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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Carlos Roberto Ferreira
HOMEM DO BARRANCO:
Pesquisa e Dramaturgia na Cena Ribeirinha
Cuiabá – Mato Grosso
2014
Carlos Roberto Ferreira
HOMEM DO BARRANCO:
Pesquisa e Dramaturgia na Cena Ribeirinha
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT,
como requisito para a obtenção do título de Mestre,
sob a orientação da Profª. Drª. Maria Thereza de
Oliveira Azevedo.
Cuiabá – Mato Grosso
2014
À memória da minha avó materna, amiga e mãe do
coração Irene Roberta Bonfim, oleira da sabedoria
popular, que soube modelar com a argila da
humildade a minha alfabetização para a vida.
À memória de Dona Joana Maria da Silva, matriarca
do barro na Comunidade de São Gonçalo Beira Rio
e minha orientadora nos ensinamentos da cultura
popular.
À memória de Sr. Clínio Moura e de Dona Biuína
Moura, casal de mestres artesãos e professores na
minha orientação no rito de passagem na manufatura
da cerâmica.
AGRADECIMENTOS
Carta de São Gonçalo aos Apóstolos do rio Cuiabá.
Comunidade de Engordador, Várzea Grande, 12 de janeiro de 2014.
Povo de São Gonçalo Beira Rio, irmãos do barro e amigos da vida, bom dia!
Escrevo-lhes esta carta nesta manhã de domingo, com a pena do pertencimento e com tintas
do tauá para dizer que hoje estou aqui, do lado de cá; na margem direita do rio Cuiabá, na
Comunidade de Engordador, no município vizinho de Várzea Grande, onde o barro é mais
escuro, assim como as águas do rio que nos separam por muito pouco tempo.
Vim observar bem de frente, o povoado onde vocês habitam e refletir sobre a
importância dessa gente ribeirinha, inspirando por tantos anos, diversas tarefas vitoriosas na
minha vida.
Estou aqui, com a força e a permissão de São Gonçalo, para dizer a todos vocês que
essa dissertação não é para mim. É pra vocês: pescadores, artesãos da cerâmica – oleiros da
vida; ceramistas, violeiros e cantadores, cururueiros e tocadores, dançarinos do Siriri, festeiros
de São Gonçalo, donas-de-casa, benzedeiras – curandeiros do pertencimento, enfim; esse
trabalho é para o povo de São Gonçalo, os Apóstolos do rio Cuiabá.
Quero lhes oferecer este humilde trabalho e dizer que quando aí cheguei, sem saber
quem eu era, me abraçaram; sem perguntar o meu nome, me convidaram para entrar em suas
casas; sem a malícia de outros grupos, me oferecem água, café e um mocho pra sentar e
quando eu já estava quase querendo ir embora, me convidaram pra sentar à mesa e alimentar
com vocês. Foi quando começaram a me contar as suas histórias, a falar das suas vidas na luta
com o barro e das águas das enchentes que já tinham visto passar por dentro das suas casas,
por muitos e muitos anos.
Ensinaram-me a dançar pra São Gonçalo, a reverenciar ao Santo e às coisas dai. E
quando eu me senti com as mãos desocupadas, bobas de sem jeito, colocaram uma porção de
argila em minhas mãos e me mostram que o Santo é de barro, mas que o amor e a força do
povoado ribeirinho são fortes como o barranco, o arrimo das águas que margeia o rio.
Nesse povoado, fui festeiro, visitante, pesquisador, aprendiz de artesão; brinquei,
cantei, dancei Siriri e ao som do raspar dos pratos esmaltados e da Viola de Cocho nas
funções do Cururu, assisti as bandeiras dos Santos sendo levantadas em mastros enfeitados,
pelos braços fortes dos devotos, em sentido de amor e de fé.
A vela acesa no altar enfeitado pro Santo, flores de seda e crepom, maços de fitas
coloridas, a cortina de chita bem passada, a toalha branca bordada sobre a mesa dos licores e o
movimento das luminárias e bandeirolas tinham como limite, o céu. O colorido desse cenário
atraía as crianças que brincavam divertidamente sob o luar e o burburinho das pessoas do
povoado demonstravam a alegria em receber os convidados.
Era a festa de São Gonçalo. Viva o Santo padroeiro!
Hoje entendo que o povoado ribeirinho não escreve à caneta sobre papéis; mas
relatam, contam e vivem as suas histórias de vida e de amor às suas tradições realizadas no
cotidiano, à margem do barranco e do rio.
Agradeço a Deus por ter me permitido a tocar no barro, sentir a sua força e energia e
a viver essa experiência com o povo de São Gonçalo Beira Rio.
À Professora Maria Thereza de Oliveira Azevedo, pela paciência com que me
orientou a sovar e a manufaturar esse barro, pra não esquecê-lo no forno e não deixar passar
do ponto na hora da queima.
À minha mãe Josefa Roberto Ferreira; a minha filha Nayara Roberto Martins Ferreira
e familiares por compreender a minha ausência, enquanto me dedicava a este trabalho.
Portanto, Apóstolos do rio; deixo aqui o meu abraço carinhoso e demorado; afagado
como se molda a cerâmica depois das chuvas para resistir à queima com lenhas de angico.
Quero lhes dizer também que, por tantos ensinamentos que recebi de vocês, me vem
uma grande interrogação: não sei se agradeço pelo muito que aprendi ou se peço desculpas
pelo pouco que lhes ofereço. Mas de uma coisa eu tenho certeza, sou ousado em me
considerar, um filho do povoado de São Gonçalo Beira Rio.
Enquanto a cerâmica seca para ser polida e queimada, vou me despedindo.
Até a próxima temporada das chuvas!
Até a próxima pesquisa, quem sabe!
Carlos Roberto Ferreira, em nome de São Gonçalo.
RESUMO
Processo de reescritura do poema dramático Homem do Barranco, de Carlos Roberto
Ferreira, cuja imagem e local de investigação encontraram apoio na comunidade de São
Gonçalo Beira Rio em Cuiabá, Mato Grosso. A reescritura está respaldada por um olhar sobre
o bairro no tempo presente, com registros das mudanças nele ocorridas nas duas últimas
décadas e por estudos sobre o teatro contemporâneo. A pesquisa e a dramaturgia realizadas
para a primeira encenação estão impressas no resultado da experiência de uma convivência
com o povoado - trabalhada a partir do barro, do pertencimento e da memória coletiva. O
texto reescrito Arrimo das Águas tem como proposta uma encenação performática, revelando-
o simultaneamente, para o tempo presente, como arrimo assolado, fluxo e contra-fluxo das
mudanças da imagem sociocultural e ambiental do bairro de São Gonçalo Beira Rio, na
atualidade.
Palavras-chave: Homem do Barranco. São Gonçalo Beira Rio. Reescritura. Dramaturgia.
ABSTRACT
Rewrite the dramatic poem man Barranco, Carlos Roberto Ferreira, whose image
process and site investigation found support in the community of São Gonçalo Beira Rio
Cuiaba, Mato Grosso. The rewriting is supported by a look at the neighborhood in this time,
with records of changes in the last two decades and studies of contemporary theater in it.
Research and drama performed for the first scenario are printed on the result of the experience
of living with the village - crafted from clay, of belonging and collective memory. The text
rewritten Arrimo Waters's proposal is staging a performance, revealing it simultaneously to
the present time, plagued as breadwinner, flow and counter-flow changes of sociocultural and
environmental image of São Gonçalo Riverside neighborhood today.
Keywords: Man of Barranco. Beira Rio Sao Goncalo Rewrite. Dramaturgy.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. O pesquisador Carlos Roberto Ferreira com dona Joana Maria da Silva em sua casa
na Comunidade de São Gonçalo Beira Rio, Cuiabá – MT, 1994.
(Foto: Lourivaldo Rodrigues de Amorim)................................................................49
Figura 2. Carlos Roberto Ferreira e a ceramista Domingas Leonor da Silva – filha de dona
Joana Maria da Silva em laboratório teatral e fotográfico às margens do rio Cuiabá,
São Gonçalo Beira Rio, Cuiabá – MT, 1994.
(Foto: Lourivaldo Rodrigues de Amorim)................................................................50
Figura 3. O ator Carlos Ferreira com a artesã Domingas Leonor da Silva, laboratório teatral,
São Gonçalo Beira Rio, Cuiabá – MT, 1994.
(Foto: Lourivaldo Rodrigues de Amorim)................................................................52
Figura 4. O ator Carlos Ferreira em cena da primeira montagem da peça Homem do Barranco,
Cuiabá – MT, 1995.
(Foto: Nicélio Acácio da Silva)................................................................................53
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................13
CAPÍTULO 1 – CONVIVÊNCIA E DRAMATURGIA .........................................................18
1.1 – Por uma pesquisa de convivência......................................................................19
1.2 – Por uma dramaturgia a partir do barro...............................................................26
CAPÍTULO 2 – POEMA DRAMÁTICO E ENCENAÇÃO....................................................39
2.1 – Homem do Barranco: um poema dramático......................................................39
2.2 – Homem do Barranco: encenação como pertencimento.....................................40
2.3 – O Poema Dramático 1: Homem do Barranco....................................................56
CAPÍTULO 3 – O ARRIMO DAS ÁGUAS E O TEATRO CONTEMPORÂNEO..................65
3.1 – Arrimo assolado.................................................................................................66
3.2 – Arrimo da pertença e da memória......................................................................74
3.3 – Arrimo das águas...............................................................................................78
3.4 – Arrimo das Águas e o teatro contemporâneo.....................................................83
3.5 – O Poema Dramático 2: Arrimo das Águas........................................................91
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................102
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INTRODUÇÃO
Esta dissertação trata do processo de reescritura de Homem do Barranco, de Carlos
Roberto Ferreira, um poema dramático cuja temática são histórias de um povoado ribeirinho
envolvido com a extração de barro e da manufatura da cerâmica, onde encontram memórias
para expressar as suas vivências cotidianas, e por meio de narrativa expõe suas crenças, mitos,
lembranças e paixões.
Um trabalho sobre uma convivência realizada com a Comunidade de São Gonçalo
Beira Rio, em Cuiabá, Mato Grosso, que encontrou no barro, força e expressão para a vida do
povoado ribeirinho, nos seus anseios socioculturais e econômicos. Desta convivência e
levantamento de dados realizados entre os anos de 1993 e 1994, surge a escrita dramática do
primeiro texto que esteve em cartaz no período de 1995 a 2000. O poema dramático dialoga
com os livros bíblicos do Gênesis e de Jó, além de trazer depoimentos de vários ceramistas da
comunidade, em especial, da Senhora Joana Maria da Silva, benzedeira, ceramista e liderança
comunitária.
A proposta de releitura e encenação buscou relacionar a dramaturgia de hoje com o
imaginário da comunidade na atualidade, descrevendo-o como um partilhamento dos
problemas provocados no ambiente ribeirinho, a partir das transformações físicas, econômicas
e sociais, ocorridas na paisagem da região.
O povoado de São Gonçalo Beira Rio habita à margem direita do rio Cuiabá, desde
1719, constituído de um aglomerado ribeirinho distante a 10 quilômetros do centro urbano da
cidade, que conta com aproximadamente 350 moradores, distribuídos em 75 famílias. Por
várias décadas sobrevivem à custa do barro, da cerâmica, do rio e do peixe, por meio das
festas de santos, da dança do Siriri – “um dos folguedos mais populares e antigos do estado de
Mato Grosso, cuja origem não se pode afirmar ao certo, praticado nas cidades e
principalmente na zona rural, fazendo parte da maioria das festas como: casamentos,
batizados, carnaval, aniversários, etc., bem como das festas tradicionais religiosas em louvor
aos santos: Santo Antônio, São Benedito, São João, Senhor Divino e muitas outras. Pode-se
dizer que em algumas cidades do interior o siriri é o baile ou até mesmo o carnaval do povo”.
(SIRIRI / SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA, 2006, p.7-8); da Dança de São
Gonçalo - manifestação da cultura popular realizada há mais de 60 anos na Comunidade de
São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá – MT em homenagem a São Gonçalo de Amarante, santo
violeiro de origem portuguesa, festejado dia 10 de janeiro. É uma dança composta de nove
movimentos, onde uma fila de homens e outra de mulheres dançam em frente ao altar da festa
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acompanhados por tocadores portando os instrumentos: Viola de Cocho e Ganzá.
(Depoimento de Domingas Leonor da Silva a Carlos Roberto Ferreira, 2003) e do Cururu -
manifestação popular mato-grossense, transmitida de pai para filho, praticada somente por
homens, acompanhada pelos instrumentos: Viola de Cocho e Ganzá, nas festas de cunho
sagrado e religioso, onde proferem toadas e funções durante o levantamento e descida do
mastro com a bandeira do santo festejado. (Depoimento de Joana Maria da Silva a Carlos
Roberto Ferreira, 2003). Esse conjunto de expressões e manifestações culturais oferece
conteúdo substancial para colocar na cena contemporânea o poema dramático Homem do
Barranco, cuja “poesia dramática nasceu da necessidade de ver os atos e as situações da vida
humana representada por personagens que relatem os fatos e expressem os intentos mediante
breves ou longos discursos”. (HEGEL, 1997, p. 556).
Hoje, esse mesmo povoado acompanha as mudanças da cidade, da comunidade, do
bairro e suas novas configurações. Cada vez mais, o rio torna-se arruinado e desbarrancado; a
vegetação é destruída, criando um território físico árido; a chegada dos visitantes, turistas,
frequentadores dos bares e restaurantes, sociedade em geral; mudanças no sentimento de
pertencimento pelos pescadores, ceramistas, artesãos, festeiros, donas de casa e demais
moradores do bairro e comunidade; a gastronomia como elemento de transformação
econômica, mas também de devastação ambiental e de mudanças da paisagem da região.
Ao reescrever o poema dramático Homem do Barranco, o texto Arrimo das Águas
dialogou com o teatro contemporâneo, buscando “um olhar mais atento para distinguir nas
formas híbridas do texto teatral contemporâneo a necessidade de expressão de assuntos que os
modelos históricos não conseguem conter.” (FERNANDES, 2001, pg. 69).
Deve-se destacar o conceito de Teatralidade Contemporânea e Teatro
Contemporâneo no Brasil, onde a dimensão teórica tem articulação com a empírica e vice-
versa. Veremos em Birkenhauer (2012), que se pode entender que os textos dramáticos,
sobretudo aqueles que investem no uso poético da linguagem e, nesse caso, o poema
dramático, não necessariamente se enquadram numa regra de formalidade que impeça a sua
utilização ou realização cênica, enquanto texto teatral com o uso da poética. “Este pode ter um
conjunto de variações e composições que o defina como texto dramático, sem que o uso da
poética, da poesia ou da poética da linguagem venha desconstruir a sua forma dramática”.
(BIRKENHAUER, 2012, p. 185).
A partir da reescritura do poema dramático Homem do Barranco, criou-se uma nova
versão da dramaturgia em Arrimo das Águas, sobre o barro, sobre o barranco, sobre a
cerâmica, sobre o bairro e sua paisagem e sobre o rio, onde os textos e partes dele estão
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sempre contaminando o outro. Essa versão de reescritura dramática constitui uma leitura e
encenação que procura evidenciar ao espectador, as mudanças mais expressivas que aparecem
hoje no bairro de São Gonçalo Beira Rio. São essas mudanças que alteram a imagem
sociocultural do bairro em diversos aspectos: de saúde, moradia, economia e ambiental,
interferindo na vida dos seus moradores. O atual texto Arrimo das Águas constitui-se em uma
proposta de encenação, respaldada pelo teatro contemporâneo, revelando para o tempo
presente, simultaneamente, um arrimo assolado e também da pertença – um barranco
destruído, árido, com vegetação rala – alterando consideravelmente, a imagem sociocultural e
ambiental do bairro de São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá, Mato Grosso, na atualidade.
Os estudos sobre a vida sociocultural da Comunidade têm como base o autor Michel
Maffesoli (2004), que apresenta de um modo geral, as comunidades, bairros e grupos de
vizinhanças dos centros e periferias urbanos, sendo acercadas e comprimidas pelos limities-
fronteiras, naturalmente alterados pelo fluxo do crescimento urbano, para dar lugar e espaço a
outros grupos também minoritários. As diferentes classes sociais há muito passaram a
conviver mais de perto: porta-a-porta, janela-a-janela, lado-a-lado, dividindo o mesmo
espaço-lugar sob os diversos aspectos culturais, sociais, religiosos, comerciais, de lazer, etc.
Com o bairro de São Gonçalo Beira Rio, não foi diferente. Embora, há que se levar em conta
o aspecto cultural e história de vida de uma Comunidade secular, assentada no mesmo espaço-
tempo-lugar desde 1719, cuja realidade sociocultural foi se transformando e se alterando, sem
a necessidade de suas famílias se partilharem – se dividir em micros grupos isolados num
quase individualismo – do mesmo modo que a cidade. Como o pequeno grupo de vizinhança
foi se renovando, a sua relação com o espaço geográfico, com a vida cultural, social e
ambiental, foi também se alterando. Com isso, o sentimento de pertencimento dessa
população e o seu imaginário coletivo foram sendo também alterados no âmbito da
coletividade, bem como a força da sua produção cultural e seu poder de transformação
econômico e social: escassez do barro na região; redução da produção de peças de cerâmica;
redução da venda do seu artesanato, entre outros.
Observamos então que, as atividades, tarefas ou manifestações praticadas por meio
da cerâmica, no povoado ribeirinho, perderam a sua força e também a sua evidência em
detrimento de outras manifestações que tomam partido da necessidade econômica evidente e
emergente desse mesmo grupo, como a produção da gastronomia nos bares e restaurantes da
região. Consideramos que essa seja uma questão difícil de analisar, cujo pensamento sobre o
assunto, requer muita prudência, mas é pertinente observar “em um determinado momento,
que um conjunto cultural perde a sua evidência. É justamente logo que essa evidência se
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perde, que vamos entrar, progressivamente, dentro de um outro tipo de episteme”.
(MAFFESOLI, 2004, p. 24).
Realizamos novas visitações ao povoado que corrobora com novos encontros com
pessoas e grupos da região, oferecendo novas reflexões sobre a sua produção e vida
sociocultural, fortalecendo a releitura da peça aqui tratada, como registra in loco as
transformações ocorridas na região, nos últimos vinte anos.
O tratamento poético e dramático dado às transformações que atingem o bairro de
São Gonçalo Beira Rio nas duas últimas décadas está presentes nos dois textos dramáticos:
Poema Dramático 1: Homem do Barranco e em Poema Dramático 2: Arrimo das Águas.
A realização de uma análise do processo de adaptação do poema dramático Homem
do Barranco e a composição do atual texto Arrimo das Águas surgem como possibilidade não
só de cumprir com as exigências de um trabalho acadêmico, mas também de trabalhar com as
vicissitudes desta proposta. Sugerir uma ampliação das potencialidades da cena
contemporânea das artes cênicas na cidade de Cuiabá – MT, desconstruindo o já explorado
para indagar, questionar, revelar e construir outras estéticas, cujo processo de investigação e
questionamento, seja mais fortalecido que o resultado visual ou cênico.
Assim, espera-se que o “arrimar” proposto, inserido como um verbo na conjugação
das mudanças ocorridas no bairro ribeirinho, não se configure tão somente como sustentar,
apoiar, auxiliar ou amparar as águas do rio; que este “arrimar” também sustente e ampare uma
pedagogia conjugada ao sabor de transformar pensamentos e idéias na formulação de políticas
socioculturais e ambientais. Que essas políticas, sejam reescritas como novos elementos na
sustentação e amparo da memória e do pertencimento da população ribeirinha, se
estabelecendo como arrimos não só para os de dentro – a própria comunidade, bairro; mas de
perspectivas de arrimos, também para os de fora – frequentadores dos bares e restaurantes,
turistas, visitantes, sociedade em geral.
O primeiro capítulo Convivência e Dramaturgia trata sobre a relação de convivência
estabelecida com a Comunidade de São Gonçalo Beira Rio em sua localização territorial e
física, sua constituição populacional e sua configuração como um povoado ribeirinho, cuja
produção cultural se insere no seu contexto sociocultural, revelando a sua produção e sua
história de vinte anos passados. Esse relato do percurso da convivência realizado no povoado
ribeirinho descreve a oportunidade do convívio entre eles, da relação interpessoal
estabelecida, o que permitiu acercá-los muito bem de perto, estabelecendo uma investigação
do processo da manufatura da cerâmica, sem portar os elementos técnicos ou didáticos
pedagógicos de uma pesquisa “tradicional”. Falo sobre o texto e sua construção, os recursos
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utilizados para essa feitura literária e dramatúrgica, onde o barro, a comunidade e a figura da
Senhora Joana Maria da Silva, aparecem como uma tríade de importância vital.
O segundo capítulo Poema dramático e encenação contribui na perspectiva da
abordagem dos gêneros trabalhados dentro do texto dramático nas duas montagens: a poesia
dramática e a releitura dramática. Veremos a dramaturgia sendo apresentada e trabalhada em
cena aberta, no palco; a encenação do poema dramático Homem do Barranco, construída a
partir das imagens, figuras, cerâmicas e personalidades da Comunidade: rio, barro, barranco,
cerâmica, pescadores, ceramistas, mitos, vegetação, entre outros elementos que construíram
significativo valor para a escrita do texto, tanto no universo popular, quanto no universo
erudito. Neste capítulo, o leitor poderá conviver entre eles: questionar, indagar, labutar com o
barro na construção reflexiva da poética do povoado ribeirinho.
O terceiro capítulo O Arrimo das Águas e o teatro contemporâneo destaca o próprio
barranco que margeia e protege o rio em diversas situações físicas, ambientais e culturais.
Considera a sustentação da pertença do povoado sobre as águas e de todos os seus mistérios,
mitos, lendas e vidas submersas. É justamente nessa pertença de mistérios e lendas que reside
a personagem Homem do Barranco, título e personagem da primeira montagem, cujo lugar de
ocupação do espaço cênico, é cedido à atual proposta de dramaturgia, Arrimo das águas. O
barranco na qualidade de Arrimo Assolado; um barranco destruído pela natureza ambiental e
humana; devastado e afligido pelo tempo e pelo vento; assolado em que se encontra no tempo
presente; o barranco que margeia o rio Cuiabá no perímetro do bairro de São Gonçalo Beira
Rio. Esse assolamento também compromete outras dimensões do bairro como: sustentação e
segurança do terreno que abriga o asfaltamento da rua; drenagem e escoamento das águas das
chuvas no espaço das residências; o aumento significativo dos esgotos da região que são
despejados diretamente no rio sem nenhum tratamento e ainda, as construções improvisadas
de bares e restaurantes, cujos proprietários insistem em ter como único espaço físico para a
instalação do seu comércio, a margem do rio. Ainda, dialoga com os pescadores, remadores,
cururueiros e tocadores, lenhadores, artesãos, ceramistas, lavadeiras, doceiras e donas de casa
residentes da comunidade de São Gonçalo Beira Rio, os verdadeiros arrimos da pertença e da
memória. Sua importância se sustenta em apoiar, amparar, proteger e difundir as suas
tradições herdadas ao longo dos séculos. O título e proposta de Arrimo das Águas denotam as
mudanças do contexto sociocultural e ambiental, contribuindo na atualidade, para a maior
parte de conteúdo do texto dramático atual. Essas transformações ocorridas no bairro, nas
duas últimas décadas têm como principal argumento, a sua realidade sociocultural e ambiental
contemporânea.
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CAPÍTULO 1
CONVIVÊNCIA E DRAMATURGIA
A convivência e o levantamento de dados realizados para a construção da primeira
escritura, montagem e encenação do poema dramático Homem do Barranco, teve como
inspiração o cotidiano da vida sociocultural, política e ambiental da Comunidade de São
Gonçalo Beira Rio, entre os anos de 1993 a 1994, em Cuiabá – MT. A poética para a releitura
deste texto está intrinsecamente ligada ao cotidiano desse povoado e se faz presente desde o
momento da realização dos estudos in loco para a releitura do texto Homem do Barranco até
sua encenação. A postura adotada na pesquisa foi a de observador-participante, pois além de
observar as relações da comunidade, pretendeu-se fazer parte da mesma ao longo da
convivência ali estabelecida.
Tal postura proporcionou a convivência que revelou mais do que meras informações
superficiais sobre a comunidade ribeirinha de São Gonçalo Beira Rio. Estabeleceu-se um
diálogo com os interlocutores da investigação com a finalidade de integrar o grupo e assim se
aproximar de seus afazeres culturais e de seu imaginário coletivo. Estas pessoas constroem
suas vidas a partir do barro na manufatura da cerâmica, desenvolvendo assim suas vivências e
experiências cotidianas e que por meio das narrativas orais expressas para os seus visitantes,
expõem suas crenças, lembranças, mitos e paixões.
Com a perspectiva de diálogo com o povoado ribeirinho e também de vê-los
imageticamente em cena, no palco, por meio de um texto dramático numa peça teatral, fez-se
necessário estudar mais de perto a Comunidade de São Gonçalo Beira Rio. A partir das
observações participantes, produziu-se um relato com o objetivo de sustentar a analise
proposta nesta dissertação.
Há que considerar que o universo cultural de uma comunidade ribeirinha em
qualquer região, país, continente, nação, tribo ou etnia é complexo, mutável, híbrido pela sua
natureza cósmica, ambiental, territorial e geográfica. O bairro de São Gonçalo Beira Rio
proporcionou a ambientação para a pesquisa de lendas, mistérios, causos, corpos simbólicos,
valores socioculturais, religiosos e políticos dos mais variados, feita por meio dos relatos e da
oralidade dos diversos grupos de vizinhança ali presentes.
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O tempo demandado no percurso da vida das pessoas do bairro, a cultura híbrida na
convivência cotidiana, as transformações ocorridas com aquela gente ribeirinha e com o seu
espaço geográfico e cultural é que foram ao longo dos anos alterando e modificando a sua
comunidade e a tornando mais complexa para os seus moradores, que também se tornaram
mais curiosos com o seu tempo e lugar e que, no tempo presente se expressam com maior
experiência de vida, tanto entre eles, quanto com os seus visitantes. Ali, tudo ainda cheira a
barro, rio, peixe, tijuco, lama; e, a cerâmica ainda está lá como um dos resultados do barro
socado, amassado, polido e queimado, como prova de que as transformações resistiram a eles
e eles também resistiram às diversas transformações pelas quais passaram ao longo dos anos à
margem do rio Cuiabá. Este povoado é terreno fértil para outras pesquisas, investigações,
residências artísticas no que toca sua produção cultural.
1.1 Por uma pesquisa de convivência
Pouco distante do centro urbano da cidade de Cuiabá – MT, aproximadamente a 10
quilômetros, está localizada a comunidade centenária de São Gonçalo Beira Rio, cravada
desde a sua origem, em 1719, num barranco histórico e cultural, à margem esquerda do rio
Cuiabá. Essa aldeia cabocla que tem a sua formação geográfica diferente da formação
tradicional de aldeias indígenas, é formada por um só alinhamento de moradias, fica de frente
para o rio Cuiabá e de costas para o centro urbano da capital. Seus quintais foram se
encontrando geograficamente, formando o miolo do conjunto do povoado, onde todos podem
trocar conversas e se comunicar pelas cercas e divisas de características improvisadas.
Algumas dessas cercas são de arames lisos ou farpados, tramas com taquaras e bambus e,
algumas com cercas “vivas” com a utilização de vegetações típicas da região, e em outras
nem mesmo cercas existem, onde pessoas e pequenos animais transitam livremente. Essa
característica de liberdade de circulação e convivência no mesmo espaço e local de moradia
tem herança secular na história da comunidade. Neste cenário singular, grupos familiares
constroem suas casas nos próprios quintais, formando um grupo de vizinhança específico de
cada família, composto de três até cinco ou seis casas, mas ainda, sem as cercas tradicionais,
sem perder a relação de proximidade com outros grupos familiares da região e sem impor
limites físicos.
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Com uma população de aproximadamente 350 moradores, distribuídos em 75
famílias, a comunidade constitui um aglomerado ribeirinho participativo nas lutas cotidianas
sociais e tem a manufatura da cerâmica como uma das significativas expressões de
manutenção e fortalecimento da sua realidade sociocultural, tanto no universo econômico,
quanto na paisagem cultural ribeirinha que se expressa e dialoga de maneira genuína com
aqueles que a visitam. Essa manufatura se configura como uma constante luta social,
intrínseca aos elementos que a compõem, tanto no universo econômico, quanto na paisagem
cultural ribeirinha da Comunidade. Um povoado que revela seus saberes, técnicas e rituais
num conjunto de convivências domésticas como: a pesca, a manufatura da cerâmica, a
realização das festas de santos, o comércio da gastronomia, cujos elementos escriturados em
partituras geopolítico-sociais mantêm e fortalecem a sua produção cultural singular.
Entre os anos de 1993 a 1994 – período da realização da primeira escrita e encenação
do texto Homem do Barranco – foi possível observar que, aproximadamente, sessenta e cinco
artesãos se ocupavam da manufatura da cerâmica na comunidade de São Gonçalo Beira Rio.
Destes, somente doze eram homens e, ainda foi possível presenciar alguns grupos de crianças
e adolescentes utilizando da modelagem do barro como entretenimento e parte das
brincadeiras cotidianas. A utilização da argila nas brincadeiras infantis é um dos registros de
que podemos citar como uma espécie de rito de passagem para a iniciação das crianças na
manufatura, ainda improvisada, das primeiras peças de cerâmica. Dessa maneira, muitas
crianças e adolescentes viam-se como pequenos artesãos. Começa-se assim a dar sentido à
função de ceramista e vai-se tomando gosto pela prática dessa cultura no povoado. Alguns
adolescentes têm envolvimento e uma permanência mais efetiva na produção de peças
artesanais em virtude da companhia afetiva dos pais que transmitem a tarefa com esmero, pois
esta é para muitas famílias, uma prática cotidiana que garantia parte do sustento da casa.
Elemento de grande poder para a economia e vida cultural da comunidade, o barro
utilizado na manufatura da cerâmica, é encontrado ali mesmo, nas margens do rio e nas
várzeas da região, no referido período havia farta abundância dessa matéria-prima. As
correntezas e os rebojos do rio, na sua condução para a retirada do barro, muitas vezes do lado
e lá, são muito perigosos. Naquela época, a canoa era o único meio de transporte, o que
provocou diversas mortes e desaparecimentos de ceramistas e pescadores, que chegam ao
conhecimento das novas gerações através dos relatos dos mais velhos. A cerâmica produzida
na qualidade de produto econômico precisava ser transportada de canoa até o antigo mercado
do peixe, no bairro do porto na capital, para ser, na maioria das vezes, trocada por alimentos.
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O seu comércio, além de bastante reduzido, era pouco valorizado na época. Devido às más
condições de acesso na época de cheia, o transporte de mercadoria se via prejudicado, e
mesmo o atendimento por parte das autoridades para com a comunidade eram reduzidos.
As enchentes, sobretudo a de 1974, marcaram profundamente a história da
comunidade. Esta registrou definitivamente a transformação da região em diversos contextos:
saúde, moradia, educação, comercialização dos produtos artesanais, transporte e alimentação.
Esse fenômeno da natureza atingiu tamanha proporção que resultou até mesmo no surgimento
de novos bairros no espaço urbano da cidade de Cuiabá, para o abrigo daqueles que não
poderiam mais viver à margem dos rios atingidos pelas cheias. Essa mesma enchente atingiu
vários outros bairros ribeirinhos da capital, no sentido rio-acima: São Gonçalo Beira Rio,
Coxipó da Ponte, Praeiro, Praeirinho, Grande Terceiro, Porto e Coophamil. Ainda no sentido
rio-acima, outras comunidades e povoados foram igualmente atingidos: Guarita, Passagem da
Conceição e Barra do Pari. Na cidade vizinha de Várzea Grande, que fica à margem direita do
rio Cuiabá no sentido rio-abaixo, diversos bairros e povoados também foram atingidos: Bom
Sucesso, Pai André, Souza Lima e Praia Grande. Na região da cidade de Acorizal pequenos
povoados como Três Pedras, Baús e Brotas foram seriamente atingidos. A cidade de Rosário
Oeste teve a parte baixa da cidade nas imediações do rio, totalmente alagada, deixando
diversas famílias desabrigadas.
De um modo geral, nesse ano de 1974 a comunidade perdeu tudo. De suas casas, na
maioria de pau a pique, não sobrou quase nada. Os moradores foram transportados para
escolas da região, abrigos públicos e casas de parentes. Passada a catástrofe, seis a oito meses
depois, reconstruíam tudo novamente e procuravam dar um novo sentido à vida cotidiana.
Nesse período, apareceram as primeiras preocupações do poder público para com a
comunidade quanto às questões da saúde, moradia, alimentação e escola. Diante de grandes e
diversas dificuldades, a comunidade acabou por buscar outro caminho na economia local,
calcado na produção da cerâmica, do peixe e também na gastronomia. Tais fatores fazem
perceber que esta catástrofe constituiu-se como um divisor de águas na comunidade,
determinando sua trajetória futura. A história é fundamental para entender o povoado que dá
luz a reescritura do novo texto Arrimo das Águas.
A convivência realizada entre os anos de 1993 e 1994 tem como resultado o texto,
montagem e encenação da peça Homem do Barranco, que esteve em cartaz no período de
1995 a 2000, nas cidades de Cuiabá, Várzea Grande, Chapada dos Guimarães, Tangará da
22
Serra e Mirassol D‟Oeste em Mato Grosso; Belo Horizonte em Minas Gerais; Blumenau em
Santa Catarina; Presidente Prudente e Franca em São Paulo e Teresina no Piauí.
A peça tem o texto inspirado nos livros bíblicos do Gênesis e de Jó e em
depoimentos de vários ceramistas da região, em especial o da Senhora Joana Maria da Silva,
ceramista, benzedeira e líder comunitária. Após ter realizado uma pesquisa – A fibra sonora
do timbre do barro – no segundo semestre de 1992, para a disciplina de Expressão Sonora do
Curso de Educação Artística com Habilitação em Música do Departamento de Artes da
UFMT, percebi que estava de posse de um significativo volume de conteúdo e informações.
Deste volume de conteúdo, pequena parte dele havia sido utilizada no estudo citado; foi
quando decidi organizar-me para prosseguir tal pesquisa com vistas a uma montagem cênica.
Em março de 1993, retomei a convivência com o povoado e pude perceber que muito
se tinha a dialogar ainda a fim de cruzar dados e criar uma relação de afinidade com o
universo mítico e lendário que começava a se deflagrar por meio de histórias, lendas, cantigas,
sons e ensinamentos culturais da lida com o barro na manufatura da cerâmica, bem como nas
festas de santos tradicionais. A postura de observador-participante possibilitou-me um acesso
ao mundo do imaginário coletivo da região, onde pude perceber que, a partir dessa
convivência, uma relação de afinidade com o povoado ribeirinho e com seus afazeres
domésticos e culturais estava se fortalecendo. Com o fortalecimento desses laços de afinidade
e convivência com a comunidade, pude realizar laboratórios culturais e teatrais dos mais
variados, que me levaram a definir a metodologia da pesquisa, como sendo a de observação e
convivência. Conviver, viver entre eles, participar dos seus afazeres domésticos cotidianos,
para a realização da investigação num processo contínuo, de aproximadamente dois anos,
frequentando as suas residências em festas de casamentos, batizados, rezas de terços e por
inúmeras vezes, me alimentando e pernoitando ali. Antes desse período específico da
convivência com o povoado ribeirinho já frequentava a região, efetivamente como morador
do bairro Coophema, por sete anos, depois como festeiro, coorganizador e colaborador nas
festas de santos e nas manifestações populares ali realizadas. No percurso de
aproximadamente dois anos, participei também das aulas de cerâmica com o artesão Clínio
Moura e sua esposa, dona Biuína Moura, aprendendo todo o processo de coleta do barro, o
tratamento para a manufatura das peças de cerâmica, o preparo do forno e queima das peças.
Aprendi a dançar o Siriri e a dança de São Gonçalo, bem como a lida na confecção de
diversos alimentos: cozido cuiabano, os diversos tipos de peixes ensopados e ainda as
compotas de doces de caju que era uma prática cotidiana, na temporada da fruta.
23
Durante aquele período aconteciam “visitas-passeios-aulas” que duravam 4h, 8h ou
até 12h, dada as possibilidades dos envolvidos: horário de trabalho dos artesãos com a
cerâmica; dias de festas, rezas e batizados; entre outros. Durante essas atividades, aconteciam
breves espetáculos teatrais que funcionavam também como espaços de criação de processos
pedagógicos, paralelos e incorporados à manufatura da cerâmica, presentes na vida cotidiana
dos artesãos da região. Por isso, buscou-se referências que condizem com a maneira com que
trabalham os artesãos e ceramistas ribeirinhos, em especial, os da comunidade de São
Gonçalo Beira Rio. Percebeu-se entre os ceramistas, artesãos e festeiros que no percurso da
criação de peças e das falas improvisadas dos espetáculos teatrais foi sendo possível entender
também que: “[...] a crítica genética utiliza-se do percurso da criação para desmontá-lo e, em seguida,
colocá-lo em ação novamente [...] o interesse dos estudos genéticos é o movimento criativo: o ir e vir
da mão do criador” (SALLES, 2004, p. 13).
Assim, o percurso de criação foi tomando forma e dimensão natural aos meus olhos;
o que já era muito comum e singular entre eles. Embora se tratando da manufatura de peças
de cerâmica artesanais a partir do barro, com a totalidade do seu processo de produção
cuidado e demandado por eles, este não difere do processo artístico citado por Salles quando
trata da obra de arte e, percebo ainda se tratar de “uma investigação que vê a obra de arte a
partir de sua construção, acompanhando seu planejamento, execução e crescimento.”
(SALLES, 2004, p. 13).
A partir do que anotou-se acima, sobre o percurso de criação apresentado por Salles,
podemos observar que a manufatura da cerâmica desse povoado ribeirinho, dentro do seu
conjunto de fazeres, constrói momentos e memórias, registrados paralelos à manufatura, que
vão sendo construídos e praticados junto aos seus demais afazeres: as prendas do lar como
passar, lavar, costurar; a busca do barro na margem do rio; a coleta da lenha nos quintais
vizinhos para a queima da cerâmica; o recolher a roupa do varal; o cuidado com as panelas no
fogo no preparo das refeições; a comida dos cachorros sendo distribuídas em “folhas” de latas
– “utensílio” improvisado, feito a partir de uma lata de metal aberta, para servir de “prato” na
alimentação dos animais e também em outras tarefas cotidianas como: cobrir panelas e potes
d‟água, recolher o lixo na limpeza da casa, tampar as aberturas das chapas dos fogões à lenha,
dentre outros - a água sendo coada para abastecer os potes; o banho nas crianças de maneira
coletiva nos finais de tarde à margem de tambores e caixas d‟água improvisadas, entre outros.
Não é do interesse desta pesquisa focar na autoconsciência da população sobre seu trabalho,
no sentido de entendê-lo como criação artística. Essa produção e processo de criação estão
24
incorporados na dinâmica da comunidade, foram gerados pelo desenvolvimento histórico da
comunidade, com as peculiaridades dos ensinamentos culturais praticados nos povoados e
grupos de ribeirinhos.
É notória, que no processo de produção da cerâmica do povoado ribeirinho de São
Gonçalo Beira Rio, esteja presente no espaço, a criação e recriação daquilo que aprenderam e
receberam de seus antepassados, devido ao tempo de percurso de envolvimento nesse fazer-
profissão e ainda, da necessidade de emergir forças vitais para a sustentação familiar. Não há
duvidas de que nesse processo de produção da cerâmica ribeirinha, como na prática da dança
do Siriri, nas toadas dedilhadas da Viola de Cocho ou nas funções do Cururu, esteja presente
o trabalho do criador; do artesão-criador; do violeiro-criador; do dançarino-criador. Posto que,
O trabalho criador mostra-se como um complexo percurso de
transformações múltiplas por meio do qual algo passa a existir. A própria
idéia de criação implica desenvolvimento, crescimento e vida;
consequentemente, não há lugar para metas estabelecidas a priori e alcances
mecânicos. (SALLES, 2004, p. 27).
O trabalho da manufatura da cerâmica era totalmente manual e, sobretudo artesanal.
Nenhum maquinário é utilizado no processo. Desde a sua primeira tarefa que era a escolha e
coleta do barro do outro lado do rio, atravessado de canoa por um vão de aproximadamente 70
metros de água corrente e profunda. Depois de seco, as marretas de madeira, machados e os
pilões eram elementos de extrema precisão para quebrar e depois socar o barro à mão. Após
essa tarefa, o barro é peneirado em peneira fina para ser colocado num recipiente com água
para deixar amolecer. Depois, esse barro molhado é misturado ao “caco”, uma espécie de
“farinha”, resultada do barro tirado ali mesmo, no chão das casas. Este é seco e queimado em
caieira e depois peneirado bem fino para ser misturado ao barro cru, o que ajuda a dar liga à
matéria-prima. Uma vez amassado e já transformado em argila, o barro fica pronto para ser
moldado em peças das mais variadas possíveis. Esse conjunto de tarefas era geralmente
realizado pelos artesãos mais idosos, representando maior conhecimento, experiência e
sabedoria, cuja tradição, era passada de pai para filhos. Assim preparada, a argila então era
dividida entre os artesãos-membros da família, cuja idade, variava de 15 a 75 anos.
Como o trabalho de produção da cerâmica é prática cotidiana e familiar, o resultado
quantitativo da produção também foi expressivo, significando a necessidade da sua
comercialização para o abastecimento das suas despensas de alimentos. Era o ano de 1993,
período em que a Casa do Artesão, gerenciada pelo Governo do Estado de Mato Grosso,
25
recebia em consignação, peças de cerâmicas de aproximadamente 90% dos artesãos da capital
e região, para a comercialização. Dada a realidade de uma instituição pública, no que se refere
ao gerenciamento financeiro da comercialização do artesanato ali exposto, é comum uma
prática administrativa burocrática bastante morosa, o que não agradava a todos os envolvidos,
em função da grande demora em receber os pagamentos das poucas peças que eram vendidas.
Este cenário perdurou por vários anos, o não repasse financeiro da venda das peças expostas
na Casa do Artesão, atual SESC Casa do Artesão, provocou grande revolta na classe artesã,
que dependia deste meio para seu próprio sustento.
Nesse período, um programa de jornalismo de uma emissora de TV local, ao realizar
matéria sobre o não repasse de recursos financeiros pelo Governo aos artesãos, buscou na
comunidade de São Gonçalo Beira Rio – maior produtora de cerâmica na época e ainda hoje –
respaldo para a fundamentação da matéria que evidenciou o problema a partir de depoimentos
dos ceramistas.
Visitando a residência de uma família de artesãos da Comunidade, tive a
oportunidade de presenciar uma cena inesquecível; quando uma jornalista chega à casa de
Dona Joana Ceramista, amparada com cinegrafista e iluminador para uma entrevista. Esta se
apresenta interessada em divulgar “os descasos dos gestores da Casa do Artesão, pelo fato do
não pagamento às peças de cerâmica vendidas”. Vejamos um trecho da entrevista:
JORNALISTA – Dona Joana, faz quanto tempo que vocês não recebem o
pagamento das peças de cerâmica que são colocadas à venda na Casa do
Artesão?
DONA JOANA – Ah! Já tem uns nove ou dez meses. A última vez que
recebemos dinheiro de lá, foi antes do natal passado. Agora, dizem que
depois da enchente vão trazer o dinheiro aqui e o papel pra gente assinar.
[...]
JORNALISTA – Então está bom Dona Joana. Muito obrigada pelas
informações.
DONA JOANA – De nada! Espera um bocadinho que eu vou buscar um
café pra vocês. (sai em direção à cozinha da casa).
JORNALISTA – Não precisa! Nós estamos com pressa! (A equipe da TV se
despede das filhas de Dona Joana e saem).
(De volta ao quintal, Dona Joana fica surpresa com a ausência da equipe e,
parada, em posição de “estátua”, ou talvez, em posição de “moringa
boneca”, com dois pratos nas mãos, três xícaras, e indignada.)
DONA JOANA – Nossa! A moça foi até embora! Mal agradecida!
Como se pode observar, a presença de uma teatralidade natural é evidenciada
cotidianamente na comunidade sobre diversos aspectos: sociais, culturais, políticos, nos
26
festejos religiosos e nas relações de entretenimento comunitário. Daí a ausência de recursos
didáticos: gravadores, câmeras, cadernos de anotações, planilhas de questionários, entre
outros, nas mãos do pesquisador. É preciso nesse caso, operar com um estado e nível de
segurança e de confiança múltiplos, assegurando-se de que poderá rever e ouvir as mesmas
informações num outro momento, dia ou lugar, mesmo que proferidas de maneira outras,
diferentemente das já citadas nas ocasiões de determinadas manifestações ou situações
cotidianas. Ou, mesmo que tudo possa aparecer diferente ou alterado em outro dia, ou em
outra situação, as informações absorvidas anteriormente, mesmo que não gravadas ou
digitalizadas com o uso de tecnologias, complementam-se entre si, dissolvendo-se em outros
entendimentos, diluindo-se em outras informações e sutilezas, ou hibridando-se e repetindo o
percurso sociológico do itinerário do próprio barranco, do rio e da própria comunidade.
Com isso, evidencia-se também, o valor cultural que elementos da vida cotidiana
desse povoado expressam-se e manifestam-se de maneira espontânea, contribuindo assim,
para um evidente volume de experiências, seja para o próprio povoado como para os seus
frequentadores, visitantes e pesquisadores. No caso da pesquisa aqui tratada, a evidência de
experiências para o pesquisador, perde-se de vista no seu volume quantitativo. Opera-se, tanto
sobre as experiências artísticas quanto sobre as experiências científicas, o que compreende um
conjunto de sabedorias, o que evidencia novamente as inúmeras possibilidades e de caminhos
por onde o pesquisador possa trilhar na busca de possíveis resultados. A soma dessas
experiências é que fortalece no pesquisador o desejo de revisitar esse mesmo povoado por
inúmeras vezes, sem pressa, sem tempo de chegar e de partir, mas sendo possível encontrar
diferentes considerações para a mesma manifestação, para o mesmo batizado, para a mesma
ação cotidiana e para o mesmo estudo que se pretende realizar. O relacionamento entre
pesquisador e comunidade na pesquisa participativa e de convivência, fomenta o
desenvolvimento de conhecimentos que são compartilhados por ambos, neste caso a partir da
via teatral.
1.2 – Por uma dramaturgia a partir do barro
Ao longo da convivência com o povoado ribeirinho, fui percebendo a necessidade de
ouvir e ver mais, a fim de perceber melhor a dinâmica daquela comunidade. Observar mais as
ações construídas pelos diversos grupos de ceramistas, pescadores, donas de casa, lavadeiras,
pedreiros, sem interferir muito. Em diversos momentos, todos esses grupos se reuniam
mesmo em casas separadas, para o ofício de ceramista-artesão. Com esse acontecimento,
27
percebi que diferentes ações eram construídas durante a manufatura da cerâmica, tanto pelos
homens, quanto pelas mulheres e em reduzida escala, pelas crianças e adolescentes. Foi
necessário mudar a minha posição de localização física e deixar de ficar a todo tempo, entre
eles, na condição de ajudante, auxiliar, aprendiz. Era preciso agora, usar o espaço da platéia e
me colocar na qualidade de público, expectador, ouvinte. Assim, de pé, sentado ou de
cócoras, me colocava na figura de expectador, silenciosamente observando tudo: movimento
corporal, musicalidade das frases, sotaques, texto e subtexto e até mesmo o silêncio-pausa,
que aparece como elemento intrínseco à realidade cultural dos que convivem na dimensão
singular do espaço vicinal da comunidade. O quintal, sala, cozinha, terreiro ou as varandas
onde eram produzidas as cerâmicas, foram sendo definidos por mim, como o mapa geográfico
do território palco. Ceramistas, pescadores, benzedeiras, cozinheiras, lavadeiras, pedreiros,
agora nas figuras de “atores” e “atrizes”, comandavam o “espetáculo”. Ora entremezes, ora
esquetes ou autos; eram verdadeiras “peças principais”, cujas ações deflagravam no seu
subtexto um universo mitológico, caminhos para uma dramaturgia que aqui a trato como
sendo a “dramaturgia do barro” – todo o texto, subtexto, assunto, cantigas e frases, às vezes
rimadas, tinham o barro como foco principal. Essa “dramaturgia” construída por eles, a partir
do elemento barro, era para mim, uma espécie de “escrita de texto teatral”, conduzido,
moldado, agora com o corpo inteiro, uma vez que as mãos já se ocupavam de moldar pratos
de parede, boizinhos, codornas, moringas-bonecas, cabeças de bois, travessas em formatos de
peixes, presépios, santos e pássaros.
Os corpos dos envolvidos com a cerâmica ao longo do tempo da manufatura iam se
organizando, expressando e contorcendo, a partir das suas verbalizações e expressões orais,
que me conduziam a assistir as verdadeiras apresentações cênicas teatrais. Ao longo das
apresentações desse teatro-imagem, configurações e partituras corporais eram evidenciadas
por meio dos trejeitos e expressões ímpares: mãos sujas de barro se transformavam em
máscaras; pedaços de metal do uso na manufatura das peças agora eram espadas e lanças; cuia
de cabaça para se colocar a água, tornou-se concha acústica para a mudança do timbre da voz
da personagem; assentos dos bancos serviam como “couros” dos tambores medievais.
Personagens conhecidos e desconhecidos: velhos anciãos, senhoras feudais, bichos e animais
variados codificavam informações sígnicas que iam surgindo entre deles e para eles. Ali não
havia um “público” para assisti-los. Membros das famílias em funções e atividades menos
volumosas, assistiam e participavam com intervenções orais. Os “atores” e “atrizes” surgiam
de baixo das mesas, subiam em bancos, escondiam por traz de portas e se mostravam com
afeições inusitadas, diferentes daquelas que costumavam se apresentar no cotidiano e
28
contavam suas histórias. Foi quando pude perceber que essas histórias, que surgiam de
improvisos e lembranças durante o percurso da manufatura da cerâmica e do contato direto
com o barro, tinham como conteúdo lendas recheadas de mitos, mistérios e ensinamentos,
cujos “gestos formadores que se revelam, em sua intimidade, como movimentos
transformadores em sons, cotidiano em fatos ficcionais, poemas em coreografias ou imagens
plásticas” (SALLES, 2004, p. 27). E pode-se perceber e sentir que se tratava de celebrações,
acercadas das potencialidades do conhecimento pertinente a todos eles, dada a “vaidade” de
se ocuparem, no momento e oportunidade, da função de atores, atrizes, malabaristas, mágicos,
feiticeiros, brincantes e festeiros de si mesmos. E, nessa festa de autoria imagética e teatral, as
afinidades se revelavam por meio do corpo, do sexo, da amizade, do compadresco ali presente
e até mesmo do parentesco congêneres, contaminados agora pelas “estranhezas” dos
personagens que acabavam por dar a eles o sentimento de pertença local. Parecia existir ali,
uma trupe cênica, uma companhia teatral, um grupo de brincantes, brincando, ou
desconstruindo e transformando o espaço do ofício-profissão-artesão, em entretenimento
cultural, de lazer; deixando, por algum momento o mundo do cidadão ribeirinho, para ser
deflagrador de uma dramaturgia do barro. Talvez uma brincadeira de inversão de valores;
troca de profissões; celebrando com o seu grupo de cidadãos, o ócio da profissão, ou talvez,
expulsando dos seus próprios corpos o cansaço de uma luta cotidiana pelas suas causas sociais
e políticas de várias décadas e quase sempre, sem as respostas que gostariam de ouvir. Ali
afugentavam os “maus espíritos” no afã de estarem se livrando dos problemas sociais
cotidianos, na qualidade de cidadãos da comunidade.
Nesse horizonte de manifestações e fazeres populares é visível que as celebrações
cotidianas são alimentadas pelos mistérios sociais, sociocomunitários e até mesmo pessoais.
Essas celebrações culminam em expressões corporais e orais, quase sempre carregadas de
uma espécie de depoimento político e de força teatral, gerados pelos diversos anos de luta
pelas suas causas sociais mais expressivas. Aqui e ali, os lugares são marcados pela presença
coletiva de ambos os sexos em seus papeis de homem e mulher, que se reposicionam ao
chamado do registro da pertença cultural pelo devir social. Este conhecimento é
compartilhado entre os de dentro, ou seja, sujeitos da relação social que comungam um
mesmo universo de pertença: afinidade familiar; relações de fazer cultural; convívio e
ocupação profissionais e religiosos.
Há uma voz uníssona que narra mitos, mistérios e lendas a toda população da
comunidade, ela alimenta o processo de fazeres culturais, ou seja, influência as produções dali
extraídas. Diversas frases ditas por eles em meio às suas representações teatrais e
29
depoimentos demonstram um léxico singular relativo a aspectos culturais do ambiente: “O
homem que aparece no barranco”; “toda vez que esse índio aparece no barranco do rio”;
“quando aqui fica tudo escuro, aparece um vulto que tem uma voz que fala nos nossos
ouvidos”, pode contribuir para que entendamos a unicidade e a informação oral da existência
do sincretismo religioso e mitológico entre eles.
Ao final das representações cênicas ninguém dava nome, nem sobrenome ou
apelidos a ninguém; “tudo voltava a ser como antes”. O espaço de silêncio poderia estar
informando o término dos trabalhos de maneira teatral, lúdica, orgânica e também, misteriosa.
Se o espectador não se colocasse atento, era possível se ver sozinho, num espaço agora
enorme e vazio, todos “desapareciam”, aos poucos, era somente silêncio, não tinha espaço
nem para as reverências, muito menos para os aplausos. A vida e tudo em volta, voltava a ser
“quase” como antes. Homens, mulheres, jovens ou idosos tomavam o caminho dos quintais
para lavar as mãos, guardar os apetrechos de trabalho, organizar as peças “prontas” para a
continuidade das tarefas no dia seguinte.
Nessa perspectiva do mito enquanto corpos simbólicos, presentes no imaginário
coletivo da comunidade, deflagrada pelo estado de sentimento de pertença e embebida pelo
sincretismo, encontramos em um dos discursos de Dona Joana, uma personagem ainda sem
nome, um homem que a ela se “apresentava” sempre no barranco, à margem do rio, assim
descrito por ela: “homem forte, moreno, um índio, esguio, peito largo; um caboclo
pantaneiro”, quem se torna a personagem Homem do Barranco na peça, o homem que protege
o rio, a vegetação e profere cuidados e ensinamentos aos membros da Comunidade.
E, ao buscar referências religiosas na Bíblia, foi possível entender que não se tratava
apenas de um relato popular com algumas inserções de palavras de origens bíblicas. As falas
de Dona Joana pareciam mais um sermão, uma “missa” cabocla, declamada ao som da fé e ao
dom do amor pelas coisas dali. Depoimentos legítimos de um “profeta” que expressa nas suas
palavras e ações físicas, a mesma força que empunha na labuta com o barro, deflagrando uma
unidade da ação, uma ação inviolável, empenhada conforme a natureza das coisas, derivadas
tanto das paixões como dos “insumos” individuais da vida humana.
As figuras e imagens dos personagens de Homem do Barranco tiveram parcela de
inspiração nas peças de cerâmica produzidas na Comunidade: moringa-boneca, potes, vasos,
santos e nas figuras humanas, bastante comuns no povoado como as lavadeiras, as ceramistas,
as donas de casa e os pescadores. Tanto nas formas físicas das peças de cerâmica quanto nas
formas humanas de membros do povoado, as informações e conteúdos desse conjunto de
imagens foram se imbricando em movimentos e ações cênicas de grande importância para a
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composição dos personagens. O elemento barro diante de sua importância e valor agregados à
vida do aglomerado ribeirinho teve a sua parcela de contribuição sobreposta com grande
expressão, em todos os personagens e demais elementos cênicos da encenação: na cor,
textura, volume, forma, modelagem, temperatura, entre outros.
A peça Homem do Barranco foi sendo construída, a princípio, a partir de uma única
personagem, o Homem do Barranco, cuja escritura verbal, necessária para a construção da
força dramática da peça foi encontrada nos livros bíblicos do Gênesis e de Jó. O texto foi-se
fortalecendo enquanto gênero teatral, à medida que outros três personagens foram surgindo no
contexto da dramaturgia.
Definidos pela construção verbal tinham-se a personagem principal, o homem do
barranco e os personagens secundários: a lavadeira, a mãe Oxum e a ceramista. Temos aí uma
forma construída em forma de poema dramático que apresenta um estado de redução e de
simplificação que não se encontra na poesia épica. Isto se aplica também para o número
reduzido e a variedade dos personagens.
Os textos da personagem Homem do Barranco constroem-se em grande parte, na
segunda pessoa do singular, buscando imprimir uma encenação de tipo “épico” e dividindo
espaço na narrativa com três personagens femininas: uma lavadeira que conta história da
enchente de 1974; uma ceramista, inspirada na figura da Senhora Joana Maria da Silva que
conta a história da Comunidade, por meio da labuta com a cerâmica e a personagem Mãe
Oxum, outro corpo simbólico que revela a força mítica que o sincretismo opera na
Comunidade.
A gestualidade, movimento, expressão corporal e ocupação física espacial da
personagem principal de Homem do Barranco, na primeira encenação, foram concebidas pela
direção de Justino Astrevo Aguiar. A direção cuidou de explorar o dorso do ator, sem
figurino, para valorizar os movimentos físico-corporais que eram desenvolvidos com a parte
superior do corpo, este envolto da cintura para baixo, em um grande tecido de algodão cru,
que ora passava a idéia de água, rio e de barranco.
Para o conjunto de ações da personagem principal, desenvolveu-se pela direção uma
proposta de uso do corpo do ator sentado ao chão do palco, e que a todo tempo, deveria estar
em eminente trabalho de torção e força física. Nessa dimensão, foi profícuo lembrar os
momentos em que Dona Joana contava as suas histórias e “encenava”, contorcendo-se,
vibrando força física e de fé, pelo que relatava, descrevia e acreditava. Ampliando essa força
física e de fé de que tratamos acima, Dona Joana ainda deixava transparecer em seu discurso
um postulado ecológico, colocando em seu discurso uma espécie de cobrança e grito de
31
defesa quanto à preservação do rio, do barro, do barranco, da vegetação e da Comunidade.
Podemos observar a seguir, num trecho do texto da personagem Homem do Barranco, já
adaptado sob a inspiração dos termos bíblicos, dos livros do Gênesis e de Jó, quando a
personagem principal deflagra força física e de interpretação ao termo do gênero do poema
dramático, numa cena central de parte da peça, reafirmando o discurso de Dona Joana, a partir
de interrogações proferidas:
HOMEM DO BARRANCO – Quem abriu regos para o aguaceiro, ou
caminhos para os relâmpagos dos trovões, para que faça chover sobre a
terra, onde não há ninguém, e no ermo em que não há gente, para
dessedentar a terra deserta e assolada e para fazer crescer os renovos da
erva?
Quem mandou cortar os troncos, onde eu me ancorava?
De que ventre procede a água?
Acaso a chuva tem pai? Acaso a chuva tem pai?
[...]
HOMEM DO BARRANCO –Tal como a nuvem que se desfaz e passa,
aquele que desce à sepultura, jamais tornará a subir.
Vós sois de ontem, e nada sabeis!
Porquanto nossos dias sobre a terra são como a sombra e a tua confiança é
teia de aranha. Encostar-se-á à tua casa, e ela não se manterá. Agarrar-se-á
à ela, e ela não ficará em pé.
A terra está entregue nas mãos dos perversos. São todos mortais!
O Homem do Barranco é a personagem que constrói certo equilíbrio no texto e
espetáculo, tanto na dimensão da estrutura do poema dramático quanto na dimensão do seu
discurso, mediando com as personagens femininas o começo, meio e final da peça teatral. Ele
abre o espetáculo com sua figura já no chão com o corpo alongado para a lateral direita
sustentado pelos braços, surgindo de dentro do tecido que passa a idéia de barro-barranco e
fala texto até o momento da aparição da personagem Lavadeira. Este volta à cena, somente no
final do espetáculo, após os textos das personagens femininas: Lavadeira, Mãe Oxum e
Ceramista.
Como se trata de uma personagem “coringa”, comanda e direciona o espetáculo, a
direção fez opção por uma única peça de figurino. Uma calça reta de algodão cru, na mesma
textura do tecido que cobre todo o palco, para facilitar a composição dos demais figurinos das
personagens femininas. Ainda, tirou-se proveito do cabelo do ator como descreveu a
Professora Catarina Sant‟Anna, em sua crítica:
A direção deixa em destaque a figura de grande presença cênica de
Carlinhos Ferreira, cuja elegante gestualidade de seu corpo de “asceta” tira
32
proveito igualmente da vigorosa cabeleira natural, que empresta ao
personagem uma aura andrógina muito adequada à construção do mito.
(SANT‟ANNA, Diário de Cuiabá. Ilustrado. Cultura, p. E5, 1995).
Vejamos outro trecho do texto dramático, quando a personagem Homem do
Barranco, encerra o espetáculo passando a idéia de morte.
HOMEM DO BARRANCO – Deixa-me.
Deixa-me, pois!
Nasci Deus, homem, escravo, livre, cujas mãos esculpem do barro, o rosto
de Deus, sob o mesmo sol novo, continuamente, resposta da pele rubra dos
figos ao caírem no chão.
Fere-me com ferimento sobre ferimento.
Onde estão os juízes que me condenaram?
Estou farto da minha vida.
Não quero viver para sempre, mesmo sabendo que não vou morrer nunca!
A Lavadeira é a segunda personagem por ordem de entrada em cena e a primeira
figura feminina a aparecer na história. Esta se encarrega de contar sobre as enchentes que
aconteceram na comunidade, em especial sobre a de 1974. Seu texto é falado com a utilização
de forte sotaque como contextualização de características dos ribeirinhos do vale do rio
Cuiabá, também conhecido como região da Baixada Cuiabana.
O texto da personagem Lavadeira foi construído com o objetivo de provocar uma
variação de ritmos prosódicos, para contribuir com o enredo e com a oralidade do sotaque
regional mato-grossense. Para ressaltar a vida ribeirinha, a personagem recorre a uma fala
calma e tranquila, como as ações da lavagem de roupas às margens do rio. Em outros
momentos, discorre em ritmo mais acelerado, se ocupando em mostrar por meio do próprio
ritmo do texto, que as águas adentravam as casas da comunidade como enorme força, levando
tudo. Num trecho do texto da personagem Lavadeira, podemos observar exatamente essa
passagem verbal e de ritmo e contra-ritmo da ação cênica, no texto:
LAVADEIRA – Óia dgente, toda vez que principiava a temporada das
chuvas, a gente começa a po sentido no rio. Dia após dia, eu pedia pra São
Gonçalo, não deixar a água subir, pra cima do barranco. No altar do Santo,
a vela ficava acesa e todas nós, fazia promessa pra São Gonçalo. A água
vinha subindo de mansinho... e, quando assustava... (ator levanta-se e veste
saia num rápido impulso)...tinha que fazê pulero pras galinhas, atrepá as
cerâmicas, tirá os mantimentos do chão, guardar lenha no alto e tomá conta
das crianças, pra num serem picadas por bichos.
33
De dia, a gente via a água lambê a parede da casa, aos poucos ia entrando,
quando dava por conta, já tava no joelho. Aí não dava mais pra duvidá. Era
hora de dar providência na retirada.
Ajuntava todas nós.
Eu, Domingas, Iranil, Comadre Antônia, Dona Lourdes, Biloca, Dona
Preta, Biuína, Dona Ana, Dona Maria Rodrigues e o resto da muierada;
adjuntava as crianças pequenas e ia fazê a mudança.
Candi, Zeno, Bugre, Seo Clínio, Fernando, Cândido, Manezinho, Tico, Jairo
e Xico, juntava tudo com o resto da homaiada, ia construir o acampamento,
pra mode acomodá o pouco que restava.
Não sobrava quase nada, dona! Nunca sobrou muita coisa.
A água levava: cama, colchão, roupas, sapatos, mantimento, cerâmica,
derrubava nosso forno, não sobrava um bambolê se quer!
A correnteza, passava por essas mangueiras aqui, parecendo um motor,
“brum, brum...”, levava tudo. Não sobrava nada!
Como a casa era de pau-a-pique, o barro encharcava d’água e vinha tudo à
baixo; ficava só os pau!
Podem-se observar neste trecho, detalhes de situações vividas pela comunidade nas
épocas de enchente. O acender da vela no altar do Santo, as promessas sendo feitas por grupos
de vizinhança, a maneira e a pressa com que guardavam os mantimentos, tralhas de serviços,
roupas, o cuidado com os animais domésticos e ainda, a preocupação com as crianças, para
não serem picadas por bichos.
O texto da personagem Lavadeira revela dois momentos de estrema coragem dos
moradores do povoado. O momento da retirada de suas casas com a mudança e as pessoas da
família que geralmente abrigavam-se em escolas e casas de parentes, e o momento do retorno
para as suas casas, após as cheias, período que variavam entre quatro a oito meses. Vejamos
no texto a seguir, como esse trecho da dramaturgia foi construído:
LAVADEIRA – [...] quando a gente voltava pra casa, depois da enchente,
tinha que tirá o barro de dentro de casa. Era uma lama pesada, que só
vendo. Dava por mais de palmo.
E ainda tinha que convivê com muita aranha, cobra e a carniça de bichos
mortos pelo terreiro, até o sol esquentar bastante mesmo, pra secar o
lamaçal.
Era febre que dava nas crianças, nós adultos, ficava todos constipados.
Mas já era hora de começar tudo de novo.
Deixava a casa, mais ou menos arrumada, né, e já começava a dá
providência no serviço.
A cerâmica aqui é nosso ganha pão!
Construía o forno novamente, buscava o barro e já ia labutá, com a fazeção
das vasilhas.
Era fazê, queimá, punha tudo, tudo na canoa e pegava o rumo do porto pra
mode vendê.
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Por causa da enchente, a estrada ficava uns pedaços impedidos, não
aparecia compradô.
Mas logo, logo, vendia toda a fornada. Uma peça hoje, outra amanhã,
trocava por verdura, ou então, por um outro alimento, mas vendia. Não
tinha outro jeito, o que que tava pra fazê.
Isso sem falar, na festa de São Gonçalo, nosso Santo Padroeiro. Ah! Já fazia
altar bem bonito, com flores, bandeirolas, missa com Vigário, procissão,
chá com bolo, recebia os convidados, com a maior felicidade. A beira desse
rio aqui, ficava qualhado de gente, mas o licor e a comida dava pra todo
mundo, nunca faltou. É por isso que São Gonçalo, sempre ajudou nós, festa
dele, é Sagrada, não passa em branco.
E viva São Gonçalo, minha gente!
É a personagem Lavadeira que na encenação dá a “passagem” para a personagem
Mãe Oxum, segunda personagem feminina na dramaturgia. A personagem Mãe Oxum tem
seu texto baseado e inspirado em falas de diversos ceramistas e pessoas do povoado
ribeirinho. Em especial da Senhora Joana Maria da Silva que por muitas vezes, ao construir
determinado esforço e expressão nas suas declarações, já se posicionava de pé com os braços
erguidos ao alto e produzia texto de uma ordem dramática, como forma de oração.
Essa personagem tem somente uma aparição na dramaturgia, um momento em que a
personagem Lavadeira profere texto sobre a maneira como a água da enchente cobria as suas
casas e fala da necessidade de buscar forças espirituais, anunciando assim a entrada da
personagem Mãe Oxum, como podemos ver a seguir:
LAVADEIRA – A água cobria toda a casa, ficava só com a cucuruca da
cumeeira pro lado de fora.
Foi, ói, a quarta vez que deixei minha casa por causa da enchente.
Foi aí que eu apelei, pra força, da minha protetora “Mãe Oxum”!
(Neste momento, volta toada de Siriri, de fundo, ator constrói performance
arrodeando, mudando a saia para o outro lado, para transformar-se em Mãe
Oxum. Foco da lavadeira é apagado e acende-se foco azul para a Mãe
Oxum).
MÃE OXUM – Eu venho das cachoeiras, dos córregos, dos corichos, dos
rios, das águas doces. Estou presente nas enchentes, nas torrentes, nas
chuvas e nas enxurradas. Atravesso o pescador nas águas, sou braço forte
do remador, abro caminho, para o oleiro buscar seu barro.
Sou Nossa Senhora das Candeias, no altar. Nas águas doces, sou Oxum.
E quando precisarem de mim entrem nas águas sem medo, que remarei com
todos, nesse caminho azul!
A cena é deixada pela personagem Mãe Oxum que dá lugar ao retorno da
personagem Lavadeira, que encerra o seu texto, contando a maneira pela qual as pessoas da
Comunidade conduziam o retorno às suas moradias e reorganizavam as suas vidas e o
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trabalho cotidiano. Novamente, é a personagem Lavadeira que dá “passagem” à personagem
Ceramista, terceira e última personagem feminina a entrar na dramaturgia.
Entre as personagens, os textos no curso do popular ribeirinho, temos a personagem
Ceramista, inspirada na figura da Senhora Joana Maria da Silva, que conta, por meio de uma
entrevista, causos da Comunidade e descreve o processo da manufatura da cerâmica de
maneira teatral, e a cada trecho da sua interpretação, torna lúdico o relato, ao ponto de me
convidar a tocar no barro e sentir inclusive, a sua temperatura. Entre a sua “interpretação” e o
seu relato, é bastante presente a construção de uma “poética cabocla”, construída ali, talvez na
mesma dimensão de que é moldada a cerâmica, uma dimensão da cultura singular que
contribui como sendo um forte acento antropológico, nos dizendo que o texto para o
espetáculo, está pronto. Vejamos a seguir, como a personagem Ceramista adentra a
dramaturgia, inicialmente “convidando” o então “jornalista, entrevistador” a entrar em sua
casa-quintal.
CERAMISTA – Ora, seu moço, vamo entrando...
Ah! Num liga, moço, aqui é assim mesmo...
... a casa é nossa, ...
Pois senta, seu moço...
(mostrando um banco imaginário no centro do palco. Neste momento, ator
inicia-se o texto passando a impressão de um diálogo entre a ceramista o um
pesquisador ou jornalista, que a cada espaço entre as respostas, passa-se a
intenção de que há perguntas. Ator inicia a ação do amassar o barro).
CERAMISTA – Meu nome é Joana...
Quer dizer, Joana Maria da Silva, é meu nome de batismo, mas o sinhô pode
me chamá de Joana Ceramista...
ENTREVISTADOR – (PERGUNTA IMAGINÁRIA)
CERAMISTA – Ah! Já faz muito tempo, né.
Desde que eu me entendo por gente, já labutava com o barro.
Tinha uns onze, doze anos, sim Senhor!
ENTREVISTADOR – (NOVA PERGUNTA IMAGINÁRIA)
CERAMISTA – Eu gosto!
Quer dizer, eu aprendi a gostar; porque quando a gente é criança, a gente
não dá valor pra nada, não é. Depois a gente cresce, vai pegando gosto, aí,
fica no vício.
ENTREVISTADOR – (PERGUNTA IMAGINÁRIA NOVAMENTE)
CERAMISTA – Ah! Foi minha mãe Maria Domingas, que me ensinou.
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Aqui, todo mundo luta com o barro e a cerâmica passou a ser nossa cantiga
de roda.
A gente peloteava, fazia bonequinhos, boizinhos e, nessa de amassa aqui,
amassa ali, a gente aprendeu a sová o barro, a dá ponto nele, pra mode fazê
as vasilhas.
Em determinado momento do texto, durante a entrevista a personagem Ceramista
fala sobre o sincretismo religioso, lendas e tradições míticas que acontecem na região da
Comunidade. Na dramaturgia, esse texto tem um curso mais lento e a forma de um conto,
contado aos poucos, com maior respiração verbal que os demais textos das personagens
anteriores, configurando uma atmosfera de suspense. A personagem Ceramista encerra a sua
cena, relatando os mistérios que acontecem no povoado à margem do rio, envolvendo a
personagem Homem do Barranco e sua história mítica. Ao final, a personagem constrói ação,
narrando uma situação inusitada que aconteceu com ela na sua residência, por ocasião da
visita de uma equipe de reportagem de uma emissora local, na busca de informações sobre o
não repasse de recursos financeiros da Casa do Artesão, aos artesãos da Comunidade de São
Gonçalo Beira Rio.
CERAMISTA – Olha seu moço, toda vez que o meu povo vem no barranco,
sabe o dia que vai chover, sabe o dia que vai fazer sol, sabe o dia que a
noite vai esconder a lua. E quando aqui não tem lua, seu moço, o meu povo
sabe que não adianta por canoa no rio.
Aqui, fica um silêncio, que só!
Aqui já foi enterrado muitos índios, muitos canoeiros, muitos pescadô.
Uns que morreram na água, outros que morreram no barranco.
Dizem até que é um deles que vive sentado aí, na beira do barranco, pra
mode cuidar de nós.
Dizem que é o Homem do Barranco.
É por isso que nossa canoa, nunca mais afundô!
Aqui, sempre quando é noite de lua cheia, o rio fica barrigudo, inchado!
É quando o Homem do Barranco toma conta do rio. Ele fica bem alí!
Ancorado, feito um batelão.
Ninguém enxerga ele.
Mas a gente sabe que ele ta lá.
Pois ele responde tudo que a gente pergunta!
Uns dizem que ele é índio, outros dizem que ele é branco igual nós; bonito,
fala mansa.
Mas não deixa ninguém cortar um galho de sarã, nem derrubar barranco.
Engraçado seu moço, que quando eu to com a mão no barro, eu não vejo
nada, fico distraída que só vendo, quando assusto, a vasilha ta pronta.
Acho até que é esse tal de Homem do Barranco que vem dá ajuda preu.
Olha! Dizem até que quem conseguir enxergar ele, tem vida longa, não
morre nunca.
Eu acho que eu to pertinho, pertinho de vê ele.
(Emocionada, demonstrando grande alegria).
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CERAMISTA – Pois outro dia, eu ia aqui, beradiando, beradiando o rio,
pra mode pegá uns galhos de sarã, pra cobri o barro, né! De repente, fiquei
zonza, zonzinha!
Minhas vistas escureceu tudo.
E quando abri os olhos, vi uma coisa saindo de dentro do rio, deste
tamanho.
(Desenha o monstro com o seu corpo)
CERAMISTA – Meu corpo arrepiou tudo!
Ainda era cedo, e não era noite de lua cheia, não!
De repente, escuto alguém pedi pra mode eu voltar pra casa.
Ah! Seo moço! Benzi o corpo, pedi proteção pra São Gonçalo, fiz meia volta
e a coisa sumiu. (Entra outro Siriri)
Espia aí!
O moço foi inté embora!
Mal agradecido!
(Ator vira-se para traz, tirando a saia da personagem Ceramista, que
dependura em um outro varal aéreo no fundo do palco. A luz é cortada.
Entra música tibetana e com ela o Homem do Barranco retoma a mesma
posição deixada no primeiro quadro).
Após a cena da Ceramista, volta à cena o Homem do Barranco, com seu texto sobre
a morte. Não só da morte humana, mas chama a reflexão da morte ambienta. Esta ideia
permeia toda encenação, a fim de mostrar como a comunidade tem perdido seus recursos ao
longo dos anos.
HOMEM DO BARRANCO – Estou farto da minha vida, não quero viver
para sempre! Mesmo sabendo que não vou morrer nunca! Enquanto, pois,
existir o barro, barranco serei! Serei vida nas mãos do povo que me busca.
O pó, pai e neto do meu corpo enlamaçado, lançará feitos no decorrer dos
séculos, que durará a eternidade e serão urnas para guardar o pouco que
sobrar de mim. E sobrará pouco, muito pouco. O Senhor Deus mandará
águas do céu para lavar a mim, tornarei a ti, barranco límpido, espaço
vicinal dos que constroem a procissão do encontro. Não serei o caminho!
Nem a verdade, nem a vida! Apenas viverei para sempre. (Transcrição livre,
adaptada por Carlos Roberto Ferreira de parte do Livro de Jó para o texto
Homem do Barranco).
Por outro lado, fica claro no texto, durante toda a encenação, a existência de grande
preocupação com o meio ambiente. Tais traços estão presentes nos textos de todos os
personagens, comungando com o valor que o sincretismo religioso opera sobre a comunidade.
Percebe-se também que a própria cultura ribeirinha possui em seu universo simbólico
questões ambientais que passam por proteger elementos como a água, o barro, os peixes, a
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vegetação e os animais. Este assunto está presente na fala dos personagens da peça em
questão, por entender que isto caracteriza a vida na beira do rio.
Sobre a dramaturgia proposta aqui, bem como o valor e importância que cada
personagem tem dentro do texto da peça Homem do Barranco e sua constituição teatral,
ressaltando ainda o valor que a comunidade de São Gonçalo Beira Rio exerce sobre a
sociedade em geral, através da sua cultura e herança antropológica, vale ressaltar a eficiência
do trabalho que ali desenvolvem artesãos, pescadores, benzedeiras, festeiros, dançarinos de
siriri, cururueiros e todos aqueles que vivem por algum momento o seu estado de
pertencimento envolvido com os fazeres da comunidade.
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CAPÍTULO 2
POEMA DRAMÁTICO E ENCENAÇÃO
2.1– Homem do Barranco: um poema dramático
O poema dramático Homem do Barranco é resultado de um percurso de convivência
realizado na comunidade de São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá – MT, entre os anos de 1993
e 1994. Trata-se de um texto dramático que conta histórias de um povoado ribeirinho que
constrói suas vidas a partir do barro e da cerâmica; falam das suas vivências cotidianas e por
meio de narrativa, expõem suas crenças, mitos, lembranças e paixões.
Independente de sua realização cênica, uma estética ou gênero da literatura
dramática, o poema dramático tem uma tendência a ser rejeitado como secundário ou menos
precioso que o poema ou a poesia em si. A literatura teatral de um modo em geral, utiliza o
termo “poema dramático” e considera que o texto é uma primeira e incompleta etapa da
representação. Embora no período clássico e até o século XVIII, quando o poema dramático
era, na maioria das vezes, escrito em alexandrinos, se falava em poesia dramática ou poesia
representativa e “considerava-se que o poema é que deve ter todas as indicações necessárias a
sua compreensão e os discursos nele representam as ações de tal forma que agir seja falar”
(PAVIS, 1999, p. 293).
A estética ou gênero “poema dramático” que se destina realmente à cena e é
composto de uma série de textos poéticos, tem o seu lugar também, como poesia no teatro, ou
trata “do lugar da poesia na dramaturgia e na encenação contemporâneas”, como prefere
PAVIS (1999, p. 294). A poética do poema dramático agrega “força a representar suas
relações como naturalmente problemáticas. A poesia se basta, contém suas próprias imagens,
ao passo que o texto dramático está à espera de um palco e de uma interpretação” (PAVIS,
1999, p. 294).
O texto dramático de Homem do Barranco foi construído, a princípio, a partir de
uma única personagem que leva o mesmo nome do texto e do espetáculo teatral, cuja
influência literária para a construção da força dramática da personagem foi encontrada nos
livros bíblicos do Gênesis e de Jó. A sua criação foi-se fortalecendo enquanto gênero teatral, à
medida que outros três personagens surgiram no contexto da dramaturgia: uma Lavadeira que
conta história das enchentes que atingiram o povoado ribeirinho de São Gonçalo com grande
40
incidência no ano de 1974; a Mãe Oxum que aparece como protetora dos remadores e dos
pescadores ribeirinhos, e a Ceramista, inspirada na figura da Senhora Joana Maria da Silva,
benzedeira, artesã e líder comunitária, que fala texto sobre a manufatura e a luta com a
cerâmica naquela comunidade. Com esse encontro de personagens de imagens simbólicas
reais e ficcionais no universo ribeirinho, buscou-se inspiração nos textos bíblicos, para que os
personagens ganhassem expressão dramática no conteúdo e na forma da encenação. Essa
expressão dramática deve-se à realidade da vida sociocultural do povoado, que denuncia e
expressa a sua luta política sem muitas conquistas ou vitórias sociais nas últimas décadas.
O texto dramático Homem do Barranco, nasce primeiramente de um roteiro e depois
é ampliado para um texto teatral do gênero espetacular – poema dramático. Uma das
características do texto dramático, incluindo conteúdo e forma, é a presença do chamado texto
principal, composto pela parte do texto que deve ser dito pelos autores na peça e que, muitas
vezes, é induzido pelas indicações cênicas ou didáticas, há também o texto chamado de
secundário, que informa aos atores e leitores, sobre a dinâmica do texto principal.
Dessa forma, o texto dramático foi sendo conduzido pela personagem principal
Homem do Barranco, que intercede ações, media textos e divide cena com as três
personagens femininas: a Lavadeira, a Mãe Oxum e a Ceramista.
O drama é colocado em evidência no texto da personagem principal, mas na escritura
da literatura dramática, os personagens secundários também exercem papel importante. Por
isso, o gênero dramático é considerado um gênero superior. Não porque tenha maior
conotação na linguagem teatral ou no termo e gênero “poema dramático”; mas sim, pela
estrutura construída na própria literatura dramática: divisão e composição dos personagens;
forma como os personagens estão organizados; a contextualização da peça teatral enquanto
obra verbal. Dessa forma, “o drama é aquela obra de arte verbal, na qual o verbo não está
mais livre, mas contextualizado” (BIRKENHAUER, 2012, p. 183). Em Homem do Barranco
o conteúdo das ações verbais revela o elemento barro desmembrado e constituído, tanto no
discurso da personagem principal por meio de texto com a intenção do clássico / filosófico,
quanto, pelos personagens secundários cujos textos decorridos na projeção do popular /
regional-ribeirinho, demonstram singularidade de ações e reações teatrais ao tempo em que
agregam valor dramático para o conjunto do espetáculo.
No conjunto da encenação de Homem do Barranco, no que se refere ao texto, temos
um poema dramático “dividido” em duas partes textuais. Uma parte é realizada pela
personagem principal que utiliza de textos verbais e não verbais. Uma ordem de textos
ausente de uma cronologia, mas que contém intenção dramática enquanto forma, por
41
apresentar os esboços das ações para um acontecimento ficcional. A segunda parte,
comandada pelas personagens femininas, apresenta textos que apresentam uma realidade não
ficcional, dramatizado por meio de uma Lavadeira e de uma Ceramista, figuras do cotidiano
real e muito presentes na Comunidade ribeirinha. Independente da divisão dos textos e da
proposição estética diferenciada dos dois grupos de personagens, o texto verbal que representa
a fala cotidiana une-se ao contexto do poema dramático. Ao ser inserido nesse contexto, a
representação da fala encontra lugar para o drama e a poética teatral situar-se e definir-se em
relação aos problemas e conflitos contidos no texto apresentado, sem bifurcar forças
dramáticas internas e externas enquanto encenação. Nesse acordo, “as teorias mais recentes
do drama também atestam aos textos teatrais o uso poético da linguagem, no sentido de que
eles não se definem pelo representado, mas se referem ao seu próprio acabamento formal e ao
processo teatral da representação e da percepção” (BIRKENHAUER, 2012, p. 183).
Os textos dramáticos, as falas dramáticas para determinado papel ou a sua
qualificação enquanto “poesia”, ainda não se apresentam com definições pontuadas ao curso
de um único caminho de afirmações. O que vemos, são variações e construções de textos
dramáticos acerca de uma literatura, cuja referência da construção dramática e seu conjunto
de ações culminam em um texto dramático ou um poema dramático. Ao questionar sobre a
fala dramática enquanto “texto para um papel” e, sobre o que a qualifica enquanto “poesia”,
Birkenhaauer acaba por esclarecer:
Mas o que qualifica uma fala dramática enquanto “texto para um papel”? O
que a qualifica enquanto “poesia”? A tese dos gêneros diz que é a referência
da fala dramática a um contexto de ações, que a torna “texto para um papel”.
Onde se renuncia “as axiomas dramáticas de ação”, onde a linguagem
dramática é libertada da função de caracterizar e diferenciar pessoas, onde a
fala não se refere mais a personagens, ali há „poesia‟. Mas isso significa,
inversamente, que não há “poesia” onde existe um contexto dramático de
ação, personagens ficcionais, indicações de fala referentes a pessoas? Essa
conclusão inversa mostra o quanto tal definição conceitual é discutível. Ela
aponta a dificuldade de uma delimitação que torna o “poético” uma
característica de textos teatrais que desconhecem a fala figurativa e um
contexto de ação. É impossível decidir, pela superfície formal, se um texto
dramático é “poesia” ou “texto para um papel” (BIRKENHAUER, 2012, p.
183).
Portanto, o poema dramático, não necessariamente, precisa ter a extensão de uma
epopéia propriamente dita. O drama é um objeto de uma representação real, mas, ao mesmo
42
tempo, o principal interesse do drama reside não nas realizações reais, mas nos sentimentos
íntimos deflagrados pelos poucos personagens, nele contido.
Enquanto proposta de uma literatura dramática para uma encenação no tempo
presente, ao “sabor” do gênero do poema dramático, o texto Homem do Barranco se encontra,
de certo modo, no centro, entre a extensão da epopéia e a concentração da poesia lírica, cujos
personagens comungam do discurso literário, sem ferir a construção dramática do texto
enquanto poema, tanto no universo filosófico, quanto popular-regional da peça. No texto do
gênero poema dramático, o espaço de uma liberdade concentrada na literatura tem colocado o
drama a par de uma encenação a partir de conteúdos oriundos dessa mesma literatura. A
literatura em geral, sempre proporcionou explorar o espaço cênico com a utilização de
poesias, contos, lendas, crônicas, entre outros, o que vem de encontro com a representação de
encenações de trabalhos individuais, diálogos ou mesmo de trabalhos coletivos, construídos a
partir de uma literatura que passa então, a ser dramática. Decorridos os usos desse tipo de
texto no teatro ao longo dos séculos, não se encontra na história do drama uma espécie de
rubrica ou roteiro que determine ou apresente uma forma de como se deve proceder com a
literatura na construção do texto dramático. Vejamos como Birkenhauer nos esclarece a sua
compreensão.
Nenhum texto dramático prescreve como deve ser lido; se um texto é
denominado “poético” ou não, não é determinado por um caráter que possa
ser definido conceitualmente como “dramático” ou “não-dramático” em si.
O poético é uma dimensão da linguagem dos textos que pressupõe, para ser
materializada, uma determinada prática de leitura ou montagem, que produz
ou revela essa dimensão – ou não. A tentativa de uma definição inequívoca
de características do “dramático” corre o risco de identificar convenções de
encenação com a forma literária dos textos. Uma caracterização da função de
texto no drama principalmente através das propriedades “fala de
personagem” e “referência do diálogo à ação”, remete em primeiro lugar a
uma determinada prática de encenação (BIRKENHAUER, 2012, pp. 183,
184).
Nessa liberdade de expressão no entorno da construção, encenação e utilização do
texto dramático e sua forma, evidencia-se uma “determinada prática de encenação” que o
curso da história do drama não conseguiu alterar, opor ou transformar. A liberdade de
expressão contida nas encenações teatrais que apresentam resultados a partir da literatura
poética e ou dramática, talvez seja o próprio mediador dessa prática que se envereda de
43
acordo com as transformações e resignificações ocorridas no teatro, quando este “ameniza” o
seu fazer no poema dramático e começa a ingerir a forma do pós-dramático.
O período de transição de uma forma, conteúdo, estética ou modalidade da espécie e
característica dos textos teatrais para encenação não é mensurado em igual proporção de
tempo e época, considerando as diferenças de estilos. Esse percurso ou período de transição,
em especial, do dramático para o pós-dramático, também se apresenta de maneira espontânea
no contexto da criação, haja vista que nas duas “estéticas” textuais, o drama se encontra
presente e reafirmado como uma forma, embora com estrutura diferenciada. No primeiro caso
– do dramático – aparecem os “acontecimentos ficcionais”; no segundo caso – do pós-
dramático – o texto deve ser lido como “poesia”. Sobre esta cesura, Birkenhauer esclarece:
O que se afirma é uma cesura entre o teatro dramático – enquanto lugar de
personagens que falam no contexto de ações ficcionais – e o teatro pós-
dramático, enquanto lugar de discursos polifônicos e de significantes soltos.
A essa concepção se junta uma tese sobre a função da língua. No teatro
dramático, assim ela diz, o texto apresenta os esboços de ação para um
acontecimento ficcional e é texto de uma personagem (portanto, fala
figurativa). Textos teatrais além do drama, no entanto, mostram uma
tematização auto-reflexiva da língua e deveriam ser lidos enquanto “poesia”:
Libertado da polifuncionalidade fundamental da comunicação cotidiana, ou
seja, da comunicação puramente referencial de informações, a linguagem no
texto teatral pode ativar preferencialmente a função poética de seus signos
(BIRKENHAUER, 2012, p. 182).
No teatro pós-dramático, podemos perceber em suas concepções teóricas um
interesse em renovar a sua estrutura de tensão, drama, ação e encenação. Nesse caso, “não era
mais o texto para os papéis que considerava como a essência do texto teatral, e sim, o texto
como poesia, que por sua vez deveria corresponder à própria „poesia‟ do teatro”
(BIRKENHAUER, 2012, p 183). Esse espaço da poesia no teatro teve um considerável
percurso de improvisações dramáticas e de ações teatrais alimentadas ao curso de roteiros
estéticos providos de uma literatura de “efeitos” que o momento oferecia e, ainda, de textos
teatrais inacabados utilizadas pelos atores, diretores, grupos e companhias teatrais. Essa
ausência de estruturas dramáticas é responsável pelos resultados precoces que aparecem nas
improvisações cênicas teatrais na atualidade. Esse desempenho teatral, carregado de uma
performatização ainda é utilizado por diversos grupos, companhias, diretores e atores que
tentam utilizar do termo “teatro contemporâneo”, para justificar a ausência de uma estrutura
dramática, na sua produção teatral, o que acaba por expressar uma espécie de “banalização”
das estruturas e estéticas utilizadas no teatro.
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O que podemos considerar nessa passagem de uma forma pra outra, de um estilo para
o outro, ou de uma estrutura para a outra dentro das formas teatrais aqui já discutidas, é que as
encenações têm resultados sob a perspectiva da “marca” ou da qualidade da escrita dramática
explorada, cuja estrutura nem sempre se apresenta dentro de um conjunto de formalidades
dramatúrgicas. Neste sentido, todas essas estruturas dramáticas vão marcar presença, criando
outras perspectivas no território do teatro contemporâneo. Embora essas mesmas estruturas e
formas dramáticas já tenham sido criticadas pelos especialistas no assunto em detrimento da
ausência de rigor teórico. Mas é justamente a ausência desse rigor teórico que vem corroborar
com o assentamento dessas estéticas no cenário teatral, demarcando um território de “novas”
perspectivas para o teatro contemporâneo.
Vejamos que o percurso da pesquisa realizada para essa primeira escritura do texto
dramático, o período em que o poema dramático Homem do Barranco ficou em cartaz, sua
opção de montagem, encenação e o seu resultado estético compreendem um conjunto de
ações destinadas a um fazer teatral que nada o impede de se adequar, de se reconfigurar, de se
reescrever para o tempo presente, na estética da performance. Essa reescritura será respaldada
pela concepção teórica do teatro pós-dramático e da performance, reescrever a peça em uma
outra estética irá agregar novos significados a mesma. Estas mudanças podem ser
direcionadas para representar as próprias mudanças na comunidade.
2.2 – Homem do Barranco: encenação como pertencimento
Com luz apagada, soa no ar, um canto tibetano com o intuito de representar força e
serenidade. Aos poucos aparecem alguns raios de luz que clareiam o imenso chão do palco. O
lugar está vazio, e antes que a luz ilumine todo o espaço, ouve-se voz:
VOZ – Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou
nas narinas um fôlego de vida, o pó é um sopro! A vida é um sopro!
Surge então, lentamente, do “barro”, em penumbra, um homem com pouca veste e
uma grande cabeleira; é o Homem do Barranco. Nesse momento, já com o tronco alongado e
sustentado pelos braços, o ator com olhar indireto, fala texto.
HOMEM DO BARRANCO – Estou farto da minha vida, não quero viver
para sempre!
Mesmo sabendo que não vou morrer nunca!
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Neste momento, abre-se um foco de luz, podendo vê-lo de frente, com o aumento do
volume da música tibetana. Mudando de posição, com o tronco já para frente, ator fala texto
para o público.
HOMEM DO BARRANCO – Enquanto, pois, existir o barro, barranco
serei!
Serei vida nas mãos do povo que me busca.
O pó, pai e neto do meu corpo enlamaçado, lançará feitos no decorrer dos
séculos, que durará a eternidade e serão urnas para guardar o pouco que
sobrar de mim. E sobrará pouco, muito pouco. O Senhor Deus mandará
águas do céu para lavar a mim, tornarei a ti, barranco límpido, espaço
vicinal dos que constroem a procissão do encontro.
Não serei o caminho!
Nem a verdade, nem a vida!
Apenas viverei para sempre.
A partir da reunião de versículos do livro Bíblico de Jó, transcritos pelo pesquisador
com o objetivo de ampliar a dramaturgia para o texto Homem do Barranco, encontra-se nos
trechos acima, que abrem o espetáculo, certa medida e dimensão dramática necessária para
expressar o modo de vida do povoado ribeirinho de São Gonçalo Beira Rio e suas inquietudes
sobre as questões da defesa e luta pelo seu território ambiental. O texto versado pela
personagem Homem do Barranco foi inspirado e livremente transcrito dos livros Bíblicos do
Gênesis e de Jó, com a intenção de passar os desgastes sobre o meio ambiente pelos quais a
comunidade já vivera na década de 1970 e se repetia na década de 1990: rio poluído e
desbarrancado, vegetação destruída, território físico árido, escassez do barro, entre outros.
Esses são alguns dos motivos que contribuíram sobremaneira para a ausência da auto-estima
do povoado, sobretudo a dificuldade de se manter o sentimento de pertencimento dos
moradores, o que oferece parcela de investigação na pesquisa, sobre os problemas gerados na
região, oriundos das adversidades sociais, políticas, econômicas e ambientais. Essa ausência
de auto-estima e do sentimento de pertencimento era visível nos moradores que a todo o
momento discursavam com grande insatisfação sobre os problemas que os acercavam na
dimensão ambiental, resvalando no social, implicando redução significativa da economia
local. A instalação de dragas no curso do rio na região para a exploração da areia; a proibição
da retirada do barro da barranca do rio nas imediações do povoado para a produção da
cerâmica; a devastação ambiental provocada pelo uso indevido de máquinas e caminhões na
retirada e transporte de areias para a indústria da construção provocou uma desolação
ambiental e desgosto humano em maior proporção que as enchentes de 1974. Os desgastes e
prejuízos econômicos e sociais provocados pelas enchentes na década de 1970 advinham de
46
fenômeno da natureza, enquanto que a desolação ambiental, a ausência de auto-estima e de
sentimento de pertença ocorridos na década de 1990, era e ainda são, todos provocados pela
natureza humana e política.
Era a década de 1990 se apresentando à comunidade com outras intempéries que
recorriam na necessidade de maior apreço, afeto, sentimento e ação política do povoado, que
também exigia maior ação coletiva que as já praticadas no período das enchentes na década de
1970. Dada a essa realidade social é que se trabalhou na perspectiva de uma dramaturgia que
pudesse contribuir com a auto-estima e com o fortalecimento do sentimento de pertença desse
aglomerado ribeirinho. Sendo o sentimento de pertencimento assunto e conteúdo presente nos
estudos culturais contemporâneos cada vez com maior freqüência, este vem também, sinalizar
no contexto social onde existem grupos envolvidos na exclusão e na desigualdade social.
Ainda, estes estudos que dissertam sobre sentimento de pertencimento tem se afirmado na
busca de um desejado bem aglutinador comum que expressam os fluxos e os contra fluxos
favoráveis à inclusão das sociedades e grupos marginalizados, emancipando-os de um
sentimento e pertencimento também cidadão.
Tratamos aqui da encenação do Poema Dramático Homem do Barranco, como
pertencimento. Pertencimento para uma Comunidade ribeirinha que pode ter na voz da
personagem Homem do Barranco, os seus apelos sociais sendo apontados para caminhos que
contribuam com a elevação da estima perdida por vários anos de desolação ambiental, social e
econômico.
O sentimento de pertencimento, bem como a ausência deste, que abordamos sobre a
Comunidade de São Gonçalo Beira Rio é tema inserido na inclusão e exclusão social que se
manifesta hoje cada vez mais não só em suas áreas disciplinares de origem como na
antropologia, na política, na comunicação e no processo de globalização, como nos informa
Souza, 2010.
“A presença constante do pertencimento, da cidadania, da identidade, da diversidade
e da diferença, em diferentes ângulos da compreensão da sociedade atual, sinaliza a
manutenção, quando não o acirramento, de tensões e conflitos históricos que se
manifestam como linguagens dos desencontros, ainda hoje presentes, entre o
indivíduo e a sociedade. São manifestações práticas do cotidiano social e cultural,
sinalizando uma sociedade de exclusões crescentes e explicitando, pela necessidade
do pertencimento, crises e dificuldades pelo enraizamento sociais e políticos,
culturais e sociais: uma sociedade, que convive ao mesmo tempo, com processos de
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fragmentações crescentes da vida individual e coletiva e com processos políticos,
econômicos e culturais da globalização.” (SOUZA, 2010, p. 33).
Ao colocar a encenação do poema dramático Homem do Barranco como
pertencimento, apontamos para o fato de que ele se traduz de forma visível, em sentidos e
motivações diversos, presentes na vida sociocultural do povoado ribeirinho. Ainda, o
pertencimento refere-se como mais um elemento, pelo menos de tentativa, da melhoria dos
aspectos que possam contribuir com a elevação da estima individual e coletiva e do
pertencimento comunitário enquanto força política interna da Comunidade. É justamente essa
força política comunitária que pode emanar para os seus indivíduos, outras forças para um
pertencimento mais globalizado, indo ao encontro de outros meios que possam contribuir com
a perspectiva de vida e de produção individual e coletiva: seus bens comerciais; seus
elementos de manifestações populares; seus encontros religiosos; suas maneiras e práticas
com a sua produção cultural vigente.
Se assim o fizerem, entrelaçar sentimento de pertencimento e força política
comunitária enquanto um conjunto de perspectivas futuras que atendam ao chamado da
globalização pode-se entender que, o “conceito de pertencimento, apesar de mantido o termo,
tem sua significação ampliada e atualizada na proporção em que igualmente assume o de
comunidade, especialmente no estabelecimento de novas fronteiras ante o conceito de
sociedade”. (SOUZA, 2010, p. 36).
A encenação do poema dramático Homem do Barranco foi realizada com
interpretação ao curso do gênero poema dramático, uma vez que o pesquisador já proferia
dramaturgia estruturada para esse feito, buscando ainda ter, tanto na figura da personagem
principal Homem do Barranco quanto nas demais personagens, inspirados na figura da
Senhora Joana Maria da Silva como ceramista, que por muitos anos cumpriu a função de
matriarca não só para a sua família, mas de toda a comunidade. Daí o sentido do gênero
dramático; não por estar esta senhora, sozinha na sua luta cotidiana, provocando um drama
pessoal desmedido, mas por proferir os seus diversos discursos de luta pela Comunidade, com
significativa força e expressão política. Ora mãe, ora benzedeira, ora ceramista, ora líder
comunitária; não tinha nenhuma dificuldade em executar qualquer papel que fosse necessário
aos benefícios e chamados da família ou da Comunidade. Uma só pessoa se ocupando das
diversas tarefas, papéis e porque não, de personagens, deflagradas pelo povoado ribeirinho e
pelas histórias, mitos e lendas ali encontrados. Em alguns momentos o Homem do Barranco
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contava relatos proféticos, religiosos e sacros. Em outros, as outras personagens denunciavam
a difícil trajetória de vida que as enchentes se encarregaram de impor à comunidade e suas
famílias. A personagem lavadeira relata o volume d‟água que chegava a alcançar a altura dos
seus joelhos, quando precisava “correr” da enchente, que de surpresa, tomava conta da sua
casa. Eis que, em uma fala de extrema força mítica e espiritual, ergue os braços proferindo
sobre as forças ocultas e os mistérios que aparecem à margem do rio dando segurança e força
aos pescadores, ceramistas e remadores das canoas na busca do barro. A figura da Ceramista
prostra sua fala com grande alegria e descontração, representando momentos de
entretenimento e beleza da manufatura da cerâmica. Esta relata todo o processo de feitura da
cerâmica, a logística dos produtos para serem levados de canoa até o mercado do Porto. Tem-
se um poema dramático que foi ilustrado pelo povoado pesquisado e seu cotidiano e
personagens.
O cotidiano da cena ribeirinha já havia mostrado para o pesquisador a tamanha força
física de uma Senhora de mais de 75 anos, com apenas 1,55 de altura, pesando menos que
cinquenta quilos. Mas que, a sua força de cidadã, demandava expressão tamanha que
respondia e representava as necessidades de todo o povoado ribeirinho. Generosa na função
de benzedeira, sempre pronta a servir aos que a ela buscavam um socorro. Após encerrar os
seus compromissos com a cerâmica, em virtude da idade avançada e de problemas com a
saúde, passava a maior parte do dia cuidando dos pequenos animais, das plantas do quintal, de
alguma alimentação e descansando em uma rede de fabricação artesanal, como podemos ver a
seguir na figura 1. O corpo franzino e já cansado da luta cotidiana com a vida e com a
cerâmica, e os problemas de saúde, não conseguiram tirar da Senhora Joana, a alegria de
viver. Apesar de muitas vezes apresentar um semblante de preocupação com a própria vida,
logo demonstrava enorme alegria em receber uma visita e oferecer uma xícara de café ali
mesmo, no quintal, sua sala de visitas, sombreada por mangueiras, sentada à rede, seu local de
descanso preferido para as conversas do dia a dia.
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Figura 1. O pesquisador Carlos Roberto Ferreira com dona Joana Maria da Silva em sua casa na Comunidade de
São Gonçalo Beira Rio, Cuiabá – MT, 1994.
Assim, temos então a encenação do poema dramático Homem do Barranco com base
em um estudo elaborado ao curso de um laboratório cotidiano, respaldado por um povoado
ribeirinho centenário, que tem na figura da Senhora Joana Maria da Silva a principal
interlocutora para a dramaturgia tratada e para esta dissertação. Presenciando todo o
laboratório teatral realizado, que posteriormente culminou em pesquisa participativa, a maior
parte em seu quintal, dona Joana interferia com questionamentos oferecendo contribuições
salutares sobre o sotaque e sua sonoridade, os termos mais empregados no universo popular
ribeirinho, sem falar de toda a ordem e sequência da manufatura da cerâmica que não permitia
um atropelo qualquer; havia que ser seguido todo o passo-a-passo da tradição artesã. Ao ver
as cenas das atividades teatrais sendo elaboradas, não hesitava em ficar de pé, aproximando-se
com palavras e sugestões, ajudando na construção das obras. Corrigia as formas dos braços,
os movimentos das cabeças e torcia as rodias – proteção feita de tecidos como toalhas de
mesa, panos de prato, para proteger a cabeça na sustentação dos tachos e bacias com roupas -
e ao final dizia: “está tudo pronto para o teatro”. A sua alegria interna era enorme e
perceptível quando pedia para repetir mais um trecho do texto de que gostava, observando que
a cada dia este estava ficando melhor, dizendo: “parece até com nós daqui”.
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Os laboratórios foram realizados com o acompanhamento e supervisão do diretor
Justino Astrevo Aguiar e do responsável pela idealização da iluminação, Lourivaldo
Rodrigues de Amorim, que também registrou em fotografias, a maior parte dos laboratórios.
Figura 2. Carlos Roberto Ferreira e a ceramista Domingas Leonor da Silva – filha de dona Joana Maria da Silva
em laboratório teatral e fotográfico às margens do rio Cuiabá, São Gonçalo Beira Rio, Cuiabá – MT, 1994.
Na figura 2, está a artesã Domingas Leonor da Silva, filha da Senhora Joana e o ator
e pesquisador Carlos Roberto Ferreira, em uma das “cenas” de um dos laboratórios, onde fica
bastante evidente, a postura da moringa-boneca – vasilha de cerâmica utilitária – em formato
de moringa e busto de boneca, para se colocar água. Nessa figura, aparecem os braços do ator
segurando a saia na altura da cintura, ação comum das lavadeiras, que contribui fisicamente
para sustentar e equilibrar a bacia de roupas na cabeça. Ao fundo, canoas aglomeradas à
margem do rio, representando cenas bastante comuns na época. Esta foto faz registro do ator
fazendo laboratório utilizando a figura da personagem Lavadeira. A saia utilizada foi criada e
confeccionada em retalhos coloridos, para passar a idéia de uma “colcha de retalhos”, objeto e
estilo de customização de roupas de cama e da vestimenta nas regiões ribeirinhas, também
muito empregado na comunidade pesquisada. Isto contribuiu plasticamente com a cena da
Lavadeira no espetáculo. A ceramista Domingas Leonor da Silva utiliza figurino do seu uso
cotidiano na manufatura da cerâmica. A participação dessa artesã foi de grande importância
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para os laboratórios que puderam dar ao espetáculo, significativo sentido de “tradução” das
imagens e plasticidades que cada cena necessitava, conforme a concepção da direção, sem
perder de vista, o conjunto de expressões físico-corporais das pessoas dali. Outra significativa
contribuição da Ceramista Domingas dá-se pelo fato da mesma coordenar o grupo de Siriri da
Comunidade, o que agregou nos laboratórios movimentos, ritmos singulares dessa
manifestação, transferindo para a encenação, grande volume de imagens e movimentos
corporais. Daí a criação e inspiração outra do conjunto de figurinos da encenação; são peças
compostas com tecidos, texturas, composições de retalhos coloridos, chitas de algodão, que
também é bastante empregado nos figurinos dos grupos de Siriri no estado de Mato Grosso.
Existe na tradição artesã, em diversas comunidades e grupos ribeirinhos em várias
regiões brasileiras, a postura de estar de cócoras, abaixar-se, agachado sobre as pernas, ou
sentado ao chão. Essa postura corporal é bastante utilizada pelos artesãos do povoado de São
Gonçalo Beira Rio, principalmente pelos mais velhos durante o tempo da manufatura da
cerâmica. Ali acocorados, sentados ao chão, constroem cada um individualmente, ou em
pequenos grupos, um espaço cênico que rodeia o artesão. Além da porção de barro já
preparada para a manufatura mantida perto do corpo e ao alcance das mãos, coloca-se no
centro, próximo e entre às pernas, sobre placas de madeira ou papelão, a peça que está sendo
manufaturada. Em volta, ou de um dos lados, fica o “cuipé”, uma espécie de vasilha, lata ou
geralmente uma cuia de cabaça, com água ou feramentas-apetrechos técnicos do ofício como:
pequenas facas, pedaços de tesouras, pregos entortados, pedaços de couro bovino curtido,
diversos palitos de madeira de tamanhos e espessuras diferentes, tampas de garrafas, objetos
sutis que moldam flores, folhas e desenhos nos acabamentos contribuindo para a finalização
da peça moldada.
Exatamente sobre a postura corporal das ceramistas, durante a manufatura da
cerâmica, acocorados ao chão, que a direção inspirou-se para a postura corporal da
personagem Homem do Barranco em quase toda a encenação. Como podemos observar na
figura 3, a seguir, a postura corporal da artesã Domingas Leonor da Silva em um laboratório
teatral, onde aparece raspando a peça, dando o acabamento antes de a peça secar totalmente,
para depois ser queimada; aparece sentada ao chão de maneira a perceber a sua leveza
corporal e facilidade com que se desprende fisicamente. O costume e os anos de profissão
concedem leveza à prática da artesã.
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Figura 3 - O ator Carlos Ferreira com a artesã Domingas Leonor da Silva, laboratório teatral,
São Gonçalo Beira Rio, Cuiabá – MT, 1994.
Esta é uma postura corporal explorada comumente pelas mulheres ceramistas, é
muito comum tal prática entre elas nas mais diversas idades e, principalmente nas ceramistas
mais idosas. Comenta-se no povoado que essa postura de sentar-se ao chão, praticada pelas
mulheres de São Gonçalo, tem origem indígena, cuja prática contribui fisicamente para o ato
do parto.
Na encenação de Homem do Barranco, o ator usa postura bastante próxima: joelhos
ao chão do palco, tronco sobre as pernas, o que facilita movimentar o tronco: descê-lo e
levantá-lo durante as cenas, possibilitando alongamentos e repouso da imagem corporal, de
maneira a valorizar a imagem da personagem.
Na figura 4, a seguir, pode-se observar a postura da personagem Homem do
Barranco envolto em grande tecido, de onde emerge o tronco como que saindo de dentro do
interior do barranco ou das águas do rio e do próprio barro.
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Figura 4. O ator Carlos Ferreira em cena da primeira montagem da peça Homem do Barranco,
Cuiabá – MT, 1995.
Portanto, viu-se neste capítulo um conjunto de fazeres desenvolvido em “começo,
meio e fim” do estudo e convívio realizados na Comunidade de São Gonçalo Beira Rio, por
aproximadamente dois anos, a pesquisa participativa realizou-se como uma investigação
artística e sociocultural, onde a dramaturgia da peça Homem do Barranco foi construída
coletivamente, através dos conhecimentos trazidos pelo pesquisados e pelos sujeitos da
comunidade que foram envolvidos.
Consideramos que toda a encenação do poema dramático Homem do Barranco foi
concebida tendo como referência o povoado de São Gonçalo Beira Rio, nas suas dimensões
socioculturais, mais diversas, onde o elemento barro se coloca como um fio condutor e
mediador na construção da poética praticada pela comunidade com a sua gente, com os seus
afazeres culturais, com as suas manifestações populares, com a sua religião, política e vida
social.
Consideramos ainda, o trabalho da Comunidade, dentro da sua mais ampla dimensão,
uma fonte de vida, torna-se fonte de grande valor para a preservação de todos os sentidos
culturais e das manifestações simbólicas ali mantidas. O conjunto de corpos simbólicos pelos
habitantes denotados por meio dos seus fazeres, ritos, mitos, técnicas e saberes, constitui
elemento de valor imensurável para tantos outros estudos e desdobramentos. Seja na
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dimensão da cultura, da arte e da antropologia, seja inserido dentro da dimensão estética, da
poética e das linguagens, seja dentro do universo simbólico, enxerga-se na comunidade e no
seu trabalho, a eminente comunhão com suas manifestações, com sua gente, com o rio, com o
barro e com a cerâmica, assim, presença do seu universo simbólico foi traduzido para o
gênero dramático.
Como demonstramos, o que registramos sobre a convivência com a comunidade de
São Gonçalo Beira Rio para a escritura primeira do poema dramático Homem do Barranco
não é uma interpretação do produto considerado acabado, pronto; mas sim, o “processo de
criação artística” que gerou a obra. Assim entendemos que o produto de que aqui tratamos
não foi “acabado” em sua primeira feitura e construção e nem mesmo, quando da sua
exposição pública pelo período de cinco anos. Trata-se de uma primeira leitura que compõe
um processo de investigação sobre um povoado mutável e dinâmico, onde habita uma
população que comunga e dialoga com a sua própria política socioambiental e cultural e que
possibilitou ser investigada ao tempo e curso da produção artística em eminente processo de
construção.
Mesmo com o fim do período de apresentação da peça, entende-se também que,
assim como em uma encenação teatral, nenhuma cortina se fechou! Nenhum primeiro,
segundo ou terceiro sinal de campainha foi dado ou tocado; nem pelo povoado pesquisado, e
muito menos pelo pesquisador ou pelo público espectador da obra, em contínuo processo de
construção. O “processo de criação artística” e de recriação e releitura se desenrolam e se
desdobram cotidianamente; mesmo que efetue, por algum tempo involuntário, espasmos
escriturais ou de ações cênicas. De modo que a análise dos produtos teatrais passa pela análise
do próprio processo de criação dela.
Portanto, há que rever os rascunhos, croquis, mapas, desenhos e cadernos de
anotações. As mudanças e transformações físicas na região são perceptíveis por todos, como
também, as mudanças socioculturais, que acabam por provocar alterações diferenciadas em
cada membro desse povoado, dado ao seu grau de expressão e vivência e do seu sentimento
de pertencimento enquanto residente de uma vizinhança ribeirinha. Com isso, é nítido
perceber esse aglomerado de artesãos, ceramistas, pescadores, donas de casa e pedreiros
sendo “fotografados” por olhares externos, na sua própria Comunidade, e que o processo
político urbanístico foi involuntariamente estabelecendo em seu mapa geográfico; há que
existir uma película de transparência, cujo reflexo tecnológico, possa tirá-la do tripé da
câmera fotográfica de outrora e colocá-la na contemporaneidade, sobre a grua, ocupando-se
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da velocidade do tempo presente, revelado agora em outra película. O significado dos
símbolos ali existentes vão sendo decodificados e compreendidos com a sua releitura em
outros gêneros.
Para a sociedade em geral, é de grande valia acessar o processo sociocultural vivido
através das influências daqueles que produzem a cerâmica, ou seja, a releitura dramática
oferece a possibilidade de difusão dessa cultura por meio de uma tradução da mesma.
Na pesquisa de convivência é importante que se reforcem os laços e diminuam as
distâncias entre o pesquisador e o grupo pesquisado. Mas ao adotar esta postura de pesquisa, é
preciso delimitar algumas regras, critérios e condutas para melhor conduzir esta interação.
São necessários cuidados dos mais variados possíveis por se tratar de relações
estabelecidas com grupos diversos na sua formação sociocultural pertencentes a um mesmo
povoado. Compreende um trabalho cuja disciplina não deve ter alterações ou reações
duvidosas e se preocupar com as incertezas que podem gerar conflitos para ambas as partes.
Mas é possível se colocar na condição e posição de observador, ouvinte e aprendiz. O “saber
de fora”, do mundo acadêmico, as técnicas tradicionais no conceito de pesquisas, os aparatos
tecnológicos, podem não ter nenhum valor dada às circunstâncias em que se encontram as
duas partes: o pesquisador e a comunidade a ser estudada, na relação estabelecida. O
pesquisador na busca de aprender, mas o desejo de ensinar não constrói espaço para ouvir e
observar. A outra parte com o desejo de ensinar, informar, oferecer condições de uma relação
amigável, mas com a dificuldade de se expressar à sua maneira singular. Assim como o
povoado ribeirinho, as circunstâncias de relação numa pesquisa de convivência também são
mutáveis, alteram-se constantemente, estão sempre recomeçando e por isso, desconstruindo os
“modelos” tradicionais de realizar pesquisas.
A convivência que foi realizada durante aproximadamente dois anos, 1993 a 1994,
parece ainda não ter sido encerrada. Muitos questionamentos foram surgindo ao longo do
tempo em virtude das transformações ocorridas na Comunidade, sobretudo os desafetos sócio-
ambientais que tem presença permanente na região. O falecimento da Senhora Joana Maria da
Silva em novembro de 1994, foi decisivo para o fim dos estudos ali realizados. A dramaturgia
que teve a sua inspiração a partir do barro e da vida da própria comunidade precisava ser
moldada, então a montagem da peça se deu posteriormente, em 1995.
Dada a construção da dramaturgia, a encenação do texto Homem do Barranco teve a
sua estréia em maio de 1995, por ocasião da Mostra Seletiva de Teatro para participar do
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Festival Mato-grossense de Teatro naquele mês, na cidade de Cuiabá-MT. A participação
nesse Festival deu ao espetáculo Homem do Barranco oito premiações: melhor iluminação;
melhor cenografia; melhor trilha sonora; melhor figurino; melhor texto; melhor ator; melhor
direção e melhor espetáculo. Participando de diversos Festivais nacionais, recebeu outras
premiações como: IX Festival Universitário de Blumenau, Blumenau – SC: Prêmio Especial,
1995; XV Festival de Teatro do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG: Prêmio
Especial do Júri, 1995; I Concurso de Monólogos do Piaui, Teresina – PI: melhor ator; melhor
autor; melhor iluminação e melhor espetáculo; 1996; VI Festival de Teatro de Presidente
Prudente, Presidente Prudente – SP: Prêmio Especial do Júri, 1996; X Festival Nacional de
Monólogos de Franca, Franca – SP: 2º. Melhor espetáculo; melhor figurino; Menção Honrosa
pelo trabalho de pesquisa e repertório, 1999.
Hoje, vinte anos após a primeira escritura e encenação do texto citado é nítido
observar no bairro de São Gonçalo Beira Rio, as transformações ocorridas nessas duas
décadas que, com certeza operam sobre a região, da mesma maneira que interferem em outros
bairros da capital mato-grossense. Os avanços tecnológicos não são os únicos responsáveis
pelas transformações. A comunidade está totalmente alterada perante as suas potencialidades
culturais; o povoado ribeirinho mudou a sua imagem ambiental e maneira de viver entre os
seus; o bairro se modifica rapidamente a par das necessidades que geram cobranças sociais,
políticas e econômicas. Com o desgaste ambiental, algumas atividades tradicionais como a
pesca e cerâmica foram drasticamente reduzidas, e o foco da comunidade passou a ser a
gastronomia e o turismo. Essas transformações e alterações do sentimento de pertença do
povo do bairro de São Gonçalo Beira Rio alimentam a nova reescritura do poema dramático
Homem do Barranco, ganhando agora o título de Arrimo das águas.
2.3 – O Poema Dramático 1: Homem do Barranco
HOMEM DO BARRANCO
Um Poema Dramático de Carlos Roberto Ferreira
SINOPSE
Homem do Barranco é um Poema Dramático que conta histórias de um povoado ribeirinho
que constrói suas vidas a partir do barro e da cerâmica, remonta as suas vivências cotidianas e
por meio de narrativa, expõe suas crenças, mitos, lembranças e paixões.
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PERSONAGENS
Homem do Barranco
Lavadeira
Mãe Oxum
Ceramista
CARLOS FERREIRA
Pesquisa, dramaturgia, cenografia, figurino e atuação
J. ASTREVO AGUIAR
Organização da dramaturgia, cenografia e direção
LOURIVALDO RODRIGUES
Concepção da Iluminação e fotografia
ILTO SILVA, LOURIVALDO RODRIGUES e NEY CARTAXO
Iluminadores
CLÍNIO MOURA e DONA BIUÍNA
Artesãos das peças de cerâmica da exposição
JOANA MARIA DA SILVA
Interlocutora e depoente na Comunidade
DOMINGAS LEONOR DA SILVA
Laboratório teatral
TEXTO: HOMEM DO BARRANCO
Poema dramático de autoria de Carlos Roberto Ferreira
(Com luz apagada, soa no ar, um canto tibetano; música forte e melancólica. Aos poucos
aparecem alguns raios de luz que clareiam o imenso chão do palco, lugar ermo. Antes que a
luz ilumine todo o espaço, ouve-se voz).
VOZ EM OFF – (Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas
narinas um fôlego de vida, o pó é um sopro! A vida é um sopro!)
(Surge então lentamente do barro, em penumbra, um homem com pouca veste e uma grande
cabeleira; é o “Homem do Barranco”, nesse momento, já com o tronco alongado, sustentado
pelos braços, ator com olhar indireto, fala texto).
HOMEM DO BARRANCO:
Estou farto da minha vida, não quero viver para sempre!
Mesmo sabendo que não vou morrer nunca!
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(Neste momento, abre-se um foco de luz, podendo vê-lo de frente, cresce a música tibetana.
Numa outra posição, com o tronco já para frente, ator fala texto para o público).
HOMEM DO BARRANCO:
Enquanto, pois, existir o barro, barranco serei!
Serei vida nas mãos do povo que me busca.
O pó, pai e neto do meu corpo enlamaçado, lançará feitos no decorrer dos séculos, que durará
a eternidade e serão urnas para guardar o pouco que sobrar de mim. E sobrará pouco, muito
pouco. O Senhor Deus mandará águas do céu para lavar a mim, tornarei a ti, barranco
límpido, espaço vicinal dos que constróem a procissão do encontro.
Não serei o caminho!
Nem a verdade, nem a vida!
Apenas viverei para sempre.
(Pausa. A música cresce harmoniosamente e volta à altura de fundo musical, enquanto ator
novamente muda posição corporal, agora, sentado sobre as pernas).
HOMEM DO BARRANCO:
E se buscas enxergar a mim, repouse em ti, cacos da minha matéria. Tendo Deus, bordado a
lua maior, no terceiro dia serás um homem novo; tendo em ti o meu corpo; e eu, o teu corpo
em mim.
Não terás lágrimas, pois!
Não terás a vontade do pranto!
Terás apenas a saliva líquida, moverás moinhos. Transformarás o pó em barro, que será
socado, para encontrar nele, o assento da pedra angular. Terás na terra o começo da tua
eternidade, não morrerás nunca!
(Novo movimento musical e retorna com suavidade. Ator muda posição corporal, caindo o
tronco para a esquerda).
HOMEM DO BARRANCO:
Agora, me deitarei no pó; e, se me buscas, já não serei!
Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?
Sobre que, estão fundadas as suas bases, ou quem lhe assentou a pedra angular, quando eu lhe
tracei limites e lhe pus ferrolhos e portas?
A terra se modela como o barro debaixo do selo.
Tens idéia nítida da largura da terra? Tens idéia nítida da largura da terra?
Sua força está nos seus lombos, e o seu poder, nos músculos do seu ventre. Os seus ossos são
como tubos de bronze. O seu arcabouço como barras de ferro. Ele é obra prima dos feitos de
Deus.
Onde está o caminho, para onde se difunde a luz e espalha o vento oriental sobre a terra?
(Neste momento, enquanto ator faz movimentação com o tecido, aparece som de vento que
entra suave e irá aumentando. Em seguida, surge som de trovão, numa sequência harmônica.
Ao diminuir a música, ator fala texto).
HOMEM DO BARRANCO: Quem abriu regos para o aguaceiro, ou caminhos para os relâmpagos dos trovões, para que
faça chover sobre a terra, onde não há ninguém, e no ermo em que não há gente, para
dessedentar a terra deserta e assolada e para fazer crescer os renovos da erva?
Quem mandou cortar os troncos, onde eu me ancorava?
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Quem mandou cortar os troncos, onde eu me ancorava?
De que ventre procede à água?
Acaso a chuva tem pai? Acaso a chuva tem pai?
(Inicia-se som característico dos primeiros pingos de chuva, vão se avolumando até ficar bem
forte. Ator já de pé, um pouco incisivo, volta ao texto).
Cessa, pois, e deixa-me. (neste momento, a música deve ser cortada bruscamente).
Para que por um pouco e tome alento, antes que eu vá para o lugar de onde não voltarei.
O homem nasce como a flor e murcha; foge como a sombra, e não permanece.
Quem da imundície poderá tirar cousa pura, visto que os seus dias estão contados?
Como as águas do lago se evaporam e o rio se esgota e seca, assim o homem se deita e não se
levanta.
Tal como a nuvem que se desfaz e passa, aquele que desce à sepultura, jamais tornará a subir.
Vós sois de ontem, e nada sabes!
Porquanto nossos dias sobre a terra são como a sombra e a tua confiança é teia de aranha.
Encostar-se-á à tua casa, e ela não se manterá. Agarrar-se-á a ela, e ela não ficará em pé.
A terra está entregue nas mãos dos perversos. São todos mortais!
(Volta som tibetano a toda altura que será bruscamente cortado ao final da frase,
interrogada pelo ator, para dar aspecto grotesco).
Acaso sou da tua carne?
(Pausa longa na música e vai suavemente voltando, enquanto ator reage corporalmente num
gesto de queda para frente, sobre os joelhos. Já num tom mais ameno, ator volta ao texto).
Escuta-me!
Mostrar-to-ei. E o que tenho visto, te contarei, que ouviram de seus pais e não ocultaram.
Não sou remédio, sou apenas um curandeiro do meu tempo. Na verdade, as minhas forças
estão exaustas.
Tu homem, pusestes doenças no meu corpo e maledicências nas minhas palavras.
Dentre em pouco tempo, eu seguirei o caminho de onde não tornarei.
A minha vida é um sopro!
O pó é um sopro!
A vida é um sopro!
(volta a música de fundo que acompanha a movimentação do ator, até que este dê as costas e
desaparece na escuridão que, antes do black-out, termina texto).
Deixa-me!
Deixa-me, pois!
Deixa-me!
(A música de fundo vai sumindo junto com o black-out, que aos poucos vai se fundindo à uma
toada de Siriri, ainda no escuro, até que o ator se posicione do lado direito do palco onde
deverá estar outros adereços de cena. Este, senta-se e, após abrir foco de luz, ator desenvolve
ação de lavar o rosto e as mãos, lentamente, coloca o lenço de cabeça se caracterizando
como lavadeira, enxuga o rosto, olha para a platéia, música vai diminuindo aos poucos e
ator começa texto).
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LAVADEIRA:
Óia gente, toda vez que principiava a temporada das chuvas, a gente começa a pô sentido no
rio.
Dia após dia, eu pedia pra São Gonçalo, não deixar a água subir, pra cima do barranco. No
altar do Santo, a vela ficava acesa e todas nós, fazia promessa pra São Gonçalo. A água vinha
subindo de mansinho... e, quando assustava... (ator levanta-se e veste saia num rápido
impulso)...tinha que fazê pulero pras galinhas, atrepá as cerâmicas, tirá os mantimentos do
chão, guardar lenha no alto e tomá conta das crianças, pra num serem picadas por bichos.
De dia, a gente via a água lambê a parede da casa, aos poucos ia entrando, quando dava por
conta, já tava no joelho. Aí não dava mais pra duvidá. Era hora de dar providência na retirada.
Ajuntava todas nós.
Eu, Domingas, Iranil, Comadre Antônia, Dona Lourdes, Biloca, Dona Preta, Biuína, Dona
Ana, Dona Maria Rodrigues e o resto da muierada; adjuntava as crianças pequenas e ia fazê a
mudança.
Candi, Zeno, Bugre, Seo Clínio, Fernando, Cândido, Manezinho, Tico, Jairo e Xico, juntava
tudo com o resto da homaiada, ia construir o acampamento, pra mode acomodá o pouco que
restava.
Não sobrava quase nada, dona! Nunca sobrou muita coisa.
A água levava: cama, colchão, roupas, sapatos, mantimento, cerâmica, derrubava nosso forno,
não sobrava um bambolê se quer!
A correnteza, passava por essas mangueiras aqui, parecendo um motor, “brum, brum...”,
levava tudo. Não sobrava nada!
Como a casa era de pau-a-pique, o barro encharcava d‟água e vinha tudo à baixo; ficava só os
pau!
A água cobria toda a casa, ficava só com a cucuruca da cumieira pro lado de fora.
Foi, ói, a quarta vez que deixei minha casa por causa da enchente.
Foi aí que eu apelei, pra força, da minha protetora “Mãe Oxum”! (Neste momento, volta toada
de Siriri, de fundo, ator constrói performance arrodeando, mudando a sais para o outro lado,
para transformar-se em Mãe Oxum. Foco da lavadeira é apagado e acende-se foco azul para a
Mãe Oxum).
MÃE OXUM: (Graciosa e faceira)
Eu venho das cachoeiras, dos córregos, dos corichos, dos rios, das águas doces. Estou
presente nas enchentes, nas torrentes, nas chuvas e nas enchurradas. Atravesso pescador nas
águas, sou braço forte do remador, abro caminho, para o oleiro buscar seu barro.
Sou Nossa Senhora das Candeias, no altar. Nas águas doces, sou Oxum.
E quando precisarem de mim entrem nas águas sem medo, que remarei com todos, nesse
caminho azul!
(Ao som do mesmo Siriri, ator volta a repetir a performance da troca da saia e volta a ser
Lavadeira. Sai foco azul e reabre foco da lavadeira).
LAVADEIRA:
... quando a gente voltava pra casa, depois da enchente, tinha que tirá o barro de dentro de
casa. Era uma lama pesada, que só vendo. Dava por mais de palmo.
E ainda tinha que convivê com muita aranha, cobra e a carniça de bichos mortos pelo terreiro,
até o sol esquentar bastante mesmo, pra secar o lamaçal.
Era febre que dava nas crianças, nós adultos, ficava todos costipados.
Mas já era hora de começar tudo de novo.
Deixava a casa, mais ou menos arrumada, né, e já começava a dá providência no serviço.
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A cerâmica aquui é nosso ganha pão!
Construía o forno novamente, buscava o barro e já ia labutá, com a fazeção das vasilhas.
Era fazê, queimá, punha tudo, tudo na canoa e pegava o rumo do porto pra mode vendê.
Por causa da enchente, a estrada ficava uns pedaços impedidos, não aparecia compradô.
Mas logo, logo, vendia toda a fornada. Uma peça hoje, outra amanhã, trocava por verdura, ou
então, por um outro alimento, mas vendia. Não tinha outro geito, o que que tava pra fazê.
Isso sem falar, na festa de São Gonçalo, nosso Santo Padroeiro. Ah! Já fazia altar bem bonito,
com flores, bandeirolas, missa com Vigário, procissão, chá com bolo, recebia os convidados,
com a maior felicidade. A beira desse rio aqui, ficava qualhado de gente, mas o licor e a
comida dava pra todo mundo, nunca faltou. É por isso que São Gonçalo, sempre ajudou nós,
festa dele, é Sagrada, não passa em branco.
E viva São Gonçalo, minha gente!
(Volta toadas de Siriri para lembrar o clima das festas de São Gonçalo. O Siriri permanece
até o final do texto da lavadeira. A lavadeira encaminha-se para o fundo do palco, onde em
penumbra, tira saia e dependura num varal aéreo. Cruza o palco em penumbra, indo para o
lado estremo, onde deverá estar a saia da Ceramista. Veste-a, diminui a música, e de
cócoras, ator inicia texto).
CERAMISTA:
Ora, seu moço, vamo entrando...
Ah! Num liga, moço, aqui é assim mesmo...
... a casa é nossa, ...
Pois senta, seu moço...
(mostrando um banco imaginário no centro do palco. Neste momento, ator inicia-se o texto
passando a impressão de um diálogo entre a ceramista o um pesquisador ou jornalista, que a
cada espaço entre as respostas, passa-se a inteção de que há perguntas. Ator inicia a ação do
amassar o barro).
- Meu nome é Joana...
Quer dizer, Joana Maria da Silva, é meu nome de batismo, mas o senhô pode me chamá de
Joana Ceramista...
- (PERGUNTA IMAGINÁRIA)
- Ah! Já faz muito tempo, né.
Desde que eu me entendo por gente, já labutava com o barro.
Tinha uns onze, doze anos, sim Senhor!
- (NOVA PERGUNTA IMAGINÁRIA)
- Eu gosto!
Quer dizer, eu aprendi a gostar; porque quando a gente é criança, a gente não dá valor pra
nada, não é. Depois a gente cresce, vai pegando gosto, aí, fica no vício.
- (PERGUNTA NOVAMENTE)
- Ah! Foi minha mãe Maria Domingas, que me ensinou.
Aqui, todo mundo luta com o barro e a cerâmica passou a ser nossa cantiga de roda.
62
A gente peloteava, fazia bonequinhos, boizinhos e, nessa de amassa aqui, amassa ali, a gente
aprendeu a sová o barro, a dá ponto nele, pra mode fazê as vasilhas.
- (NOVA PERGUNTA)
- Ora seu moço, tá assustado com o que?
A gente experimenta!
Pois tem que sabê o ponto.
É igualzinho, igualzinho, um bolo de arroz.
A gente sova ele, amassa bem, tem que sabê a hora de moldar as peças e de deixar secar.
Depois a gente pule ele, dá brilho prêle, aí põe no forno pra mode queimá.
O barro tem vida, seu moço!
É! O barro tem vida!
- (NOVA PERGUNTA)
- Eu? Nasci aqui mesmo, em São Gonçalo, na beira do Rio Cuiabá.
- (OUVE OUTRA PERGUNTA)
- Olha, a peça que eu mais gostava de fazê, era a Moringa Boneca, sim senhor, a ultima dei de
presente, com muito amor.
- (OUTRA PERGUNTA
- De batelão, sim Senhor!
A gente ia buscar o barro, de batelão; longe, longe, muito longe!
- (PERGUNTA NOVAMENTE)
- O qual bicho nenhum, home!
Batelão é uma canoa de um pau só!
Mas já vi minhocão por debaixo de minha canoa, por várias vezes, quase que a gente ía pro
fundo d‟água.
- (OUVE OUTRA PERGUNTA)
- Olha moço, pra falar a verdade, o meu povo já ta cansado, sabe.
O meu povo não tem mais tempo pra ficá no barranco, aguentando na pele, o sol queimando,
dia-após-dia.
O meu povo, não tem mais tempo pra esperar a noite; que ainda espera pelo meu povo.
Meus avós, descendentes de índios Coxiponés, já morreram. Meu pai também já se foi. Minha
mãe, não aguentou o peso do barro, o barro é pesado, seu moço. O pó é pesado!
Meu povo ainda luta contra a correnteza, pra buscar o barro, na margem direita, do outro lado
do rio. A canoa pesa no rebojo, mas meu povo consegue tirar do útero das águas, o pó
molhado, que nossas mãos tanto afagam, como se fosse criança nova a crescer com vida.
O meu povo é forte como o barranco emprumado que margeia o rio.
Filhos, netos e tataranetos de índios e brancos.
É mestiço o meu povo.
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Caboclo. Caboclo na cor, caboclo no mocho, caboclo na viola de cocho.
(Neste momento, o ator faz pausa no texto para a entrada de fundo musical de moda de viola,
que ao diminuir, ator volta ao texto).
Toda vez que o meu povo vem no barranco, sabe o dia que vai chover, sabe o dia que vai
fazer sol, sabe o dia que a noite vai esconder a lua. E quando não tem lua, seu moço, o meu
povo sabe que não adianta por canoa no rio.
Aqui, fica um silêncio, que só!
Aqui já foi enterrado muitos índios, muitos canoeiros, muitos pescadô.
Uns que morreram na água, outros que morreram no barranco.
Dizem até que é um deles que vive sentado aí, na beira do barranco, pra mode cuidar de nós.
Dizem que é o Homem do Barranco.
É por isso que nossa canoa, nunca mais afundô!
Aqui, sempre quando é noite de lua cheia, o rio fica barrigudo, inchado!
É quando o Homem do Barranco toma conta do rio. Ele fica bem alí!
Ancorado, feito um batelão.
Ninguém enxerga ele.
Mas a gente sabe que ele ta lá.
Pois ele responde tudo que a gente pergunta!
Uns dizem que ele é índio, outros dizem que ele é branco igual nós; bonito, fala mansa.
Mas não deixa ninguém cortar um galho de sarã, nem derrubar barranco.
Engraçado seu moço, que quando eu to com a mão no barro, eu não vejo nada, fico distraída
que só vendo, quando assusto, a vasilha ta pronta.
Acho até que é esse tal de Homem do Barranco que vem dá ajuda preu.
Olha! Dizem até que quem conseguir enxergar ele, tem vida longa, não morre nunca.
Eu acho que eu to pertinho, pertinho de vê ele.
(Emocionada, demonstrando grande alegria).
Pois outro dia, eu ia aqui, beradiando, beradiando o rio, pra mode pegá uns galhos de sarã, pra
cobri o barro, né! De repente, fiquei zonza, zonzinha!
Minhas vistas escureceu tudo.
E quando abri os olhos, vi uma coisa saindo de dentro do rio, deste tamanho.
(Desenha o monstro com o seu corpo)
Meu corpo arrepiou tudo!
Ainda era cedo, e não era noite de lua cheia, não!
De repente, escuto alguém pedi pra mode eu voltar pra casa.
Ah! Seo moço! Benzi o corpo, pedi proteção pra São Gonçalo, fiz meia volta e a coisa sumiu.
(Entra outro Siriri)
Espia aí!
O moço foi inté embora!
Mal agradecido!
(Ator vira-se para traz, tirando a saia, que dependura em um outro varal aéreo no fundo do
palco. A luz é cortada. Entra música tibetana e com ela o Homem do Barranco retoma na
mesma posição de onde desapareceu no primeiro quadro).
HOMEM DO BARRANCO: Deixa-me.
Deixa-me, pois!
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Nasci Deus, homem, escravo, livre, cujas mãos esculpem do barro, o rosto de Deus, sob o
mesmo sol novo, continuamente, resposta da pele rubra dos figos ao caírem no chão.
Fere-me com ferimento sobre ferimento.
Onde estão os juízes que me condenaram?
Onde estão os juízes que me condenaram?
Estou farto da minha vida.
Não quero viver para sempre, mesmo sabendo que não vou morrer nunca!
(Este trecho deverá ser dito numa angústia crescente, até ficar agressivo. O Homem do
Barranco tombará ao pronunciar a última palavra e uma forte luz tomará conta do espaço,
bem como o canto tibetano, que juntos, vão diminuindo).
BLACK - OUT
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CAPÍTULO 3
O ARRIMO DAS ÁGUAS E O TEATRO CONTEMPORÂNEO
O arrimo das águas está aqui, ali e acolá, emprumado em duplas margens, armado e
erguido pela natureza em barro, torrão de areia, piçarra, pedra ou argila, quase sempre dos
dois lados do rio, constituindo um duplo barranco e importante sustentação das águas dos rios
por toda a dimensão territorial aquática. O arrimo das águas se faz presente no povoado
ribeirinho, hoje bairro de São Gonçalo Beira Rio, sustentando as águas do rio Cuiabá, do seu
lado esquerdo, por toda a dimensão do Bairro. Ali, na margem esquerda do rio Cuiabá, “na
localidade denominada de São Gonçalo Velho, em 8 de abril de 1719, meados do século
XVIII, foi lavrada a ata de fundação do Arraial de Cuiabá, pela bandeira de Pascoal Moreira
Cabral Leme, para garantir a posse das terras destinadas ao Arraial pioneiro” (ROMANCINI,
2005, P. 82). Esse mesmo barranco é o amparo e sustentação da flora quase inexistente,
atuando na contensão do solo e do rio, suportando a terra e a água que garante a força física
de amparo territorial e geográfico, onde esse grupo de vizinhança se encontra habitado.
O barranco é arrimo das águas ao conter as massas de solo pela sua força de prumo
vertical e suportar as pressões das águas do rio em sua corrente natural e também das
enchentes, enxurradas e rebojos. Elemento drenante e filtrante das águas, o barranco arrimo é
encosto, amparo, proteção, apoio, escora, muro, parede, sustentação, contensão, margem,
limite e auxílio do rio e das águas.
O barranco está ali para arrimar. Arrimar é por em rima, por em ordem, arrumar,
servir de amparo. Arrimar é uma flexão de arrimo: está junto, ligado, apoiado, aproximado,
agregado (FERREIRA, 2004, p.142). Arrimar é amparar, socorrer, apoiar e valer-se de
arrimo. É proteger tudo o que está no seu entorno, no entorno do rio, no curso das águas. As
águas lapidam o arrimo na feitura e refeitura dos sinais que o tempo, as águas e os ventos se
encarregaram de modelar a cada curso, sua aparência. Há também as influências artificiais,
como é o caso das dragas ali instaladas para a retirada de areia para a indústria da construção
civil. O barranco que margeia do rio, seria um “arrimo de família”, o que sustenta a sua
família, essa família líquida que aqui a chamamos de rio, onde residem peixes, animais,
vegetais, veios argilosos e moram também mitos, lendas e mistérios. Esse rio que nunca
dorme é um mar de mistérios.
A comunidade-bairro de São Gonçalo Beira Rio se localiza na sua maior parte
territorial e de moradias, de frente para a margem esquerda do rio Cuiabá, tendo entre as
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residências e as águas do rio, tão somente uma estreita rua asfaltada e uma mais estreita ainda,
margem de vegetação, que perdeu significativa porcentagem da sua mata ciliar, dando lugar a
diversos bares e restaurantes para a comercialização da gastronomia do peixe. Algumas
moradias da parte mais alta do barranco ficam de frente para a margem esquerda do rio
Coxipó, que atravessa grande parte urbana da cidade e deságua no rio Cuiabá e, há uma
pequena parte de moradores e chácaras, localizam-se nas margens esquerda e direita do
córrego Lavrinha, hoje totalmente poluído, que cruza a região em direção ao rio Coxipó, onde
também deságua a poucos metros do rio Cuiabá. Assim vejamos que toda a porção de
barranco que margeia tais rios, tem a função também de drenar e filtrar as águas desses canais
aquáticos, assegurando a respiração drenosa da superfície terrestre que é o próprio barranco,
onde hoje está constituído o bairro de São Gonçalo Beira Rio e todo o seu limite geográfico.
Os rios Coxipó, Cuiabá e córrego Lavrinha são responsáveis pela vazão do lençol freático
dessa região. Por isso, o presente capítulo tem o nome homônimo ao do novo texto dramático
produzido vinte anos depois da primeira versão.
Na reescritura do poema dramático Homem do Barranco, em sua nova versão,
Arrimo das Águas, procurou-se enaltecer as mudanças mais expressivas que aparecem hoje no
bairro de São Gonçalo Beira Rio, alterando a sua imagem sociocultural em diversos aspectos:
de saúde, moradia, economia e ambiental, interferindo sobremaneira no sentimento de
pertencimento dos moradores do bairro.
3.1 – Arrimo assolado
O barranco que ainda sustenta as águas do rio Cuiabá no perímetro do bairro de São
Gonçalo Beira Rio em Cuiabá – MT se encontra em estado de assolamento, já por algumas
décadas. O barranco-arrimo está assolado: destruído, arrasado, devastado, afligido e
depredado como os “seixos de rio, deformados pela velocidade no infinito do tempo”
(COSTA, 1996, p. 24).
Estimam-se, segundo moradores da região, que por três décadas o barranco na região
do bairro em questão perdeu aproximadamente, em algumas localidades, entre 3, 5 e 6 metros
de margem, pela devastação provocada pelo desmatamento, pelas chuvas, enchentes e pela
instalação de dragas na região, para a retirada da areia. Diversas árvores de pequeno, médio e
grande porte foram arrastadas pelas enchentes; outras foram sacrificadas para não provocar
danos à estrada e circulação dos moradores pela única rua de acesso à maior parte de
moradias do bairro. Angicos, mangueiras, tamarineiros, sarãs, bambuzais, dentre outras
67
espécies de vegetação regional que desapareceram dessas margens. As hortaliças que
abasteciam o consumo doméstico, plantadas no barranco a margem do rio, desapareceram
totalmente. Assim, perdeu-se também a imagem verdejante que abraçava o rio, o próprio
barranco e a fauna de pequenos animais e pássaros que nele viviam. Assim, o barranco que
era para servir de arrimo, de sustentação, de apoio, de escora, de amparo e proteção, tanto
para as águas do rio quanto para a vegetação da mata ciliar, acabou por perder parte
significante da sua extensão física. Essa desolação ocasionou o desaparecimento das margens
baixas e praias do rio, onde o acesso seguro facilitava a ancoragem de canoas e barcos e
atendia na ampliação do espaço físico das residências dos moradores, banhistas e pescadores.
Vê-se aí, mais uma significativa perda do território barranco, o desaparecimento também das
tarefas domésticas cotidianas: pescaria, limpeza dos peixes, banho e água para os animais,
lavagem de roupas e vasilhas, a retirada do barro para a manufatura da cerâmica e o
entretenimento das crianças nas brincadeiras aquáticas: um rito de passagem que sensibilizava
os iniciantes na pescaria, na manufatura da cerâmica, além de manter o convívio cultural
destes, com o maior elemento de sustentação da vida da comunidade, o rio Cuiabá.
Arrimo assolado é o estado em que se encontra no tempo presente o barranco que
margeia o rio Cuiabá no perímetro do bairro de São Gonçalo Beira Rio. Esse assolamento
também compromete a infra-estrutura do bairro, afetando a sustentação e segurança do terreno
que abriga o asfalto; drenagem e escoamento das águas das chuvas no espaço das residências;
o aumento significativo dos esgotos da região que são despejados diretamente no rio, sem
nenhum tratamento e ainda, as construções improvisadas de bares e restaurantes, cujos
proprietários insistem em ter como único espaço físico de comércio, a margem do rio.
Sobretudo, resulta a mudança e transformação da imagem na dimensão do espaço
comunitário, que hoje se encontra constituído na qualidade de bairro. Esse universo
comunitário tem redução significativa sobre o aspecto cultural, social e econômico e, mais
ainda, sobre o sentimento de pertença de um aglomerado de ribeirinhos que por várias
décadas conduziram o seu território na intenção de imprimir por toda a vida, a mesma
imagem. Hoje, essa imagem é a imagem de um Bairro, embora sobre ela ainda opere alguns
afazeres de outrora, mas as transformações, desdobramentos e hibridações ocasionadas pelo
contexto urbano contemporâneo, acabam por imprimir nessa mesma comunidade, a
necessidade de outros cuidados no sentido político, social, econômico e, sobretudo, cultural.
As transformações socioculturais ocorridas ao longo das duas últimas décadas se
encarregaram de oferecer ao povoado um reforço na economia local resultada do
empreendedorismo gastronômico, o que acabou por desampará-los de cuidados com a sua
68
produção cultural e, esta, se perde juntamente com a perda territorial do barranco do rio. A
cultura, assim como as águas do rio, vai sendo levada por outras correntezas que promovem
uma redução tanto quantitativa quanto qualitativa da produção cultural em geral. Portanto, a
comunidade de outrora já não é mais a mesma. O universo político pelo qual se inserem e
respiram hoje os bairros no espaço urbano das cidades, tem imprimido as mesmas cobranças
no bairro de São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá. A atual conjuntura social e econômica impõe
um ritmo de vida que corre mais rápido que as águas do rio; os sonhos coletivos da estima e
da pertença dos moradores frente ao comércio da gastronomia são mais claros que as águas do
rio; como também é muito mais clara para os de fora – sociedade em geral que frequenta o
bairro, que para os de dentro, moradores da comunidade, a “nova” imagem do bairro que vai
se formando e se reformatando para ser reinserindo no seu contexto contemporâneo.
A imagem do bairro de São Gonçalo Beira Rio denota atualmente a paisagem de uma
região ribeirinha mais complexa em seu conjunto antropológico; nesse caso, respeitando as
influências das ferramentas tecnológicas que a contemporaneidade urbana se encarregou de
apresentar a esse aglomerado ribeirinho. Entre a paisagem ribeirinha e o universo urbano, a
redução da lida com o elemento barro tem provocado, intrinsecamente, sérias interrogações,
acabando por imprimir outra paisagem que, dada a sua especificidade geográfica, territorial e
cultural, às vezes se confunde numa paisagem nem totalmente ribeirinha perante a
proximidade do centro urbano da cidade, nem totalmente urbana diante da sua singularidade
sociocultural. Essa imagem e paisagem que hora se confunde em dupla dimensão, tem sentido
nas transformações ali ocorridas, respondendo a uma cumplicidade necessária e oportuna a
um grupo de vizinhança que necessita atender às demandas da economia na geração de
trabalho e renda que a realidade sociocultural foi lhes oferecendo ao longo das duas últimas
décadas. Com isso, o processo cultural dos artesãos do bairro de São Gonçalo Beira Rio, com
relação à cerâmica, acaba por enfrentar o chamado a uma maior dinâmica na estrutura da sua
produção em detrimento do avanço emergente do comércio da culinária do peixe no bairro.
Esse comércio da gastronomia explorado nos bares e restaurantes acaba por provocar redução
da força de conjunto na sociabilidade comunitária, influenciando de maneira negativa a
economia local sobre o comércio da cerâmica.
Nesse contexto, vale observar com mais atenção as alterações do processo histórico
vivido pela Comunidade, bem como as alterações geográficas e, mais ainda, na dinâmica
ocorrida na sua paisagem cultural, cujas transformações, ocorreram pela naturalidade do
processo social e avanço da sociedade de consumo que acaba por alterar os hábitos de
qualquer população, com a maior influência de elementos externos – sociedade em geral, não
69
residente no bairro, sobre o pertencimento dos de dentro – grupos de vizinhança e moradores
do bairro.
A partir de 1998, surge no povoado ribeirinho de São Gonçalo o primeiro restaurante
que, devido às dificuldades econômicas do proprietário local e as condições materiais e de
consumo que se possuía a época, não prosperou. No mesmo espaço, uma empresa da capital
toma a frente do comércio e, a partir de então, fica deflagrado na Comunidade, a exploração
comercial no âmbito da gastronomia, tendo como ponto central do cardápio, o peixe. Os mais
de 20 restaurantes são, na sua maioria, construídos em pequenos espaços improvisados,
ocupando as salas e varandas abertas das residências e, sobretudo, as margens do rio Cuiabá e,
quase todos de propriedade de moradores do próprio bairro. Assim, a cerâmica passa a ocupar
um lugar fisicamente mais restrito no povoado, com menor expressão nas atividades
comerciais locais, ficando abrigada numa loja de artesanato no Centro Comunitário,
coordenada pela Associação dos Moradores do Bairro. A culinária do peixe, alimento que por
muito tempo contribuiu, timidamente, com a economia da comunidade, agora faz parte de um
“novo” contexto, substituindo quantitativamente a cerâmica e ganhando forte poder na
economia local como mercadoria, alimento e produto. Com isso, esse alimento que há muito
servia apenas como consumo doméstico e familiar, passa a se configurar como um produto
comercial de maior importância. Este contribui com o turismo gastronômico do bairro de São
Gonçalo Beira Rio e capital, que nos finais de semana chega a ser frequentado por mais de
1.200 pessoas entre turistas, frequentadores e visitantes da grande Cuiabá. Esse conjunto de
fatores contribui sobremaneira para a elevação da sustentabilidade da população na geração
de trabalho e renda, fortalecendo o seu sentimento de pertencimento à comunidade e alterando
a sua percepção sobre aqueles grupos de visitantes, compradores e frequentadores, aqui
chamados de “os de fora”, cuja frequentação do seu espaço-comunidade-bairro passa a ser
habitual. O povoado / comunidade se transforma politicamente em um bairro, hoje muito mais
comercial e muito mais que sua sustentabilidade cultural.
Em 2013, 20 anos após a frequentação da região como local do assentamento da
convivência aqui tratada, vemos que tudo ali se apresenta cada vez mais transformado e
continua se transformando. Essas alterações influenciam diretamente a região que há muito
construiu um modo de vida singular pelos elementos majoritários ali presentes, e cujo
sentimento de pertencimento é alimentado pelo resultado econômico gerado pelo comércio da
gastronomia. Nessa margem que ocupa o barranco esquerdo do rio Cuiabá, está assentada
grande parte dos bares e restaurantes que exploram o comércio da gastronomia. Na sua
maioria são de construções improvisadas, desdobradas ainda sobre outro perigo, a utilização
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de palhas e varas de bambus da região, o que acaba por devastar e assolar ainda mais a
margem do rio, pela retirada volumosa dessa vegetação, em comum propósito: a ocupação
física do espaço ribeirinho para a ampliação dos estabelecimentos comerciais. Aqui, aparece
mais uma vez o barranco na qualidade de arrimo, sendo duplamente atingido, tanto pela sua
ocupação física, quanto pela retirada significativa da vegetação da sua quase inexistente mata
ciliar. Assim, mesmo na condição de arrimo, este espaço vai se enfraquecendo ao longo do
tempo. As pressões sofridas agora o atingem em duas partes: a parte do lado de cima que foi
tomada pelo asfalto construído sem nenhum critério paisagístico e sem o devido respeito
técnico ao lençol freático; ainda na parte superior e mais à margem do rio, as agressões das
construções físicas dos bares e restaurantes assolam o seu terreno. Na parte baixa do barranco,
do lado do rio, este sofre constantemente as agressões pelas águas das chuvas, enxurradas,
esgotos e ainda, a sua corrosão sendo acelerada pela exploração das dragas com a retirada da
areia do leito, no curso do rio.
Portanto, vemos dois universos na busca de uma relação sociocultural por intermédio
de uma “arquitetura cultural” projetada, cotidianamente pela sociedade que busca também
arquitetar seus espaços de convivência, de vizinhança e até de arremedo para se aproximar do
possível e do seu outro mundo imaginário. Essa “arquitetura cultural” é termo elaborado por
Michel Maffesoli (2006) para denominar a maneira pela qual podemos falar da formação da
cidade com o outro e também de sua dimensão comunicativa e intersubjetiva. É justamente
essa intersubjetividade que se faz presente nas relações de ocupação de um espaço que pode
lidar com o efêmero e com o ocasional. É também uma oportunidade imediata ou imediatista
e que pode não se sustentar diante do estado sensível que ocupa o todo do espaço territorial,
geográfico, físico e, sobretudo, da dimensão cultural e ambiental da vizinhança ribeirinha.
Talvez, com o passar do tempo, quando as instalações improvisadas dos restaurantes e bares
começarem a apresentar os primeiros sinais de desmoronamento, rachaduras, cupins,
depreciações na sua estrutura física, pode também apresentar aos seus proprietários, a
necessidade de um repensar sobre tal ocupação da margem do rio, duplamente agressiva.
Vemos também em Maffesoli que “o sensível é como uma marca da cultura” e, nesse sensível
pode estar intrinsecamente a “proxemia” – “um processo social em que a individualidade se
dissolve na tribo. Nessa vivência, o sujeito deixa de ser indivíduo e passa a ser pessoa que
desempenha um papel na teatralidade das representações tribais.” (MAFFESOLI, 2006,
p.198). Essa referência pode nos ajudar a compreender as situações devastadoras, agressivas e
sem um tratamento urbanístico, que se modela cotidianamente sobre os espaços dessa mesma
“arquitetura cultural”, no bairro de São Gonçalo Beira Rio.
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O imaginário e a paisagem presentes na produtividade dessa população que há anos
sobrevive assentada no barro-barranco, assistindo pachorrentas, às águas do rio Cuiabá se
tornarem cada vez mais escuras, não são também os únicos responsáveis para a fertilização de
novas sementes imagéticas. A ausência de políticas públicas que substabeleçam de condições
de planejamento, gestão e desenvolvimento das potencialidades da produção artesanal,
sobretudo aquelas presentes em territórios e comunidades ribeirinhos, irá continuar a
transformar em meras películas, fotos, DVDs, CDs e lembranças, a eterna luta desgarrada e
solitária de um povo que não sobreviverá, infelizmente, às reduções das suas comunidades,
dos seus já pequenos grupos e da sua já quase inexistente força de trabalho na sua mais vã
cotidianidade.
A ausência de força de trabalho provocada pela redução da presença e permanência
dos jovens no povoado e pelas saídas destes em busca de outros campos de trabalho no centro
urbano da cidade, tem influência da precariedade e da pouca estrutura do conjunto de
moradia, bem como reflexo da redução dos grupos de vizinhança no próprio bairro. Os
procedimentos da vida cotidiana desse mesmo povoado que podem ser fortalecidos ou
estagnados pela sociedade de consumo, constituída pelos grupos do centro urbano da cidade –
os de fora, também contribuem para que a cotidianidade singular ou plural desses ribeirinhos,
os de dentro, possa se confundir com o bem-estar material e com a produção de bens
simbólicos. É ainda, a produção de bens simbólicos que tem contribuído com o bem-estar
material; como por exemplo, os restaurantes e bares instalados no bairro, que mesmo por
abrigar um reduzido número de funcionários, são estes, na sua quase totalidade, membros das
famílias dos moradores envolvidos com o comércio da gastronomia. Nesse caso, se instala
uma cotidianidade no entorno do trabalho, experimentada por um reduzido grupo de
moradores: pai, mãe, filhos, irmãos, sobrinhos, primos e afilhados se revezam, de tempo em
tempo, numa escala de trabalho e de ocupação das poucas funções praticadas nos
estabelecimentos comerciais. Esse revezamento na ocupação das poucas funções no comércio
local acaba também por fazer parte de outra cotidianidade, a de oportunidades e fazeres
profissionais, cujos costumes e maneiras que operam sobre a questão do emprego, acabam
também sendo reduzidos, motivo este que provoca ainda mais a saída dos jovens do bairro
para outros espaços urbanos em busca de outras profissões regulamentadas e formalizadas.
As profissões, funções ou ocupações dos jovens e de suas famílias nos bares e
restaurantes, se instalam do ponto de vista empregatício, de maneira informal. Não há
contrato de trabalho ou carteira assinada, pois, os funcionários muitas vezes, são os próprios
filhos e esposas do dono do restaurante. As funções de trabalho na sua maior são: de
72
cozinheiras ou cozinheiros, destinados quase sempre aos mais velhos e experientes na lida da
cozinha, em especial, na feitura do peixe, alimento principal do comércio local. As funções de
garçons e de garçonetes são ocupadas geralmente pelos mais jovens que se apresentam numa
faixa etária entre 17 a 28 anos. A função de recepção do cliente é operada pelo cidadão que
quase sempre se ocupa do fechamento financeiro da conta da despesa de cada mesa;
geralmente este profissional é o dono do estabelecimento. Assim, marido e esposa ou pai e
mãe têm domínio no gerenciamento do comércio. Os filhos, independente da idade, se
revezam entre duas ou três funções. Vejamos aí outro exemplo da cotidianidade operando
sobre o imaginário social e econômico dos diversos grupos familiares do bairro com ritmos e
estéticas diferentes, traduzindo imagens diferentes dentro de uma mesma coletividade. “É
preciso, sobretudo, pensar a cotidianidade em relação ao imaginário social de cada povo. [...]
Isto é o que faz com que a vida cotidiana não seja igual para grupos sociais, mesmo que estes
ocupem o mesmo espaço urbano.” (MAFFESOLI, 2007, p. 67).
Compreender a vida cotidiana ribeirinha sob o aspecto de “cotidianidade”, segundo o
discurso de Maffesoli, não nos implica dúvida de que os diferentes ritmos dos moradores do
bairro de São Gonçalo Beira Rio, são visualizados nos diversos espaços comunitários. As
diversas formas de se apresentarem diante de determinada situação profissional ou comercial,
bem como as diferentes posturas socioculturais de representação na cotidianidade desse
aglomerado de ribeirinhos, traduzem a singularidade dos diferentes pequenos grupos
reproduzidos ou traduzidos nas afeições e nas imagens das pessoas e do próprio bairro.
A cidade está partilhada – dividida em pequenos grupos de residências, condomínios
verticalizados, tribos de moradias alternativas - e com ela, caminham os bairros, os
assentamentos, as comunidades e grupos de vizinhanças que peculiarizam maneiras outras de
estabelecer moradias e fixar residências no mesmo lugar-espaço que ampara a sua
sobrevivência comercial, de vida e vice-versa. Os povoados de regiões ribeirinhas e das
periferias urbanas foram sendo transformadas em bairros pela força política e interesse que o
poder público operou e opera sobre a população, sobretudo da população marginal. Por outro
lado, esses povoados desprovidos de segurança, trabalho, saúde, educação e bem estar social,
foram sendo apadrinhados por uma quase que obrigação do destino traçado pelo poder
público e se enfileiraram para os benefícios fictícios que esse tal “poder” gera como
propaganda de uma falsa política social. A necessidade do acesso aos bens, produtos e
serviços municipalizados: água, energia, saúde, esgoto, escola, entretenimento, comércio,
dentre outros, acabaram por decretar um estado de aceitamento das ofertas de uma política
falaciosa pela população menos favorecida e acomodada que se contradizem em tempo, modo
73
e lugar sobre o que seja bem público, poder público e ação política. “Essas são perspectivas
tribais ou a mudança do paradigma social”? (MAFFESOLI, 2004, p. 23). Ou seja: tanto as
perspectivas tribais – hierarquias de poder impostas sobre os pequenos grupos ou sobre a
população em geral, como as mudanças de paradigmas sociais – mudanças de padrões e de
valores a serem seguidos por esta mesma população, vem implicando negativamente sobre a
população mais carente, na sua produção de bens materiais que possam contribuir com o seu
bem-estar social.
De um modo geral, as comunidades, bairros e grupos de vizinhanças dos centros e
periferias urbanos, foram sendo acercadas e comprimidas pelos limities-fronteiras que se
criaram para dar lugar e espaço a outros grupos também minoritários. As diferentes classes
sociais há muito passaram a conviver mais perto dividindo o mesmo espaço-lugar sob
diversos aspectos: culturais, sociais, religiosos, comerciais, de lazer, etc. Com o bairro de São
Gonçalo Beira Rio, não foi diferente. Embora, há que se levar em conta aqui o aspecto
cultural e história de vida de uma Comunidade secular, assentada no mesmo espaço-tempo-
lugar desde 1719, cuja realidade sociocultural foi se transformando e se alterando, sem a
necessidade de suas famílias se partilharem – se dividirem em micros grupos isolados num
quase individualismo – do mesmo modo que a cidade. Como o pequeno grupo de vizinhança
foi se renovando, mas mantendo a cumplicidade espacial, geográfica, cultural, social,
ambiental e de vida, o grau de pertencimento dessa população e a força do seu imaginário
coletivo foi sendo reduzidos dentro da coletividade, assim como a força da sua produção
cultural e seu poder de transformação econômica e social. Determinada atividade, tarefa,
manifestação, fazer cultural, perde a sua força, perde a sua evidência em detrimento de outra
manifestação que se encarrega de agora tomar partido da necessidade evidente e emergente de
um certo grupo, ou de uma comunidade. É uma questão difícil, cujo pensamento sobre o
assunto, requer muita prudência. Mas é pertinente observar, mesmo de fora que, “em um
determinado momento, um conjunto cultural perde a sua evidência. É justamente logo que
essa evidência se perde, que vamos entrar, progressivamente, dentro de um outro tipo de
episteme”. (MAFFESOLI, 2004, p. 24).
É o caso do surgimento, aparecimento e evidência da gastronomia em torno do
alimento peixe, no bairro de São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá – MT, que hoje se apresenta
com maior força quantitativa, financeira e econômica para a região em geral. Enquanto que a
cerâmica e sua manufatura, que outrora se apresentava evidentemente única no aglomerado
ribeirinho, hoje perde a sua evidência, resumida numa exposição em pequena loja no Centro
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Comunitário, pouco visitada e freqüentada, cujo comércio tem uma redução econômica nas
duas últimas décadas, significativa.
3.2 – Arrimo da pertença e da memória
Na Comunidade de São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá – MT, até aproximadamente a
década de 1990, era comum o visitante, comprador ou pesquisador, chegar ao povoado e
encontrar por toda a sua dimensão residencial, pescadores, remadores, cururueiros e
tocadores, lenhadores, artesãos, ceramistas, lavadeiras e doceiras em eminente trabalho e
ofício de suas funções e profissões, distribuídos pelas varandas e portas das suas casas, nos
quintais sob as mangueiras, na margem do rio ou no barranco, por toda a parte. Como também
era evidente na época, a abundância do barro, da cerâmica, do peixe, da lenha para a queima
da cerâmica, das compotas de doces, entre outros produtos e iguarias. Com a mesma
igualdade, violeiros e tocadores dedilhavam toadas do cururu e as cantigas do siriri nas violas
de cocho, enquanto crianças, jovens e adultos, distraiam-se nas rodas de siriri, com grande
desenvoltura e originalidade, demarcando e sinalizando uma complexidade de entretenimento
popular, coletivo e comunitário, comum ao pertencimento daquele povoado. Aí, aparece “a
dimensão simbólica envolvendo valores e interesses a serem compartilhados, constituindo-se
em linguagem, em sentidos de vida, talvez seja o elemento fundamental que define o comum.
O mundo simbólico a ser compartilhado é a própria representação que gera o comum”.
(SOUZA, 201, p. 42)
Era um período de grande e volumosa produção cultural, bem como da existência
dos elementos e produtos que dão origem e forma a todas essas manifestações. Esse volume
de produção era também elemento de grande importância para o estabelecimento do
sentimento de pertença entre todos da comunidade, o que era muito visível, em virtude do
entusiasmo e alegria com que se envolviam e participavam das manifestações ali presentes e,
sobretudo, presentes na maneira simples como esse povoado recebiam seus visitantes,
compradores e convidados. Esse conjunto de maneiras, modos e condutas expressas por eles
denunciava também o volume de contentamento e a satisfação com o seu universo territorial e
ainda, o de morar naquela comunidade e constituir-se comunidade, como nos coloca Souza
(2010).
“É então que se dá o enraizamento de práticas, o sentido de comunidade se
alicerça no de compartilhar. A carência dessas representações traduzidas em
símbolos que levem a identificação a um só tempo justifica o sentimento de
pertencimento na atualidade e a objetivação aí presente como busca:
linguagens que motivam o aglutinar, o enraizar em um mundo comum”.
(SOUZA, 2010, P. 42
A compreensão desse volume de informações e manifestações culturais era de uma
ludicidade sem igual, denunciava para o visitante, pesquisador, comprador, a existência de
uma pedagogia conjugada - uma espécie de comunicação e de linguagem desdobrados em si
mesmo - conjugadas ao verbo do prazer, do pertencimento e do registro de memórias,
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revisitada de lembranças. Dá-se aí, outro registro: o de ser e de estar presente nos corpos
desses homens e mulheres ribeirinhos, a presença do arrimo, do arrimo da pertença e da
memória.
Mas, quem são esses ribeirinhos, os arrimos da pertença e da memória? São os
pescadores, remadores, cururueiros e tocadores, lenhadores, artesãos, ceramistas, lavadeiras,
doceiras e donas de casa residentes da então, comunidade de São Gonçalo Beira Rio.
Esses agentes comunitários são arrimos da pertença e da memória porque sustentam,
apóiam, amparam, protegem e escoram as suas tradições de herança secular, depurando valor
de herança e de patrimônio, guardados há séculos na qualidade de “Apóstolos do rio”. Ali, no
povoado ribeirinho, hoje bairro de São Gonçalo Beira Rio, os “Apóstolos do rio” se
apresentam no sexo masculino e feminino, entre crianças, jovens, adultos e anciãos que
registram no sentimento de pertença as lembranças e memórias que os séculos de existência
territorial daquele barranco, já denunciam. Essas lembranças vão sendo armazenadas para em
outro tempo e lugar, se apresentarem como memórias, o que acaba por construir
heterogeneidade às ações individuais, mas se convergem em pertencimento nas ações
coletivas ao bem comum dos grupos ali presentes. “Se o que vejamos hoje toma lugar no
quadro de referências de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se
adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente”. (HALBWACHS, 2003, p. 29). E
assim vive o povoado do bairro de São Gonçalo Beira Rio, alimentados de lembranças e de
memórias de outrora que no tempo presente os alimentam de pertencimento mediante as
ocupações e afazeres cotidianos que passaram por transformações em detrimento da realidade
física, híbrida e da globalização pelas quais passa a sociedade contemporânea.
A realidade de transformações naquele povoado tem referência ainda maior no que
se referem às alterações apresentadas no universo ambiental em geral do bairro, sobretudo as
depreciações causadas pelas instalações improvisadas dos bares e restaurantes que se
apresentam hoje na comunidade. Embora, esses bares e restaurantes, por outro lado, se
apresentam também como potencialidade para a elevada estima dos seus comerciantes e
agregam significativa satisfação no corpo de todas as famílias envolvidas com o
empreendedorismo da gastronomia.
Como as potencialidades de auto-estima elevada são eminentemente fortes e visíveis
no maior conjunto de moradores no que se refere ao grupo de comerciantes da gastronomia,
estas se enquadram no Arrimo da pertença e da memória – sustentação da vida das famílias
ribeirinhas que, na sua maioria, tem no comércio da gastronomia do peixe, a sua única fonte
de renda. Já as depreciações ambientais, a ausência do barro no território comunitário e a
76
redução da produção da cerâmica, estão enquadradas no pensamento de Arrimo Assolado –
sem a sustentação devida e os cuidados primordiais às causas ambientais da região. “É como
se estivéssemos diante de muitos testemunhos. Podemos reconstruir um conjunto de
lembranças de maneira a reconhecê-lo porque eles concordam no essencial, apesar de certas
divergências”. (HALBWACHS, 2003, p. 29). As divergências também se fazem presentes no
Bairro, sobretudo no aspecto ambiental. Enquanto os artesãos-ceramistas são proibidos de
retirar da barranca do rio, o barro para a manufatura da cerâmica; ali, na frente de suas casas,
especuladores do comércio da construção civil instalaram dragas para a retirada de areia com
a autorização do poder ambiental público.
É sabido que o bairro de São Gonçalo Beira Rio, entre outros, pertence
geograficamente a uma região do complexo urbanístico da capital, bastante alterado, assim
como está alterado todo o seu entorno ambiental. Dada a proximidade física-espacial do
bairro na sua relação com o rio Cuiabá, essa alteração é consequentemente, resultado de
grande especulação e exploração econômica, política e social como já tratamos aqui
anteriormente. Onde há a pertença individual, também há o pertencimento coletivo, de onde
se valem as interrogações sobre os conflitos gerados numa sociedade contemporânea que, em
detrimento de pequenos e temporários lucros econômicos, perdem-se na dimensão física,
histórica, geográfica, patrimonial e cultural o seu espaço e lugar de memória, relegando assim
a sua herança de memória individual, para atingir a grossos golpes, a memória coletiva. Essa
memória coletiva uma vez atingida, bem como a perda significativa da dimensão física,
histórica, geográfica, patrimonial e cultural no povoado, atinge assustadoramente o próprio
barranco que tem respondido com as intempéries dos fenômenos naturais: barranco desolado,
vegetação destruída, território físico árido, o que tem atingido outras memórias como, por
exemplo, a ausência do barro no ambiente comunitário. A ausência desse elemento no
povoado é resultado de um grande percurso de desolação ambiental pelo qual passou e passa o
complexo territorial do Vale do Cuiabá nas imediações do bairro São Gonçalo Beira Rio, o
que tem registro depreciativo na estima do povoado, principalmente atingindo os artesãos-
ceramistas. Ao longo das décadas ali instaladas, tal especulação sobre o mesmo elemento
ambiental, o rio Cuiabá, não recebeu nenhum maior cuidado político, uma vez que tal
catástrofe tem referência de influência de grandes especulações industriais ocorridas nas
cidades de Cuiabá e Várzea Grande, por toda a extensão do rio Cuiabá: abaixo e acima. O
reflexo veio assolar, justamente a Comunidade de São Gonçalo e diversas outras comunidades
do rio Cuiabá abaixo, que utilizaram do barro, durante décadas, como único elemento de
sustentação econômica e de vida, o que no tempo presente, contribui para que os
77
representantes do comércio dos bares e restaurante sintam-se seguros na exploração da
gastronomia como empreendimento representativo na atualidade, sobre a redução e
“desvalorização” da cerâmica no povoado. Assim, o barranco que margeia o rio Cuiabá e que
sustentou com o alimento peixe, água e barro, inúmeras famílias por quase um século, passa
agora à figura de arrimo da pertença e da memória, “sustentando” fisicamente, no tempo
presente, os bares e restaurantes instalados à margem do rio. Contudo, há que ser repensado a
sua reutilização e mais ainda, o seu tratamento ambiental para uma possível recuperação, que
restabeleça no Bairro e nos seus moradores um estado de animação para que o mesmo volte a
ser também, um dos elementos corroborativos na pertença e na memória comunitária. E mais,
o barro, que possa continuar sendo adquirido da indústria da cerâmica, como respeito ao meio
ambiente e proteção ao barranco e ao rio, pode também ser elemento de grande investidura
sociocultural, não só para os pertencentes do bairro, mas ser, estes pertencentes, agentes
transformadores, na geração de outras fontes de trabalho e renda, realimentando no povoado o
comércio da cerâmica, fortalecendo os laços interpessoais e revigorando a auto-estima,
principalmente dos artesãos.
O arrimo da pertença e da memória pode estar deslocado e reconfigurado em outro
elemento ao benefício sociocultural do Bairro que não o seja localizado apenas nos agentes
transformadores do bairro. Existem evidências e possibilidades de outras tarefas e afazeres
serem desenvolvidas e desdobradas, principalmente de maneira coletiva, operando
profissionalmente na rentabilidade múltipla dos agentes transformadores locais como: oficinas
de cerâmica para diversas clientelas; o barro como elemento de ocupação sócio-educativa e
terapia ocupacional; a queima da cerâmica pode ser reconfigurada como elemento mediador
de ações teatrais e complementares na educação de jovens e adultos; o comércio da cerâmica;
oficinas e a manufatura local podem ser utilizadas como oferta de conhecimento por meio do
empreendedorismo cooperativado ou mesmo na Associação dos Moradores do Bairro, ali já
existente; o centro comunitário como espaço e lugar de exposições periódicas com visitações
de escolas e grupos sociais; enfim, muito se pode desenvolver, sem perder de vista o barro
como elemento transformador, sem que este elemento necessariamente, seja retirado na
comunidade, do barranco do rio.
Diante do exposto, entendemos que a sustentação dos anseios do povoado, bem
como o revigorar da memória e das lembranças coletivas possa estar presente nos agentes
comunitários do bairro, por meio das diversas atividades ali realizadas no âmbito do
artesanato que envolve a cerâmica e o barro. Serão estas ações, com a participação de outros
agentes externos, sobretudo aqueles que registram consigo, o pertencer e o lembrar. Nesse
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sentido, o universo compreensivo cultural do povoado sobre o barro e a cerâmica pode
contribuir com o desenvolvimento de potencialidades múltiplas para atender os anseios do
povoado do bairro de São Gonçalo Beira Rio. E, por meio de outras potencialidades ali
geridas, os próprios agentes transformadores do Bairro, poderão agregar valores
socioculturais que aporte maior valor e resignificado à cerâmica, para que as ações dela
emergidas, possam construir sinergia com o comércio da gastronomia local. Assim
comungadas, a memória e as lembranças coletivas entre os diversos agentes internos e
externos nesse retomar de afazeres comunitários, pode ter registro não só no espaço territorial
configurado como barranco, mas como um limite e deslimite sociocultural, para que “nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de
eventos em que somente nós estivemos envolvidos”. (HALBWACHS, 2003, p. 30). Portanto,
consideramos ainda, que o arrimo da pertença e da memória aqui tratado, não esteja presente
tão somente nos agentes comunitários ou na dimensão do espaço físico do povoado como um
marco assolado, mas se redimensione e se reconfigure, alterando o poder de movimento
sociocultural no bairro, dos demais espaços coletivos, alterando assim e mais uma vez a
ordem do seu território, na dimensão cultural. Por fim, será a reunião das lembranças e das
memórias presentes nos agentes internos e externos, numa busca de sinergia sociocultural,
que modificará, acelerará, romperá ou reduzirá o ritmo que se encontra na dimensão do
“interno” da vida do povoado. Isso poderá, talvez, contribuir para apresentar a cerâmica da
Comunidade para outra dimensão empreendedora, realimentando entre eles, os agentes do
Bairro, o ser e o estar como arrimos da pertença social, cujas memórias, não serão
alimentadas apenas por lembranças internas, mas sim pela sustentação da sua produção
cultural, no universo externo do empreendedorismo sociocultural e ambiental do bairro de São
Gonçalo Beira Rio, aberto para o mundo. E mais, estarão ocupando o lugar do outrora, arrimo
da pertença e da memória – o barranco; para estar e ser agora, o arrimo das águas – os
artesãos, ceramistas, empreendedores, agentes socioculturais da cerâmica e do barro.
3.3 – O Arrimo das Águas
Ao chegar, o visitante pode acompanhar o barranco curvilíneo que se desenha e se
reescreve convidativo em meio a uma rala vegetação de sarãs, cujas frestas permitem espreitar
as já escuras águas do rio, passeando, à frente das casas. É o rio Cuiabá que lambe-lava
acariciando com suas águas pachorrentas as paredes desse barranco, movimentando-se em
curvas, como também movimentam hoje, de maneira sinuosa, a cultura e a vida do povoado
local.
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Arrimo das águas, esse barranco que sustenta um novelo de pertencimento que se
desenrola, retorce e se enreda entre histórias, causos, lendas, mitos e mistérios, revelando que
ali, existe um povoado ribeirinho secular, que também sustenta uma vida de pertencimento e
memórias frente à cultura local. É onde o outro se sente pertencendo ao lugar, ao povo dali, ao
rio, ao próprio barranco. Esse barranco-arrimo é também ali um limite; um limite imaginário
no universo cultural, traçando sentido horizontal na alimentação da vida e do movimento da
vida do povoado ribeirinho, informando, interrogando, contestando, redimensionando e
revelando a cada tempo e lugar outras possibilidades de vida e de viver ali. Um viver de
movimentos e memórias, de idas e vindas, sem receios, como revelam os fenômenos da
própria natureza. Um movimento de vida como é o próprio barranco, mesmo sendo um arrimo
que se sustenta emprumado, se curva sinuoso diante do rio, bebendo das suas águas para
expressar os seus mistérios, memórias e sentidos. Um pertencendo ao outro nas suas
dimensões físicas e lúdicas. O rio que pertence ao barranco; o barranco que pertence ao rio;
como a estes pertencem os peixes, as correntezas, as enchentes, os rebojos, a mata ciliar, a
fauna, o barro, a cerâmica e toda a vida ali submersa e ficcional mítica. Ao rio também
pertencem os homens do barro, os arrimos da pertença e da memória, os homens e mulheres
ribeirinhos de São Gonçalo, que mesmo na noite escura dialogam com o rio, oferecendo os
seus corpos na travessia para outros barrancos, na busca silenciosa de outros mistérios que
residem nas porções de barro, dali retiradas. Esses mistérios estão por toda a parte: no mapa
residencial, no barranco, nas matas de sarãs, na margem do rio, nas águas; de dia e de noite, e
eles sabem, que a “água misturada com a noite é um remorso antigo que não quer dormir...”
[...] “A água na noite é de um medo penetrante”. [...] Embora, “uma gota de água poderosa
basta para criar um mundo e para dissolver a noite”. (BACHELARD, 1998, p. 10 e 107).
O barranco converge-se ainda, em outro patrimônio, o patrimônio da existência como
território, onde está assentada a residência e a ocupação de um lugar de pertencimento do
povoado. Ali está instalado o bairro: moram, dançam, cantam, pescam, produzem a cerâmica,
criam pequenos animais, comercializam o peixe e sua gastronomia, pertencem a um meio
comum, onde todos salivam e comungam do mesmo sentimento de receber e oferecer aos seus
membros e visitantes, os aprendizados e ensinamentos cotidianos e coletivos.
Há no barranco-arrimo, a presença do sentimento de pertença coletivo, onde o ser e
estar em comunidade se instaura em cada cidadão que, por meio dos seus afazeres mais
singelos, expressam na individualidade, o universo de pertença coletivo de outro bem comum,
a própria Comunidade. Assim, há na comunidade, no povoado, no bairro, um viver que se
renova a cada “estação” ou a cada ciclo de conhecimento. Essa renovação é oriunda do
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barranco que também se renova para sustentar o rio e todos os seus mistérios. É um barranco
que se altera na sua dimensão física, geográfica, mítica e cósmica. Uma vez alterado, altera
também o poder de movimento do Bairro, reconfigurando os seus demais espaços e toda a
“ordem” territorial ali estabelecida. Essas alterações que vão desde as mudanças físicas do
barranco até as mudanças espaciais do bairro e dos que nele vivem, compreende um conjunto
de transformações. São transformações resultadas do processo natural fenomenológico, e do
processo de hibridações do mundo contemporâneo afetados pela globalização social, do ponto
de vista sociocultural. Essas alterações, também atingem a memória individual e coletiva dos
componentes do bairro. Há que compreender que, em se tratando do rio Cuiabá, no que
compreendemos de “rio a baixo”, a partir da capital, “a água já não é uma substância que se
bebe; ela engole a sombra como um xarope negro. [...] Ela pode dar a uma expressão poética
uma força singular, prova de seu caráter inconsciente profundo”. (BACHELARD, 1998, p.
57).
Esse rio que nunca dorme, tem acordado cotidianamente com as suas águas cada vez
mais escuras, o suficiente para se aproximar da pigmentação do ocre do barro e do próprio
barranco. Nesse estado análogo de pigmentação, esses dois elementos: barranco e água
energizam-se, comungando cumplicidade entre o pó do barro e o líquido da água, masculino e
feminino construindo um só devir, um só corpo, cujas paredes e muros, não se podem curvar
ou inclinar ao limite do seu horizonte, para que as suas águas não possam assorear o seu
destino. Uma vez o rio e o seu destino assoreados; assoream-se todos os mistérios nele
contidos; perde-se então a força e a expressão da existência de mitos e mistérios. Nesse
sentido, o arrimo das águas deve ser protegido pelo arrimo da pertença e da memória – os
oleiros e ceramistas do povoado ribeirinho, os apóstolos do rio Cuiabá – que com esse
barranco convivem na irmandade do afeto, juntando-o à água na dimensão da argila. “A argila
certa deveria já ter terra suficiente e água suficiente. A argila também será, para muitas almas,
um tema de devaneios sem fim. O homem se perguntará indefinidamente de que lama, de que
argila ele é feito”. (BACHELARD, 1998, p. 116).
HOMEM DO BARRANCO - Então, formou o Senhor Deus ao homem do
pó da terra e lhe soprou nas narinas um fôlego de vida, o pó é um sopro! a
vida é um sopro!
A frase acima foi reescrita a partir de um versículo do Livro do Gênesis. Ela abre a
encenação do poema dramático Homem do Barranco que terá continuidade no atual texto
Arrimo das águas, que se apresenta como uma reescritura do texto anterior. O poema
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dramático Homem do Barranco, elemento que também contribui para a reescritura do atual
texto Arrimo das águas, tem ao todo, quatro personagens: o Homem do Barranco como
personagem principal e três personagens secundárias: a Lavadeira, a Mãe Oxum e a
Ceramista.
Na atual proposta de o texto Arrimo das águas, as personagens secundárias não se
farão presentes; ficando o Homem do Barranco – arrimo das águas – como o único e principal
personagem. Dessa forma, o texto atualizado se encarregará de colocar na voz do único
personagem, todas as “profecias” das três personagens agora ausentes, atendendo para a
escrita do texto que tinha proporção verbal e oral inspiradas no popular ribeirinho, para agora
uma versão filosófica, sem perder de vista o conteúdo dos temas, assuntos e apelos proferidos
pelas três personagens femininas. Compreendemos que “o diálogo e a noção de personagem,
torna-se condição prescindível quando os artistas passam a usar todo tipo de escritura para
eventual encenação, na tentativa de responder às exigências de tema e forma deste final de
século”. (FERNANDES, 2001, p. 69).
Assim, o atual texto Arrimo das águas, por intermédio da personagem Homem do
Barranco, prosseguirá atuando como um mediador do povoado ribeirinho, nas causas
ambientais e socioculturais, construindo uma política de apelo aos destratos ocorridos no
bairro nos mais diversos sentidos do desolamento ao patrimônio histórico material, imaterial e
humano.
A reescritura do atual texto dramático proporá ainda a repetição do uso do gênero do
poema dramático, como na encenação de o Homem do Barranco, sendo este agora, sobre os
efeitos do texto performático, “que é indissociável da representação e existe apenas como
materialização cênica, relacionado a outros componentes da escritura teatral”.
(FERNANDES, 2001, p.72). Como jogo e ritmo cênico, a nova montagem apresentará um
maior volume de liberdade no trabalho do ator, uma vez se tratar de uma única personagem,
possibilitando assim, maior exploração do espaço cênico, como espaço expositivo. Nesse
desempenho de atuação, a proposta atual não se ocupará da utilização do espaço da caixa
preta tradicional, ou seja, do espaço cênico-teatral comumente conhecido como teatro ou
palco italiano, como ocorrera na montagem anterior. A atual idéia é desconstruir essa
formalidade, possibilitando à encenação, a redução de recursos técnicos teatrais: caixa cênica
preta; palco italiano; platéia sobreposta em fileiras; inúmeras varas de luz, entre outros, o que
reduziria a exploração da proposta da encenação, diante do reduzido número de teatros na
cidade de Cuiabá e municípios do estado de Mato Grosso.
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Diante da realidade de ocupação e exploração de espaços alternativos que o tempo
presente nos revela, a atual montagem possibilitará o contato direto com o espectador: uso de
galerias; espaços expositivos alternativos; salas de aulas; praças púbicas; teatros de arena;
barrancos e margens dos rios; centros comunitários; ruas e calçadões desocupados; museus;
igrejas; dentre outros. Esses espaços facilitarão ainda, a proximidade do espectador com o ator
em cena, uma vez podendo estar público e ator, no mesmo nível físico do espaço: em círculos;
cadeiras ou bancos convencionais; utilização do chão e degraus como assentos; carteiras
escolares; arquibancadas, calçadas e meio-fios; bancos de jardins; etc.
Esse conjunto de descrições das alterações acima expostas para a nova montagem
vem de encontro com a dramaturgia contemporânea, pelo fato esta ideia ter o significado
volume de diversidade no conjunto cênico, “estruturadas em padrões de ações e diálogos ou a
partir de monólogos justapostos, tratando de problemas atuais, de forma realista ou
metaforizando grandes temas abstratos”. (FERNANDES, 2001, p. 69) Essa estrutura, também
corrobora com as imagens que se refletem no tempo presente, no bairro de São Gonçalo Beira
Rio, sobre o comércio da gastronomia nos bares e restaurantes: significativo conjunto e
volume de uma arquitetura improvisada; público disperso, ora em cadeiras, ora em bancos
fincados ao chão; árvores, arbustos e palhas na função de telhado-abrigo para os
consumidores; o piso dos bares e restaurantes, na sua maioria de “chão batido”; entre outros.
De igual modo, as ações físicas corporais ali empregadas sejam por parte dos comerciantes ou
presente nos corpos dos freqüentadores, denotam genuína liberdade a par do cenário que se
descortina espontâneo, transitando oralidade, sotaques e ritmos verbais cúmplices à
diversidade de origens geográficas dos freqüentadores. “Exatamente por isso o texto
performático é fragmentado, heterogêneo, múltiplo, e seria incoerente tentar analisá-lo
enquanto obra literária, pois depende dos outros sistemas cênicos para se realizar”.
(FERNANDES, 2001, p. 72).
O texto atual Arrimo das Águas, ainda que “fragmentado” na orientação do texto
performático, manterá internamente em cada porção de seus fragmentos, uma parcela da
estrutura do gênero do poema dramático. Não perderá de vista a qualidade da estrutura já
concebido no texto Homem do Barranco e ainda, manter cumplicidade ao apelo político, pelas
causas ambientais e socioculturais do povoado do bairro de que tratamos.
A proposta de que concebe o gênero poema dramático, se fará presente em Arrimo
das águas, colocando o texto proposto dentro de um roteiro e depois em um texto do gênero
espetacular performático.
83
Embora seja difícil ter a definição de texto dramático que o diferencie dos demais
gêneros textuais, considerando que existe uma tendência atual muito grande em teatralizar
qualquer tipo de texto, quando se têm a idéia de inseri-los em montagens performáticas. Essas
definições pragmáticas resultam dos problemas para distinguir o texto teatral de hoje, “quando
as fronteiras do drama alargam-se a ponto de incluir romances, poemas, roteiros
cinematográficos e até mesmo fragmentos de falas esparsas, desconexas, usados apenas para
pontuar a dramaturgia cênica do diretor e ator”. (FERNANDES, 2001, p. 69).
O texto de Arrimo das Águas é também um poema dramático, concebido a partir de
diversos fragmentos de depoimentos de moradores do bairro de São Gonçalo Beira Rio, em
especial da senhora Joana Maria da Silva. A esses depoimentos, juntaram-se outros
fragmentos: textos bíblicos adaptados, causos e situações oriundos da própria comunidade,
lendas ribeirinhas que apresentam mitos e mistérios, as festas de santos realizadas no
povoado, as diversas enchentes ocorridas no bairro, dentre outros, “traduzidos” do popular,
para um texto “clássico”, cujas metáforas contribuem para hibridar informações e
conhecimentos.
Relevante contexto sociocultural e ambiental contribui na atualidade, para a maior
parte de conteúdo do texto Arrimo das Águas: as transformações ocorridas no bairro nas duas
últimas décadas que tem como principal argumento, a sua realidade contemporânea. A
mudança da cidade, da comunidade, do bairro e suas novas configurações: rio acabado,
desbarrancado; vegetação destruída, território físico árido; a “invasão” dos de fora –
visitantes, sociedade em geral, sobre o pertencimento dos de dentro – pessoas do povoado
ribeirinho; a gastronomia como elemento de transformação econômica, mas também de
devastação ambiental e transformação da geografia territorial.
Ao longo de duas décadas após a convivência ocorrida em 1993/1994, o bairro de
São Gonçalo Beira Rio se apresenta hoje com significativo volume de alterações no seu
contexto sociocultural e ambiental. Essa hibridação se desenha colorindo uma diversidade de
preceitos, condutas e valores, alterando o grau de pertencimento do povoado do bairro, mas
contribuindo no registro das lembranças e memórias guardadas por séculos, com heranças
antepassadas. Essas alterações que frequentam cotidianamente o bairro e a vida desse
povoado, pode estar nos informando, que seja necessário “talvez, um olhar mais atento que
possa distinguir nas formas híbridas do texto teatral contemporâneo a necessidade de
expressão de assuntos que os modelos históricos não conseguem conter”. (FERNANDES,
2001, p. 69).
84
3.4 – O Arrimo das Águas e o teatro contemporâneo
Com a tentativa de esclarecer o que presenciava nas apresentações dos primeiros
happenings – “Forma de atividade que não usa texto ou programa prefixado (no máximo um
roteiro ou um “modo de usar”) e que propõe aquilo que ora se chama acontecimento”
(PAVIS, 1999, p. 191) - na década de 1970, o encenador e teórico da performance Richard
Schechner imprimiu o termo teatro pós-dramático, por não mais encontrar no happening, uma
identificação com o conhecido teatro tradicional, cuja essência estava ligada ao drama. Com a
intenção de recortar ou dar uma forma a sua impressão sobre o que assistira na época, o
professor de estudos da performance Schechner, empregou o prefixo “pós” ao teatro
dramático, por querer expressar a sua idéia sobre um teatro que havia ultrapassado por
completo a linha do drama, embora este ainda se apresentava como estética muito explorada
em grupos teatrais, na maioria, com propostas de um teatro tradicional.
Conforme nos apresenta Gonzalez (2012), no final da década de 1990, o teórico
alemão Hans-Thies Lehmann, com a intenção de apresentar as significativas mudanças no
teatro, apropria-se do termo teatro pós-dramático, com o qual já vinha dialogando desde a
década de 1980. Essa apropriação deu-se em detrimento de o teórico alemão Lehmann,
considerar que, o fato de recebermos signos teatrais que se distanciam, ou diferem-se por
completo dos signos convencionais do teatro das últimas décadas, justifica a utilização de um
novo termo para cercar essas novas experiências das artes cênicas, e contribuir para uma nova
compreensão conceitual dessas experiências.
A mudança de paradigma na semiologia que o teatro pós-dramático carrega com
relação ao teatro tradicional, provocou significativo estranhamento tanto por parte do público
em geral, quanto pelos estudantes, atores e diretores teatrais da época. Utilizamos aqui, o
termo teatro tradicional, desprovido de uma conceituação técnica em virtude de o próprio
teórico alemão afirmar que “o teatro é sempre pensado tacitamente como teatro do drama”
(LEHMANN, 2007, p. 25). E, também, pensado como teatro tradicional pela tendência teatral
dramática desenvolvida na primeira metade do século XX que foi se contrapondo, nas
próximas décadas da segunda metade do século XX, com o teatro inovador que a época se
encarregava de produzir e assistir. Como resultado das mudanças no termo teatro pós-
dramático e na prática teatral em vigência na época, passamos a assistir uma estética que
substituiu a forma dramática que se apresentava com significativo volume de rigor na sua
forma e resolução cênica da trama. Esse espaço foi sendo então, ocupado por uma forma
teatral que o mundo artístico contemporâneo, já presenciava em outras linguagens como nas
85
artes plásticas, no cinema, no vídeo arte, etc. Assim, passamos a assistir uma produção
resultada de uma percepção mais aberta, fragmentada e simultânea dos signos expressos, não
só em si mesmos, mas proporcionando leituras outras numa diversidade de possibilidades de
imagens e resultados cênicos, sem que seja necessário, optar por, tão somente uma.
O teatro pós-dramático vai distanciar-se dos recursos e dos conceitos que até então
construíram e permeavam o teatro dramático: a imitação, a representação, a ação dramática e
os personagens, propondo uma “des-hierarquização” dos recursos teatrais. O primado do texto
desaparece por completo e os recursos formais do drama não estão mais em uma função de
tão somente comunicar, ou informar qualquer coisa a seu espectador; estas tomam o lugar de
compartilhamento num fluxo e contra fluxo das ações ali propostas, comungando e
desautomatizando a percepção do espectador e ao mesmo tempo provocando novas
experiências ao atuante, ator, performer.
É preciso destacar também que as mudanças ocorridas no entorno do teatro pós-
dramático, tiveram o seu começo, bem antes da década de 1980 e não se configuram como
uma opção presente na formalidade da estética teatral contemporânea; fazem parte de um
conjunto de pensamento artístico mais complexo, híbrido, reconfigurado ao termo da
contemporaneidade que o nosso tempo se encarregou de torná-los presente. Reside aí, o
desejo de uma relação também mais aberta no que se refere às formas de expressão dos
códigos artísticos e das linguagens já presentes no momento. Inserimos nessas formas de
representações e expressões que o teatro pós-dramático se encarregou de nos oferecer: as
relações sociais, políticas e religiosas que acabaram por se configurar como um importante
trunfo para transformar o que já conhecíamos em mudanças pragmáticas para a nossa
sociabilidade com a vida e com a arte.
Com o advento do teatro pós-dramático, presenciamos uma sociedade reagindo ao
não reconhecível, ao choque das linguagens e estéticas, ao acaso das dúvidas prazerosas em
pleno capitalismo. Uma época em que parecia estar presenciando algo com uma ordem
invertida, do fim para o começo, dada ao volume de estranhezas sociais, culturais e estéticas
provocados pelo teatro pós-dramático, na época e ainda hoje.
Lehmann (2007, p. 426), almeja “um teatro que seja encarado frente a frente e com
energia pulsante, onde os tabus sejam expressos de forma direta, sem a necessidade de uma
representação”. O teatro pós-dramático vem proporcionar a imersão no lúdico, a expressão
das imagens, o contato com o universo visual e suas estéticas, o prazer nas coisas até mesmo
contraditórias, nas dúvidas e incertezas, violentamente ou não. E nasce acima de tudo, de um
86
desejo de fruição, uma relação horizontal e de comunhão, entre seus atuantes e platéia, e de
significantes e possíveis significados.
Engana-se quem pensa que o teatro pós-dramático esteja ligado a certos dogmas
teatrais ou artísticos de uma encenação. Ele é resultado da criação e construção de um
pensamento artístico contemporâneo, que não se apega tão somente à fusão de linguagens. É
um fazer teatral com o eminente compromisso de enfrentar outras mudanças de paradigmas e
de assumir os riscos resultantes dessa ação. É um teatro que continua com a força física das
suas ações para, politicamente, transformar a sociedade, se fazendo valer de uma realidade
factual, articulada com afeições de forças artísticas para que seja mantido, ainda nas artes, o
fluxo latente da liberdade expressiva das suas ações.
É pertinente entender também que, segundo Lehmann (2007), o teatro pós-dramático
não é uma renúncia final do texto dramático. Antes, serve como uma ferramenta de trabalho
para descrever várias formas novas de fazer teatro, com certa proximidade à performance, que
seguem outros princípios do que aqueles das encenações tradicionais de uma obra dramática.
Não se trata simplesmente de um estilo único, mas de um processo transformador mais longo,
que conseguia liberar os parâmetros elementares do teatro (espaço, luz, corpo, movimento,
gesto, voz, etc.) da sua submissão à obra dramática. Se as formas teatrais pós-dramáticas
criam espaços experimentais para percepções não-habituais, o fazem, sobretudo, porque
possibilitam uma nova consciência da situação que o teatro significa enquanto prática
cultural: o acontecimento de um encontro entre pessoas que apresentam algo e pessoas que
assistem a apresentação. E, ainda, com o reforço com que Fernandes contribui com o seu
discurso e entendimento.
O teatro pós-dramático para Lehmann, não é tão somente um novo tipo de
escritura cênica. É um modo novo de utilização dos significantes no teatro,
que exige mais presença que representação, mais experiência partilhada que
transmitida, mais processo que resultado, mais manifestação que
significação, mais impulso de energia que informação. (FERNANDES,
2006, p. 9).
A par da citação de Fernandes, fazemos uma leitura do universo pragmático existente
no teatro pós-dramático proposto por Lehmann, onde percebemos que, uma das principais
intenções desse fazer é a de imprimir em seus participantes, percepções não habituais das já
exploradas no teatro dramático. É uma impressão pragmática que tenta recuperar o espaço
teatral na qualidade de um ambiente híbrido, que permita manifestar tanto em seus executores,
quanto no público, um espírito de indagação, de inquietude, de investigação e de incômodo,
87
invadindo duplamente, o campo estético e o pragmático. Esses dados proferem a necessidade
da utilização de espaços e linguagens não convencionais, indo de encontro com o que sinaliza
Lehmann, que a ampla especularização da vida pública obriga um teatro que se compreende
como crítico e investigativo a subverter as regras.
Sejam as regras contidas na dimensão do rigor teórico do teatro dramático; seja na
reação social impressa e presente nas décadas que antecedem a investigação do teatro pós-
dramático; seja na liberdade de expressões das linguagens artísticas e seus códigos nas
décadas de 1980 e 1990; seja no afã de imprimir o pós-moderno, em uma sociedade
contemporânea à margem da globalização social, nada poderá construir novas impressões
artísticas e culturais, sobretudo na arte teatral – uma arte política por natureza – sem a
eminente quebra de paradigmas. Esses paradigmas, internos e externos, tanto dentro e fora das
metodologias engajadas nas produções de um teatro contemporâneo, quanto expressos nas
reações incômodas e inquietudes sociais perante o diferente que o chamam de novo,
constituem-se por dogmas que são reaproveitados, reinventados, reeditados para uma mesma
sociedade que não acompanha a desolação mental, psicológica, intelectual e política,
provocada pela globalização.
O que queremos construir ou reimprimir numa sociedade contemporânea por meio
do teatro e, sobretudo por meio do teatro contemporâneo, onde as suas “farpas críticas” não
são mais evidenciadas como um fio condutor para a crítica social? Como investigar uma
sociedade globalizada, cujas pertenças sociais, políticas e culturais hibridaram-se em um
universo contemporâneo. Talvez, o teatro de um modo geral possa denotar cumplicidade para
algumas respostas, mas estas poderão não mais estar no tempo e lugar dessas interrogações.
O que os termos: teatro dramático e teatro pós-dramático não conseguiram talvez,
pontuar estética e politicamente aos seus investidores no final do século passado, pode
também, e talvez, não ter deflagrado criticidade por meio da sua expressão enquanto arte, para
esta mesma sociedade banalizada. Na arte, como em outras expressões e linguagens, o tempo
decorrido da exploração de certas experiências artísticas, estruturas e formas de expressão,
podem contribuir para a construção de uma alfabetização artístico-estética numa sociedade
que tenta, repetidas vezes, em épocas diferentes, resgata os mesmos valores de outrora. Nesse
caso, a película já amarelada pelo tempo, pode não contribuir com a projeção e revelação de
uma outra estética, haja vista a insistência social, em clicar no play, sempre na mesma cena,
cujas ações, somente lhes agradam.
A considerar e comparar o tempo e o lugar, bem como as transformações intrínsecas
na mudança do final de um século para o início de outro, as expressões: artísticas, culturais,
88
sociais, políticas e econômicas, presentes nessa transição, adentram o novo século misturadas
ao curso das transformações que a sociedade tem produzido a par de uma globalização sócio-
industrial e tecnológica. Nesse mesmo tempo e lugar, que se assenta hoje uma sociedade que a
chamamos de democrática, presenciamos os devaneios sociais, políticos e econômicos
imergindo na classe cultural e artística. No entanto, os seus sonhos e entretenimentos
transitam em terrenos diferentes, mesmo sem perceber o pragmatismo presente na
contextualização do “divertimento” cultural, social, artístico e estético como pontua
Baumgartel:
Portanto, o teatro pós-dramático não é um teatro que simplesmente brinca
com os elementos teatrais essenciais (corpo, movimento, voz, luz, espaço,
etc.) enquanto elementos autônomos e de igual importância, como se fosse
um grande playground (embora tal teatro pós-moderno existe). Mais do que
isso, pretende discutir na sua estética não-mimética um problema sério e até
existencial para uma sociedade democrática: como manter o pragmático e o
estético, o senso do poder e o senso do possível, o hegemônico e o
marginalizado ou até invisível, numa tensão produtiva, isto é, numa tensão
que evite a homogeneização do espaço cênico, seja na direção do estético,
seja na direção do pragmático. O espaço cênico integrado do teatro pós-
dramático não é um espaço unificado. (BAUMGARTEL, 2007, p. 132).
Observamos em Baumgartel, que o papel do teatro não é de produzir mundos
alternativos perfeitos, com imagens idealizadas dentro das possibilidades humanas ou de tão
somente fantasiar, mascarar, entreter, mimetizar e brincar de tempo em tempo, mostrando à
sociedade, espetáculos meramente engraçados. Muito menos, o teatro tem a tarefa de ilustrar
histórias que se confundem com a própria irrealidade social. Antes, um “laboratório da
fantasia social” que se utiliza de materiais produzidos pela própria sociedade e investiga como
se pode construir transformação social com os “resíduos” dessa sociedade. Os experimentos
formais do teatro pós-dramático: a relação concreta entre atores e platéia; a eminente
produção de ações performativas, mas de realidades e significados; as posturas dos
encenadores rebelando democracia e conhecimento; a coragem sempre viva ao defrontar com
a presença do risco no anseio da transformação social, dentre outros, podem encontrar nesse
objetivo a sua razão. Dessa forma, “este teatro contemporâneo usa uma linguagem pós-
dramática, pois esta permite não só usar o material e a realidade social contemporânea para
interrogá-la, mas principalmente encenar a própria interrogação” (BAUMGARTEL, 2007, p.
133).
Em Arrimo das Águas, poderemos presenciar uma estrutura com base nos intentos do
teatro contemporâneo, transferindo por meio da performance, ações que intercalam
89
interrogações e caminhos possíveis; ações e reações que mesclam a intenção do poema
dramático com a força do drama. Nesse conjunto de fluxo de estéticas hibridadas, Arrimo das
Águas sugere performatizar os anseios políticos, econômicos, culturais, sociais e ambientais
de uma comunidade secular, cujo tempo e lugar, se encarregou de “urbanizá-la” na qualidade
de bairro para o tempo presente. É justamente sobre os anseios que o tempo presente insere na
vida de um povoado ribeirinho, hoje bairro de São Gonçalo Beira Rio, que será deflagrado,
revelando as transformações ocorridas nas duas últimas décadas. Contanto, os resíduos
materiais e imateriais – o que restou de substâncias submetidas à ação de diversas
transformações sócio-ambientais na qualidade de cinzas que sobraram de uma “combustão” –
serão proferidos pela mesma personagem da primeira montagem do poema dramático, o
Homem do Barranco. Assim teremos o desdobramento de um trabalho teatral com o esforço
do dramático e com recursos do poema que, neste momento se apresentam com a intenção de
expor os significantes do teatro, com mais presença, com mais experiência partilhada, onde o
processo, a manifestação e os impulsos por ele revelados, possam contagiar a platéia
envolvente que compartilhará das mesmas ações.
Dada as convergências de linguagens experimentadas no percurso da encenação do
texto Homem do Barranco, entendemos que este não teve uma única escolha de gênero e
muito menos uma única estética pontuada ao curso de também, um único caminho de
resultados. Em Homem do Barranco, o processo se apresentou eminentemente partilhado com
o intuito de ver e rever as considerações políticas e culturais pontuadas por uma comunidade
também partilhada socialmente. Desse processo que manifestou relações entre texto, diretor,
ator, plateia e comunidade, ainda subsistem insumos materiais e imateriais capaz de rever a
escritura de outras adaptações teatrais.
O que o texto do poema dramático Homem do Barranco tem a ver com o teatro pós-
dramático está inserido justamente nessa transição de possibilidades, não só de uma
reescritura textual, mas de um conjunto de elementos teatrais, postulados enquanto relação
concreta entre atores e plateia; a realidade de significados expressos por um personagem
interlocutor de uma comunidade; a presença do risco no anseio de uma possível
transformação social.
Ao se entrelaçarem as relações de percurso: convivência com o povoado ribeirinho; a
escrita do primeiro texto dramático; a encenação do poema dramático que se guardou em um
monólogo com afeições do pós-dramático; a performatividade da primeira proposta sendo
desdobrada em uma performance na proposta atual, poderemos encontrar em Arrimo das
Águas, alguns dos caminhos que possam contribuir para expor as transformações ocorridas no
90
bairro de São Gonçalo Beira Rio nos últimos 20 anos, na voz da própria Comunidade, que
continuarão “vestidos” de Homem do Barranco.
A convivência com a Comunidade ribeirinha, a dramaturgia e a encenação tratadas
para a montagem de Homem do Barranco, não constituem os únicos elementos que comporão
a estrutura do texto contemporâneo Arrimo das Águas. Com a presença de outros elementos
nessa atual proposta: a presença de uma única personagem; a performance como linguagem
de encenação; o texto escriturado tão somente para uma voz e verbo na projeção de uma
tonalidade do estilo “clássico”; os espaços alternativos como espaço expositivo para a cena da
performance; ator e platéia horizontalmente entrelaçados; dentre outros, evidenciam que
também, os riscos serão maiores. Não só os riscos que recorrem a uma proposta de anseios
políticos presentes na encenação, oriundas dos discursos da Comunidade, mas os riscos
também de o resultado da “obra” sobrepor ao seu processo com a intenção de tão somente
agradar, no lugar do vergão questionador do processo, partilhado ao viés de outras e novas
transformações, tanto para a proposta em si da atual montagem, como para os que dela
possam compartilhar, contrapor ou questionar.
A esse volume de riscos que naturalmente pode vir a pertencer à atual montagem de
Arrimo das Águas, afirmamos com o duplo gesto de “dramaturgo e de ator”, da existência de
um hibridismo de gêneros nela contidos, dada a sua realidade pragmática, como a utilização
de espaços não convencionais, a teatralidade provocada por cada espaço a ser ocupado, a
corporeidade resultada dessa ocupação espacial, bem como pela turbulência temática que a
atualidade física transformada do bairro pesquisado apresenta. Nesse vetor, a proposta atual
de Arrimo das Águas arriscará ainda em se aliar a duas coordenadas na encenação: uma sendo
a tragédia sócio-ambiental e seus desdobramentos vividos pelos ribeirinhos em detrimento das
transformações presentes no bairro onde vivem e, a outra, trata-se da forma literária como
esse drama será projetado por meio da narração, cuja descrição dos fatos, será utilizada para
dar maior ênfase e objetividade ao processo pretendido. Essa alternativa de discurso entre
narração e descrição, compõe outro elemento presente nas montagens contemporâneas, cuja
idéia exige mais presença que representação, projetando mais processos que resultados.
O que o texto de Homem do Barranco, ainda tem a ver com o teatro contemporâneo,
se expande e transcende pelas linhas bilaterais da construção dramática e da familiaridade da
linguagem literária nele contido, sobretudo ao possibilitar, permitir e contribuir com a sua
própria releitura, criando espaço para outro texto e encenação. Será esse outro texto e
encenação que recorrerá, num caminho de idas e voltas, à primeira montagem, reafirmando
seu espaço enquanto uma proposta de um teatro performatizado para o tempo presente.
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Esse caminho de transformações, alterações e resignificações das formas do
dramático para o pós-dramático têm percorrido tempo, lugar e exploração da sua forma, o
suficiente como ocorrera em outras mudanças de estilos, formas e estéticas na história da arte,
em seus respectivos períodos de transição. O curso dessas mudanças e alterações de formas
dramáticas e a sua história acerca do drama e das encenações derivadas dessas formas teatrais,
ainda são e continuarão sendo exploradas dentro de inspirações para outras formas
dramáticas: o pós-dramático; as performances; o pós-moderno; o contemporâneo, entre
outras.
Considerando essas transformações uma realidade para o tempo presente na
comunidade de São Gonçalo Beira Rio, encontraremos na reescritura do texto, uma
cumplicidade com o teatro pós-dramático, cujo resultado estético enquanto performance,
revelará um outro Homem do Barranco, cujo espectro de emoções, sociais, culturais e
políticas, será concebido como o Arrimo das Águas. Essa outra personagem ainda vestida da
máscara de o Homem do Barranco, além de única personagem presente na trama da nova
encenação, manterá o texto da personagem Homem do Barranco, acrescido dos novos textos
construídos a partir das transformações presentes no hoje Bairro de São Gonçalo Beira Rio,
duas décadas após a primeira escritura e encenação do poema dramático aqui tratado.
3.5 – O Poema Dramático 2 Arrimo das Águas
ARRIMO DAS ÁGUAS
SINOPSE
Arrimo das Águas é uma proposta contemporânea de teatro pós-dramático, com reescritura
baseada no texto do poema dramático Homem do Barranco que por meio de narrativa delata
as transformações socioculturais e ambientais que assolaram a paisagem do bairro de São
Gonçalo Beira Rio em Cuiabá - MT, nas duas últimas décadas, entre os anos de 1993 a 2013.
PERSONAGEM
Homem do Barranco
CARLOS FERREIRA
Pesquisa, dramaturgia, figurino e atuação
J. ASTREVO AGUIAR
Direção
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LOURIVALDO RODRIGUES
Concepção da Iluminação
TEXTO: ARRIMO DAS ÁGUAS
Carlos Ferreira
(Com luz apagada, soa no ar, um canto tibetano. Aos poucos aparece um facho de luz que
clareia um corredor de terra, sugerindo um ugar ermo. Este corredor pode ser entre a platéia
que deve estar posicionada em espaço de semi-arena. Antes que a luz ilumine todo o espaço,
ouve-se voz em OFF e texto. Em seguida, ator entra em cena com a personagem Homem do
Barranco envolto por farto tecido de algodão cru, arrastando-o pelo corredor, assumindo o
espaço aberto entre os espectadores. Ao som de música tibetana e texto em OFF, o ator vai
desenrolando o grande tecido e organizando-o no espaço cênico, transferindo este, para a
função de barro, barranco, de rio).
VOZ EM OFF – (Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas
narinas um fôlego de vida, o pó é um sopro! A vida é um sopro!)
(Até ao final do texto, sob luz indireta e em penumbra, ator já deve estar posicionado no
centro do espaço cênico, transferindo para o seu corpo, a idéia de uma “porção de barro”,
encolhido junto ao tecido, que aos poucos vai surgindo lentamente de entre o tecido, tronco
nu, cabeça raspada e já maquiada com “barro”, tomando a posição vertical e com olhar
indireto e luz de pino, fala texto).
HOMEM DO BARRANCO
Estou farto da minha vida, não quero viver para sempre!
Mesmo sabendo que não vou morrer nunca!
(Neste momento, abre-se dois focos de luz de chão, podendo vê-lo, ainda indiretamente de
frente; cresce a música tibetana. Ator caminha um pouco à frente, arrastando o farto tecido
para compor uma outra posição, com o tronco já para frente, fala texto para o público).
HOMEM DO BARRANCO
Enquanto, pois, existir o barro, barranco serei!
Serei vida nas mãos do povo que me busca.
O pó, pai e neto do meu corpo enlamaçado, lançará feitos no decorrer dos séculos, que durará
a eternidade e serão urnas para guardar o pouco que sobrar de mim. E sobrará pouco, muito
pouco. O Senhor Deus mandará águas do céu para lavar a mim, tornarei a ti, barranco
límpido, espaço vicinal dos que constroem a procissão do encontro.
Não serei o caminho!
Nem a verdade, nem a vida!
Apenas viverei para sempre.
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(Pausa. A música cresce harmoniosamente e volta à altura de fundo musical, enquanto ator
caminha à sua direita, arrastando o farto tecido, sob a mesma luz indireta, posiciona o rosto
para a sua diagonal direita e fala texto).
HOMEM DO BARRANCO
E se buscas enxergar a mim, repouse em ti, cacos da minha matéria. Tendo Deus, bordado a
lua maior, (neste momento, corta-se a luz de chão e abre-se foco que ilumina o teto do espaço
cênico, quando trinos de instrumentos percussivos são manipulados) no terceiro dia serás um
homem novo; tendo em ti o meu corpo; e eu, o teu corpo em mim.
Não terás lágrimas, pois!
Não terás a vontade do pranto!
Terás apenas a saliva líquida, moverás moinhos. (ator vira-se para frente em movimento
brusco).
Transformarás o pó em barro, que será socado, para encontrar nele, o assento da pedra
angular. Terás na terra o começo da tua eternidade, não morrerás nunca!
(Outra pausa, música tibetana toma conta do espaço enquanto ator se posiciona novamente
no centro do espaço cênico e se joga de joelhos ao chão, enquanto foco de luz, em penumbra,
concentra-se no rosto do ator e outros focos de luz âmbar, de chão, iluminam o grande
tecido. Ator fala texto).
HOMEM DO BARRANCO
Agora, me deitarei no pó; e, se me buscas, já não serei!
Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?
Sobre que, estão fundadas as suas bases, ou quem lhe assentou a pedra angular, quando eu lhe
tracei limites e lhe pus ferrolhos e portas?
A terra se modela como o barro debaixo do selo.
Tens idéia nítida da largura da terra? Tens idéia nítida da largura da terra?
Sua força está nos seus lombos, e o seu poder, nos músculos do seu ventre. Os seus ossos são
como tubos de bronze. O seu arcabouço como barras de ferro. Ele é obra prima dos feitos de
Deus.
Onde está o caminho, para onde se difunde a luz e espalha o vento oriental sobre a terra?
(Neste momento, enquanto ator faz movimentação com o tecido, aparece som de vento que
entra suave e irá aumentando. Em seguida, surge som de trovão, numa sequência harmônica.
Ao diminuir a música, ator fala texto).
HOMEM DO BARRANCO Quem abriu regos para o aguaceiro, ou caminho para os relâmpagos dos trovões, para que
faça chover sobre a terra, onde não há ninguém, e no ermo em que não há gente, para
dessedentar a terra deserta e assolada e para fazer crescer os renovos da erva?
Quem mandou cortar os troncos, onde eu me ancorava?
Quem mandou cortar os troncos, onde eu me ancorava?
(Neste momento, deve se ouvir sons dos primeiros pingos d’água caindo sobre o tecido)
De que ventre procede à água?
Acaso a chuva tem pai?
Acaso a chuva tem pai?
94
(Antes do final desse texto, inicia-se efeitos cênicos de pingos de chuva, vão se avolumando
até ficar bem forte. Este deverá também, sem agregado a efeitos sonoros de chuva leve. Ator
vai se levantando lentamente, abrindo os braços aos pingos de chuva. Já de pé, um pouco
incisivo, volta ao texto).
HOMEM DO BARRANCO
Cessa, pois, e deixa-me. (Pausa rápida. (Nesse momento, os efeitos cenográficos de pingos de
chuva e a música devem ser cortados bruscamente).
Para que por um pouco e tome alento, antes que eu vá para o lugar de onde não voltarei.
O homem nasce como a flor e murcha; foge como a sombra, e não permanece.
Quem da imundície poderá tirar cousa pura, visto que os seus dias estão contados?
Como as águas do lago se evaporam e o rio se esgota e seca, assim o homem se deita e não se
levanta.
Tal como a nuvem que se desfaz e passa, aquele que desce à sepultura, jamais tornará a subir.
(Neste momento, ator vira rosto lentamente para a diagonal direita, dirigindo-se a alguém da
platéia e continua texto)
Vós, sois de ontem, e nada sabes!
Porquanto nossos dias sobre a terra são como a sombra e a tua confiança é teia de aranha.
Encostar-se-á à tua casa, e ela não se manterá. Agarrar-se-á a ela, e ela não ficará em pé.
A terra está entregue nas mãos dos perversos. São todos mortais!
(Volta som tibetano a toda altura que será bruscamente cortado ao final da frase,
interrogada pelo ator, para dar aspecto grotesco, que faz uma volta completa no espaço,
contorcendo-se com o tecido, arrastando o tecido para ficar totalmente de frente para a
mesma pessoas da platéia e interroga).
HOMEM DO BARRANCO
Acaso sou da tua carne? (Ator deve falar esta frase, com um certo volume de saliva, para ao
final, limpar a boca, esfregando-a com energia com as costas da mão direita, passando a
idéia de “nojo”. Pausa longa na música que vai suavemente voltando, enquanto ator volta-se
à ficar de frente para a mesma pessoa da cena anterior, desenrolando todo o tecido do corpo
e num tom mais ameno, com voz calma, explorando a respiração, volta ao texto).
HOMEM DO BARRANCO
Escuta-me!
Mostrar-to-ei. E o que tenho visto, te contarei, que ouviram de seus pais e não ocultaram.
Não sou remédio, sou apenas um curandeiro do meu tempo. Na verdade, as minhas forças
estão exaustas e por isso dormirei para sempre no passado!
(Neste momento, ator “convida” a pessoa da platéia com quem “contracena” para entrar no
centro do espaço e tenta colocar a pessoa sentada, como que para ouvir uma história)
HOMEN DO BARRANCO
Olha menino,
Quando o rio expurgar os seus insumos e resíduos de sangue, não terás mais nada para se
apoiar.
Nesse tempo, o arrimo das águas já terá ido embora, há muito tempo.....
Já terá feito a sua viagem para onde moram os esquecidos que assolaram a terra já deserta.
Já terá ido para onde moram aqueles que beberam toda a água do rio, mesmo sem ter sede.
95
Já terá ido para onde estão todos aqueles que tiraram os peixes do rio e agora não encontram
nem mesmo, os sarãs para se alimentar.
Nesse tempo, menino, o arrimo das águas já terá sido destruído.
Se o rio morre, o arrimo das águas dormirá para sempre no passado, pois não terá mais o
futuro.
Depois que o homem branco assolou toda a margem do rio, os homens vermelhos nunca mais
foram os mesmos. Já morreram quase todos.
Ele trouxe o espírito da doença para se banhar das águas escuras, contaminando com febre, as
raízes dos sarãs.
Ele veio com o espírito da ganância e colocou as nossas árvores na linha do horizonte, para
que elas durmam eternamente como cinzas depois da combustão.
Olha menino, no passado, já fomos muitos à beira do rio de águas claras.
Hoje, somos só.... a margem de um leito de águas escuras, onde não se vê mais os veios do
barro pra curar nossos dias.
Não sei por quanto tempo ainda vamos agüentar a resistência do barro.
Sabe menino,
Quando cortaram a artéria do rio, as águas ainda eram claras.
Depois, todas as águas ficaram escuras para esconder a ganância dos homens.
Depois, a ira do rio se espalhou por toda a terra, como sangue, e o seu cheiro será a morte.
Aqui menino, um dia, um rebojo vermelho cantou triste, foi quando o maior tamarineiro do
arrimo foi levado pelas águas escuras.
Aqui já teve tempo de águas claras e de águas escuras. Agora, as águas só têm um tempo e um
destino. Agora só existe o tempo das águas escuras e o seu destino é a moradia debaixo do
arrimo. De lá elas não podem mais falar. As palavras faltaram na minha boca.
Agora menino, sou água que não se bebe.
Portanto, vá! Vá para o lugar de onde nunca havia de ter saído.
E quando lá chegar, molhe com muita água clara, a boca do seu rio.
(Ao final do texto, entra música tibetana, forte. Neste momento, ator levanta, dirigindo a
pessoa da platéia para voltar ao seu lugar. Ator volta ao centro do espaço cênico e ao
reduzir a música, fala texto).
HOMEM DO BARRANCO
Tu homem, pusestes doenças no meu corpo e maledicências nas minhas palavras.
Dentre em pouco tempo, eu seguirei o caminho de onde não tornarei.
A minha vida é um sopro!
O pó é um sopro!
A vida é um sopro!
Deixa-me!
Deixa-me, pois!
Deixa-me!
(Neste momento, entra música com tonalidade fúnebre. Ator vira-se de costas e ao diminuir a
música, fala texto com nomes e palavras de pessoas da Comunidade de São Gonçalo Beira
Rio, que já faleceram.Oora olhando para a direita, ora para a esquerda).
HOMEM DO BARRANCO
Joana Maria da Silva,
Barro virgem de veio limpo;
Tio Candi,
96
O barro está na canoa;
Clínio Moura,
O barro virou santo;
Biuína Moura,
Barro de moringa e de pratos;
Joana.....
Barro socado em pilão;
Ver os demais nomes de ceramistas falecidos.
(Após esse texto, volta música tibetana e ator vira-se de frente para a platéia e caminha até
ao centro do espaço cênico, de onde encerra o texto após a redução da música)
HOMEM DO BARRANCO: Deixa-me.
Deixa-me, pois!
Nasci Deus, homem, escravo, livre, cujas mãos esculpem do barro, o rosto de Deus, sob o
mesmo sol novo, continuamente, resposta da pele rubra dos figos ao caírem no chão.
Fere-me com ferimento sobre ferimento.
Onde estão os juízes que me condenaram?
Onde estão os juízes que me condenaram?
Estou farto da minha vida.
Não quero viver para sempre, mesmo sabendo que não vou morrer nunca!
(Este trecho deverá ser dito numa angústia crescente, até ficar agressivo. O Homem do
Barranco tombará ao pronunciar a última palavra e uma forte luz tomará conta do espaço,
bem como o canto tibetano, que juntos, vão diminuindo).
BLACK - OUT
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa nova proposta de texto dramático se apresenta com o novo título de Arrimo das
Águas, uma experiência pensada no teatro contemporâneo cuja reescritura nasceu da
necessidade de se repensar as mudanças ocorridas no bairro de São Gonçalo Beira Rio em
Cuiabá, Mato Grosso, que tem afetado os seus aspectos socioculturais, políticos, econômicos
e ambientais, ocorridos nas duas últimas décadas.
O período de duas décadas, compreendido entre 1993 e 2013, separa o primeiro
momento da convivência e levantamento de dados, e o segundo momento. Como o atual
texto, até o momento da defesa desta dissertação, não foi encenado, para que esta ação pública
possa também, ser elemento de análise quanto a sua força de expressão dramática e estética na
revelação dos anseios do povoado ribeirinho, fica uma lacuna a ser preenchida a posteriori.
Esse texto, ao ser exposto à sociedade, com suas novas configurações teatrais, poderá
corroborar na revelação de anseios já tratados, mas alimentando e incitando a construção de
novas reflexões, sob outras e atuais perspectivas.
Consideramos então, o texto atual Arrimo das Águas, como a poética dessa
dissertação, cujo processo de reescritura, apresenta uma nova tessitura dramática e estética
para a sua proposta de encenação, referendadas pelo teatro contemporâneo. Aqui,
concentraremos esforços sobre o foco principal a que se destinou/destina este tratado
acadêmico, sem que seja necessário praticar, nestas considerações finais, um “da capo”; nem
mesmo uma idéia de “ritornelo”, para que o barro desta “peça de cerâmica” não seja
excessivamente manufaturado sobre o mesmo arrimo, ou crie temas secundários como um
“rondó”.
Tratamos então de acercarmos do texto atual, Arrimo das Águas, que nessa nova
proposta encontrou na personagem Homem do Barranco seu único propagador das
dissidências praticadas com o barro, cerâmica, barranco, rio e vegetação, na região do bairro
de São Gonçalo Beira Rio.
A escolha de ausentar do texto, as três personagens femininas de o Homem do
Barranco, dá-se pela necessidade de fortalecer a personagem masculina, considerando ser a
performance, estética da atual montagem. Como único mensageiro dos “apóstolos do rio
Cuiabá” – o povo de São Gonçalo – a personagem que tinha a figura de principal no texto
anterior, passa agora, a ter a figura de único personagem. Nesse caso, e também, possibilitar
um diálogo mais direto com o público e dominar com maior vigor e dramaticidade, a
utilização do espaço cênico, cuja proposta poderá se valer da exploração de espaços não
98
convencionais: salas de aulas, pátios de escolas, barrancos de rios, centros comunitários,
praças públicas, ruas, adros de igrejas e paróquias, dentre outros. Essas possibilidades
espaciais, também contribuirão para colocar no “corpo” do único personagem Homem do
Barranco, as vozes dos diversos personagens vivos do bairro: pescadores, ceramistas,
artesãos, violeiros, festeiros, lavadeiras, benzedeiras, remadores, que denunciarão os seus
anseios comunitários. De igual forma, a única personagem Homem do Barranco também dará
voz ao povo ribeirinho, colocando-os não só, na qualidade de arrimos do barranco, da
memória e da pertença, mas reforçando-os como apóstolos do rio Cuiabá.
Revendo ainda sobre a utilização do espaço aberto e não convencional como espaço
cênico, este tem sentido e característica de espaço de “batalhas e guerrilhas dos tempos
medievais”, onde a cena poderá se iniciar com três ou quatro pessoas e ao final, poderá
dialogar com inúmeros transeuntes, questionadores e interlocutores dos desabafos sociais
contemporâneos. Também, contrariando o uso do espaço físico, na dimensão do
convencional, a personagem poderá, dada a qualidade do espaço físico a ser ocupado,
“carregar” e “arrastar” para um caminho vicinal, cujo percurso e trajetória da cena, poderá ser
a performance de uma campanha ambiental, desencadeada sobre o próprio barranco.
O Homem do Barranco é uma personagem que se permite sair da cena de um poema
dramático, que marcou presença em espaços cênicos convencionais, para ser o Arrimo das
Águas de si mesmo, numa performance contemporânea, sustentando, amparando, apoiando
como escora ou estaca, a força e o desejo de continuar deflagrando luta e defesa pelas causas
sócio-ambientais.
Do texto do poema dramático Homem do Barranco, a personagem de mesmo nome
ainda traz para o texto atual Arrimo das Águas, parte da plasticidade cenográfica, onde
explorará o tecido de algodão cru, em vasto volume e dimensão, conotando com a sua textura,
ora o rio, o barranco, o barro, o pó da terra. Nessa utilização de um mesmo elemento, o
diferencial se encontra no movimento a ser explorado pelo ator, dando ao tecido, ocupação
tanto cenográfica quanto de figurino, cuja dimensão, exigirá exercício físico e teatral,
postulando sentido de drama, ao que proferem os moradores ribeirinhos, diante de tantos anos
de luta pelas suas causas sociais.
A música que trilhou com sonoridade tibetana o barranco ermo do poema dramático
Homem do Barranco, também poderá estar presente em Arrimo das Águas, extraindo, ao
mesmo tempo, linearidade e circularidade, questionando o tempo-pausa-respiração,
empregado na nova proposta de encenação e ao mesmo modo, dialogar com o público a partir
do seu subtexto. Mas, entendemos também e ainda que, a proposta da encenação atual, dada a
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sua estética, espaço físico a ser ocupado, estrutura geográfica espacial e movimentação sonora
externa, esta música poderá não se fazer presente, transferindo para a ambientação e público,
a idealização do seu próprio universo sonoro ou musical.
O texto dramático, também teve significante parte migrada para o Arrimo das Águas,
considerando que em Homem do Barranco, este dialogava com significativo contexto
dramático sobre as causas ambientais, ao que ainda presenciamos no tempo presente no
ambiente desolado do bairro de São Gonçalo Beira Rio. Com a necessidade da inserção de
outros e novos textos para dar sentido à atual estética da proposta teatral, além de novas
visitas aos livros bíblicos do Gênesis e de Jó, parte do texto foi construído, com inspiração
nos causos e lendas relatados por alguns membros da Comunidade, ainda da época da
primeira montagem.
Ao sabor do teatro contemporâneo, temos a contribuição de autores que dialogam
com o universo do teatro pós-dramático e com a performance, construindo duplo sentido de
investigação pragmática às causas sociais contemporâneas, no que se referem às investigações
teatrais como transformações do pensamento do homem. Nesse sentido, Fernandes (2006);
Lehmann (2007) e Birkenhauer (2012) oferecem contribuições para com este trabalho. Essa
literatura, também dialoga com as interrogações presentes no bairro de São Gonçalo Beira Rio
na construção de certo tangenciamento com a sua realidade social, onde o que ali é deflagrado
pode ser elemento tanto de investigação teatral, quanto de problematização da vida dos
moradores do bairro.
Importante entender que, veremos em Arrimo das Águas uma proposta de encenação
mais condensada textualmente, mas que se hibrida às intempéries do possível material e
imaterial enquanto cena contemporânea. Constrói elementos pulsantes para um teatro mais
atual; que possibilite mais processo que resultados; que investigue e questione as amarras de
uma sociedade contemporânea marginalizada sobre os espectros da vida cotidiana, na busca
de um mundo financeiro e econômico imaginário, irreal e ilusório. Contudo, Arrimo das
Águas não realiza nenhum postulado de resultados a par das soluções imediatas para o amparo
dos desabrigados ambientais, sociais, culturais, econômicos, etc. Busca sim, uma incessante
denúncia-anúncio de que ali, na margem do rio, residem profecias e bendizeres imersos no
barro-barranco e nas águas escuras do rio, construindo sinergia com aqueles que ali ainda se
curvam diante da ausência de vozes políticas e materiais.
Nesse postulado de profecias e bendizeres ao intuito de “chamar” força e energia
para o interior de seus problemas, a Comunidade profetiza ações de construção política e
100
social, diante dos requerimentos que assinam cotidianamente com tintas do próprio tauá,
como que protocolizando suas reivindicações pela luta contra a desolação ambiental.
Para isso, sem querer pontuar aqui alguma subestimação, será necessário um maior
investimento reflexivo, pelos “de dentro”, sobre a maneira como vivem e de que vivem esse
povoado ribeirinho, no tempo presente. Ou será preciso ainda, que eles presenciem a
ampliação perigosa da especulação imobiliária, comercial, turística e econômica, praticadas
pelos “de fora”, para que haja talvez, um despertar para a própria vida da vida que levam e
querem os “de dentro”?
Mas refletimos que, sem que haja uma provocação autoral sobre as mudanças
internas no bairro, como capacidade moral, política e de pertencimento sobre a atual maneira
e estado de subsistência de vida no bairro, difícil será, para os “de dentro” ter uma percepção
político-social sobre o volume de mudanças provocadas pela invasão dos “de fora”, em razão
do imediatismo dos “lucros” sociais e econômicos que o momento apresenta a eles, como
“benefícios”. Acaso essa percepção venha a tomar lugar, ainda no tempo presente, perigoso as
gerações dos jovens já terem construído uma outra maneira de despertar sobre a vida da vida
que levam em outro espaço-tempo-lugar, construindo novas perspectivas de pertencimento e
memória sobre o viver no bairro, mesmo estando ou vivendo fora ou distante dele.
Após duas décadas de separação da primeira montagem e encenação do poema
dramático Homem do Barranco, para a proposta do atual texto Arrimo das Águas, as
mudanças ocorridas no bairro de São Gonçalo Beira Rio coexistem em volume imensurável
por toda a dimensão da região ribeirinha, sobre diversos aspectos: sociais, culturais,
religiosos, políticos, econômicos, urbanos, etc.
Se considerarmos a distância temporal praticada entre a realização da pesquisa e a
produção dos dois textos dramáticos como exemplo e medida sobre o tempo que poderá
prover as mudanças reflexivas no seio da Comunidade, teremos dificuldade de localizarmos
visualmente o bairro, naturalmente inserido na dimensão do fluxo físico contingenciado da
urbanidade da cidade, dado a hibridação física territorial do próprio bairro, da região e da
cidade.
O tempo na dimensão da vida social passa muito rápido e os ritmos das vidas de um
bairro voam na direção da globalização enquanto uma realidade social. Portanto, dificulta-se
encontrar um elemento mensurador no amparo das transformações sociais. Dentre mais duas
décadas, possivelmente, nem os textos dramáticos Homem do Barranco e o Arrimo das
Águas, terão voz ativa e reflexiva sobre essas transformações, que o momento possa requerer.
Se não for o acaso e o devir do agora, desse tempo presente, na reflexão sobre a híbrida
101
contextualização social, cultural, política, urbana e ambiental pela qual passa o bairro, tudo
estará “perdido”: barro, barranco, cerâmica, rio, água, peixe, vegetação. Assim como a
personagem Homem do Barranco não terá mais o poder dramático de denunciar essas
transformações nas próximas duas décadas, o Arrimo das Águas também não terá mais forças
físicas para sustentá-las e vice-versa.
Ainda será necessário rever os mapas, croquis, apontamentos e guardados da
primeira pesquisa, de há vinte anos passados, para talvez, compreender o sentido e caminho
pelo qual se dispersam com o sentimento de pertencimento que o povoado ribeirinho ainda
possui, pelas coisas dali. Se o sentimento de pertença se configura abalado enquanto um
estado de consciência cultural, a memória pode não mais fazer parte de um contexto de
preservação imagética, material ou imaterial. A pertença também se instala e se revela no
patrimônio imaterial; a pertença é também outro arrimo na dimensão do imaterial em
eminente diálogo na expectativa de um bem material, que sustenta, mesmo que ludicamente e
miticamente, as expectativas sociais da comunidade e do bairro.
Se considerarmos que Arrimo das Águas possa vir a ser mais uma porção de argila a
ser moldado ao curso do tempo em que preparam o barro, manufaturam a cerâmica, pulem as
peças, queimam, desenfornam e esperam cotidianamente os visitantes para a sua aquisição,
talvez seja melhor inverter a ordem das palavras do nome/título da nova encenação. Se o
barranco arrimo, no curso do assolamento ambiental, não mais estará lá como um bem
material, nada mais sustentará. Da mesma forma, as águas terão o destino dos bens imateriais,
permanecerão guardadas nas lembranças e memórias daqueles que ainda conseguiram
conhecê-las.
102
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGEM
Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO
MEMORIAL DESCRITIVO
Carlos Roberto Ferreira
Matrícula: 35258 / UFMT
http://lattes.cnpq.br/1142266322603417 [email protected]
CARLOS ROBERTO FERREIRA é brasileiro, solteiro, natural da cidade de Cuiabá
– MT, professor de arte da rede pública de ensino de Mato Grosso, Ator, Diretor Teatral,
Gestor Cultural, portador do RG nº 089.857-SSP/MT e CPF nº 204.959.271-04, residente e
domiciliado na Rua Itapuã, s/n., Quadra 15, Bloco A-6, Aptº. 201, Jardim Aeroporto, na
cidade de Várzea Grande – MT. No decorrer de aproximadamente 30 anos vem
desenvolvendo projetos na área da cultura, da arte e da arte/educação no Estado de Mato
Grosso. É graduado em Educação Musical pelo Departamento de Artes da UFMT, pós-
graduado em Dança pela Faculdade de Educação Física da UFMT e pós-graduado em Gestão
Cultural pela UNIC / Cuiabá – MT. No semestre de 2011/2 fez a disciplina: Culturas e
Linguagens do Corpo como aluno especial do Programa de Pós-graduação em Estudos de
Cultura Contemporânea da UFMT. Em novembro de 2011, se inscreve para a seleção de
Mestrado do Programa acima citado e é aprovado para ingressar na turma de 2012/1. No ano
de 2012, primeiro e segundo semestres, cumpriu com as disciplinas de: ESTUDOS DE
CULTURA I: CONCEPÇÕES E ABORDAGENS; TÓPICOS ESPECIAIS EM
COMUNICAÇÃO E MEDIAÇÕES CULTURAIS I; TÓPICOS ESPECIAIS EM POÉTICAS
CONTEMPORÂNEAS I; TÓPICOS ESPECIAIS EM COMUNICAÇÃO E MEDIAÇÕES
CULTURAIS II; TOPICOS ESPECIAIS EM POETICAS CONTEMPORÂNEAS I;
DESCRIÇÕES E DESIGNAÇÕES DO TEMPO PRESENTE; TÓPICOS ESPECIAIS EM
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS III; TÓPICOS ESPECIAIS EM COMUNICAÇÃO E
MEDIAÇÕES CULTURAIS IV; TÓPICOS ESPECIAIS EM EPISTEMES
CONTEMPORÂNEAS III, realizando um total de 10 (dez) disciplinas, perfazendo um total
de 32 créditos. Ainda nos dois semestres de 2012, participou dos Grupos de Pesquisa: ARTES
DA CENA e do Grupo: ARTES HÍBRIDAS: Intersecções, contaminações e
transversalidades. No ano de 2013, se encontra matriculado em “Matrícula de
Acompanhamento” nos dois semestres do ano e participa dos Grupos de Estudos de
Orientação e de Pesquisas acima citados.
Em novembro de 2012, participa como Jurado convidado, representando o Estado de
Mato Grosso na Seleção de Projetos brasileiros do Prêmio de Teatro Myriam Muniz, pela
FUNARTE – Fundação Nacional de Arte do Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro. Em 16
e 17 de abril de 2013, participa como aluno de Pós-graduação, do Seminário de Pesquisa
ECCO/IL/UFMT e de 15 a 19 de maio de 2013, participa como convidado do IV Seminário
de Dramaturgia Amazônida na UFPA, realizando a Palestra: Homem do Barranco: Mito e
Teatralidade na Comunidade Ribeirinha. Em agosto de 2013, na qualidade de ator, em
parceria com o dramaturgo e ator Joilson Francisco – Mestrando do Programa ECCO –
participo da apresentação programada pelo seu orientador, Professor: Dr. Yuji Gushiken, com
a Performance da peça “As Fias de Mamãe”, como parte do conteúdo da aula de Estágio
Docência do mestrando citado. Participa do II CONINTER – Congresso Internacional
105
Interdisciplinar em Sociais e Humanidades, realizado em Belo Horizonte – MG, no período de
08 a 11 de outubro de 2013, na UFMG, com o Artigo: HOMEM DO BARRANCO:
Dramaturgia e transformações no universo urbano da cidade. Realiza, a convite da
FUNARTE, no período de 09 a 25 de setembro, na cidade de Cuiabá – MT, a Oficina:
TEATRO NA SALA DE AULA: Uma possibilidade em Arte/educação para o Programa de
Capacitação em Artes Cênicas da FUNARTE - Fundação Nacional de Artes do Ministério da
Cultura. Participa com o trabalho: HOMEM DO BARRANCO: Pesquisa e dramaturgia na
cena ribeirinha na VII Reunião Científica da ABRACE 2013, na UFMG, na cidade de Belo
Horizonte – MG, no período de 27 a 29 de outubro de 2013. Participei da IV Semana
Acadêmica de Pós-graduação da UFMT com o Banner da Dissertação em questão: HOMEM
DO BARRANCO: Pesquisa e dramaturgia na cena ribeirinha, no período de 04 a 08/11/2013.
Atualmente desenvolve trabalho com Gestor Cultural para o Instituto Mato-grossense de
Desenvolvimento Humano – IMTDH, onde atua como Administrador do Cine Teatro Cuiabá,
na cidade de Cuiabá - MT.
Várzea Grande-MT, novembro de 2013.