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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. 156 UM OLHAR PARA ALÉM DAS DIFICULDADES DE LEITURA E ESCRITA REVELA SOBRE FAMÍLIA, ESCOLA E A PRESCRIÇÃO MÉDICA DE FÁRMACO PARA CRIANÇAS E JOVENS Sonia Sellin BORDIN 1 RESUMO A partir de avaliações e acompanhamentos realizados com crianças e jovens apresentados como portadores de dificuldades em leitura e escrita, procedentes de escola pública e particular do Brasil, analisa-se: o que está encoberto entre a busca da família pelo diagnóstico da criança/jovem (Dislexia; Transtorno e Déficit de Atenção; Alteração de Processamento Auditivo; Distúrbio de Aprendizagem; Disfunção Executiva, entre outros), o aumento de diagnóstico realizado na área de leitura e escrita e o crescente uso da substância química metilfenidato (do grupo das anfetaminas) por crianças e jovens em idade escolar. PALAVRAS – CHAVE: Fármaco; Diagnósticos de Leitura e Escrita; Família; Escola; Criança. Introdução O estudo aqui apresentado surge da análise de mais de 64 avaliações realizadas (entre setembro de 2004 e junho de 2009) em crianças e jovens procedentes de escolas públicas e particulares brasileiras, com queixa de dificuldades escolares, concentradas na área de leitura e escrita. As avaliações se desdobram, a depender do caso, em acompanhamento da criança ou jovem no Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho – Instituto de Estudos de Linguagem /IEL- UNICAMP). A condição social das famílias, na maior parte dos casos, condiz com classe social baixa e média. Trata-se de mães e avós diaristas, pais com ofício de serviços gerais, mecânicos, avós e avôs aposentados que ajudam no sustento da família, além, de pais e mães com formação superior: professor, enfermeiro, contador, gerente de banco. 1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Departamento de Lingüística; Rua Sergio Buarque de Hollanda, no 571; CEP: 13083-859 - Campinas - SP - Brasil - [email protected]

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.

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UM OLHAR PARA ALÉM DAS DIFICULDADES DE LEITURA E ESCRITA REVELA SOBRE FAMÍLIA, ESCOLA E A PRESCRIÇÃO MÉDICA DE

FÁRMACO PARA CRIANÇAS E JOVENS

Sonia Sellin BORDIN1 RESUMO A partir de avaliações e acompanhamentos realizados com crianças e jovens apresentados como portadores de dificuldades em leitura e escrita, procedentes de escola pública e particular do Brasil, analisa-se: o que está encoberto entre a busca da família pelo diagnóstico da criança/jovem (Dislexia; Transtorno e Déficit de Atenção; Alteração de Processamento Auditivo; Distúrbio de Aprendizagem; Disfunção Executiva, entre outros), o aumento de diagnóstico realizado na área de leitura e escrita e o crescente uso da substância química metilfenidato (do grupo das anfetaminas) por crianças e jovens em idade escolar. PALAVRAS – CHAVE: Fármaco; Diagnósticos de Leitura e Escrita; Família; Escola; Criança.

Introdução O estudo aqui apresentado surge da análise de mais de 64 avaliações realizadas (entre

setembro de 2004 e junho de 2009) em crianças e jovens procedentes de escolas

públicas e particulares brasileiras, com queixa de dificuldades escolares, concentradas

na área de leitura e escrita. As avaliações se desdobram, a depender do caso, em

acompanhamento da criança ou jovem no Centro de Convivência de Linguagens

(CCazinho – Instituto de Estudos de Linguagem /IEL- UNICAMP). A condição social

das famílias, na maior parte dos casos, condiz com classe social baixa e média. Trata-se

de mães e avós diaristas, pais com ofício de serviços gerais, mecânicos, avós e avôs

aposentados que ajudam no sustento da família, além, de pais e mães com formação

superior: professor, enfermeiro, contador, gerente de banco.

1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Departamento de Lingüística; Rua Sergio Buarque de Hollanda, no 571; CEP: 13083-859 - Campinas - SP - Brasil - [email protected]

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.

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As queixas que as famílias trazem, em geral, se caracterizam por diferentes descrições

dos problemas apresentados por essas crianças e jovens: diagnóstico2 de Dislexia ou

Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), na grande maioria das

vezes, feitos verbalmente por profissionais de diferentes áreas (médico, professor,

psicólogo, fonoaudiólogo, psicopedagogo), e não raro, pelos próprios pais; em muito

menor proporção estes diagnósticos são feitos por escrito pelo médico, fonoaudiológico

e neuropsicológico e nesse caso surgem outros como a Alteração de Processamento

Auditivo; Distúrbio de Aprendizagem; Alteração da função executiva; o desinteresse da

criança para coisas de escola é bastante referido pela família e pelo professor da

criança/jovem.

A partir da avaliação de linguagem oral e escrita realizada sob a perspectiva da

Neurolinguística Discursiva, constatou-se: 38% dessas crianças e jovens não tinham

problemas de leitura e escrita, demandas emocionais impedem seu desempenho escolar

e foram encaminhados para outros serviços fora do CCazinho; 38% apresentavam na

escrita e leitura questões naturais desse processo que não sendo resolvidas a seu tempo

se mantêm e alteram todo o percurso escolar; em torno de 10% apresentou problemas

2 Os diagnósticos aqui descritos seguem a referência do Manual de Diagnóstico e Estatística de Perturbações Mentais/ DSM-IV - TR (2000): (F 81.0 -315.00, F81. 2-315. 1, F81.8-315.2) Dislexia define a dificuldade apresentada pela criança na área de leitura, escrita e soletração que aparece no início do aprendizado. Podendo também estar associada à discalculia e disgrafia; (F90. 0-314. 01, F98. 8-314. 01) Transtorno do Déficit de atenção e Hiperatividade nomeia a dificuldade da criança/jovem/adulto em controlar sua atenção e o comportamento social esperado. Agitação e inquietude acompanham esse quadro. A Hiperatividade pode ou não se apresentar vinculada ao déficit de atenção; Alteração de Processamento Auditivo é o resultado de disfunção no processamento neurológico da informação recebida por meio da audição, alterando a capacidade do indivíduo em reconhecer sons verbais e não verbais; Alteração da função executiva ou Disfunção Executiva: Baddeley e Wilson (1988) estão entre os pesquisadores que definem essa alteração como uma incapacidade neurofuncional cerebral das funções executivas em processar e elaborar ações adaptadas socialmente. O impacto dessas condições na vida diária do indivíduo se dá pela sua dificuldade em sustentar a atenção, em alternar entre uma tarefa e outra, em controlar a impulsividade ou impaciência. Os dois últimos diagnósticos não são referenciados pelo DSM-IV-TR isoladamente, mas dentro de uma determinada classe de patologia. No caso da disfunção executiva se associa a quadros de demência.

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de aprendizagem associada a algum distúrbio biológico/genético: síndrome do X-frágil,

síndrome genética com encurtamento do braço do gene 18, síndrome não identificada e

epilepsia. Esses dois últimos grupos permanecem em acompanhamento no CCazinho

envolvendo não só as crianças e jovens como seus familiares. Os 14% restantes não

concluíram o processo de avaliação. As indicações de prevalência de demanda

emocional não são prerrogativas dos primeiros 38%, claro que os grupos que seguem

no CCazinho trazem essas questões fortemente marcadas, assim como os seus

familiares, mas há a verificação clara de que questões de leitura e escrita estão

fortemente presentes.

Durante o processo de avaliação das crianças e jovens observou-se sistematicamente a

recorrência de duas importantes questões no discurso da família: a necessidade de um

diagnóstico no corpo da criança, algo que explique seu problema escolar; a busca de

um remédio que dê conta do comportamento da criança. Mesmo famílias que não têm

acesso fácil ao serviço médico repetem sobre e para a criança/jovem a possibilidade do

diagnóstico de Dislexia e ou Hiperatividade referindo-se ao TDAH, além do

conhecimento da existência da Ritalina3.

Essa constatação nos leva a percorrer um caminho de pesquisa que toca as seguintes

questões: 1- Como os termos (Dislexia, Hiperatividade) referidos por médicos e

especialistas caíram no uso comum por parte de leigos, ou por quem não tem formação

para a sua realização, carregando valor de diagnóstico válido em um determinado

imaginário familiar e escolar?; 2-Há um aumento de diagnóstico dessas duas

3Remédio à base de metilfenidato usado nos Estados Unidos desde meados de 1940 para regular a atenção e vendido no Brasil com os nomes comerciais de Ritalina e Concerta. A diferença entre eles é o tempo de ação no organismo que no segundo é de 12 horas contra 8 do primeiro. Não encontramos estudos conclusivos tanto em relação à eficácia quanto aos efeitos colaterais dessa medicação.

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patologias?; 3- O aumento de diagnóstico, se identificado, tem relação com o crescente

consumo no Brasil da substância metilfenidato com o nome comercial de Ritalina e

Concerta que passou de 71 mil caixas em 2000 para 731 mil caixas em 2004,

estimando-se que entre 2004 e 2008 (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária/

ANVISA, 2008) houve um aumento de 930% no uso desse produto, ministrado

primariamente para regular o comportamento de crianças em idade escolar.

A busca dessas respostas assinala o percurso da proposta do presente estudo.

A avaliação de crianças/jovens e o CCazinho

O trabalho realizado no Centro de Convivência de Linguagens – CCazinho4 –

abrigado no Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP, na área de

Neurolinguística Discursiva, nasceu com a profa Dra Maria Irma Hadler Coudry em

2004 objetivando acompanhar crianças e jovens com dificuldades nos processos de

leitura e de escrita. As crianças/jovens são estudantes de escolas públicas e

particulares, alunos de anos iniciais (2ª, 3ª e 4ª séries) e finais do ensino fundamental

(7ª e 8ª e 9ª séries), havendo atualmente pelo menos um jovem em atendimento

individual freqüentando o primeiro ano do ensino médio. Como foi dito,

aproximadamente 64 crianças/jovens já passaram pelo processo de avaliação e ou

acompanhamento neste centro, 22 delas estão atualmente em acompanhamento

individual e/ou coletivo. A condição para que a avaliação da criança/jovem (e possível

acompanhamento) se realize é que pelo menos um dos pais, ou responsável, sustente a

busca de descobrir o que se passa o filho. Então, a criança/jovem chega à avaliação

4 O CCazinho está inscrito no Comitê de Ética da UNICAMP/FCM sob o número 326/2008.

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nesse centro por apresentar dificuldades de escrita e leitura, muitos deles trazem

diagnósticos verbais ou escritos realizados por diferentes profissionais, dentre estes

temos: Alteração na Função Executiva, Alteração de Processamento Auditivo,

Dificuldade de Aprendizagem, Dislexia, Transtorno do Déficit de Atenção e

Hiperatividade como especificado anteriormente. No entanto, no processo avaliativo

dos últimos dois anos outros diagnósticos se somaram a esses: Transtorno Desafiador

Opositor e Transtorno Bipolar5. Também têm sido habitual dos próprios pais

diagnosticarem a criança a partir de sites específicos da internet, revistas de

atualidades, ou ainda, através de programas que assistem na televisão.

Por que é presumível que tantas crianças se encaixem dentro dos sintomas principais

da Dislexia ou do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade?

Porque os sintomas são gerais e em algum momento da vida qualquer criança/jovem

pode se encaixar neles, possibilitando a realização de falsos diagnósticos.

De acordo com a Associação Brasileira de Dislexia - ABD - são sintomas: ter pais ou

parentes disléxicos (componente hereditário e genético); dificuldade com a ortografia;

letra feia; dificuldade para ler e escrever; dispersão; falta de interesse por livro

impresso; dificuldade com quebra-cabeça; dificuldade em lidar com esquerda e direita.

A Associação Nacional de Dislexia - AND - especifica sintomas como: dificuldade em

aprender o alfabeto; dificuldade em separar e seqüenciar sons, dificuldades com rima,

dificuldade em memorizar tabuada, leitura com muitos erros, dificuldade com horário.

5 Os diagnósticos aqui descritos seguem a referência do Manual de Diagnóstico e Estatística de Perturbações Mentais/ -IV - TR (2000): (F 91.3-313.81) Transtorno Desafiador Opositor (TDO): Transtorno que tem por base comportamentos negativistas, hostis e desafiadores que se mantém por 6 meses. Discutem frequentemente com adultos; há perturbação no funcionamento social; (F 30. x/F31. x) Transtorno bipolar do humor (TBP) seu início é mais comum na adolescência, até 19 anos, e se caracteriza por alternar estado de euforia com extrema irritabilidade e impaciência, dificuldade em manter a atenção, apresenta também episódios de insônia.

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Obviamente estamos listando alguns dos mais de trinta sinais característicos desse

distúrbio (e não doença) listados pelas referidas associações. Com o Transtorno do

Déficit de Atenção e Hiperatividade se dá algo similar e a Associação Brasileira do

Déficit de Atenção – ABDA - lista para esse transtorno neurobiológico que surge na

infância decorrente de causas genética, a desatenção, inquietude e impulsividade como

principais sintomas. Outros sintomas listados são: mexem em tudo no ambiente, são

crianças distraídas, não prestam atenção nas tarefas, falam em excesso, tem dificuldade

de esperar a vez, interrompem os outros nas conversas e jogos. Há também uma

relação estabelecida entre esse transtorno e a presença de alteração na região frontal,

considerando que a região orbital frontal é a responsável pelo controle do

comportamento social. Observa-se que há certa correspondência entre pelo menos 3

dos diagnósticos citados quanto à indicação da região cerebral do lobo frontal, como

responsável pela desordem apresentada no comportamento da criança/jovem/adulto,

são eles: Alteração da função executiva/Disfunção Executiva, Transtorno do Déficit de

Atenção, Transtorno Desafiador Opositor.

Com os ensinamentos de Luria (1981, 1991) sabe-se que o cérebro humano tem um

funcionamento holístico, integrado. A participação do lobo frontal nesse conjunto

funcional é sofisticada e tem grande importância na vida do homem, um ser social,

gregário, interferindo na capacidade deste quanto a: monitorar a atenção; planejar ações

e checar aprendizagem; pensamento abstrato e criativo; ajuste do comportamento social

esperado; julgamento social; comportamento ético. Logo, pode-se concluir que do bom

funcionamento dessa área cerebral com o restante do cérebro depende o relacionamento

social do sujeito e da sociedade. Resumidamente, os estudos de Luria indicam que a

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área frontal do cérebro humano é aquela em que acontecem o planejamento da ação

humana, o julgamento da adequação social e moral dessa ação e a sua execução no

meio social. Analisando pelo lado negativo dessa questão, o prejuízo funcional desse

lobo traz conseqüências importantes para a vida mental e social do sujeito afetando de

modos diferentes seu cotidiano.

Por esta análise não é sem razão que tantos distúrbios podem ser explicados fazendo

alusão ao funcionamento do lobo frontal e a função executiva deste mesmo sem

nenhuma evidência de exame bioquímico ou por imagem.

Veja a região em amarelo na ilustração abaixo

Ilustração 1: visão lateral e panorâmica da região frontal do cérebro humano

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Em tempo, não há dentre os estudos realizados na área da genética humana, nenhuma

comprovação da indicação de um determinado gene como responsável especificamente

pela Dislexia; não há também estudos que indiquem a realização de exame genético ou

neurológico (eletro encefalograma, imagem, contraste) em alta escala entre os

disléxicos ou portadores de TDAH para tabelar alguma relação genética ou

neurológica. Por hereditariedade é considerado, nas referidas associações, a observação

da presença de alguns dos sintomas comportamentais listados como critério nos pais

e/ou avós da criança/jovem. Com isto estamos afirmando que existem casos de reais

portadores dos diferentes diagnósticos apontados aqui, mas parece que há uso de

referências gerais da neurologia para explicar casos que precisam de mais análise para

serem considerados diagnósticos verdadeiros. Note-se que toda questão social e escolar

da criança/jovem fica para o lado de fora da gabaritagem dos critérios usados como

sintoma. Assim se uma criança tem acesso todos os dias a comida, casa, boa escola e

bons serviços de saúde, não tem diferença nenhuma daquela em que a sua refeição é

apenas a merenda da escola, situação tão possível nesse país.

A análise dos critérios também passa ao largo da mudança do formato familiar que se

compõem de múltiplos arranjos sanguíneos e não sanguíneos. Do fato de quase 40%

das famílias brasileiras6 (dados IBGE/2007) serem chefiadas por mulheres e a

existência de 230.000 jovens com menos de 18 anos ocupando o lugar de chefe de

família (PNAD/2009). Some-se a isso o fato de que a mídia em geral tem reservado um

grande espaço para temas como Dislexia e TDAH. Lançamento de livros, cartilhas e

reportagens são veiculados em diferentes espaços jornalísticos glamourizando tais

9 Esses dados são indicadores sociais da pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE -2007; e da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio/Pnad -2009.

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diagnósticos associando-os com atores famosos como os disléxicos: Tom Cruise; Ágata

Christie; Leonardo da Vinci; Pablo Picasso; Walt Disney; entre outros. Já entre os

hiperativos famosos temos Alexander Graham Bell; Beethoven; o ator Bill Cosby, o

mesmo Tom Cruise, Salvador Dali, Albert Einstein; Mozart, entre outras celebridades.

Dividindo esse espaço midiático aparece o tema educação brasileira com escolas

públicas e particulares sendo submetidas a diferentes avaliações. A escola pública

obteve entre os 57 países participantes no último Programa Internacional de Avaliação

de Alunos7 (PISA) de 2006 a 48ª posição em leitura; 53ª em matemática; 52ª em

ciências. Em relação às escolas particulares, na mesma avaliação, entre os 35 países

participantes obteve a 24ª posição. Ambos os resultados são tão insatisfatórios quanto

2000 e 2003.

A escola brasileira continua sendo citada:“A escola tem uma estrutura, no século 21,

com lógica Medieval” (ROCHA 2008); “Professor sem preparo trava uso de

computador em escola” (FOLHA DE SÃO PAULO,2009). É preciso reconhecer que o

governo brasileiro não está ausente nesse quadro, ao contrário, tem feito movimentos

importantes para melhorar a formação do professor de ensino fundamental e médio

realizando curso a distância e presencial em todo o Brasil; lançamento de bolsas e

instrumentos legais para que a criança seja mantida na escola; bolsa para que os jovens

da classe pobre consigam chegar a cursar universidade. São medidas implementadas

ainda através de leis por falta de espaço efetivo para a discussão da educação em todos

os seus níveis no Brasil, que surtirão efeitos em longo prazo e parte da situação macro

7 O PISA é aplicado de 3 em 3 anos em estudantes da 7ª série do ensino fundamental, na faixa de 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica na maioria dos países. Sua aplicação no Brasil iniciou em 2000, com a participação de 5000 alunos; em 2009 essa participação é de 26 mil estudantes.

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para o micro. A exceção que precisa ser feita é em relação ao ensino nas universidades

públicas brasileiras que se apresenta com 4 instituições na classificação organizada

pelo jornal Times de Londres – THES ( Times Higher Education Suplement) entre as

500 melhores instituições acadêmicas do mundo8.

Retomando a questão original, os diagnósticos escritos e/ou verbais estão sendo

realizados e interferindo na incidência de patologias como, por exemplo, a Dislexia que

varia dentre 0 – 0,4% (DSM-IV-TR, 2000), 17% da população mundial (ABD, 2009);

25% (CAPPOVILLA, 2002) da população em idade escolar. Em paralelo acontece o

aumento de 930% na venda do medicamento Concerta e Ritalina nomes comerciais da

substância metilfenidato, recomendado pelos médicos para controlar o comportamento

escolar e a desatenção da criança/jovem/adulto. Nesse aspecto vem acontecendo um

fenômeno mundial, não se restringindo nem ao Brasil e nem apenas a essa medicação.

O número de crianças e adolescentes diagnosticados com Transtorno Bipolar nos

Estados Unidos aumentou quase 40 vezes entre 1994 e 20039. Segundo o médico e

psicanalista Calligaris (2007) “pesquisas realizadas com crianças na Austrália mostrou

que estava sendo diagnosticada como depressão o que era infelicidade banal”

Reportagens científicas especializadas e agência de controle de venda de remédio dão

conta do aumento do uso de medicação, inicialmente pensados para controlar alterações

de funções cerebrais, por crianças/jovens/adultos sadios para a melhora do desempenho

dessas funções. Nesse sentido, Gazzanica refere que além da Ritalina, usada por

crianças sadias: “a substância donepsil estudada para pacientes com Alzheimer está

sendo usada por pessoas sem a doença porque nos testes realizados indicaram

8 Esta informação pode ser lida na íntegra no site www.iqsc.usp.br. 9 Dados publicados em “Archives of General Psichiatry” de setembro de 2007.

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melhora na memória dos participantes” (GAZZANICA, 2006, p. 40). Hall (2008)

também faz referência ao uso da Ritalina e cita o medicamento Modafinil,

originalmente para pacientes com narcolepsia, é usado agora para regular humor em

pessoas sem esse problema.

A análise realizada teve o propósito de circunscrever o momento histórico em que o

aumento de diagnóstico na área de leitura e escrita se dá: trata-se de uma amostra

diacrônica em que se privilegia o cérebro e seu funcionamento, assim, a causa precisa

estar no corpo e precisa ser rotulada. Mas, o que aconteceu no CCazinho com aquelas

crianças que foram diagnosticados de disléxicos, portadores de alteração da função

executiva, hiperativos...

Diagnóstico e o CCazinho

O objetivo principal do trabalho realizado no CCazinho é possibilitar que a própria

criança/jovem compreenda e fale sobre os próprios processos de leitura e escrita, e que

se aproprie deles como produtos e lugares de inserção social. Para isso a

Neurolinguística Discursiva toma como fundamentação teórica os estudos das afasias

de Freud e da educação/psicologia de Vygotsky. Para Freud (1891/1973) os processos

de leitura e escrita são atrelados, por excelência, ao sentido possível na linguagem da

criança, antes de aparecer nos mecanismos motores das mãos e dos olhos. Só com a

possibilidade de sentido primariamente existente na linguagem, construída na relação

da criança com o outro, é que as letras viram palavras escritas.

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As crianças/jovens com dificuldades nos processos de leitura e escrita sabem que estão

atrasados em relação à classe, que muitas vezes fazem lições diferentes dos colegas.

Fazem de conta que lêem, evitam escrever, bagunçam na sala, chamam a atenção do

colega impedindo que ele trabalhe, disfarçam sobre algo que não dão conta. A visão do

colega trabalhando com a escrita e leitura é a materialização de sua diferença e, muitas

vezes, da sua exclusão. Como uma criança/jovem consegue passar mais de 4 horas por

dia, todos os dias da semana, o ano todo, vivendo uma realidade de sala de aula que não

faz sentido para ela/ele. O professor que assinalando os erros, lhe dando cópia, fazendo

com que fique quieto, considera muitas vezes que está fazendo sua parte em um sistema

educacional caótico. As criança/jovens nessa condição recebem ainda aula de reforço

escolar quando se repetem as atividades de sala de aula. Com Vygotsky (1926/2004)

partilhamos a idéia de que ninguém ensina ninguém, o que podemos fazer é despertar

no outro o interesse para que queira aprender, desestabilizando assim a naturalização da

concepção tradicional de que o aluno assume uma posição passiva na aprendizagem de

absorver o que a escola determina que deva ser aprendido. O conceito deste autor de

zona de desenvolvimento proximal (VYGOTSKY, 1934/1987) dá base ao trabalho feito

pelos cuidadores10 junto às crianças e jovens do CCazinho; uma vez conhecendo o

10 Para ser cuidador no CCazinho é preciso que o aluno curse as matérias eletivas de graduação AM 035: Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens que oferece formação teórico-metodológica em Neurolingüística Discursiva, privilegiando o estudo da relação cérebro, mente, linguagem e corpo, para alunos de diversos cursos de graduação da UNICAMP e alunos especiais com o objetivo de acompanharem crianças do CCazinho/IEl; AM 035- Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens II visa aprofundar a formação dos alunos cuidadores no estudo do funcionamento do cérebro, mente, linguagem e corpo tendo como foco a interdisciplinaridade que envolve o processo de leitura/escrita, considerando: a avaliação da criança; diagnóstico recebido, seu seguimento longitudinal; a relação com a família e com a escola – privilegiando-se tanto o lugar que a criança ocupa na família e na escola, quanto o papel que estas exercem no processo de leitura/escrita.

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potencial atual da criança/jovem em relação à escrita e leitura, atuam juntos

descobrindo e trabalhando as hipóteses usadas para escrever/ler de determinada

maneira e não de outra, repensando a noção de erro e reafirmando a aprendizagem

como um processo contínuo tanto para a criança/jovem como para o cuidador. Nesse

cenário a criança começa a ler e escrever, o jovem se dá conta de que está excluído

socialmente da possibilidade de trabalhar.

O que acontece, então, com os diagnósticos que até então marcavam no corpo da

criança/jovem a causa de seu insucesso escolar? Surpreendentemente, ninguém fala

mais neles. No lugar desses diagnósticos entram em cena outras questões mostrando a

complexidade de fatores que está por trás das dificuldades escolares. A falta de

conhecimento dos processos normais de aquisição de escrita e de leitura por parte da

escola (formação do professor); a relação professor/aluno em sala de aula; a aprovação

automática da maneira como é geralmente conduzida; o esvaziamento da autoridade do

professor e da escola; os padrões de funcionamento familiares que muitas vezes

evidenciam a quebra da unidade familiar e o não reconhecimento dos papéis de pai e de

mãe que são fundamentais para o desenvolvimento psíquico/afetivo humano; a

fragilidade das políticas educacionais; surgem como possíveis fomentadores do

fracasso escolar dessas crianças e jovens.

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.

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Aprendendo com EP, KS e VH

Segundo Lopes (1989) a grande dificuldade para os estudiosos escreverem sobre a

história da infância ao longo dos séculos, deve-se ao fato de que a criança é sempre

contada por alguém. A elas, raras exceções, não são possibilitadas registrar suas

impressões. Alguns autores chegam a denominar as crianças de grandes mudos da

história. Essa é uma preocupação com o trabalho realizado no CCazinho porque esse é

o único meio da criança se aproximar de sua própria identidade: falar sobre si mesma,

se descobrir, mostrar como vive as queixas e os diagnósticos que lhe são imputados.

EP, 10 anos, 2ª série de escola estadual, diagnóstico: Distúrbio de Aprendizagem. Ele

não sabe ler e escrever, embora, esteja cursando a segunda série pela segunda vez.

Quando a investigadora (Iss) perguntou para EP (11/04/2007) se ele tinha algum

problema na escola, ele disse que sim que gosta de fazer contas. Estranhando essa

resposta a investigadora lhe perguntou sobre a matéria de português e ele disse que não

sabe ler, acrescentando depois de um tempo, que também não sabe escrever.

Iss lhe pergunta: Como se sente diante disso?

EP: Fico triste porque quando pego um livro na mão só olho os desenhos e tenho

vontade de ler.

Nenhuma criança fica imune a quatro anos de estudo entre a primeira e a segunda série

no período regular de aula, recebendo em paralelo aulas de reforço escolar sem

conseguir aprender a ler e a escrever. O trabalho realizado com ele foi o de ajudá-lo a

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levantar as hipóteses que usava (usa) para escrever, compreender em cada uma delas o

que não dava certo e levá-lo a conhecer outras hipóteses possíveis de escrita e leitura.

EP está escrevendo e lendo. Mas, crianças que entram na escrita e leitura mais

tardiamente por um motivo, ou por outro, carregam uma diferença no seu rendimento

escolar porque se estavam fora da escrita e leitura, estavam fora do contexto escolar

como um todo. Ou seja, há certa defasagem de conteúdos formais escolares que estão

sendo alcançados. EP aprendeu a ler e a escrever, o diagnóstico anteriormente tão

repetido pela mãe foi esquecido porque perdeu o valor de verdade. Sua escola

encaminhou outras crianças para avaliação.

KS, com 8 anos, freqüenta a 3ª série de escola estadual, mas tem problema na escola

desde a primeira. A família procurou ajuda médica e neuropsicológica e o resultado foi

um laudo constatando “Distúrbio de Aprendizagem” (DA).

O avô explica “Não sei direito o que é essa doença, mas é como se ela fosse atrasada,

diferente das outras crianças”. Quando o avô fala isso, abaixa o tom da voz como se

contasse um segredo. A investigadora lhe explica o que é DA e pergunta se ele

concorda com isso, ele diz: “Eu não, mas eles ficaram dois meses fazendo avaliação

com ela”.

Quando perguntado a KS como está na escola, ela explica que acha que tem um

problema para ler e escrever e a professora disse para ela que ela escreve errado

porque fala errado. Com KS aprende-se que existe o peso da fala de quem sabe, os

médicos, neuropsicólogos, que investigaram a criança e a desvalorização de quem não

sabe, mas conhece a criança: o avô é mantido na ignorância por quem sabe, sobre o que

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é de fato aquela doença. O mesmo acontece com a neta, quando a professora explica

que a fala errada regula totalmente sua escrita.

Diante disso não se faz nada, espera-se que a fala se regularize por si só. KS já está no

processo de escrita e leitura, uma consideração que se faz nesse caso é que talvez a

criança não estivesse amadurecida psicológica e neurologicamente para ser matriculada

com menos de 6 anos na 1ª série escolar. Em relação ao desenvolvimento das crianças

em geral há um padrão presumido e não pontual, além disso, não foi dado importância

ao fato de ela ir para a 2ª e depois 3ª série sem saber ler e escrever. O laudo “Distúrbio

de aprendizagem” passou a explicar tudo. Na situação de KS afirmamos que se trata de

mais um falso diagnóstico porque ela não tem distúrbio de aprendizagem.

VH, 9 anos, 3ª série de escola estadual, portador de Transtorno do Desenvolvimento de

Atenção e Hiperatividade (TDAH).

O pai de VH se mostra bastante ansioso e começa a entrevista falando:

Ele não tem como passar de ano na escola, não lê, não escreve, nada, nada. É

desatento demais na escola e no resto ele vai bem. Monta jogos depois de ver uma vez

só, mas na escola não vai, não tem jeito e o pior é que a escola não o reprova.

No primeiro encontro com VH (dezembro de 2007), a investigadora pergunta:

Iss: VH, você sabe por que está aqui?

VH: Sei. Porque a tia me disse que ela me ensina um negócio hoje e amanhã eu não

vou mais lembrá. Eu tenho um pobema de leitura.

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Iss: E você escreve?

VH: Só algumas coisas. A professora disse que passei de ano com muita dificuldade no

português.

Iss: E você quer aprender a ler e escrever?

VH: Muito. Ela me dá coisa de primeira série.

Iss: Além disso, você percebe se tem mais algum problema?

VH: Na fala. Eu falo errado bicicreta, pirulito.

A investigadora propõe que VH escreva alguma coisa. Ele fica nervoso e escreve uma

palavra /Bosa/, mas não consegue dizer o que escreveu.

Imediatamente ele se explica:

VH: Todo mundo fala que eu sou burro.

No início do atendimento em grupo e individual VH se mostrava muito atento ao que

lhe interessava e desatento ao que não lhe interessava, não havia como estabelecer

acordos com ele porque ele não cumpria, não mantinha nenhum acordo. Já no primeiro

dia de avaliação os pais se mostraram muito desestruturados com a situação familiar e o

casal tomava atitudes desencontradas. Foi estabelecido como resultado da avaliação

inicial que VH só seria mantido em acompanhamento no CCazinho se os pais

procurassem ajuda psicológica para eles. Os pais resistiram por alguns meses e eram

lembrados sempre de que havia um prazo para a tomada de atitude deles ou VH seria

desligado do acompanhamento. Durante o acompanhamento individual de VH e das

reuniões com seus pais observava-se que estes o puniam tirando dele tudo o que ele

gostava, inclusive sua ida ao CCazinho. As punições eram tão mirabolantes que depois

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não conseguiam manter. Os pais também não mantinham acordos nem com VH nem

conosco. Finalmente, os encontros psicológicos deles começaram e nosso trabalho de

escrita e leitura pode ser continuado com a criança. V. está escrevendo e lendo e seu

comportamento não difere de outras crianças no grupo. No lugar do Transtorno e

Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDHA) tão repetido por estes pais, passou a

figurar a dificuldade do casal em cumprir a função de pai e mãe em relação ao VH; a

dificuldade dos membros da família em cumprir acordos estabelecidos entre eles

mesmos; a desvalorização da escrita e leitura pela família que não titubeava, nesse

início, em ameaçar de tirar a criança do lugar de aprendizado de escrita só para puni-la.

Conclusão

O trabalho aqui apresentado teve como proposta: verificar o aumento de diagnósticos

realizados em crianças/jovens em idade escolar que, como vimos, varia de 0,04% a 25%

no caso da Dislexia; relacionar com essa constatação o recorte histórico social de nosso

tempo que privilegia buscar no corpo, especialmente, no funcionamento cerebral, a

causa de problemas escolares (e outros); o aumento do uso de medicamento por parte de

crianças/jovens/adultos saudáveis; e por fim, buscar compreender o lugar que a família

e a escola ocupam nessa estrutura.

Os diagnósticos quase sempre são bem aceitos pelos pais. Aparentemente responde ao

social mostrando que o problema não é deles, mas da criança/jovem que não funciona

direito para as coisas da escola. Ou então, culpam a escola pelo comportamento da

criança/jovem, ao invés de olharem em outras direções e se implicarem nesta busca. O

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mais comum é que a mãe, a avó – hoje tão substituta das responsabilidades dos pais –

entre primeiro nesse movimento. Nem sempre o pai chega a fazer parte disso.

Em relação à indústria farmacêutica é possível reconhecer, em todo o mundo, o

crescimento de vendas de fármacos cuja atuação incide na dinâmica familiar e nas

vivências afetivas e sociais dos sujeitos. Isso por si só não deveria ser visto como um

sintoma social importante?

Nossa busca não é a de derrubar diagnósticos, mas de conhecer o que a criança faz com

a escrita e leitura, como a família lida com isso em casa e na vida, e, principalmente,

qual é a estória dos pais com esses processos, qual imagem de escola lidam?

E a escola, os professores, como se posicionam diante dessa situação, especialmente em

relação aos casos apresentados? Conheça o que a professora MS nos contou: Se eu falo

para a mãe que o filho dela não está fazendo a lição, ou está bagunçando na classe, a

mãe cria o maior problema porque o problema é meu que não consigo controlar a

classe, a educação da criança ficou para a escola. Não é não, educação vem,

principalmente, do berço” (MS,30/08/2008). Trata-se, evidentemente, do esvaziamento

da autoridade do professor.

Então, na perspectiva da Neurolingüística Discursiva, a Dislexia, o Transtorno e Déficit

de Atenção e todos os quadros citados inicialmente não existem? De maneira nenhuma

negamos a existência real das patologias citadas, e nem de seus portadores, mas

sabemos que suas incidências são baixas. O que seguramente negamos é a

naturalização de diagnósticos como apagamento de outros fatores implicados no

insucesso de uma criança diante da leitura e da escrita.

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Da mesma maneira que em certos casos um diagnóstico bem feito explica o

desempenho de determinada criança/jovem frente a uma dificuldade que, justamente,

por isso poderá ser ajudada (o); em outros casos, como nos das crianças acima, o

diagnóstico as manteriam ao largo da escrita e leitura. Embora, nesse momento, os

falsos diagnósticos realizados se restrinjam a uma área da vida da criança (distúrbio de

aprendizagem para a escrita) com o tempo vão se apoderando do sujeito todo

(analfabeto funcional) para a sua exclusão social. A possibilidade de evitar isso é

colocar a criança falando sobre sua própria vida, sobre seus processos escolares,

tomando conhecimento das hipóteses que usa para escrever uma palavra e para viver a

própria vida.

Bibliografia

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Consultas a Internet:

Associação Brasileira de Dislexia /ABD - www.dislexia.org.br - consulta realizada em abril de 2009 Associação Nacional de Dislexia /AND - www.andislexia.org.br - consulta realizada em abril de 2009 Associação Brasileira do Déficit de Atenção/ ABDA - www.tdah.org.br - consulta realizada em março de 2009