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EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA Luis Távora Furtado Ribeiro Para definir a ética em poucas palavras, pode- ríamos apresentá-la como 'a arte ou a experiência de viver e realizar o bem. Retornando ao melhor da tradi- ção grega, tratava-se de viver para conhecer e praticar a virtude. E viver em harmonia conosco mesmos, com os outros, com a natureza e com o cosmos - ou com o universo, ou com Deus, como preferirmos denominar. Nunca nos esquecendo de que é indispensável não ape- nas falar ou pensar, mas agir eticamente - princípio da coerência -, e respeitar costumes e atitudes de outros povos e culturas em seus contextos e tradições históricas - princípio da reciprocidade. Para alguns autores, ética e moral são expressões que significam a mesma coisa. Para outros, a ética re- presentaria os grandes princípios gerais que norteiam as nossas vidas: - como o amar ao próximo como a si mesmo da tradição cristã. Desse modo, a norma moral seria a realização dos princípios práticos para viver e aplicar as exigências da ética aos desafios do dia-a-dia: - como o não roubar, o não matar, ou o res- peitar as antigas gerações. Princípios de tantas cren- ças e religiões mundiais. Assim, a moral poderia ser definida objetivamente como "os sistemas de regras e princípios que responderiam à pergunta: "Como eu devo agir?". Ao passo que a ética, por sua vez, respon- deria à pergunta: "Que vida eu quero viver?" (DE LA TAILLE, 2006, p. 49). O que importa aqui é compreender e explicar a ética na perspectiva de conhecer e superar os grandes desafios que interessam à humanidade, para a pre- servação da vida humana e da natureza na realidade atual, reconhecida como complexa e contraditória. E que parece atingir a todos, quase ao mesmo tempo, de maneira individualizada num mundo global. Essa so- ciedade se revela marcada pelos antigos e conhecidos 36

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Page 1: EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA · 2019. 9. 13. · EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA Luis Távora Furtado Ribeiro Para definir a ética em poucas palavras, pode-ríamos apresentá-la

EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA

Luis Távora Furtado Ribeiro

Para definir a ética em poucas palavras, pode-ríamos apresentá-la como 'a arte ou a experiência deviver e realizar o bem. Retornando ao melhor da tradi-ção grega, tratava-se de viver para conhecer e praticara virtude. E viver em harmonia conosco mesmos, comos outros, com a natureza e com o cosmos - ou com ouniverso, ou com Deus, como preferirmos denominar.Nunca nos esquecendo de que é indispensável não ape-nas falar ou pensar, mas agir eticamente - princípioda coerência -, e respeitar costumes e atitudes deoutros povos e culturas em seus contextos e tradiçõeshistóricas - princípio da reciprocidade.

Para alguns autores, ética e moral são expressõesque significam a mesma coisa. Para outros, a ética re-presentaria os grandes princípios gerais que norteiamas nossas vidas: - como o amar ao próximo como asi mesmo da tradição cristã. Desse modo, a normamoral seria a realização dos princípios práticos paraviver e aplicar as exigências da ética aos desafios dodia-a-dia: - como o não roubar, o não matar, ou o res-peitar as antigas gerações. Princípios de tantas cren-ças e religiões mundiais. Assim, a moral poderia serdefinida objetivamente como "os sistemas de regrase princípios que responderiam à pergunta: "Como eudevo agir?". Ao passo que a ética, por sua vez, respon-deria à pergunta: "Que vida eu quero viver?" (DE LATAILLE, 2006, p. 49).

O que importa aqui é compreender e explicar aética na perspectiva de conhecer e superar os grandesdesafios que interessam à humanidade, para a pre-servação da vida humana e da natureza na realidadeatual, reconhecida como complexa e contraditória. Eque parece atingir a todos, quase ao mesmo tempo, demaneira individualizada num mundo global. Essa so-ciedade se revela marcada pelos antigos e conhecidos

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EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA

vícios como o da opulência, esbanjamento e riqueza,coexistindo com a exploração, a pobreza e miséria.Tudo isso agravado pelo crescimento dos gastos milita-res, pelo armamentismo - convencional e nuclear - epelas guerras.

Desse modo, para se· introduzir a problemáticada relação entre Educação, Ética e Cidadania, faz-senecessário que procuremos definir e precisar melhoro conceito de cidadania ao longo da história. Nesseresgate, reportaremo-nos a alguns momentos históri-cos, considerados abrangentes e indispensáveis, paraa compreensão da evolução dessa prática social quese convencionou chamar de cidadania. A respeito daética, apresentam-se, logo a seguir, alguns dos grandesdesafios que se apresentam para a sociedade atual. Euma reflexão com base nas ideias de Sócrates, com seumétodo para a reflexão comumente apresentado como"maiêutica".

A Evolução do Conceito de Cidadania na História

Na Grécia Antiga, especialmente em Atenas, aabundante riqueza originária do comércio e a ascen-são dos mercadores exigiam dessa classe social umamaior participação nas decisões políticas. A inversãode riquezas para favorecer a arte e a cultura trazia,entre outros objetivos, o de levar ao povo novas ideiase uma nova visão de mundo que interessasse àquelaclasse em àscensão. Os mercadores lutavam por espa-ço com setores da tradicional e estagnada aristocraciarural e precisavam justificar uma maior presença doscomerciantes - os homens da cidade -, nas decisões.A Filosofia Política entra ação. Era preciso ampliar oscanais de participação para esses homens da cidade,mas não se deveria exagerar para não incitar maioresaspirações e revoltas populares. Colocava-se entãoa questão fundamental: - Quais dentre os homensda cidade estariam aptos a participar da tomada dedecisões?

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LuisTÁVORA FURTADO RIBEIRO

Muito já se falou que a democracia grega eradominada pelos homens, escravista e de classe. às mu-lheres, escravos, estrangeiros, artesãos e camponesesera negado o direito de participação nas assembleiasem praça pública. Produzir e obedecer era seu ofício,liberando o cidadão - os homens livres, os ricos quecultivavam o ócio -, para as funções mais nobres comoa arte, a política e o lazer.

Vejamos esse relato. No apogeu da democraciagrega, Tucídes, o historiador, escreve a respeito do go-verno de Péricles, Séc. Va.C:

[. .. ] tinha sempre as rédeas na mão: quando amassa queria tomar o freio, sabia como espan-tá-Ia e atemorizá-Ia [. .. ] só de nome era umademocracia [. .. ] na realidade era o domínio deum eminente [. .. ] (Informação verbal).

É claro que o discurso superava a prática, espe-cialmente em tempos de guerra. Em um inflamado dis-curso na oração pelos mortos da guerra do Peloponeso,Péricles (493 a 429 a. C.) afirma:

[ ... ] Este governo, próprio de Atenas, recebeuo nome de democracia, por que a sua direçãonão está na mão de um pequeno grupo, massim da maioria ... Os que têm como profissãoo trabalho manual não são afastados da políti-ca ... Cada um será, por seu turno, governantee governado [ ... ].

Considerado hoje como um nacionalista, antesde morrer, Péricles instituiu a lei que concedia a ci-dadania apenas e exclusivamente para os filhos de paie mãe atenienses. Não esquecendo que, ao assumir ogoverno e a vida pública, Péricles demonstrou que in-centivaria as artes, financiando o coro Os Persas, tra-gédia escrita por Ésquilo.

Já podemos definir cidadania para os gregos: erao direito de decidir os destinos da cidade. Não é difícilperceber a semelhança com os dias atuais. Um fossoenorme separa o discurso oficial da prática concreta. Ea limitação da participação popular.

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EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA

A explicação era dada pelas próprias ideias po-líticas. As causas da segregação não estavam na es-trutura social, mas na natureza dos indivíduos. E aía educação tinha um papel fundamental para Platão(427 a 347 a. C.). As crianças seriam educadas peloEstado por aproximadamente duas décadas. Nessemomento f'ar-se-ia a distinção. Os homens desensi-bilidade grosseira e "alma de bronze" se dedicariamà agricultura, ao artesanato e ao comércio. Realizartrabalhos manuais - considerados inferiores -, seria oseu destino. A estes não caberia a arte do governo porserem dominados pelas emoções, pelas paixões e pelasuperficialidade das aparências.

Prosseguindo os estudos por mais uns dez anos,seriam separados os que tivessem a "alma nobre, deferro" e a qualidade essencial dos guerreiros. A estescaberia a missão de guerreiros, como os guardiões doEstado e da própria democracia.

Por último, aproximadamente aos cinquentaanos de idade, após uma esmerada educação em filo-sofia e na arte do diálogo, os homens que possuíssemuma "alma de ouro", estariam aptos ao exercício dogoverno e do poder. Sua prática política deveria man-ter a cidade coesa e exercer a liderança, para se con-solidar a democracia. 1

Eis a função da educação em Atenas: agindopor eliminação, ir distinguindo os homens do trabalhodos homens de ação - os militares - daqueles homens

1 Senão vejamos: "No Estado, todos vós sois irmãos [ ... ] mas odeus ao plasmar-vos, a todos os que eram aptos para mandar,infundir ouro em vosso interior ao gerar-vos, por serdes os maisdignos; ministrou prata na composição de todos os aptos a seremdefensores; porém, ferro e bronze na dos camponeses e outrosartesãos [ ... ] aos governantes [ ] ordenou o deus que nadavigiem meLhor do que a proLe [ ] e se um seu fiLho chegar aconter bronze e ferro [ ... ] dêem-Lhe um cargo adequado à suanatureza, o reLegamos entre os artesãos e camponeses [ ... ] seum desses nascer com mistura de ouro e prata ... elevem-no àcondição dos guardiões ou defensores". In: PLATÃO.A República.2. ed. SãoPauLo:DifeL, 1973.

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de decisão e sabedoria - os magistrados e governan-teso Era através da educação que se garantiria aos tra-balhadores uma escolaridade mínima, mas sem qual-quer garantia de ascensão social.

Avançando alguns séculos no tempo, pergunta-mos como seria a cidadania na sociedade medieval.Essa pergunta torna-se imprópria numa sociedade pre-dominantemente rural e tão hierarquicamente estra-tificada, quase sem mobilidade social. É preciso re-fazer a pergunta. Deveríamos talvez perguntar comose organizava aquela sociedade e quais os espaços departicipação nas decisões.

A riqueza era baseada na posse da terra e seuuso através de arrendamento e pagamento de impos-tos. O trabalho era servil e prendia o camponês à ter-ra, à mercê de uma série de obrigações como afirmaHubermann: .

"os camponeses eram mais ou menos depen-dentes". Acreditavam os senhores que existiampara servi-los. Jamais se pensou em termos deigualdade entre senhor e servo. O servo traba-lhava a terra e o senhor manejava o servo. E noque se refere ao senhor, existe pouca diferençaentre o servo e qualquer cabeça de gado de suapropriedade. (HUBERMAN, 1985).

Percebe-se claramente que só os proprietáriosdecidiam, quer dizer, "manejavam" a vida dos servos.Adaptando a frase de Charles Chaplin diríamos: "Ser-vos, não sois homens, coisas é o que sois". Não é pre-ciso dizer que coisa não participa. É o outro que dásentido à sua vida ao conduzi-la de um lugar a outro.Não há participação e sim sujeição. Arar a terra serásempre seu destino.

Enquanto os nobres dividiam suas terras emtroca de renda e trabalho, a Igreja ampliava suas pro-priedades. E aí a encontramos como a maior responsá-vel pela educação medieval. Se não apenas formal, aescolástica, para uma minoria, era principalmente in-formal nos ritos e celebrações para a grande maioria.

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Para OS servos; havia uma esperança funda-mental: se nessa terra não havia lugar para eles, emoutro lugar, no céu, após a morte, haveria uma vidaem plenitude. O Reino de Deus seria o lugar da felici-dade. O sofrimento da vida cotidiana não se compa-raria às alegrias da vida eterna. Assim, somente emoutra vida seria experimentada a cidadania, entendi-da agora como a superacão de todos os sofrimentos. Apostura política e suas intenções tornavam-se claras.Era necessário conformar-se, submeter-se e esperarpara merecer a recompensa futura. Na verdade, essapromessa revelava-se um engodo. A realização após amorte, noutro tempo e em outro lugar, só garantirianesse mundo a sujeição. Pode-se afirmar que o sistemafeudal, em última análise, repousava sobre uma orga-nização que, em troca de proteção, frequentementeilusória, deixava as classes trabalhadoras à mercê dasclasses parasitárias - os servos à mercê da nobreza edo clero - e concedia a terra, não a quem a cultivava,mas aos capazes dela se apoderarern.?

Novamente a educação reaparece aqui com todaa carga de ideologia. Era preciso garantir um processocombinado de exclusão social e acumulação de rique-zas. A justificativa agora não era política ou filosófica- como fora em Atenas -, mas espiritual, religiosa. Oconteúdo parece o mesmo: à maioria cabe trabalhare produzir. Tomar decisões e partilhar as riquezas nãodeveria ser prerrogativa sua.

Até aqui a cidadania define-se como: - a par-ticipação política nas decisões da cidade: - e na espe-rança de uma vida plena e feliz, mesmo que depois damorte.

Gestado durante séculos, dentro do próprio sis-tema feudal, surge o capitalismo. Uma nova classerevoluciona a sociedade. Os burgueses são empreen-dedores. Comerciantes ávidos por lucros, reinvestemparte de seus recursos na pesquisa de novas tecnolo-

2 ver Huberman, 1985, p. 23 e 24.PERGAMUMBCCE/UFC

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gias. Reorganiza-se a produção sob novas formas deexploração. O trabalho assalariado nas fábricas é amais nova e bem articulada forma de expropriaçãoda mão-de-obra e da geração de excedente produzidoatravés do trabalho.

Não faremos aqui um resgate da ascensão revo-lucionária da burguesia e todo seu processo de consti-tuição como classe social. Apenas nos reportaremos aalguns aspectos desse longo e bem-sucedido processohistórico. Essaascensão teve como marco econômico arevolução industrial inglesa. Na política, o ponto altodesse acesso ao poder foi a Revolução Francesa. Ambasocorrendo durante o século XVIII.

Sua ascensão vai se dar em árdua luta contraa nobreza feudal e sua expressão política, o absolu-tismo dos reis. Sua promessa mais tentadora era a deuma sociedade de bem-estar, abundância, liberdade,fraternidade e igualdade para todos, em oposição àestagnação e dominação da nobreza feudal. Classespopulares e intelectuais apostaram nessa promessa eapoiaram com decisão a revolução burguesa.?

Não se tratava mais de se buscar uma felicidadeapós a morte, em outro tempo e em outro espaço.Tratava-se então de ser feliz aqui e agora. A 26 deagosto de 1789 édivulgada a Declaração de Direitosdos Homens e Cidadão. O individualismo burguês étraduzido pela noção de Direitos Humanos Individuais.Aparece aqui o indivíduo posto em confronto com asociedade. Nova característica da cidadania apareceentão: a noção de direitos individuais que devem serrespeitados. Dentre suas promessas estão a liberda-

3 O filósofo iluminista Rousseau (1712 - 1778) escreveu num livroclássico: "[ ... ] Uma observação deverá servir de base a todo osistema social: o pacto fundamental, em lugar de destruir a igual-dade natural, pelo contrário substitui por uma igualdade morale legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdadefísica entre os homens, que, podendo ser desiguais na força ouno gênio, todos se tornem iguais por convenção e direito". Cf.ROSSEAU, Do Contrato Social, São Paulo: Abril Cultural, 1973.(Coleção Os Pensadores)

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de de expressão e de associação e, posteriormente, aeducação para todos.

Além da necessidade de apoio político, a promes-sa de universalização do ensino se baseava numa ques-tão prática: o desenvolvimento das ciências, das tecno-logias e das novas técnicas passam a exigir uma melhorqualificação dos trabalhadores em diferentes graus ouníveis de cultura, de conhecimento e escolarização.

Nem é preciso dizer que aquela promessa de de-mocracia não se concretizou. A burguesia realmenteliderou a sociedade na produção da abundância e dafartura, mas não repartiu seus benefícios: nem a par-ticipação política nem das riquezas.

Por sua vez, após mais de duzentos anos, aquelapromessa burguesa de educação para todos tem apre-sentado suas limitações. Na verdade, há universaliza-ção do ensino, mas uma barreira invisível impede oprogresso da grande maioria dos alunos represando-osnas séries iniciais da educação básica, especialmen-te quando tratamos das classes populares e de paísesperiféricos.

Com o surgimento da burguesia, o proletariadoconstitui-se como classe trabalhadora. E é a luta dosoperários, camponeses e trabalhadores em geral quevai transforrnar-lhes em sujeitos históricos. A cidada-nia não é mais uma dádiva, mas uma conquista. As no-vidades dos direitos individuais sobrepõem-se e articu-lando-se com os que são reconhecidos agora como osnovos direitos - os direitos coletivos.

Eisaqui uma grande novidade. Associações popu-lares e sindicais fazem avançar o conceito de cidadaniacomo expressão das necessidades, lutas e conquistascoletivas. Grupos de socialistas utópicos, anarquistas,socialistas e comunistas procuram dar um sentido maisamplo e internacional a interesses e mobilizações lo-calizadas. E será no seio das contradições da sociedadeburguesa que o conceito de cidadania assume novascores. Surge uma nova face dessa cidadania em trêsaspectos fundamentais:

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• OS direitos humanos individuais, como a liber-dade e a educação;

• a luta permanente contra quaisquer formas deexploração;

• e compreensão da cidadania como uma con-quista social, coletiva.

Revela-se, assim, uma outra face da educação.Os explorados educam-se na própria ação e na refle-

. xão sobre sua prática. O que nos apresenta mais umanovidade:

• onde houver movimento político, haverá aliuma ação educativa.

A Cidadania e a Procura pela Identidade Perdida

Chegando a tempos mais recentes e atuais,compreende-se que uma das grandes característicasda sociedade nos últimos anos é a ampliação e a frag-mentação dos diversos sujeitos sociais, muitos em bus-ca da identidade e da cidadania.

Cada vez mais aparecem grupos motivados,consciente ou inconscientemente, pelas mais dife-rentes necessidades de participação e luta política.Grupos de mulheres, negros, ecologistas, moradoresda periferia das grandes cidades, grupos religiosos, dejovens e sem-terras, dentre tantos outros, confirmama nova face da ação coletiva pela cidadania. E por umaética reconhecida, do modo mais ou menos explícito,como um movimento coletivo, mesmo que não coor-denado, para preservar e responder às necessidades einteresses da maioria.

No início dos anos 1990 e 2000, em oposiçãomais ou menos organizada e consciente à sociedadeopressiva, encontramos grupos de características re-novadas. As principais delas definem-se como a buscade reconhecimento, expressão e identidade social queparece comum à maioria deles. Nesses grupos que se

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formam a partir de práticas, preferências e linguagenscomuns, a integração e a interação realizam-se atravésde vínculos particulares de solidariedade através deritos de passagem e de iniciação que incluem demons-tração de bravura e coragem, respeito a códigos nãoescritos de conduta, chegando até a conquista de umnovo nome Grupos de funks, punks, grafiteiros, gale-ras, torcidas organizadas, hootigans, skin heads, heavymetal e emos, são alguns exemplos extremamente di-ferenciados. Outros grupos também aparecem dianteda sociedade massificada; seitas religiosas, grupos pa-cifistas, organizações não-governamentais e de defesados direitos humanos, dentre outras.

O que podemos afirmar é que vivemos um tempode uma insatisfação social meio difusa e sem formasde expressão e compreensão claras. Coletivamente ouisolados em pequenos grupos, todos parecem transi-tar entre a tentativa de onipotência do controle doEstado, até o desespero niilista e meio sem rumo dealguns grupos alternativos. Restam ainda novas formasde convivência social acessadas solitariamente pelosjovens através das redes sociais de comunicação ontine via computador.

Politicamente, seu grande problema políticotem sido a fragmentação, a falta de objetivos comunse, principalmente, a pouca discussão sobre os conflitose problemas sociais que dizem respeito a todos. Dodesemprego e da precarização do trabalho aos proble-mas de saúde e moradia, das questões educacionais àproblemática ambiental.

Desde meados do século XX, novos atores sociaise temas fundamentais aparecem com a urgência desua ameaça potencial ou real de destruição da huma-nidade e de toda a vida na terra. O armamentismonuclear e o aumento dos gastos militares, o aumentoexponencial da pobreza e a estagnação social e econô-mica de numerosos grupos sociais e de países, a dife-rença crescente entre ricos e pobres, além da ameaçade destruição do planeta se agravam ainda mais pelo

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consumo predatório e pelo modelo de desenvolvimen-to destrutivo praticados pelas classes e países ricos.

Numa sociedade de massas sociais disformesmarcadas pela ênfase na racionalidade econômica, naprodutividade e no consumo, a busca de espaços decomunicação e partictpação tornaram-se uma grandepossibilidade. Parece faltar a esses grupos clareza teó-rica e unidade política para o debate e a busca coleti-va de saídas e soluções apropriadas.

Como vimos, a conquista da cidadania passa poralguns temas fundamentais:

• participação efetiva nas decisões da cidade.Dimensão da política;

• busca da felicidade, quer dizer, da realizaçãoplena da vida humana;

• respeito aos direitos humanos fundamentais,sejam coletivos ou individuais;

• luta coletiva contra todas as formas de opressãoe de exploração;

• preservação do meio ambiente e da vida hu-mana sobre a Terra;

• ampliação dos espaços de liberdade, de expres-são e de comunicação;

• além do resgate da identidade e da subjetivi-dade na sociedade massificada.

O homem do início do século pode aspirar, deforma mais ou menos consciente, a realização desseconceito amplo e complexo de cidadania. Mecanismosde participação e comunicação devem ser buscados,para além do mero direito individual e liberal de votare ser votado nas eleições representativas. E construiresperanças. E dias melhores que poderão chegar, mas aluta - que deverá ser coletiva -, não será nada fácil.

Num artigo recente sobre a ética, o psicanalistaValton Miranda realiza uma reflexão sobre a falsa ci-dadania de uma sociedade baseada na satisfação ime-diata e midiática do consumo de massas, apresentadocomo suprema aspiração da vida humana:

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A perversão gerada por esse gigantesco meca-nismo impulsiona o sistema midiático a fabricarconsumidores no lugar de cidadãos. O cidadãoque deve introjetar regras de direitos e deveressociais é levado a incorporar, pelo constantechoque de imagens, a compulsão consumoló-gica ... A quebra do vínculo de amizade entrepessoas, substituída pela irracionalidade com-petitiva tem de ser camuflada pela indústria doentretenimento, na qual tudo se transforma emespetáculo ... A deformação de palavras comocidadania, liberdade ou direitos humanos setornou fetichismo no qual a aparência substituia essência. Jornal O Povo (12/jul./2009).

É importante dizer que numa visão majoritárianos dias atuais, muito interessante para os setores con-servadores, as múltiplas dimensões da cidadania sãopraticamente reduzidas e resumidas a uma só: a no-ção de direitos e deveres individuais. Quando se tratada política, a cidadania restringe-se apenas ao direitode exercício do voto nas eleições representativas. Comrelação à mídia de massas, a participação se resumeà leitura de mensagens dos espectadores em progra-mas de entretenimento ou em transmissões esportivas.Quando muito, ela se reveste em votações via Internetou telefone para a escolha de filmes ou para a seleçãoou eliminação de participantes de reality shows. Nada éconcedido à participação na definição, na interferênciaou mudança efetiva na linha editorial das emissoras.

Perde-se aqui a inexistência de qualquer noçãode cidadania vinculada aos direitos das maiorias ou àparticipação social e política de natureza coletiva.

A Ética de Sócrates para Tempos At'uais

Retornando ao melhor da Grécia antiga, deacordo com Chauí (2001), um sujeito ético não se dei-xa levar ou conduzir pelas paixões, pelos acasos dasorte, ou pelas opiniões, desejos e vontade de um ede outro, mas obedece apenas à sua vontade racio-

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Luís TÁVORA FURTADO RIBEIRO

nal. Nesse sentido, desde Sócrates (470 - 399 a.Cv),descobrimos que esse processo de se tornar autônomoapresenta-nos alguns perigos. Para Sócrates, um delesé o de sempre trazer respostas prontas que nos vêm dopassado, às quais recorremos mecanicamente, prati-camente, sem pensar ou refletir.

Para que seus contemporâneos observassemisso, Sócrates perguntava a todos quais seriam os valo-res nos quais acreditavam e que os conduziam à ação.Partindo daí ele questionava: - O que é a coragem?-E a justiça? - E a amizade?

As respostas de seus ouvintes sempre surgiam deimediato: - Elas são virtudes.

Quando Sócrates perguntava então: - E o quesão as virtudes?

Ao que respondiam seus interlocutores: - É agirem conformidade com o bem.

Para deixar todos atônicos e fazê-tos refletir, elequestionava: - E o que é o bem?

Para Marilena Chauí, e para Sócrates, o campoético seria composto por dois polos que são complemen-tares e fundamentais e que se relacionam: - o agenteou o sujeito moral; - e os valores morais ou virtudeséticas. Como dissemos, a constituição de um ser cons-ciente e racional agindo em busca do bem para entrarem harmonia: - consigo mesmo; - com a natureza; -com a sociedade em que vive; - e com o cosmos.

O objetivo de Sócrates era mostrar aos atenien-ses - numa lição muito útil para os dias atuais - queeles respondiam e agiam sem efetivamente refletir oupensar por si mesmos. Nesse contexto, realizamos aquiuma reflexão a respeito das diversas influências éticasque nos vêm da tradição e da modernidade e que rece-bemos com naturalidade ou como novidades, que se-guimos como modismos/que muito influenciaram nos-sas vidas e esses dias atuais. Diga-se que o filósofo nãoconseguiu muito sucesso entre seus contemporâneos,sendo condenado à morte por uma dupla acusação: -negar a existência dos deuses; - e por corromper a ju-

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EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA

ventude. Talvez porque ensinar a·pensar, a questionare a refletir contrarie, tanto ontem quanto hoje, inte-resses de grupos instituídos, poderosos e influentes.

Sabemos então, que não existe uma única ética,mas diferentes propostas e projetos sociais, morais ede comportamento, muitos deles conflitantes e incon-ciliáveis entre si, mas que exercem influência mar-cante entre nós. Como por exemplo, o dos socialistas,o dos cristãos e o dos capitalistas liberais. Vale dizerque muitas dessas influências atuam de forma combi-nada e contraditória em nosso inconsciente individuale coletivo, proporcionando respostas articuladas, nemsempre coerentes, mas a partir de esquemas mentaise atitudes complexas.

Esse contexto vem demonstrar a existênciadesses contornos culturais que influenciam, não só aeducação e a ética, como todas as dimensões da vidahumana. Como dissemos, é indispensável lembrar que,para se construir a cidadania como vimos aqui, torna-se urgente e necessária uma discussão coletiva sobrea possibilidade de um consenso racional mínimo, pelomenos, em três aspectos fundamentais:

• para garantir nossa convivência coletiva nessemundo plural;

• para se respeitar a natureza e se preservar oplaneta;

• e para se garantir a continuidade e a realizaçãoda vida humana sobre a terra.

E assim, conhecer a ética e compreender a cida-dania. E praticar a virtude.

Referências Bibliográficas

AQUINO,Jacques, Denise e Oscar. Das sociedades mo-dernas às sociedades atuais. 2. ed. Rio de Janeiro: AoLivro Técnico, 1985.BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais, temastransversais. Brasília: Inep/MEC, 1998.

PERGAMUMBCCE/UFC 49

Page 15: EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA · 2019. 9. 13. · EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA Luis Távora Furtado Ribeiro Para definir a ética em poucas palavras, pode-ríamos apresentá-la

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