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Unidade III Ética, Cidadania e Direitos Humanos Síntese da Unidade Nesta unidade veremos as noções básicas da Cidadania, suas diferentes concepções ao longo da história, as relações entre Cidadania e Estado; Cidadania e Direitos Humanos; Cidadania e a questão das chamadas Minorias; e a relação entre Ética e Cidadania. Objetivos da Unidade Compreender a Ética à luz da constituição de uma sociedade cidadã; Compreender a cidadania à luz dos direitos e dos deveres do cidadão. Como estudar a Unidade Você deverá estudar a unidade, lendo o texto, “Ética e Cidadania”, deverá buscar leituras complementares indicadas nos links, ao longo do texto, fazer os exercícios propostos nas Atividades da Unidade, participar do Fórum de Discussões e se interagir com o professor e com os colegas. Introdução

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Unidade III

Ética, Cidadania e Direitos Humanos

Síntese da Unidade

Nesta unidade veremos as noções básicas da Cidadania, suas

diferentes concepções ao longo da história, as relações entre

Cidadania e Estado; Cidadania e Direitos Humanos; Cidadania e

a questão das chamadas Minorias; e a relação entre Ética e

Cidadania.

Objetivos da Unidade

Compreender a Ética à luz da constituição de uma sociedade

cidadã;

Compreender a cidadania à luz dos direitos e dos deveres do

cidadão.

Como estudar a Unidade

Você deverá estudar a unidade, lendo o texto, “Ética e

Cidadania”, deverá buscar leituras complementares indicadas

nos links, ao longo do texto, fazer os exercícios propostos nas

Atividades da Unidade, participar do Fórum de Discussões e se

interagir com o professor e com os colegas.

IntroduçãoVimos nas duas unidades anteriores, que a ética refere-se à prática moral, ou

seja, a ética é nossa reflexão sobre nossas práticas morais. Por isso podemos dizer que a

ética é a filosofia da moral, ou a reflexão sobre nossos atos morais. A relação entre ética

e cidadania também não é diferente. O estudo sobre a ética nos permite refletirmos

sobre nossa vida cidadã. Ética e cidadania estão diretamente relacionadas entre si.

Impossível sermos verdadeiramente cidadãos sem sermos éticos. A cidadania diz

respeito à nossa relação com o Estado e com ele temos relações de direitos e obrigações.

Já vimos na Unidade II que o sujeito ético e moral é aquele que, tendo uma relação de

respeito com o outro, a tem consigo mesmo e vice-versa. Pois bem, ser cidadão também

não é diferente. Isto porque ao exercermos nossa cidadania, fazendo valer nossos

direitos e deveres, estamos deixando claros os limites entre individualidade e

coletividade e, principalmente, os limites entre o público e o privado.

Como observa Patrice Canivez, “A cidadania define a pertença (do indivíduo) a

um Estado” (CANIVEZ, 1991:15). Porém ela alcança limites que vão além das suas

definições jurídicas e constitucionais. Como a ética, a cidadania também nos coloca

como co-responsáveis pela comunidade na qual estamos inseridos, nas relações com o

poder público e nas relações que estabelecemos com os outros, seja no ambiente

público, seja no ambiente privado. Margarita Barretto, uma estudiosa dos impactos

sociais do turismo no Brasil, publicou um artigo muito interessante, denominado

“Espaço público: usos e abusos”. Nele, ela chama a atenção para o fato de que fazemos

uso do espaço público, transgredindo-o. A importância do seu artigo se deve a um

aspecto sobre o qual poucos cidadãos estão atentos: o de que a cidadania não se trata

somente de direitos, mas também de deveres, de responsabilidade e respeito no uso da

coisa pública (BARRETTO, 1996).

Barretto, em seu estudo, identificou uma pesquisa realizada em uma escola

pública de Belo Horizonte. Essa pesquisa procurava conhecer o que os alunos pensavam

sobre as carteiras, as paredes e todo o bem público que representava a escola na qual

estudavam. Para espanto dos pesquisadores, a resposta das crianças foi de que para elas,

“... público não era de todo mundo (...) isso não tem dono, não é de ninguém”

(BARRETTO, 1996: 40).

Pois bem, o público, portanto, é “coisa de ninguém”. O que isto revela? Revela

que a cultura cidadã está bem distante da mentalidade social e cultural do brasileiro, que

fala em cidadania, e com razão, para reclamar da falta de segurança, do esgoto a céu

aberto, dos altos impostos, do mau atendimento à saúde, do desemprego, etc.; porém se

esquece que é cidadão, nos momentos do exercício da sua cidadania, no respeito e

preservação da coisa pública. Vejamos algumas situações, na forma da seguinte

pergunta: qual de vocês nunca viu, sendo ator ou espectador...

Automóveis estacionados próximos a bares, sobre as praças da sua cidade?

Alguém sentar-se no encosto do banco da praça, com os pés no local do assento?

Telefones públicos depredados?

“Bitucas” de cigarro, latas de cerveja e refrigerantes, papéis de bala e de gomas

de mascar, atirados para fora de carros e transportes coletivos?

Alunos quebrando vidraças das escolas nas quais estudam?

Destruição e/ou roubo de placas de sinalização de trânsito?

Alguém “furar” a fila do cinema, do show de um pop star, do transporte

coletivo?

Situações como essas e outras que vocês poderiam acrescentar, revelam uma

relação invertida que, em geral, temos com a coisa pública. Ao interpretarmos

equivocadamente que o espaço público é coisa de ninguém e o depredamos ou fazemos

mau uso dele, não nos damos conta de que estamos nos voltando contra nós mesmos,

ferindo a nossa cidadania e a do outro. Diante disto, devemos ter em mente que os

direitos do cidadão passam também pelo seu comportamento ético na relação com a

comunidade na qual está inserido. Caso contrário, como reclamarmos do banco sujo da

praça e exigirmos nosso direito de lazer? Como reclamarmos da falta de serviço de

telefonia pública nos bairros em que vivemos? Como culparmos exclusivamente o

poder público pelas enchentes constantes, se contribuímos para entupir galerias, jogando

lixo na rua, no espaço público? Como acusarmos o Estado de ingerência com a coisa

pública, se contribuímos para depredar a escola em que estudamos?

Exemplos como os citados anteriormente nos fazem perceber que exercemos ou

pelo menos deveríamos exercer a cidadania todos os dias, ou seja, a cidadania é algo

que faz parte do nosso cotidiano. Infelizmente, porém, nem sempre foi assim. Falar em

cidadania na história recente do Brasil era algo comprometedor, podendo o cidadão ser

preso, torturado e morto pelo próprio Estado, sob acusação de subversão da ordem; falar

em cidadania e direitos humanos nos Estados Unidos na década de 1960, ao defender os

direitos de negros freqüentarem universidades e participarem da vida política daquele

país, era o mesmo que ser taxado de comunista.

Por isto, para uma melhor compreensão do que seja cidadania e da sua relação

com a ética, voltemos novamente à história e vejamos onde foi que nasceu a cidadania e

como ela se desenvolveu no tempo.

Cidadania e História

Encontramos as origens da cidadania na polis grega, a cidade-Estado na Grécia

Antiga. Ser cidadão era sinônimo de homem livre, que participava ativamente da vida

política. Ser um homem livre era ser essencialmente um homem político, com

capacidade para exercer direitos e deveres, na esfera pública e na esfera privada

(COVRE, 1995).

A pólis grega

Fonte: www.mundoeducacao.com.br/.../grecia-antiga.htm

Aristóteles entendia que para ser cidadão não bastava reivindicar direitos, mas

principalmente exercer função pública. A respeito do entendimento de Aristóteles sobre

cidadania, Patrice Canivez acrescenta que

A cidadania é, pois, a participação ativa nos assuntos da Cidade. É o fato de não ser meramente governado, mas também governante. Nesse sentido, a liberdade não consiste apenas em gozar de certos direitos; consiste essencialmente no fato de ser, como diz Hannah Arendt, ‘co-participante no governo’ (CANIVEZ, 1991:).

Apesar de ser incontestável a definição que Canivez buscou em Aristóteles, ou

seja, a de que a cidadania é algo que perde o sentido se não houver participação do

cidadão nas decisões que dizem respeito à coisa pública, devemos lembrar que o

conceito de cidadania na Grécia Antiga era bastante restrito, pois não eram cidadãos as

mulheres, as crianças, os escravos e aqueles que cometiam faltas graves. Este dado é

importante, porque veremos que com o tempo, o conceito de cidadania se estende a

grupos sociais mais amplos.

Na Idade Média, porém, assistimos ainda um retrocesso do sentido que adquiriu

a cidadania na Grécia e em Roma, na antiguidade. No período medieval, a cidadania

como expressão da relação do indivíduo com o Estado, perdeu o sentido. Isso porque

não havia Estado e a vida era predominantemente rural, feudal. Além disso, porque

imperavam as relações entre os homens baseadas nos princípios da honra e dos valores

cristãos, como as relações entre os senhores e os servos e destes com a Igreja.

Servo trabalhando

Fonte: LAVER, 2003

Já na transição do feudalismo para o capitalismo, num primeiro momento, ainda

não podemos falar em cidadania plena, pois, apesar de ter ocorrido uma intensificação

da vida urbana e dos domínios feudais terem sido substituídos pelo poder do Estado,

este Estado era despótico (http://pt.wikipedia.org/wiki/Despotismo), ou seja, tirano,

com poder bastante centralizado nas mãos do monarca, que governava pela “vontade de

Deus” em favor dos privilégios da aristocracia. Este tipo de Estado, como afirma Covre,

era o “Estado de Nascimento”, no qual, somente os “bem nascidos”, os de “sangue

azul” , podiam gozar direitos e privilégios adquiridos. Assim,

...a sorte dos homens podia ser decidida arbitrariamente; não havia como se opor à morte ou a outras imposições. Assim o foi também, de forma tirânica, na Idade Média. Na sociedade feudal, os servos e os camponeses eram tratados como gado, agregados à gleba (terra, terreno feudal); não tinham escolha sobre seus destinos, nem arbítrio sobre seus valores. Se, sob o Estado Monárquico, os camponeses e os trabalhadores já

desfrutavam certa liberdade de locomoção e algum desígnio de suas vidas, estavam, contudo, submetidos aos desejos do monarca e não tinham como defender sua segurança pessoal. Tudo isso mudou com o surgimento do Estado liberal burguês, quando a burguesia instaurou o Estado de Direito (COVRE, 1995: 21).

Luis XIV. Considerado um símbolo do poder aristocrático francês Fonte: forademoda.wordpress.com/2007/07/25/

Neste segundo momento da transição do feudalismo para o capitalismo é que

ocorrem transformações jurídicas mais significativas nas relações entre os homens, com

as chamadas revoluções burguesas (http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu

%C3%A7%C3%A3o_burguesa), cuja Revolução Francesa (1789) foi o grande marco

no processo de constituição de uma sociedade cidadã. Com as duas grandes revoluções

burguesas, a Revolução Inglesa (1668) e a Revolução Francesa, além da Independência

dos Estados Unidos da América

(http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=207) (1776), se

constitui o Estado de Direito.

A Revolução Inglesa, por mais que os historiadores façam críticas a ela, pelo seu

caráter excludente e por redefinir a questão da terra de modo bastante desfavorável aos

camponeses, através dos cercamentos dos campos (substituição da propriedade comunal

pela propriedade privada); não se pode negar que ela foi um marco inaugural da época

moderna, no sentido de instaurar uma sociedade mais justa, com ampliação dos direitos

dos cidadãos. Através da Revolução Inglesa foi inaugurada uma primeira noção dos

direitos humanos, com a criação do “freeborn englishman”, ou seja, o inglês nascido

livre ou livre por nascença. Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia

Política na Universidade de São Paulo, esclarece:

Haveria uma série de direitos que todo inglês teria, só por nascer. Insistamos na questão do nascimento: é o que explica o termo "direitos naturais". Natural é o que temos por nascença. Direitos naturais são os que temos antes de qualquer decisão governamental ou política - sem precisarmos da boa vontade do Estado ou de quem quer que seja. Os direitos humanos surgem, na modernidade, como direitos naturais. Basta o inglês nascer para tê-los. Essa é uma das grandes inovações dos revolucionários ingleses de 1640. Entre tais direitos estava o de não ser obrigado a acusar a si próprio, o de não pagar impostos que não fossem votados por seus deputados, o de ter voz na política. O arremate da Revolução Inglesa iniciada em 1640 se dá em 1688, quando é deposto o rei Jaime 2º. Guilherme e Maria, que sucedem a ele, aceitam o "Bill of Rights", que é o nome inglês do que conhecemos, nas línguas latinas, como "declaração de direitos". "Bill", em inglês, é mais ou menos o que chamamos um projeto de lei - antes, portanto, de ser sancionado pelo Poder Executivo. No caso, recebe esse nome por ser um texto legal plenamente válido, mas cuja validade não deriva da assinatura do rei. Isso quer dizer que os direitos existem e vigoram, não porque um rei (ou mesmo uma assembléia) assim o quis, mas porque naturalmente todos os humanos têm tais direitos (http://www.cefetsp.br/edu/eso/cidadania/ideiaribeiro.html).

A Independência dos EUA foi também um passo importante na afirmação da

cidadania, pois reforça a idéia de que todos os homens nascem livres e iguais e inova

com as idéias de que toda a autoridade pertence ao povo, além dos ideais de bem

comum e de equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário,

inspirados

Montesquieu

Fonte: http://www.educacional.com.br/noticiacomentada/060718not01.asp

no pensamento de Charles de Montesquieu

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_de_Montesquieu). Porém, assim como a

questão da terra representou uma limitação ao avanço da questão da cidadania, na

Revolução Inglesa, a escravidão representou um embaraço na Declaração dos Direitos

de Virgínia (http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1776.htm) (1776), por

ocasião da Independência dos EUA

(http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1776.htm).

Declaração dos Direitos de Virginia (EUA)

Fonte: africanomundo.blogs.sapo.pt/4163.html

As questões da cidadania e dos direitos humanos adquirem contornos mais

definidos, principalmente com a Revolução Francesa. No processo revolucionário, ainda

em 1789, foi realizada uma Assembléia Nacional Constituinte, na qual foram abolidos

os privilégios da aristocracia feudal. O resultado da Assembléia foi a elaboração de uma

Constituição, admitida pela Convenção Nacional de 1793 cuja introdução foi

denominada de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

(http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm), baseada nos princípios da

Liberdade, Igualdade e Fraternidade (http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu

%C3%A7%C3%A3o_Francesa), de inspiração Iluminista e influenciada pela

Declaração dos Direitos da Virgínia. A Declaração afirma os direitos de igualdade, de

liberdade, de segurança e de propriedade. Reafirma os princípios de que todos são

iguais por natureza e, diante da lei, garante ao cidadão o direito de manifestar seu

pensamento e suas opiniões e o direito de imprensa. Conclama a responsabilidade do

Estado para com o cidadão, garante também o direito à educação para todos e defende o

princípio de que a soberania reside no povo

(http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm).

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793) Fonte: www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?...

Outro avanço bastante significativo no processo de fortalecimento da cidadania e

dos direitos humanos, foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem

(http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php), de 1948, após a

segunda grande guerra. Ela é um documento básico da Organização das Nações Unidas

e reitera os direitos naturais do homem, a sua liberdade, a igualdade e a sua dignidade,

independentemente de raça, credo religioso, cor, sexo, posição política, nacionalidade,

origem, etc. Afirma os direitos à educação, à saúde, ao trabalho e ao lazer e estabelece

no seu Artigo V, que “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo

cruel, desumano ou degradante”

(http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php).

Na década de 1990, ocorreram avanços mais amplos no processo de

fortalecimento da cidadania e de afirmação mais específica dos direitos humanos. Em

1993, aconteceu a Conferência Mundial de Viena 1993

(http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/

viena.htm), que foi antecedida pelas decisões da Declaração de Tunis (1992), da

Declaração de San José (1993) e da Declaração de Bangcoc (1993). Nesses encontros

foram afirmados os direitos das chamadas minorias: mulheres, crianças, idosos,

portadores do vírus HIV, expatriados e refugiados de guerra (LOCHE et.al., 1999). Foi

significativo também o encontro Rio 92 ou Eco 92

(http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/riomais10/o_que_e-2.shtml) ,

ocorrido na cidade do Rio de Janeiro em 1992, onde foi realizada a Conferência das

Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), que consagra

o princípio do desenvolvimento sustentável e chama a atenção para o fato de que a

questão do meio ambiente é também uma questão ética e cidadã. Em função do que foi

exposto neste parágrafo, a relação entre ética, cidadania e temas como a violência contra

as mulheres, crianças e idosos, a homofobia e a questão ambiental, será tratada um

pouco mais adiante.

Cidadania, Estado e SociedadePara o sociólogo inglês, Thomas Marshall, a cidadania engloba três tipos de

direitos: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos socioeconômicos. Os direitos

civis dizem respeito à livre expressão, ao direito à informação, de reunião, de

organização, de ir e vir e de igualdade perante a lei; os direitos políticos dizem respeito

aos dreitos de votar e ser votado; os direitos socioeconômicos dizem respeito ao bem-

estar, à seguridade social, ao trabalho, etc (MARSHALL apud ALVES, 2002).

Em síntese, como resume Júlia Alves,

Os direitos civis baseiam-se nas liberdades individuais e sua vigência deve ser asegurada por um Judiciário ágil e independente. Os direitos políticos conferem a cada cidadão uma parcela de influência na formação do poder político. Finalmente, os direitos sociais devem garantir-lhe um mínimo de bem estar econômico, seguridade social e a possibilidade de usufruir e participar plenamente da herança cultural da sociedade (ALVES, 2002: 64).

Diferentemente do Estado despótico, ao qual já nos referimos anteriormente, os

Estados democráticos modernos, pelo menos em tese, têm responsabilidade sobre seus

cidadãos. Por isto há que se distinguir os direitos universais do homem, do direitos do

cidadão em cada Estado Nacional. Particularmente, é no país em que vivemos que

temos nossa cidadania reconhecida. Em alguns casos, como afirma Júlia Alves, o

indivíduo pode ter mais de uma nacionalidade: a do país onde nasceu e a do país onde

nasceram seus pais. Nos dois países, ele tem os direitos de cidadania reconhecidos.

A respeito das relações entre Estado, sociedade e cidadania, Renato Janine

Ribeiro traz novos esclarecimentos, jogando um pouco mais de luz na questão dos

direitos humanos e na questão dos nossos direitos e deveres como cidadãos:

Os direitos humanos, a grande conquista moderna, procedem da idéia de que o governo está a serviço dos cidadãos e não ao contrário. Cada indivíduo, antes msmo de fazer parte do poder político, já detém direitos que são seus, pelo simples ato de nascer. É esse vínculo do direito ao nascer que permite dizer que eles são ‘direitos naturais’. Já o Estado é um instrumento para realizar fins comuns à pessoas. (...) Mesmo que cada um de nós, em sua vida, nasça dentro de um Estado – e portanto depois dele – esse último somente tem vlidade enquanto ferramenta ou meio para promover fins que são nossos. Ainda que cronologicamente o Estado preceda cada um de nós, do ponto de vista do valor os indivíduos são mais importantes que o Estado. Pelo menos é isso que significam os direitos humanos. É claro que isso não implica que o delinquente, ou um simples indivíduo, possa pôr em xeque a casa comum de todos. O Estado tem sua legitimidade ao fazer a mediação entre esses inúmeros indivíduos que são seus membros, cada um dos quais tem direitos legítimos, mas que precisam ser negociados a fim de que nenhum prevaleça a excessivas custas dos outros (RIBEIRO apud ALVES, 2002: 65).

Os esclarecimentos de Ribeiro nos advertem para a importância de reflexão

sobre nosso senso ético, pois é do convívioentre os indivíduos em sociedade e destes

com o Estado, que consiste a essência de uma vida cidadã. Essa essência tem a ver com

zelo, como observa muito bem Júlia Alves: zelo com a própria dignidade mas também

com a dignidade do outro; zelo com os nossos direitos, mas também zelo com os nossos

deveres; zelo com a nossa casa, com nossa vida privada, mas também zelo com o bem

comum (ALVES, 2002).

Gilberto Dimenstein, elucida melhor ainda a questão, trazendo uma definição de

cidadania que engloba noções de direito e dever ao afirmar que a cidadania

É o direito de ter uma idéia e poder expressá-la. É o poder de votar em quem quiser sem constrangimento. É processar um médico que cometa um erro. É devolver um produto estragado e receber o dinheito de volta. É o direito de ser negro sem ser discriminado, de praticar uma religião sem ser perseguido. Há detalhes que parecem insignificantes, mas revelam estágios da cidadania: respeitar o sinal vermelho no trânsito, não jogar papel na rua, não destruir telefones públicos. Por trás desse comportamento, está o respeito à coisa pública (DIMENSTEIN apud ALVES, 2002: 65).

A cidadania e suas especificidades

A cidadania diz respeito a todos, se fundamenta nos direitos humanos e se define

pela relação do cidadão com o Estado e com a sociedade na qual está inserido. Esse

Estado é um Estado nacional e esse cidadão é parte de uma nação com seus limites

territoriais nacionais definidos, suas crenças, costumes, hábitos, formas e sistemas de

governo, etc. Porém, ao mesmo tempo em que associamos a cidadania à idéia de

igualdade, pois somos todos iguais perante o Estado, ela nos faz pensá-la também na

perspectiva da heterogeneidade, das diferenças existentes entre os cidadãos de um

mesmo país, além das diferenças de classes.

Como já vimos, a Declaração Universal dos Direitos do Homem diz que somos

todos iguais, independetemente de credo, cor, raça, sexo. Porém, a Conferência Mundial

de Viena, antecedida pelas Declarações de Tunis, San José e Bangcoc, também já vistas,

demonstrou a necessidade de se tratar dos direitos específicos de alguns cidadãos, na

medida em que não são efetivamente contemplados.

Sabemos que muitas vezes a Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem

como as Constituições de muitos países soam ocas em muitos casos, como no Brasil.

Em nosso país, infelizmente nos deparamos com sérios problemas de atendimento

básico à saúde, os cidadãos não têm segurança para exercer seu direito básico de ir e vir,

ainda não atingimos o patamar de erradicação do analfabetismo que os Estados Unidos

já haviam alcançado em 1940 (3% de analfabetos), pois contávamos ainda com 12,1%

de analfabetos, no ano de 2000 (GOIS, 2008) e, principalmente, não conseguimos

resolver um problema histórico, que é o da brutal desigualdade social; apenas 1% detém

11,1% da renda do país, mesma proporção apropriada pelos 40% mais pobres (GOIS,

2008).

Porém, no interior de todas essas constatações de dimensões macro, há aqueles

que sofrem o peso dobrado da desigualdade, pois recaem sobre eles o preconceito e a

discriminação. Por isso torna-se pertinente lembrarmos que a sociedade e o Estado estão

em débito, no que diz respeito à questão da cidadania, com as mulheres, os

afrodescendentes, cegos, cadeirantes, surdos, portadores do vírus HIV, homossexuais e

os povos indígenas.

Estamos falando da questão das chamadas minorias. Minorias é um conceito

sociológico que se refere a grupos sociais que, de uma forma ou de outra, sofrem, com

maior ou menor inetensidade preconceito, discriminação e perseguição. É o caso das

mulheres, daí no Brasil a necessidade da Lei Maria da Penha

(https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm); das

crianças, daí a necessidade do Estatuto da Criança e do Adolescente

(http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm), do idoso, daí a necessidade do

Estatuto do Idoso (http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.741.htm), dos

povos indígenas, daí a Declaração Universal dos Povos Indígenas

(http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Indigenas/texto/texto_2.html), é

também o caso daqueles que são submetidos a torturas e a julgamentos arbitrários em

seus países, daí a Anistia Internacional

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Anistia_Internacional. Além das questões relativas às

chamadas minorias sociais, a questão da cidadania se estende também à questão

ambiental e nos chama a atenção para o nosso direito à vida e para a responsabilidade de

cada um de nós com planeta no qual vivemos.

Não dá, nesse nosso estudo, para contemplarmos todas as questões citadas

acima. Portanto, a título de ilustração, iremos nos dedicar a duas delas: a questão

feminina, representando as minorias cidadãs e a cidadania ambiental, representando a

relação homem-natureza-cidadania.

A questão feminina

Ao longo da história ocidental as mulheres vivenciaram situações bastante

desfavoráveis, como em Atenas, na Grécia Antiga, onde o papel feminino era reduzido à

procriação e a concepção de amor era somente entre os homens. Não foi por acaso que

nosso músico e poeta Chico Buarque de Holanda alertava as mulheres brasileiras para

se mirarem nas mulheres de Atenas.

Na Idade Média, mulheres que avançavam um pouco os limites determinados

pelo seu tempo, eram vistas como possuídas pelas forças do mal; com a Revolução

Industrial, a partir do século XVIII, mulheres operárias passaram a ser exploradas,

juntamente com as crianças, como mão de obra barata, com salários bem inferiores aos

dos homens.

No século XIX, contruíu-se a imagem da mulher dócil e domesticada, “do lar”,

devendo o sexo feminino cumprir o “desígnio de Deus”, porque era da própria natureza

da mulher a quádrupla função: mãe, esposa, rainha do lar e dona de casa. Somente a

partir da década de 1940 é que a mulher começou a dar início a transformações mais

representativas, com sua inserção mais ampla no mercado de trabalho. Os anos de 1960

representaram um marco na evolução da conquista dos direitos da mulher, com o

movimento feminista

(http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed54/frei_betto.asp).

Apesar de toda uma história de luta e de conquistas, as mulheres continuam

recebendo salários inferiores aos dos homens, para desenvolver a mesma função e é alto

número de casos de violência contra a mulher. Segundo a deputada federal Jandira

Feghali (PCdoB-RJ), a cada 15 segundos uma mulher é espancada por um homem no

Brasil (http://www.contee.org.br/secretarias/etnia/materia_23.htm). Por isso, Pinsky e

Pedro, no livro História da cidadania, afirmam que

As mulheres são beneficiárias dos avanços e conquistas da cidadania. Entretanto, elas merecem um capítulo específico devido às particularidades da sua própria história. Em determinados momentos de ampliação de direitos e progressos democráticos, as mulheres não foram favorecidas do mesmo modo que os homens. Além disso, fatos frequentemente

ignorados na narrativa histórica, como a contracepção ou a evolução das roupas, mostraram ser cruciais na melhoria da qualidade de vida das mulheres e importantes em suas lutas por valorização social, igualdade de oportunidades e reconhecimento de demandas específicas (PINSKY e PEDRO, 2003: 265).

A cidadania ambiental

A relação homem-natureza é uma relação cultural, marcada por uma cultura de

destruição (WAGNER, 1977). Entretanto, há milhares de anos atrás, o homem tinha um

profundo respeito pela natureza, a ponto de venerá-la e divinizá-la. Este homem

revelava sua insignificância perante a grandiosidade do planeta que o acolhia. Porém,

dois marcos foram bastante significativos na história da relação do homem com seu

ambiente: de um lado, o surgimento das cidades, desde as mais antigas, que

representaram a fixação do homem no espaço, sua sedentarização e o uso internitente,

constante, desse mesmo espaço; de outro lado e mais importante, a Revolução

Industrial, com impactos nunca vistos até sua eclosão em meados do século XVIII e que

agora, no limiar do século XXI, nos deparamos com o progressivo aquecimento global

que poderá afetar todos os cidadãos do mundo. Isso quer dizer que torna-se necessária

uma consciência planetária, ou melhor, uma cidadania planetária, em torno da questão

ambiental.

Para isto, é precisoFundar uma ética do futuro, porém, uma ética que atenue a tensão entre o tempo da produção de mercadorias e o da reprodução das condições naturais da existência humana. Uma ética que acomode o tempo da reprodução da vida, que não é necessariamente o mesmo que o da reprodução do capital, como nos fazem acreditar (RIBEIRO et al. apud RIBEIRO, 2003: 415).

Essa consciência ética e planetária nos adverte para uma responsabilidade

cidadã, tanto na perspectiva macroambiental quanto numa perspectiva microambiental,

ou seja, a cidadania ambiental se exerce tanto na luta contra a destruição das florestas, a

poluição dos oceanos e rios, a preservação da fauna e da flora e o aquecimento global,

quanto na relação cotidiana que temos com espaço no qual vivemos, com o ar que

respiramos, com a água que nos saceia a sede, com lixo que produzimos todos os dias.

Essa consciência ética e planetária, voltada para a questão ambiental, nos adverte

também para o fato de que sabemos o que deve e o que não deve ser feito. Acredito que

temos consciência de que não é ético jogar lixo na rua, não separar o lixo reciclável,

incendiar florestas e desperdiçar água e alimentos. Acredito que sabemos de tudo isso.

O que nos falta é mudança de atitudes em relação ao meio ambiente. Assim como o

obeso deve mudar suas atitudes em relação à sua alimentação, o fumante em relação ao

cigarro, devemos mudar nossas atitudes em relação ao planeta em que vivemos.

Referências

ALVES, Júlia Favilene. Ética, cidadania e trabalho. São Paulo: Cpidart, 2002.

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