Lobato. A mistura do texto e do desenho, no volume em foco, é também muito sugestiva.

A mediação de Dona Benta, por exemplo, é representada por balões quadrados (anexo2), que se excluem da ação representada pelas personagens da obra lobatiana, as quais, por seu turno, encarnam as personagens de Cervantes.

Como sugere Núbio Delanne Ferraz Mafra, "O enquadramento, o lugar e o olhar de quem narra são fundamentais numa HQ."(MAFRA, 2003: 98) A primeira imagem da história adaptada pela Editora Globo corresponde à primeira ação da narrativa lobatiana (anexo 3), mostrando Emília e o Visconde de Sabugosa na empreitada de pegar o grosso volume de Cervantes no alto da estante de Dona Benta. Há, no entanto, nessa imagem, detalhes que agregam valores preciosos ao texto-fonte.

A imagem é frontal, o olhar do narrador apresenta dois planos: o da estante, ao fundo, e o das personagens lobatianas, em primeiro lugar. Interessa-me enfocar, aqui, o plano de fundo. São desenhadas quatro prateleiras da estante de Dona Benta, as de baixo trazem os livros coloridos em tons de bege, marrom, azul, com alguns títulos das lombadas em destaque, como Pinóquio, Cinderela, Oliver Twist, Rapunzel, entre outros. Seriam, conforme minha leitura da obra lobatiana, os livros adequados às crianças.

As prateleiras de cima trazem livros pintados em cores mais fortes e com títulos mais nítidos, como Odisséia, A ilha do tesouro, Os três mosqueteiros etc. Vale ressaltar que o título Cinderela se repete, em outra cor e meio oculto pelos cabelos de Emília. A última prateleira é muito significativa: os livros são coloridos em

vermelho, azul escuro, marrom escuro, as letras das lombadas estão em amarelo ou branco, ganhando grande destaque.

Embora plano de fundo, a imagem da estante parece desenhar uma espécie de cânone ocidental para a formação do "bom leitor". Estranho isso, se pensarmos como os preconceituosos estudiosos do impresso, que relegam as HQs ao domínio da marginalidade. Mas não é estranho, se pensarmos no propósito lobatiano de construir um país de cidadãos leitores, tendo a criança como base dessa sociedade desejada. A Editora Globo mostra, aí, que "todo mundo" pode subir os degraus da escadinha da Emília...

Como aponta Jean Foucambert, "Ler é um comportamento integrado aos diversos aspectos da vida e que é aprendido através deles..."(FOUCAMBERT, 2008: 154). Para ser leitora, a criança - e mesmo o adulto - não tem que apenas ler o livro, ela pode ler gibis, cordel, jornal etc. Ler é parte da vida contemporânea. Ou, pelo menos, pode vir a ser. Inclusive ler literatura, qualquer que seja seu suporte.

A leitura é uma atividade criativa, criadora, aberta. Ela...

[...] tem duas faces e orienta-se para duas direcções distintas, uma das quais visa a fonte e contexto original dos sinais que se decifram, baseando-se a outra na situação textual da pessoa que procede à leitura. Pelo facto de a leitura constituir sempre matéria de, pelo menos, dois tempos, dois locais e duas consciências, a interpretação mantém-se infinitamente fascinante, difícil e essencial.(SCHOLES, 1991: 23)

Assim, a leitura é centrípeta e centrífuga, implica compreender e incorporar. Ler implica interpretar e criticar. As associações que estabelecemos ao ler nos revelam a nós mesmos, nos mostram quem somos no e a partir do texto lido.

Na adaptação do livro de Monteiro Lobato para quadrinhos, a Editora Globo introjetou em cada página o pequeno leitor contemporâneo, jogando com suas expectativas e com seu repertório em construção, sem abandonar o projeto do escritor de Taubaté - ele mostra à criança quem ela é na HQ e a partir da HQ. A leitura desse volume de HQ me parece estabelecer um saudável confronto entre a literatura, os seus diferentes suportes e o leitorado de agora, imerso num mundo que transita entre a concretude do impresso e a virtualidade da internet. As novas mídias, dentre as quais a TV, o cinema, os quadrinhos, entram no circuito da formação do gosto pela leitura literária construindo um espaço paradoxal, mas eficiente. Os quadrinhos invadem a criança e deixam-se invadir por ela, estabelecendo caminhos alternativos, lúdicos, de ler a ficção, o mundo e a si mesmo no mundo.

Referências Bibliográficas:

ABREU, Márcia. Prefácios: Percursos da Leitura. In.: _____ (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas/São Paulo: Mercado das Letras/Associação de Leitura do Brasil/ FAPESP, 2002.p.9-17

CARVALHO, DJota. A educação está no gibi. Campinas: Papirus, 2006.

CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p.77-106.

FOUCAMBERT, Jean. Modos de ser leitor: aprendizagem e ensino da leitura no ensino fundamental. Curitiba: Editora UFPR, 2008.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução João Paulo Monteiro. 5ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.

ISER, Wolfgang. Rutas de la interpretación. Traducción de Ricardo Rubio Ruiz. México: FCE, 2005.

LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 10ed. São Paulo: Brasiliense, 1961. 2o Tomo.

LOBATO, Monteiro. D. Quixote das crianças.9ed. São Paulo: Brasiliense, 1967.

LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das crianças. São Paulo: Globo, 2007.

MAFRA, Núbio Delanne Ferraz. Leituras à revelia da escola. Londrina: EDUEL, 2003.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. 2ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

PRADO, Amaya O. M. de Almeida. Dom Quixote das crianças e de Lobato. In.: LAJOLO, Marisa e CECCANTINI, João Luís. Monteiro Lobato livro a livro:obra infantil. São Paulo: EdUNESP; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p.325-338.

SALZEDAS, Nelyse Ap. Melro e PADOVINI, Pedro Luiz. Presença de Lobato: a Obra de Arte e o Consumo das Massas. In.: CECCANTINI, João Luís e MARTHA, Alice Áurea Penteado (orgs.). Monteiro Lobato e o leitor de hoje. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2008. p. 242-251.

SCHOLES, Robert. Protocolos de leitura. Tradução de Lígia Guterres. Lisboa: Edições 70, 1991.