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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo Maio/2013 http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE TÉCNICA EM DANÇA EM MEIO A DANÇA CONTEMPORÂNEA JUSSARA BRAGA BASTOS (UFBA) RESUMO Pretende-se neste artigo problematizar questões emergentes ao se pensar a técnica na dança contemporânea levando-se em consideração os processos individuais de aprendizagem, entendendo que cada corpo é distinto em suas experiências e em seu modo de existir. Alguns autores dão luz ao trabalho elaborado por Klauss Vianna, que buscava valorizar a importância do processo individual de construção e exploração do movimento. QUEIROZ (2012) apresenta esse trabalho como uma “anti -técnica” gerando ainda mais campo de discussão acerca da técnica em dança. DOMENICI (2007) apresenta a ideia que a técnica em dança se faz quando o bailarino busca estratégias de organicidade em seu corpo para tentar alcançar o que lhe foi solicitado pelo coreógrafo. PALAVRAS-CHAVE: Técnica em Dança, Dança Contemporânea, Processos Cognitivos, Corporalização. TECHNICAL CONSIDERATIONS IN DANCE FOR CONTEMPORARY DANCE ABSTRACT It is intended in this article to discuss emerging issues to think the technique in contemporary dance taking into account the individual processes of learning, understanding that each body is different in their experiences and in their mode of existence. Some authors give light to the work prepared by Klauss Vianna, who sought to value the importance of the individual process of construction and operation of the movement. Queiroz (2012) presents this work as an "anti- technical" field generating further discussion of technique in dance. DOMENICI (2007) presents the idea that the technique in dance is when the dancer makes search strategies organicity in your body to try to achieve what was asked by choreographer. KEYWORDS: Technique in Dance, Contemporary Dance, Cognitive Processes, Corporalization

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http://portalanda.org.br/index.php/anais 1

CONSIDERAÇÕES SOBRE TÉCNICA EM DANÇA EM MEIO A DANÇA CONTEMPORÂNEA

JUSSARA BRAGA BASTOS (UFBA)

RESUMO Pretende-se neste artigo problematizar questões emergentes ao se pensar a técnica na dança contemporânea levando-se em consideração os processos individuais de aprendizagem, entendendo que cada corpo é distinto em suas experiências e em seu modo de existir. Alguns autores dão luz ao trabalho elaborado por Klauss Vianna, que buscava valorizar a importância do processo individual de construção e exploração do movimento. QUEIROZ (2012) apresenta esse trabalho como uma “anti-técnica” gerando ainda mais campo de discussão acerca da técnica em dança. DOMENICI (2007) apresenta a ideia que a técnica em dança se faz quando o bailarino busca estratégias de organicidade em seu corpo para tentar alcançar o que lhe foi solicitado pelo coreógrafo. PALAVRAS-CHAVE: Técnica em Dança, Dança Contemporânea, Processos Cognitivos, Corporalização.

TECHNICAL CONSIDERATIONS IN DANCE FOR CONTEMPORARY DANCE

ABSTRACT It is intended in this article to discuss emerging issues to think the technique in

contemporary dance taking into account the individual processes of learning,

understanding that each body is different in their experiences and in their mode

of existence. Some authors give light to the work prepared by Klauss Vianna,

who sought to value the importance of the individual process of construction

and operation of the movement. Queiroz (2012) presents this work as an "anti-

technical" field generating further discussion of technique in dance. DOMENICI

(2007) presents the idea that the technique in dance is when the dancer makes

search strategies organicity in your body to try to achieve what was asked by

choreographer.

KEYWORDS: Technique in Dance, Contemporary Dance, Cognitive Processes, Corporalization

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Baseando na classificação que a autora FAURE (2000, apud AGUIAR

2008) nos apresenta, a dança está divida da seguinte forma de acordo com seu

fazer: as que se baseiam na lógica da disciplina e as que se baseiam na lógica

da singularidade.

Seguindo a lógica da disciplina estão as técnicas de dança que

apresentam uma padronização dos movimentos como o balé clássico e

técnicas de dança moderna como Martha Graham, José Limón, entre outras, e

seguindo a lógica da singularidade estão as danças que entendem o bailarino

enquanto indivíduo formado por suas experiências e que possui subjetividades,

como a dança contemporânea e a educação somática.

Ao se pensar na técnica em dança, quase de modo automático,

podemos visualizar bailarinos realizando movimentos precisos, se valendo dos

mesmos mecanismos para realizá-los, sempre ensinados de um contexto

externo ao corpo, não o considerando como complexo e dinâmico. Esse

entendimento está atrelado a diversas relações e conceitos tradicionais que

ainda hoje permeiam e embasam muitas áreas de conhecimento e também o

modo que a sociedade se relaciona com ela mesma e com o mundo. São

relações como causa e efeito, onde se acredita que fornecendo as condições

ideais como causa, como ponto de partida, certamente se alcançará

determinado objetivo ideal mais adiante, se apresentando como uma relação

pautada no determinismo, se relacionando também ao entendimento e

aceitação de que os acontecimentos ocorrem de modo linear. Todos esses

conceitos estão atrelados ao mecanicismo, que afirma que tudo pode ser

programado e moldado para se alcançar determinado fim.

O corpo foi tradicionalmente associado a esses entendimentos,

caracterizando-o durante muito tempo como corpo-máquina, programável,

moldável e instrumentalizado e essas visões de corpo ainda encontram eco

atualmente na sociedade.

A estipulação de um ideal estético para o corpo, a imposição social do

corpo tido como belo pela mídia televisiva, de estar sempre em plena forma

física, são meios opressores e de alienação de todo um sistema social pautado

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em um pensamento mecanicista. Dessa forma a dança, como quaisquer

pensamentos e manifestações artísticas e sociais, sofreu essas influências por

muito tempo em seus fazeres. Durante muito tempo se pensou e se praticou

técnica em dança sob uma visão mecanicista e determinista sobre o corpo. A

utilização da técnica em dança como padronizadora e comum a todos os

corpos.

Porém recentemente, para entender melhor os fenômenos que

envolviam o corpo, este passou a ser entendido e estudado como processual e

contínuo, rompendo com quaisquer entendimentos cartesiano e mecanicista

que o cercassem. As ciências cognitivas apresentaram descobertas no modo

como o corpo aprende, percebe e se relaciona, abandonando também a ideia

de que todo conhecimento e novos aprendizados acontecem no somente

cérebro. Os estudos a cerca do cérebro consideravam o órgão de modo

isolado, extracorpóreo, não permitindo, portanto que seus processos fossem

entendidos como integrantes de um sistema onde todo o corpo está,

necessariamente, presente.

Ao final do século XX estas descobertas passaram a valorizar e afirmar

o corpo como resultante de suas experiências e vivências, nos explicando

melhor que este conhece e aprende novas informações através da experiência,

da ação. É, portanto, no e pelo corpo que se dá o conhecimento.

Cognitivo, então, vai muito além do velho parâmetro lógico-dedutivo de conhecimento e raciocínio como categorias estritamente mentais. Os processos de conhecimento estão espalhados pelo corpo, inclusive os não conscientes (QUEIROZ, 2009: 55).

Assim, cabe, portanto esclarecer questões em torno da técnica em

dança, pois com novos discursos e entendimentos sobre o corpo sendo

praticados na dança atualmente, a técnica perde o lugar de destaque que

ocupou por tanto tempo na história da dança.

Pensar a técnica em dança sob novos modos de se fazer dança, tão

amplamente investigados e explorados na dança atualmente, faz emergir

questões muito latentes em ambientes profissionais de dança e principalmente

nos corpos que a realizam. Muitos profissionais da área se questionam como

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ter um corpo que esteja preparado para a diversidade de propostas e

linguagens apresentadas hoje no ambiente da dança. Essa é uma realidade

nos ambientes de companhias profissionais que não possuem coreógrafos

residentes. Os bailarinos têm contato com diversos coreógrafos, o que acaba

por exigir uma demanda corporal que seja eclética, variada e consiga se

relacionar satisfatoriamente com diferentes propostas. Então como trabalhar

esses corpos? De qual(is) técnica(s) servi-los para que atendam essas

demandas? Há uma técnica que possa preparar esses corpos ou a

multiformação seria a melhor escolha? Técnica(s) em dança seria um caminho

satisfatório a ser seguido?

Sabemos que inúmeras técnicas em danças foram elaboradas com o

intuito de trabalharem e organizarem corporalmente certas linguagens de

movimento. Ou seja, a técnica surge concomitantemente ao ideal estético, para

solucionar problemas e organizar os corpos para esse fim.

Em espetáculos tradicionais de balé clássico, dança flamenca, dança do

ventre, entre outras danças já codificadas, não se tem dúvidas sobre a

natureza da técnica trabalhada com os corpos em cena, pois cada dança

possui em sua elaboração passos codificados e tecnicamente bem

estruturados para cada proposta estética. Logo, a técnica específica para a

dança que está sendo apresentada muito provavelmente terá sido trabalhada e

explorada pelo grupo para que este alcance a proposta estética que a dança

indica. Os códigos estéticos apresentados pelos corpos em cena permitem ao

espectador entender que possivelmente os dançarinos tenham acessado

determinadas técnicas específicas de dança para alcançarem aquele fazer

estético específico. Porém, na dança atual e principalmente na dança

contemporânea, ao se analisar as movimentações dos corpos em cena não se

pode ter certeza de quais técnicas eles se valeram para determinada

configuração. Tenta-se por vezes arriscar que algumas características do

movimento, em meio a tantas outras, vieram dessa ou daquela técnica já

conhecida. Fica a dúvida de como os corpos trabalharam e de quais linguagens

se valeram para alcançarem a proposta artística apresentada. A ideia de

identificar no corpo determinada técnica de dança, portanto, se dilui para o

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espectador. Pode também se tratar de uma mescla de códigos, de onde

emergirá algo próprio desse processo, ou de uma criação de novas propostas

de movimentos, o que é bastante investigado na dança contemporânea (por

não se tratar de uma dança baseada em passos estruturados).

Dança contemporânea é um conceito do tipo “guarda-chuva” que abarca construções coreográficas muito diversas de variados lugares e culturas ao redor do mundo. Faz-se dança contemporânea no Japão, em Taiwan, na França, na Alemanha, na Holanda, na Bélgica, nos Estados Unidos e no Brasil. Em cada um desses países há coreógrafos de características distintas que realizam trabalhos corporais conhecidos como dança contemporânea, mas poderiam ser classificados de forma diferente. Em comum, pode-se dizer que cada um produz obras que são fruto de redes de influências e contágios múltiplos. A diversidade é, pois, uma das marcas da dança contemporânea (SIQUEIRA, 2006: 107).

Segundo Dominici (2008), ao buscarem estratégias de organicidade em

seus corpos, os dançarinos estão no momento elaborando técnicas para

tentarem alcançar o que lhes foi solicitado pelo coreógrafo. O processo de

como o corpo se organizará para tal execução e proposta estética é, para a

autora, a criação da técnica para essa configuração trabalhada.

Podemos, portanto afirmar aqui que a técnica, apesar de estar atrelada a

uma estética, tem um caráter processual que leva em conta a individualidade e

os processos que acontecem no corpo do dançarino enquanto esse se

organiza para o que lhe foi solicitado. Está em jogo uma negociação entre a

corporalizações/embodiment do bailarino e a técnica trabalhada.

Aguiar (2008) levanta uma hipótese de que seja possível o próprio

processo coreográfico ser capaz de preparar o corpo para o projeto estético

desejado, entendendo que em um ambiente onde a movimentação é

construída de modo processual, o corpo irá valer-se de sua coleção de

informações (grifo da autora) para solucionar questões que ali emergirem. A

autora confirma, portanto, que o corpo negociará e buscará solucionar

questões dentro da proposta coreográfica de modo processual se valendo de

suas corporalizações/embodiment, suas subjetividades. A autora também nos

alerta que a utilização dos artefatos cognitivos pelos bailarinos irá se alterar de

acordo com o indivíduo, com o ambiente artístico e com a técnica utilizada, o

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que também implicará em diferentes negociações corporais e resultados, de

acordo com essas relações. A esse respeito ela afirma que

[...] As tarefas serão diferentes e as negociações que o dançarino precisa fazer dependem dessas relações. Há contextos nos quais o processo de criação artística não apresenta a priori a morfologia dos movimentos ou o comportamento cênico dos dançarinos. O “vocabulário” ou padrão de movimentos não é necessariamente o ponto de partida da criação. Ele pode emergir durante o processo criativo mesmo que não esteja formulado no começo da pesquisa (GREINER, 2005, p. 88). Nestes casos o treinamento técnico que os dançarinos tiveram são também artefatos. É importante destacar que esses artefatos não podem simplesmente ser abandonados pelos dançarinos em novos processos de criação, pois, como mencionado anteriormente, após um longo treinamento eles estão acoplados, e serão os instrumentos que o dançarino terá ao seu dispor para “negociar” com as novidades do “contexto de criação” (Idem: 55).

Enquanto dançarina integrante de um grupo de dança contemporânea,

pude vivenciar essa realidade. Em alguns trabalhos que participei os

coreógrafos se utilizavam de suas aulas como forma de encaminhamento para

aproximação dos corpos à proposta estética coreográfica. A aula tinha

determinado direcionamento e ordenamento, de modo a aproximar os

dançarinos das qualidades e movimentações que seriam trabalhadas mais

adiante na composição coreográfica. Esse modo de trabalhar caracteriza uma

das inúmeras formas de se compor dança atualmente, uma vez que a dança

contemporânea não se vale de uma técnica específica para se embasar e

preparar os corpos para diferentes trabalhos.

Pensando nisso, podemos acreditar em uma similaridade em modos de

composição tanto na dança contemporânea quanto no balé clássico,

entendendo que o trabalho realizado em sala, como preparação corporal, irá

desembocar na configuração final levada á cena. No entanto, para a dança

contemporânea não se apresenta uma linearidade nesse processo como no

balé, onde os passos ensaiados em sala vão igualmente codificados para o

palco. Em algumas composições contemporâneas são trabalhados estados de

corpo, diferentes qualidades de movimentos, entre outras questões que estarão

presentes em cena e estas, entendendo que o indivíduo é processual e

mutável, são impossíveis de serem mecanizadas e codificadas. As técnicas

podem estar presentes nesse processo, mas elas não se apresentam como

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único recurso corporal para o bailarino, pois a dança contemporânea se

assume mutável a cada fazer, uma vez que as condições para que ela se dê –

corpo, indivíduo, ambiente, ideia coreográfica, proposta estética, entre outros –

também são mutáveis, assumindo também o acaso em seu fazer.

No entanto, a técnica se caracteriza por direcionar os movimentos para

um determinado trabalho, não permitindo ao bailarino explorar seu corpo e

suas movimentações, delineando sua capacidade criativa dentro do universo

da técnica trabalhada. Assim, percebemos então como é perigoso para o

bailarino contemporâneo se formar diariamente por uma determinada técnica

ou até mesmo por variadas técnicas em dança. Se é interesse que o corpo

esteja aberto e disposto a se relacionar a diferentes fazeres em dança, muitos

ainda nem experimentados ou conhecidos que podem emergir do próprio

processo coreográfico, qual seria a vantagem de trabalhar o corpo diariamente

em técnicas que têm em si um determinado ideal estético?

É importante se repensar como é feita a formação e o trabalho corporal

diário de bailarinos profissionais em companhias que não possuem coreógrafos

residentes, pois ainda podemos perceber muitas discordâncias entre o modo

como são realizados os trabalhos coreográficos, buscando uma diversidade de

linguagens e propostas, e como estas organizam suas formações diárias em

sala de aula. Queremos alertar que essa discordância pode, em certa medida,

dificultar o processo de negociação corporal que o bailarino inserido nessa

realidade profissional enfrenta pelo caráter delimitador da técnica dentro de seu

universo de artefatos cognitivos.

Existem muitas práticas corporais, não necessariamente de dança, que

permitem que o corpo seja trabalhado de diversas maneiras, como a yoga, a

educação somática, as artes marciais, entre outras, que podem ser aliadas na

busca de uma formação que fuja às imposições e delimitações características

da técnica. Não vamos aqui olhar para a técnica como uma vilã que não deve

mais ser explorada, ao contrário, se bem entendidas e intencionalmente

trabalhadas, as diversas técnicas em dança podem contribuir amplamente para

o trabalho do bailarino profissional, mas sim olhar para além das técnicas se

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faz necessário pela emergência de inúmeros fazeres híbridos em dança que

presenciamos na contemporaneidade.

Domenici (2008) nos afirma que evolutivamente o cérebro se

complexificou para solucionar questões referentes ao aumento da

complexidade dos movimentos, atrelando de modo significativo pensamento a

movimento e vice-versa. Assim, a autora afirma que pensamento é movimento

e, desse modo, “[...] Ao imaginar uma ideia em forma de dança, o cérebro já

está imaginando maneiras de implementar essa ideia no corpo mesmo sem o

conhecimento de seu autor” (Idem: 2). Sabemos também que a dança carrega

em si um discurso, um fazer-dizer do corpo, termo utilizado por Setenta (2008,

p. 17) que nos explica que o discurso da dança “[...] se distingue exatamente

por não ser uma fala sobre algo fora da fala, mas por inventar o modo de dizer,

ou seja, inventar a própria fala de acordo com a aquilo que está sendo falado.

[...]” .Assim ressaltamos a importância de bailarinos também se formarem

teoricamente, através de leituras e trabalhos de crítica em dança e em outras

áreas das artes, rompendo com uma ideia errada e amplamente difundida que

o bailarino não necessita ter acesso e realizar estudos e pesquisas teóricas.

Quando passamos a compreender a complexidade do corpo e a

hipercomplexidade do corpo na dança, essa noção de que o bailarino precisa

somente de uma ampla e aprimorada formação corporal, cai por terra.

A Antitécnica de Klauss Vianna como meio para a Busca de Aberturas

Corporais

Klauss Vianna, coreógrafo e bailarino, pesquisou durante todo seu

trabalho em dança como os corpos dos dançarinos poderiam se desfazer de

condicionamentos que estivessem muito corporalizados a ponto de impedir que

o corpo se desprendesse de codificações e criasse novos modos de se

movimentar. Para Klauss as técnicas em dança enrijeciam os corpos de modo

a impedi-los de realizar outros caminhos para alcançar novas propostas de

movimentos que não as já vivenciadas corporalmente.

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[...] Na concepção de Klauss, somente a desestruturação dos condicionamentos possibilitaria uma abertura. Abrir os espaços articulares para criar com mais liberdade. A forma de movimentos que já estavam no corpo treinado pela técnica, impediria em certo grau o lado criativo de movimentos, preponderando sua redundância (QUEIROZ, 2011: 120).

Podemos perceber que Klauss se referia às técnicas de dança baseadas

na lógica da disciplina, que padronizavam os movimentos e, para ele,

enrijeciam qualquer possibilidade de criatividade dos dançarinos.

Vianna estimulava em seus bailarinos uma pesquisa/investigação

corporal, assumindo que cada indivíduo tem para si um modo particular de

realizar esse processo, a partir de suas vivências, condicionamentos e

condições corporais e tinha como principal objetivo desfazer condicionamentos

e amarras corporais que as técnicas proporcionavam aos dançarinos. Para isso

ele propunha inicialmente trabalhar a consciência corporal através do

entendimento das leis gerais que operam no corpo, fazendo dessa consciência

uma autoconsciência (QUEIROZ, 2011). O ato aparentemente básico de

prestar atenção ao movimento que está sendo realizado já nos concede uma

maior consciência e autodomínio da ação realizada, o que não acontece em

movimentos automatizados pela repetição diária da técnica. Em suas aulas,

Vianna dava instruções enquanto os alunos estavam realizando os exercícios,

assim eles trabalhavam em um estado de consciência ativa no movimento

realizado.

Antes do ensino de uma técnica corporal específica é necessário que se faça um trabalho de conscientização corporal, sem o qual o aprendizado poderá ser deficiente, pois o corpo vai adquirindo uma forma, criando uma armadura e consolidando ainda mais as tensões musculares profundas (VIANNA, 2005: 112).

Em um entendimento total de corpo, indivíduo e ambiente, é procedente

entendermos que, ao se mexer nas estruturas musculares já consolidadas de

um indivíduo, modifica-se também seu emocional e sua maneira de lidar com o

mundo. Klauss tinha essa consciência e essa também era sua proposta. Ele

entendia que um corpo alienado na dança também se apresentava alienado

para o mundo e, com o trabalho de conscientização e desfazimento das

tensões musculares habituais criadas e consolidadas no dia a dia, essa

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mudança também se faria valer para outras questões sociais diárias. Não

negligenciava, contudo, que esse processo geraria incômodo, negação e

estranhamento aos alunos, pois assim como o desfazimento de qualquer

hábito, por menor e/ou mais simples que ele seja, estes estariam abandonando

hábitos corporais já condicionados por uma maneira de pensar e entender o

mundo, construídos ao longo da vida. Estariam iniciando um processo que

modificaria sua autorreferência e inclusive sua autoimagem.

Nesse sentido, um corpo livre de condicionamentos e dono de suas expressões em alguma medida se revala um incômodo a ordem social existente, uma vez que busca recuperar a percepção da totalidade dentro de uma sociedade fundada exatamente na fragmentação (VIANNA, 2005: 114).

Percebemos assim que em seu trabalho, além de possuir obviamente o

caráter artístico e profissional em dança, ele também assumia um caráter

político social assumindo o indivíduo como ser complexo em todas as suas

instâncias, apresentando para seus alunos o poder e autonomia que é/tem o

corpo. Um legado de grande importância para se pensar, fazer e estudar dança

até os dias atuais entendendo que “[...] se perdemos essa capacidade de

renovação, se fugimos às dificuldades que surgem, encerramos a própria vida”

(Idem: 83).

Queiroz (2011) discute o trabalho a as ideias de Klauss apresentando-as

como uma antitécnica. Em seu livro Corpo, dança, consciência: circuitações e

trânsitos em Klauss Vianna a autora apresenta de quais fundamentos o

professor se valia em suas aulas para trabalhar os corpos de maneira

inovadora para aquela época: a autoconsciência, as oposições, espirais, os

espaços articulares, o desfazimento de tensões musculoesqueléticas, uma

aproximação e conhecimento mais anatômico do corpo para melhor

compreendê-lo. Em sua obra a autora tece relações entre o trabalho de Klauss

e as ciências cognitivas trazendo importantes contribuições para o trabalho do

bailarino e para a dança.

Nesse trabalho tão significativo para a dança, elaborado por Klauss

durante toda sua vida (e atualmente por seus alunos e companheiros de

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trabalho), podemos perceber, como já dito anteriormente, a importância da

busca do desfazimento de condicionamentos e tensões musculares

acumuladas cotidianamente. Pensando na realidade de bailarinos em

companhias profissionais que trabalham com diferentes coreógrafos, essa

busca pode se tornar uma aliada em seu fazer profissional, pois, mergulhado

nesse processo, que é contínuo e interminável, o bailarino poderá ter maior

contato com seu próprio corpo em/na ação na intenção de conhecê-lo melhor,

alargando, portanto sua consciência do seu próprio corpo em movimento.

Buscar também desfazer possíveis condicionamentos tensões que estivessem

despendendo ao bailarino maior energia ao se relacionar com movimentações

novas ou não tão familiarizadas a seu corpo. Quando condicionado, seja pela

técnica em dança ou por outros fatores cotidianos, o corpo cria rotas de atalho

(grifo nosso) para realizar suas tarefas, ações, movimentos e/ou gestos. Sem

que o indivíduo se dê conta a tarefa já foi realizada e ele está disponível para

aplicar sua energia em outras situações que não as já condicionadas. Na

dança o mesmo acontece, pois o modo como o corpo se relaciona no mundo

também se relaciona na dança, logo, não é interessante para esse profissional

que seu corpo se habitue a resolver questões corporais de uma mesma

maneira ou se valendo dos mesmos recursos, uma vez que essas questões

são mutáveis e, muitas vezes, ainda desconhecidas. Não podemos esquecer

que mutáveis também são o ambiente, as relações com o restante do grupo, as

relações com o coreógrafo e outros muitos fatores que devem ser assumidos

quando analisamos um processo tão complexo como as negociações e

adaptações de um corpo na dança.

Essa realidade profissional aqui colocada exige do dançarino um corpo

pré-disposto a se adequar satisfatoriamente a diferentes linguagens, padrões e

características de movimento e podemos pressupor que um corpo que tente se

desprender de tensões e condicionamentos diariamente talvez esteja bastante

aproximado dessa realidade. Não queremos sugerir um corpo livre de hábitos e

condicionamentos porque não acreditamos que isso seja possível. Queremos

propor aqui que um corpo mais alerta e atento possa, talvez, ter maior

facilidade de negociação nos processos coreográficos, que têm sido realizados

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em tempo curtos, com necessidade de cumprimento de prazos cada vez

menores atualmente, dificultando esse processo aos bailarinos. Apontamos

como um dos possíveis caminhos para a busca desse processo o trabalho de

Klauss Vianna que consideramos antitécnica exatamente por seu caráter

exploratório e não definidor de nenhuma estética ou proposta pré-concebida.

Acreditamos também que essa realidade profissional apresenta aos

bailarinos uma necessidade de entendimento que novas propostas podem

surgir na composição seguinte, expondo-os a esse entendimento prévio. Para o

bailarino, não negar esse fato e assumi-lo de modo mais claro, possa talvez

ajuda-lo a se preparar melhor para a demanda corporal solicitada, permitindo

que ele entenda melhor sua dinâmica de trabalho, sendo necessários maiores

estudos junto à psicologia e outras áreas competentes a esse campo para que

se possa afirmar essa hipótese aqui levantada.

Referências

AGUIAR, Daniela. Sobre Treinamentos de Dança como Coleções Artefatos Cognitivos. Dissertação de mestrado. Dança. Universidade Federal da Bahia. 2008.

DOMENICI, Eloisa. Diálogo com o texto “Dança contemporânea – o dançarino pode ser apto a tudo?”, de Daniela Aguiar. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. 2007.

QUEIROZ, Clélia. Húmus. Organização de Sigrid Nora. Caxias do Sul – RS. 3ª edição, 2011.

QUEIROZ, Clélia. Corpo, Mente e Percepção: Movimento em BMC e Dança. São Paulo – SP. Annablume, Fapesp, 2009.

QUEIROZ, Clélia. Corpo, Dança e Consciência: Circuitações e Trânsitos em Klauss Vianna. Salvador – EDUFBA. 2011.

VIANNA, Klauss. A Dança. São Paulo – Summus. 2005.

SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo. Salvador - EDUFBA. 2008.

SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas – SP. Ed: Autores Associados, 2006.

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Jussara Braga Bastos Mestranda em Dança pela UFBA - Universidade Federal da Bahia, Bacharel e Licenciada em Dança pala UFV - Viçosa MG, Bailarina ex-integrante do Grupo Êxtase de Dança - Viçosa MG,

Instrutora de pilates. E-mail: [email protected]