uma visão antropológica da dança

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UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA DA DANÇA Por Moema Ameom em Março de 2012 “Não é um corpo, não é uma alma, é um Homem.” Montaigne Olhar a dança por uma visão antropológica é ver primordialmente o ser humano que dança para depois enxergar aquele que quer traduzir com seus movimentos vitais suas expressões através de uma ou mais técnicas. Portanto, neste estudo metodológico, vamos primeiramente passear por alguns caminhos que possam auxiliar na melhor compreensão do que vem a ser Humano. Quais os meandros deste Sistema que tanto tem a oferecer e que, ao mesmo tempo, tanta facilidade tem de se autodestruir, devido à facilidade (motilidade) de se moldar, adequar e acomodar aos processos dos movimentos externos aos seus. O Soma e a Psiquê: As expressões gregas; soma e psiquê, que podemos entender como sendo corpo e alma, formam o confronto dual do ser humano desde 500-428 a.C. quando o filósofo Anaxágoras as considerou partes distintas. Esta idéia de divisão trouxe-nos como herança a impressão de que temos o domínio sobre a matéria (corpo físico) vendo o imaginário como algo alcançável através deste controle, colocando em segundo plano os verdadeiros almejos da

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Uma Visão Antropológica Da Dança

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Page 1: Uma Visão Antropológica Da Dança

UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA DA DANÇA

 

Por Moema Ameom em Março de 2012

“Não é um corpo, não é uma alma, é um Homem.” Montaigne 

 

Olhar a dança por uma visão antropológica é ver primordialmente o ser humano que dança para

depois enxergar aquele que quer traduzir com seus movimentos vitais suas expressões através de uma ou mais técnicas. 

Portanto, neste estudo metodológico, vamos primeiramente passear por alguns caminhos que

possam auxiliar na melhor compreensão do que vem a ser Humano. Quais os meandros deste

Sistema que tanto tem a oferecer e que, ao mesmo tempo, tanta facilidade tem de se

autodestruir, devido à facilidade (motilidade) de se moldar, adequar e acomodar aos processos

dos movimentos externos aos seus.

 

O Soma e a Psiquê:

As expressões gregas; soma e psiquê, que podemos entender como sendo corpo e alma,

formam o confronto dual do ser humano desde 500-428 a.C. quando o filósofo Anaxágoras as

considerou partes distintas. Esta idéia de divisão trouxe-nos como herança a impressão de que

temos o domínio sobre a matéria (corpo físico) vendo o imaginário como algo alcançável através

deste controle, colocando em segundo plano os verdadeiros almejos da alma (essência vital). 

Sendo o desejo regulado pelos processos sensórios cognitivos da psiquê, colocá-lo no corpo

gerando ressonância harmônica com suas reais possibilidades e potência é a responsabilidade

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da consciência.

Consideremos os embasamentos de Espinosa, já que estamos percorrendo os territórios da

cultura grega, berço da civilização. Dizia ele que a vida tem a ver com a potência; com a energia

vital que, a cada instante disponibilizamos para viver, ou seja, a energia que nos move e

coordena. Se perdermos alguma parte da matéria (perna, mão, braço) não deixamos de ser

quem somos.

Podemos dizer que o soma é a matéria sólida que se define como sendo uma parte do nosso

sistema que pode ser vista e tocada, como também é o veículo que nos permite tocar e ver as

outras pessoas. Já a psiquê pode ser definida como sendo alma, espírito, mente ou

simplesmente energia vital. É a parte invisível e intocável, mas que sabemos que existe e

engloba tudo aquilo que é relativo à cognição – sentimentos, sensações, percepções, desejos e

sonhos. Quando bem utilizada na conscientização de sua presença no soma, amplia o grau da

observação interna e externa fortalecendo a capacidade de discernimento sobre as ações e

reações. 

Portanto, orientar para o ato de observar o que se realiza com o soma, é o caminho mais amplo

para a educação de um ser de maneira coerente com suas reais possibilidades de execução.

“A insustentável leveza do ser” Millan Kundera

A Psiquê 

Seguindo os conceitos da Psicologia, deparamo-nos com os três sistemas integrados geradores

do aspecto estrutural da Psiquê : o id, o ego e o superego.

O id - corresponde aos instintos primitivos, naturais, onde não se tem como inserir conceitos

capazes de bloquear as ações. É formado pelos princípios básicos da energia vital – ação X

reação. É o núcleo da Psiquê. Ainda seguindo os ditames da Psicologia vemos que é a fonte de

dois grandes impulsos de onde derivam os demais: amor e ódio. Ou seja, todos os sentimentos

disseminados no soma são provenientes do desequilíbrio destes impulsos básicos existentes no

id. Ele é ilógico, atemporal e regido pelo princípio do prazer – isto é, o que o move é a busca do

prazer a qualquer preço, o que caracteriza o comportamento de uma criança. 

O id nunca se torna adulto, permanecendo infantil e primitivo ao longo da vida, sempre

manifestando e mostrando seu desejo; buscando formas diferentes para realizá-lo com a

intenção de um dia alcançar a satisfação plena. O id é inexplicável. Imponderável. Expressivo.

Artista arteiro.

Unindo esta informação a visão da Neurologia, podemos dizer que o id é o Sistema Nervoso

Central cuja ação de funcionamento no corpo físico se apresenta na medula óssea, cujo princípio

de contração/ódio (-) expansão/amor (+) fundamenta a energia vital (-) e (+).

O SNC é fonte inesgotável de processos criativos capazes de regenerar moléculas a cada

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segundo; está nele o núcleo da criatividade somática.

Sendo assim, a estrutura óssea, que tem como linha central a coluna vertebral, é o veículo de

conexão direta com o id. Cuidar bem do tônus das articulações intervertebrais torna-se um dos

caminhos de liberação da energia medular, possibilitando à Psiquê melhor comunicação com o

Soma. Os desvios de qualidade neste cuidado serão responsáveis pela desestruturação do id na

psiquê e vice-versa.

Como fonte inesgotável de criatividade, o esqueleto ósseo será sempre o apoio para uma boa

estrutura emocional se for orientado no sentido de respeito às articulações, onde encontramos

maiores conexões nervosas provenientes do SNC. 

O id é chamado à realidade pelo ego. 

Ego = eu e Id = ao termo latino associado ao alemão “es” por Nieztche, querendo dizer “ele”. 

Sendo assim, vemos o eu e o ele travando conflitos constantes. Um deseja e o outro comanda o

que deve ser feito para que a realização aconteça. Harmonizar este embate é a função da

conscientização corporal. Através da percepção dos movimentos e da captação das sensações

que os mesmos provocam, podemos direcionar o corpo físico – soma - para ser o agente

equalizador dos processos mentais.

Brincando com os estudos da área neurológica podemos dizer que o id é o lado direito do

encéfalo (que movimenta o lado esquerdo do corpo) onde os impulsos sinápticos regem a

sensibilidade e todos os processos relacionados à cognição; o ego é o lado esquerdo onde mora

a razão e a lógica (lado direito do corpo). No centro do encéfalo temos o hipotálamo para onde os

impulsos sinápticos devem escorrer conduzindo para a Coluna Vertebral sentimentos

racionalizados, tradutores de uma bio lógica. Esta brincadeira nos mostra que, apesar de

produzirem sensações distintas, os dois lados do soma recebem informações de um só núcleo, o

Sistema Nervoso Central. A psique, uma vez regulada pelo soma e seus movimentos

conscientizados, ganha suporte para harmonizar id e ego fazendo com que o superego faça o

papel de equalizador entre partes externas e internas do sistema.

O ego ao contrário do id é sempre muito atento ao que os outros desejam. Não dá ouvidos aos

desejos do id. Procura sempre agradar o outro. Busca maneiras práticas para melhor ser

compreendido mesmo que para isso precise causar polêmicas e atritos. Ou seja, está sempre

querendo mostrar aos outros que domina o id. É adulto. Sente-se maduro quando dá ordens;

controla os outros, pontua o certo e o errado; manipula desejos e coordena ações, mesmo que

para isso precise inibir as reações do id.

Se existe a dualidade entre a Psiquê e o Soma, dentro da Psiquê existe a dualidade do Id e do

Ego. Será dualidade ou complementação?

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   “A palavra parte só encontra sentido em relação ao todo do qual ela faz parte. Por isso a vida de         

qualquer Homem só pode ser julgada em função da sua condição de parte, de uma parte específica, que

este homem encarna neste todo maior e universal.” Clovis de Barros Filho 

 

No Corpo Físico vemos a especificação deste princípio filosófico quando damos a cada parte do

esqueleto ósseo sua devida função, permitindo que as cadeias musculares cumpram seu papel,

focadas nas partes que lhes cabe. Ex.: o que movimenta o quadril não movimenta a perna apesar

de auxiliar na movimentação.

Assim como pé não é mão, fígado não é estômago e cabeça não é tronco, ação não é reação

mas não devem (nem podem) ser divididas ou antagonizadas sob pena de desvirtuar a conexão

dos sentidos com os movimentos corporais ou de inibir a união dos impulsos sinápticos na

conexão com o hipotálamo. 

Para que o Sistema seja orientado à sua totalidade é primordial que a conscientização das partes

e suas funções ganhe estimulação e apoio para serem desenvolvidas em plenitude. O caminho

principal é a observação da experiência orientando para o foco de cada questão solicitada. Focar

e desfocar para que a visão se amplie.

Sob o ponto de vista neurológico, as partes do todo dentro da máquina humana são regidas pelo

Sistema Nervoso Periférico – SNP – e a disputa entre elas acontece quando o tônus muscular

fica desregulado devido ao congestionamento (estresse) das redes nervosas regentes da

coordenação motora. Por isso, imobilidade não é falta de movimento, mas sim mau uso das

partes nele contidas.

O grau de alcance da coordenação motora é muito reduzido se comparado ao da imaginação,

sonho e desejo que, ao mover a mente (psiquê), move o corpo e será capaz de renovar e

reformular movimentos quando devidamente orientada. O que não move visivelmente, move no

invisível projetando a força da intenção na ação.

Um exemplo explícito do que digo é o fato de que, quando um membro é amputado, a sensação

de presença física do mesmo permanece durante um grande período. Se esta sensação é

respeitada e bem trabalhada ajuda na recuperação do estado emocional, possibilitando melhor

cicatrização no lugar da amputação e melhor adaptação à prótese.

Sendo assim, conscientizar as partes do corpo passa primeiramente pela intenção de fazê-lo

para depois concretizar o fato de conhecer e saber onde estão e o que são capazes de fazer.

Este caminho produz maior coerência nas realizações produzidas pelo Soma. 

 

O superego - A formação do superego pode se resumir em uma única frase: acusar e criticar o

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ego. Seus processos são decorrentes da incorporação dos aprendizados assimilados na primeira

infância (principalmente até os 4 anos quando a medula é formada) provenientes dos pais,

familiares próximos ou responsáveis pela educação do ser. Nele elabora-se a memória cognitiva -

mediadora das ações X reações do id e do ego. A desarmonia, (ou harmonia) interna entre os

dois dependerá dos processos emocionais provenientes da memória assimilada, registrada e

guardada na cognição do sistema.

Resumindo: “o superego luta por perfeição moral, o ego exige adequação à realidade; o id

esforça-se para obter prazer e evitar sofrimento, independentemente dos meios e

conseqüências.” Dr.Marco Aurélio Dias da Silva.

Tudo isso se processa na mente, ou alma, ou espírito, ou simplesmente energia vital. Estes

processamentos projetam-se no soma, ou seja, corpo físico.

O Soma

“A realidade somática é o “como” uma pessoa incorpora a si mesma, o “como” ela vivencia essa

corporificação e transforma as experiências internas em uma forma pessoal. A corporificação é

uma experiência emocional e a experiência emocional é corporal” Stanley Keleman

A matéria física é decorrência da corporificação da energia vital, ou seja, um conglomerado de

partículas atômicas que, uma vez reunidas em torno de um só objetivo, materializam as

moléculas gerando matéria; os processos energéticos são comuns a todas as matérias que nos

cerca no Planeta em que vivemos.

A visão antropológica da dança prioriza esta comunhão onde o aprendizado da forma e sua

transformação contínua nasce do respeito e observação dos processos contidos nos movimentos

vitais através da utilização dos estímulos sensoriais.

Sendo a alteração dos estados emocionais responsáveis pelos bloqueios que impossibilitam esta

comunhão entre o Homem consigo mesmo e seus semelhantes, a atenção voltada ao cuidado

meticuloso com os mesmos, significa possibilitar adequação às habilidades de comunicação

contidas no organismo. Esta adequação auxilia na educação da saúde física e mental

conduzindo-as à coerência ressonante e harmônica, dando suporte para as potências existentes

e produzidas em cada Sistema Humano.

Um oceano é constituído de nano gotas.

“Emoções são conjuntos complexos de reações químicas e neurais, formando um padrão; todas

as emoções têm algum tipo de papel regulador a desempenhar, levando, de um modo ou de

outro, à criação de circunstâncias vantajosas para o organismo em que o fenômeno se manifesta;

as emoções estão ligadas à vida de um organismo, ao seu corpo, para ser exato, e seu papel é

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auxiliar o organismo a conservar a vida”. António Damasio

Acredito ser bem fácil relacionar as ondas emocionais com os processos respiratórios se

levarmos em conta o que acontece com nossa respiração quando nos sentimos emocionados.

Estes momentos, onde a comunicação interna/externa se torna mais evidente, nos ajuda a

conhecer algo que acontece em nosso organismo sem que possamos perceber. Os fluxos e

refluxos do ar no aparelho respiratório são movimentos reguladores dos processos emocionais e

vice versa. Portanto, observar o modo como expiramos e quando o fazemos – ou deixamos de

fazer – muito auxilia no nível de consciência projetado tanto no soma quanto na psiquê.

Venho aqui ressaltar que o diafragma, músculo central na formação do aparelho respiratório está

inserido às costelas e vértebras dorsais através de filamentos nervosos. Quando o esqueleto

ósseo se encontra desequilibrado em sua estrutura, o diafragma fica incapacitado de realizar a

tarefa de massagear as vísceras aumentando a produção de gás carbônico no organismo, o que

altera o fluxo dos estados emocionais. 

O soma, então, para não colapsar diante dos fatos externos, produz suas defesas somáticas

distanciando-se da psiquê. Assim se manifesta a dualidade entre os dois abordada no início da

apostila. Anaxágoras vence com seu conceito de confronto entre corpo e mente fazendo

desaparecer a harmonia. 

Quando estes processos se fazem presentes no sistema, o prazer não ganha espaço na

execução e manutenção da forma. 

Mais uma vez nos deparamos com a importante função de cuidar atentamente da estrutura

óssea. A melhor maneira de fazê-lo é orientar na direção da conscientização dos movimentos

existentes nos atos e ações do corpo físico. 

Quanto à função respiratória o foco deve ser voltado apenas para o movimento de expiração. O

ato de inspirar é natural do corpo que sabe não poder ficar sem ar; mas, a intensidade da

expiração depende – e muito – do amadurecimento do id e sua parceria com o ego. 

Consciência 

Apesar de ser vasto o assunto e muitas vezes bem polêmico, acredito que, para o ensino da

dança e suas variadas técnicas, o fundamental é a conscientização do funcionamento das

diversas partes do corpo físico. Acordar e observar a conexão entre sentir e perceber extraindo

deste aprendizado o amadurecimento para a formulação de conceitos renováveis e reajustáveis

de acordo com as transformações dos sentimentos diante dos fatos, é algo criativo que a dança é

capaz de proporcionar. 

“Os seres criativos podem saber como se sentirão em relação a alguma coisa no futuro, porque

criam seus sentimentos, em vez de experimentá-los”. Neale Donald Walsch

Para que a criatividade possa vir à tona, precisamos respeitar o tempo biológico de absorção sem

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rotular ou conceituar (superego) erros e acertos quando este tempo não fica de acordo com as

programações que se faz para orientar. Dizer o que fazer não deve vir acompanhado de um

pensamento prévio sobre o como será feito. Observar o como de cada aluno (a) povoa de

riquezas múltiplas o universo do mestre, aquele que nada sabe e se abre para aprender a

aprender eternamente. Lembrar sempre que o verdadeiro processo criativo nasce das diversas

maneiras de fazer o mesmo movimento. O nascer do sol e da lua nos sinaliza os ciclos vitais

sempre acontecendo da mesma forma, porém totalmente distintos. Isto é criatividade.

Deste fluxo constante de partilha, onde conhecimentos e experiências se entrelaçam, constrói-se

a consciência.

“Em suas raízes, consciência (do latim conscius) significa partilhar conhecimento. Portanto,

quando falamos de consciência estamos nos referindo a uma percepção de informação: estar

consciente é estar ciente do conhecimento. [...] Se voltarmos à natureza essencial (physis) da

energia, consciência é o conhecimento da essência ou movimento da vida. Através do movimento

da energia vital, a consciência une a estrutura da forma, a quantidade da força e o meio do

processo no todo da vida. “ Stèphano Sabetti