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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU MESTRADO EM LINGUÍSTICA ELINALDO SOARES DE SOUSA “RELAÇÕES DIALÓGICAS E A CONSTITUIÇÃO DE SENTIDO NOS RECORTES DO PRIMEIRO CAPÍTULO, DA PRIMEIRA PARTE, DA OBRA: A MISTERIOSA CHAMA DA RAINHA LOANA DE UMBERTO ECO” SÃO PAULO - SP AGOSTO - 2014

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU

MESTRADO EM LINGUÍSTICA ELINALDO SOARES DE SOUSA

“RELAÇÕES DIALÓGICAS E A CONSTITUIÇÃO DE SENTIDO NOS RECORTES DO PRIMEIRO CAPÍTULO, DA PRIMEIRA PARTE, DA OBRA:

A MISTERIOSA CHAMA DA RAINHA LOANA DE UMBERTO ECO”

SÃO PAULO - SP AGOSTO - 2014

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU MESTRADO EM LINGUÍSTICA

“RELAÇÕES DIALÓGICAS E A CONSTITUIÇÃO DE SENTIDO NOS RECORTES DO PRIMEIRO CAPÍTULO, DA PRIMEIRA PARTE, DA OBRA:

A MISTERIOSA CHAMA DA RAINHA LOANA DE UMBERTO ECO”

ELINALDO SOARES DE SOUSA

Orientadora: Profa. Dra. Sonia Sueli BERTI-SANTOS.

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística.

SÃO PAULO - SP AGOSTO–2014

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

“RELAÇÕES DIALÓGICAS E A CONSTITUIÇÃO DE SENTIDO NOS RECORTES DO PRIMEIRO CAPÍTULO, DA PRIMEIRA PARTE, DA OBRA:

A MISTERIOSA CHAMA DA RAINHA LOANA DE UMBERTO ECO”

ELINALDO SOARES DE SOUSA

Dissertação de mestrado defendida e aprovada

Pela Banca Examinadora em 13/08/2014

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Orientadora: Profa. Dra. Sonia Sueli BERTI-SANTOS.

Universidade Cruzeiro do Sul Presidente.

___________________________________________________

Examinadora interna: Profa. Dra. Beatriz Maria Eckert-Hoff

Universidade Cruzeiro do Sul

___________________________________________________

Examinadora Externa: Profa. Dra. Miriam Bauab Puzzo. Universidade de Taubaté (UNITAU)

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DEDICATÓRIA

À minha mãe que, em todos os momentos difíceis da minha vida, tem intercedido junto a DEUS pelo meu sucesso e felicidade.

À minha família, Maria Inês, Brenda Luzia e Brenno Jair, por todo amor, carinho, compreensão e incentivo, pelos momentos de angústias e preocupações causados por minhas ausências durante o processo de formação e realização deste trabalho, dedico-lhes essa conquista com gratidão e amor.

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AGRADECIMENTOS

Pela oportunidade de aprendizado, o crescimento intelectual, a convivência

com os colegas, a aquisição de novos métodos de estudo, os momentos prazerosos

e extrovertidos dentro de uma van, que com certeza serão únicos. Por essas

conquistas e realizações eu devo meus agradecimentos:

A Universidade Cruzeiro do Sul, ao Programa de Pós-Graduação Stricto-

Sensu - Mestrado em Linguística do Campus Liberdade, à coordenação e

professores que conduziram com sabedoria as atividades acadêmicas.

Aos colegas de orientação, Juliana, Liliam e Tatiana que comigo dividiram

alegrias, frustrações, aprendizados e conquistas nesses últimos dois anos.

Aos colegas: Paulo, Karina, Rosi, Larissa, Marta, Gabriela, Rita, Fábio,

Sandra Medeiros, Sandra Oliveira, Elisângela, Rosa Maria, Cristiane, Tatiana, Liliam

e Juliana, que nos fins de semana, reuniram em estudo para cumprimento das

disciplinas e compartilhamento de ideias, o meu muito obrigado.

A colega Cristiane Bachiega, em especial, eu dedico um pensamento de

gratidão e de afeto, pela prontidão e competência na coordenação do grupo e

organização dos transportes para São Paulo.

Um agradecimento mais do que especial vai para BERTI-SANTOS, que com

muita competência e disposição, orientou e conduziu esse trabalho.

Agradeço, com todo o meu amor, àqueles que contribuíram para me fazer o

que sou: meu pai (In memoriam) e minha mãe. Com vocês aprendi a encarar os

desafios que a vida nos apresenta e a vencê-los.

Por fim, agradeço a minha família: Maria Inês, Brenda Luzia e Brenno Jair,

são vocês que me fortalecem com seu amor. À vocês agradeço por estarem sempre

comigo.

5

“A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade

toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra

não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada

que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais

puro e sensível de relação social”. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,

2004, p. 36).

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RESUMO

Este estudo tem como objetivo investigar, nos recortes do primeiro capítulo da primeira parte de A Misteriosa Chama da Rainha Loana do escritor italiano Umberto Eco, as relações dialógicas existentes entre textos literários e entre a ciência médica, buscando estabelecer os sentidos emprestados ao enunciado. Para isso é necessário estabelecer os sentidos no texto, advindos das relações dialógicas travadas no capítulo analisado; relacionar a Escala de Coma de Glasgow com a forma como o médico Gratarolo examina Yambo e sua importância na constituição de sentido; analisar a possível intencionalidade do autor ao selecionar os signos linguístico-ideológicos em uma perspectiva de acabamento do texto. Nas análises, parte-se do conceito de dialogismo em Bakhtin (2003, p. 243), “o dialogismo não equivale ao diálogo no sentido de interação face a face, como também não existe dialogismo entre interlocutores, esse é sempre entre discursos: o do locutor e do interlocutor”. Objetiva-se, a partir dos estudos de Bakhtin (1998, p. 106), a compreensão do plurilinguismo, no qual todas as palavras e formas que povoam a linguagem “são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-ideológica do autor no seio dos diferentes discursos de sua época”. Palavras-chave: Relações dialógicas, dialogismo, plurilinguismo e constituição de

sentido.

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ABSTRACT

This study aims to investigate the cutouts of the first chapter of the first part in The Mysterious Flame of Queen Loana by the Italian writer Umberto Eco, the existing dialogical relationships between literary texts and medical science, seeking to establish senses applied to the enunciation. For this it is necessary to establish the meanings in the text that comes from the dialogic relationships set in the analyzed section; to relate the Glasgow Coma Scale to how the doctor Gratarolo examines Yambo and its importance in the constitution of meaning; to analyze the possible intentions of the author, by selecting the linguistic and ideological signs at the prospect of refining the text. The analysis starts from the concept of dialogism in Bakhtin (2003, p. 243), "Dialogism is not equivalent to dialogue in the sense of a face to face interaction, as there is no dialogism between interlocutors, but always among discourses: the speaker and interlocutor ". With Bakhtin’s studies (1998, p. 106), the goal is to understand the plurilinguistics, in which all words and forms that populate the language "are social and historical voices that give you certain specific meanings and are organized in the romance in an harmonious stylistic system, expressing the author's social and ideological position within the various discourses of his time." Keywords: Dialogic relationships, dialogism, plurilinguistics and constitution of meaning.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................10

CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E SUA RELAÇÃO COM O ROMANCE DE ECO ...................................................................................................................13

1.1 Conceito de linguagem na perspectiva de Bakhtin e do Círculo: dialogismo, unidade da língua e unidade discursiva. ................................................................ 14

1.1.1 Dialogismo ............................................................................................. 15

1.1.2 Unidade da Língua e Unidade Discursiva .............................................. 17

1.2 Relações dialógicas, ideologia, signo ideológico.......................................... 19

1.2.1 Relações dialógicas ............................................................................... 21

1.2.2 Ideologia ................................................................................................ 24

1.2.3 Signo ideológico .................................................................................... 27

1.3 Tom valorativo: o Ético e o Estético na concepção de Bakhtin .................... 31

CAPÍTULO 2 - METODOLOGIA ..............................................................................................37

2.1 Como o estudo vai ser desenvolvido ............................................................... 37

2.2 Os tópicos selecionados para análise e sua relação com a teoria ................... 39

2.3 Como o romance se presta a essa investigação, resumo da obra, informações sobre o autor. .................................................................................... 42

2.3.1 Resumo da obra .................................................................................... 45

2.3.2 Informações sobre o autor ..................................................................... 49

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS TRECHOS SELECIONADOS .........................................52

3.1 Relações dialógicas com trechos literários ...................................................... 53

3.1.1 Trecho 01............................................................................................... 53

3.1.2 Trecho 02............................................................................................... 55

3.1.3 Trecho 03............................................................................................... 55

3.1.4 Trecho 04............................................................................................... 56

3.1.5 Trecho 05............................................................................................... 57

3.1.6 Trecho 06............................................................................................... 59

3.1.7 Trecho 07............................................................................................... 60

3.1.8 Trecho 08............................................................................................... 61

9

3.1.9 Trecho 09............................................................................................... 62

3.1.10 Trecho 10............................................................................................... 63

3.1.11 Trecho 11............................................................................................... 64

3.1.12 Trecho 12 ...............................................................................................65

3.2 Relações dialógicas com o contexto social .................................................. 67

3.3 Relações dialógicas com a ciência médica: Escala de Coma de Glasgow ................................................................................................................69

3.3.1 Trecho 01............................................................................................... 71

3.3.2 Trecho 02............................................................................................... 72

3.3.3 Trecho 03............................................................................................... 73

3.3.4 Trecho 04............................................................................................... 73

3.3.5 Trecho 05............................................................................................... 74

3.3.6 Trecho 06............................................................................................... 77

3.3.7 Trecho 07............................................................................................... 80

3.3.8 Resumo do Capítulo .............................................................................. 83

CONCLUSÃO ...............................................................................................................................84

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................86

ANEXOS ........................................................................................................................................90

ANEXO 1 - Escala de coma de glasgow ................................................................ 91

Anexo 2- Primeiro capítulo, da primeira parte, do romance ilustrado A misteriosa chama da Rainha Loana de Umberto Eco. ............................................................ 95

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INTRODUÇÃO

No mundo contemporâneo a relação de proximidade entre dois ou mais

discursos entre culturas aumenta gradativamente. Essa proximidade evidencia as

relações dialógicas entre os discursos, em que emerge a constituição de sentido de

forma textual, literária e cultural. A análise dessas relações dialógicas está repleta

de dificuldades provenientes dos contextos históricos, sociais e culturais a que elas

pertencem. Assim, surge a necessidade de compreensão da teoria de Bakhtin e o

Círculo, no que diz respeito a: dialogismo, unidade da língua e unidade discursiva,

relações dialógicas, ideologia, signo ideológico, tom valorativo, ato ético e ato

estético. Para Bakhtin (2003, p. 379), o dialogismo e a interlocução acabam por

inscrever-se em um dizer a presença dessa palavra que vem de outro lugar.

A análise das relações dialógicas em um texto, seja ele literário ou não,

sempre foi motivo de pesquisas nos textos acadêmicos. Vários alunos ingressos

em cursos de pós-graduação e mestrado se empenharam na difícil tarefa de

desvendar a constituição de sentido que consiste em um texto e outro,

diferentemente daquele em que foi inicialmente escrito. Em função disto, toda

análise das relações dialógicas de um texto irá apresentar sempre algo mais ou

menos do chamado texto de partida, e o resultado não dependerá apenas da

criatividade e da habilidade do analista, seja quando renuncia a alguma palavra ou

encontra outra equivalente.

Há a preocupação de muitos analistas, principalmente no texto literário, de

refletir sobre o contexto do corpus de pesquisa e daí sugerir novas constituições de

sentido, considerando que alguns contextos sejam polêmicos e de difícil aceitação

no meio acadêmico; para isto, um consenso ainda não foi satisfatoriamente

alcançado. No entanto, diversas teorias e abordagens são aceitas acerca do

assunto. Como exemplo, podemos citar Bakhtin (2003, p. 379), o imbricamento de

vários discursos é condição da linguagem, já que as próprias palavras não são

dotadas de neutralidade, de um sentido que lhes seja dado a priori. Toda palavra

possui uma vida, uma história, um caminho discursivo que dará os contornos de

seu sentido, ou melhor, dos efeitos de sentido a produzir.

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Em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, Umberto Eco apresenta um

panorama da Itália do período fascista e da guerra, em que o protagonista faz

muitas referências à literatura, à história, à filosofia, à religião e à política,

constituindo um marco na literatura Italiana. A obra é uma forma disfarçada de

autobiografia do autor, que utiliza elementos da cultura popular para recuperar

memórias de sua infância. Eco é mundialmente conhecido por seus escritos sobre

semiótica, estética medieval, comunicação de massa, linguística e filosofia, é,

indiscutivelmente, um homem dos livros. A quase totalidade de seus escritos

romanescos ou teóricos fala de livros, sobre livros ou sobre bibliotecas. Bibliófilo

inveterado, tem em sua estante 1.200 obras raras. É dessa dialética da reclusão e

da circulação que nasce sua figura.

O presente trabalho deseja, por meio da análise dos trechos escolhidos no

primeiro capítulo da primeira parte em A Misteriosa Chama da Rainha Loana,

estabelecer os sentidos no texto, advindo das relações dialógicas travadas no

capítulo analisado; relacionar a Escala de Coma de Glasgow com a forma como o

médico Gratarolo examina Yambo e sua importância na constituição de sentido;

analisar as relações dialógicas contidas nas citações que permeiam o texto do

capítulo, buscando estabelecer os sentidos emprestados ao enunciado; analisar a

possível intencionalidade do autor, ao selecionar os signos linguístico-ideológicos

utilizados nos trechos em análise, em uma perspectiva de acabamento do texto e

de tom valorativo ético e estético.

No primeiro capítulo, intitulado “Fundamentação teórica e sua relação com o

romance de Eco”, estabelecemos uma relação entre a teoria de Bakhtin e o Círculo

e a obra A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco. Neste capítulo,

caracterizamos dialogismo, unidade da língua e unidade discursiva, relações

dialógicas, ideologia, signo ideológico, tom valorativo, ato ético e ato estético,

conforme Bakhtin (2003) e Bakhtin e Volochinov (2004). As reflexões sobre a obra

analisada foram realizadas a partir da compreensão de texto como enunciados;

compreendemos os dois juntos como uma dualidade de um só elemento concreto

para o estudo da linguagem e suas relações dialógicas. O estudo foi feito em uma

perspectiva em que autor e personagem mantêm relações dialógicas com outros

enunciados, com outros textos de características semelhantes.

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No Segundo capítulo, intitulado “Metodologia”, tratamos da relação dos

trechos selecionados para a análise com a teoria fundamentada no primeiro

capítulo, além de explicitar como o estudo vai ser desenvolvido e contextualizar a

obra analisada e seu respectivo autor. Discorremos sobre a linguagem do romance

A Misteriosa Chama da Rainha Loana e como ela se presta à investigação do

corpus deste estudo, numa dimensão discursiva, interativa, histórica, social e

cultural. Com isso, caracterizamos esse estudo no âmbito da Linguística teórica,

cujas análises centram-se na materialidade linguística dos enunciados de onde

emerge a constituição de sentido e no uso da linguagem pelos interlocutores em

diversos contextos sociais, para os quais direcionamos nossa análise.

No terceiro capítulo, apresentamos o corpus do nosso trabalho e sua análise,

Primeiramente analisamos as relações dialógicas com trechos literários e, na

sequência, as relações dialógicas com o contexto social e, por fim, analisamos as

relações dialógicas com a ciência médica: a Escala de Coma de Glasgow.

Sabemos que cada leitura surge de uma nova interpretação e que o texto de

Umberto Eco, em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, pode suscitar várias

leituras. Fizemos nossa análise a partir da consideração da abordagem

plurilinguística do romance por Bakhtin e o Círculo, objetivando valorizar um

diferente olhar para os estudos literários, linguísticos e filosóficos da linguagem.

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CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E SUA RELAÇÃO COM O ROMANCE DE ECO

Ao conceber o romance de Umberto Eco como romance autobiográfico, como

uma mistura de ficção e realidade, e os trechos selecionados do primeiro capítulo da

primeira parte deste romance e seu texto como enunciados, compreendemos os dois

juntos como um só elemento concreto para o estudo da linguagem e suas relações

dialógicas em A Misteriosa Chama da Rainha Loana. É um estudo feito em uma

perspectiva em que autor e personagem mantêm relações dialógicas com outros

enunciados, com outros textos de características semelhantes. A respeito do texto

concebido como enunciado, explica Bakhtin (2003, p. 309):

Dois elementos que determinam o texto como enunciado: a sua ideia (intenção) e a realização dessa intenção. As inter-relações dinâmicas desses elementos, a luta entre eles, que determina a índole do texto. O problema do segundo sujeito, que reproduz (para esse ou outro fim, inclusive para fins de pesquisa) o texto (do outro) e cria um texto emoldurador (que comenta, avalia, objeta, etc.). A dualidade especial de planos e sujeitos do pensamento das ciências humanas. A textologia como teoria e prática da reprodução científica dos textos literários. O sujeito textológico (o textólogo) e as suas peculiaridades. O texto como enunciado incluído na comunicação discursiva (na cadeia textológica) de dado campo. O texto como mônada original, que reflete todos os textos (no limite) de um dado campo do sentido. A concatenação de todos os sentidos (uma vez que se realizam nos enunciados). (BAKHTIN 2003, p. 309).

Conforme contexto da citação acima, reiteramos a caracterização dos trechos

da obra analisada, na concepção bakhtiniana de texto como enunciado, como

elemento de análise sociodiscursivo. Análise feita a partir do ponto de vista concreto,

vivo e com todos os seus elementos constitutivos. Entendemos que por serem parte

integrante do texto de Eco, esses trechos, fonte de investigação e análise deste

estudo, tornam Umberto Eco o segundo sujeito desses enunciados, e conforme

destacado por Bakhtin (2003, p. 309), reproduz (para esse ou outro fim, inclusive para

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fins de pesquisa) o texto (do outro) e cria um texto emoldurador (que comenta, avalia,

objeta, etc.), que completa o acabamento de sentido do texto de Eco.

1.1 Conceito de linguagem na perspectiva de Bakhtin e do Círculo: dialogismo, unidade da língua e unidade discursiva.

O conceito de linguagem para Bakhtin/Volochinov (2004, p. 123), é o de que a

linguagem deve ser concebida como fenômeno social da interação verbal, realizada

através da enunciação ou das enunciações. É nessa concepção bakhtiniana de

linguagem que concentramos os estudos de análises dos trechos selecionados do

romance de Eco, e não na constituição abstrata de formas linguísticas, muito menos na

concepção isolada de enunciação monológica. Referente a essas concepções,

Bakhtin/Volochinov (2004, p. 121/122), explicam:

A enunciação individual (a “parole”), contrariamente à teoria do objetivismo abstrato, não é de maneira alguma um fato individual que, pela sua individualidade, não se presta à análise sociológica. Com efeito, se assim fosse, nem a soma desses atos individuais, nem as características abstratas comuns a todos esses atos individuais poderiam gerar um produto social. O subjetivismo individualista tem razão em sustentar que as enunciações isoladas constituem a substância real da língua e que a elas está reservada a função criativa na língua. Mas está errado quando ignora e é incapaz de compreender a natureza social da enunciação e quando tenta deduzir esta última do mundo interior do locutor, enquanto expressão desse mundo interior. A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, á qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda dinâmica da sua evolução. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 121/122).

Conforme esses teóricos da linguagem, a enunciação é uma prática de natureza

puramente social se estudada como forma de comunicação e interação entre os

falantes. Sobre forma de concebê-la, conforme citação acima, Bakhtin descarta o seu

objetivismo abstrato e a forma de pensá-la, apenas, na compreensão do seu processo

de uso, da sua evolução ao longo do tempo, do seu subjetivismo individualista, que

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concebe o individuo como centro de estudo. Para esse teórico, não é possível estudar

a linguagem sem a conceber como prática social, sem considerar a influência que ela

sofre do contexto no qual é inserida, sem o seu direcionamento para o outro como

forma de comunicação e interação, como forma de comunicação discursiva.

1.1.1 Dialogismo

No gênero romance, o termo dialogismo é considerado uma característica

fundamental na composição do texto para apontar as várias vozes que se cruzam e

fazem referência ao longo de toda a narração dos fatos. Dessa forma, concebemos

esse gênero a partir da concepção bakhtiniana como dialógico por natureza e, neste

estudo, considerando os trechos selecionados do primeiro capítulo da primeira parte da

obra em questão, vindos de outros textos literários e, citados literalmente no corpo

dessa obra, ousamos dizer que tratam de vozes que executam no texto de Umberto

Eco a mesma constituição de sentido, uma sobreposição de vozes que se subordinam

e sustentam a temática no capítulo da obra analisada.

Esses outros discursos ideologicamente representados por épocas distintas,

mas que completam o discurso de Eco, são concebidos, neste estudo, como relações

dialógicas. Para Bakhtin (2003, p. 243), o conceito de interdiscurso aparece sob o

nome de dialogismo. Fiorin (2008, p. 53), a partir dos estudos de Bakhtin e o Círculo,

considera que o dialogismo não equivale ao diálogo no sentido de interação face a

face, como também não existe dialogismo entre interlocutores; esse existe sempre

entre discursos: o do locutor e do interlocutor. Deve-se a Bakhtin (2003, p. 279) a

concepção do discurso como essencialmente dialógico. Para ele, a comunicação só

existe na troca dialógica entre o eu e o outro.

Bakhtin (2003, p. 246), estendeu o conceito de dialogismo a todo gênero

romance. Para esse teórico, nesse gênero, as linguagens sociais ora se harmonizam,

ora dialogam, refletindo o mundo todo e a vida toda. Nele, o mundo todo e a vida toda

são apresentados em um corte da totalidade da época. Essa concepção de dialogismo

de Bakhtin é o ponto de partida essencial para a análise dos trechos escolhidos em A

Misteriosa Chama da Rainha Loana. A obra integra ao texto verbal referências

dialógicas de diversos contextos culturais, tanto literários como não literários,

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materializando o dialogismo por intermédio de vários gêneros textuais e visuais, como

charges, revista de moda, quadrinhos, entre outros, em diferentes contextos: filosófico,

artístico, histórico e cultural.

Essa relação dialógica, presente em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, faz

com que o discurso de Umberto Eco se torne convincente, porque ao relacionar o texto

de Eco com outros textos, o leitor aumenta sua compreensão e entendimento da obra.

Assim, compreendemos que o dialogismo constitui parte essencial de toda enunciação

dos trechos da obra analisada, pois nela ocorrem diferentes vozes que se expressam,

e que todo discurso é formado por diversos discursos. Como afirma Fiorin (2008, p.

54), mesmo que o leitor não identifique o interdiscurso, vai entendê-lo. Contudo, no

momento que conseguir relacionar os textos, sua compreensão e reflexão vão se

ampliar.

Bakhtin (2003, p. 272), ao tratar das questões dialógicas do discurso, lembra

que o empenho em tornar inteligível a sua fala é apenas o momento abstrato do

projeto concreto e pleno de discurso dos falantes:

Todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa, mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (BAKHTIN 2003, p. 272).

A partir do contexto da citação acima, observamos que a noção de dialogismo

é essencial para o efeito de sentido, construído intencionalmente por Eco em sua

obra, ao usar uma grande variedade de gêneros textuais e incorporar as ideias

contidas nesses textos às suas ideias. Umberto Eco, provavelmente, assim

conforme postula Bakhtin e o Círculo, parte do princípio que a relação dialógica é

imanente à construção de um discurso, visto que não há discurso primeiro e não

repetível, o que torna o discurso em A Misteriosa Chama da Rainha Loana filosófico,

artístico, cultural e social.

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Dessa forma, a relação de dialogismo está no sentido de que o dizer do outro

está no dizer do eu e que o texto, semanticamente representado, pode ser uma

imagem, um gesto, uma palavra, um texto, uma frase expressa dentro de um

contexto, a partir de um enunciado, ou seja, unidades reais da comunicação, um

conjunto de signos. Reiteramos o dialogismo em Bakhtin (2003, p. 273), pois todo

discurso dialoga com outro discurso e toda palavra é cercada de outras palavras.

Desse modo, eu não sou somente eu, mas também os outros que me constituíram,

conscientemente, ou não, por meio de relações dialógicas.

1.1.2 Unidade da Língua e Unidade Discursiva

Ao entendermos a língua como unidades reais da comunicação discursiva,

como um enunciado, como discurso, entendemos também que não é possível o seu

estudo sem que esteja imbricado em seu contexto social, dos valores ideológicos

que o signo representa e norteiam, sem a consideração de seus falantes e de seus

atos, frente ao contexto social que eles representam. Sem tudo isso, é impossível

haver, no estudo da língua, qualquer relação dialógica, qualquer constituição de

dialogismo e o seu estudo restringirá, apenas, a abordagem do texto de uma forma

estritamente abstrata e linguística.

Para Bakhtin (2003, p. 288), a língua concebida através da interação verbal

entre os falantes constitui sua realidade e vincula sua existência à comunicação

discursiva concreta e materializa a situação social que representa. Assim, segundo

esse teórico da linguagem, temos o uso da língua em forma de enunciados orais ou

escritos, e os concebemos como unidade real da comunicação discursiva. E, dessa

forma, temos as possibilidades de compreensão das unidades da língua, como, por

exemplo, a oração e o enunciado.

Em Bakhtin (2003, p. 278), quando o autor trata de gêneros do discurso a

questão da forma e de seu uso retorna na distinção entre oração (unidade da língua,

dotada de significação) e enunciado (unidade da comunicação verbal, dotada de

sentido). Bakhtin estuda o enunciado sob dois aspectos: o que lhe vem da língua e é

reiterável e o que lhe vem do contexto de enunciação e é único. Este estudo

fundamentará a sua análise nas questões da língua, mas considerando o confronto

18

de um enunciado pleno com a palavra, e conforme diz Bakhtin (2003, p. 332), neste

caso, o enunciado pleno já não é uma unidade da língua (nem uma unidade do

“fluxo da língua” ou “cadeia da fala”), mas uma unidade da comunicação discursiva,

que não tem significado, mas sentido. Bakhtin (2003, p. 276), no que diz respeito ao

diálogo, explica:

Com base no material do diálogo e das suas réplicas, é necessário abordar previamente o problema da oração como unidade da língua em sua distinção em face do enunciado como unidade da comunicação discursiva. (A questão da natureza da oração é uma das mais complexas e difíceis na linguística. A luta de opiniões em torno dessa questão continua em nossa ciência até os dias de hoje. Não é tarefa nossa, evidentemente, revelar essa questão em toda sua complexidade; nossa intenção é abordar apenas um aspecto, mas tal aspecto nos parece de importância substancial para toda a questão. Para nós importa definir com precisão a relação da oração com o enunciado, de um lado, e a oração, de outro.). (BAKHTIN, 2003, p. 276/277).

Com isso, entendemos que a palavra na perspectiva bakhtiniana é concebida

como signo social ideológico. É o elemento que a partir de uma interação verbal

constitui a enunciação e orienta o leitor na constituição de sentido do texto. O

enunciado, conforme citação acima é a unidade da comunicação discursiva, e se

constitui através da interação entre os sujeitos do discurso, por isso, nunca é o

primeiro, ou seja, é sempre a resposta, a réplica de outro enunciado que materializa

outros enunciados no processo de comunicação discursiva.

A partir dessa concepção de enunciado, observamos que a visão bakhtiniana

do enunciado não pode ser a estrutura abstrata da frase, constituída na visão

linguística enunciada no texto, mas uma estrutura complexa que vai muito além da

materialidade textual, quando este é tratado apenas na superficialidade de sua

materialidade linguística. Dessa forma caracterizamos o romance A Misteriosa

Chama da Rainha Loana, intitulado pelo seu autor Umberto Eco, como “Romance

Ilustrado”, como exemplo de enunciado, característica que a ele atribuímos por

concretizar-se a partir de outros enunciados, de citações literais do discurso do

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outro, ou seja, os enunciados no enunciado. Referente à oração, Bakhtin (2003, p.

288), explica:

Como a palavra, a oração possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical, mas essa conclusibilidade de significado é de índole abstrata e por isso mesmo tão precisa: é o acabamento do elemento, mas não o acabamento do todo. A oração como unidade da língua, à semelhança da palavra, não tem autor. Ela é de ninguém, como a palavra, e só funcionando como um enunciado pleno ela se torna expressão da posição do falante individual em uma situação concreta de comunicação discursiva. Isto nos leva a uma nova, a uma terceira peculiaridade do enunciado – a relação do enunciado com o próprio falante (autor do enunciado) e com outros participantes da comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2003, p. 288).

Conforme contexto da citação acima, na visão de Bakhtin não podemos

separar a oração do enunciado, temos que relacioná-los de forma que um complete

o outro. O autor nos lembra da necessidade que temos de recorrermos à estrutura

da língua para darmos conta da formulação de nosso discurso. Bakhtin não se

interessava pela estrutura linguística em si, mas por outro lado não a descartava.

Para ele, o sentido se define no ato de materialização das relações lógicas em

relações dialógicas, o que implica novamente o reconhecimento de que a

semantização da língua ocorre na enunciação. Bakhtin (2003, p. 299).

Para Bakhtin e Volochinov (2004, p. 140), há a necessidade de uma teoria

linguística da enunciação como o único meio de dar conta da compreensão real das

formas sintáticas. Na opinião desses autores, as análises sintáticas dos elementos

do discurso constituem análises do corpo vivo da enunciação, pois as formas

sintáticas são as que mais se aproximam das formas concretas da enunciação, além

de estarem ligadas às condições reais da fala.

1.2 Relações dialógicas, ideologia, signo ideológico

O contexto nas análises deste estudo é concebido como uma prática

ideológica, que se desenrola na dinamicidade da língua. Na obra de Umberto Eco,

20

tanto autor como leitor manifestam-se como sujeitos discursivos determinados

historicamente e, por isso, ambos significam e se (re) significam na historicidade em

que estão inscritos e na materialidade linguística do texto.

É assim que autor e leitor se relacionam com o sentido, pois este também é

história, é constituição incessante de relações dialógicas. Compreender é, assim,

participar como sujeito discursivo dessa dinâmica. Em A Misteriosa Chama da

Rainha Loana, textos e imagens podem produzir efeitos de sentidos variados,

conforme sejam lidos e direcionados a diferentes discursos.

A ideologia advém de uma prática discursiva natural e social. Ela nasce da

atividade social dos homens no momento em que procuram representar, para si

próprios, a maneira como querem atuar. Para tanto, cada classe social representa o

seu próprio modo de agir de acordo com as experiências vividas nas relações

sociais de produção; ou seja, as ideias estão nos sujeitos sociais e em suas relações

sociais determinadas pela realidade em questão. Nas palavras de Bakhtin e

Volochinov (2004, p. 31):

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. No entanto, todo corpo físico pode ser percebido como símbolo: é o caso, por exemplo, da simbolização do princípio de inércia e de necessidade na natureza (determinismo) por um determinado objeto único. E toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 31).

Reconhecemos que, para Bakhtin, o signo ideológico está presente em uma

acentuação valorativa, que faz a ideologia não ser simplesmente expressão de

uma ideia, mas a expressão de uma tomada de posição determinada, de uma

práxis social concreta, de acordo com a época histórica em que foi produzido esse

21

ou aquele discurso que vai permear a ação social, manifestando assim seu caráter

ideológico.

Quanto à relação de compreensão da ideologia com as relações dialógicas,

convém lembrar com Pierre Achard (1999, p. 14) que “[...] o passado, mesmo que

realmente memorizado, só pode trabalhar mediante as reformulações que permitem

re-enquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos encontramos”.

Essas reformulações do passado são expressões de determinados interesses

sociais que lhe dão importância, consistência, duração e o colocam, novamente, em

circulação.

Dadas as considerações apresentadas no item anterior, torna-se bastante

plausível a concepção do romance ilustrado A Misteriosa Chama da Rainha Loana

como uma obra repleta de relações dialógicas e, por apresentar, no “corpo” de seu

texto, uma grande variedade de peculiaridades estilístico-composicionais e,

conforme postula Bakhtin (2003, p. 289), podemos concebê-la, também, como um

elo na cadeia de todas as comunicações discursivas que a compõem.

1.2.1 Relações dialógicas

Ao considerar a obra de Umberto Eco como sendo composta por um elo de

comunicação entre suas relações dialógicas, buscamos, também, a compreensão da

constituição de sentido como efeito de dialogismo entre interlocutores. Essas

relações dialógicas reinscritas no próprio texto de Eco são facilmente identificadas

em A Misteriosa Chama da Rainha Loana e provavelmente é estratégia do autor

reescrevê-las, literalmente, para dar pistas e possibilitar a participação de seu leitor

no acabamento do texto.

Com apenas uma leitura da obra, achamos que as citações feitas por

Umberto Eco, trechos que compõem o corpus deste estudo, eram apenas delírios de

seu personagem Yambo, em um grave estado de coma, mas, ao pesquisarmos

sobre esses trechos, descobrimos que seus protagonistas vivem situações

semelhantes às vividas por Yambo, protagonista do Romance Ilustrado de Eco.

22

Ao nos aprofundarmos nas pesquisas, percebemos que as citações descritas

no corpo do texto em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, sejam elas poema,

poesia ou romance, em muito se assemelham à materialidade linguística do

romance autobiográfico de Umberto Eco, que marca a intencionalidade discursiva do

autor. Quiçá, com outra intencionalidade de constituição de sentido, outra

significação.

Neste estudo, é impossível pensarmos em relações dialógicas sem que

lembremos Bakhtin (2003, p. 379). É ele quem, antes, faz ver, como regra para a

constituição de qualquer discurso, a interação com o discurso do outro, mostrando-

nos que o dialogismo e a interlocução acabam por inscrever em um dizer a

presença dessa palavra que vem de outro lugar.

O imbricamento de vários discursos é condição da linguagem, já que as

próprias palavras não são dotadas de neutralidade, de um sentido que lhes seja

dado a priori. Toda palavra possui uma vida, uma história, um caminho discursivo

que dará os contornos de seu sentido, ou melhor, dos efeitos de sentido a produzir.

Observemos o que afirma Bakhtin (2003, p. 379):

Por palavra do outro (enunciado, produção de discurso) eu entendo qualquer palavra de qualquer outra pessoa, dita ou escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou seja, é qualquer outra palavra não minha. Neste sentido, todas as palavras (enunciados, produções de discurso e literárias), além das minhas próprias, são palavras do outro. Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo de domínio inicial do discurso) e terminando na assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros materiais semióticos). (BAKHTIN, 2003, p. 379).

Para o teórico da linguagem, qualquer enunciação produzida por indivíduos

só pode ser compreendida se entendermos sua relação com outras enunciações.

Ele afirma que toda enunciação é um diálogo, parte de um processo ininterrupto da

comunicação humana. Um enunciado jamais poderá ser entendido como um fato

isolado, pois pressupõe uma conexão com todos aqueles que o antecederam e com

aqueles que o sucederão; um enunciado é um elo que constitui a compreensão.

23

Bakhtin (2003, p. 379) não se limita a considerar estático o diálogo entre

indivíduos; pelo contrário, ele, em geral, refere-se às múltiplas formas que se inter-

relacionam com o universo dialógico, considerando que as relações dialógicas são

muito mais amplas, heterogêneas e complexas do que somente a enunciação. Na

perspectiva bakhtiniana, tanto a consciência quanto a ideologia resultam do

processo de interação verbal social, tendo os signos verbais como elementos

materiais de produção de sentidos.

Neste estudo, buscamos compreender a enunciação como o ato de fala ou

ato de linguagem, como de “natureza social”, ou seja, nem como produto individual,

nem como resultado da consciência individual do sujeito falante. Para isso,

recorremos ao conceito de enunciação de Bakhtin e Volochinov (2004, p. 112):

A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, na realidade é claro que vemos “a cidade e o mundo” através do prisma do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, é preciso supor além disso um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito. (BAKHTIN/VOLOCHINOV 2004, p. 112).

A partir desta definição, então, pode-se afirmar que toda palavra é dirigida a

outrem, é idealizada, contextualizada em função do “outro”. Em consequência disso,

podemos dizer que a palavra nunca será a mesma se a considerarmos a partir do

ponto de vista de interlocutores, que pertencem (ou não) a um mesmo grupo social,

que ocupam lugares diferentes na hierarquia social. Dessa forma, observa-se que a

24

“palavra” possui “duas faces”: ela sempre procede de alguém e se dirige para

alguém: “ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte”,

afirmam Bakhtin e Volochinov (2004, p. 113).

A partir dessa conceituação de enunciação e palavra, observamos nos

trechos escolhidos da obra “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, que compõem o

corpus deste estudo, que as palavras que constroem a materialidade linguística nos

enunciados escritos por Umberto Eco precisam ser concebidas, além do contexto

concreto em que elas são enunciadas, como signos sociais, porque delas emerge

uma intencionalidade discursiva, elas criam no texto de Eco um efeito de sentido.

Bakhtin e Volochinov (2004, p. 112) explicam que é por meio da palavra que

me defino em relação ao outro. Daí decorre a famosa metáfora empregada pelos

teóricos, em que a “palavra” serve como uma ponte lançada entre mim e o outro,

recaindo sobre as extremidades de cada um destes, o suporte, o apoio de tal ponte.

A palavra, segundo os autores, torna-se uma “arena em miniatura” na qual valores

sociais de diferentes orientações ideológicas se entrecruzam e lutam.

É, enfim, na palavra que podemos observar o estudo dos signos, pois nos

remete impreterivelmente ao estudo das ideologias. Sendo assim, a ideologia só

existe pela constituição dos signos, pois o signo só pode ser pensado socialmente,

ou seja, contextualmente, criando uma relação estreita com a formação da

consciência individual, social e natural no universo dos signos. Conforme destacam

Bakhtin e Volochinov (2004, p. 47), o signo forma a consciência, que por sua vez

se expressa por meio da ideologia.

1.2.2 Ideologia

A natureza de todo sistema de comunicação e das linguagens, sendo o

Romance a principal de uma delas, é completamente ideológica. Todo signo é

ideológico e é caracterizado como uma realidade ideológica, que tem e mantém

sua materialidade e se constrói no ambiente social da comunicação natural. A esse

respeito, Bakhtin e Volochinov (2004, p. 32) explicam:

25

Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não existe apenas como parte de uma realidade, ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide como o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. [...] Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 32-33).

O autor menciona que o mesmo signo tem significados ideológicos diferentes

de acordo com a situação histórico-social do sujeito. Em consequência, todo e

qualquer discurso se constitui como diálogo, entre vários enunciados construídos

particularmente ou socialmente. Em A Misteriosa Chama da Rainha Loana

percebemos um diálogo social que marca as ações e reações entre os

personagens, que geram novos signos, novos enunciados.

Dessa forma, os trechos da obra tomados como objeto de análise, as

condições de textualidade concebidas como qualidade discursiva, não só

abrangem a organização interna do texto, da qual os signos são intrínsecos, mas

nos permite, pela análise desses signos tomados como referência, romper as

margens do texto e estabelecer uma relação intrínseca entre ele e a exterioridade,

a história e a ideologia. Mesmo os enunciados particulares dependem da

contextualização sócio-histórica do sujeito enunciador, Conforme lembra Ponzio, ao

citar Bakhtin (2008, P. 117):

[..] para Bakhtin qualquer valor que uma ideia possa ter nunca depende de sua neutralidade. Ao contrário, segundo ele, é sua forma ideológica, ou seja, é a expressão de determinados interesses sociais que lhe dá importância, consistência, duração, e que a coloca em circulação e concede-lhe qualquer possibilidade de incidência

26

prática sobre os comportamentos e sobre as coisas [...] (PONZIO apud BAKHTIN, 2008, p. 117).

A questão da constituição de sentido torna-se a questão da própria

materialidade do texto, do seu funcionamento, de sua historicidade, dos mecanismos

dos processos de significação, das relações dialógicas, mediadas pela linguagem,

através das quais são constituídos efeitos de sentidos, resultantes da relação entre

sujeitos discursivos. É essa relação dialógica que buscamos nas análises dos

trechos de A Misteriosa Chama da Rainha Loana, juntamente, com os efeitos de

sentido que ela constitui.

Para isso, consideramos as posições dos sujeitos que participam do discurso

na obra analisada e que se projetam nele, dentro de circunstâncias dadas, as

chamadas condições de produção, nas quais esses sujeitos se incluem em uma

determinada situação discursivo-enunciativa. Essas condições de produção

compreendem as circunstâncias de enunciação - o aqui e o agora do dizer, que em

nossa análise abarcam o que podemos observar em um contexto sócio-histórico-

ideológico mais amplo, que está registrado nas relações dialógicas da obra

analisada.

Entretanto, dois enunciados aparentemente diferentes, emitidos em tempo e

espaço (cronotopia) diferenciados, quando confrontados em relação à

compreensão, podem revelar uma relação dialógica nos mesmos níveis de

compreensão. Para Bakhtin e Volochinov (2004, p. 36) a linguagem é um campo de

batalha social, o local onde os embates políticos, sociais e ideológicos são

travados. Por isso, o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a

palavra, pois ela proporciona a compreensão da própria consciência e atua de

maneira decisiva na constituição ideológica. A seu ver:

[...] a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. [...] (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 36).

27

Conforme citação acima, todo ato ideológico é acompanhado e comentado

pelas palavras, elas estão presentes em todos os atos de comunicação e em todos

os atos de interpretação, havendo uma relação entre a linguagem e o pensamento

que se manifesta no comportamento individual ou social do indivíduo. A

compreensão dos processos ideológicos nos diversos gêneros textuais,

materializados em A Misteriosa Chama da Rainha Loana como relações dialógicas,

só pode ser efetivada pela incorporação dos discursos interiores, pois para os

autores são criações ideológicas.

1.2.3 Signo ideológico

Neste estudo, concebemos a palavra como signo verbal ideológico, como

suporte de veiculação da ideologia, pelo seu poder de refletir e refratar as condições

semióticas de produção discursiva dos sujeitos, que se faz representar na

materialidade linguística do texto de A Misteriosa Chama da Rainha Loana.

Compreendemos a palavra em uma perspectiva sócio-histórica, por constituir a

consciência, a ideologia, o pensamento dos sujeitos, que ao se enunciar, constituem

sentido na obra analisada.

Dessa forma, concebemos o signo de natureza social e que sua materialidade

se constitui na interação verbal, juntamente com sua função de consciência,

ideologias e sujeitos. Essa forma de conceber a materialidade do signo marca a

linha teórica deste estudo, diferenciando-a das demais formas de concepções

linguísticas, e marca também a forma de concepção dos signos como função de

representação de conceitos, de valores, que emerge dos sentidos e veiculam

ideologias na obra de Umberto Eco.

O signo ideológico, em uma perspectiva discursiva que analisamos nos

recortes de A Misteriosa Chama da Rainha Loana, será tomado em sua

dinamicidade, na interação verbal entre os personagens, em uma negociação de

sentidos. Para isso, partimos de uma metodologia dialética para analisar a

materialidade linguística do corpus deste estudo, pois buscamos uma análise do

ponto de vista social, dos elementos que ultrapassam os aspectos gramaticais e que

determinam as enunciações, os enunciados.

28

Ao analisarmos a natureza dos signos nos recortes da obra de Umberto Eco,

estando estreitamente vinculados com a ideologia, percebemos que produzem

diferenças substanciais nas análises decorrentes do pressuposto de que a sua

materialidade, neste estudo, seja de manifestação ideológica e social. Segundo

Bakhtin e Volochinov (2004, p. 31), o signo é um elemento de natureza ideológica.

Esses teóricos da linguagem destacam que:

Para começar, as bases de uma teoria marxista da criação ideológica – as dos estudos sobre o conhecimento científico, a literatura, a religião, a moral, etc. – estão estreitamente ligadas aos problemas de filosofia da linguagem. Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se trata de ideologia. (BAKHTIN/VOLOCHINOV 2004, p. 31).

Vários autores contemporâneos têm demonstrado um interesse nunca visto

por exposições, em suas obras, de expressões literárias inéditas, como composição

com ícones, como signos linguísticos que referenciam de uma forma mais

abrangente o mundo extralinguístico do que a própria linguagem literária. Essa

tendência de signos simbólicos poderá ser reconhecida, pelo leitor, na leitura do

texto da obra A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco.

Buscamos os escritos de Bakhtin e o Círculo, explicitados na citação acima,

para referenciar as inúmeras formas de expressão, utilizadas por Umberto Eco na

obra em questão. Uma delas é a supercomposição de imagens icônicas que

compõem o sistema verbal, estabelecendo relações com o cinema, revistas em

quadrinhos, revistas de moda, entre outros.

No entanto, buscamos neste estudo analisar o signo verbal ideológico, e, a

partir desses signos, buscarmos a constituição de sentido nas relações dialógicas

por intermédio da enunciação dos personagens no capítulo da obra analisada.

Conforme Bakhtin (1998, p. 106), diversos linguistas e psicólogos localizam tanto a

29

ideologia quanto a consciência no interior (na mente) do indivíduo, enquanto que, na

sua perspectiva, tanto a consciência quanto a ideologia resultam do processo de

interação verbal social, tendo os signos verbais como elementos materiais de

produção de sentidos.

De acordo com Fiorin (2008, p. 56), a consciência é formada pelo conjunto de

discursos que o indivíduo interioriza ao longo de sua vida. O pensamento

materializa-se na consciência apoiando-se no sistema ideológico de conhecimento

que lhe for apropriado. Todo signo leva consigo a individualidade de seu criador,

mas essa individualidade é social, pois foi formada através de interações sociais.

Portanto, todo signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior.

Buscaremos por meio dos signos verbais sociais, caracterizar a materialidade

linguística dos trechos selecionados, do capítulo da obra analisada, como

representação da responsividade do autor da obra, Umberto Eco, a partir da sua

intencionalidade discursiva que emerge efeitos de sentido. Para isso, consideramos

que, conforme lembram Bakhtin e Volochinov (2004, p.33), os signos verbais devem

ser estudados de forma objetiva no discurso, uma vez que são fenômenos sociais. A

respeito do signo, esses autores explicam:

Preliminarmente, portanto, separando os fenômenos ideológicos da consciência individual nós os ligamos às condições e às formas da comunicação social. A existência do signo nada mais é do que a materialização dessa comunicação. É nisso que consiste a natureza de todos os signos ideológicos. [...] Mas esse aspecto semiótico e esse papel contínuo da comunicação social como fator condicionante não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (BAKHTIN/VOLOCHINOV 2004, P. 36).

O signo tomado como significação ideológica pode estar sujeito a critérios de

avaliação do meio ideológico e, naturalmente, ser entendido conforme a

necessidade contextual dos interlocutores. Neste estudo, como os signos estão

30

contextualizados, nossa reflexão será a partir desse contexto, pois o campo de

contextualização do signo aponta para o campo de convergência do fator ideológico

que ele representa. Conforme Bakhtin e Volochinov (2004, p.31) um signo à margem

é um signo sem valor significativo, mas um signo que refrata o seu valor sígnico por

meio da inter-relação que adquire no contexto com outros signos é um signo repleto

de significações.

Conforme Bakhtin e Volochinov (2004, p. 35), no lugar em que estiver um

signo carregado de sentido, ali também estará o ideológico; e tudo o quanto puder

ser considerado ideológico, por sua natureza representativa e significativa, deve ser

considerado de valor semiótico. Em síntese, pode-se dizer que o signo bakhtiniano é

ideológico por natureza, não porque não signifique algo vazio de sentido, de ideia;

mas porque significa, acima de tudo, algo que pode ser assimilado pelo ideológico

ou que pode personificar o próprio ideológico.

A respeito da representação do signo como fenômeno ideológico, Bakhtin e

Volochinov (2004, p. 36), explicam que a estrutura semiótica da palavra já deveria

nos fornecer razões suficientes para a colocarmos em primeiro plano no estudo das

ideologias, pois em sua estrutura, revelam as formas básicas, as formas ideológicas

gerais da comunicação semiótica.

Mas a palavra não é somente o signo mais puro, ainda segundo Bakhtin e

Volochinov (2004, p. 36); ela é também um signo neutro. Cada domínio possui seu

próprio material ideológico e formula símbolos e signos que lhe são específicos e

que não são aplicáveis a outros domínios. Dessa forma, o signo é criado em uma

função ideológica própria e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é

neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer

espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa.

Por isso, o contexto das relações dialógicas analisadas nos trechos do

primeiro capítulo, da primeira parte do Romance Ilustrado de Umberto Eco, é

concebido como práticas ideológicas discursivas, que se desenrolam na

dinamicidade da língua. Na concepção de Fiorin (2008, p. 59), a história não é

exterior ao sentido, mas é interior a ele, pois ele é que é histórico, já que se constitui

fundamentalmente no confronto, na contradição, na oposição das vozes que se

entrechocam na arena da realidade, em um processo de dialogismo.

31

1.3 Tom valorativo: o Ético e o Estético na concepção de Bakhtin

Consideremos a ação dos personagens: Yambo (protagonista da obra),

Gratarolo (médico de Yambo) e Paola (esposa de Yambo), de Umberto Eco em A

Misteriosa Chama da Rainha Loana, dentro das esferas do dialogismo. Buscaremos

na análise das relações dialógicas, nos trechos selecionados do primeiro capítulo da

primeira parte dessa obra, o posicionamento valorativo, o ato ético e estético desses

personagens, que ao se posicionarem linguisticamente no texto, marcam sua

responsabilidade humana frente ao mundo da arte e da cultura, que em uma

perspectiva social constitui sentido ao enunciado.

Para isso, consideramos os estudos de Bert-Santos (2012, p. 143). Segundo

os estudos da autora, Bakhtin (2003, p. 20), trabalhou com as noções de atos ético e

estético, já que as ações humanas estão em constante embate com outros atos, em

uma relação dialógica em que os sujeitos são responsáveis e “responsíveis” (frente

a si, aos outros e à sociedade) por seus atos. Para esse teórico da linguagem, a

ética sustenta a vida e as atividades humanas, ela está ativamente associada à

atividade do ser ético e responsável, e não se limita a um conjunto abstrato de

signos verbais.

Sabendo que a questão ética, estética e valorativa do enunciado, nos trechos

selecionados de A Misteriosa Chama da Rainha Loana, abrange uma abordagem

ampla, tanto na arte quanto na cultura, e que a palavra ética tem uma ampla

definição, neste estudo, partiremos da abordagem “B” da ética relacionada à

valoração e a moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade.

Conforme Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 1271), ética é a

1. parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo a respeito da essência das normas, valores, prescrições, e exortações presentes em qualquer realidade social.

2. derivação por extensão de sentido: conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social, ou de uma sociedade. B(HOUAISS, 2001, p. 1271).

32

Considerando a definição número dois da citação acima, concebemos a

palavra ética, nos trechos selecionados de A Misteriosa Chama da Rainha Loana, do

ponto de vista valorativo e moral dos personagens, uma perspectiva social e

norteadora do comportamento humano. Para isso, recorremos aos estudos de

Bakhtin e o Círculo e às suas teorias referentes a tom valorativo e seus conceitos

éticos e estéticos. Buscamos compreender esses conceitos, nos trechos da obra

analisada, a partir de três campos da cultura humana: a ciência, a arte e a vida, que,

segundo Bakhtin (2003, p. 33), os três campos da cultura humana, a ciência, a arte e

a vida, só adquirem unidade no individuo que os incorpora à sua própria unidade.

Defendendo uma homogeneidade entre a arte, a cultura e a vida, Bakhtin

(2003, p. 33) aponta o ser humano como responsável por essa homogeneidade

entre esses três campos da cultura humana. Em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana, percebemos que o autor Umberto Eco transitou pelo mundo da arte ao se

referir, por exemplo, a Marcel Duchamp e suas máquinas celibatárias, ao mundo da

cultura quando se referiu, por exemplo, à obra Metamorfose de Franz Kafka, e à vida

quando retratou períodos de sua própria vida, relacionando-a em contextos de

diferentes épocas e culturas. Dessa forma, Eco transita pelos três campos da cultura

humana e se integra em uma unidade de responsabilidade que caracteriza cada

uma e cria, em seu texto, ligação de todas entre si.

Essa responsabilidade que o autor Umberto Eco cria em seu texto é, para

Bakhtin (2003, p. 33), a categoria ética fundamental de toda a atividade humana.

Segundo esse teórico da linguagem, sem o posicionamento do ser humano e de sua

responsabilidade frente ao que enuncia, é impossível atribuir um padrão ético às

atividades que esse indivíduo produz. Nesse sentido, com a produção de

conhecimento de uma forma responsável, Umberto Eco, por intermédio da

materialidade linguística em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, constitui

sentidos, de forma que esses sentidos respondam por períodos de sua vida e que

essa vivência aponte o contexto deste conhecimento.

No projeto filosófico bakhtiniano, a base da realidade humana é construída

sobre o conceito de ato e atividade. Conforme Bakhtin (2003, p. 128), para construir

esse conceito de ato, o ser deverá ser tomado como um ser único, individual, que

existe e atua na vida. Ao buscarmos compreensão do ato, da atividade dos

personagens, nos trechos separados para análise na obra de Eco, compreendemos

33

o processo no qual esses atos se realizam por meio da materialidade linguística ou

dos sentidos que elas constituem no texto.

Conforme Bakhtin (2003, p. 128), para que esse ato se torne um ato

responsável, um ato ético, unindo a materialidade linguística ao processo no qual ela

é construída, devemos identificar a valoração atribuída a cada ato, a cada atividade

de cada personagem nos trechos da obra analisada. Para identificarmos a valoração

desses atos/atividades, temos que analisar a consciência ética e estética dos

personagens, e para isso recorremos a Bakhtin (2003, p. 19/20):

Com um só e único participante não pode haver acontecimento estético; a consciência absoluta, que não tem nada que lhe seja transgrediente, nada distanciado de si mesma e que a limite de fora, não pode ser transformada em consciência estética, pode apenas familiarizar-se mas não ser vista como um todo passível de acabamento. Um acontecimento estético pode realizar-se apenas na presença de dois participantes, pressupõe duas consciências que não coincidem. Quando a personagem e o autor coincidem ou estão lado a lado diante de um valor comum ou frente a frente como inimigos, termina o acontecimento estético e começa o acontecimento ético que o substitui (o panfleto, o manifesto, o discurso acusatório, o discurso laudatório e de agradecimento, o insulto, a confissão-relatório, etc.); quando, porém, não há nenhuma personagem, nem potencial, temos um acontecimento cognitivo (um tratado, um artigo, uma conferência); onde a outra consciência é a consciência englobante de Deus temos um acontecimento religioso (uma oração, um culto, um ritual). (BAKHTIN, 2003, p. 19/20).

Em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, percebemos que ao criar seu

texto, Umberto Eco, autor criador, procede a escolhas de trechos de outras obras

literárias para estabelecer as relações dialógicas em sua obra, após estabelecer

esteticamente a forma composicional de seu objeto, o texto. Eco, por meio de atos

éticos, cria um afastamento do enunciado e, conforme os estudos de Bert-Santos

(2012, p. 145), posiciona-se axiologicamente no texto e pela forma arquitetônica que

o compõem, deixa explícito seu posicionamento frente a discursos sociais e

históricos.

34

Bakhtin (2003, p. 141) defende que nas ciências humanas deveria ocorrer

uma relação entre sujeitos: um sujeito (o ser humano que se põe a conhecer

praticando um ato de cognição, o sujeito compreendente) e outro sujeito (ser

humano que se pronuncia e fala, o sujeito compreendido). No segundo, o texto é

tomado como o dado primário e ponto de partida de todas as disciplinas nas ciências

humanas. A inter-relação entre o homem, o(s) sentido(s), o signo, o texto. Nesse

conjunto de signos (tanto verbais quanto não verbais) sempre há um sujeito

atribuindo sentidos, com sua visão de mundo, posicionando-se e interagindo dentro

de um universo de valores. A esse respeito, Bakhtin (2003, p. 140) explica:

[...] a consciência do possível narrador e o contexto axiológico do narrador organizam o ato, o pensamento e o sentimento em que estes estão incorporados em seus valores ao mundo dos outros; cada um desses momentos da vida pode ser percebido no todo da narração – a história dessa vida pode estar na boca das pessoas; minha contemplação de minha própria vida é apenas uma antecipação da recordação dessa vida pelos outros, pelos descendentes, simplesmente pelos meus familiares, pelas pessoas íntimas; os valores que organizam a vida e a lembrança são os mesmos. O fato de que o outro não foi inventado por mim para uso interesseiro, mas é uma força axiológica que eu realmente sancionei e determina minha vida confere-lhe autoridade e o torna autor interiormente compreensível de minha vida; não sou eu munido dos recursos do outro, mas o próprio outro que tem valor em mim, é o homem em mim. (BAKHTIN 2003, p. 140).

Segundo os estudos de Bert-Santos (2012, p. 145), a questão do valor apresenta-se,

também, sob o nome de juízo (de valor), posicionamento , posição de um autor e

posição semântica . E o valor é simplesmente indispensável na medida em que sem ele,

independentemente de qual terminologia seja empregada --- repetimos - sem ele não há relação

dialógica. Invertendo-se o raciocínio, toda vez que um sujeito se posiciona frente ao outro e tal

situação se manifesta na linguagem, tem-se uma relação dialógica. Em termos gerais, toda vez

que ocorre um juízo de valor e consequente realização na linguagem definindo uma posição

autoral frente à outra posição autoral valorativa, a relação dialógica se instaura.

35

No ato estético dos personagens, nos trechos da obra analisada, encontramos a

realidade representada por diversos gêneros textuais, que retratam realidades de diferentes

épocas, porém suas relações dialógicas se dão na materialidade linguística do texto, embora

ambas sejam transformadas pela ação estética e valorativa do autor, que ao compô-las, dá-lhes

acabamento. Segundo Bakhtin (2003, p. 22), para construir sentido e ter uma valoração na

ação dos personagens, essa ação deve ser avaliada e regulamentada por um ato ético, no qual

as relações dialógicas devem cumprir os deveres de uma consciência ética que atribui valores

aos atos que executam.

Percebemos os valores, presentes, nos trechos do texto da obra analisada, quando neles

identificamos a validade dada pelo autor Umberto Eco à temática de outros textos literários

que constituem sentidos no seu A Misteriosa Chama da Rainha Loana e, também, pelo fato de

esse autor deixar claro em seu texto a historicidade e individualidade de cada um. Por isso,

consideramos em nossa análise, principalmente, o caráter histórico e a apreciação valorativa

do autor frente aos enunciados que compõem o corpus deste estudo. Notamos também,

nesses enunciados, a repetição literal de trechos literários, vindos de outras obras, que a partir

de sua materialidade linguística, sua significação e temática, demonstram o ato responsável e

responsivo de Umberto Eco, ao constituir sentido em seu texto.

Dessa forma, podemos dizer que, nos trechos analisados dessa obra, houve

um ato/atividade responsável desse autor, porque ao utilizá-los em seu texto para

constituir sentido, ele utiliza, também, como forma de sustentação desse sentido

construído, noções éticas e morais contextualizadas na esfera da cultura humana.

Na busca de constituição desses sentidos, percebemos por meio das escolhas feitas

por Eco dos trechos literários que compõem o seu texto, a importância, a valoração

e a responsabilidade, que esse autor assume e estimula o seu leitor presumido a

assumir, ao ler, compreender e analisar o seu texto em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana.

Percebemos também que, ao efetuar a compreensão e análise dos

enunciados dessa obra, não há possibilidade de o analista cair em contradição com

a intencionalidade de constituição de sentido do autor, pois ao aceitar a constituição

dos personagens como sujeitos constituídos socialmente, o analista aceita, também,

36

a valoração, a responsabilidade ética e estética construída pelas vozes sociais dos

outros que participam na constituição de cada um desses sujeitos sociais.

37

CAPÍTULO 2 - METODOLOGIA

Ao analisarmos os trechos selecionados de A Misteriosa Chama da Rainha

Loana, investigamos as relações dialógicas e a constituição de sentido existentes nas

referências que o autor Umberto Eco faz, em seu texto, sobre o discurso do outro, de

que trata esse estudo. Na medida em que identificamos as relações de sentido

existentes entre essas relações dialógicas, percebemos a articulação entre o discurso

de Eco e os diversos discursos literários que ele incorpora em seu texto.

No capítulo anterior, de fundamentação teórica sobre a linguagem e suas

peculiaridades, caracterizaram-se as questões de uso da linguagem que, a partir das

concepções de Bakhtin e o Círculo buscamos os procedimentos de interpretação para

a realização das análises das relações dialógicas na enunciação dos personagens, nos

trechos da obra analisada, numa dimensão discursiva, interativa, histórica, social e

cultural.

Com isso, caracterizamos esse estudo no âmbito da Linguística teórica, cujas

análises centram-se na materialidade linguística dos enunciados de onde emerge a

constituição de sentido e no uso da linguagem pelos interlocutores em diversos

contextos sociais, para os quais direcionamos nossa análise.

Esta análise se caracteriza ainda como sendo uma investigação bibliográfica, de

base acadêmica, cujo corpus se constitui de trechos selecionados do primeiro capítulo

da página 09 até a página 32, da primeira parte, do romance ilustrado A Misteriosa

Chama da Rainha Loana do autor Umberto Eco, tradução de Eliana Aguiar da cidade

do Rio de Janeiro, publicado pela editora Record no ano de 2005.

2.1 Como o estudo vai ser desenvolvido

Inicialmente, buscamos a aquisição da obra, o romance ilustrado, A Misteriosa

Chama da Rainha Loana e toda a referência dela e de seu autor, Umberto Eco, para

depois, em um segundo momento após a leitura integral de seu texto, selecionar o

corpus deste estudo, que se compõem de trechos do primeiro capítulo, da primeira

parte da obra analisada, que citados literalmente no texto de Umberto Eco, derivam,

38

assim como a obra, de outros textos literários de diferentes gêneros, tais como, por

exemplo, romance, poemas, dentre outros.

Com base nas referências adquiridas sobre a obra, seu autor e o contexto dos

personagens narrados no corpo do texto, selecionamos o corpus deste estudo, que se

encontra constituído de 19 trechos distribuídos no próximo capítulo - o capítulo 3 - de

análise desses trechos. Reiteramos que entre os tópicos do capítulo de análise, pode

ocorrer a repetição da análise do mesmo trecho analisado anteriormente, mas em

outro contexto, em outra situação de constituição de sentido.

Uma vez definido o corpus, partimos para o estudo das análises. Começamos a

pesquisar cada trecho do corpus a partir das relações dialógicas e constituição de

sentido existente entre eles e o texto do autor Umberto Eco. Procuramos atentar para a

relação entre a materialidade linguística dos enunciados como forma de constituição de

sentido na construção do texto das análises, buscando as relações existentes entre

eles e a constituição de sentido na obra analisada.

Desse modo, direcionamos o nosso olhar para os signos do outro que

participam e constituem sentidos em A Misteriosa Chama da Rainha Loana e

compõem de uma forma sistemática o capítulo de análise deste estudo, por meio das

relações dialógicas que esses signos representam. Portanto, em nossa análise dos

trechos selecionados para compor o corpus desta dissertação de mestrado,

concebemos as palavras como signos sociais, como relações dialógicas. Para Bakhtin

e Volochinov (2004, p. 36), a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. É

absorvida por sua função de signo e não comporta nada que não esteja ligado a essa

função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e

sensível de relação social.

Depois de selecionados os signos responsáveis pelas relações dialógicas

identificadas e estabelecida a constituição de sentido entre elas, realizamos uma nova

leitura do corpus, dessa vez buscando a forma como eram estabelecidas essas

relações dialógicas e a articulação delas com o romance de Eco, no que se refere às

relações de constituição de sentido. Para facilitar a análise dos trechos selecionados,

as pesquisas foram arquivadas em pastas de arquivo digital para eventuais consultas

posteriores.

39

Para a sistematização das análises, no primeiro tópico deste capítulo,

destacamos as relações dialógicas existentes entre os trechos selecionados em A

Misteriosa Chama da Rainha Loana com trechos literários; no segundo, analisamos

essas relações dialógicas com o contexto social e no terceiro e último tópico do

capítulo de análise, detivemos-nos nas relações dialógicas existentes entre os trechos

selecionados com a ciência médica. A sequência de análise dos trechos seguiram,

rigorosamente, as sequências de citações do autor Umberto Eco na obra analisada.

Para facilitar a leitura das análises, reiteramos que os trechos que compõem o

corpus deste estudo correspondem a trechos originais de outros textos literários,

citados literalmente pelo autor Umberto Eco em A Misteriosa Chama da Rainha Loana,

para constituir sentido em seu texto.

2.2 Os tópicos selecionados para análise e sua relação com a teoria

A análise dos excertos do romance revelou haver neles inseridos trechos de

outras obras; Eco incluiu outros romances e poemas, num todo que remonta à

filosofia, história e até mesmo à semiótica, estabelecendo uma estética pós-

moderna, através de conceitos literários que cristalizam a materialidade linguística,

definindo, assim, o sentido do texto.

Destaque-se que, nesse contexto, os tópicos relativos ao corpus em questão

são formados por palavras do outro, caracterizando-se assim suas relações

dialógicas que, através de signos verbais e, portanto, ideológicos, formam o sentido

dessa narrativa ilustrada do autor. Bakhtin (2003, p. 379), explica:

Por palavra do outro eu entendo qualquer palavra de qualquer outra pessoa, dita ou escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou seja, é qualquer outra palavra não minha. Neste sentido, todas as palavras, além das minhas próprias, são palavras do outro. (BAKHTIN, 2003, p. 379).

Os excertos da obra de Eco são, como referência desse estudo, concebidos

na esfera do dialogismo, uma vez que são compostos por signos que permeiam o

40

texto do autor com a mesma constituição de sentido, entrelaçando-se e sobrepondo-

se e relacionadas entre si, e sustentando o tema do primeiro capítulo. Nota-se,

portanto, que o dialogismo é parte relevante e essencial do discurso, o que fez a

comprovar o postulado bakhtiniano, de que todo discurso é formando por outros

vários.

As relações dialógicas constantes no corpus revelam a linguagem como

unidades da língua e unidades reais de discurso, como enunciados, entendendo-se

que sua análise não seria possível sem a relação com o contexto social e valores

ideológicos cujos signos em sua materialidade linguística que fazem e revelam a

constituição de sentido do texto. Sem esses elementos não haveria relação dialógica

ou qualquer constituição de dialogismo.

Dessa forma, o presente estudo foca na referência a um discurso do outro,

conforme entendido por Bakhtin e o Círculo, na medida que se analisa a constituição

de sentido entre os trechos analisados e o texto de Eco, resultando em fonte de

análise dos signos sociais ideológicos. Os trechos em questão têm destacado,

portanto, suas características de signos linguísticos, e assim a presente análise será

realizada através da materialidade linguística do texto.

Ao seguir com as pesquisas, nota-se que as citações presentes no capítulo

da obra analisada têm forte similaridade com a materialidade linguística do romance

autobiográfico do autor e marca sua intencionalidade discursiva, talvez com

significação diversa. Conforme a teoria de Bakhtin e o Círculo as relações dialógicas

referidas jamais se separam do discurso.

Bakhtin (2003, p. 379) destaca que o entrelaçamento de vários discursos é

condição precípua da linguagem, uma vez que as palavras não são neutras de um

sentido que a priori lhes seja dado. Palavras têm vida e história, uma trilha discursiva

que dará a plenitude de seu sentido. Assim, os excertos do romance em análise e

suas condições de textualidade de qualidade discursiva abrangem a arquitetura

interna do texto no qual os signos são intrínsecos, mas, também, permitem, uma vez

tomados estes signos como referência, ir além do texto e encontrar estreita relação

entre ele, texto, e a exterioridade, a ideologia e a história.

41

Para tanto, devem ser considerados os lugares dos sujeitos participantes do

discurso da obra em questão, e que nela se projetam nas condições de produção,

que compreendem as circunstâncias de enunciação: o aqui e agora do que é dito,

que na presente análise compreende o que pode ser observado num contexto

social, histórico e ideológico mais amplo. Assim, foca-se esse estudo na palavra,

uma vez que esta permite a compreensão da consciência e é decisiva na formação

ideológica.

A natureza social dos signos desses excertos aponta para sua materialidade

constituída na interação verbal e em sua função de consciência, sujeitos e

ideologias, o que marca sua representação de conceitos e valores que constituem

sentidos e impõem ideologias nas relações dialógicas, nos trechos de outros autores

citados por Eco e em seu próprio texto. A presente análise parte, portanto, de uma

visão social dos elementos que estão para lá dos aspectos gramaticais, e

determinam as enunciações.

Para Bakhtin e Volochinov (2004, p. 31), “o signo é um elemento de natureza

ideológica”. A análise da natureza dos signos do texto de A Misteriosa Chama da

Rainha Loana revela que aqueles apresentam substanciais diferenças em relação à

sua materialidade linguística como sendo uma manifestação ideológica e social.

Conforme Fiorin (2008, p. 56), a consciência se forma a partir do conjunto de

discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo de sua vida. O pensamento se

concretiza na consciência através do sistema ideológico de conhecimento para ele

apropriado. Todo signo tem a marca de seu criador, embora essa individualidade

seja social, uma vez que foi construída através de interações sociais.

Os signos verbais sociais são meio de caracterizar a materialidade linguística

dos excertos escolhidos como representação da responsividade de Eco, partido de

sua intencionalidade discursiva que produz efeitos de sentido. A esse respeito,

afirmam Bakhtin e Volochinov (2004, p. 33), “os signos verbais devem ser estudados

de forma objetiva no discurso, uma vez que são fenômenos sociais”. Assim, as

relações dialógicas em seu contexto no corpus em questão devem ser concebidas

como práticas ideológicas discursivas que se sustentam na dinamicidade da língua.

O reflexo que Eco inclui em seu texto é, para Bakhtin (2003, p. 33), “a

categoria ética fundamental de toda a atividade humana”. O teórico afirma que, sem

42

um firme posicionamento do indivíduo e de sua responsabilidade sobre o que

enuncia, não se poderia atribuir um padrão ético às suas atividades. As atividades

dos personagens constantes da obra de Eco refletem o processo através do qual

são realizados esses atos, que se consumam pela materialidade linguística e dos

sentidos que constituem.

Os excertos de A Misteriosa Chama da Rainha Loana mostram as realidades

de diversas épocas, mas suas relações dialógicas acontecem no próprio texto, ainda

que sejam transformadas pela ação estética e valorativa de Eco, que lhes deu

acabamento. Consideram-se nos trechos, porém, o elemento histórico e a

apreciação valorativa do autor perante os enunciados. Notam-se, igualmente, que

trechos literários são repetidos, originados de gêneros textuais diversos e que, a

partir de sua materialidade linguística, sua temática e significação, mostram o ato

responsivo e responsável de Eco.

2.3 Como o romance se presta a essa investigação, resumo da obra, informações sobre o autor.

No romance A Misteriosa Chama da Rainha Loana, as relações entre o eu e o

outro podem ser observadas pela forma como o autor Umberto Eco se conecta com

outros gêneros textuais e artísticos, com outras épocas e espaços. Essa conexão do

referido autor nos possibilita dizer que, conforme os estudos de Fiorin (2008, p. 115), a

partir da teoria de Bakhtin e o Círculo, estabeleceu-se na forma composicional do texto

em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, redes plurilinguísticas, dialógicas e

polifônicas.

Ao percebermos o estabelecimento dessas redes na obra analisada,

procuramos, portanto, atentar para a relação existente entre cada uma delas na

constituição de sentido do texto analisado. Para isso, buscamos explorar em “A

Misteriosa Chama da Rainha Loana”, os signos que estão fundamentados nas relações

dialógicas existentes entre elas, uma vez que o romance de Eco representa, com sua

estrutura multifacetada, formada pela mistura de elementos literários e extraliterários, o

que Fiorin (2008, p. 121) destaca: que o mundo representado é o do presente, o tempo

do autor e dos leitores.

43

No romance autobiográfico de Umberto Eco, emergem, por exemplo, os textos

memorialísticos e confessionais, tanto pela tentativa do autor em repensar a sua

história, quanto, e principalmente, a tentativa das personagens em passarem a limpo a

sua vida, manifestando em si o anseio pela recuperação da identidade perdida, a

busca individual pelo coletivo. Conforme explica (Bakhtin, 2003, p. 214):

Diferentemente do tempo aventuresco e lendário, o tempo biográfico é plenamente real, todos os seus momentos estão vinculados ao conjunto do processo vital, caracterizam esse processo como limitado, singular e irreversível. Cada acontecimento está localizado na totalidade desse processo vital e por isso deixa de ser aventura. Os instantes, o dia, a noite, a contiguidade imediata de breves instantes quase perdem inteiramente o seu significado no romance biográfico, que opera com longos períodos, com partes restritas da totalidade vital (idades, etc.). Evidentemente, no fundo desse tempo fundamental do romance biográfico constrói-se a representação de acontecimentos particulares e aventuras em plano grande, mas os instantes, as horas e os dias desse grande plano são de natureza não aventuresca, mas subordinados ao tempo biográfico, estão imersos nele e nele são completados pela realidade. (BAKHTIN 2003, p. 214).

Quando o escritor utiliza a forma autobiográfica no romance, ele deixa de ser eu

e passa a ser outro, estabelecendo assim uma relação historicamente presente na

feitura do romance, a de alteridade. Toda biografia é uma representação. Na obra A

Misteriosa Chama da Rainha Loana, temos a representação de uma representação ou

o símbolo mediado pela linguagem. Considerando a citação acima no contexto da obra

biográfica de Bakhtin (2003, p. 214), percebemos que o romance ilustrado de Umberto

Eco se caracteriza por processos vitais, por apresentar na personagem de Yambo,

protagonista da obra, as vivências do autor em épocas passadas.

Em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, encontramos trechos literários

provenientes de uma diversidade de gêneros que povoam diversas formas textuais,

narrativas que contam feitos passados de autores autobiográficos. Feitos que, muitas

vezes, são narrados com mistura de ficção e realidade, em que seu protagonista é

autor personagem, que retrata época e o tempo e o espaço dos fatos, é o tempo e o

44

espaço do autor e dos leitores, imersos em uma realidade, subordinados a

acontecimentos históricos, representados artisticamente em uma determinada época.

O romance é uma combinação social de línguas e vozes organizadas

artisticamente: falas representam épocas, gerações, dialetos, hierarquias,

regionalismos, que demonstram a diversidade da vida histórica de um sujeito. O

plurilinguismo no romance faz-se graças aos discursos encontrados em sua

composição, os quais contêm múltiplas vozes sociais que dialogam entre si. Para

Bakhtin (2003, p. 248) A linguagem do romance é construída sobre uma interação

dialógica ininterrupta com as linguagens que a circundam. Segundo esse teórico, a

linguagem constitui discursos, enunciados que são expressos por signos ideológicos. A

esse respeito Bakhtin (2003, p. 246) explica:

O romance deve apresentar um quadro integral do mundo e da vida, deve refletir o mundo todo e a vida toda. No romance, o mundo todo e a vida toda são apresentados em um corte da totalidade da época. Os acontecimentos representados no romance devem abranger de certo modo toda a vida de uma época. Nessa capacidade de abranger o todo real está a sua essencialidade artística. Pelo grau dessa essencialidade e, consequentemente, pela significação histórica, os romances são muito diversos. Dependem, antes de tudo, do grau de penetração realista nessa integridade real do mundo, da qual se abstrai a essencialidade enformada no todo romanesco. (BAKHTIN 2003, P. 246).

As vozes dos personagens analisados em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana representam, literariamente, o ser histórico que se apropria de linguagens

sociais. Podemos, então, observar a linguagem do romance como um ponto de vista

particular sobre o mundo. Se é feito de diálogos inacabados, abertos a outros

diálogos, se contém a fusão de enunciados ou o choque entre formas distintas, toda

essa mistura que constitui o romance o torna uma fusão de discursos sociais em um

mesmo enunciado.

45

2.3.1 Resumo da obra

O quinto romance de Eco, A misteriosa chama da rainha Loana, é

considerado por muitos críticos uma forma disfarçada de autobiografia do autor, que

utiliza elementos da cultura popular para recuperar memórias de sua infância. Nosso

corpus de estudo, a edição de 2005, repleta de gravuras dos anos 1940, apresenta

um panorama da Itália do período fascista e da guerra, em que o protagonista faz

muitas referências à literatura, à história, à filosofia, à religião e à política.

Para compor a obra em questão, Eco fez uso de vários recursos dialógicos,

como a colagem e a citação, além de utilizar muitas referências, alusões, figuras e

imagens. Ao homenagear a literatura, usando um protagonista que, ao perder suas

próprias memórias, somente pode se reencontrar a partir das paixões de sua vida,

Eco usa e abusa das relações dialógicas para resgatar passo a passo a memória da

literatura.

Segundo o estudo de BERTI-SANTOS referente à leitura da capa de A

misteriosa chama da rainha Loana, a obra é um romance ilustrado que nos fala de

uma personagem desmemoriada. A narrativa inicia-se com um discurso que remete

ao discurso médico, tem como título “O mais cruel dos meses” e em seguida um

diálogo em que se apresentam a voz de um médico e do paciente. Na materialidade

linguística do texto, trabalhando com os conceitos de dialogismo de Bakhtin e seu

Círculo, o autor estabelece uma relação dialógica consigo e com o leitor.

Conforme a mesma autora, é a agonia da personagem que, presa em seu

coma, segue como nau a deriva no mar de lembranças embaralhadas, confusas.

Chama pela morte, pede pela vida. O conflito de dois discursos. Ao lado dessas

imagens, dessa linguagem visual, temos a linguagem verbal. Discursos em diálogo,

que se entrecruzam e que revelam o grande mistério da obra. Essa passagem da

lucidez ao estado mental confuso é representada pela lexia névoa, enevoada, como

metáfora de coma, doença do personagem Yambo na obra de Umberto Eco.

Segundo FARACO (2006, p. 43), a obra é de caráter autobiográfico e

autocontemplativo, uma vez que a personagem observa uma face que nunca viveu,

ao acordar desmemoriada de Collegno e não saber de si, projetando-se num outro

para, com sua ajuda, tentar encontrar uma posição axiológica em relação a si.

46

Recorre às citações infindáveis de obras literárias, de discursos de massa, do

cinema, do teatro, do teatro de revista, dos quadrinhos etc., que conduzem o outro a

refletir sobre os detalhes de sua vida, e, desse modo, (re) constrói a vida do autor.

Segundo o mesmo autor, citado acima, a autocontemplação na obra é

representada pela figura da esposa que procura nos objetos que fizeram parte de

sua vida vínculos com o passado e as chaves para a lucidez. Nessa busca, ele vai a

Solara, antiga casa da infância e lá, revirando os cômodos, encontra objetos, livros,

revistas, músicas etc., que faz o paciente relembrar passagens do passado, mas

sem contextualização.

A reconstrução de sua memória se dá a partir dos gêneros do discurso

apresentados nas muitas revistas, livros, capas, cartazes etc. Os diversos discursos

citados que se apresentam nesses gêneros discursivos representam diferentes

fases da vida da personagem e, à medida que ele entende o hoje, busca entender o

ontem. Há inúmeros discursos sendo trazidos para dentro da obra, travando

relações dialógicas, constituindo e constituintes de sentido.

Assim, por se realizar por enunciações concretas o discurso não é neutro, está

perpassado pelas ideologias sociais e dos sujeitos sócio-historicamente constituídos;

portanto:

Toda forma comunicativa é produto de sentidos, o diálogo é uma das formas mais importantes da interação verbal, mas pode-se compreender a palavra diálogo não apenas como comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 127).

É nesse contexto que a Obra A Misteriosa Chama da Rainha Loana se insere,

um enunciado concreto que visa a levar o leitor, por meio de uma atitude responsiva

frente a um enunciado ao qual o autor deu um acabamento, a reconstruir a história da

personagem numa busca por entre suas memórias. Nesse buscar, encontra a história

da rainha Loana, uma rainha que para uns é boa e contemplativa, para outros é má e

perigosa, uma rainha enigmática que guarda uma misteriosíssima chama que

proporciona vida longa, a imortalidade ou leva à morte. Essa imagem da rainha Loana

é a capa do livro.

47

O enredo da obra de Umberto Eco começa em Milão, no dia 25 de abril de 1991,

quando o protagonista chamado Giambattista Bodoni, um livreiro de 60 anos, cujo

apelido é Yambo, desperta de um coma provocado por um acidente vascular cerebral

que lhe provoca a perda da memória autobiográfica, embora consiga se lembrar de

títulos de livros, de poemas completos, cálculos matemáticos, fatos históricos ou

qualquer outra coisa que não se relacione com sua vivência pessoal. Já no início do

livro, deparamo-nos com o seguinte diálogo entre Yambo e o médico:

“E o senhor como se chama?”

“Espere, está na pontada língua.”

Tudo começou assim.

Era como se acordasse de um longo sono, e, no entanto ainda estava suspenso em um cinza leitoso. Ou quem sabe não estivesse acordado, mas sonhando. Era um estranho sonho, desprovido de imagens, povoado de sons. [...]

“Certo. E quanto è seis vezes seis?”

“Trinta e seis, é óbvio.”

[...] “Parece que a sua memória está em ótimo estado. A propósito, e como o senhor se chama?”

Pois foi aí que eu hesitei. E, no entanto estava na ponta da língua. Depois de um segundo respondi da maneira mais óbvia. “Eu me chamo Arthur Gordon Pym.”

“O senhor não se chama assim.” [...]

“O senhor é casado?”

“Diga-me o senhor.”

“Sim, é casado, com uma amabilíssima senhora que se chama Paola [...].” (ECO, 2005, p. 9-13).

Pelo diálogo e também pela leitura da obra, é possível perceber que Yambo

conservou aquilo que os neurologistas chamam de memória semântica, mas apagou

a memória autobiográfica, pois não se lembra sequer do fato de ser casado e ter

filhos. Na tentativa de resgatar essa memória pessoal, Yambo se transfere para a

casa da família, em Solara, onde passa seus dias no sótão ouvindo discos antigos,

relendo revistas em quadrinhos, livros de seu avô, livros escolares, o missal da mãe

e olhando os brinquedos e os selos. Assim começa um caminho lento para a

recuperação de seu passado. Porém os acontecimentos importantes não voltam à

48

sua memória até que ele volta a entrar em coma quando passa a repensar e a

reviver os fatos de sua infância como se estivesse em um espiral.

O romance se divide em três partes: A primeira parte, fonte de estudo e

pesquisa deste trabalho, é denominada “O acidente”, parte na qual é apresentado o

estado de saúde de Yambo, e trata das constatações iniciais da personagem sobre

sua doença, sobre o diagnóstico médico e sobre as expectativas acerca do processo

de rememoração. No romance, a casa de campo da família em Solara, depositária

dos objetos do passado de Yambo, corresponde à sua “caverna da memória”. Outro

fator que merece destaque nessa primeira parte é a relação de Yambo com sua

secretária Sibilla, que tem o mesmo nome de um antigo amor de infância. Por último,

é-nos também informado que antes do acidente, Yambo, auxiliado por Sibilla, iniciou

uma coletânea de versos que tinham a expressão “névoa”, que estará presente ao

lado da expressão “misteriosa chama”, no decorrer de toda a trama.

A segunda parte, intitulada “Uma memória de papel”, é a mais longa e

apresenta os principais símbolos de interpretação da obra, pois Yambo reencontra

em Solara objetos, imagens, sons, cheiros e sabores que fizeram parte de seu

passado. É nesta parte que Yambo entra em contato com tudo o que leu, escreveu e

ouviu durante sua infância e sua juventude. Como já observamos, a casa de Solara

corresponde à “caverna da memória” de Yambo. Nesta imensa propriedade,

herdada do avô, o protagonista redescobre antigos pertences de família, como

móveis, molduras, livros, jornais, revistas, discos e também objetos pessoais, como

cadernos em que escreveu quando era ainda jovem. Este reencontro suscita em

Yambo novas emoções e ondas de calor, que ele também denomina como

“misteriosíssimas chamas”.

Entre os livros e as coleções do avô, Yambo encontra uma caixa com poesias

que ele mesmo escreveu no final da década de 1940. Sente-se curioso ao observar

o teor romântico de seus versos e, após um telefonema ao seu amigo de infância

Gianni, descobre que a inspiração para seus escritos foi um antigo amor de sua

adolescência, Lila Saba, que morreu ainda jovem depois de partir para o Brasil.

Porém, mesmo convencido de que não havia mais nada a fazer ou a procurar em

Solara, Yambo sente um desejo incontrolável de dar um último adeus ao sótão, onde

passara vários dias entre os livros e objetos do avô.

49

Essa ânsia foi causada pela vontade de encontrar uma fotografia de Lila e,

quem sabe, dissolver a névoa que perpassava sua existência. Para sua surpresa,

durante sua última visita ao sótão, Yambo descobre uma caixa fechada, escondida

entre dois armários. Neste momento de êxtase, entre a emoção de ter descoberto

um tesouro e a expectativa de conseguir finalmente encontrar, da mesma forma, em

sua “caverna da memória”, o rosto de Lila, Yambo recobra sua memória. Mas,

ironicamente, entra novamente em coma. Nesse estado de semiconsciência,

começa a reavaliar tudo o que viu e sentiu desde que chegou a Solara, procurando

também entender o que se passava com ele naquele momento.

O desfecho da obra acontece na última parte, chamada OI NOΣTOI, em que

se percebe uma circularidade. Nesta parte os elementos simbólicos das partes

anteriores reaparecem, daí a escolha do título grego, que significa “Retornos”. Nessa

parte, Yambo pede à Rainha Loana que lhe devolva a imagem do rosto de Lila, que

seria para ele a figura redentora de seu esquecimento e poderia trazer de volta sua

memória autobiográfica. Em estado de puro arrebatamento, Yambo espera ansioso

pela imagem de Lila e vive um momento transitório entre despertar ou cair em sono

profundo. Por fim, Yambo sente uma “rajada de frio” e o sol passa a se fazer negro,

isto é, o protagonista entra em sono profundo, sem rememorar o “rosto gracioso” de

Lila.

2.3.2 Informações sobre o autor

O escritor, filósofo e linguista italiano Umberto Eco nasceu no dia cinco de

janeiro de 1932, na cidade de Alessandria, em Piemonte, na Itália. Famoso

mundialmente por seus escritos sobre semiótica, estética medieval, comunicação de

massa, linguística e filosofia, ele também trilhou uma concreta trajetória como mestre

de Semiótica na Universidade de Bolonha, além de dirigir a Escola Superior de

Ciências Humanas nesta mesma instituição. Atuou como colaborador, ao longo de

sua carreira, em várias publicações acadêmicas, assina uma coluna semanal no

L’Espresso e escreve para La República.

Umberto Eco é autor de vários textos teóricos fundamentais para a

compreensão da obra de arte contemporânea, tais como Obra Aberta (1962), A

50

Estrutura Ausente (1968) e Lector in Fábula (1979). Em 1980, Eco fez sua primeira

experiência como romancista, com a publicação de O nome da rosa, ao qual se

seguiram outros cincos romances: O Pêndulo de Foucault (1988), A ilha do dia

anterior (1994), Baudolino (2000), A Misteriosa Chama da Rainha Loana (2005) e O

Cemitério de Praga (2010). Seu caminho filosófico teve impulso com a ajuda de Luigi

Pareyson, na Itália. Concentrou-se nos estudos sobre a estética do período

medieval, principalmente aos trabalhos de Santo Tomás de Aquino, e defendia

ardorosamente a dedicação deste membro da Igreja Católica às questões do belo.

Nos anos 60, Eco se dedica às pesquisas em torno da arte poética atual e a

diversidade de significados, que têm como fruto a edição do livro de ensaios Obra

Aberta (1962). Nos anos 70, Umberto Eco viu suas veredas acadêmicas serem

cruzadas pela expressão ‘Semiótica’, descoberta no filósofo John Locke, aderindo

assim à concepção anglo-saxônica desta disciplina, deixando de lado a visão

semiológica adotada por Saussure. Ele busca também sua visão renovada da

semiótica nos conceitos de Kant e Peirce, o que se pode verificar nas obras As

Formas do Conteúdo (1971) e Tratado Geral de Semiótica (1975). Deste viés

teórico, Eco parte para a discussão sobre o esforço de interpretação textual por

parte dos leitores, aprofundada em seus estudos Lector in fabula (1979) e Os limites

da interpretação (1990). Nestas obras ele sustenta a visão de que as criações

literárias necessitam imprescindivelmente da colaboração dos que as leem para

serem compreendidas.

Em muitas entrevistas, esse intelectual italiano afirma que fica entediado se

não faz muitas coisas ao mesmo tempo. Tradutor de textos ingleses e franceses do

século XIX, é autor de mais de 200 prefácios. Atualmente assina a curadoria de um

projeto artístico no Museu do Louvre, em Paris, juntando arte, história e música. A

programação inclui um olhar “contemporâneo” sobre as coleções clássicas do

museu e uma série de espetáculos que dialogam com seu trabalho. Graças ao

convite, Eco passa os meses de novembro e dezembro na capital francesa, onde

presidiu um colóquio sobre a vanguarda italiana dos anos 1960 – afinal, foi baseado

no contato com artistas como Lucio Fontana, Alberto Burri e Piero Manzoni que

elaborou o conceito de “obra aberta” (1962), seu modelo teórico para explicar a arte

contemporânea.

51

Eco é, indiscutivelmente, um homem dos livros. A quase totalidade de seus

escritos romanescos ou teóricos fala de livros, sobre livros ou sobre bibliotecas.

52

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS TRECHOS SELECIONADOS

Neste capítulo, primeiramente, analisaremos as relações dialógicas com trechos

literários e, em sequência, as relações dialógicas com o contexto social e, por fim,

analisaremos as relações dialógicas com a ciência médica (Escala de Coma de

Glasgow). Nossa análise dos trechos selecionados será feita a partir da consideração

da abordagem plurilinguística do romance por Bakhtin e o Círculo, que valoriza um

diferente olhar para os estudos literários, linguísticos e filosóficos da linguagem.

Com isso, buscamos nas análises a caracterização do romance A Misteriosa

Chama da Rainha Loana de Umberto Eco, como um romance dialógico, por apresentar

combinações de diferentes linguagens e estilos. Referente a esta questão, conforme

Bakhtin (1998, p. 106), introduzido no romance, o plurilinguismo é submetido a uma

elaboração literária. Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes

sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se

organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso, expressando a posição

sócio ideológica do autor no seio dos diferentes discursos de sua época.

Bakhtin (2004, p. 31) aponta que um enunciado está acabado quando permite

uma resposta de outro – portanto, o que é constitutivo do enunciado é que ele não

existe fora das relações dialógicas. Nele estão sempre presentes ecos e lembranças

de outros enunciados, com os quais ele conta ou os quais ele refuta, confirma,

completa, pressupõe e assim por diante. Um enunciado ocupa sempre uma posição

numa esfera de comunicação sobre dado problema. Dessa forma, as relações

dialógicas levam às mais variadas leituras.

Percebemos a partir das análises, que a peculiaridade básica do romance de

Umberto Eco passa a ser o diálogo instaurado por linguagens diversas,

descentralizadoras. Desse modo, o plurilinguismo, em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana configura-se como uma proposta de mudança dos estudos estritamente

literários para os estudos discursivo-literários. Assim, é uma noção ampla que

possibilita a transposição para os estudos linguístico-discursivos, sem perda de sua

excelência, uma vez que se incorpora à concepção de linguagem como

essencialmente heterogênea e dinâmica.

53

Dessa forma, se as relações dialógicas são características que estão no interior

do próprio discurso, devemos destacar que o romance ilustrado A Misteriosa Chama

da Rainha Loana de Umberto Eco, tratou de utilizá-las como elemento formal distintivo

de sua estética. Nesse sentido, essa obra se constitui de verdadeira rede dotada de

referências a obras vindas de diferentes contextos e em diferentes situações

dialógicas.

3.1 Relações dialógicas com trechos literários

Neste tópico, analisaremos as relações dialógicas existentes em doze trechos

selecionados, como corpus, do primeiro capítulo, da primeira parte, em A Misteriosa

Chama da Rainha Loana.

3.1.1 Trecho 01

...Era um estranho sonho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se não visse, mas ouvisse vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda não via nada, exceto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia. Bruges, disse a mim mesmo, estava em Bruges, já estivera em Bruges, a morta? Onde a névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende desbeiçada das fachadas como um arrás... (UMBERTO ECO, 2005, p. 09).

A obra Bruges La Morte (1892) de Georges Rodenbach é um romance

simbolista, em que a cidade belga aparece retratada como símbolo da decadência,

gerando uma cena de imagem mítica "Cidade Morta". Podemos perceber como é

impressionante, a forma como Umberto Eco faz alusão a esta obra em A Misteriosa

Chama da Rainha Loana, referência que fica explícita quando refletimos sobre os

substantivos: canais, paisagens, torres, cidade, tumba, bruma e fachadas. Sobre o

tom valorativo dos adjetivos: morta, cinzenta, triste, florida e desbeiçada. E o

posicionamento ético e estético que as escolhas desses termos trazem para o

enunciado, dando-lhe sentido. Substantivos e adjetivos que, assim como

54

Rodenbach, Eco utiliza ao longo de seu texto no primeiro capítulo em A Misteriosa

Chama da Rainha Loana.

"Bruges, a Morta" (1892) conta-nos os últimos anos da vida de Hugo, um

viúvo atormentado e apaixonado que, após a morte de sua amada e jovem esposa,

sepulta-se na cidade de Bruges, entre torres cinzentas, canais pardacentos e

incontáveis sinos que todos os crepúsculos tocam a rebate pelos mortos. Este

trecho se assemelha muito ao enclausuramento de Yambo na casa de campo da

família em Solara, depositária dos objetos do seu passado, e que corresponde à sua

“caverna da memória”. A relação dialógica que se estabelece entre a citação de

Bruges la Morte (1892) com o estado de coma da personagem evidencia a solidão, o

estranhamento em que ela se encontra no estado de coma.

A narrativa de Rodenbach descreve lugares reais em Bruges, incluindo os

nomes de obras de arte, igrejas e ruas, para a configuração da apresentação em

prosa, influência do caráter não ficcional das fotografias sobre o grau de realidade

dos personagens fictícios. O que é interessante aqui é a justaposição de ficção com

não ficção em forma de fotografia. Essa justaposição também está presente

dialogicamente em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, manifestada pela imersão

de imagens compostas por produtos culturais que marcaram a infância de Yambo,

como revistas em quadrinhos, desenhos infantis, caixas de efervescentes, latas de

chocolate, selos, romances, etc.

Nas três últimas linhas do trecho em análise, Umberto Eco já não se refere

mais ao romance simbolista Bruges La Morte (1892). O que podemos notar é uma

compilação de partes de poemas escritos por Georges Rodenbach, como se fossem

um texto original: Onde a névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha?

Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma

pende desbeiçada das fachadas como um arrás... No estado de coma, a

semiconsciência não permite ao paciente Yambo a distinção entre eu e outro, entre

o discurso do eu e o discurso do outro, evidenciando uma quase simbiose entre a

personagem de Rodenbach e Yambo.

55

3.1.2 Trecho 02

...Minha alma limpava os vidros do bonde para afogar-se na névoa móvel opaca, que embrulhava os rumores, e fazia surgirem fantasmas sem forma... Por fim chegava a um despenhadeiro enorme e via uma figura altíssima, envolta num sudário, o rosto de um condor imaculado de neve. Eu me chamo Arthur Gordon Pym...(dos sinais. Névoa, minha incontaminada irmã... Uma névoa espessa, IDEM, p. 09).

O substantivo “névoa”, metáfora de referência do estado de coma de Yambo,

no trecho acima, já é um signo/palavra dialógico, uma vez que muitos dos autores,

até mesmo os citados por Umberto Eco, já o utilizou para referenciar comparações

de seus personagens em diversas situações discursivas, ou mesmo para tematizar

seus escritos. Assim, existe uma série de ideias e referências a textos que dialogam,

direta ou indiretamente, a outros textos.

Uma referência direta ao romance escrito por Edgar Alan Poe pode ser

notada, a partir do sintagma “Eu me chamo Arthur Gordon Pym” da Narrativa de

Arthur Gordon Pym de Nantucket (1838), que aparece destacado no final do quinto

parágrafo da página 09 do romance de Eco. Contudo, o uso do dialogismo não é a

principal relação existente entre a obra de Umberto Eco e a obra de Poe. A principal

característica que aproxima A Misteriosa Chama da Rainha Loana da obra de Edgar

Alan Poe é a utilização de inúmeras ilustrações que permitem a contextualização

dos principais fatos históricos ocorridos em décadas anteriores ao ano de publicação

das duas narrativas.

3.1.3 Trecho 03

...Mastigava a névoa. Os fantasmas passavam, tocavam-me, desvaneciam-se. As luzinhas longe luziam como fogos-fátuos num campo-santo...

Alguém caminha a meu lado sem rumor, como se tivesse os pés descalços, caminha sem saltos, sem sapatos, sem sandálias, uma faixa de névoa me desliza sobre a face, uma frota de bêbados grita lá embaixo, no fundo da balsa. A balsa? Não sou eu quem diz, são as vozes...(ECO, 2005, p. 09).

56

Nos primeiros parágrafos do primeiro capítulo de A Misteriosa Chama da

Rainha Loana, podem-se notar diferentes situações de sujeitos vividas em outras

obras, mas que se assemelham de uma forma impressionante ao personagem

Yambo da obra de Eco. Essas situações são percebidas pela quebra de expectativa

do leitor, ao se deparar em cada parágrafo com um trecho de uma obra diferente.

São situações que evidenciam a forma dialógica do texto de Umberto Eco, em A

Misteriosa Chama da Rainha Loana.

No trecho em análise, por exemplo, Eco cita Gabriele D´Annunzio em seu

Notturno (1921), obra que representou uma semelhança substancial entre diferentes

níveis de realidade, com imagens que aparecem como elementos ou memórias, que

assim como a obra de Umberto Eco, retratam épocas, páginas autobiográficas cujo

tema principal é fornecido pela evocação nostálgica da experiência passada. O

protagonista fica cego em um acidente de avião, seus feitos heroicos são também

retratados em um silêncio profundo, sua “névoa”, é totalmente subjetiva, seu

processo de recuperação é aparentemente antiquado. Notturno (1921) é um diário

de luz e escuridão, uma jornada labiríntica através do tempo como a memória,

fantasia e alucinação.

Podemos observar algumas características de Notturno, que são semelhantes

às de A Misteriosa Chama da Rainha Loana: Ambas, as obras são divididas em três

partes; exploram como um dos temas uma antiga paixão do protagonista; dá origem

a um intercâmbio generalizado entre alucinação real e não real. O poeta é sempre

descrito como tal, e sua mente é sempre conservada firme; mistura acontecimentos

passados e presentes; ambas, as obras citam Benito Mussolini.

3.1.4 Trecho 04

...A névoa chega sobre pequenas patas de gato... Era uma névoa que parecia que tinham sumido com o mundo. (IDEM, 20 p. 09).

Novamente, temos o substantivo “névoa”. Aqui explorado pela dramaticidade

que a palavra “neblina” pode significar em um romance. Acreditamos que a escolha

deste substantivo para metaforizar, representar o estado de coma do protagonista

57

em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, não foi diferente. Ao utilizar esse

substantivo, Umberto Eco valoriza aspectos como imagem, conceito e experiência

de nevoeiro que ele cria na mente do leitor ao ler o seu texto. As relações dialógicas

entre esses aspectos, quando se harmonizam, permitem ao leitor preencher as

lacunas do texto e dar-lhe o acabamento, dentro do contexto inserido pelo autor.

Dessa forma, podemos dizer que Eco, quando cita o poema Nevoeiro (1962)

de Carl Sandburg, quer dar ao seu texto o mesmo movimento encontrado nas vinte

e duas palavras desse poema, para isso, utiliza inúmeras figuras de linguagem,

dentre as quais se destacam: metáfora, comparação, assonância, personificação,

dentre outras. Vejamos como o autor de A Misteriosa Chama da Rainha Loana

poderá ter pensado o movimento para o seu texto, a pertinência da comparação.

Afinal, gatos e neblina são iguais em ser capaz de se mover em silêncio e de forma

fluida, e também ao serem envolvidos em mistério. O gato, em especial, como um

ser imprevisível, misterioso, com todo poder mítico, assemelha-se “à misteriosa

chama”, aos mistérios do texto de Eco.

O Nevoeiro de Carl Sandburg vem da coisa mais vasta sobre a superfície do

planeta - a partir do oceano, das profundezas. Pode chegar em "pequenos" pés,

mas cresce em altura. Levanta-se alto o suficiente para cobrir uma cidade. Quanto à

“névoa” de Umberto Eco, o estado de coma de Yambo pode variar de um quadro

clínico “estável” para um quadro clínico “grave”, e até chegar a “morte”. Sua perda

de memória pode ser resgatada com uma simples atividade, ou ser necessário todo

o contexto de sua vida passada e, de repente, a sua partida tão rápida quanto sua

chegada foi gradual, a neblina se foi, está em sua maneira de olhar sobre os outros,

e mantê-los também em seu encalço. A rapidez da partida da “névoa”, do estado de

coma é sinalizada por uma metáfora no fim da obra.

3.1.5 Trecho 05

...Maigret mergulha em uma névoa tão densa que não consegue ver nem onde põe os pés... A névoa pulula de formas humanas, fervilha de uma vida intensa e misteriosa. Maigret? Elementar, meu caro Watson, são dez negrinhos, é na névoa que desaparece o cão dos Baskervilles. A cortina de vapor cinza gradualmente perdia seu matiz cinzento, o calor da água era extremo, e sua nuança leitosa mais

58

intensa que nunca... Então nos precipitamos nos abraços da catarata onde um abismo abriu-se para nos engolir... (ECO, 2005, p. 10).

No trecho acima, há referência ao escritor belga Georges Simenon, ao citar

seu principal personagem, o comissário da polícia francesa Jules Maigret,

comissário que, na época, decide escrever suas memórias para deixar um registro

da sua versão dos fatos, já que Simenon, ao torná-lo personagem de seus livros,

acaba ficcionalizando sua vida além da conta. Pode-se dizer que há relações

dialógicas entre as narrativas de Simenon, nas descrições de suas memórias,

utilizando, para isso, o personagem Maigret e a narrativa de Umberto Eco, que

ficcionaliza seu passado na figura de seu personagem Yambo. Tanto nesta

narrativa, como naquela, existem enredos com uma mística existencial impregnada

aos personagens. Nelas, há sempre um nevoeiro a ser dissipado sob os olhos

cúmplices do leitor.

Em seguida, temos referência ao texto de Arthur Conan Doyle, em O Cão dos

Baskervilles (1902), tendo como um de seus protagonistas o Dr. Watson,

personagem da obra de Conan Doyle à qual Umberto Eco faz referência direta no

trecho em análise. Umas das prováveis causas dessa Relação Dialógica entre as

duas obras poderá ser pelo fato de a obra de Conan ser uma história contada em

partes, assim como os outros casos de Relações Dialógicas analisadas, tais como:

explorar o substantivo masculino nevoeiro e o feminino “cinza”, gerando uma relação

semântica entre os enunciados; os acontecimentos dos fatos, sempre, em locais

escuros e subjetivos; uso constante de figuras de linguagem; além de informações

sobre a época em que transcorre a história e sobre o autor, enriquecem as

narrativas, reproduções artísticas e ilustrações que marcaram os fatos históricos,

ocorridos na época.

Outras vozes aparecem no trecho da obra de Umberto Eco, como o romance

Os Dez Negrinhos de Agatha Mary Clarissa Christie, publicado em 1939. Dividida

em partes, a obra de Agatha Christie explora a temática de um poema, semelhante à

de Eco, dá vida a personagens famosos, gera suspense por utilizar cenários

subjetivos. As Relações Dialógicas neste trecho de A Misteriosa Chama da Rainha

Loana, também deriva do universo de Marcel Duchamp, em As Máquinas

Celibatárias (1916), obra em que o autor dissolve com cuidado qualquer fronteira

59

entre as narrativas históricas e fabuladas, entre a autobiografia e a impostura. E o

faz menos pela óbvia conclusão de que “tudo é ficção” do que para criar uma dúvida

que se instala permanentemente entre ele e seus leitores.

3.1.6 Trecho 06

...Ouvia gente que falava a meu redor, queria gritar e avisá-los de que estava ali. Havia um zumbido contínuo, como se fosse devorado por máquinas singulares de dentes pontiagudos. Estava na colônia penal. Sentia um peso sobre a cabeça, como se me tivessem enfiado a máscara de ferro. Tinha a impressão de divisar luzes azuis... (IDEM, p. 10).

Novamente, neste trecho, conforme já analisado anteriormente, há referência

a Marcel Duchamp e suas Máquinas Celibatárias. Em seguida, Umberto Eco cita a

obra A Colônia Penal (1914), de Franz Kafka, provavelmente por utilizar nos textos

de A Misteriosa Chama da Rainha Loana, uma estratégia semelhante à de Kafka: a

busca contextual de seu texto em outras vozes, a representação metafórica dos

fatos históricos acontecidos na Segunda Guerra Mundial. Para ele a reflexão pune a

consciência daqueles que foram responsáveis por ações desastrosas em um

determinado período de tempo.

Semelhante às obras de Kafka, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, deverá

ser lida a partir de seu conteúdo histórico, visando descobrir sua eventual

criatividade literária, leitura com ponto de vista dialético, que não reduz à mediação

de seu próprio tempo. Tanto na obra de Kafka, quanto na obra de Eco, o arcaico não

pode simplesmente ser colocado de lado, pensando que ele não mais irá nos

incomodar. Nas duas obras há uma relação com o mundo mediada pelos

acontecimentos ficcionais que sofrem a interferência de um pensar humano em meio

a nossa existência.

No entanto, a Relação Dialógica que mais se relaciona ao texto de Umberto

Eco, no trecho em análise, é quando este autor cita Alexandre Dumas, referindo-se

a sua obra O Homem da máscara de Ferro (1939), obra que, assim como A

Misteriosa Chama da Rainha Loana, demonstra em seu texto um grande interesse

do autor em explorar como temática a memória de seu protagonista. Além de

60

retomar fatos históricos e temas aparentemente corriqueiros, esses autores buscam

a reconstituição de fatos do passado, quer coletivos ou individuais, captados em

universos fictícios ou reais.

Dessa forma, podemos dizer que tanto no texto de Dumas, quanto no texto

de Eco, não há como o leitor se desprender de uma persistente paisagem memorial,

construída pelos autores e evocada após cada leitura. Eles desenvolvem seus

enredos com diversos quadros de manifestações culturais, ambientes e fatos

históricos, recuperando todo um conjunto de memória individual ou coletiva, com

muito detalhe. Nos dois romances o leitor “viaja” por lugares surpreendentes e

conhece personagens históricas, tanto reais como também da imaginação dos

autores. Assim, podemos dizer que Alexandre Dumas e Umberto Eco criaram um

discurso que dialoga com sua época e o passado histórico, influenciando seus

leitores ao apresentar seus personagens marcantes.

3.1.7 Trecho 07

...A névoa retorna, as vozes na névoa, as vozes sobre a névoa. Seltsam, im Nebel zu wandern! Que língua é? Parecia que nadava no mar, sentia-me próximo à praia, mas não conseguia chegar lá. Ninguém me via e a maré me levava embora... (ECO, 2005, p. 10).

No trecho acima, Umberto Eco faz referência ao poema Im Nebel (1961) de

Hermann Hesse, ao citar o primeiro verso Seltsam, im Nebel zu wandern! (Estranho,

caminhar por entre a neblina), poema que ao longo de seus versos e estrofes

descreve, por meio de metáforas, a forma dramática e solitária em que vive um

sujeito em pleno nevoeiro, em plena solidão, afastado de uma vida que antes era

repleta de amigos e de muita luz. Podemos dizer que Yambo, protagonista de A

Misteriosa Chama da Rainha Loana, também, vive esse drama, afastado de todos,

inclusive, até mesmo, de parte de sua vida, por viver uma intensa Névoa, um coma

profundo que consome parte de sua memória semântica.

Essa Relação Dialógica entre o texto de Hermann Hesse e o texto de Eco fica

quase que certa, se considerarmos que conforme a biografia de Hesse, ele foi um

imigrante na Suíça em 1912, trabalhando como livreiro e operário, dono de uma

61

cultura sólida e autodidata. Coincidência ou não, o sujeito Yambo,

autor/personagem, protagonista da obra de Eco, possui essas mesmas

características: um livreiro dono de um antiquário de livros. Hesse, também,

escreveu ensaios irônicos sobre sua alienação de escrever, as autobiografias

simuladas: História de sua Vida Resumidamente Dita.

3.1.8 Trecho 08

...Não me ponha em apuros, sou apenas um médico. E depois estamos em abril, não posso mostrá-la. Hoje é dia 25 de abril. “Abril é o mais cruel dos meses.” “Não sou muito culto, mas creio que é uma citação. Podia dizer que hoje é o dia da Libertação. Sabe em que ano estamos?”... (IDEM, p. 13).

Abril é o mais cruel dos meses (1922), poema escrito por Thomas Stearns

Eliot, provavelmente referenciado no texto de A Misteriosa Chama da Rainha Loana

para, a partir da busca do leitor pelo entendimento do texto de Umberto Eco, que ele

possa compreender, nos escritos desse autor, a mistura de memória e desejo.

Conforme o estudo da capa feito por BERT-SANTOS, neste mês, o inverno é

mais intenso, envolve a terra em neve deslembrada, nutre o drama de um sujeito

subjetivo, na busca por reativar parte de sua memória que a neve, o coma, apagou.

Para isso, passa em revista por si mesma, caminha sobre os sonhos caídos, dobra

as esquinas da falta de senso. Ruas limpas de lembranças. Desencaminha-se. Cai

no endereço das coisas suas, que pouco ou nada conhece.

Comparar escritos antigos sobre situações que ainda parecem as mesmas,

dado o estado de memória em que se encontra o sujeito Yambo, dentro das devidas

proporções, é sempre interessante, para dizer nem que seja o mínimo sobre um

passado recente que ficou perdido em sua memória.

Esse abril nos faz ver que, por vezes, apenas se quer uma adequação de si

mesmo com o próprio mundo, sem que estejam em questão felicidade/infelicidade.

Essa adequação ao nosso próprio universo é, em algumas situações, a mais

custosa, mas também a que mais vale a pena.

62

3.1.9 Trecho 09

...Identifiquei dois objetos, um com certeza se chama dentifrício e o outro escova de dentes. Preciso começar com o dentifrício e espremer o tubinho. Agradabilíssima sensação, deveria fazê-lo mais vezes, porém a certa altura é preciso parar, aquela pasta branca no começo faz flop, como uma bolha, mas depois sai toda, como le serpent qui danse. Não espremer mais, senão vai fazer como Broglio com os stracchini. Quem é Broglio?... (ECO 2005, p. 15).

Em Le serpent qui danse (1962) Charles Baudelare vive sua primeira

inspiração sensorial. O poeta descobre prazeres carnais até então nunca

experimentados, descreve a mulher com todo o seu poder de sedução: olhar armado

de muita luz e graça, cabelos perfumados, pupilas irresistíveis, mulata enamorada

com uma mistura de atriz e prostituta. Em Le serpent qui danse (1962) de Baudelare

há a descoberta sensorial da mulher. Já em A Misteriosa Chama da Rainha Loana

existe a descoberta de si mesmo, por Yambo, protagonista que vive, no texto de

Eco, a busca por sua identidade, a recuperação de parte de sua memória semântica,

sequela deixada por duas crises intensas de coma.

No sintagma Le serpent qui danse, Umberto Eco, dialogicamente, faz alusão

ao poema de Charles-Pierre Baudelaire, escritor parisiense, considerado um dos

poetas mais interessantes do século XIX. Provavelmente essa Relação Dialógica

entre o texto de Eco e o de Baudelaire se sustenta, no trecho em estudo, pelo fato

de o sujeito Yambo, protagonista da obra de Eco, viver experiências sensoriais

simples como a escovação dos dentes, processo que, no contexto do trecho

analisado, está sendo utilizado, pelo médico Gratarolo, personagem da obra, como

análise clínica de seu paciente.

Tanto Charles Baudelare quanto Umberto Eco são influenciados em suas

obras pelo escritor norte americano Edgar Allan Poe, e talvez esteja aí a

similaridade entre os dois textos. Ambos os escritores exploram em seus textos uma

variedade de assuntos, seja na arte, na poesia ou mesmo na história do mundo e de

suas próprias vidas. Bem como, o jogo com a musicalidade das palavras, na

produção semântica de sentido, inúmeras figuras de linguagem. Para o poema de

Baudelare a boca é uma parte muito sensual do corpo. Entre dentes e da boca pode

63

ser imaginado ter um beijo. Os dentes são a barreira para atravessar, porque os

dentes de cobras são venenosos. Esse pode ser o principal motivo de citação, no

trecho em estudo, de Le serpent qui danse (1962).

3.1.10 Trecho 10

...A pasta tem um ótimo sabor. Ótimo, disse o duque. É um wellerismo. Estes são, então, os sabores: algo que lhe acaricia a língua, mas também o palato, porém quem percebe os sabores é a língua. Sabor de menta – Y la hierbabuena, a las cinco de la tarde... Decidi e fiz o que todos fazem nesses casos, rapidamente e sem pensar muito: escovei primeiro para cima e para baixo, depois da esquerda para a direita, depois o céu da boca... (IDEM, p. 15).

O trecho acima faz referência ao poeta espanhol Federico Garcia Lorca e seu

poema A las cinco de la tarde (1934). Assim como a análise anterior, essa também

compõe o contexto de escovação dos dentes, atividade vivida por Yambo,

protagonista em A Misteriosa Chama da Rainha Loana e utilizada como análise por

seu médico Gratarolo. A Relação Dialógica presente no texto de Umberto Eco com o

texto de Garcia Lorca é o estado da memória no qual está imerso García Lorca

como uma apresentação das circunstâncias, e a Yambo não só pelas circunstâncias

nas quais está mergulhado, mas nas sensações dos sentidos do corpo, tais como:

paladar e tato e, principalmente, para resgate de atividades simples que ele

precisará fazer em sua rotina diária.

A las cinco de la tarde..., este verso não é apenas a simplicidade de uma

hora, mas também expressa um pôr do sol, o fim do dia. Este também é o fim da

vida para aqueles que morrem. No texto de Garcia Lorca é exatamente esta a sua

intencionalidade de sentido ao criar o poema, relatando a angústia da morte de um

amigo. Quando Eco escreve Decidi e fiz o que todos fazem nesses casos,

rapidamente e sem pensar muito, ele implicitamente deixa a entender que, assim

como no poema de Garcia Lorca, a hora era exatamente aquela e que seu

personagem deveria praticar a atividade da melhor forma possível, porque não só

como uma necessidade básica da vida, escovar os dentes, naquele momento,

64

representava um resgate de todas as atividades simples, que ele perdera e

precisava resgatar.

3.1.11 Trecho 11

... Reconheci com segurança as seis primeiras cores, vermelho, amarelo, verde e assim por diante. Disse naturalmente que A noir, E blanc, I rouge, U vert, Obleu, voyelles, je dirais quelque jour vos naissances latentes, mas percebi que o poeta, ou quem falava em seu nome, mentia. O que quer dizer que A é preto? Aliás, era como descobrir as cores pela primeira vez: o vermelho era muito alegre, vermelho fogo, mas também muito forte – não, talvez o amarelo fosse mais forte, como uma luz que se acendesse de repente diante de meus olhos. E o verde me dava uma sensação de paz. O problema chegou com os outros quadradinhos. O que é isso? Verde, dizia eu, mas Gratarolo insistia, que tipo de verde, em que sentido é diferente desse outro?... (ECO 2005, p. 26).

No trecho acima, percebemos a Relação Discursiva do texto de Umberto Eco

com o poema Voyelles (1871) do poeta francês Jean Nicholas Arthur Rimbaud,

percebida na citação do primeiro verso do poema Ribaldiano: A noir, E blanc, I

rouge, U vert,Obleu, voyelles, je dirais quelque jour vos naissances latentes. Vemos,

então, que da mesma forma que Rimbaud, Eco evidencia em A Misteriosa Chama

da Rainha Loana a associação de Yambo, seu protagonista, com as imagens

decorrentes do som e suas relações com as cores em um desdobramento com

sentidos, tais como: visão, audição e tato, todos em um jogo de percepções

múltiplas, na busca de sua identidade perdida.

Tanto a obra de Eco, quanto o poema de Rimbaud, utilizam estratégias com

metáforas que possibilitam a iconização sonora e visual das imagens advindas de

objetos despertados pelas cores. Por isso, ambos os textos possibilitam uma

pluralidade de leituras. Rimbaud procura criar, com suas vogais coloridas, uma

imensidão de sentidos, dentro de contextos que retratam o simbolismo francês. Eco,

por sua vez, dialogicamente, faz inúmeras associações em seu romance ilustrado,

revelando sua sabedoria em captar, por intermédio de dialogismos, a sensibilidade,

65

as cores, as imagens e os sons dos signos ideológicos de cada palavra

referenciada.

Os textos de Rimbaud são considerados, por muitos críticos, como metáfora

do ato criativo, e a partir dessa consideração, identificada nas pesquisas feitas para

realizar esta análise, promovemos a percepção das semelhanças entre o poema

Voyelles e a obra A Misteriosa Chama da Rainha Loana, que também é repleta de

metáforas, associações de imagens, vidência poética do autor, exploração do campo

das sensações e descrições imagéticas vindas de sinestesias recriadas. Nesta obra,

especificamente no trecho em estudo, há signos personificados que poderão

promover a familiarização do leitor com o texto, ou, até mesmo, aproximar o texto do

leitor atual.

As estratégias utilizadas tanto pelo poeta francês Jean Nicholas Arthur

Rimbaud, quanto pelo escritor Umberto Eco recorrem a metáforas e possibilitam a

iconização sonora e visual de imagens descritas. Há, de fato, nos dois textos,

surpreendentes correspondências entre o campo das sensações explorado por

imagens que suscita no leitor várias interpretações. Dessa forma, podemos dizer

que os dois textos revelam suas metáforas e imagens de forma similar, seguindo um

princípio puramente associativo e não um princípio lógico.

3.1.12 Trecho 12

“Escreva alguma coisa de sua vida”, disse Paola. “O que fazia aos vinte anos?” Escrevi: “Tinha vinte anos. Não permitirei que ninguém diga que essa é a mais bela idade da vida.” O doutor me perguntou qual a primeira coisa que me veio à mente quando acordei. Escrevi: “Quando Gregor Samsa despertou certa manhã encontrou-se em seu leito transformado num imenso inseto.” “Acho que já chega, doutor”, disse Paola. “Não o deixe seguir demais com essas cadeias associativas, senão acaba ficando doido.” “Sim, e agora lhes pareço bem por acaso?” Quase num repente Gratarolo ordenou: “E agora assine, sem pensar, como se fosse um cheque.” Sem pensar, tracei um “GBBodoni”, com o esvoaçar final e depois um pontinho redondo sobre o i. “Viu? Sua cabeça não sabe quem é, mas sua mão sim. Era previsível...” (IDEM, p. 27).

66

No trecho acima, podemos perceber pela citação de Umberto Eco, “Quando

Gregor Samsa despertou certa manhã encontrou-se em seu leito transformado num

imenso inseto”, a relação dialógica travada em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana, com a obra A Metamorfose (1915) de Franz Kafka. No texto de Kafka o

protagonista acorda e se vê num pesadelo, numa espécie de inversão criada pelo

autor, deixando o leitor diante de um caixeiro viajante, o famoso Gregor Samsa,

transformado em um imenso inseto. A partir daí, a história é narrada com um

realismo inesperado, com associações do que não parece verdadeiro e do senso de

humor ao que é sinistro e cruel à condição humana.

Podemos analisar a semelhança entre os textos de A Metamorfose (1915) e A

Misteriosa Chama da Rainha Loana pela inversão, também criada por Umberto Eco

da posição do clímax da narrativa que é trazido do fim para o início, ou seja, aquilo

que é narrado não caminha para o seu auge, mas inicia com ele. Eco inicia a obra já

com o imenso drama de seu protagonista, o de resgatar a perda de parte da

memória semântica de Yambo, consequência de um acidente que o deixou em dois

estados de coma fortíssimos. Outro fato que marca a Relação Dialógica entre as

obras, é que ambas as histórias são metáforas interessantes sobre a condição

humana e nossa relação com o próximo, sobre a relação familiar, trabalho e o

mundo.

Muitas vezes vivemos dramas semelhantes aos vividos por Yambo,

protagonista da obra de Eco, e, por Gregor Samsa, protagonista de Kafka. Às vezes,

tudo o que fomos, e ainda somos, é esquecido, fazendo-nos, assim, ser colocados

automaticamente em qualquer condição monstruosa, como forasteiros ou inimigos

de nós mesmos. A verdadeira metamorfose, a transformação, ocorre diária e

lentamente até o ponto em que nos vemos totalmente diferentes do que

costumávamos ser. Carregados pelo tempo, vivendo às pressas e em função de

algo, ou alguém, podemos nos transformar em seres que sobrevivem de migalhas,

entre exclusão e opressão.

Podemos travar relações dialógicas entre a obra de Kafka (1915), no trecho

em que o personagem Gregor Samsa, protagonista em A Metamorfose (1915), em

uma manhã, ao acordar para o trabalho, vê que se transformou num inseto horrível.

Como na obra de Eco (2005), quando em uma manhã, Yambo, protagonista em A

67

Misteriosa Chama da Rainha Loana, desperta e, depois de algumas avaliações

clínicas, descobre que não se lembra dos últimos trinta anos de sua existência.

As duas histórias não narram apenas a história de dois protagonistas, são,

sobretudo, histórias que alertam a sociedade sobre os comportamentos humanos e

sobre fatos sociais atemporais como acidentes, perda de memória, coma, dentre

outros. Nos dois textos são diversas as possibilidades de relações dialógicas que se

pode trazer para compor o sentido do enunciado, dependendo da memória

discursiva do leitor presumido, dentre elas, temos o discurso literário, político e

social.

3.2 Relações dialógicas com o contexto social

Umberto Eco possui um vasto repertório cultural, como um grande

conhecedor de música clássica, pintura e literatura. Percebemos na redação deste

estudo, até aqui, que Eco busca ao longo do romance, A Misteriosa Chama da

Rainha Loana, a discussão sobre a formação cultural do ser humano, ousamos

levantar esta hipótese como descrição deste tópico, pelo fato de o autor, na busca

pelas memórias de seu protagonista na obra, convidar-nos a uma reflexão sobre

diferentes textos, imagens, sons, a partir de inúmeras citações e referências

literárias, algumas com tanta precisão que poderão fazer parte do repertório de

leitura do leitor presumido.

Os períodos históricos que marcaram a vida do protagonista também são

relembrados, década de 30, crescimento do regime fascista, Segunda Guerra

Mundial, mas são nas referências dos romances, novelas, poemas e poesias, que

Umberto Eco atenta para as influências, principalmente do texto literário na

construção da identidade do ser humano. Não podemos nos esquecer de que, por

se tratar de um romance ilustrado, a obra é repleta de gravuras, capas de revistas,

ilustrações e capas de livros antigos, cartazes, embalagens, pôsteres e HQ’s, que

além de retratar uma determinada época, por ser uma obra autobiográfica, retrata

também a infância do autor.

Essas ilustrações constituem o tesouro de Yambo, protagonista da narrativa

de Eco, que vai guiando o resgate de sua memória, e com esse resgate

68

acontecimentos marcantes vão sendo revelados, amores antigos, amores perdidos

e, principalmente, a forma como a Segunda Guerra Mundial marcou a juventude

daquela época. Ao longo da narrativa, personagem e autor se misturam, é

impossível não perceber que há muito de Eco em Yambo, e o entusiasmo que o

autor consegue impor, nas vagas recordações de Yambo, provavelmente, só foi

possível em função do fato dele mesmo ter vivido muito do que é retratado em A

Misteriosa Chama da Rainha Loana.

Dentre os questionamentos mais importantes na obra, sempre estará aquele

com relação a quais elementos constituem o ser humano. O que faz com que

sejamos quem somos, tanto no campo individual, quanto no coletivo. Na busca entre

um e outro, Yambo empreende uma viagem por sua própria vida, uma verdadeira

viagem sensorial tentando reconstruir, em ordem cronológica seu eu perdido, suas

lembranças. É nesta viagem que Eco usa uma personagem que muitos analistas de

sua obra enxergam como uma manifestação do próprio autor. Yambo parece saber

sobre todos os assuntos, é um erudito, como o autor, cita de cor trechos de livros

famosos assim como os pensamentos dos grandes filósofos da humanidade.

Yambo fala de história, geografia, filosofia e arte com boa desenvoltura,

lembrando Umberto Eco que, além de grande conhecedor da filosofia, estuda

literatura, linguística e, mais especificamente, a Semiologia, sendo membro

catedrático da Escola Superior de Ciências Humanas da Universidade de Bolonha.

Ao fruir as relações dialógicas em A Misteriosa Chama da Rainha Loana,

Eco/Yambo se relaciona com o contexto que o cerca, neste sentido, ao entrar em

contato com os textos de outros autores, numa relação dialógica, e experimentam,

por meio da constituição de sentidos, um diálogo com a produção humana, ambos

se enxergam nela, enxergam o outro e o contexto social, do qual ela faz parte.

Quem sabe o estabelecimento dessas relações dialógicas na obra analisada,

seja a maneira de Umberto Eco comprovar, de forma prática, o que ele tantas vezes

discutiu, o fato de uma música, um livro, uma página de jornal, causarem impressões

tão profundas em alguém quanto um Da Vinci, desde que faça parte da identidade

cultural de um povo e constituam sentido entre a sociedade, na qual esses gêneros

textuais são veiculados, são gêneros comuns da cultura popular, são partes da

nossa identidade de povo. Eco várias vezes argumentou em seus trabalhos

69

acadêmicos que a arte popular não quer minimizar ou destronar a arte erudita; para

ele, esse tipo de arte é apenas mais uma manifestação do que é ser humano.

3.3 Relações dialógicas com a ciência médica: Escala de Coma de Glasgow

Segundo os estudos de BERTI-SANTOS, a obra inicia-se com um discurso

que remete ao discurso médico. O primeiro capítulo tem como título “O mais cruel

dos meses” e em seguida um diálogo em que se apresentam a voz de um médico e

a do paciente. Nosso objetivo, neste capítulo, é analisar os signos/palavras dos

trechos selecionados, relacionando-os com a Escala de Coma de Glasgow para

identificarmos as relações dialógicas entre a obra com a área médica. Tendo em

vista essa hipótese, vamos nos referir aqui a alguns estudos selecionados entre os

olhares de autores brasileiros e estrangeiros, que remetem ao uso da Escala de

Coma de Glasgow pelos médicos, ao assistirem a seus pacientes. Ao mencionar

esses trabalhos, o propósito não é o de fazer uma ampla revisão bibliográfica, mas,

sim, apresentar a utilização dessa Escala de Coma por Gratarolo, personagem

médico, ao analisar seu paciente Yambo, protagonista da obra.

Os autores, Dr. Graham Teasdale e Bryan J. Jennett Dr. Jennett e Bond em

seus artigos publicados em 1974, explicaram que é imperioso que os profissionais

médicos façam referências para variáveis que sejam confusas e observem as

tendências de cada pontuação, de cada indivíduo, do ponto de vista da avaliação

motora, verbal e de abertura dos olhos, ao avaliar resultados na Escala de Coma de

Glasgow. Curiosamente, são exatamente essas avaliações, que são percebidas na

análise que o médico Gratarolo faz em seu paciente Yambo. Mas em momento

algum na narrativa, é citado o uso da Escala de coma por esse médico. Essa

hipótese só fica clara aos olhos do leitor se ele tiver algum conhecimento prévio

dessa Escala e se estabelecer relação dos signos e dos procedimentos utilizados

pelo médico com os procedimentos a serem tomados, quando se utiliza a Escala de

Coma de Glasgow.

Segundo os autores citados, a consistência na aplicação da escala de coma

foi considerada como essencial para assegurar que o instrumento seja um indicador

válido da condição clínica do paciente. Portanto, esse instrumento é usado para

70

mensurar o nível de consciência, avaliando a capacidade do paciente em abrir os

olhos, comunicar-se verbalmente, obedecer a comandos e mover suas

extremidades. Podemos notar essa avaliação no texto de Eco, no final do primeiro

capítulo da primeira parte em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, quando o

médico Gratarolo analisa o nível de consciência de seu paciente Yambo, no que diz

respeito à sua capacidade de comunicação, movimentação e obediência a

comandos pré-determinados.

Conforme pesquisas feitas em sites e revistas digitais referendadas nas

referências bibliográficas deste estudo, na educação em ciências médicas, como

área de estudo e pesquisa, o paciente, quando em estado de coma, tem sido

assistido sob diferentes perspectivas, e os resultados dos estudos feitos até agora

são contraditórios, e não é possível estabelecer uma comparação direta entre eles

devido à variação entre as populações estudadas. Apesar destas limitações, vários

estudos concordam que a escala de Coma de Glasgow é um instrumento útil para

prever o prognóstico dos pacientes em estado de coma. Neste estudo, analisaremos

as falas de Gratarolo, relacionadas exclusivamente com a análise de seu paciente

em um estado de coma não traumático, e o procedimento médico para a

transformação dos resultados em um sistema de classificação nesta escala.

Desde a sua introdução em 1974 pelo Dr. Graham Teasdale e Bryan J.

Jennett Dr. Jennett e Bond, a Escala de Coma de Glasgow tem sido utilizada

amplamente na área médica. Vários clínicos a utilizam para comparação do

resultado funcional entre os diferentes grupos de pacientes com danos cerebrais, e,

mesmo em estudos de validação dessa escala como um medidor de funcionalidade.

São recomendadas várias avaliações, em três escalas, atribuindo um valor numérico

para cada aspecto de seus três componentes para obter uma única medida global e,

a partir desta medida, é provável que as condições do paciente tenham estabilizado.

Segundo os estudiosos do assunto, é recomendável que este procedimento seja

repetido até a escala se manter sem alterações de categoria para orientar os

familiares e cuidadores sobre as possibilidades de recuperação do paciente.

A seguir, analisaremos as relações dialógicas de sete trechos selecionados

como corpus no primeiro capítulo em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, com a

ciência médica.

71

3.3.1 Trecho 01

“E o senhor, como se chama?”

“Espera, está na ponta da língua.”

Tudo começou assim.

Era como se eu acordasse de um longo sono, e no entanto ainda estava suspenso em um cinza leitoso. Ou quem sabe não estava acordado, mas sonhando. Era um sonho estranho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se não visse, mas ouvisse vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda não via nada, exceto o fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia. Bruges, disse a mim mesmo, estava em Bruges, já estivera em Bruges a morta? Onde a névoa flutua entre as torres como incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende desbeiçadas fachadas como um arrás... (ECO, 2005, p. 9).

No trecho acima, Yambo, o protagonista de A Misteriosa Chama da Rainha

Loana demonstra estar na superfície do coma, em semiconsciência e em seguida

volta a entrar em coma, quando aparece o discurso citado em itálico, em resposta à

pergunta da semiconsciência. Uma compilação feita por Umberto Eco nas quatro

últimas linhas do trecho em análise, de partes do romance simbolista Bruges La

Morte (1892), escrito por Georges Rodenbach, como se fossem um texto original:

“Onde a névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade

cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende

desbeiçada das fachadas como um arrás”, que aos olhos do leitor, demonstra ser

uma mistura que o personagem faz de memória e realidade.

Sua consciência enevoada confunde memórias com a realidade, ouve as

vozes dos médicos e o que dizem essas vozes em sua mente confunde-se,

delirando, revivendo momentos; isso fica claro quando Yambo diz: E contavam que

eu ainda não via nada. Ele está em estado de semiconsciência, misturando suas

memórias com a fala do médico, e então entra em estado de coma novamente. Essa

passagem da lucidez ao estado mental confuso é representado pelo adjetivo

“enevoada”, como metáfora de coma, percebida ao longo de toda a obra de Eco, ora

percebida, por meio do adjetivo “enevoada”, ora pelo substantivo névoa.

72

3.3.2 Trecho 02

... Mastigava a névoa. Os fantasmas passavam, tocavam-me, desvaneciam-se. As luzinhas longe luziam como fogos-fátuos num campo-santo... Alguém caminha a meu lado sem rumor, como se tivesse os pés descalços, caminha sem saltos, sem sapatos, sem sandálias, uma faixa de névoa desliza sobre a face, uma frota de bêbados grita lá embaixo, no fundo da balsa. A balsa? Não sou eu quem diz, são as vozes. (ECO, 2005, p. 09).

No trecho acima, notamos momentos em que o personagem Yambo passa

por um processo de consciência e semiconsciência, momentos em que ele evoca

experiências passadas. Ousamos dizer que, por se tratar de um romance

autobiográfico, ao passar por momentos de alucinação, o Autor/personagem revive,

em sua memória, situação semelhante a sua, vivida pelo protagonista de Notturno

(1915) de Gabriele D´Annunzio, outro texto que, também, retrata a angústia de um

personagem em um grave estado de saúde. Todo o trecho em análise é uma citação

que, para o leitor presumido, constitui sentido para o entendimento da obra de

Umberto Eco, pois ao pesquisar sobre tal citação, esse leitor verá que ambos os

personagens vivem em um silêncio profundo, fechados consigo mesmo, um estado

de “névoa”, ora mais densa, ora mais branda, e que ambos são assistidos por um

médico.

Em seguida, sai do estado de coma e vai para a superfície, percebida pelo

pronome indefinido “alguém”, indicando o pensamento da personagem, ao descrever

os movimentos dos profissionais que o assistiam. Podemos perceber pelo uso da

conjunção “como”, no sentido de “conforme”, que eles não estavam descalços e

usavam sapatilhas de pano nos pés, procedimento a ser seguido em um ambiente

de UTI. Esse uso de sapatilha é reforçado pelas expressões: sem saltos, sem

sapatos, sem sandálias, mas também, em seguida, ele descreve: uma faixa de

névoa desliza sobre a face, expressão que poderá estar relacionada ao ruído

deslizante da sapatilha no chão. De repente, em um estado mais consciente, entra

sua voz e ele fala: A balsa? Não sou eu quem diz, são as vozes.

73

3.3.3 Trecho 03

Entretanto de vez em quando era como se abrisse os olhos, e visse relâmpagos. Ouvia as vozes: “Não é um coma propriamente dito, senhora... Não, não pense num eletroencefalograma plano, por caridade... Existe reatividade..,”

Alguém me projetava uma luz nos olhos, mas depois da luz era de novo o escuro. Sentia a picada de uma agulha, de alguma parte. “Viu, tem mobilidade...”

Ouvia gente que falava ao meu redor, queria gritar e avisá-los de que estava ali. Havia um zumbido contínuo, como se fosse devorado por máquinas singulares de dentes pontiagudos (IDEM, p. 10).

Nos trechos acima, o personagem Yambo relata ouvir as vozes dos médicos,

principalmente a de Gratarolo, personagem médico de Umberto Eco em A Misteriosa

Chama da Rainha Loana, ao fornecer para Paola, esposa de Yambo, um parecer

clínico. A voz de Yambo está pressuposta na flexão do verbo “abrir” no pretérito

imperfeito do subjuntivo e a voz do médico Gratarolo e a presença de Paola, estão

pressupostas na expressão em discurso direto desse médico: “Não é um coma

propriamente dito, senhora... Não, não pense num eletroencefalograma plano, por

caridade... Existe reatividade...”.

Nos trechos, em análise, o personagem em coma percebe movimentos, ouve

falas e escuta os sons dos aparelhos cardíacos. Ouve, mas não consegue falar,

dizer que está ouvindo, está ali, marca sua impotência, seu estado desesperador.

Uma constante irregularidade no estado de coma do personagem está presente em

toda a obra e esse estado clínico do paciente se revela por toda a trama.

3.3.4 Trecho 04

“Apresenta assimetria dos diâmetros pupilares.” Tinha fragmentos de pensamentos, decerto estava acordando, mas não podia me mover. Se pelo menos conseguisse ficar acordado. Dormi de novo? Horas, dias, séculos?

74

Alguém me incomodava com uma luz intermitente, com a vibração de um diapasão, era como se me tivessem posto um vidro de mostarda debaixo do nariz, depois um dente de alho.

Uma outra luz, mais leve. Parece que ouço, através da névoa, o som das gaitas escocesas que se renova no brejo. Outro longo sono, talvez. Depois uma clareada, pareço estar num copo de água e anis... (ECO, 2005, p. 11).

No primeiro trecho acima, Observamos o discurso direto marcado por aspas,

introduzindo a fala do médico realizando um exame de AVC (Acidente Vascular

Cerebral) ouvido pelo paciente. Em seguida, essa fala mistura-se com seus

pensamentos: Tinha fragmentos de pensamentos, decerto estava acordando, mas

não podia me mover. Se pelo menos conseguisse ficar acordado. Dormi de novo?

Horas, dias séculos?

No segundo trecho, podemos perceber mais claramente os procedimentos

médicos para com o paciente, quando a voz do personagem diz: Alguém me

incomodava com uma luz intermitente, com a vibração de um diapasão. Logo em

seguida, essa mesma voz deixa pressuposto o resultado de tais procedimentos,

quando novamente fala: era como se me tivessem posto um vidro de mostarda

debaixo do nariz, depois um dente de alho. Podemos perceber o cansaço por parte

do paciente, mas, também, a intenção do médico em identificar a possibilidade de

medir o grau de coma de seu paciente, utilizando para isso a Escala de Coma de

Glasgow.

Este cansaço fica evidente no terceiro trecho, quando o personagem diz:

Parece que ouço, através da névoa, o som das gaitas escocesas que se renova no

brejo. Novamente “névoa”, cinzenta, cor da neutralidade, do descanso, quando a

visão está cansada, procura um ponto em cinza para descansar, recompor sua

capacidade de enxergar as cores, buscar repouso. Na obra, representa a névoa, a

falta de memória, o estado inebriado da mente que evoca todas as imagens difusas.

3.3.5 Trecho 05

Ele estava diante de mim, embora ainda o visse como uma sombra. Sentia a cabeça anuviada, como se tivesse acordado depois de ter

75

bebido muito. Creio ter murmurado alguma coisa com dificuldade, como se naquele momento estivesse falando pela primeira vez: Sorriu-me com compreensão: “Mas agora abra bem os olhos e tente olhar ao redor. Sabe onde estamos?” Agora eu o via melhor, usava um jaleco – como se diz? – branco. Girei o olhar e consegui mover a cabeça também: o quarto era sóbrio e limpo, uns poucos móveis de metal e cores claras, eu estava na cama, com um tubo enfiado no braço. Da janela, entre as venezianas abaixadas, passava uma lâmina de sol, primavera em torno brilha no ar e pelos campos exulta. Sussurrei: “Estamos... em um hospital e o senhor... o senhor é um médico. Eu estive mal?” “Sim, esteve, depois eu lhe conto. Mas agora recuperou a consciência. Coragem. Sou o doutor Gratarolo. Desculpe se lhe faço tantas perguntas. Quantos dedos estou lhe mostrando?” “Isso é uma mão e esses são dedos. São quatro. São quatro?” “Certo. E quanto é seis vezes seis?”

“Trinta e seis, é óbvio.” Os pensamentos ribombavam na minha cabeça mas vinham quase sozinhos. (IDEM, p. 12).

Como previa o personagem médico, conforme análise feita no trecho de

número 04, seu paciente Yambo, protagonista em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana, apresentava sinais de recuperação de sua consciência, embora ainda

precisasse repousar. Aqui, ao analisar os trechos acima, podemos observar por

intermédio da voz de Yambo a referência consciente que ele faz a presença de

Gratarolo: “Ele estava diante de mim, embora ainda o visse como uma sombra”. E,

ainda, a felicidade desse médico, quando seu paciente diz: “Sorriu-me com

compreensão”.

Logo após essa fala de Yambo, observamos o exame que o médico faz da

consciência de seu paciente por meio das expressões: “Mas agora abra bem os

olhos e tente olhar ao redor”. Ao examinar seu paciente, e relacionando esses

questionamentos aos escores da Escala de Coma de Glasgow, ousamos dizer que,

mesmo não deixando explícito no texto, o autor/personagem médico, da obra

analisada, usa essa Escala de Coma ao longo dos exames que realiza em seu

paciente. Para constatarmos tal consideração e seguirmos com nossa análise,

relacionaremos cada expressão clínica que Gratarolo utilizar, conforme a primeira

categoria da Escala de Coma de Glasgow abaixo:

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Escala de Coma de Glasgow

Primeira Categoria

Escore

Melhor Resposta de Abertura dos Olhos

Espontânea 04

Ao estímulo verbal 03

Ao estímulo doloroso 02

Ausente 01

Tabela 1: Primeira Categoria de Avaliação da Escala de Coma de Glasgow.

Fonte: http://www.portaldaenfermagem.com.br/parametros_read.asp?id=13 acesso em 18/04/14

Nesta categoria, analisamos a forma como o paciente abre os olhos; a

pontuação pode ir de 01 (se o paciente não responder) até 04 (se a abertura ocular

ocorrer de forma espontânea).

O personagem médico segue a avaliação ocular de seu paciente, percebida

nos verbos “abrir”, “olhar” e “saber”, com valor de imperativo: “Mas agora ‘abra’ bem

os olhos e tente ‘olhar’ ao redor. ‘Sabe’ onde estamos?” “Agora eu o via melhor,

usava um jaleco – como se diz? – branco. Girei o olhar e consegui mover a cabeça

também”. Podemos ver que há uma mistura de vozes indicando um parecer clínico,

primeiro a avaliação médica, percebida por intermédio de uma voz em discurso

direto, marcado por aspas. Depois a fala indireta do paciente na voz de um terceiro

sujeito que se enuncia. Por fim, a voz do próprio paciente que depois de uma

brilhante descrição de tudo que se encontrava em sua volta, na voz de outro sujeito,

agora se manifesta em discurso direto: “Estamos... em um hospital e o senhor... o

senhor é um médico. Eu estive mal?”, parece com esse discurso, finalizar,

positivamente, sua avaliação clínica.

Mas o médico Gratarolo, ainda não satisfeito com o resultado de sua

avaliação clínica, segue em busca de um parecer final, referente à consciência de

seu paciente: “Sou o doutor Gratarolo. Desculpe se lhe faço tantas perguntas.

77

Quantos dedos estou lhe mostrando?” “Isso é uma mão e esses são dedos. São

quatro. São quatro?” “Certo. E quanto é seis vezes seis?” “Trinta e seis, é óbvio.”.

Notamos que o médico Gratarolo já está satisfeito com o resultado da avaliação

ocular de seu paciente, satisfação percebida por meio da pergunta: “Certo. E quanto

é seis vezes seis?” com ela, percebemos que agora a avaliação que o médico fará

de seu paciente não é mais referente à visão e sim à memória dele. Parte que,

segundo a Escala de Coma de Glasgow, será avaliada em uma segunda categoria,

a de Melhor Resposta Verbal.

Com o objetivo de entendermos melhor o uso da Escala de Coma de Glasgow

nas avaliações médicas, descritas nos parágrafos anteriores, e, de relacionarmos as

respostas obtidas do paciente à primeira categoria: “Melhor Resposta de Abertura

dos Olhos”, dessa escala, vamos aos pormenores. Considerando que todas as suas

respostas, derivaram de estímulos verbais, e, conforme a Primeira Categoria da

Escala de Glasgow na tabela 2, anexa acima, e quando o paciente, ao ser avaliado

pela Melhor Resposta de Abertura dos olhos, obedecendo a estímulos verbais,

atende espontaneamente aos comandos, reagindo dessa forma, Yambo recebe 03

de pontuação, no que diz respeito ao seu grau de consciência.

3.3.6 Trecho 06

“A propósito, e o senhor como se chama?” Pois foi aí que eu hesitei. E, no entanto estava na ponta da língua. Depois de um segundo respondi da maneira mais óbvia.

“Eu me chamo Arthur Gordon Pym.”

“O senhor não se chama assim.” Certamente Gordon Pym era um outro. Ele não voltou mais.

“Podem me chamar de... Ismael?”

“Não, o senhor não se chama Ismael. Faça um esforço.”

“E então, o senhor se chama Giambattista Bodoni. “Giambattista Bodoni era um célebre tipógrafo”. Mas estou seguro de que não sou eu. Eu poderia até ser Napoleão e seria como Bodoni.” “Por que disse Napoleão?” “Porque Bodoni era mais ou menos de época napoleônica”. Gratarolo me deu papel e caneta. Escreva, disse. “E que diabos devo escrever?”. “Escreva o que lhe vier à mente”, disse Gratarolo. Mente? Oh Deus do céu se eu fosse uma andorinha, se eu fosse fogo queimaria o mundo, viver ardendo e não sentir o mal, mal

78

não fazer medo não ter, o medo faz noventa oitenta setenta mil oitocentos e sessenta, a expedição dos Mil, mil e não mais mil, as maravilhas do ano dois mil, é do poeta o fim a maravilha. Quase num repente Gratarolo ordenou: “E agora assine, sem pensar, como se fosse um cheque.” Sem pensar, tracei um “GBBodoni”, com o esvoaçar final e depois um pontinho redondo sobre o i.

“Viu? Sua cabeça não sabe quem é, mas sua mão sim. Era previsível. Vamos fazer uma outra prova. O senhor me falou de Napoleão. Como era?”

“Não consigo evocar a sua imagem. Basta a palavra.”... Pediu-me que desenhasse Napoleão. Fiz algo do gênero. (ECO, 2005, p. 27).

Conforme apresentado na sequência dos exames clínicos que o sujeito médico

faz em seu paciente nos trechos analisados anteriormente, passamos agora a

analisar, nos trechos acima, a segunda categoria da Escala de Coma de Glasgow

que é a de Melhor Resposta Verbal. Para isso, apresentamos abaixo os itens que

serão considerados nessa categoria, na tabela dessa Escala de Coma:

Escala de Coma de Glasgow Segunda categoria

Escore

Melhor Resposta Verbal

Consciente e orientado 05

Confuso 04

Palavras desconexas 03

Sons 02

Ausente 01

Tabela 2: Segunda Categoria de Avaliação da Escala de Coma de Glasgow.

Fonte: http://www.portaldaenfermagem.com.br/parametros_read.asp?id=13 acesso em 18/04/14

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No caso da resposta verbal, os valores começam em 01 (quando não há

qualquer resposta) e vão até 05 (resposta orientada).

Depois de perceber que Yambo, na parte visual, consegue responder a

qualquer estímulo, Gratarolo parte para a avaliação da memória de seu paciente em

uma dimensão de tempo, tanto no passado quanto no tempo presente, no ambiente

e situação na qual ele se encontra. O médico começa o exame clínico da memória

com a seguinte pergunta: “A propósito, e o senhor como se chama?” Uma pergunta

simples que Yambo demonstra dificuldade para responder, mas depois de um tempo

responde: “Eu me chamo Arthur Gordon Pym.” Uma resposta completamente

desconexa, uma referência de alguém que viveu há trinta anos e que,

provavelmente segundo o texto de A Misteriosa Chama da Rainha Loana, era de

época Napoleônica.

O médico insiste para que Yambo se lembre de seu nome, mas em uma

resposta ainda mais confusa, ele se diz chamar “Ismael”. É quando Gratarolo

diagnostica que seu paciente não lembra nem o seu nome e diz: “E então, o senhor

se chama Giambattista Bodoni. Isso não lhe diz nada?” Agora, Yambo se lembra até

do que Bodoni fazia, mas não admite que seja ele um célebre tipógrafo e,

novamente, relaciona Giambattista Bodoni com Napoleão Bonaparte, e em uma

maneira confusa descreve feitos acontecidos há trinta anos e fica como se estivesse

pensativo, relembrando a época Napoleônica.

Com uma estratégia ainda mais ousada, na tentativa de avaliar seu paciente,

Gratarolo entrega papel e caneta e pede que escreva o que lhe vier à mente. Yambo

escreve um texto confuso, com palavras completamente desconexas: “se eu fosse

fogo queimaria o mundo, viver ardendo e não sentir o mal, mal não fazer medo não

ter, o medo faz noventa oitenta setenta mil oitocentos e sessenta, a expedição dos

Mil, mil e não mais mil, as maravilhas do ano dois mil, é do poeta o fim a maravilha”. Após constatar tal escrita confusa e desconexa, Gratarolo repentinamente ordena a

seu paciente que assine seu texto, semelhante à assinatura que ele fazia em seus

talões de cheques. Com a mesma velocidade da ordem, Yambo registra sua

assinatura na parte inferior de seu texto: “GBBodoni”, com todos os detalhes como

sempre a fez.

80

Já com um diagnóstico clínico concluído da memória de seu paciente a

respeito de suas respostas verbais, Gratarolo, aproveitando que Yambo citou

Napoleão várias vezes durante seus exames, ordena que o descreva para ele.

Como já era esperado pelo médico, seu paciente diz: “Não consigo evocar a sua

imagem. Basta a palavra.” Em seguida, Gratarolo o pediu que desenhasse Napoleão

e ele fez o esquema mental que ele tinha de Napoleão, com características que

Napoleão tinha, confirmando o que o médico já sabia: a perda de parte de sua

memória semântica. A mão de Yambo sabia quem ele era, mas a sua mente não.

Relacionando a Escala de Coma de Glasgow nas avaliações médicas

descritas nos parágrafos anteriores, e comparando as respostas obtidas do paciente

à segunda categoria - “Melhor Resposta Verbal” -, dessa escala, percebemos que

todas as suas respostas foram confusas e boa parte delas desconexas. Conforme a

Segunda Categoria da Escala de Glasgow na tabela 02, anexa acima, quando o

paciente ao ser avaliado pela Melhor Resposta Verbal apresenta respostas

confusas, sendo a maioria delas desconexas, seu paciente, Yambo, recebe 03 de

pontuação como avaliação de sua memória.

Passamos agora para outro tópico: a análise da terceira e última categoria da

Escala de Coma de Glasgow: Melhor Resposta Motora.

3.3.7 Trecho 07

“Coragem, experimente ir ao banheiro e escovar os dentes. A escova de sua mulher deve estar lá.” Disse que não costumava escovar os dentes com a escova de um estranho e ele observou que uma esposa não é uma estranha. No banheiro me vi no espelho. Pelo menos estava bastante seguro de que era eu porque os espelhos, como se sabe, refletem aquilo que têm diante de si. Identifiquei dois objetos, um com certeza se chama dentifrício e o outro escova de dentes. Preciso começar com o dentifrício e espremer o tubinho. Agradabilíssima sensação, deveria fazê-lo mais vezes, porém a certa altura é preciso parar, aquela pasta branca no começo faz flop, como uma bolha, mas depois sai toda, como le serpent qui danse. Não espremer mais, senão vai fazer como Broglio com os stracchini. Quem é Broglio?

Perfeito, disse ele. Meus automatismos, explicou, estão corretos.

“Parece que temos aqui uma pessoa quase normal”, observei, “salvo que talvez não seja eu.”...

81

...“tente recordar a coisa mais significativa que lhe aconteceu enquanto escovava os dentes.” “Quando passei a escova na língua.” “Por quê?” “Porque estava com a boca empastada e depois me senti bem melhor.” “Viu? Filtrou o elemento mais diretamente associado às suas emoções, a seus desejos, a seus objetivos. O senhor tem emoções de novo.” “Bela emoção escovar a língua. Mas não me lembro de tê-la escovado antes.” (IDEM, p. 16).

Para analisarmos a terceira e última categoria da Escala de Coma de

Glasgow e podermos fazer um panorama do estado clínico do paciente Yambo,

relacionaremos, nos trechos acima, os exames médicos que o personagem médico

executa em seu paciente. Teremos como base os tópicos da terceira categoria da

Escala de Coma de Glasgow: Melhor Resposta Motora, conforme tabela abaixo:

Escala de Coma de Glasgow Terceira categoria

Escore

Melhor Resposta Motora

Obedece aos comandos 06

Localiza estímulos dolorosos 05

Retira estímulos dolorosos 04

Reage com flexão anormal (decorticação) 03

Reage com extensão anormal (descerebração) 02

Sem resposta motora 01

Tabela 3: Terceira Categoria de Avaliação da Escala de Coma de Glasgow.

Fonte: http://www.portaldaenfermagem.com.br/parametros_read.asp?id=13 acesso em 18/04/14

Por fim, relativamente à resposta motora, a escala contempla valores de 01

(ausência de resposta) a 06 (quando a pessoa reage às ordens expressadas pela

voz).

Gratarolo segue a avaliação de seu paciente, mas sempre relacionando um

exame a outro, como podemos observar no discurso direto desse médico no trecho

82

analisado: “Coragem, experimente ir ao banheiro e escovar os dentes. A escova de

sua mulher deve estar lá.”, provavelmente, mesmo passando para uma atividade

avaliativa da parte motora de Yambo, novamente ele tenta ativar a memória do

paciente em relação a sua esposa, ou mesmo testá-la para comprovar se realmente

ele não se lembra do fato de que é casado. Tentativa frustrada para o médico,

porque logo em seguida, percebe-se a voz de Yambo em discurso indireto: “Disse

que não costumava escovar os dentes com a escova de um estranho”. Médico e

paciente seguem na atividade clínica, na qual este é o protagonista, descobrindo-se

e deixando-se descobrir, aquele como observador, avaliador clínico em busca de um

diagnóstico assertivo.

Podemos perceber esse diagnóstico referente à parte motora do paciente na

mistura de vozes indiretas de Gratarolo e Yambo: “Perfeito, disse ele. Meus

automatismos, explicou, estão corretos”. Nessa fala do médico, percebemos que

quanto aos automatismos de seu paciente, os exames apontam um resultado

positivo, mas se havia dúvida quanto a um diagnóstico de sua memória, Gratarolo

deixa claro que já não há mais, quando se enuncia em discurso direto: “Parece que

temos aqui uma pessoa quase normal”, percebemos na expressão indefinida “quase

normal”, a confirmação de um diagnóstico anterior, a perda de parte da memória de

Yambo.

Por fim, Gratarolo pede para seu paciente recordar o fato mais significativo

que lhe aconteceu durante a escovação dos dentes e Yambo diz: “Quando passei a

escova na língua.”. Por ser a língua um importante órgão das sensações, dos

gostos, das articulações das palavras, o médico a relaciona às emoções e desejos

de seu personagem. Pode-se dizer como uma forma de encorajá-lo para a

realização de novos desafios, de novas emoções, porém o paciente Yambo confirma

sua perda parcial de memória quando diz diretamente: “Bela emoção escovar a

língua. Mas não me lembro de tê-la escovado antes.”.

Ao relacionarmos as respostas do paciente à terceira categoria: “Melhor

Resposta Motora” da Escala de Coma de Glasgow constatamos que em todas as

suas respostas ele obedeceu aos comandos de seu médico, reagindo dessa forma,

Yambo recebe 06 de pontuação, no que diz respeito à sua capacidade de

movimento.

83

3.3.8 Resumo do Capítulo

Conforme fundamentado neste estudo, e analisado ao longo deste capítulo,

vimos as três principais respostas do paciente ao ambiente: abertura dos olhos,

verbalização e movimento. Em cada categoria a melhor resposta recebe uma

pontuação. A soma da pontuação destas categorias, segundo a tabela 01 deste

estudo, o escore total máximo para uma pessoa em um estado de coma leve é de

15. O escore médio para uma pessoa em estado de coma moderado é de 09-12

pontos. Um escore de 03-08 pontos corresponde ao estado de coma grave, com

necessidade de entubação.

Considerando os exames clínicos que o médico Gratarolo executou em seu

paciente Yambo, na primeira categoria da Escala de Coma de Glasgow, ele recebeu

pontuação de número 03, na segunda categoria ele também recebeu pontuação 03

e na terceira e última categoria, esse paciente recebeu pontuação 06, somando as

três categorias, temos um total de 12 pontos. Portanto, podemos classificar o grau

de coma do personagem Yambo em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, como

“moderado” caracterizando-o como um paciente que ainda precisa ser assistido por

um médico.

84

CONCLUSÃO

Neste estudo analisamos as relações dialógicas existentes em dezenove

trechos do primeiro capítulo, da primeira parte do romance ilustrado A Misteriosa

Chama da Rainha Loana (2005) de Umberto Eco, selecionados especificamente

para este fim. Reunimos aqui os trechos de outros autores, as citações mais

expressivas na constituição de sentido no capítulo da obra de Eco: Bruges -la- Morte

(1892) de Georges Rodenbach, A Narrativa de Arthur Gordon Pym de

Nantucket (1838) de Edgar Allan Poe, Notturno (1921) de Gabriele D´Annunzio,

Nevoeiro (1962) de Carl Sandburg, O Homem da máscara de Ferro (1939) de

Alexandre Dumas, Im Nebel (1961) de Hermann Hesse, Abril é o mais cruel dos

meses (1922) de Thomas Stearns Eliot, Le serpent qui danse (1962) de Charles

Baudelare, A las cinco de la tarde (1934) de Federico Garcia Lorca, Voyelles (1871)

de Jean Nicholas Arthur Rimbaud e A Metamorfose (1915) de Franz Kafka, dentre

outros.

Na pesquisa do nosso corpus percebemos que a análise das relações

dialógicas em A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco, não dependeu

apenas da nossa criatividade e habilidade de analista, seja quando renunciamos a

alguma palavra ou encontramos outra equivalente, mas principalmente da

investigação da forma como Eco utiliza o texto de outros autores para constituir

sentido no seu, estabelecendo uma dualidade de um só elemento concreto para o

estudo da linguagem materializando em seus enunciados as relações dialógicas

com outros textos de características semelhantes.

Para realizar nossas análises planejamos os seguintes objetivos: estabelecer

os sentidos no texto advindos das relações dialógicas travadas no capítulo

analisado; relacionar a Escala de Coma de Glasgow com a forma como o médico

Gratarolo examina Yambo e sua importância na constituição de sentido; analisar as

relações dialógicas contidas nas citações que permeiam o texto do capítulo,

buscando estabelecer os sentidos emprestados ao enunciado; analisar a possível

intencionalidade do autor, ao selecionar os signos linguístico-ideológicos, utilizados

nos trechos em análise, em uma perspectiva de acabamento do texto e de tom

85

valorativo ético e estético. Realizadas essas análises chegamos a considerações

pertinentes a respeito da obra e de seu respectivo autor.

Mediante nossas análises relativas a Umberto Eco temos um autor famoso

mundialmente por seus escritos sobre semiótica, estética medieval, comunicação de

massa, linguística e filosofia. Sob nosso olhar, em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana, Eco sustenta a visão de que as criações literárias necessitam

imprescindivelmente da colaboração dos que as leem para serem compreendidas.

Para proceder às análises das relações dialógicas do texto de partida recorremos

algumas vezes ao dicionário e à internet, visando consultar palavras que

desconhecíamos. Quando analisamos os trechos de Nevoeiro (1962) de Carl

Sandburg e Im Nebel (1961) de Hermann Hesse, percebemos que Umberto Eco

utilizou o signo “neve” que carrega múltiplas interpretações como, por exemplo, a

metáfora do estado de coma do protagonista em A Misteriosa Chama da Rainha

Loana.

Com relação ao romance ilustrado A Misteriosa Chama da Rainha Loana,

percebemos que o cenário dessa obra é um panorama da Itália do período fascista e

da guerra, em que o protagonista faz muitas referências à literatura, à história, à

filosofia, à religião e à política. Na nossa visão, os trechos da obra selecionados para

análise retratam realidades de diferentes épocas, porém suas relações dialógicas se dão na

materialidade linguística do texto, embora ambas sejam transformadas pela ação estética e

valorativa do autor, que ao compô-las lhes dá acabamento.

Acreditamos que, de alguma maneira, pudemos contribuir para os estudos de

análise das relações dialógicas como forma de constituição de sentido nos textos

literários, e consideramos de extrema relevância esse tipo de análise, visto que

salientamos a importância dessas relações dialógicas, seu contexto social e

histórico, assim como a importância de sua constituição de sentido dentro de uma

determinada cultura. Entendemos então que, como esta análise, outros trabalhos

poderão investigar as relações dialógicas e a constituição de sentido de outras obras

literárias.

86

87

BIBLIOGRAFIA

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90

ANEXOS

91

ANEXO 1 - Escala de Coma de Glasgow

Escala de Coma de Glasgow

Escore

Melhor Resposta de Abertura dos Olhos

Espontânea 04

Ao estímulo verbal 03

Ao estímulo doloroso 02

Ausente 01

Melhor Resposta Verbal

Consciente e orientado 05

Confuso 04

Palavras desconexas 03

Sons 02

Ausente 01

Melhor Resposta Motora

Obedece aos comandos 06

Localiza estímulos dolorosos 05

Retira estímulos dolorosos 04

Reage com flexão anormal (decorticação) 03

Reage com extensão anormal (descerebração) 02

Sem resposta motora 01

Classificação:

03-08 = Grave; (necessidade de intubação imediata).

09-12 = Moderado;

13-15 = Leve.

Tabela 1: Tabela de Avaliação da Escala de Coma de Glasgow.

Fonte: http://www.portaldaenfermagem.com.br/parametros_read.asp?id=13 acesso em 18/04/14

92

Escala de Coma de Glasgow

Glasgow Coma Scale (GCS), conhecida em português como escala de

Glasgow, foi publicada oficialmente em 1974 por Graham Teasdale e Bryan J.

Jennett, professores de neurologia na University of Glasgow, na revista Lancet. É

uma escala neurológica que permite medir/avaliar a profundidade e duração clínica

de inconsciência e coma. Avalia o paciente em três parâmetros: a abertura ocular, a

resposta motora e a resposta verbal.

Jennett comentou em um de seus artigos que a escala foi adotada para

melhorar a comunicação entre os profissionais, fornecendo uma linguagem comum

para informar os achados neurológicos baseados em informações obtidas à beira do

leito. Ele deu crédito às enfermeiras para o sucesso inicial da escala de coma. No

seu famoso artigo de 1974, na revista Lancet, Teasdale e Jennett introduziram a

escala de coma de Glasgow como uma escala prática para avaliar a profundidade e

a duração da diminuição da consciência e do coma. Teasdale e Jennett trabalhavam

em Glasgow, na Escócia, portanto o nome da cidade foi incorporado ao título da

escala.

Gradualmente, a escala de coma refinada tornou-se amplamente aceita por

toda a Escócia, ganhando aprovação internacional, sendo utilizada por médicos e

enfermeiros na prática clínica para avaliação de pacientes com lesões cerebrais.

Portanto, esse instrumento é usado para mensurar o nível de consciência, avaliando

a capacidade do paciente em abrir os olhos, comunicar-se verbalmente, obedecer a

comandos e mover suas extremidades. Os achados da escala de coma formam a

base da tomada de decisão clínica, como a necessidade de tomografia

computadorizada, intervenção cirúrgica e/ ou de drogas.

Em 1970, o National Institutes of Health, Public Health Service, U.S.

Department of Health and Human Services, financiou dois estudos internacionais

paralelos. Enquanto um estudou o estado de coma de pacientes com traumatismos

cranianos severos, o segundo focalizou o prognóstico médico do coma. Os

pesquisadores desses estudos desenvolveram então o “Índice de coma”, que

posteriormente transformou-se na escala de coma de Glasgow, à medida que os

dados estatísticos aplicados afinaram o sistema de pontuação, tendo então o

93

número 01 como a pontuação mínima e, depois, uma escala ordinal foi aplicada para

observar tendências. "O índice é baseado em uma escala de pontos que vai de 3 a

15 e avalia a abertura ocular, a resposta motora e a verbal", afirma o médico

intensivista Douglas Ferrari, presidente da Sociedade Brasileira de Terapia

Intensiva.

A qualidade da consciência de um paciente é o parâmetro mais básico e mais

crítico que exige avaliação. O nível de consciência de um paciente e de resposta ao

ambiente é o indicador mais sensível de disfunção do sistema nervoso. No que diz

respeito aos valores, o valor mais baixo que se pode obter com a escala de Glasgow

é de 03 pontos, ao passo que o valor mais alto é de 15 pontos. O paciente que

obtenha menor pontuação é quem sofre danos crânio-encefálicos mais graves.

Consoante a resposta do paciente, o profissional médico ou enfermeiro atribui

um valor a cada parâmetro. A soma dos três valores constitui o resultado final da

escala de Glasgow. Analisando a forma como o paciente abre os olhos, a pontuação

pode ir de 01 (se o paciente não responder) até 04 (se a abertura ocular ocorrer de

forma espontânea). No caso da resposta verbal, os valores começam em 01

(quando não há qualquer resposta) e vão até 05 (resposta orientada). Por fim,

relativamente à resposta motora, a escala contempla valores de 01 (ausência de

resposta) a 06 (quando a pessoa reage às ordens expressadas pela voz).

No entanto, apesar de seu uso difundido, a escala tem limitações

significativas citadas na literatura publicada. Talvez a limitação mais importante seja

a incapacidade de obter dados completos e precisos universalmente. Além disso,

existem inúmeros fatores de confusão que podem afetar a confiabilidade e a

validade de Glasgow. Por exemplo, a resposta verbal pode ser limitada pela

presença da perda de audição, distúrbios psiquiátricos, demência ou lesões na boca

e na garganta. A resposta motora é vulnerável a fatores como a presença de lesões

da medula espinhal ou de nervos periféricos ou imobilização de fraturas e membros.

Da mesma forma, a abertura dos olhos pode ser impossível pela presença de

edema da pálpebra.

Essa escala permite ao examinador classificar objetivamente as três

principais respostas do paciente ao ambiente: abertura dos olhos, verbalização e

movimento. Em cada categoria, a melhor resposta recebe uma nota. O escore total

máximo para uma pessoa totalmente desperta é de 15. Um escore mínimo de 03

94

indica um paciente completamente não responsivo. Um escore geral de 08 ou menor

está associado ao coma. "No hospital, ela é refeita, várias vezes, para a equipe

poder comparar a evolução do quadro. Assim, os médicos têm um parâmetro para

avaliar se o paciente melhorou, piorou ou se encontra na mesma situação", diz

Josiene Germano, especialista em medicina do tráfego, de Ribeirão Preto (SP).

95

Anexo 2- Primeiro capítulo, da primeira parte, do romance ilustrado A misteriosa chama da Rainha Loana de Umberto Eco.

Página 9

Primeira parte O ACIDENTE

1. O MAIS CRUEL DOS MESES “E o senhor, como se chama?” “Espere, está na ponta da língua.” Tudo começou assim. Era como se acordasse de um longo sono, e no entanto ainda estava suspenso em um cinza leitoso. Ou quem sabe não estava acordado, mas sonhando. Era um estranho sonho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se não visse, mas ouvisse vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda não via nada, exceto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia. Bruges, disse a mim mesmo, estava em Bruges, já estivera em Bruges, a morta? Onde a névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende desbeiçada das fachadas como um arrás... Minha alma limpava os vidros do bonde para afogar-se na névoa móvel dos sinais. Névoa, minha incontaminada irmã... Uma névoa espessa, opaca, que embrulhava os rumores, e fazia surgirem fantasmas sem forma... Por fim chegava a um despenhadeiro enorme e via uma figura altíssima, envolta num sudário, o rosto de um condor imaculado de neve. Eu me chamo Arthur Gordon Pym. Mastigava a névoa. Os fantasmas passavam, tocavam-me, desvaneciam-se. As luzinhas longe luziam como fogos-fátuos num campo-santo... Página 1 0

Alguém caminha a meu lado sem rumor, como se tivesse os pés descalços, caminha sem saltos, sem sapatos, sem sandálias, uma faixa de névoa me desliza sobre a face, uma frota de bêbados grita lá embaixo, no fundo da balsa. A balsa? Não sou eu quem diz, são as vozes. A névoa chega sobre pequenas patas de gato... Era uma névoa que parecia que tinham sumido com o mundo. Entretanto de vez em quando era como se abrisse os olhos, e visse relâmpagos. Ouvia as vozes: “Não é um coma propriamente dito, senhora... Não, não pense num eletroencefalograma plano, por caridade... Existe reatividade...” Alguém me projetava uma luz nos olhos, mas depois da luz era de novo o escuro. Sentia a picada de uma agulha, de alguma parte. “Viu, tem mobilidade...” Maigret mergulha em uma névoa tão densa que não consegue ver nem onde põe os pés... A névoa pulula de formas humanas, fervilha de uma vida intensa e misteriosa. Maigret? Elementar, meu caro Watson, são dez negrinhos, é na névoa que desaparece o cão dos Baskervilles.

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A cortina de vapor cinza gradualmente perdia seu matiz cinzento, o calor da água era extremo, e sua nuança leitosa mais intensa que nunca... Então nos precipitamos nos abraços da catarata onde um abismo abriu-se para nos engolir. Ouvia gente que falava a meu redor, queria gritar e avisá-los de que estava ali. Havia um zumbido contínuo, como se fosse devorado por máquinas singulares de dentes pontiagudos. Estava na colônia penal. Sentia um peso sobre a cabeça, como se me tivessem enfiado a máscara de ferro. Tinha a impressão de divisar luzes azuis. “Apresenta assimetria dos diâmetros pupilares.” Tinha fragmentos de pensamentos, decerto estava acordando, mas não podia me mover. Se pelo menos conseguisse ficar acordado. Dormi de novo? Horas, dias, séculos? A névoa retorna, as vozes na névoa, as vozes sobre a névoa. Seltsam, im Nebel zu wandern! Que língua é? Parecia que nadava no mar, sentia-me próximo à praia mas não conseguia chegar lá. Ninguém me via e a maré me levava embora.

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Por favor digam-me alguma coisa, por favor toquem-me. Senti uma mão na testa. Que alívio. Uma outra voz: “Senhora, temos histórias de pacientes que despertam de repente e vão embora com as próprias pernas.” Alguém me incomodava com uma luz intermitente, com a vibração de um diapasão, era como se me tivessem posto um vidro de mostarda debaixo do nariz, depois um dente de alho. A terra tem um cheiro de cogumelos. Outras vozes, mas essas de dentro: longos lamentos de locomotiva a vapor, padres na neblina informe encaminhando-se em fila para São Miguel no Bosque. O céu é de cinzas. Névoa rio acima, névoa rio abaixo, névoa que morde as mãos da pequena vendedora de fósforos. Os passantes nas pontes da Ilha dos Cães olham um ínfimo céu enevoado, envoltos eles mesmos na névoa como em um balão suspenso sob uma névoa morena, que nem morte muita poderia desfazer. Cheiro de estação e de fuligem. Uma outra luz, mais leve. Parece que ouço, através da névoa, o som das gaitas escocesas que se renova no brejo. Outro longo sono, talvez. Depois uma clareada, pareço estar num copo de água e anis... Ele estava diante de mim, embora ainda o visse como uma sombra. Sentia a cabeça anuviada, como se tivesse acordado depois de ter bebido muito. Creio ter murmurado alguma coisa com dificuldade, como se naquele momento estivesse falando pela primeira vez: “Posco reposco flagito regem o infinitivo futuro? Cujus regio ejus religio... é a paz de Augusta ou a defenestração de Praga?” e depois: “Neblina também no trecho apenínico de Autosole, entre Roncobilaccio e Barberino del Mugello...” Sorriu-me com compreensão: “Mas agora abra bem os olhos e tente olhar ao redor. Sabe onde estamos?” Agora eu o via melhor, usava um jaleco – como se diz? – branco. Girei o olhar e consegui mover a cabeça também: o quarto era sóbrio e limpo, uns poucos móveis de metal e cores claras, eu estava na cama, com um tubo

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enfiado no braço. Da janela, entre as venezianas abaixadas, passava uma lâmina de sol, primavera em torno brilha no ar e pelos campos exulta. Sussurrei: “Estamos... em um hospital e o senhor... o senhor é um médico. Eu estive mal?” “Sim, esteve, depois eu lhe conto. Mas agora recuperou a consciência. Coragem. Sou o doutor Gratarolo. Desculpe se lhe faço tantas perguntas. Quantos dedos estou lhe mostrando?” “Isso é uma mão e esses são dedos. São quatro. São quatro?” “Certo. E quanto é seis vezes seis?” “Trinta e seis, é óbvio.” Os pensamentos ribombavam na minha cabeça mas vinham quase sozinhos. “A soma das áreas dos quadrados... construídos sobre os catetos... é igual à área do quadrado construído sobre a hipotenusa.” “Parabéns. Acho que é o teorema de Pitágoras, mas no liceu eu tirava seis em matemática...” “Pitágoras de Samos. Os elementos de Euclides. A desesperada solidão das paralelas que nunca se encontram.” “Parece que sua memória está em ótimo estado. A propósito, e o senhor como se chama?” Pois foi aí que eu hesitei. E no entanto estava na ponta da língua. Depois de um segundo respondi da maneira mais óbvia. “Eu me chamo Arthur Gordon Pym.” “O senhor não se chama assim.” Certamente Gordon Pym era um outro. Ele não voltou mais. Tentei chegar a um acordo com o doutor. “Podem me chamar de... Ismael?” “Não, o senhor não se chama Ismael. Faça um esforço.” Uma palavra. Como bater contra um muro. Dizer Euclides ou Ismael era fácil, como dizer ambarabá quiqui cocó três corujas no guarda-pó. Dizer quem eu era, ao contrário, era como virar para trás e lá estava o muro. Não, não um muro, tentava explicar: “Não é que sinta alguma coisa sólida, é como andar na névoa.” “Como é a névoa?”, perguntou.

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“A névoa aos hirtos montes chuviscando sobe e sob o mistral grita e branqueia o mar... Como é a névoa?” “Não me ponha em apuros, sou apenas um médico. E depois estamos em abril, não posso mostrá-la. Hoje é dia 25 de abril.” “Abril é o mais cruel dos meses.” “Não sou muito culto mas creio que é uma citação. Podia dizer que hoje é o dia da Libertação. Sabe em que ano estamos?” “Certamente depois do descobrimento da América...” “Não recorda nem uma data, uma data qualquer antes do... seu despertar?” “Qualquer uma? Mil novecentos e quarenta e cinco, fim da Segunda Guerra Mundial.” “Muito pouco. Não, hoje é dia 25 de abril de 1991. O senhor nasceu, parece-me, no final de 1931, e então está chegando aos sessenta anos.” “Cinqüenta e nove e meio, nem isso.” “Ótimo no que diz respeito à capacidade de cálculo. Olhe, o senhor sofreu, como dizer, um acidente. Conseguiu sair vivo, parabéns.

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Mas evidentemente tem alguma coisa que ainda não está bem. Uma pequena forma de amnésia retrógrada. Não se preocupe, às vezes duram pouco. Por gentileza, responda ainda algumas perguntas. O senhor é casado?” “Diga-me o senhor.” “Sim, é casado, com uma amabilíssima senhora que se chama Paola e que esteve a seu lado dia e noite, só ontem à noite consegui obrigá-la a ir para casa, do contrário desmoronava. Agora que despertou vou chamá-la, mas terei de prepará-la e precisamos fazer ainda algumas verificações.” “E se eu a confundir com um chapéu?” “O que disse?” “Tem um homem que confundiu a mulher com um chapéu.” “Ah, o livro de Sacks. Um caso famoso. Vejo que é um leitor atualizado. Mas não é o seu caso, ou já teria me confundido com uma estufa. Não se preocupe, talvez não a reconheça mas não vai

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confundi-la com um chapéu. Voltemos ao senhor. E então, o senhor se chama Giambattista Bodoni. Isso não lhe diz nada?” Agora minha memória voava como um planador entre montes e vales, pelo horizonte interminado. “Giambattista Bodoni era um célebre tipógrafo. Mas estou seguro de que não sou eu. Eu poderia até ser Napoleão e seria como Bodoni.” “Por que disse Napoleão?” “Porque Bodoni era mais ou menos de época napoleônica. Napoleão Bonaparte, nascido na Córsega, primeiro cônsul, desposa Josefina, torna-se imperador, conquista meia Europa, perde em Waterloo, morre em Santa Helena, cinco de maio de 1821, e ficou como que imóvel.” “Terei que voltar aqui com uma enciclopédia, mas do que me recordo o senhor lembrou bem. Porém não lembra quem é.” “É grave?” “Para ser honesto, bom não é. Mas não é o primeiro a quem acontece uma coisa assim, conseguiremos sair dessa.” Pediu-me que levantasse a mão direita e tocasse o nariz. Entendia muito bem o que era a direita, e o nariz. Centrado. Mas a sensação era novíssima. Tocar-se o nariz é como ter um olho na ponta do indicador e olhar para o próprio rosto. Eu tenho um nariz. Gratarolo bateu em meu joelho e depois aqui e ali na perna e nos pés com uma espécie de martelinho. Os doutores mensuram os reflexos. Parece que os reflexos eram os esperados. No final, sentia-me esgotado, e creio que adormeci. Acordei num lugar e murmurei que parecia a cabina de uma astronave, como nos filmes (que filmes, perguntou Gratarolo, todos, respondi, em geral, depois nomeei Star Trek). Fizeram-me coisas que não entendia com máquinas nunca vistas. Creio que olhavam dentro da minha cabeça, mas eu os deixava agir sem pensar, embalado pelos zumbidos suaves, e de vez em quando adormecia de novo. Mais tarde (ou no dia seguinte?), quando Gratarolo voltou, eu estava explorando a cama. Apalpava os lençóis, leves, lisos, agradáveis de tocar; menos o cobertor, que espetava um pouco as pontas

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dos dedos; virava-me e batia a mão no travesseiro, deleitando-me ao ver que afundava dentro dele. Fazia chac chac e me divertia muito.

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Gratarolo perguntou se conseguia levantar da cama. Com a ajuda de uma enfermeira consegui, estava em pé, embora a cabeça me girasse. Sentia os pés pressionando o pavimento, e a cabeça no alto. É assim que se está de pé. Sobre um fio esticado. Como a pequena sereia. “Coragem, experimente ir ao banheiro e escovar os dentes. A escova de sua mulher deve estar lá.” Disse que não costumava escovar os dentes com a escova de um estranho e ele observou que uma esposa não é uma estranha. No banheiro me vi no espelho. Pelo menos estava bastante seguro de que era eu porque os espelhos, como se sabe, refletem aquilo que têm diante de si. Uma cara branca e escavada, a barba longa, duas olheiras assim. Estamos bem, não sei quem sou mas descubro que sou um monstro. Não gostaria de me encontrar de noite em uma rua deserta. Mister Hyde. Identifiquei dois objetos, um com certeza se chama dentifrício e o outro escova de dentes. Preciso começar com o dentifrício e espremer o tubinho. Agradabilíssima sensação, deveria fazê-lo mais vezes, porém a certa altura é preciso parar, aquela pasta branca no começo faz flop, como uma bolha, mas depois sai toda, como le serpent qui danse. Não espremer mais, senão vai fazer como Broglio com os stracchini. Quem é Broglio? A pasta tem um ótimo sabor. Ótimo, disse o duque. É um wellerismo. Estes são, então, os sabores: algo que lhe acaricia a língua, mas também o palato, porém quem percebe os sabores é a língua. Sabor de menta – y la hierbabuena, a las cinco de la tarde... Decidi e fiz o que todos fazem nesses casos, rapidamente e sem pensar muito: escovei primeiro para cima e para baixo, depois da esquerda para a direita, depois o céu da boca. É interessante sentir as cerdas que entram entre dois dentes, creio que de agora em diante vou escovar os dentes todo dia, é bom. Passei as cerdas na língua também. Sente- se como um arrepio mas no final se não apertar demais é bom, e era o que eu precisava pois minha boca estava mesmo empastada. Página 1 6

Agora, disse comigo mesmo, é enxaguar. Derramei um pouco d’água da torneira num copo e passei na boca, alegremente surpreso com o barulho que fazia, melhor ainda jogando-se a cabeça para trás e fazendo... borbulhar? O gargarejo é bom. Inchei as bochechas e depois tudo para fora. Cuspi tudo. Sfrussc... catarata. Com os lábios podese fazer de tudo, são mobilíssimos. Virei-me, lá estava Gratarolo me observando como se fosse um fenômeno de circo, e perguntei se estava tudo certo. Perfeito, disse ele. Meus automatismos, explicou, estão corretos. “Parece que temos aqui uma pessoa quase normal”, observei, “salvo que talvez não seja eu.” “Muito espirituoso, e isso também é um bom sinal. Deite-se, assim, eu ajudo. Diga-me: o que o senhor acabou de fazer?” “Escovei os dentes, foi o senhor quem pediu.” “Certo, e antes de escovar os dentes?” “Estava aqui nessa cama e o senhor estava falando comigo. Disse- me que estamos em abril, 1991.” “Correto. A memória a curto prazo funciona. Me diga, lembra por acaso da marca do dentifrício?” “Não. Deveria?” “Não, claro que não. O senhor certamente viu a marca ao pegar o tubo, mas se tivéssemos que registrar e conservar todos os estímulos que recebemos, nossa memória seria uma barafunda. Por isso escolhemos, filtramos. O senhor fez o que

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todos fazem. Mas tente recordar a coisa mais significativa que lhe aconteceu enquanto escovava os dentes.” “Quando passei a escova na língua.” “Por quê?” “Porque estava com a boca empastada e depois me senti bem melhor.” “Viu? Filtrou o elemento mais diretamente associado às suas emoções, a seus desejos, a seus objetivos. O senhor tem emoções de novo.” “Bela emoção escovar a língua. Mas não me lembro de tê-la escovado antes.”

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“Chegaremos lá. Veja, senhor Bodoni, vou tentar lhe explicar sem palavras difíceis, mas o acidente certamente atingiu algumas zonas de seu cérebro. No momento, embora todo dia saia um novo estudo, ainda não sabemos tudo o que gostaríamos de saber sobre as localizações cerebrais. Sobretudo no que diz respeito às várias formas de memória. Ousaria dizer que se isso que lhe aconteceu acontecesse daqui a dez anos, saberíamos melhor como lidar com sua situação. Não me interrompa, eu já entendi, se tivesse acontecido cem anos atrás o senhor já estaria num manicômio, e fim da história. Hoje sabemos bem mais, porém não o bastante. Por exemplo, se o senhor não conseguisse falar eu logo saberia qual a área atingida...” “A área de Broca.” “Muito bem. Mas a área de Broca tem mais de cem anos. No entanto o lugar onde o cérebro conserva as lembranças ainda é matéria de discussão, certamente as coisas não dependem de uma única área. Não quero entediá-lo com termos científicos, que além de tudo só aumentariam a confusão em sua cabeça – sabe quando o dentista faz alguma coisa em um dente e continuamos a tocá-lo com a língua por alguns dias?; se eu lhe dissesse, sei lá, que não estou tão preocupado com o seu hipocampo quanto com os lobos frontais e talvez com a córtex órbito-frontal direita, o senhor tentaria se tocar bem ali, e não é como explorar a boca com a língua. Frustrações até não acabar mais. Portanto esqueça o que acabei de lhe dizer. Ademais cada cérebro é diferente dos outros, e nosso cérebro tem uma extraordinária plasticidade, pode acontecer que depois de algum tempo o senhor seja capaz de passar para uma outra área o que a área atingida não consegue mais fazer. Está me acompanhando, estou sendo bastante claro?” “Claríssimo, prossiga. Mas não é mais rápido dizer que sou o desmemoriado de Collegno?” “Está vendo como se lembra do desmemoriado de Collegno, um caso clássico? É somente de si, que não é clássico, que o senhor não lembra.” “Preferia ter esquecido o desmemoriado de Collegno e lembrado onde foi que nasci.”

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“Seria um caso mais raro. Veja, o senhor logo identificou o tubinho do dentifrício, mas não se lembra de que é casado – e de fato lembrar o dia do próprio matrimônio e identificar a pasta de dente dependem de duas redes cerebrais diversas. Temos diversos tipos de memória. Uma se chama implícita e nos permite executar sem esforço uma série de coisas que aprendemos, como escovar os dentes, ligar o rádio e dar um nó na gravata. Depois da experiência dos dentes estou pronto para apostar que o senhor sabe escrever, talvez até dirigir. Quando a memória implícita nos ajuda, não temos nem consciência de que recordamos, agimos automaticamente. Depois tem a memória explícita, com a qual recordamos e sabemos que estamos

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recordando. Mas essa memória explícita é dupla. Uma é aquela que a tendência agora é chamar de memória semântica, uma memória coletiva, aquela através da qual se sabe que uma andorinha é um pássaro e que os pássaros voam e têm penas, e que Napoleão morreu quando... quando o senhor falou. E esta me parece que a do senhor está em ordem, por Deus!, talvez até demais, pois basta que lhe dê um input e já começa a conectar lembranças que eu definiria como escolásticas, ou a usar frases feitas. Mas essa é a primeira que se forma, mesmo na criança; a criança aprende rapidamente a reconhecer uma máquina, ou um cão, e a formar esquemas gerais, portanto se viu um pastor alemão uma vez e lhe disseram que é um cachorro, ela dirá cachorro mesmo quando vir um labrador. Mas por outro lado, a criança leva mais tempo para elaborar o segundo tipo de memória explícita, que chamamos de episódica ou autobiográfica. Não é capaz, por exemplo, de recordar de imediato vendo um cachorro, de que no mês anterior esteve no jardim da avó e viu um cão e que foi ela própria quem viveu as duas experiências. É a memória episódica que estabelece um nexo entre o que somos hoje e o que fomos, senão, quando disséssemos eu, estaríamos nos referindo apenas àquilo que sentimos agora, não ao que sentíamos antes, que se perderia justamente na névoa. O senhor não perdeu a memória semântica mas a episódica, quer dizer, os episódios de sua vida. Em suma, diria que sabe tudo que os outros sabem, e imagino que se lhe perguntasse qual é a capital do Japão...”

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“Tóquio. Bomba atômica em Hiroshima. O general MacArthur...” “Chega, chega. É como se recordasse tudo aquilo que se aprende por ter lido em algum lugar ou ouvido dizer, mas não o que está associado às suas experiências diretas. Sabe que Napoleão foi derrotado em Waterloo, mas tente me dizer o que lembra de sua mãe.” “Mãe só tem uma, mãe é mãe... Mas de minha mãe não lembro. Imagino que tive uma mãe porque sei que é uma lei da espécie, mas... aí está... a névoa. Estou mal, doutor. É horrível. Preciso de alguma coisa para dormir de novo.” “Vou lhe dar, já exigi demais do senhor. Deite-se bem, assim, assim... Repito, acontece, mas tem cura. É preciso muita paciência. Mandarei que lhe tragam alguma coisa para beber, um chá por exemplo. Gosta de chá?” “Talvez sim talvez não.” Trouxeram-me o chá. A enfermeira fez-me sentar apoiado nos travesseiros e botou um carrinho na minha frente. Jogou água fumegante numa xícara com um envelopinho dentro. Devagar que queima, disse. Devagar como? Cheirava a taça e sentia um cheiro, como dizer, de fumaça. Queria provar o sabor do chá, agarrei a xícara e engoli. Atroz. Um fogo, uma chama, uma bofetada na boca. Então é isso o chá fervente. Deve ser assim também com o café e a camomila de que tanto falam. Agora sei o que quer dizer queimar. Todos sabem que não se deve tocar o fogo, mas eu não sabia em que momento se pode tocar em água quente. Tenho que aprender a entender o limite, o momento no qual antes não pode e depois pode. Mecanicamente soprei o líquido, depois mexi com a colherinha, até decidir que já podia tentar outra vez. Agora o chá estava morno e bom de beber. Não estava certo de qual era o gosto do chá, qual o do açúcar, um deveria ser áspero e o outro doce, mas qual é o doce e qual o áspero? Juntos porém me agradavam. Beberei sempre chá com açúcar. Mas não fervente.

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O chá me deu uma sensação de paz e relaxamento e peguei no sono.

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Acordei de novo. Talvez porque no sono eu estava coçando a virilha e o escroto. Debaixo das cobertas suei. Chagas de decúbito? A virilha é úmida, mas passando-se a mão nela de modo demasiado enérgico, depois de uma primeira sensação de prazer violento, sente-se uma fricção desagradável. Com o escroto é melhor: passando-o por entre os dedos, delicadamente devo dizer, sem chegar a apertar os testículos, sente-se algo de granuloso e levemente peludo: é bom coçar o escroto, não é que a coceira suma logo, torna-se aliás mais forte, mas dá mais gosto de continuar. O prazer é a cessação da dor, mas a coceira não é uma dor, é um convite a se dar prazer. A comichão da carne. Transigindo-se com isso comete-se pecado. O jovem prevenido dorme supino com as mãos cruzadas no peito para não cometer atos impuros no sono. Coisa estranha, o prurido. E os meus colhões. Você é um escroto. Aquele sim tem os colhões roxos. Abri os olhos. Na minha frente há uma senhora, não muito jovem, mais de cinqüenta, me parece, com pequenas rugas em torno dos olhos, mas com um rosto luminoso, ainda fresco. Algumas mechas brancas, quase imperceptíveis, quase como se ela as tivesse clareado de propósito, uma coqueteria, como quem dissesse não quero passar por uma mocinha mas porto bem a minha idade. Era bonita, mas quando jovem deve ter sido belíssima. Acarinhava minha testa. “Yambo”, disse-me. “Iambo quem, senhora?” “Você é Yambo, é assim que todos o chamam. E eu sou Paola. Sou sua mulher. Me reconhece?” “Não senhora, desculpe, não Paola, sinto muito, o doutor deve ter lhe explicado.” “Explicou. Não sabe mais o que aconteceu com você, mas ainda sabe muito bem o que aconteceu com os outros. Como eu faço parte de sua história pessoal, não sabe mais que somos casados há mais de trinta anos, Yambo, querido. E temos duas filhas, Carla e Nicoletta, e três maravilhosos netos. Carla casou cedo e teve dois filhos, Alessandro de cinco anos e Luca de três. Giangio, Giangiacomo, o filho de Nicoletta, também tem três. Primos gêmeos, você costumava

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dizer. E você foi... é... será ainda um avô maravilhoso. E foi também um bom pai.” “E... sou um bom marido?” Paola ergueu os olhos para o céu: “Ainda estamos aqui, não? Digamos que em trinta anos de vida há altos e baixos. Você sempre foi considerado bonitão...” “Esta manhã, ontem, faz dez anos, vi uma cara horrenda no espelho.” “Com tudo o que lhe aconteceu, é o mínimo. Mas você foi, ainda é um homem bonito, tem um sorriso irresistível e algumas não resistiram. Nem você, que dizia sempre que se pode resistir a tudo menos às tentações.” “Peço desculpas.” “Veja só, como os que lançavam mísseis inteligentes sobre Bagdá e depois se desculpavam quando morriam alguns civis.” “Mísseis em Bagdá? Não está nas Mil e uma noites.” “Houve uma guerra, a Guerra do Golfo, agora já acabou, ou não, talvez. O Iraque invadiu o Kuwait, os estados ocidentais intervieram. Não lembra de nada?” “O médico disse que a memória episódica – que parece que entrou

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em tilt – é ligada às emoções. Talvez os mísseis sobre Bagdá tenham sido uma coisa que me emocionou.” “E como! Você sempre foi um pacifista convicto e essa guerra o deixou em crise. Quase duzentos anos atrás, Maine de Biran distinguia três tipos de memória, idéias, sensações e hábitos. Você lembra de idéias e hábitos, mas não de sensações, que no entanto são as coisas mais suas.” “Como é que sabe de todas essas coisas?” “Sou psicóloga de profissão. Mas espere um momento: você acabou de dizer que a sua memória episódica deu tilt. Por que usou essa expressão?” “É assim que se diz.” “Sim, mas é uma coisa que acontece no fliperama e você é... era louco por flíper, como uma criança.”

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“Sei o que é um fliperama. Mas não sei quem sou eu, entende? A névoa cobre o vale Padano. A propósito, onde estamos?” “No vale Padano. Vivemos em Milão. Nos meses de inverno, da nossa casa se vê a névoa no parque. Você vive em Milão, é um livreiro e tem um antiquário de livros.” “A maldição do faraó. Se sou Bodoni e me batizaram Giambattista só podia acabar assim.” “Acabou da forma certa. Você é muito bem considerado em seu trabalho, não somos milionários mas vivemos bem. Vou ajudá-lo, pouco a pouco você vai conseguir se recuperar. Deus meu, quando eu penso, poderia nem ter acordado; os médicos foram ótimos, pegaram você a tempo. Meu amor, posso lhe dar as boas-vindas? Parece que é a primeira vez que você me vê. Pois bem, se eu o estivesse encontrando agora, pela primeira vez, casaria da mesma maneira. Está bem?” “Você é um amor. Preciso de você. É a única que pode me contar dos meus últimos trinta anos.” “Trinta e cinco. Nos conhecemos na universidade, em Turim, você estava para se formar e eu era a caloura perdida nos corredores do Palácio Campana. Perguntei onde era uma certa sala, você logo ficou de olho e seduziu a colegial indefesa. Depois, entre uma coisa e outra, eu era jovem demais e você passou três anos no exterior. Em seguida fomos morar juntos dizendo que era uma experiência, mas no final fiquei grávida e nos casamos, afinal você era um cavalheiro. Não, desculpe, também porque nos amávamos, de verdade, e você gostava da idéia de ser pai. Coragem, papai, vou fazê-lo lembrar de tudo, vai ver.” “A não ser que seja tudo um complô, que eu me chame Felicino Grimaldelli e seja arrombador, que você e Gratarolo estejam me contando um monte de mentiras, sei lá, talvez porque sejam do serviço secreto e precisem construir uma nova identidade para me mandar espionar além do Muro de Berlim, Ipcress Files, e...” “Não existe mais Muro de Berlim, foi posto abaixo e o império soviético está indo pelo ralo...”

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“Jesus, você vira a cabeça um momentinho e olha o que aprontam. Está bem, eu estava brincando, confio em você. O que são os stracchini de Broglio?” “O quê? O stracchino é um queijo pastoso, mas esse é o nome que dão no Piemonte, aqui em Milão se chama crescenza. O que há com os stracchini?”

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“Foi quando eu estava apertando o tubo de pasta de dente. Espere. Havia um pintor chamado Broglio, que não conseguia se manter com seus quadros mas não queria trabalhar argumentando que tinha uma neurose. Parece que era uma desculpa para ser sustentado pela irmã. Finalmente os amigos lhe arranjaram um emprego numa empresa que fazia ou vendia queijos. Ele passava diante de uma grande pilha de stracchini, todos embrulhadinhos em papel-manteiga, e não resistia à tentação, por causa da neurose (dizia ele): pegava um por um e chac, esmagava fazendo o stracchino espirrar fora do embrulho. Depois de ter estragado uma centena de stracchini, foi despedido. Tudo por culpa da neurose, dizia que para ele sgnaché i strachèn* era um gozo irresistível. Por Deus, Paola, essa é uma lembrança de infância! Eu não perdi a memória de minhas experiências passadas?” Paola pôs-se a rir. “Agora me lembro, desculpe. Claro, era uma história que aprendeu quando era pequeno. Mas que contava sempre, era como se diz uma peça do seu repertório, você divertia seus comensais com a história dos stracchini do pintor e eles a passavam adiante. No entanto infelizmente você não está recordando uma experiência sua, simplesmente sabe uma história que recitou muitas vezes e que para você virou (como dizer?) um bem público, como a história de Chapeuzinho Vermelho.” “Você está se tornando indispensável para mim. Estou contente de que seja minha mulher. Agradeço-lhe por existir, Paola.” “Deus meu, um mês atrás você diria que isso é uma expressão kitsch de telenovela...”

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“Desculpe. Não consigo dizer nada que me venha do coração. Não tenho sentimentos, só ditos memoráveis.” “Pobre querido.” “Bem, essa também é uma frase feita.” “Cretino.” Essa Paola gosta mesmo de mim. Passei uma noite tranqüila, sabe-se lá o que Gratarolo me pôs na veia. Despertei aos poucos, e acho que ainda estava de olhos fechados porque ouvi a voz de Paola que sussurrava, temendo me acordar: “Mas não poderia ser uma amnésia psicogênica?” “Não se pode excluir”, respondia Gratarolo, “na origem desses incidentes sempre pode haver tensões imponderáveis. Mas a senhora viu as fichas clínicas, as lesões existem.” Abri os olhos e disse bom-dia. Havia também duas mulheres e três crianças, nunca vistas antes, mas podia imaginar quem eram. Foi terrível, porque com a esposa, paciência, mas as filhas, Deus meu, são sangue do seu sangue e os netos mais ainda, e os olhos daquelas duas brilhavam de felicidade, as crianças queriam subir na cama, pegavam minha mão e me diziam oi, vovô, e eu nada. Não era nem névoa; era, como direi, apatia. Ou se diz ataraxia? Era como olhar animais no zoológico, podiam ser macaquinhos ou girafas. Claro que eu sorria e dizia palavras gentis, mas por dentro estava vazio. Ocorreu-me a palavra sgurato, mas não sabia o que queria dizer. Perguntei a Paola: é um termo piemontês que designa aquela panela que você lava bem e depois esfrega por dentro com aquela espécie de palha de aço para deixá-la como nova, brilhante e limpa como nunca. Pois eu me sentia completamente sgurato. Gratarolo,

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Paola, as meninas estavam me enfiando na cabeça mil detalhes da minha vida, mas era como se fossem caroços de feijão, mexendo a panela eles deslizavam lá por dentro mas continuavam crus, não se diluíam em nenhum caldo, em nenhum creme, nada que fizesse o gosto palpitar, nada que eu quisesse experimentar de novo. Aprendia coisas acontecidas comigo como se tivessem acontecido com outra pessoa.

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Acariciava as crianças e sentia seu cheiro sem conseguir defini-lo, exceto que era muito suave. Vinha-me à mente que há perfumes frescos como carnes de bebê. E de fato minha cabeça não estava vazia, nela volteavam memórias não minhas, a marquesa saiu às cinco no meio do caminho desta vida, Ernesto Sábato e a donzelinha vêm dos campos, Abraão gerou Isaque Isaque gerou Jacó Jacó gerou Judas e Rocco e seus irmãos, o campanário bate a meia-noite santa e foi então que vi o pêndulo, no ramo do lago de Como dormem dois pássaros de longas asas, messieurs les anglais je me suis couché de bonne heure, aqui ou se faz a Itália ou se mata um homem morto, tu quoque alea, soldado que escapa pára és belo, irmãos italianos ainda um esforço, o arado que traça o sulco é bom para outra volta, a Itália está batida mas não se rende, combateremos à sombra ed è súbito sera, três mulheres em torno ao coração e sem vento, a inconsciente azagaia bárbara à qual estendias a pequenina mão, não pedir a palavra enlouquecida de luz, dos Alpes às Pirâmides fez a guerra e usou o elmo, frescas as minhas palavras na tarde para aqueles quatro poemetos das dúzias, sempre líbera sobre asas douradas, adeus montes nascidos das águas, mas meu nome é Lúcia, ou Valentino Valentino tordilho, Guido eu gostaria que no céu descolorissem, conheci o tremular as armas os amores, de la musique où marchent des colombes, fresca e clara é a noite e o capitão, ilumino-me pio boi, embora o falar seja inútil, eu os vi em Pontida, em setembro iremos onde florescem os limões, aqui começa a aventura do Peleio Aquiles, tomo banho de lua diga-me o que fazes, no princípio a terra estava como imóvel, Licht mehr Licht über alles, condessa o que é então a vida? três corujas no guarda-pó. Nomes, nomes, nomes, Angelo Dall’Oca Bianca, Lord Brummell, Píndaro, Flaubert, Disraeli, Remigio Zena, Jurássico, Fattori, Straparola e as noites agradáveis, a Pompadour, Smith & Wesson, Rosa Luxemburgo, Zeno Cosini, Palma o Velho, Arqueoptérix, Ciceruacchio, Mateus Marcos Lucas João, Pinóquio, Justine, Maria Goretti, Taide puta das unhas merdosas, Osteoporose, Saint Honoré, Bacta Ecbatana Persépolis Susa Arbela, Alexandre e o nó górdio. Página 2 6

A enciclopédia me caía em cima em folhas destacadas, e me vinha de abanar as mãos como se estivesse no meio de um enxame de abelhas. Entretanto as crianças diziam vovô, sabia que deveria amá-las mais que a mim mesmo e não sabia quem chamar de Giangio, quem de Alessandro e quem de Luca. Sabia tudo de Alexandre, o grande, e nada de Alessandro, o meu pequenino. Disse que me sentia fraco e precisava dormir. Saíram, eu chorava. As lágrimas são salgadas. Donde, eu ainda tinha sentimentos. Sim, mas fresquinhos da hora. Aqueles de antes já não eram mais meus. Quem sabe, perguntava-me, se alguma vez fui religioso: certamente, de qualquer jeito, perdera a alma.

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Na manhã seguinte, Paola também estava, Gratarolo me fez sentar numa mesinha e mostrou uma série de quadradinhos coloridos, muitíssimos. Estendia-me um e perguntava de que cor era. Dim, dim dim, sapatinho rosa, dim, dim, dim, de que cor que é? Cor sonequim, cor de carmim, salta fora ó garibaldim! Reconheci com segurança as seis primeiras cores, vermelho, amarelo, verde e assim por diante. Disse naturalmente que A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu, voyelles, je dirais quelque jour vos naissances latentes, mas percebi que o poeta, ou quem falava em seu nome, mentia. O que quer dizer que A é preto? Aliás, era como descobrir as cores pela primeira vez: o vermelho era muito alegre, vermelho fogo, mas também muito forte – não, talvez o amarelo fosse mais forte, como uma luz que se acendesse de repente diante de meus olhos. E o verde me dava uma sensação de paz. O problema chegou com os outros quadradinhos. O que é isso? Verde, dizia eu, mas Gratarolo insistia, que tipo de verde, em que sentido é diferente desse outro? Hum. Paola me explicava que um era verde-malva e outro verde-ervilha. A malva é uma erva, respondia eu, e as ervilhas verduras que se comem, redondas dentro de uma vagem longa e inchada, mas nunca vira nem malva nem ervilhas. Não se preocupe, dizia Gratarolo, em inglês há mais de trinta mil termos para cores, mas em geral as pessoas sabem nomear no máximo oito, em média reconhecemos as cores do arco íris, vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, índigo e roxo, mas já

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entre o índigo e o roxo as pessoas não sabem distinguir bem. É preciso muita experiência para saber discriminar e nomear as cores, e um pintor sabe fazer isso melhor que, sei lá, um taxista, que só precisa reconhecer as cores de um sinal de trânsito. Gratarolo me deu papel e caneta. Escreva, disse. “E que diabos devo escrever?”, escrevi, e parecia que nunca fizera outra coisa, a caneta era macia e deslizava bem sobre o papel. “Escreva o que lhe vier à mente”, disse Gratarolo. Mente? Escrevi: amor que na mente raciocina, o amor que move o sol e outras estrelas, antes só que mal acompanhado, muitas vezes o mal de viver encontrei, ai vida ai vida minha ai coração desse coração, no coração não se manda, De Amicis, dos amigos Deus me guarde, oh Deus do céu se eu fosse uma andorinha, se eu fosse fogo queimaria o mundo, viver ardendo e não sentir o mal, mal não fazer medo não ter, o medo faz noventa oitenta setenta mil oitocentos e sessenta, a expedição dos Mil, mil e não mais mil, as maravilhas do ano dois mil, é do poeta o fim a maravilha. “Escreva alguma coisa de sua vida”, disse Paola. “O que fazia aos vinte anos?” Escrevi: “Tinha vinte anos. Não permitirei que ninguém diga que essa é a mais bela idade da vida.” O doutor me perguntou qual a primeira coisa que me veio à mente quando acordei. Escrevi: “Quando Gregor Samsa despertou certa manhã encontrou-se em seu leito transformado num imenso inseto.” “Acho que já chega, doutor”, disse Paola. “Não o deixe seguir demais com essas cadeias associativas, senão acaba ficando doido.” “Sim, e agora lhes pareço bem por acaso?” Quase num repente Gratarolo ordenou: “E agora assine, sem pensar, como se fosse um cheque.” Sem pensar, tracei um “GBBodoni”, com o esvoaçar final e depois um pontinho redondo sobre o i. “Viu? Sua cabeça não sabe quem é, mas sua mão sim. Era previsível.

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Vamos fazer uma outra prova. O senhor me falou de Napoleão. Como era?” “Não consigo evocar a sua imagem. Basta a palavra.”

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Gratarolo perguntou a Paola se eu sabia desenhar. Parece que, sem ser um artista, eu me viro bastante bem rabiscando. Pediu-me que desenhasse Napoleão. Fiz algo do gênero. “Nada mal”, comentou Gratarolo, “desenhou o seu esquema mental de Napoleão, o tricorne, a mão no colete. Agora vou mostrar uma série de imagens. Primeira série, obras de arte.” Reagi bem: a Gioconda, a Olímpia de Manet, isso é um Picasso ou alguém que o imita bem. “Viu como conseguiu reconhecê-los? Agora vamos para os personagens contemporâneos.” Segunda série de fotografias, e aqui também, salvo alguns rostos que não me diziam nada, respondi de modo satisfatório: Greta Garbo, Einstein, Totò, Kennedy, Moravia, etc., e qual era a profissão deles. Gratarolo me perguntou o que tinham em comum. Serem famosos? Não, não basta, tem outra coisa. Eu hesitava. “É que todos já morreram”, disse Gratarolo. “Como, até Kennedy e Moravia?” “Moravia morreu no final do ano passado, Kennedy foi assassinado em Dallas, em 1963.” “Coitados, sinto muito.”

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“Não se lembrar de Moravia é quase normal, morreu faz pouco, vê-se que não teve tempo para consolidar o acontecimento em sua memória semântica. Mas não entendo Kennedy, que é uma história velha, de enciclopédia.” “Ele ficou muito tocado com o caso Kennedy”, disse Paola. “Talvez tenha se misturado com suas memórias pessoais.” Gratarolo veio com outras fotografias. Numa havia duas pessoas, e a primeira era eu, com certeza, penteado e vestido como cristão, com o sorriso irresistível que Paola mencionara. Na outra também havia uma cara simpática, mas não sabia quem era. “É Gianni Laivelli, seu melhor amigo”, disse Paola. “Companheiros de escola desde o primário até o liceu.” “Quem são esses?”, perguntou Gratarolo mostrando outra imagem. Era uma foto velha, ela com um penteado anos trinta, uma roupa branca pudicamente decotada, o nariz batatinha, mas bem miudinho, e ele com um repartido perfeito, talvez um pouco de brilhantina, um nariz pronunciado, um sorriso muito aberto. Não os reconheci (artistas? Não, pouco glamour e pouca encenação, recém-casados talvez), mas senti como um aperto na boca do estômago e – não sei como dizer – um gentil delíquio. Paola se deu conta: “Yambo, são seu pai e sua mãe no dia de seu casamento.” “Ainda estão vivos?”, perguntei. “Não, morreram já faz tempo. Em um acidente de carro.” “O senhor perturbou-se quando viu a foto”, disse Gratarolo. “Certas imagens despertam alguma coisa aí dentro. Trata-se de um caminho.”

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“Mas que caminho, se não consigo nem repescar meu pai e minha mãe desse buraco negro do diabo”, gritei. “Vocês disseram que aqueles dois eram minha mãe e meu pai, agora já sei, mas é uma recordação que vocês me deram. De agora em diante vou lembrar dessa foto, deles não.” “Quem sabe quantas vezes, nesses últimos trinta anos, o senhor também se lembrou deles porque continuava a olhar essa foto. Não

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pense na memória como um armazém onde deposita as recordações e depois vai pescá-las exatamente como se fixaram na última vez”, disse Gratarolo. “Não quero ser técnico demais, mas a lembrança é a construção de um novo perfil de excitação neuronal. Digamos que em um certo lugar tenha lhe acontecido uma experiência desagradável. Mais tarde, quando o senhor se lembrar desse lugar, reativa aquele padrão anterior de excitação neuronal, com um perfil de excitação semelhante mas não igual àquele que foi estimulado originalmente. Portanto ao recordar sentirá uma sensação desagradável. Em suma, recordar é reconstruir, com base também no que soubemos ou dissemos tempos depois. É normal, é assim que lembramos. Estou lhe dizendo isso para encorajá-lo a reativar perfis de excitação, não se meter toda vez a escavar como um possesso para encontrar alguma coisa que já esteja lá, fresca como o senhor pensa tê-la guardado da primeira vez. A imagem de seus pais nessa foto é aquela que nós lhe mostramos e que vemos. O senhor precisa partir dessa imagem para recompor algo mais, e só isso será a sua lembrança. Recordar é um trabalho, não um luxo.” “As lúgubres e duradouras lembranças”, recitei, “esse resto de morte que deixamos viver...” “Recordar é bom também”, disse Gratarolo. “Alguém disse que a recordação age como uma lente convergente numa câmara escura: concentra tudo e a imagem que resulta é muito mais bela que o original.” “Tenho vontade de fumar”, disse eu. “Sinal de que o seu organismo está retomando um andamento normal. Mas se não fumar é melhor. E quando voltar para casa, álcool com moderação, não mais de um copo à refeição. O senhor tem problemas de pressão. Do contrário não poderei deixá-lo sair amanhã.” “Vai deixá-lo sair?”, perguntou Paola ligeiramente assustada. “É o momento de acertar as contas, senhora. Do ponto de vista físico seu marido mostra bastante autonomia. Não é que vai cair das escadas porque deixei que voltasse. Mantendo-o aqui acabaremos

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por esgotá-lo com uma montanha de testes, sempre experiências artificiais, que agora já sabemos que resultado terão. Creio que vai lhe fazer bem voltar ao seu ambiente. Às vezes ajuda mais sentir de novo o sabor de um alimento familiar, um cheiro, que sei eu? Sobre essas coisas a literatura nos ensinou mais que a neurologia...” Não é que quisesse me fazer de sabichão, mas afinal, se só me restava aquela maldita memória semântica, que pelo menos a usasse: “A madeleine de Proust”, disse. “O sabor da infusão de tília e do bolinho o faz estremecer, sente uma alegria violenta. E reaflora a imagem dos domingos em

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Combray com a tia Léonie... Parece que há uma memória involuntária dos membros, as pernas e os braços estão cheios de recordações entorpecidas... E quem era aquele outro? Nada obriga as lembranças a se manifestarem como os cheiros e a chama.” “Sabe do que estou falando. Até os cientistas às vezes acreditam mais nos escritores que em suas máquinas. A senhora é quase do ramo, não é neurologista mas é psicóloga. Posso lhe dar alguns poucos livros, descrições de alguns casos célebres, e logo entenderá quais são os problemas de seu marido. Creio que estar junto da senhora e de suas filhas e voltar ao trabalho vai ajudá-lo mais do que ficar aqui. É suficiente que ele venha me ver uma vez por semana para acompanharmos sua evolução. Volte para casa, senhor Bodoni. Olhe ao redor, toque, cheire, leia os jornais, veja televisão, vá em busca de imagens.” “Tentarei, mas não lembro de imagens, nem de cheiros nem de sabores. Só palavras.” “Quem disse? Faça um diário com suas reações. Trabalharemos com ele.” Comecei a escrever um diário. No dia seguinte fiz as malas. Desci com Paola. Pelo visto, o hospital tinha ar condicionado, pois logo entendi, e só então, o que é o calor do sol. A tepidez de um sol primaveril, ainda verde. E a luz: tive que apertar os olhos. Não se pode fixar o sol: Soleil, soleil, faute éclatante... Página 3 2

Ao chegar ao carro (nunca dantes visto) Paola me disse para experimentar. “Entre, engrene, depois ligue. Sempre engrenado, acelere.” Como se nunca tivesse feito outra coisa, soube instantaneamente onde colocar mãos e pés. Paola sentou-se a meu lado dizendo que eu engatasse a primeira, tirasse o pé do pedal e apertasse de leve o acelerador, o bastante para me mover um metro ou dois e depois frear e desligar. Assim, se eu errasse, no máximo acabava em cima de uma moita do jardim. Mas foi tudo bem. Estava orgulhoso. Como desafio andei um metro em marcha a ré. Depois desci, passei a direção para Paola e partimos. “O que está achando do mundo?”, perguntou-me Paola. “Sei lá. Dizem que os gatos, quando caem da janela e batem o nariz, não sentem mais os cheiros e, como vivem do olfato, não conseguem mais reconhecer as coisas. Eu sou um gato que bateu com o nariz. Vejo coisas, entendo com certeza do que se trata, lá embaixo as lojas, aqui uma bicicleta que passa, lá as árvores, mas não... não os sinto em meu corpo, é como se tentasse enfiar o paletó de um outro.” “Um gato que tenta enfiar um paletó com o nariz. Você ainda está com as metáforas desreguladas. Preciso contar a Gratarolo, mas vai passar.” O carro prosseguia, eu olhava ao redor, descobria cores e formas de uma cidade desconhecida.