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183 UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE O CORPO QUE DANÇA RAIMUNDO SEVERO JÚNIOR RITA DE CÁSSIA BARBOSA PAIVA MAGALHÃES Boa notícia para uma criança: em tudo, em tudo você terá a seu favor o corpo. O corpo está sem- pre ao lado da gente. É o único que até o fim não nos abandona. (Clarice Lispector) A dança ea vida não consistem em descobrir e afirmar a Verdade, mas em questionar e jogar com os sistemas que a predefinem. (Ciane Fernandes) Clarice Lispector escreveu, certa vez, que uma das melhores lições que uma criança pode aprender é que o corpo será o único que nunca lhe abandonará, ou seja, esta- rá presente até a hora da morte. Será por isto que os estudos sobre o corpo vêm fascinando a humanidade? Alguns buscaram entender como um organismo, ini- cialmente dotado de comportamentos reflexos e mecanis- mos de funcionamento auto-reguladores torna-se pessoa no mergulho existencial, como fez Henri Wallon. Outros dis- cutiram que esta imersão na cultura é, basicamente, um processo de disciplinamento. Na perspectiva de Brunhs (2000, p. 90), trata-se de compreender que "a cultura ins- creve-se sobre nossos corpos, tornando-se necessário exa- minar os modos particulares de como isso ocorre em diferentes sociedades", ou seja, o corpo reflete/sofre um processo contínuo de diferenciações e identificações que o tornam objeto/signo de determinações ideológicas. O corpo em seu sentido biológico mais estrito inse- re-seem um determinado contexto sócio-histórico-cultural que terminará por lhe dar um significado que, obviamente, transcenderá o orgânico. O processo de educação, por exemplo, promove esta significação em um duplo processo de reprodução (contro- le social) e produção cultural em espaços sócio-educativos

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UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE O CORPO QUE DANÇA

RAIMUNDO SEVERO JÚNIOR

RITA DE CÁSSIA BARBOSA PAIVA MAGALHÃES

Boa notícia para uma criança: em tudo, em tudovocê terá a seu favor o corpo. O corpo está sem-pre ao lado da gente. É o único que até o fim nãonos abandona.

(Clarice Lispector)

A dança e a vida não consistem em descobrir eafirmar a Verdade, mas em questionar e jogarcom os sistemas que a predefinem.

(Ciane Fernandes)

Clarice Lispector escreveu, certa vez, que uma dasmelhores lições que uma criança pode aprender é que ocorpo seráo único que nunca lhe abandonará, ou seja, esta-rá presente até a hora da morte. Serápor isto que os estudossobre o corpo vêm fascinando a humanidade?

Alguns buscaram entender como um organismo, ini-cialmente dotado de comportamentos reflexos e mecanis-mos de funcionamento auto-reguladores torna-se pessoanomergulho existencial, como fez Henri Wallon. Outros dis-cutiram que esta imersão na cultura é, basicamente, umprocesso de disciplinamento. Na perspectiva de Brunhs(2000, p. 90), trata-se de compreender que "a cultura ins-creve-se sobre nossoscorpos, tornando-se necessário exa-minar os modos particulares de como isso ocorre emdiferentes sociedades", ou seja, o corpo reflete/sofre umprocesso contínuo de diferenciações e identificações que otornam objeto/signo de determinações ideológicas.

O corpo em seu sentido biológico mais estrito inse-re-seem um determinado contexto sócio-histórico-culturalque terminará por lhe dar um significado que, obviamente,transcenderá o orgânico.

O processode educação, por exemplo, promove estasignificação em um duplo processo de reprodução (contro-le social) e produção cultural em espaços sócio-educativos

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formais e informais. É inegável que existe uma forte pressãopara o corpo atender a expectativas normativas:

[...] para nos tornarmos sereshumanos aceitos, pes-soas confiáveis com plenos direitos de cidadãodevemos desenvolver certas competências e con-troles, passar por fases de desenvolvimento docorpo nas quais nossas capacidades corporais se-rão formadas e moldadas. ( BRUNHS, 2000, p. 91).

o que isto tem a ver com dança? Saliente-se que ou-tro espaço de significação do corpo é a arte; a dança, particu-larmente, como uma das formas mais antigas de expressãoartística humana tem atravessado a história da humanidadelidando constantemente com o corpo em movimento.

Feitas estas considerações, o objetivo deste artigo éanalisar como a dança contemporânea pode colaborar nasdiscussões sobre corpo na perspectiva de conceber as capaci-dades corporais para além de preench imento de expectativasnormativas, socialmente engendradas. Inicialmente, apresen-tamos uma breve retrospectiva desde o nasci mento da dançacomo linguagem artística até a eclosão do movimento deno-minado dança pós-moderna, tecendo em seguida algumasreflexões sobre a questão do corpo na dança contemporânea.

A dança é considerada uma das mais antigas formasde expressão artística desenvolvidas pelo homem, nãoobstante adquiriu status como linguagem artística somentequando ocorreu a transição para a Modernidade. Antes des-te período, apesar das diferenças existentes entre as diversasformas de manifestação que assumiu na civilização ociden-tal, a dança esteve intrinsecamente ligada aos rituais religi-osos, às festas populares (ditas profanas) e às atividadescotidianas (especialmente o trabalho).

A partir do século XV (período conhecido como oQuattrocento), começam a surgir na Itália, as primeiras ten-tativas de codificação da dança, como conseqüência de umprocesso iniciado no século XII: a separação entre as dan-ças popu lares e aquelas apresentadas nas cortes para entre-tenimento dos nobres (BOUClER 2001).

Esta separação entre as danças populares e a dança"metrificada" levou ao surgimento dos balés de corte e dos

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pri mei ros mestres de dança, com a conseq üente codificaçãonão só dos passos apresentados, mas também da criaçãodos repertórios e das regras que ditavam as relações sociaisentre as pessoas envolvidas (mestres, bailarinos e público).Assim, o renascimento vê surgir a profissão de maitre-de-ballet, cuja responsabi lidade era as apresentações de dançae a educação corporal da nobreza.

Esta breve descrição dos fatos que antecedem a inven-ção do balé clássico, no século XVIII, nos fornece os ele-mentos mínimos para entendermos sobre qual visão dehomem se assenta o modelo de corpo adotado pela dançaclássica. Reiteremos que já na pré-renascença começou oprocesso de separação entre as danças populares e as dançasapresentadas para entretenimento da nobreza (os balés decorte), culminando com um processo de valorização da téc-nica e do virtuosismo do bailarino nunca antes observado.

Na Modernidade, a valorização do treino e da técnicaganha especial relevância. Neste período, o corpo despidode uma análise religiosa que requintou a dualidade corpo-espírito, se tornará foco prioritário de interesse. Para Silva(1999, p. 9) trata-se do fim da transcendência, ou seja,

[...] o desligamento do humano da totalidade, donascimento de um indivíduo que não crê emuma ordem sobre-humana, a quem não restaoutra alternativa senão crer na material idade ma-nifesta no corpo.

Será o triunfo de uma lógica instrumental que noslega uma forma utilitário-racionalista de raciocínio e ação,isto é, a economia, a educação, as relações sociais e, obvia-mente, o corpo passam a ser considerados dentro desta lógica.

Silva mostra, ainda, a medicina como a área quemais colabora com a imagem corporal forjada namodernidade reforçando a noção de indivíduo como corpomecânico e fragmentado:

o corpo passa a ser dotado de uma força pró-pria, é uma nova energética que vai abrir cami-nho para a representação corporal, não maiscomo matéria inerte, como estruturada a partirdo exemplo da máquina a vapor. A perda com a

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vinculação à alma é compensada pela dinami-cidade proveniente da força mecânica que é atri-buída ao próprio corpo. (1999, p. 14).

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Assim, a visão de homem do ideal iluminista é osujeito da razão, que tem sob controle os instintos e aspaixões, que se acredita capaz de, baseado na ciência, al-cançar o absoluto conhecimento da verdade e da ordemque regem o universo. Identificando-se completamente comuma racionalidade que busca alienar de si mesmo aquiloque, supostamente, ameaçaria este ideal iluminista. Comefeito, não é a toa que o balé clássico vai desenvolver-setecnicamente no sentido de criar estratégias que permitamnegar o peso do corpo e elevá-Io ao céu. Como em Descar-tes, é preciso negar este corpo que ilude com artifícios,para se atingir o conhecimento verdadeiro.

Obviamente não é todo corpo que seadequará a estepropósito. Coerente com a visão idealizada do homemmoderno, este corpo deve ser perfeito, isto é, atender adetermi nadasmedidas e parâmetros anatõmicos, funcionaise estéticos. Deve serainda capaz de submeter-se aos rigoresdo treinamento para se alcançar o perfeito domínio da téc-nica, pois o corpo, matéria inferior que nos constitui, tudopode suportar para alcançar um ideal de perfeição.

Estaânsia pelo trei no rigoroso, pelo enquad ramentodo movimento dentro de uma lógica, cria uma pedagogiada postura, iniciada no Século XVIII. Seu objetivo é contro-lar o movimento corporal (no baile, na esgrima) na buscade conquistar a postura ereta, reconhecida como sinônimode urbanidade. A educação visa, assim, a conquista da pos-tura justificando-se todos os tipos de sacrifícios e castigoscorporais direcionadas às crianças (LEVIN, 2002).

Por sua vez, Fernandes afi rma :

Por meio do treinamento repetitivo, as discipli-nas sociais, dentre elas o balé, constroem umanoção linear e retilínea do tempo, em que o im-perfeito corpo presente é constantemente força-do em direção a um futuro ideal. Para MichelFoulcaut, o tempo "evolutivo" ou 'cumulativo',"que seorienta para um ponto terminal estável",

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caracteriza o método disciplinário das escolas,exércitos, prisões e fábricas. (2000, p. 124).

É exatamente contra a tirania da técnica sobre o cor-po que a dança moderna se insurgi. No início do SéculoXX, em um contexto marcado pelos indícios de que a lógi-ca instrumental- filha do Iluminismo - amordaçava outraspossibilidades de expressão do humano, grupos de coreó-grafos e bailarinos nos EUA e na Europa lançam-se a expe-rimentar novas formas de representação que fugiam aosparâmetros da dança que se praticava tradicionalmente.

A dança moderna se desenvolve a parti r de duas ver-tentes: a escola americana e a escola alemã. De um lado aescola americana, inaugurada por Duncan, caracteriza-se peladiversidade de abordagens de seus seguidores, não raro assu-mindo posturas contraditórias entre si na forma de encarar atécnica. Por outro lado, a escola alemã, estabelecida inicial-mente por Laban, desenvolve-se a parti r do expressionismomantendo-o como eixo da linguagem corporal.'

No que se refere a escola americana, Bourcier (2001)aponta que em Isadora Duncan, a dança é uma expressão daprópria vida e, portanto, deve voltar-se para a busca da expres-são das emoções a parti r dos ritmos e movi mentos natu rais docorpo, particularmente da respiração, daí o seu desinteressepela técnica da forma como a dança clássica a concebe.

Dentre os paradoxos da Escola Americana MerceCunningham, que trabalhou com Marta Graharn-, mereceespecial destaque. Sua proposta, idealizada nos anos de 1950,caracteriza-se, basicamente, por fugi r de uma dança temática

1 Na escola americana, destacam-se, além de Isadora Duncan os seguintesnomes: Loie Fuller, Ruth Saint-Denis, Ted Shawn, Charles Weidman, DorisHumphrey, Martha Graham e Merce Cunningham, entre outros. Na esco-la alemã. Além do precursor laques-Dalcroze e de Rudolf Laban, podemoscitar Mary Wigman e Kurt [oss (de quem Pina Bausch foi aluna).2 Marta Graham, que havia estudado na escola de Ruth Saint-Denis eTed Shawn (a Denishawnschool), constrói um percurso investigativomuito original e desenvolve um trabalho corporal baseado na contra-ção e expansão, que pode ser considerada a primeira técnica estruturadade dança moderna. O ponto de partida da sua pesquisa é o desejo dedançar o confronto do homem com os problemas permanentes dahumanidade, inspirando-se nos mitos e nos conflitos sociais da época.

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na perspectiva de uma narrativa linear, ou seja, o movimentoem si é suficiente para uma composição coreográfica. Insereos ruídos e silêncios e, notadamente, os acasos buscandoconstruir uma dramaturgia do movimento. Assim, utiliza oacompanhamento musical não como suporte para o movi-mento, mas tão somente para criar o que pode ser denomina-do de clima (BOURCIER, 2001; GIL, 2001; SANTOS, 2004).

Segundo Santos:

A dança para Cunningham se constitui numalinguagem poética particular, não tendo neces-sidade de se vincular a nenhuma outra atividadeartística. Há sim, de se integrar com outras artes,mas cada uma mantendo a sua autonomia.(2004, p. 54/55).

Saliente-se que Cunningham, na ânsia de criar umadramaturgia do movimento cria uma técnica que exige con-trole, força e inteligência o que deságua no que Gil (2001)denomina de esti 10 elegante e elitista.

No início da década de 1960, jovens bailarinos-posteriormente denominados de pós-modernos - que havi-am estudado com Cunningham e desenvolvido experiênci-as com o músico Robert Dunn, no campo da composiçãocoreográfica, insatisfeitos com o lugar que a técnica recon-quistara na dança moderna, uniram-se a um grupo de artis-tas que passou a apresentar os seus trabalhos em uma grandesala da [udson Church' Suas experiências trouxeram para adança algo inusitado para a época: ações cotidianas comocorrer, saltar, sentar-se naturalmente. Suas apresentaçõesfugiam do convencional, ainda, por ocorrerem fora do es-paço dos teatros em locais como telhados, galerias de artes,praças públicas etc (BANES, 1999).

Conforme Gil (2001, p. 185) Cunningham revolucio-na a dança na medida em que libertou o movimento paratodos os planos e sentidos, rompendo com as formas clás-

3 Judson Church era um local (uma igreja protestante), em Nova York,onde o grupo de artistas que trabalhava com diferentes linguagens(dança, música, artes plásticas, teatro, vídeo) reunia-se para pesquisarnovas possibilidades com a linguagem do movimento (para maioresinformações ver BANES, 1999).

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sicasde expressãocorporal; porém osjovens da ludson Danceforam além, pois "queriam libertar os corpos quebrandotodas as normas que governavam a dança (incluindo as nor-mas de Cunningham)".

Estavertente questiona o corpo idealizado por artifí-cios como técnicas, figurinos, cenários e pretende que semostre pelo movimento um corpo real Assim, a propostada Judson Dance é considerada uma transição entre o mo-derno e o contemporâneo em um movimento denominadode dança pós-moderna.

A Escola Alemã, por sua vez, tem como um de seusexpoentes Rudolf Laban que desloca o interesse pela formado movimento na dança, peculiar à dança tradicional. Suaabordagem valoriza o aspecto qualitativo do movimento,isto é, o que importa é a qualidade expressiva dos movi-mentos que indicam estados emocionais. Organiza umaanálise baseada em quatro fatores: espaço, tempo, peso efluxo, presentes no movimento humano:

Essesquatro fatores são inerentes a cada pessoae é o que diferencia uma da outra. Há criançascom movimentos lentos (fator tempo), leves (fa-tor peso), diretos (fator espaço) e controlados(fator fluência) e outras totalmente opostas a es-tas em termos de movimento, os quais podemser rápidos, firmes, flexíveis, libertados. (RENGELe MOMMENSOHN, 1992 p. 103).

Seutrabalho vai apontar a correspondência entre cor-po-mente e a não existência de um corpo ideal para a dança,ou seja,Laban- que seauto-denominava artista/pesquisador-mostra a possibi lidade de pensarmos o corpo de formatransgressora em plena primeira metade do Século XX. Ocorpo não cartesiano marcado por uma linguagem própriaque expressa a forma do individuo existir no mundo.

Estaruptura com a noção de dicotomia entre corpo-mente é aprofundada no contexto da dança contemporânea,na qual não existe uma única técnica capaz de dar conta dacapacidade expressiva do movimento. Portanto, elementosdas técnicas das danças clássicae moderna, das terapias cor-porais, das artes marciais, das danças étnicas, das danças

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tradicionais populares, da pesquisa pessoal de movimentos,das ações cotidianas, do teatro e da música se interligampara dar visibilidade ao movimento. O corpo se livra demodelos pré-determinados personificando sua plural idade.

O trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch, em plenaatividade e principal herdei ra dos expression istas alemãs, éemblemático das possibi lidades que a dança contemporâ-nea descerra no que diz respeito a uma leitura do corpo queé, concomitantemente, material idade e símbolo do estarhumano na cultura.

Desenvolve, a partir dos anos 1970, um método decriação que faz emergir a noção de um corpo desconstruído,não subjulgado à técnica. Porexemplo, no trabalho 1980-uma peça de Pina Bausch o processo de criação inicia-secom os bailarinos conversando sobre experiências de soli-dão, busca e medo do escuro. "Em uma das cenas da peçaos dançarinos contam estas histórias, um a um, com gestosassociados a descrições verbais" (FERNAN DES, 2000, p. 129;CYPRIANO, 2005).

Fernandes (2000 p. 135) aponta, ainda, outro aspec-to relevante em Bausch, o fato de que os bailarinos:

[...] expõem e transformam os vocabu lários demovimentos aprendidos pela repetição na dan-ça e no cotidiano revertendo o poder social so-bre o corpo. A dicotomia entre uma sociedadelingüística controladora e um corpo pré-linguístico controlado é desestruturada

A repetição existe acompanhada de certa forma dedisciplinar o movimento, porém isto não está a serviço daconstrução de um corpo disciplinado que mostra um espe-táculo, mas de um corpo que está contando sua própriahistória. Corpo concebido em sua dimensão física e, espe-cialmente, como prenhe de significados.

A parti r desta breve retrospectiva sobre a evoluçãodo corpo na dança pergunta-se: quais as relações entre cor-po e dança contemporânea? Ou ainda: existe um corpo ide-al para a dança contemporânea? Longe de pretender encontrarrespostas fáceis e convincentes, pretendemos, justamente,provocar a reflexão sobre a questão do corpo na dança dita

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contemporânea, situando-a no contexto geral das represen-tações sobre o corpo na contemporaneidade.

Convergem hoje sobre o corpo vários interessessoci-ais e econômicos produzindo-se sobre o mesmo toda umasérie de práticas e discursos sócio-culturais, transformando-o cada vez mais em uma abstração. "Um corpo, enfim, quenão coincide com o nosso corpo real, porque é antes umcorpo idealizado e perfeito" (FHEATERSTONE apudMARZONO-PARISOLl, 2004, p. 24). Tal perspectiva colo-ca-nos em confronto com aqu i 10 que talvez seja a caracte-rísticamais marcantedo corpo na sociedade contemporânea,ou seja, a contradição entre modelo ideal e corpo real:

o ideal contemporâneo é o ideal de um corpocompletamente enxuto, compacto, firme, joveme musculoso: um corpo protegido dos sinais dotempo e no qual os processos internos são con-trolados pelos regimes alimentares, pelo exercíciofísico e pela cirurgia estética. (MARZONO-PARISOLl, 2004, p. 31).

A autora pondera ainda, que o corpo ideal de quenos fala a mídia é o reflexo imediato do medo de tudoaquilo que pode escapar ao controle. Podemos deduzir,portanto, que o modelo de corpo vigente atualmentepotencializa e torna mais eficiente o controle social ao in-seri-Io no próprio corpo que se pretende controlar. Umametáfora que iIustra estaassertiva são os chips introduzidosnos corpos de personagens de filmes de ficção e que deter-minam seu comportamento.

Voltando à questão do corpo na dança contemporâ-nea pergunta-se ainda: que tipo de corpo está presente nasproduçõescontemporâneasem dança?Pessoasque vêem comfreqüência trabalhos deste tipo certamente responderão: di-versos. De fato, a pluralidade, a diversidade de corpos é umdos aspectosque caracterizam a dança cênica na atualidade.Prevalecenos coreógrafos contemporâneos o desejo pela di-versidade corporal, vista como um elemento enriquecedordo processo de criação. Valoriza-se cada vez mais a indivi-dualidade e singularidade de um intérprete, a pesquisa deuma linguagem no próprio corpo (MIRANDA, 2003).

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A dança contemporânea vai estimular a buscade umalinguagem própria para cada corpo e propor/trabalhar comum processo de desconstrução e reconstrução permanentedos corpos. Evidencia-se um caráter investigativo que leva anovos registroscorporais, sem negar ascontradições ineren-tes ao processo:

Propaga-se uma dança contemporânea que as-sume a fragmentação, a desconstrução e a si-multaneidade como possibilidades de existênciano mundo. Os princípios norteadores damodernidade, como a ordem, a estrutura, o cen-tro e a linearidade são substituídos por outros,como a multiplicidade, a descentralidade e a nãolinearidade. (NUNES, 2002 p. 16)

Outro aspecto a ser destacado é a não existência deuma técnica única de dança contemporânea, fenômeno quejá se observa também na dança moderna, ao contrário dobalé clássico. Isto implica no surgimento de um corpo quese convencionou chamar de "corpo híbrido", isto é, umcorpo construído a parti r de várias experiências.

Conforme Nunes:

É raro observar hoje um corpo que danceconstruído por uma técnica específica. Em suaformação, os artistas têm acolhido elementos dis-tintos e, às vezes, dispares de práticas corporaisque vão do balé às artes marciais, da voga à dan-ça contemporânea. (2002, p. 17).

Nesta diversidade cabem ainda todos os corpos quenão se enquadram atualmente no modelo de corpo mas-culino ou feminino idealizado e propagado pela mídia,incluindo os corpos de pessoascom idade superior àquelaconsiderada, por muito tempo, como a idade própria paraa dança.

Podemos afirmar, outrossim, que a dança contem-porânea inverte a lógica do controle sobre os corpos, umavez que a expressão não é mais definida pelos limites datécnica ou de outros determinantes externos. Não se trata

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de eleger métodos e técnicas como sendo os melhores. Nãose trata, inclusive, de negar técnicas anteriormente identi-ficadas com o controle social (como o balé clássico). Trata-se, sobretudo de criar possibi lidades de expressão para estecorpo-pessoa, independente de limites externos. Neste sen-tido, o processo de criação não se restringe ao que podeesta ou aquela técnica. Ao contrário, o criador intérpreteem dança contemporânea busca um percurso de pesquisacorporal que permita encontrar os códigos com os quaisdeseja se expressar.

a corpo não está a serviço da técnica, e sim a técni-ca a serviço deste corpo que é expressão e linguagem. Tal-vez o exemplo mais emblemático deste processo de superaçãodas dicotomias que envolvem o corpo na contemporaneidadeseja o trabalho de Pina Bausch, citado anteriormente. Comformação inicial em balé clássico, herdeira da tradiçãoexpressionista da dança moderna alemã e estudante nos EUAno início da década de 1960, época da revolução pós-mo-derna dos jovens coreógrafos do Judson Dance, "Bauschnos faz confiar em nossos corpos, entendendo e escutandosuas ambíguas e mutáveis formas de conhecimento."(FERNAN DES, 2000, p. 142).

Consideramos, assim, que a dança contemporânea,talvez, de uma forma dantes não realizada, rompe com adicotomia corpo-mente assumindo que o corpo é expressãoda cultura e que o corpo em movimento expressa sujeitos eidentidades em mutação.

Referências Bibliográficas

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