trotsky-1923-questões do modo de vida

80
Questões do Modo de Vida Leon Trotsky Índice Introdução Prefácio da segunda edição Prefácio da primeira edição O homem não vive a não ser de política (vide nota) O jornal e o seu leitor A atenção deve incidir sobre os detalhes Para construir o modo de vida é preciso conhecê-lo A Vodka, a igreja e o cinema Da Antiga à Nova família A família e os ritos As atenções e a delicadeza como condições necessárias para relações harmoniosas É preciso lutar por uma linguagem depurada Anexo Perguntas e respostas sobre o modo de vida operário

Upload: clara-figueiredo

Post on 04-Jul-2015

151 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Questões do Modo de VidaLeon Trotsky

Índice

Introdução

Prefácio da segunda edição

Prefácio da primeira edição

O homem não vive a não ser de política (vide nota)

O jornal e o seu leitor

A atenção deve incidir sobre os detalhes

Para construir o modo de vida é preciso conhecê-lo

A Vodka, a igreja e o cinema

Da Antiga à Nova família

A família e os ritos

As atenções e a delicadeza como condições necessárias para relações harmoniosas

É preciso lutar por uma linguagem depurada

Anexo

Perguntas e respostas sobre o modo de vida operário

Page 2: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Introdução

Quando em 1923 são publicadas As questões do modo de vida, Trotsky é ainda comissário do povo para o exército e a marinha, é ainda o segundo personagem da vida política da Rússia dos sovietes. Quem ignore o que é a situação da Rússia nessa época, pode admirar-se de ver Trotsky dispender tempo com questões na aparência secundárias: comportamento humano na sociedade, alcoolismo, relações familiares, emancipação das mulheres, correcção da linguagem cotidiana, etc. Explicam alguns a atenção que Trotsky dispensou às “pequenas coisas” pelos traços do seu caráter: exactidão e meticulosidade; mas estas explicações não vão até ao fundo da questão. Se em 1923 Trotsky considera necessário por o acento nestes problemas é porque a situação na Rússia pós-capitalista dos primeiros anos da N.E.P. conferiu a estes problemas caráter essencial.

A N.E.P., ou Nova Economia Política, foi adoptada pelo X° Congresso do partido (8-16 de Março de 1921). Surge na sequência do chamado período do “comunismo de guerra”, caracterizado além do mais pelo afundamento quase total das forças produtivas, pela política de requisições forçadas nos campos para permitir a sobrevivência nas cidades, pelo total desaparecimento do sector privado, pequenas ou grandes fábricas, por efeito da fuga dos antigos proprietários. Esta situação conduz à colectivização, com frequência não desejada, de todos os sectores da economia russa. A N.E.P. põe fim à política das requisições. Autoriza a reconstituição do sector privado na indústria e no comércio. Encara a criação de sociedades de economia mista, associando capitais privados estrangeiros a capitais do Estado. Os primeiros resultados desta nova política são positivos. A agricultura desenvolve-se e atinge rapidamente uma produção igual a dois terços da de antes da guerra. As cidades, que grande parte da população tinha abandonado para se refugiar nos campos, começam a renascer. Pela primeira vez após a revolução a produção tende a aumentar. A melhoria das condições de vida torna-se real.

Mas a N.E.P. – economicamente inevitável nas condições que eram as de 1921 – está, ao mesmo tempo, cheia de ameaças para a revolução. Permite o desigual enriquecimento dos camponeses, chegando rapidamente à constituição de uma categoria de camponeses ricos, os “Kulaks”, cujos domínios se vão alargando, e que empregam cada vez mais camponeses pobres, ou “Biedniaks”, como operários assalariados. Nas cidades, assiste-se a uma verdadeira mutação no seio da classe operária. Os quadros operários do antigo partido bolchevique tinham sido dizimados pela guerra civil. O esgotamento físico, as doenças, as missões e os cargos longínquos dispensaram e reduziram esse primeiro núcleo de revolucionários proletários. Constituiu-se uma nova classe operária. Esta, saída do campesinato pobre e desprovida de toda a tradição política proletária, mostra-se por isso particularmente sensível á influência da nova burguesia engendrada pela N.E.P., que rapidamente se apresentará aos olhos das massas como um modelo de “modo de vida” totalmente estranho aos ideais revolucionário. Este modo de vida, com o seu luxo gritante e o seu gosto pelo lucro terá um papel profundamente desmoralizador em todas as camadas sociais desfavorecidas da Rússia dos sovietes e particularmente na classe operária urbana em contacto com os novos burgueses, que são os “Nepmen”, e com os antigos quadros administrativos e técnicos que houve que voltar a utilizar por ter faltado o tempo para formar outros novos.

Page 3: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

No plano estritamente econômico, a N.E.P. também não foi um sucesso total. A indústria ligeira, na qual os “privados” investiram de preferência a fazê-lo na industria pesada por os lucros serem naquela mais rápidos, progride mais depressa em detrimento desta última que, no essencial, se manteve como sector do Estado. A alta dos preços dos produtos da indústria ligeira torna-os inacessíveis à grande massa dos camponeses. É a chamada crise “das tesouras”. Depois de se terem alinhado, os preços industriais e os preços agrícolas passam a afastar-se. Esta crise reforça por um lado os fenômenos de autarquia local nos campos; incita as indústrias do Estado, ou “indústrias vermelhas”, a diminuir as suas despesas e a aumentar a sua produtividade, tendo como efeito imediato a estagnação dos salários e o crescimento do desemprego. O desequilíbrio entre os salários e os preços torna-se cada vez mais gritante.

Há que ter também em conta a situação internacional. Em 1923, existe na Alemanha uma situação revolucionária explosiva, mas, no fim desse ano, a revolução alemã está esmagada, enquanto que a revolução búlgara de Setembro de 1923 termina em catástrofe. Estes acontecimentos dão-se no seguimento da liquidação da República dos Sovietes na Hungria, em Agosto de 1919, do revés da greve geral italiana m Agosto de 1922 e da subida de Mussolini ao poder em Outubro de 1922. A revolução russa encontra-se isolada no plano internacional. No plano interno, tem que defrontar-se com um perigo que Lenine tinha pressentido logo após Outubro: o ascenso da burocracia. É esse mesmo perigo que Trotsky denunciará na sua carta de 8 de Outubro de 1923 ao Comitê Central, na qual escreve:

“A burocratização do aparelho do partido desenvolveu-se em incríveis proporções pelo emprego do método de selecção (dos quadros) pelo secretariado. Criou-se uma larga camada de militantes, com entrada no aparelho governamental do partido, que renunciacompletamente às suas próprias opiniões de partido ou, pelo menos, à sua aberta expressão, como se a hierarquia burocrática fosse o aparelho que cria a opinião do partido e as suas decisões”.

Esta mesma idéia será retomada e expressa a 15 de Outubro de 1923 por uma grupo de 46 militantes, certos dos quais dos mais eminentes dirigentes do partido e veteranos da guerra civil. Essa será a “Carta dos Quarenta e Seis”, na qual será dito:

“O regime que foi posto em vigor no partido é absolutamente intolerável. Mata toda a iniciativa no partido, submete-o a um aparelho de funcionários permanente que inegavelmente funciona em período normal mas que inevitavelmente se arrasta em período de crise e ameaça ir para a bancarrota total em face dos sérios acontecimentos que se preparam”.

É este aparelho que esmagará a oposição, levando em 23-26 de Outubro de 1926 à exclusão de Trotsky do “bureau” político, à adopção da “teoria estalinista de construção do socialismo num só país’” e à construção do Estado soviético por métodos burocráticos e autoritários, que Trotsky e os “Quarenta e Seis” tinham denunciado. É em relação a todo este contexto, que apenas podemos esboçar nas linhas que precedem, que se deve ler As questões do modo de vida.

A revolta de Kronstadt tinha sido esmagada enquanto se desenrolava o X Congresso que ia decidir da instauração da N.E.P. Nesse mesmo ano de 1921, o país conhecia diversas insurreições. Com freqüência, como em Kronstadt, há comunistas ao lado

Page 4: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

dos insurrectos, que, na maioria, ou são camponeses ou são operários recentemente vindos do campo. Já vimos que a guerra civil, as doenças, as diversas tarefas revolucionárias, tinham dizimado a classe operária inicial, aquela que tinha feito Outubro. A vanguarda russa sofreu igualmente o efeito do esgotamento da vaga revolucionária européia do pós-guerra. A Internacional Comunista levou aliás isso em conta ao modificar a sua táctica durante o seu III Congresso (22 de Junho/12 de Julho de 1921), ao, decidir empreender, antes de qualquer nova acção revolucionária de envergadura, a conquista da classe operária internacional.

Também a classe operária russa, saída das mutações pós-revolucionárias, deve – como aliás as insurreições de Kronstadt e outras o mostraram – ser conquistada para as idéias da revolução. As greves “selvagens” dos anos 21 e 22 puseram em evidência o baixo nível de consciência das massas russas privadas da sua vanguarda revolucionária. É preciso, segundo Trotsky empreender com urgência uma acção em produndidade, uma acção cultural no mais amplo sentido do termo, inseparável da acção de educação proletária, para chegar a uma tomada de consciência pelas massas dos objectivos da revolução, a uma transformação dessa consciência, extirpando dela todos os aspectos negativos herdados do regima pré-revolucionário. Esta acção, que será oficialmente designada na Rússia por Pérestroika Byta, ou Reconstrução do modo de vida, constitui o objectivo principal de Trotsky ao escrever As questões do modo de vida. Face a influência desagregadora da N.E.P., a criação de um “homem novo” é uma questão urgente. Face ao ascenso da burocracia, é preciso poder opor-lhe o mais rapidamente possível já não uma massa amorfa e incapaz de tomar em mãos os seus próprios assuntos mas um novo proletariado consciente dos seus interesses como classe. Face ao peso dos hábitos e das tradições nos quais os inimigos da revolução se apóiam: religião, alcoolismo, subordinação das mulheres, é preciso desenvolver nas massas outros valores, propor-lhes outras idéias. É preciso, enfim, tomar consciência de que a construção a longo prazo de uma sociedade exige, para a erguer fora dos métodos burocráticos e autoritários, uma larga participação das massas, passando pelo que então se chamava na Rússia uma “revolução cultural”, da qual a Reconstrução do modo de vida era um dos instrumentos. Ao escrever os artigos que constituem As questões do modo de vida, Trotsky opunha ao esquema estalinista de construção do socialismo, uma outra via. Para ele como para todos os marxistas, não bastava começar por criar em primeiro lugar industria pesada, seguida de uma industria ligeira, assentar as bases econômicas, para que automaticamente e de qualquer modo surjam as superestruturas ideológicas. É esta versão do socialismo que Estaline defenderá nas Questões do Leninismo.

Para Trotsky, é ao mesmo tempo que devem ser edificadas as bases econômicas e as relações sociais inseparáveis do novo modo de produção.

Esta vontade de agir, simultaneamente, sobre as bases econômicas e sobre as relações de produção, logo sobre o modo de vida, é característica do período pré-estalinista, do período dos anos 20. Os escritores, poetas e artistas reagrupados no seio do L.E.F. (Frente de Esquerda da Arte, definem o “byt” (o modo de vida) como sua “nova frente”. Aos seus olhos, a arte deve tornar-se um instrumento de transformação social, incitando à prática de novas relações sociais. Para eles, ao contrário daqueles que lhes sucederão durante o período do “realismo socialista” estalino-idanovista, não se trata de representar, por exemplo, uma sociedade ideal liberta de todo o conflito e povoado por heróis do trabalho, por mães-heroínas, por famílias sem problemas, por brigadas

Page 5: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

de elite, seguindo com entusiasmo e sem discutir as directivas do representante infalível do Partido. Trata-se de utilizar a literatura, a poesia, a arte, o desenho, a arquitetura, para agir directamente sobre o comportamento humano e o transformar.

Essas preocupações são em particular evidentes no domínio do habitat. Se a arquitetura, o urbanismo, a implantação territorial dos estabelecimentos humanos do passado dão a imagem da sociedade abatida e reflectem as antigas relações sociais, então uma nova arquitetura e um novo urbanismo à escala de todo o território devem ser imaginados de modo a permitir a expansão das novas relações sociais, a ajudar à sua transformação, prefigurando o futuro. Mais tarde, pelo fim dos anos 20, já quando demasiado tarde, dirigentes políticos como You Larine, economistas como L. Sabsovitch, sociólogos como M. Okhitovitch e arquitectos como M. La. Guinzburg, irão propor formas concretas de uma nova implantação socialista da humanidade à escola de todo o território. Tentarão definir o que Sabsovitch chamará o “novo modo de vida socialista”, baseado na coletivização de funções até então delineadas no seio da célula familiar, facilitando a libertação das mulheres das penosas obrigações domésticas e favorecendo também largas permutas e contactos sociais. Para isso, partirão das primeiras experiências sobre o tema “viver diferentemente” realizadas no seio das massas no princípio dos anos 20 e que Trotsky descreve no capítulo intitulado “Da antiga à nova família”.

É acerca dessas primeiras experiências de vida colectiva que Trotsky disse que deviam constituir os “germens da vida nova”. (Rostki novi jyzni). É também a partir dessas primeiras experiências que os arquitectos e os urbanistas imaginarão mais tarde as “casas comunais” e os esquemas descentralizados de um novo habitat socialista. Trotsky demonstrou que e essa “vida nova”, que é objecto fundamental do socialismo, só pode ser edificada tendo em conta a relação dialéctica que existe entre o desenvolvimento das forças produtivas e aquilo que chama a “esfera da moral”. (Capítulo: Hábitos e Costumes).

As novas relações de produção e as novas relações entre os homens e entre os sexos, que constituem o fundamentos das verdadeiras “experiências sociais” realizadas durante os anos 20, ilustram um aspecto mal conhecido mas essencial da ditadura do proletariado, não apenas como “conceito” mas como prática social viva que toca todos os aspectos da vida quotidiana das massas. É através do alargamento e generalização dessas experiências que se podia esperar atingir novas formas de funcionamento democrático da sociedade, com as próprias massas a ocuparem-se dos seus problemas ao nível da fábrica, da exploração agrícola, da “escola comum”, do bairro, da região. Estariam então melhor preparados para se oporem vitoriosamente às

“poderosas forças que desviam o Estado soviético do seu caminho (...e que) emanam dum aparelho que nos é fundamentalmente estranho e que representa uma mescla de sobrevivências burguesas e tzaristas “coberta apenas de um verniz soviético” que (14) mergulha o país na opressão”. (Lenine, Obras Completas, tomo 36, PP. 620-623).

A “reconstituição do modo de vida”, se não tivesse sido bloqueada logo após o seu início, teria podido constituir uma arma eficaz na luta contra a burocracia estalinista. Foi para evitar essa catástrofe, que já se perfilava no horizonte, que Trotsky publicou em 1923 As questões do modo de vida.

Page 6: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Na nossa época fala-se muito, em certos grupos e em certas publicações, de “mudar de vida” e de “viver diferentemente” desde já. Aqueles que preferem fugir da sociedade e combatê-la, que se afastam para “viver diferentemente” em efêmeras comunidades constituídas em quintas ou aldeias abandonadas e que por vezes acreditam situar-se na linha da “reconstrução do modo de vida” soviético, hão-de compreender, sem lerem As questões do modo de vida, que nada conseguem. Verão que, para Trotsky, a “Vida Nova” é inseparável da transformação das relações de produção e, portanto, do próprio modo de produção num processo dialéctico global. É precisamente nessa necessária relação dialéctica que se situa a actualidade das idéias avançadas por Trotsky em As questões do modo de vida perante certas concepções contemporâneas que opõem o carro à frente dos bois.

Toda uma geração poderá hoje pensar que é só a partir de Maio de 68 que certas correntes do movimento operário reflectiram sobre os problemas da vida quotidiana: relações ócio/trabalho, condição feminina, família, gestão pelas massas dos equipamentos colectivos, habitações de novo tipo, urbanismo e quadro de vida. Poderá crer que só no fim de toda uma série de etapas: eleições, Programa comum, democracia “avançada”, conducentes a um socialismo indefinido, é que essas questões, conquanto essenciais, poderão ser abordadas. Em As questões do modo de vida, Trotsky mostra que, na Rússia, foi logo no dia imediato ao ato da Revolução que foram encaradas, apesar da miséria material e da impreparação cultura, sob a forma de autênticas “experiências sociais”. Os textos que apresentamos a seguir, que são inéditos, foram escritos há cerca de 50 anos. Seria absurdo buscar neles receitas acabadas para o futuro. A situação da França e hoje poucas relações tem com a da Rússia de antes de 1917, quer se trate do modo de vida ou de outros aspectos. Sabe-se hoje que se a libertação das mulheres passa pela sua libertação econômica, essa é decerto uma medida necessária mas não suficiente. Também os problemas da família, da habitação, etc., se apresentam hoje em termos diferentes daqueles em que Trotsky os colocava em 1923. Contudo, as abordagens por ele desenvolvidas podem ainda permitir evitar certo número de erros, alguns dos quais já foram cometidos e outros podem sê-lo ainda. E é essencial lembrar hoje que após a revolução e a tomada do poder pela classe operária, sem deixar de encarar as etapas ligadas às possibilidades materiais e culturais, o poder soviético pôs na ordem do dia não apenas a elevação decalcada do modelo burguês, não apenas a colectivização dos meios de produção e de troca mas o que então se chamava “reconstrução do modo de vida” inclusivamente nos seu detalhes aparentemente mais insignificantes e mais íntimos.* * *

Estes textos foram traduzidos por Joelle Aubert-Yong com base na 2ª edição das Questões do modo de vida, publicada em Moscovo em 1923 pelas edições do Estado (Gosizdat). Em 15 de Janeiro de 1925 Trotsky demitia-se das suas funções de comissário do povo para o exército e a marinha; em 23-26 de Outubro de 1928 seria excluído do bureau político; em 15 de Novembro de 1927 seria excluído do partido; em 16 de Janeiro de 1928 seria deportado para Alma-Ata; seria expulso da URSS em 10 de Fevereiro de 1929 e assassinado em Coyoacan (México) em 20 de Agosto de 1940.

Anatole Kopp

Page 7: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Prefácio da segunda edição

Esta segunda edição, em relação à primeira, apresenta-se consideravelmente aumentada: em parte por artigos que directamente se relacionam com as questões do modo de vida, e principalmente por artigos muito recentes. Expresso aqui o meu reconhecimento aos camaradas que responderam ao meu apelo quando lhes pedi que me enviassem as suas observações, as suas propostas e outros materiais sobre o tema do modo de vida. Estou longe de ter utilizado todos esses materiais. Mas o trabalho não está terminado. E, de resto, não pode deixar de ter um carácter colectivo, de amplitude cada vez maior.

Algumas cabeças iluminadas tentam, tanto quanto sei, opor as tarefas relativas à cultura do modo de vida às tarefas revolucionárias. Semelhante abordagem não pode deixar de ser definida como um grosseiro erro político e teórico. Num artigo sobre a cultura proletária (Pravda, n° 207), escrevemos:

“Qualquer que seja a importância e a necessidade vital do nosso militantismo cultural, este está ainda colocado por inteiro sob o signo da revolução cultural e mundial. Tal como antes, somos soldados em campanha. Trata-se do nosso dia de folga. Que é preciso utilizar para lavar a roupa, cortar e pentear o cabelo e, antes de mais, limpar e olear a própria baioneta. O nosso trabalho cultural resume-se unicamente a por um pouco de ordem nos nossos assuntos, entre duas campanhas. Os combates mais importantes estão ainda por vir; estão talvez mesmo já próximos. A nossa época não é ainda a da nova cultura; não passa da sua antecâmara”.

Quanto mais o nosso trabalho econômico e cultural atinja um caracter sistemático e prático, mais poderemos resolver com êxito as importantes tarefas que se nos apresentam. A segunda vaga não será em nenhum caso uma simples repetição da primeira, mas exigirá de nós, em todos os domínios, uma preparação e uma qualificação incomparavelmente superiores. Impor-se-à então antes de mais uma compreensão mais profunda, por parte das massas trabalhadoras, das perspectivas construtivas que só a revolução mundial triunfante pode totalmente oferecer-nos em toda a sua amplitude.

9 de Setembro de 1923

Page 8: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Prefácio da primeira edição

Para melhor se compreender o livro, é preciso contar a sua história em duas palavras. Pareceu-me que faltava na biblioteca do partido uma pequena brochura que, sob a forma mais popular, mostrasse ao operário e ao camponês médio o elo que une certos factores e certos fenômenos da nossa época de transição, e que, apontando para uma justa perspectiva, serviria de arma para a educação comunista. Para comprovar esta idéia, dirigi-me ao secretário do comitê de Moscovo, camarada Zelensky, e pedi-lhe que reunisse uma pequena assembléia de agitadores, durante a qual seria possível permutar os nossos pontos de vista acerca dos meios e dos métodos literários da nossa propaganda.

A reunião ultrapassou de imediato os limites do projecto inicial. Os problemas relativos à família e ao modo de vida apaixonaram todos os participantes. No decurso das três sessões que em conjunto duraram dez a doze horas, pode-se, quando não resolver, pelo menos aflorar e em parte aclarar os diferentes aspectos da vida operária numa época de transição, bem como os nossos meios de acção sobre o modo de vida operário.

Entre a primeira e a segunda sessão e sob proposta dos participantes, formulei de forma escrita perguntas às quais alguns responderam também por escrito; por outro lado, algumas dessas respostas foram o resultado de pequenas assembléias ao nível de bairro. As nossas conversações com os agitadores do comitê de Moscovo foram estenografadas. São esses estenogramas e esses inquéritos que constituem a base da presente obra. Esse material é, por certo, extremamente insuficiente. Além disso, depressa foi preciso refazê-lo. Mas o meu objectivo não consistia em esclarecer sob todos os ângulos o modo de vida operário, a sua evolução e os meios de agir sobre eles, mas fundamentalmente em apresentar o problema do modo de vida operário como objecto digno dum estudo atento.

O pequeno livro que aqui se submete ao leitor não é de modo nenhum a brochura popular cuja idéia foi o ponto de partida deste trabalho. Procurarei ainda redigir essa brochura, caso as circunstâncias m’o permitam. A presente obra destina-se em primeiro lugar aos membros do Partido, aos dirigentes sindicais, das cooperativas e dos organismos culturais.

Em anexo encontram-se os extractos mais interessantes e mais importantes dos questionários e dos estenogramas da nossa reunião. O leitor fará talvez bem começando por ler esse anexo. Evitará assim certas dificuldades de compreensão que poderiam resultar do facto de que, para economizar tempo e espaço, omiti certas citações e certas chamadas.

L. Trotsky4 de Julho de 1923

Page 9: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

O Homem Não Vive Só de "Política"

Esta idéia muito simples, é preciso que a compreendamos duma vez por todas e que nunca a esqueçamos na nossa propaganda oral ou escrita. Cada época tem a sua divisa. A história pré-revolucionária do nosso partido foi uma história de política revolucionária. A literatura de partido, as organizações de partido tudo se encontrava submetido à palavra de ordem de "política" no sentido mais estreito do termo. A revolução e a guerra civil aumentaram ainda mais a acuidade e a intensidade das tarefas dos interesses políticos. Durante esse período, o partido reuniu nas suas fileiras os elementos politicamente mais ativos da classe operária. No entanto, as conclusões políticas fundamentais desses anos são claras para a classe operária no seu conjunto. A repetição mecânica dessas conclusões nada lhe trará de novo; antes poderá desvanecer na sua consciência as lições do passado. Após a tomada do poder e a sua consolidação em seguida à guerra civil, as nossas tarefas fundamentais deslocaram-se para o domínio da construção econômica e cultural, tornaram-se mais complexas, parcelaram-se, adquiriram um caráter mais detalhado e, ao que parece, mais "prosaico". Mas, ao mesmo tempo, as nossas lutas anteriores, com o seu cortejo de esforços e de sacrifícios, não encontrarão justificação senão na medida em quê consigamos enunciar corretamente e resolver as tarefas particulares, do dia a dia, aquelas que dependem do "militantismo cultural".

Com efeito, o que é que a classe operária exatamente ganhou, o que é que obteve no decurso das suas anteriores lutas?

1. A ditadura do proletariado (por intermédio de um Estado operário e camponês dirigido pelo partido comunista). 2. O Exército Vermelho, como apoio material da ditadura do proletariado. 3. A nacionalização dos principais meios de produção sem a qual a ditadura do proletariado seria uma forma vazia, sem conteúdo. 4. O monopólio do comércio externo, condição necessária da construção socialista perante um envolvimento capitalista.

Estes quatro elementos, cuja conquista é definitiva, constituem a armadura de aço de todo o nosso trabalho. Graças a isso, graças a essa armadura, cada um dos nossos êxitos no domínio econômico ou cultural - quando êxito real e não imaginário - tornou-se necessariamente um elemento constitutivo da construção socialista.

Em que consiste hoje a nossa tarefa, que devemos nós aprender em primeiro lugar, em que sentido devemos tender?

Precisamos aprender a bem trabalhar - com precisão, com limpeza, com economia. Temos necessidade de desenvolver a cultura do trabalho, a cultura da vida, a cultura do modo de vida. Após uma longa preparação e graças à alavanca da insurreição armada, derrubamos a supremacia dos exploradores. Mas não existe alavanca que possa de um só golpe elevar a cultura. Um lento processo de auto-educação da classe operária e paralelamente do campesinato, é aqui necessário. O camarada Lênin, num artigo sobre a cooperação, evoca essa mudança de direção da nossa atenção, dos nossos esforços, dos nossos métodos:

Page 10: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

"... Somos forçados - diz ele - a reconhecer uma transformação radical do nosso ponto de vista sobre o socialismo. Essa transformação radical provém de que outrora nós colocávamos, e devíamos colocar, o centro de gravidade da nossa atividade no combate político, na revolução, na conquista do poder, etc.. Hoje, esse centro de gravidade variou a tal ponto que se deslocou para um trabalho organizacional, pacífico, cultural. Estaria pronto a dizer que, para nós, o centro de gravidade se deslocou para o militantismo cultural, se não existissem nem as relações internacionais nem a obrigação de defender a nossa situação à escala internacional. Mas se nos abstrairmos disso e nos limitarmos às relações econômicas internas, então hoje o centro de gravidade reduz-se efetivamente ao "militantismo cultural" (1)."

Assim, só o problema da nossa situação internacional nos desvia do militantismo cultural, e isso apenas em parte como em seguida veremos. O fator principal da nossa situação internacional é a defesa nacional, isto é, o Exército Vermelho. Ora, nesse domínio fundamental, as nossas tarefas relacionam-se ainda uma vez mais, em nove décimos, com o militantismo cultural; elevar o nível do exército, levar a bom termo a sua completa alfabetização, ensinar-lhe a utilizar os guias, os livros e as cartas, habituá-lo ao asseio, à exatidão, à pontualidade, à observação. Não há remédio milagroso que permita resolver imediatamente esses problemas. No fim da guerra civil, quando abordávamos uma nova fase da nossa atividade, a tentativa de criar uma "doutrina militar proletária" foi a expressão mais clara e a mais gritante da incompreensão das tarefas da nova época. Os orgulhosos projetos que visam criar uma "cultura proletária" em laboratório, procedem da mesma incompreensão. Nesta busca da pedra filosofal, o nosso desespero perante o nosso atraso une-se a uma crença no milagre, que é ela própria um sinal desse atraso. Mas não temos nenhuma razão de desesperar e é mais do que tempo de nos libertarmos dessa crença nos milagres, dessas práticas pueris de curandeiros, do gênero "cultura proletária" ou doutrina militar proletária. Para robustecer a ditadura do proletariado é necessário desenvolver um militantismo cultural quotidiano, o único a garantir um conteúdo socialista para as conquistas fundamentais da revolução. Quem não tenha compreendido isso, representa um papel reacionário na evolução do pensamento e do trabalho do partido.

Quando o camarada Lênin afirma que as nossas tarefas de hoje não são tanto políticas como culturais, é necessário entendermo-nos sobre a terminologia a fim de não interpretar erradamente o seu pensamento. Num certo sentido, a política domina tudo. O conselho do camarada Lênin de transferir a nossa atenção do domínio político para o domínio cultural, é um conselho político. Quando um partido operário, em tal ou tal país, decide que é necessário num dado momento colocarem em primeiro plano as exigências econômicas e não as políticas, essa decisão tem um caráter "político". É perfeitamente evidente que a palavra "política", é utilizada aqui em dois sentidos diferentes: em primeiro lugar num sentido largo, materialista-dialético, englobando o conjunto das idéias diretivas, dos métodos e dos sistemas que orientam a atividade da coletividade em todos os domínios da vida social; em segundo lugar, num sentido estreito, especializado, caracterizando uma certa parte da atividade social, intimamente ligada à luta pelo poder e oposta ao trabalho econômico, social, etc.. Quando o camarada Lênin escreve que a política é economia concentrada, encara a política no sentido largo, filosófico. Quando o camarada Lênin diz: "um pouco menos de política, um pouco mais de economia", encara a política no sentido estreito e especializado do termo. As duas acepções são igualmente válidas visto que

Page 11: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

legitimadas pelo uso. Importa apenas compreender bem do que se fala em cada um dos casos.

A organização comunista é um partido político no sentido amplo, histórico, ou, se prefere, filosófico do termo. Os outros partidos atuais são políticos unicamente no sentido em que fazem (pequena) política. Se o nosso partido transfere a sua ação para o domínio cultural, isso de modo nenhum significa que enfraqueça o seu papel político. Historicamente, o papel dirigente (isto é, político) do partido, manifesta-se precisamente nessa deslocação lógica da sua atenção para o domínio cultural. Só após longos anos de atividade socialista, conduzida com êxito no interior e garantida no exterior, é que o partido poderá libertar-se pouco a pouco da sua carapaça "partisan" (2) para se confundir com a comunidade socialista. Mas isso está ainda tão longe que se torna inútil antecipar sobre o futuro... No imediato, o partido deve conservar totalmente as suas características fundamentais: coesão ideológica, centralização, disciplina, e, correlativamente, combatividade. Mas precisamente essas inestimáveis qualidades de "espírito de partido" comunista não podem manter-se e desenvolver-se se não se satisfazem as exigências e as necessidades econômicas e culturais de forma mais completa, mais hábil, mais exata e mais minuciosa. Em conformidade com essas tarefas, que devem desempenhar hoje um papel preponderante na nossa política, o partido reagrupa, distribui as suas forças e educa a jovem geração. Por outras palavras, a grande política exige que na base do trabalho de agitação, de propaganda, de repartição de forças, de instrução e de educação, sejam hoje colocadas tarefas e exigências econômicas e culturais e não exigências "políticas" no sentido estreito do termo.

* * *

A poderosa unidade social que representa o proletariado surge em toda a sua amplitude nas épocas de luta revolucionária intensa. Mas no interior dessa unidade, observamos ao mesmo tempo uma incrível diversidade e mesmo uma grande heterogeneidade. Do pastor obscuro e inculto ao maquinista altamente especializado escalona-se toda uma variedade de qualificações, de níveis culturais, de hábitos de vida. Cada camada social, cada oficina de empresa, cada grupo, é constituído por indivíduos de idade e caráter diferentes, de passado diversificado. Se não existisse essa diversidade, o trabalho do partido comunista no domínio da educação e da unificação do proletariado seria de todo simples. Mas, pelo contrário, o exemplo da Europa prova-nos quanto esse trabalho é na realidade difícil. Pode dizer-se que quanto mais a história de um país, e portanto a própria história da própria classe operária, é rica, mais reminiscências, tradições e hábitos nela se encontram; quanto mais os grupos sociais nela são antigos, mais difícil é realizar a unidade da classe operária. O nosso proletariado quase não tem história nem tradições. Isso facilitou sem dúvida a sua preparação para a Revolução de Outubro. Mas, em contrapartida, isso torna mais difícil a sua construção após Outubro. O nosso operário (com exceção da camada superior) ignora inclusivamente os hábitos culturais mais elementares (desconhece, por exemplo, o asseio e a exatidão, não sabe ler nem escrever, etc.). O operário europeu adquiriu pouco a pouco esses hábitos no quadro do regime burguês: é por isso - vê-se nas camadas superiores - que está tão fortemente ligado a esse regime, com a sua democracia, a sua liberdade de imprensa e outros bens do mesmo gênero. Entre nós, um regime burguês tardio quase nada deu ao operário; foi justamente por isso que, na Rússia, o proletariado pôde romper e derrubar mais facilmente a

Page 12: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

burguesia. Mas é também pela mesma razão que o nosso proletariado, na sua maioria, é obrigado a adquirir hoje, isto é, no quadro de um governo socialista operário, os mais simples hábitos culturais. A história nada dá gratuitamente: se faz um desconto numa coisa, sobre política, vai recuperá-lo por outro lado, sobre a cultura. Quanto mais fácil foi (relativamente, entenda-se) ao proletariado russo fazer a revolução, tanto mais lhe será difícil realizar a construção socialista. Mas, em compensação, a armadura da nossa nova sociedade, forjada pela revolução e caracterizada pelos quatro elementos fundamentais citados no princípio deste capítulo, imprime um caráter objetivamente socialista a todos os esforços conscientes e nacionais no domínio da economia e da cultura. O operário, em regime burguês, sem o querer e sem mesmo o saber, enriquece a burguesia e enriquece-a tanto mais quanto melhor trabalha. No Estado soviético, o operário consciencioso, mesmo sem nisso pensar nem com tal se preocupar (se é sem-partido e apolítico) realiza um trabalho socialista, aumenta os meios da classe operária. Está aí precisamente todo o sentido da Revolução de Outubro, que a N.E.P. em nada modificou.

Existe um enorme número de operários sem partido, profundamente dedicados à produção, à técnica, à máquina. Deve falar-se com reserva do seu "apolitismo", isto é, da sua ausência de interesse pela política. Nos momentos difíceis e importantes da revolução estiveram ao nosso lado. Na sua grande maioria, Outubro não os assustou, não desertaram nem traíram. Quando da guerra civil, numerosos dentre eles estiveram na frente e outros trabalharam para equipar o exército. Depois regressaram ao trabalho pacífico. Chamou-se-lhes apolíticos, e não sem fundamento, porque colocam o seu trabalho ou o seu interesse familiar mais alto do que o interesse político, pelo menos durante os períodos "calmos". Cada um deles quer tornar-se um bom operário, aperfeiçoar-se, elevar-se a um nível superior, tanto para melhorar a situação da sua fábrica como devido a um amor próprio profissional legítimo. Cada um deles, como já dissemos, realiza um trabalho socialista mesmo que não tenha fixado isso como objetivo. Mas o que nos interessa a nós, partido comunista, é que esses operários-produtores tenham uma clara consciência da ligação existente entre a sua particular produção quotidiana e os fins da construção socialista no seu conjunto. Os interesses do socialismo estarão assim melhor garantidos e esses produtores individuais retirarão disso uma satisfação moral bastante maior.

Mas como chegar a isso? É difícil sustentar com este tipo de operários questões de política pura. Já escutou todos os discursos. Não se sente atraído pelo partido. O seu pensamento só desperta quando está junto da sua máquina e, de momento, aquilo que não o satisfaz é a ordem que existe na oficina, na fábrica, no trust. Esses operários procuram ir tão longe quanto possível na sua reflexão; são freqüentemente reservados; vê-se sair das suas fileiras os inventores autodidatas. Não é de política que se lhes deve falar, não é pelo menos isso que os apaixonará ao primeiro contato, más, em compensação, pode e deve falar-se-lhe de produção e de técnica.

Um dos participantes na reunião dos agitadores moscovitas, o camarada Koltsov (do bairro de Krasnáia Presnia) sublinhou a enorme falta de manuais, de livros de estudo, de obras sobre especialidades técnicas ou outras profissões particulares. Os velhos livros estão esgotados; aliás, alguns dentre eles envelheceram no plano técnico, enquanto que no plano político estão geralmente impregnados dum servil espírito capitalista. Quanto aos novos manuais, existe um ou dois no máximo; é difícil encontrá-los porque foram editados em momentos diferentes por empresas ou serviços

Page 13: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

diversos, fora de todo o plano geral. Não são sempre tecnicamente válidos: são com freqüência demasiado teóricos e acadêmicos; enquanto que, politicamente, estão em geral não referenciados, não sendo no fundo mais do que a tradução de obras estrangeiras. Temos necessidade de uma série de novos manuais de algibeira: para o serralheiro soviético, para o torneiro soviético, para o eletricista soviético, etc.. Estes manuais devem adaptar-se à nossa técnica e à nossa economia atuais, devem ter em conta a nossa pobreza assim como as nossas imensas possibilidades, devem visar a desenvolver na nossa indústria métodos e hábitos novos muito mais racionais. Devem ainda, numa medida mais ou menos larga, evidenciar as perspectivas socialistas do ponto de vista das necessidades e dos interesses da própria técnica (é aqui que se localizam os problemas de normalização, de eletrificação, de economia planificada). Em tais obras, as idéias e as conclusões socialistas devem integrar-se na teoria prática de tal ou tal setor de atividade. De modo nenhum devem ter caráter de agitação supérflua e inoportuna. É enorme a procura para essas edições, devido à carência de operários qualificados, e ao desejo, por parte dos próprios operários, de elevar a sua qualificação. Essa procura acentua-se pela baixa de produtividade registrada no decurso da guerra civil e imperialista. Temos aqui uma tarefa extremamente importante e útil a realizar.

Não se pode certamente ignorar quanto é difícil redigir esses manuais. Os operários, mesmo os altamente qualificados, não sabem escrever livros. Os escritores especializados que abordam certos problemas ignoram com freqüência os seus aspectos práticos. Finalmente, entre estes, poucos há que possuam um pensamento socialista. No entanto, este problema só pode encontrar uma solução combinada e não "simples", isto é, rotineira. Para escrever um manual, é preciso reunir um grupo de três pessoas (troika) formado por um escritor especialista, tecnicamente informado, que conheça - ou que seja capaz de conhecer - o estado do ramo correspondente da nossa produção, por um operário altamente especializado nesse domínio, de espírito inventivo, e por um escritor marxista, com formação política e com alguns conhecimentos no campo da técnica e no da produção. Quer se utilize esta solução ou outras análogas, permanece a necessidade de pôr em marcha uma biblioteca exemplar de obras técnicas destinadas às oficinas, convenientemente encadernadas, de formato prático e pouco dispendiosas. Semelhante biblioteca desempenharia um duplo papel: favoreceria a elevação da qualificação do trabalho e por conseqüência o êxito da construção socialista; ajudaria, ao mesmo tempo, a reunir um grupo de operários-produtores extremamente válidos para a economia soviética no seu conjunto e, portanto, para o partido comunista.

Sem dúvida que não se pode ter por limite único uma série de manuais de estudo. Se nos detivemos de forma tão detalhada sobre esse particular problema foi porque ele nos oferece, ao que parece, um exemplo bastante evidente da nova abordagem ditada pelos problemas do período atual. A luta pela conquista ideológica dos proletários "apolíticos" pode e deve ser conduzida por meios diversificados. É preciso editar semanários ou mensários científicos e técnicos especializados por sector de produção; é preciso criar sociedades científicas e técnicas destinadas a esses operários. É com vista a eles que, numa boa metade, deve orientar-se a nossa imprensa profissional se de fato não quer ser uma imprensa destinada unicamente ao pessoal dos sindicatos. Mas o argumento político mais convincente para os operários desse tipo consistirá em cada um dos nossos êxitos práticos no domínio industrial, em cada organização real

Page 14: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

do trabalho na fábrica ou na oficina, em cada esforço ponderado do partido nessa direção.

Pode formular-se da maneira seguinte o ponto de vista político do operário-produtor que presentemente nos interessa e que raramente exprime as suas idéias: "quanto à revolução e ao derrube da burguesia, nada há a opor, houve razão em fazê-lo. Não temos necessidade da burguesia. Não temos também necessidade dos representantes mencheviques ou outros. No que respeita à "liberdade de imprensa?"- isso não é de tanta importância e não é esse o fundo do problema. Mas como ides vós resolver o problema da economia? Vós, comunistas, haveis tomado a direção dos negócios. Os vossos fins e os vossos planos são válidos, sabemo-lo, é inútil repeti-lo, houvemo-los, estamos de acordo, damo-vos o nosso apoio, mas, vejamos, como ides resolver praticamente esses problemas? Até ao presente, não vale a pena escondê-lo, aconteceu-vos com freqüência pôr o dedo onde não era devido. Sabemos que não se pode agir bem à primeira, que é preciso aprender, que os erros são inevitáveis. Sempre assim sucede. E visto que suportamos os crimes da burguesia, suportaremos tanto mais os erros da revolução. Mas isso não durará eternamente. Entre vós, comunistas, existe gente diferente entre si, como aliás também entre nós sucede, pobres pecadores: certos há que estudam realmente, fazem conscienciosamente o seu trabalho, diligenciam chegar a um resultado econômico prático, enquanto que outros se limitam à pantominice. E os pantomineiros são muito prejudiciais, porque o trabalho se lhes escapa por entre os dedos ...". Este tipo de operário, eis o que ele é: torneiro, serralheiro ou fundidor zeloso, hábil e atento ao seu trabalho; não é entusiasta, é antes politicamente passivo, mas reflete, tem espírito crítico; é por vezes um pouco cético, mas mantém-se sempre fiel à sua classe; é um proletário de valor. É em direção a este tipo de operários que o partido deve atualmente dirigir os seus esforços. O nosso grau de implantação nessa camada social - na economia, na produção, na técnica - será o índice mais seguro dos nossos êxitos em matéria de militantismo cultural, encarado no seu sentido mais amplo, no sentido leninista do termo.

Dirigir os nossos esforços para o operário consciencioso, de modo nenhum contradiz, claro está, a tarefa primordial do partido que consiste em enquadrar a jovem geração do proletariado, porque esta jovem geração se desenvolve em condições precisas; forma-se, fortalece-se e endurece-se resolvendo determinados problemas. A jovem geração deve, antes de mais, ser uma geração de operários especializados, altamente qualificados, amantes do seu trabalho. Deve adquirir consciência de que a sua produção serve ao mesmo tempo o socialismo. A atenção dispensada à aprendizagem, o desejo de adquirir uma alta qualificação, aumentará, aos olhos da juventude, a autoridade dos "velhos" operários, que, como já se disse, permanecem na maioria fora do partido. Ao mesmo tempo que dirigimos os nossos esforços para o operário consciencioso e hábil, devemos também aplicar-nos em educar a juventude proletária. Sem isso, seria impossível seguir em frente, rumo ao socialismo.

Notas:

(1) É útil lembrar aqui a definição do "militantismo cultural" que dou nos meus "Pensamentos sobre o Partido":"Ao nível da sua realização política, a revolução parece ter-se "dispersado"#8221 em tarefas particulares: é preciso reparar as pontes, ensinar a ler e a escrever, baixar o

Page 15: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

preço de custo da fabricação das botas nas fábricas soviéticas, lutar contra a imundície, prender os escroques, levar a eletricidade aos campos, etc. Alguns grosseiros intelectuais de espírito invertido (é decerto a razão pela qual se consideram poetas e filósofos), falaram já da revolução com grandiosa condescendência. Aprende-se, dizem eles, a vender (como é patusco) e a coser os botões (deixai-nos rir). Mas deixemos esses tagarelas palrar no vazio. Realizar um trabalho puramente prático e quotidiano no domínio da economia e da cultura soviéticas - mesmo no do comércio de retalho - de modo nenhum significa ocupar-se de "coisas mínimas" e não implica necessariamente mentalidade mesquinha. Coisas mínimas sem grandes coisas é o que mais abunda na vida humana. Mas em história não se fazem nunca grandes coisas sem pequenas coisas. Mais exatamente: as pequenas coisas, numa grande época, quando integradas numa grande obra, deixam de ser "pequenas coisas".Entre nós, trata-se da construção da classe operária, que, pela primeira vez, constrói para si e segundo o seu próprio plano. Esse plano histórico, ainda extremamente imperfeito e confuso, deve englobar no seu conjunto criativo único todos os elementos, mesmo os mais insignificantes, da atividade humana.Todas as tarefas menores e isoladas - até ao comércio soviético de retalho - são parte integrante da classe operária dominante que procura ultrapassar a sua fraqueza econômica e cultural.A construção socialista é uma construção planificada de grande envergadura. Através do fluxo e refluxo, dos erros e das viragens, dos meandros da N.E.P., o partido persegue o seu plano, ensina a cada um a ligar a sua atividade particular à obra geral, que exige hoje que se cosam os botões com cuidado e que amanhã pedirá que se morra corajosamente sob a bandeira do comunismo.Devemos exigir, e exigimos, da parte da nossa juventude, uma especialização superior e aprofundada; deverá pois se libertar do principal defeito da nossa geração, que blasona de tudo conhecer e de tudo saber fazer; mas tratar-se-á de uma especialização ao serviço do plano geral, pensado e aceite por cada um em particular. (voltar ao texto)

(2) Em russo: "partijnost". (voltar ao texto)

Page 16: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

II - O jornal e seu leitor

O aumento numérico do partido bem como o desenvolvimento da sua influência sobre os sem-partido, por um lado, e a nova etapa da revolução que hoje abordamos, por outro, explica que o partido se defronta, ao mesmo tempo, com problemas novos mas também com antigos problemas que aparecem sob nova forma, inclusive no domínio da agitação e da propaganda. Precisa-se reexaminar muito atentamente os instrumentos e os meios da nossa propaganda. Serão eles suficientes em volume, isto é, abarcarão todos os problemas que é preciso esclarecer? Terão tomado uma expressão adequada, acessível ao leitor e capaz de o interessar?

Este problema entre outros foi examinado pelos vinte e cinco agitadores e propagandistas moscovitas reunidos em assembléia. Os seus pontos de vista, as suas opiniões, as suas apreciações, foram estenografadas. Espero que poderei em breve editar todo esse material. Os nossos camaradas jornalistas encontrarão aí um grande número de amargas censuras, e devo confessar que, na minha opinião, a maior parte delas são justificadas. A questão da organização da nossa agitação escrita, e em primeiro lugar da nossa agitação jornalística, é demasiado importante para que se deixe em silencio seja o que for. É preciso falar francamente.

Há um provérbio que diz: “É o uniforme que faz o general ...”. É preciso pois começar pela técnica jornalística. Esta é por certo melhor do que em 1919-1920, mas mostra-se ainda extremamente defeituosa. Devido à falta de cuidado na paginação e ao excesso de tinta, o leitor cultivado, e com mais razão aquele que o não é, terá dificuldade em ler o jornal. Os jornais de grande tiragem destinados às largas massas operárias, como o “Moscovo trabalhador” ou “Gazeta operária”, são extremamente mal impressos. A diferença de um exemplar para outro é muito grande: umas vezes, quase todo o jornal é lisível, outras vezes não se compreende quase metade. É por isso que a compra dum jornal se assemelha a uma lotaria. Tomo ao acaso um dos últimos números da “Gazeta operária”. Examino o “canto das crianças”: “O conto do gato inteligente ...”. Impossível lê-lo, de tal modo a impressão é defeituosa; e isso destina-se a crianças! É preciso dizer francamente: a nossa técnica em matéria de jornais é a nossa vergonha. Apesar de nossa pobreza, apesar de nossa imensa necessidade de instrução, pagamos com freqüência o luxo de sujar a quarta parte quando não mesmo a metade duma folha de jornal. Um tal “farrapo” não pode deixar de irritar o leitor; um leitor pouco informado cansa-se disso, um leitor cultivado e exigente range os dentes e despreza abertamente aqueles que assim troçam dele. Porque existe exactamente alguém que escreve esses artigos, alguém que os pagina, alguém que os imprime, e no fim de contas o leitor, não obstante todos os seus esforços não consegue decifrar metade. Que vergonha e que infâmia! Quando do último congresso do partido, dedicou-se atenção particular ao problema da tipografia. E põe-se a questão: até quando vamos nós suportar tudo isto?

“É o uniforme que faz o general ...”. Vimos já que uma impressão defeituosa impede por vezes que se penetre no espírito de um artigo. Mas falta ainda saber proceder a disposição do material, à paginação, às correcções, que são entre nós particularmente mal feitas. Não é raro encontrar erros de impressão e enormes gralhas, não só nos jornais mas também nas revistas científicas, em especial na revista “Sob a bandeira do marxismo”. Leão Tolstoi disse um dia que os livros eram um instrumento para difundir a ignorância. Esta afirmação de grande senhor desdenhoso é, sem dúvida,

Page 17: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

totalmente enganosa. Mas, infelizmente, justifica-se em parte... se se considera as correcções de que carece a nossa imprensa. E isso também não se pode continuar a suportar! Se a imprensa não dispõe dos quadros necessários, de correctores-revisores cultivados que conheçam o seu trabalho, será então necessário aperfeiçoar no conjunto os quadros existentes. É preciso dar-lhes cursos de apoio bem como cursos de instrução política. Um corrector deve compreender o texto que corrige, caso contrário não será um corrector mas um involuntário propagador da ignorância; a imprensa, diga o que disser Tolstoi, é, e deve ser, um instrumento de educação.

Observemos agora um pouco mais de perto o conteúdo do jornal.

Um jornal serve antes de mais de elo de ligação entre os indivíduos; dá-lhes a conhecer o que se passa e aonde. O que dá alma a um jornal é uma informação actual, abundante e interessante. Nos nossos dias, o telégrafo e a rádio desempenham um papel muito importante na informação jornalística. É por isso que o leitor habituado a um jornal e familiarizado com a sua leitura se precipita antes de mais sobre a rubrica dos “comunicadores”. Mas para que os telegramas ocupem o primeiro lugar num jornal soviético é necessário que apresentem factos importantes e de interesse sob uma forma compreensível para a massa dos leitores. Não é isso, porém, o que sucede. Nos nossos jornais, os comunicadores são compostos e impressos por uma forma semelhante à da “grande” imprensa burguesa. Quando se segue quotidianamente os comunicados de certos jornais, tem-se a impressão que os camaradas que se ocupam dessa rubrica, ao paginarem os novos telegramas, já esqueceram de todo o que tinham publicado na véspera. O seu trabalho não apresenta em absoluto nenhuma sequência lógica. Cada telegrama assemelha-se a um estilhaço que ali caiu por acaso. As explicações que se lhe referem têm um caráter fortuito e frequentemente irreflectido. Quando muito, ao lado do nome de tal ou tal político burguês estrangeiro, o redactor da rubrica limita-se a mencionar entre parêntesis: “lib.” ou “cons.”. O que significa: liberal ou conservador. Mas como três quartas partes dos leitores não compreendem essas abreviaturas, tais esclarecimentos apenas podem confundi-los ainda mais. Os comunicadores que, por exemplo, nos informam do que se passa na Bulgária ou na Roménia, passam habitualmente por Viena, Berlim, Varsóvia. Os nomes destas cidades, citados no início do telegrama, confundem totalmente a massa de leitores, completamente ignaros em geografia. Por que cito eu estes detalhes? Sempre pela mesma razão: porque mostram, melhor do que tudo, a que ponto dedicamos pouca atenção à preparação dos nossos jornais, à situação do leitor pouco advertido, às suas necessidades, às suas dificuldades. A forma como se apresentam os telegramas num jornal operário é o que há de mais difícil, o que requer maior responsabilidade. Exige um trabalho atento e minucioso. É preciso reflectir sobre todos os aspectos de um comunicado importante e dar-lhe uma forma tal que corresponda imediatamente ao que a massa dos leitores saiba já mais ou menos bem. É preciso reagrupar os telegramas antes de os fazer preceder das necessárias explicações. De que serve um título destacado, de duas, três ou mais linhas, se não faz mais do que repetir o que diz o comunicado? Com freqüência, tais títulos apenas servem para confundir o leitor. É freqüente apresentar uma greve sem importância com este título: “Aí está” ou “Em breve o desfecho”, enquanto que o próprio telegrama menciona apenas um vago movimento dos ferroviários, sem mencionar nem a sua causa nem os seus fins. No dia seguinte, nem uma palavra sobre o acontecimento; mesmo silêncio no dia seguinte. Quando o leitor lê de novo um comunicado intitulado “Aí está”, pensa que se trata de um trabalho pouco sério, duma especulação jornalística, e o seu interesse pelos

Page 18: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

comunicados e pelo próprio jornal diminui. Se, pelo contrário, o redactor da rubrica dos telegramas se lembra do que publicou na véspera e na ante-véspera, e se ele próprio procura compreender o que liga os acontecimentos e os factos entre si a fim de os explicar ao leitor, a informação, mesmo quando imperfeita, adquire desde logo um imenso valor educativo. No espírito do leitor essas informações ordenam-se pouco a pouco com crescente solidez. Torna-se-lhe cada vez mais fácil compreender os factos novos e aprende a procurar e encontrar num jornal as informações importantes. Deste modo, o leitor dá um passo enorme no caminho da cultura. É indispensável que as relações concentrem todos os seus esforços na informação telegráfica, é indispensável que consigam dar a essa rubrica a composição devida. Só na medida em que os próprios jornais fazem pressão e dão o exemplo, é que se poderá educar progressivamente os correspondentes da agência Rosta(1).

Uma vez por semana, com preferência evidente pelo domingo, ou seja, o dia em que o operário está livre, dever-se-ia fazer um balanço dos factos mais significativos. Diga-se, a propósito, que um tal trabalho seria um maravilhoso meio de educar os responsáveis das diversas rubricas. Aprenderiam assim a investigar mais cuidadosamente o que liga entre si os diversos acontecimentos, com reflexos benéficos sobre a redacção quotidiana de cada rubrica.

É impossível compreender as notícias do estrangeiro sem possuir certos conhecimentos geográficos elementares. As vagas cartas que os jornais reproduzem por vezes, mesmo no caso em que são lisíveis, não ajudam muito os leitores que ignoram como se dispõem os diversos países do mundo, como se repartem os diversos Estados. A questão das cartas geográficas representa, na nossa situação, isto é, em vista do envolvimento capitalista e do ascenso da revolução mundial, um importante problema de educação social. Onde quer que se organizem conferências ou reuniões, ou pelo menos nos locais mais importantes, é necessário dispor de cartas geográficas especiais com as fronteiras entre Estados bem delimitadas e das quais constem certos elementos de desenvolvimento econômico e político desses Estados. Seria talvez bom, como durante a guerra civil, afixar esse gênero de cartas esquemáticas em certas ruas e locais. Não seria difícil proceder assim. No ano passado, foram espalhadas bandeirolas com incrível profusão, sob qualquer pretexto. Não teria sido melhor utilizar esses meios para dotar as fábricas, as oficinas e depois as aldeias de cartas geográficas? Cada conferencista, cada orador, cada agitador, etc., ao evocar a Inglaterra e as suas colônias, pode imediatamente situá-las na carta. Mostraria da mesma forma aonde se encontra o Ruhr. Será o orador quem, antes de mais, disso tirará proveito: saberá mais clara e mais precisamente acerca do que fala visto dever verificar antecipadamente aonde se encontra tal ou tal país, tal ou tal Estado. E os auditores, se a questão lhes interessa, não deixarão de se recordar do que lhes foi mostrado, não talvez pela primeira vez mas pela quinta ou décima vez. E a partir desse momento, quando as palavras “Ruhr”, “Londres” ou “Índia” deixarem de mostrar-se vazias de sentido, o leitor lerá os comunicados de forma totalmente diferente. Sentirá prazer em ler no jornal a palavra “Índia”, uma vez que saiba aonde se encontra esse país. Sentir-se-à mais cultivado e ter-se-à tornado de facto mais culto. Deste modo, as cartas geográficas claras e expressivas tornam-se um elemento fundamental da educação política de todos. O Gosizdat(2) devia ocupar-se seriamente deste problema.

Page 19: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Mas voltemos ao jornal. Os defeitos que assinalamos a propósito das “notícias do estrangeiro” repetem-se na informação “sobre o país” em parte no que respeita à actividade das empresas, das cooperativas soviéticas, etc. Esta atitude negligente e desenvolta em relação ao leitor observa-se com freqüência nos “pequenos nadas” que bastam para tudo estragar. As empresas soviéticas são mencionadas por abreviações; são, por vezes, designadas unicamente pelas suas iniciais (a primeira letra de cada palavra). Tal permite que na própria empresa ou nas que lhe estão próximas se faça economia de tempo e papel. Mas a grande massa dos leitores não pode decifrar essas abreviações convencionais. Por outro lado, os nossos jornalistas, cronistas e repórteres jogam com um amontoado de siglas incompreensíveis, como palhaços com os seus balões. Por exemplo, relata-se uma discussão com determinado camarada, presidente da “S.A.M.”. Esta sigla é utilizada dezenas de vezes ao longo de todo o artigo. É preciso ser-se um burocrata informado para compreender que se trata do Serviço de Administração Municipal(3). A massa dos leitores nunca decifrará esta abreviatura e, irritada, porá de parte o artigo e talvez todo o jornal. Os nossos jornalistas devem compenetrar-se de que as abreviaturas e as siglas só são válidas na medida em que se tornem imediatamente compreensíveis; quando apenas servem para confundir os espíritos, é criminoso e estúpido utilizá-las.

Um jornal, como já dissemos, deve antes de mais informar correctamente. Não poderá ser um instrumento de educação se a informação não for correcta, interessante e judiciosamente exposta. Um dado acontecimento deve primeiro que tudo ser apresentado de forma clara e inteligível: deve precisar aonde o facto se passa e como se passa. Consideramos com freqüência que os próprios acontecimentos e factos são conhecidos do leitor, ou que ele os compreende por uma simples alusão, ou ainda que não têm nenhuma importância e que o fim do jornal é, pretensamente, discorrer “a propósito” de tal ou tal facto (que o leitor ignora ou não compreende) sobre muitas coisas edificantes de que há muito se está saturado. É isso o que com freqüência sucede porque o autor do artigo ou da pequena notícia não sabe sempre do que fala e, para ser franco, porque é demasiado preguiçoso para se informar, para ler, para usar o telefone comprovando as suas informações. Evita pois o lado vivo do assunto e relata, “a propósito” de qualquer facto, que a burguesia é a burguesia e o proletariado é o proletariado. Caros colegas jornalistas, o leitor suplica-vos que evitem dar-lhes lições, fazer-lhes sermões, dirigir-lhes apóstrofes ou ser agressivos, mas antes que lhe descrevam e expliquem clara e inteligivelmente o que se passou, aonde e como se passou. As lições e as exortações ressaltarão por si mesmas.

O escritor, e em particular o jornalista, não deve partir do seu ponto de vista mas sim do do leitor. Trata-se de uma distinção muito importante, que se reflecte na estrutura de cada artigo em particular e na do jornal em conjunto. No primeiro caso, o escritor (inábil e pouco consciente do seu trabalho) apresenta simplesmente ao leitor a sua própria pessoa, os seus próprios pontos de vista, os seus pensamentos e até, com freqüência, as suas frases. No outro caso, o escritor que encara a sua tarefa com rigor, leva o leitor a por si próprio tirar as conclusões necessárias, utilizando para isso a experiência quotidiana das massas. Esclareçamos esta idéia utilizando um exemplo citado quando da reunião dos agitadores de Moscovo. Este ano, como se sabe, uma violenta epidemia de malária devastou o país. Enquanto que as antigas epidemias – tifo, coleta, etc. – diminuíram claramente nos últimos tempos (atingindo mesmo uma taxa inferior à de antes da guerra), a malária desenvolveu-se em proporções inauditas. Atinge as cidades, os bairros, as fábricas, etc., as suas aparições súbitas, o seu fluxo e

Page 20: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

refluxo, a periodicidade (regularidade) dos seus acessos, fazem com que a malária actue não só sobre a saúde mas também sobre a imaginação. Fala-se e reflecte-se sobre ela, oferecendo terreno propício tanto às superstições como à propaganda científica. Mas o interesse que manifesta a nossa imprensa é ainda insuficiente. No entanto, cada artigo sobre a malária suscita, como relataram os camaradas de Moscovo, o maior interesse: o número do jornal passa de mão em mão, o artigo é lido em voz alta. É de toda a evidência que a nossa imprensa, sem se limitar à propaganda sanitária do comissariado para a saúde pública, deve empreender sobre o seu tema um importante trabalho. É preciso começar por descrever o próprio desenvolvimento da epidemia, precisar as regiões em que se expande, enumerar as fábricas e oficinas mais particularmente atingidas. Isso estabelecerá já uma ligação viva com as massas mais atrasadas, mostrando-lhes que se conhecemos, que nos interessamos por elas, que não são esquecidas. Depois, é preciso explicar a malária de um ponto de vista científico e social, mostrar com dezenas de exemplos que se desenvolve em condições de vida e de produção particulares, dar todo o destaque às medidas tomadas pelos organismos governamentais, dispensar os conselhos necessários, e repeti-los com insistência em cada número, etc.. Neste terreno, pode e deve-se desenvolver a propaganda contra os preconceitos religiosos. Se as epidemias, como em geral todas as doenças, representam um castigo dos pecados cometidos, porque então se propagam mais nos lugares húmidos do nos lugares secos? Uma carta do desenvolvimento da malária acompanhadas das explicações práticas necessárias, é um notável instrumento de propaganda anti-religiosa. O seu impacto será tanto mais importante quanto o problema afecta ao mesmo tempo e muito intensamente amplos grupos de trabalhadores.

Um jornal não tem direito de não se interessar pelo que interesse às massas, à multidão operária. Certamente que todo o jornal pode e deve dar a sua interpretação dos factos visto que é chamado a educar, desenvolver e elevar o nível cultural. Mas não atingirá esse objectivo, salvo se se apoiar nos factos e nos pensamentos que interessem à massa dos leitores.

É indubitável que, por exemplo, os processos e o que se chama os “faits divers”: desgraças, suicídios, crimes, dramas passionais, etc., sensibilizam grandemente largas camadas da população. E isso por uma razão muito simples: são exemplos expressivos da vida que se faz. Contudo, regra geral, a nossa imprensa apenas concede muito pouca atenção a esses factos, limitando-se no melhor dos casos a algumas linhas em pequenos caracteres. Resultado: as massas colhem as suas informações, com freqüência mal interpretadas, de fontes menos qualificadas. Um drama de família, um suicídio, um crime, uma sentença severa, impressionam e impressionarão a imaginação. O “processo de Komarov” eclipsou mesmo durante um certo tempo o “caso Curzon”(4) – escrevem os camaradas Lagutine e Kasanski, da manufactura de tabaco “Estrela Vermelha”. A nossa imprensa deve manifestar o maior interesse pelos “faits divers”: deve comentá-los e esclarecê-los, deve fornecer deles uma explicação que, ao mesmo tempo, tenha em conta a psicologia, a situação social e o modo de vida. Dezenas ou centenas de artigos repetindo lugares comuns sobre o emburguesamento da burguesia e sobre a estupidez dos pequenos burgueses não terão maior influência sobre o leitor do que um importuno chuvisco de outono. Mas o processo dum drama familiar bem descrito e ordenado no decurso duma série de artigos pode interessar milhares de leitores, despertar-lhes pensamentos e sentimentos novos, descobrir-lhes um horizonte mais vasto. Após o que alguns

Page 21: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

leitores solicitarão talvez um artigo geral sobre o tema da família. A imprensa burguesa de sensação tira enorme partido dos crimes e dos envenenamentos, jogando cm a curiosidade doentia e com o mais vis dos instintos do homem em geral. Isso seria da mais pura hipocrisia. Somos o partido das massas. Somos um Estado revolucionário e não uma confraria espiritual ou um convento. Os nossos jornais devem satisfazer não só a curiosidade mais nobre mas também a curiosidade natural; precisa-se apenas que elevem e melhorem o nível dessa curiosidade, apresentando e esclarecendo os factos de forma adequada. Os artigos e as pequenas notícias desse gênero têm sempre e em toda a parte um grande sucesso. Ora, não se vêem quase nunca na imprensa soviética. Dir-se-à que faltam para esse tema os necessários especialistas literários. Isso porém só em parte é verdade.

Quando um problema é clara e judiciosamente exposto, encontra-se sempre quem seja capaz de o resolver. É preciso antes de mais encaminhar a atenção geral para uma séria viragem. E em que sentido? No sentido do leitor vivo, tal qual é, do leitor de massa, despertado pela revolução mas ainda pouco letrado, ávido de conhecer mas completamente carente, e que continua sendo um homem a quem nada de humano é estranho. O leitor tem necessidade de que se lhe manifeste interesse, ainda que nem sempre saiba exprimir esse desejo. Mas os vinte e cinco agitadores e propagandistas do comitê de Moscovo souberam muito bem falar por ele.* * *

Nem todos os jovens escritores propagandistas sabem escrever de modo a ser compreendidos. Talvez porque não tiveram que rasgar caminho através da dura carapaça do obscurantismo e da ignorância. Dedicaram-se à literatura de agitação numa época em que, nas largas camadas da população, um conjunto de idéias, de palavras e de tendências tinham já largo curso. Um perigo ameaça o partido: ver-se cortado das massas sem partido, o que se deve ao hermetismo do conteúdo e da forma da propaganda, à criação duma gíria política inacessível não só a nove décimos dos camponeses mas também aos operários. A vida, porém, não pára um único instante e as gerações sucedem-se.

Hoje, o destino da República soviética está a cargo, em grande parte, daqueles que no momento da guerra imperialista e das revoluções de Março e de Outubro tinham 15, 16 e 17 anos. Este “impulso” da juventude far-se-á sentir cada vez mais. Ninguém pode dirigir-se a essa juventude com as formular feitas, as frases, as expressões e as palavras que para nós os “velhos” tem um sentido, porque decorrem da nossa anterior experiência, mas que, para ela, são vazios de conteúdo. É preciso aprender a falar a sua linguagem, isto é, a linguagem da sua experiência.

A luta contra o tzarismo, a revolução de 1905, a guerra imperialista e as duas revoluções de 1917 são para nós experiências vividas, recordações, factos significativos da nossa própria actividade. Falamos a seu respeito por alusões, recordamos e complementamos em pensamento aquilo que não exprimimos. Mas a juventude? Ela não compreende essas alusões porque não conhece os factos, não os viveu e não pode tomar conhecimento deles nem através dos livros nem de descrições objectivas que não existem. Aonde uma alusão é bastante para a velha geração, para a juventude é necessário um manual. É tempo de editar uma série de manuais e de obras de educação política revolucionária para uso da juventude.

Page 22: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Notas:

(1) ROSTA: Agência Telegráfica Russa; ancestral da agência TASS.

(2) Gosizdat: GOSudarstvenoje IZDAT’stvo; Edições do Estado.

(3) Em russo: “OKX” – Otd’el Kommunal’nogo Xoz’ajstva.

(4) O caso Curzon: trata-se dos manejos anti-soviéticos do diplomara inglês G. N. Kurzon (1859-1925) que foi um dos organizadores da intervenção contra a URSS; em 1919 enviou uma nota ao governo soviético emprazando-o a cessar o avanço das tropas do Exército Vermelho segundo uma linha chamada “linha Curzon”. Em 1923 enviou um ultimatum provocador ao governo soviético, ameaçando-o com uma nova intervenção.

Page 23: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

III - A atenção deve incidir sobre os detalhes(1)

Devemos repor de pé a nossa destruída economia. É preciso construir, produzir, reparar, consertar. Gerimos a economia em bases novas, que devem garantir o bem-estar de todos os trabalhadores. Mas a produção, na sua essência, reduz-se à luta do homem contra as forças hostis da natureza, a utilização racional das riquezas naturais. A política, os decretos e as consignas apenas podem regularizar a actividade econômica imprimindo-lhe uma direção geral. Só porém a produção de bens materiais e um trabalho sistemático e persistente podem realmente satisfazer as necessidades do homem. O progresso econômico do homem compõe-se de parcelas de elementos diversos, de detalhes e de pequenos nadas. Não se pode repor de pé uma economia sem dedicar enorme atenção aos detalhes. Ora, entre nós, esse interesse é nulo ou quase nulo. A tarefa principal da educação e da auto-educação no domínio da economia é a de despertar, desenvolver e reforçar essa atenção perante as exigências particulares, insignificantes e quotidianas da economia; nada se deve negligenciar tudo se deve anotar, agir em tempo oportuno e exigir o mesmo dos outros. Esta tarefa impõe-se-nos em todos os domínios da vida política e da construção econômica.

Vestir e calçar o exército, dado o estado atual da produção, não é um problema simples. O abastecimento é com freqüência muito irregular. Por outro lado, há no exército pouca preocupação em consertar e manter em bom estado o calçado e o vestuário disponível. Quase nunca se engraxa o calçado. E quando se pergunta porquê, ouvem-se as mais diversas respostas: ora é porque falta a pomada, ora porque não foi distribuída a tempo, ou ainda porque o calçado é castanho e a pomada é preta, etc. Mas a razão principal é que nem os soldados nem os quadros do Exército Vermelho cuidam de suas coisas. Calçado não engraxado, sobretudo quando encharcado, seca e só serve para deitar fora ao fim de algumas semanas. E como não se consegue o seu suficiente fornecimento, começa-se a produzi-lo de qualquer maneira. As botas estragam-se ainda mais depressa. Está-se num círculo vicioso. E contudo há um meio para encontrar a solução, que é um meio muito simples: é preciso que as botas sejam encebadas a tempo, é preciso que os atacadores sejam apertados com cuidado, pois de contrário perdem a aparência e deformam-se. Destruímos bom calçado americano unicamente por não termos atacadores. É possível encontrá-los se se insiste um pouco; e se não há atacadores é precisamente porque não se dispensa atenção aos detalhes da vida quotidiana. Ora, são estes pequenos nadas que acabam por constituir um todo.

Passa-se a mesma coisa, ou pior ainda, com as baionetas. É difícil fabricá-las, mas fácil inutilizá-las. É preciso cada um cuidar de sua baioneta, limpá-la e oleá-la. E isso exige atenção cuidada e permanente, torna necessária toda uma aprendizagem, toda uma educação.

Estes pequenos nadas, que se acumulam e se combinam, acabam por preservar ou... destruir qualquer coisa de importante. As pequenas degradações dos caminhos quando não reparadas a tempo, avolumam-se e formam covas e sulcos que tornam difícil a circulação, danificam os carros, as viaturas e os caminhões, estragam os pneus. Um caminho em mau estado obriga a dispêndios de dinheiro e de esforços dez vezes mais importantes do que seria necessário para o reparar. E é também devido a pequenos nadas deste gênero que as máquinas, as fábricas e os edifícios se deterioram. Para manter umas e outros em bom estado é preciso dedicar atenção quotidiana e

Page 24: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

permanente a vários detalhes. Essa atenção falta-nos, porque a educação econômica e cultural é insuficiente.

É freqüente confundir-se o interesse dedicado aos detalhes com o burocratismo. Há nisso um erro grave. O burocratismo consiste em dedicar atenção a uma forma vazia em detrimento do conteúdo, em detrimento da acção. O burocratismo enreda-se no formalismo, nos pecadilhos, sem resolver nenhum detalhe prático. O burocratismo, pelo contrário, evita em geral os detalhes práticos que constituem o conjunto dum problema, contentando-se unicamente em fazer a articulação da papelada.

Pedir que não se cuspa para o chão ou que não se lancem pontas de cigarros nas escadas ou corredores, é um “pequeno nada”, uma exigência mínima, mas que no entanto tem um significado educativo e econômico enormes. Aquele que, sem se constranger, cospe numa escada ou num assoalho, é um inútil e um irresponsável. Não é com ele que se pode contar para repor a economia de pé. Não cuidará de seu calçado, partirá as vidraças, por descuido, será portador de parasitas...

Acharão alguns, repito-o, que uma obstinada atenção a este gênero de detalhes procede da quesília e do “burocratismo”. Mas é muito freqüente que os inúteis e os irresponsáveis escondam sua natureza lutando aparentemente contra o burocratismo. “Que complicação por causa duma simples ponta de cigarro lançada na escada!” — dizem eles. Eis uma verdadeira inépcia. Lançar pontas de cigarro para o chão e desdenhar do trabalho alheio. Ora, para que as casas-comunas possam desenvolver-se, é preciso que cada locatário, homem ou mulher, dispense atenção a que a limpeza e a ordem reinem em toda a casa. De contrário, terão de encontrar-se, como frequentemente sucede, numa espécie de antro piolhoso, cheio de escarros, e de modo nenhum numa casa-comuna. É preciso combater incansável e impiedosamente essa desenvoltura, essa falta de educação, essa negligência, combatê-la explicando, dando o exemplo, fazendo propaganda, exortando as pessoas e levando-as a tornarem-se responsáveis. Aquele que, sem comentários, sobe uma escada emporcalhada ou atravessa um pátio sujo, é um mau cidadão e um construtor sem consciência.

O exército reflecte os aspectos positivos bem como os aspectos negativos da vida popular. Isso verifica-se totalmente no que respeita è educação econômica. O exército deve a todo o custo elevar-se nesse domínio, nem que seja de um só grau. Esse nível pode ser atingido graças aos esforços conjugados dos quadros dirigentes do próprio exército, de alto a baixo da escada, em correlação com os melhores elementos da classe operária e do campesinato no seu conjunto.

Na época em que o aparelho governamental soviético estava em vias de se formar, o exército mostrava-se impregnado de um espírito “partisan”(2) cujos métodos aplicava. Conduzimos uma luta persistente e impiedosa contra essa mentalidade, o que sem qualquer dúvida produziu importantes resultados: criou-se não só um aparelho de direcção e de administração centralizado, mas o que é ainda essencial, esse mesmo espírito “partisan” foi profundamente posto em causa na consciência dos trabalhadores.

Hoje devemos conduzir uma luta por igual importante: temos de combater todas as formas de indolência, de indiferença, de falta de asseio. De falta de pontualidade, de moleza e de desperdício. Trata-se de graus e matizes diversos de uma mesma doença:

Page 25: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

por um lado, uma atenção insuficiente; por outro uma petulância de mau quilate. É preciso conduzir neste domínio uma acção de envergadura, um combate quotidiano, persistente e sem quebra, no qual se faça intervir, tal como quando nos foi necessário destruir a mentalidade “partisane”, todos os meios disponíveis — a agitação, o exemplo, a exortação e o castigo.

O plano mais grandioso que não leve em conta os detalhes, não passa de pura frivolidade. Para que servirá, por exemplo, o melhor decreto, se, por negligência, não chega a tempo ao seu destino, se é recopiado com erros ou se é lido sem atenção? O que é justo a nível inferior, sê-lo-à também a nível superior.

Somos pobres, mas perdulários. Não conhecemos a pontualidade. Somos negligentes. Somos carentes de asseio. Estas taras mergulham as suas raízes num passado servil, e só poderemos libertar-nos delas progressivamente, graças a uma propaganda obstinada, graças ao exemplo, à demonstração, a um controle minucioso, a uma vigilância e a uma exigência de cada minuto.

Para realizar projectos grandiosos, é preciso dispensar grande atenção aos mais pequenos detalhes!- é essa a palavra de ordem que deve congregar todos os cidadãos conscientes do país quando abordam um novo período de construção e de desenvolvimento cultural.

Notas:

(1) Este capítulo foi escrito há dois anos (Pravda: 1 de Outubro de 1921). Actualmente no exército dispensa-se uma atenção infinitamente maior do que então à manutenção das baionetas e do calçado. Mas, no conjunto, a palavra de ordem: “a atenção deve incidir sobre os detalhes”, conserva ainda hoje todo o seu valor.

(2) Em russo: “partizanssina”: termo pejorativo designando os quadros do partido que querem ser “mais partisans que o próprio partido”, levando finalmente à anarquia e a ausência de disciplina.

Page 26: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

IV - Para construir o modo de vida é preciso conhecê-lo

É o problema do modo de vida que nos mostra, mais claramente do que qualquer outra coisa, em que medida um indivíduo isolado se mostra ser o objecto dos acontecimentos e não o seu sujeito. O modo de vida, isto é, o meio ambiente e os hábitos quotidianos, elabora-se, mais ainda do que a economia ‘nas costas das pessoas’ (expressão de Marx). A criação consciente no domínio do modo de vida ocupou um lugar insignificante na história da humanidade. O modo de vida é a soma das experiências inorganizadas dos indivíduos; transforma-se de maneira de todo espontânea sob a influência da técnica ou das lutas revolucionárias e, no total, reflete muito mais o passado da sociedade do que seu presente.

Entre nós, ao logo dos últimos decênios, um proletariado jovem destacou-se do campesinato e somente em parte da pequena burguesia. O modo de vida desse proletariado reflecte claramente sua origem social. Basta recordar “Os costumes da rua Rasteriaev”, de Gleb Uspenski(1) isto é, isto é, os operários de Tula do último quarto do século XIX? Trata-se de pequenos burgueses ou de camponeses, que na maior parte, perderam toda a esperança de se tornarem integralmente proprietários; é uma mistura de pequena burguesia inculta e de pés descalços.

Desde essa época o proletariado fez progressos gigantescos, decerto bastante mais importantes em política do que quanto ao seu modo de vida e aos seus costumes. O modo de vida é terrivelmente conservador. É certo que a rua Rasteriaev já não existe sob a forma primitiva. As violências inflingidas aos alunos, o servilhismo ante os patrões, o alcoolismo, a delinquência, tudo isso deixou de existir. Mas as relações entre marido e mulher, entre pais e filhos, na família isolada do mundo, estão ainda fortemente impregnados dessa mentalidade Rasteriaev(2). Serão precisos anos ou decênios para escorraçar essa mentalidade do seu último refúgio — O modo de vida individual e familiar — e para remodelar totalmente num espírito colectivista.

Os problemas do modo de vida familiar foram objecto duma discussão particularmente apaixonada quando da reunião dos agitadores moscovitas a que já nos referimos. Era para todos um problema doloroso. Acumulavam-se impressões, observações e sobretudo interrogações, mas nenhumas respostas; e, além disso, as próprias interrogações não encontravam qualquer eco na imprensa nem nas assembléias. Contudo, que imenso campo de investigação, de reflexão e de acção oferece o modo de vida comunista e o das largas massas operárias.

Neste domínio, a nossa literatura artística não nos traz nenhuma ajuda. Pela sua própria natureza, a arte é conservadora, está em atraso sobre a vida, é pouco apta a apreender os fenômenos em vias de formação. “A semana”, de Libedinski(3) suscitou da parte de alguns camaradas um entusiasmo que, confesso, me parece imoderado e perigoso para o jovem autor. Dum ponto de vista formal e não obstante alguns traços de talento, “A semana” tem um caráter didático, e só um trabalho intenso, obstinado e minucioso permitirá a Libendisnki tornar-se um verdadeiro artista. Quero esperar que assim acontecerá. Mas não é este aspecto do problema que nos interessa no presente. O êxito de “A semana” deve-se não às qualidades artísticas da obra, mas a forma “comunista” de encarar a vida que nela descreve. No entanto, sobre esse ponto preciso, a descrição carece de profundidade. O “comitê de província” é-nos apresentado de forma demasiado científica, não raízes profundas, não se integra na

Page 27: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

região. É por isso que “A Semana”, no seu conjunto, se assemelha a um romance em episódios, como essas novelas que descrevem a vida da emigração revolucionária. Decerto que é interessante e instrutivo descrever o “modo de vida” de um comitê da província, mas as dificuldades e o interesse surgem quando a vida de uma organização comunista entra em contato — tão estreitamente como ossos do crânio se interligam — com a vida quotidiana do povo. Deve-se atacar os problemas de forma radical. É por isso que o ponto de junção do partido comunista com as massas populares é o lugar fundamental de todo o acto histórico de colaboração ou oposição.

A teoria comunista está em avanço de vários decênios e, em certos domínios, de vários séculos, sobre a nossa visa quotidiana. Sem isso, o partido comunista não poderia ser um fator histórico de uma imensa força revolucionária. Graças ao seu realismo, a sua flexibilidade dialéctica, a teoria comunista elabora métodos políticos que garantem a sua acção em todos os domínios. Mas a teorias política é uma coisa, e o modo de vida é outra. A política é flexível, enquanto que o modo de vida é imóvel e tenaz. É por isso que no meio operário existem tantos choques quando a consciência se apóia sobre a tradição, choques esses tanto mais violentos quanto não encontram eco. Nem a literatura artística, nem mesmo os jornais, se lhes referem. A nossa imprensa matém-se muda sobre estes problemas. Quanto às novas escolas artísticas que procuram marchar com a revolução, o modo de vida, em geral não existe para elas. Propõem-se criar a vida nova, reparai, mas não representá-la. Não se podem, porém inventar, em todas as suas peças, um novo modo de vida. Pode-se construí-lo a partir de elementos reais e capazes de se desenvolver. Por isso, antes de construir, é preciso conhecer aquilo de que se dispõe. O que é necessário não só para agir sobre o modo de vida, mas em geral para toda a actividade humana consciente. Para poder participar na elaboração do modo de vida, necessita-se conhecer o que existe e quais são as transformações possíveis do material de que se dispõe. Mostrai-nos, e mostrai antes de mais a vós próprios, o que se passa numa fábrica, numa cooperativa, no meio operário num clube, numa escola, na rua numa loja de bebidas, procurai compreender o que aí se passa, isto é, encarai os problemas de tal modo que neles reencontreis os restos do passado, perscrutando ou adivinhando através deles os germes do futuro. Este apelo dirige-se por igual aos homens de letras e aos jornalistas, aos correspondentes operários e aos repórteres. Mostrai-nos a vida real tal como saiu do cadinho revolucionário.

Não é, no entanto, difícil adivinhar que não serão estes votos piedosos que vão fazer mudar nossos escritores. Aqui é necessário pôr e dirigir bem os problemas. O estudo e a análise do modo de vida operário devem antes de mais ser apresentados como uma missão que incumbe aos jornalistas, pelo menos aqueles que sabem usar os olhos e ouvidos; é preciso orientá-los para esse trabalho, dar-lhes instruções, corrigi-los e educá-los, para deles fazer os cronistas da revolução do modo de vida. Ao mesmo tempo, é necessário alargar o ponto de vista dos correspondentes operários. Na verdade, cada um deles poderia elaborar artigos bastantes mais interessantes e instrutivos do que aqueles que actualmente escrevem. Mas para isso é preciso formular as questões de forma reflectida, pôr justamente os problemas, suscitar as discussões e permitir o seu avanço útil.

Para que se eleve a um nível cultural superior, a classe operária, e antes de mais a sua vanguarda, devem refectir o seu modo de vida. E para isso é preciso conhecê-lo. A burguesia, principalmente por intermédio da sua inteligentsia, tinha já resolvido esse

Page 28: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

problema bastante antes de conquistar o poder: ao mesmo tempo que se encontrava ainda na oposição, era já a classe possidente, e os artistas, os poetas e os jornalistas estavam a seu serviço, ajudavam-na a pensar e pensavam por ela.

O século XVIII francês, chamado o século-das-luzes, foi uma época em que os filósofos burgueses analisaram os diferentes aspectos do modo de vida individual e social, esforçando-se por os racionalizar, isto é, por os submeter às exigências da “razão”. Foi assim que encararam não só os problemas do regime político e da igreja, mas também os problemas das relações entre os sexos, da educação das crianças, etc.. É evidente que o simples facto de ter levantado e estudado esses problemas lhes permitiu elevar o nível cultural do individuo, burguês evidentemente, e intelectual antes de mais. No entanto, todos os esforços da filosofia das luzes para racionalizar, isto é, para reconstruir segundo as leis da razão as relações sociais e individuais, se apoiavam na propriedade privada dos meios de produção, que devia constituir a pedra angular da sociedade nova, fundada na razão. A propriedade nova significava o mercado, o jogo cego das forças econômicas não dirigidas pela “razão”. Foi assim que na base das relações econômicas mercantis se elaborou um modo de vida por igual mercantil. Desde que alei do mercado reinava em absoluto, era impossível pensar uma verdadeira racionalização do modo de vida das massas populares. É por isso que a aplicação prática das construções racionalizantes dos filósofos do século XVIII, por vezes tão penetrantes e audaciosas, se mostra extremamente limitada.

Na Alemanha, o século das luzes estende-se pela primeira metade do século XIX. À cabeça do movimento encontra-se a “Jovem Alemanha”, cujos chefes de fila são Heine e Börne. Tratava-se mais uma vez de uma reflexão crítica da ala esquerda da burguesia, da sua inteligentsia, que tinha declarado a guerra à escravatura, a servidão, ao filistinismo, a estupidez pequeno-burguesa e aos preconceitos, e que se esforçavam, mas já com um septicismo maior do que os seus predecessores franceses, por instaurar o reino da razão. Esse movimento confundia-se a seguir com a revolução pequeno-burguesa de 1848, que foi incapaz de derrubar as múltiplas dinastias alemães e, com maior razão, de reconstruir inteiramente a vida humana.

Entre nós, na nossa Rússia atrasada, o movimento das luzes não assumiu a sua importância antes da segunda metade do século XIX. Tchernychevski, Pissarev, Dobroliubov, saídos da escola de Belinski, orientaram a sua crítica não tanto quanto às relações econômicas como sobre a incoerência, o seu carácter reacionário e asiático do modo de vida, opondo ao tipo de homem tradicional um homem novo, um “realista”, um “utilitarista”, que desejava construir a sua vida segundo as leis da razão e que depressa se transformou numa “personalidade crítica”. Esse movimento, que se confundiu com o populismo, representa a forma russa e tardia do Século das Luzes. Mas se os espíritos esclarecidos do século XVIII francês apenas puderam numa muito escassa medida transformar um modo de vida e uns costumes elaborados não pela filosofia mas pelo mercado, se o evidente papel histórico das Luzes na Alemanha foi ainda mais limitado, a influência directa da inteligentsia russa esclarecida sobre o modo de vida e os costumes do povo foi praticamente nula. No fim das contas, o papel histórico do movimento das Luzes na Rússia, incluindo nele o populismo, reduzia-se a preparar as condições do surto dum partido revolucionário proletário.

Só com a tomada do poder pela classe operária se criaram as condições de uma verdadeira e radical transformação do modo de vida. Não se pode racionalizar o modo

Page 29: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

de vida, isto, é transformá-lo segundo as exigências da razão, se não se racionaliza a produção, visto que o modo de vida tem as suas raízes na economia. Só o socialismo assume a tarefa de encarar racionalmente e de submeter à razão toda a atividade econômica do homem. A burguesia por intermédio dos seus elementos mais progressivos, contenta-se, por um lado, com racionalizar a técnica (as ciências naturais, tecnologia, química, as descobertas, a mecanização) e, por outro lado a política (graças ao parlamentarismo), mas não a economia que permanece como área de uma concorrência cega. Essa é a razão porque inconsciência e ignorância continuavam a dominar o modo de vida da sociedade burguesa. A classe operária, que tomou o poder, chama a si a tarefa de submeter a um controle e a uma direção conscientes o fundamento econômico das relações humanas. É exclusivamente isso que permitirá uma construção deliberada do modo de vida.

Mas tal implica que os nossos êxitos no domínio do modo de vida dependam estreitamente dos nossos êxitos do domínio econômico. Sem dúvida que, mesmo considerando a nossa situação econômica actual, poderíamos aumentar a crítica, a iniciativa e a racionalidade no que respeita ao nosso modo de vida. É nisso que conciste uma das tarefas fundamentais da nossa época. Mas é evidente que uma reconstrução radical do modo de vida (libertar a mulher de sua situação de escrava doméstica, educar as crianças num espírito coletivista, libertar o casamento das imposições econômicas, etc.), não é possível senão na medida e que as formas socialistas da economia substituam as formas capitalistas. A análise crítica do modo de vida é hoje a condição necessária para que esse modo de vida, conservador devido as suas tradições milenárias, não se mantenha em atraso em relação as possibilidades de progresso presente e futuro que nos abrem os nossos recursos econômicos atuais. Por outro lado, os êxitos mesmo os mais ínfimos, no domínio do modo de vida, que permitam elevar o nível cultural do operário e da operária, alargam imediatamente as possibilidades de uma racionalização da economia e, por conseqüência, de uma acumulação socialista mais rápida; este último ponto oferece por sua vez possibilidades de novas conquistas no domínio da coletivização do modo de vida. A dependência aqui é dialectica: o factor histórico principal é a economia, mas nós, partido comunista, Estado operário, não podemos agir sobre ela a não ser por intermédio da classe operária, elevando continuamente a qualificação técnica e cultural dos seus elementos constitutivos. O militantismo cultural, num Estado operário, serve o socialismo, e o socialismo significa a expansão da cultura sem classes, duma cultura humana e humanitária.

Notas:

(1) Gleb Uspenski (1843-1902): escritor realista ligado à “escola natural”, cujas obras oferecem um panorama completo da vida do povo miúdo (pequenos funcionários, camponeses, operários). “Os costumes da rua Rasteriaev”, são a sua obra mais importante.

(2) Em russo: “Rast’er’ajevssina”.(3) Libedinski luri Nikolaevitch (1898-1959), um dos primeiros representantes da

jovem prosa soviética. Participa da guerra civil, da qual dá uma descrição romântica na sua primeira novela- “A semana”.

Page 30: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

V - A Vodka, a Igreja e o Cinema

Dois fenômenos importantes imprimiram a sua marca no mundo de vida operário: a jornada de oito horas e a proibição da vodka. A liquidação do monopólio da vodka, que a guerra exigia meios tão avultados que o tzarismo podia renunciar, como a um pecadilho, aos rendimentos que lhe advinham da venda de bebidas alcoólicas. Um bilião de mais ou de menos era a diferença mínima. A revolução foi herdeira da liquidação do monopólio da vodka; sancionou o facto, fundando-se, porém em considerações de princípio. É só depois da conquista do poder pela classe operária — poder construtor consciente de uma economia nova — que a luta do governo contra o alcoolismo, luta ao mesmo tempo cultural, educativa e coerciva, adquire toda a significação histórica. Nesse sentido a interdição da venda devido à guerra imperialista, de nenhum modo modifica o facto fundamental de que a liquidação do alcoolismo vem acrescentar-se ao inventário das conquistas da revolução. Desenvolver, reforçar, organizar, conduzir com êxito uma política anti-alcoólica no país do trabalho renascente — eis a nossa tarefa. E os nossos êxitos econômicos e culturais aumentaram paralelamente com a diminuição do números de “graus”. Nenhuma concessão é aqui possível.

No que respeita à jornada de oito horas, é uma conquista directa da revolução e das mais importantes. Em si mesmo, este fato provoca uma modificação fundamental da vida do operário ao libertá-lo de dois terços da jornada de trabalho. Cria-se assim uma base para transformações radicais do modo de vida, para melhorar a forma de viver, para desenvolver a educação coletiva, etc., mas trata-se apenas de uma base. Quanto mais o tempo de trabalho seja utilizado conscienciosamente, mas a vida do operário se organizará de forma completa e inteligente. É precisamente nisso que consiste, como já se disse, o sentido fundamental da convunção de Outubro: os êxitos econômicos de cada operário conduzem automaticamente a uma elevação material e cultural da classe operária no seu conjunto. “Oito horas de trabalho, oito horas de repouso, oito horas de liberdade” — proclama a velha fórmula do movimento operário. Nas atuais condições, essa fórmula adquire um conteúdo de todo novo: quanto mais as oito horas de trabalho forem produtivas, mais as oito horas de repouso serão reparadoras e higiênicas e mais as oito horas de liberdade serão culturais e enriquecedoras.

Por conseguinte, o problema das distrações apresenta-se como um problema cultural e educativo muito importante. O caráter da criança revela-se e forma-se nos jogos. O caráter do adulto manifesta-se mais claramente nos jogos e nas distrações. Mas as distrações e os jogos podem da mesma forma ocupar um lugar de eleição na formação do caráter de toda uma classe se esta classe é jovem e segue avante como o proletário. O grande utopista francês Fourier, ao insurgir-se contra o ascetismo cristão e contra a repressão da natureza humana, construiu os falanstérios (as comunas do futuro) na base de uma utilização e de uma combinação justa e racional dos instintos e das paixões. Consusbstancia-se aqui um pensamento profundo. Um Estado operário não é nem uma ordem espiritual nem um convento. Consideramos os homens tal como a natureza os criou e tal como a antiga sociedade em parte os educou e em parte os mutilou. Nesse material humano vivo, buscamos qual o ponto em que fixar a alavanca da revolução, do partido e do Estado. O desejo de distração, de entretenimento, de diversão e de riso, é um desejo legítimo da natureza humana. Podemos e devemos proporciona-lhe satisfações cada vez mais artísticas e, ao mesmo tempo, devemos

Page 31: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

fazer do divertimento um instrumento de educação coletiva, sem constrangimentos e dirigismo inoportunos.

Atualmente, neste domínio, o cinema representa um meio que ultrapassa de longe todos os outros. Essa surpreendente invenção penetrou na vida humana com uma rapidez jamais vista no passado. Nas cidades capitalistas, o cinema faz agora parte integrante da vida quotidiana do mesmo modo que os balneários, os estabelecimentos de bebidas, a igreja e as demais instituições necessárias, louváveis ou não. A paixão pelo cinema é ditada pelo desejo de diversão, de ver qualquer coisa de novo, de desconhecido, de rir a até de chorar, não acerca das infelicidades próprias mas das de outrem. Todas essas exigências o cinema satisfaz de forma mais direta, mas espetacular, mais imaginativa e mais viva, sem que nada se exija do espectador, nem mesmo a cultura mais elementar. Daí esta reconhecida atração do espectador pelo cinema, fonte inesgotável de impressões e de sensações. Tal é o ponto de partida, e não só o ponto de partida, mas o domínio imenso a partir do qual se poderá desenvolver a educação socialista.

O fato de até o presente, isto é, desde há quase em breve seis anos, não temos dominado o cinema, mostra até que ponto somos toscos e ignaros, para não dizer simplesmente tacanhos. É um instrumento que se nos oferece o melhor instrumento de propaganda qualquer que esta seja — técnica, cultural, anti-alcoólica, sanitária e política; permite uma propaganda atraente e acessível a todos, que fala a imaginação e que além disso, constitui uma fonte possível de rendimento.

Motivo de atração e distração, o cinema por isso mesmo concorrência às cervejas e às feiras de compra e venda. Não sei quais são atualmente em Paria e Nova Iorque os estabelecimentos mais numerosos — se os bares ou as salas de cinema. Nem quais são os mais rendosos. Mas é claro que o cinema rivaliza antes de mais com as lojas de bebidas no que respeita as oito horas livres. Poderemos nós dominar esse incomparável instrumento? Por que não? O governo tsarista alguns anos toda uma rede de lojas de bebidas, o que lhe rendia milhões de rubros-ouro. Porque não poderia um governo operário organizar uma rede de salas de cinema, porque não poderia implantar esse modo de distração e de educação na vida popular, opondo-se ao alcoolismo e tornando-o ao mesmo tempo uma fonte de receitas? Será isso realizável? Por que não? Não é decerto empresa fácil, mas é em todo o caso mais natural, corresponde melhor a natureza, às forças e as capacidades de um Estado operário do que digamos, a restauração da rede de lojas de bebidas(1). O cinema rivaliza com os bares, mas também com a igreja. E essa concorrência pode tornar-se fatal para a igreja desde que completemos a separação da igreja do Estado socialista por uma união do Estado socialista com o cinema.

Na classe operária russa, o sentimento religioso é praticamente nulo. Nunca, aliás, existiu verdadeiramente. A igreja ortodoxa representava o conjunto de costumes e uma organização política. Não conseguiu penetrar profundamente nas consciências nem ligar os seus dogmas com e os seus cânones aos sentimentos profundos das massas populares. A razão disso é sempre a mesma: a incultura da velha Rússia, inclusive a da sua igreja. É por isso que, ao despertar para a cultura, o operário russo se liberta tão facilmente da igreja à qual está superficialmente ligado. É verdade que para o camponês isso é mais difícil, não por ter penetrado mais profunda e intimamente nos ensinamentos da igreja — não se trata evidentemente disso — mas

Page 32: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

porque o seu modo de vida uniforme e rotineiro está estreitamente ligado aos ritos uniformes e rotineiros da igreja.

O operário — inferimo-nos à massa operária sem partido — mantém com a igreja na maioria dos casos relações fundadas no hábito, habito esse enraizado, sobretudo nas mulheres. Conservam-se os ícones pendurados em casa, porque lá estão há longo tempo. Decoram as paredes, sem que estas pareceriam nuas e não se está a isso habituado. O operário não adquire novos ícones, mas não manifesta o propósito de retirar os antigos. Porque modo celebrar a festa da primavera, a ser fazendo um kulitch ou uma Paskha?(2) E é uso fazê-los benzer para que não falte qualquer coisa. De modo nenhum se freqüenta a igreja por espírito religioso, mas sim porque há lá muita e esplendor, muita gente e se canta bem; a igreja atrai devido a toda uma série de motivos sócio-estéticos, que nem a fábrica, nem a família nem a rua oferecem. A fé não existe ou quase não existe. Em todo o caso, não existe qualquer respeito pela hierarquia eclesiástica, nenhuma confiança na força mágica do rito. Não existe também vontade de cortar com tudo isso. O divertimento e a distração representam um enorme papel nos ritos da igreja. A igreja age por métodos teatrais sobre a vista, o ouvido e o olfato (o incenso!) e, através deles, age sobre a imaginação. No homem, a necessidade de espetáculo — ver e ouvir qualquer coisa de não habitual e de colorido, qualquer coisa para além do acinzentado do quotidiano — é muito grande, é irremovível e persegue-o desde a infância até à velhice. Para libertar as largas massas desse ritual, dessa religiosidade rotineira, a propaganda anti-religiosa não basta, embora seja necessária. A sua influência limita-se apenas de tudo a uma minoria ideologicamente mais informada. Se as largas massas não se submetem a propaganda anti-religiosa, não é porque seja fortes os seus laços com a religião; é, pelo contrário, porque não tem nenhum vínculo ideológico, mantendo com a igreja relações uniformes, rotineiras e automáticas, de que não tem consciência, como basbaque que não recusa participar numa procissão, ou numa solenidade fautosa, ouvir cânticos ou agitar as mãos. É nesse ritualismo sem fundamento ideológico que pela sua inércia se incrusta na consciência, e do qual a crítica por si só não pode triunfar, mas que se pode desagregar por meio de novas formas de vida, por novas distrações, por uma nova espetaculosidade de efeitos culturais. E aqui o pensamento volta-se de novo naturalmente para o instrumento mais poderoso por ser o mais democrático: o cinema. O cinema não carece de uma hierarquia diversificada, de brocados ostentosos, etc.; basta-lhe um pano branco para fazer nascer uma espectaculosidade muito mais penetrante do que a igreja, da mesquita ou da sinagoga mais rica ou mais habituada às experiência teatrais seculares. Na igreja apenas se realiza um ato, aliás sempre igual, ao passo que o cinema mostrará que na vizinhança ou do outro lado da rua, no mesmo dia e à mesma hora, se desenrolam simultaneamente a páscoa pagã, judia e cristã. O cinema diverte, excita a imaginação pela imagem e afasta o desejo de entrar na igreja. Tal é o instrumento de que devemos saber fazer uso custe o que custar!

Notas:

(1) Estas linhas estavam já escritas quando encontrei no último artigo do “Pravda” (datado de 30 de junho) o seguinte extrato de um artigo que o camarada Gordeev tinha enviado a redação: “a indústria cinematográfica é um empreendimento extremamente lucrativo, que oferece imensos benefícios. A utilização judiciosa, racional e sensata do monopólio do cinema poderia

Page 33: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

representar para as nossas finanças uma melhoria semelhante à que trazia o monopólio da venda da vodka às finanças tzaristas”. Mais adiante, o camarada Gordeev expõe considerações práticas sobre a forma de transpor para o cinema o modo de vida soviético. Eis aqui um problema que requer uma análise seria e concreta!

(2) Kulitch e Paskha: bolos pascais. Kulitch: espécie de bolo cilíndrico; paskha: bolo de queijo branco, de forma piramidal.

Page 34: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

VI - Da antiga à nova família

As relações e os acontecimentos internos da família, pela sua própria natureza, são mais difíceis de submeter do que quaisquer outros a um estudo objectivo ou a um cálculo estatístico. É por isso difícil dizer em que medida os laços familiares (na vida e não no papel) se deterioram hoje mais facilmente do que outrora. Neste caso, é preciso contentarmo-nos, em larga medida, com aquilo que se pode ver. Além disso, o que actualmente difere do período pré-revolucionário é que outrora os conflitos e os dramas de uma família operária passavam de todo despercebidos até para a própria massa operária, enquanto que no presente a vida de um grande número de operários de vanguarda que ocupam postos de responsabilidade está patente aos olhos de todos, de tal modo que cada catástrofe familiar se toma objecto de um juízo, ou até por vezes de atoardas.

No entanto, mesmo tendo em conta esta importante restrição, há que reconhecer que a família, incluindo a família proletária, foi fortemente abalada. Este facto, claramente sublinhado quando da assembleia dos agitadores moscovitas, não foi contestado por ninguém. Durante a discussão, o problema foi encarado de diversos modos: referiam-se-lhe uns com angústia, outras com reserva e certos com perplexidade. Em todo o caso, era claro para todos que se estava perante um processo importante, totalmente caótico, cujas formas ora eram doentias, ora repelentes, ora cómicas, ora ainda trágicas, processo este que não tinha ainda deixado aparecer as possibilidades de nova ordem familiar que em si continha. A imprensa, pelo seu lado, só raramente se refere ao desmantelamento da família. Aconteceu-me ler num artigo uma explicação em que se considerava que se devia muito simplesmente ver na degradação da família operária uma manifestação da influência burguesa sobre o proletariado. Semelhante explicação é totalmente falsa. O problema é mais profundo e mais complexo. A influência passada e presente da burguesia é por certo evidente. Mas o processo fundamental deve-se a uma evolução doentia da família proletária em situação de crise, assistindo-se actualmente as primeiras manifestações caóticas desse processo.

É conhecido o papel profundamente destrutivo da guerra sobre a família.

A guerra age nesse domínio de forma puramente mecânica, separando as pessoas por longo tempo e reunindo-as ao acaso. A revolução prolongou e reforçou a influência da guerra. No conjunto, a guerra abalou o que se mantinha apenas pela força de inércia da historia: o regime tzarista, os privilégios de classe e a antiga família. A revolução construiu um Estado novo, resolvendo então o problema mais imediato e mais simples. No plano económico, as coisas passaram-se de modo muito mais complicado. A guerra tinha abalado a antiga ordem económica e a revolução derrubou-a. Hoje construímos qualquer coisa de novo — de momento principalmente a partir do passado, mas um passado reorganizado por nós de uma nova maneira. No domínio económico, não há muito tempo que ultrapassamos o período de destruição, para começar a expandir-nos. Os nossos êxitos são ainda mínimos e estamos ainda bastante longe das formas de uma nova economia socialista. Mas saímos da fase de destruição e de ruína. O momento mais critico foi o dos anos 20-21.

No que respeita ao modo de vida familiar, o período de destruição está longe de ter terminado e encontramo-nos ainda em pleno numa época de desmantelamento e de

Page 35: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

deslocação. É necessário termos clara consciência desse fenômeno. No plano das relações familiares, estamos por assim dizer ainda em 1920-1921, e de modo nenhum em 1923. O modo de vida é muito mais conservador do que a economia e é alias essa a razão por que é de mais difícil compreensão. Em política e em economia, a classe operária procede como um todo; é por isso que coloca a sua vanguarda — o partido comunista — na primeira fila e através dela realiza as suas tarefas históricas. No domínio do modo de vida, a classe operária está dividida em pequenas células familiares. A transformação do poder e mesmo a do regime econômico (com os trabalhadores tornados proprietários das fábricas e oficinas) são tudo factos que, por certo, se reflectem na família, mas só do exterior e por forma indirecta, sem abalar os seus hábitos directamente herdados do passado. A metamorfose do modo de vida e da família exige da classe operária no seu conjunto uma consciência aguda dos problemas e dos esforços a fazer; isso pressupõe, da parte da própria classe operária, um enorme trabalho de educação cultural. A charrua deve rasgar a terra em profundidade. Estabelecer a igualdade política da mulher e do homem no Estado soviético é um dos problemas mais simples. Estabelecer a igualdade económica do trabalhador e da trabalhadora na fábrica, na oficina, no sindicato, é já muito difícil. Mas estabelecer a igualdade efectiva do homem e da mulher na família, eis o que é incomparavelmente mais complicado e exige imensos esforços para revolucionar todo o seu modo de vida. E, no entanto, é evidente que enquanto a igualdade do homem e da mulher não fôr atingida na família, não se poderá falar seriamente da sua igualdade na produção nem mesmo da sua igualdade política, pois se a mulher continua escravizada à família, à cozinha, à barrela e à costura, as suas possibilidades de agir na vida social e na vida do Estado conservam-se reduzidas em extremo.

Tomar o poder foi o mais simples. Mas isso ocupou todas as nossas forças durante o período da revolução e exigiu inumeráveis sacrifícios. A guerra civil teve necessidade de medidas extremamente austeras. Os espíritos triviais e pequeno-burgueses denunciavam a selvajaria dos costumes, a sangrenta corrupção do proletariado, etc. Mas, de facto, através das medidas de constrangimento impostas pela revolução, o proletariado lutava por uma nova cultura, por um verdadeiro humanismo. No domínio econômico, durante os quatro a cinco primeiros anos do regime, conhecemos um período de destruição, de completa degradação da produtividade. Os inimigos viam nisso, ou queriam ver, o apodrecimento do regime soviético. Mas, de facto, tratava-se unicamente duma inevitável etapa de destruição das antigas formas da economia e das primeiras e frágeis tentativas para criar outras novas.No domínio da família e do modo de vida houve também um período inevitável de deslocação de todas as formas antigas e tradicionais, herdadas do passado. Mas esse período de crise e de destruição é mais tardio, tem mais longa duração, é mais penoso e mais doloroso, ainda que as suas formas, em extremo parcelizadas, não sejam sempre visíveis quando de um exame superficial. É necessário termos clara consciência dessas fracturas nos domínios político, económico e do modo de vida, para não nos assustarmos com os fenómenos que observamos e, em vez disso, os avaliar com exactidão, isto é, para compreender por que se manifestam na classe operária e para agir sobre eles de forma consciente no sentido de uma socialização das formas do modo de vida.

Não nos desorientemos, repito, visto que já se fizeram ouvir vozes temerosas. Durante a reunião dos agitadores moscovitas, certos camaradas sublinharam, com justificada inquietação, a facilidade com que se rompem os antigos laços familiares e se atam

Page 36: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

novos laços, por igual pouco sólidos. A mãe e os filhos são aqueles que com isso mais sofrem. Por outro lado, quem dentre nós não terá escutado essas ladaínhas sobre a “decadência” dos costumes da juventude soviética, particularmente dos komsomols. Essas lamentações não são por certo todas exageradas e possuem um fundo de verdade. Se encararmos as coisas de forma relativa, há que lutar para elevar a cultura e a personalidade do individuo. Mas se se coloca correctamente o problema, sem nos deixarmos arrastar por um moralismo reaccionário ou por uma melancolia sentimental, apercebemo-nos de que é preciso, antes de mais, conhecer o que existe e compreender o que se passa.

Como já se disse, acontecimentos de importância considerável — a guerra e a revolução — subverteram o modo de vida familiar, trouxeram consigo o pensamento crítico, a reorganização consciente e a reavaliação das relações familiares e do modo de vida quotidiano. É precisamente a combinação da força mecânica desses grandiosos acontecimentos com a força critica do pensamento que explica, no domínio da família, o período destrutivo que hoje conhecemos. É somente hoje, após a tomada do poder, que o operário russo dá os seus primeiros passos na via da cultura. Sob a influência de abalos profundos, a personalidade subtrai-se pela primeira vez às formas e as relações impostas pela rotina e a tradição da Igreja; será estranho que a sua revolta individual contra a antiga ordem assuma de inicio formas anárquicas ou, falando mais grosseiramente, formas desenfreadas? O mesmo observamos na política, na economia e no exército: anarco-individualismo, “esquerdismos” de toda a espécie, espírito “partisan”, mania das reuniões. Será afinal estranho que esse processo encontre a sua mais intima, e logo a sua mais dolorosa expressão, no domínio da família? Neste caso, a personalidade libertada que quer construir a sua vida de forma nova e não segundo a tradição, manifesta-se pelo desregramento, o “vício” e outros males evocados no decurso da assembléia de Moscovo.

O marido, arrancado pela mobilização às suas condições de vida habituais, toma-se na frente um cidadão revolucionário. É objecto de uma imensa revolução interior. O seu horizonte alarga-se, as suas exigências espirituais elevam-se e tornam-se mais complexas. Ei-lo um outro homem. Regressa à família. Tudo ou quase tudo ali permanece como antes. A antiga unidade familiar desapareceu, enquanto que uma nova unidade não surgiu. A surpresa de parte a parte transforma-se em descontentamento. O descontentamento em irritação. A irritação leva a separação.

O marido, comunista, faz uma vida social activa, progride e encontra nela o sentido da sua vida pessoal; Mas a mulher, também comunista, deseja tomar parte no trabalho da colectividade, participar nas reuniões, trabalhar no Soviete ou no sindicato. A família desagrega-se pouco a pouco ou a intimidade familiar desaparece, os conflitos multiplicam-se, o que suscita uma irritação mútua que conduz ao divorcio.

O marido é comunista. A mulher não tem partido. O marido é absorvido pelo seu trabalho de militante, a mulher está, tal como antes, confinada ao circulo familiar. As relações são “pacificas”, fundando-se de facto sobre a indiferença mútua. Mas eis que na célula se decide que os camaradas devem pôr de parte os ícones. O marido considera que isso é natural. Mas, para a mulher — é um drama. E este pretexto verdadeiramente fortuito revela que abismo espiritual separa o marido da mulher. As relações envenenam-se e desfecham na separação.

Page 37: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Uma velha família, dez ou quinze anos de vida em comum. O marido é um operário consciencioso, um bom pai de família, e a mulher gosta do seu lar e dispensa toda a sua energia à família. O acaso põe-na em contacto com uma organização feminina. Um novo mundo se abre para ela. A sua energia encontra ai um campo de acção muito mais vasto. Na família, é a derrocada. O marido zanga-se, a mulher vê-se ofendida na sua dignidade de cidadã. É o divórcio.

Poder-se-ia multiplicar até ao infinito o número destes dramas familiares que conduzem sempre ao mesmo resultado: o divórcio. Mas citamos aqui os exemplos mais correntes. Todos tem por denominador comum a linha de separação entre os elementos comunistas e os sem partido. Mas a decadência da família (da antiga família) não se limita apenas aos elementos de vanguarda da classe operária, mais sensíveis às novas condições; penetra mais profundamente. No fim de contas, a vanguarda comunista experimenta mais cedo e mais intensamente o que é mais ou menos inevitável para a classe no seu conjunto. Estes fenômenos — reformulação da vida pessoal, exigências novas no que respeita a família — ultrapassa com toda a evidência o domínio em que o partido comunista entra em contacto com a classe operária. A instituição do casamento civil, por si só, não pode deixar de dar um golpe mortal na antiga família consagrada pela Igreja e que não é mais do que uma fachada. Quanto mais os laços eram frágeis, mais a unidade da família se limitava ao aspecto exterior, aparente e em parte ritual das relações. Ao destruir o rito golpeou-se por isso mesmo a família. O ritual, vazio de conteúdo objectivo e não mais reconhecido pelo Estado, apenas se mantém pela sua inércia, servindo de muleta a família tradicional. Mas se não existem laços sólidos no interior da própria família, se esta não perdura a não ser pela força da inércia, cada golpe que se lhe disfere do exterior é capaz de a destruir, reduzindo a nada o seu carácter ritual. E, na nossa época, a família sofreu golpes como nunca antes. Eis porque ela vacila, eis porque se desloca e cai em ruínas, eis porque se refaz e se desagrega de novo. O modo de vida é submetido a rude prova por esta critica severa e dolorosa para a família. Não se fazem omoletas sem partir os ovos.

Vê-se surgir elementos da família de um tipo novo? Sem qualquer dúvida.

Mas é preciso fazer-se uma idéia clara da natureza desses elementos e da maneira como se formam. Como noutros domínios, é necessário distinguir aqui as condições materiais das condições psíquicas ou, ainda, as condições objectivas das condições subjectivas. No plano psíquico, a aparição de uma família de tipo novo e de novas relações humanas, equivale para nós no conjunto ao progresso cultural da classe operaria, ao desenvolvimento da personalidade, a uma melhoria das suas necessidades e da sua disciplina interna. Deste ponto de vista, a revolução em si mesma representa decerto um grande passo em frente, e os fenômenos mais penosos do desmantelamento da família são unicamente a expressão dolorosa do despertar da classe operária e o desabrochar da personalidade do individuo nessa classe. Assim, todo o nosso trabalho cultural — aquele que fazemos e, em particular, aquele que só nós devemos fazer — deve servir para estabelecer relações e uma família dum tipo novo. Sem a melhoria do nível cultural individual do operário e da operária, essa família de um tipo novo e superior não existe, porque, nesse domínio, só pode claramente tratar-se de disciplina interior e não de constricção exterior. E a força dessa disciplina pessoal define-se pela vida que se faz no interior da família e pelo conjunto e a natureza dos laços que unem o marido e a mulher.

Page 38: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Mais uma vez, as condições de aparição de um modo de vida e de uma família de tipo novo não podem separar-se da obra geral de construção socialista. O governo operário deve valorizar-se para que seja possível organizar de modo sério e adequado a educação colectiva das crianças, para que seja possível libertar a família da cozinha e das limpezas A colectivização da economia familiar e da educação das crianças é impensável sem um enriquecimento de toda a nossa economia em conjunto. Temos necessidade da acumulação socialista. Só nessas condições poderemos libertar a família das funções e ocupações que a sobrecarregam e a destróiem. A lavagem de roupas deve ser feita numa boa lavandaria colectiva. As refeições devem ser tornadas num bom restaurante colectivo. Os vestuários devem ser confeccionados num atelier de costura. As crianças devem ser educadas por bons pedagogos que nisso encontrarão o seu verdadeiro emprego. Desde então, os laços do marido e da mulher deixarão de ser entravadas pelo que lhes é exterior, supérfluo, acrescentado e ocasional. Um e outro deixarão de se envenenar mutuamente a existência. Ver-se-à por fim aparecer uma verdadeira igualdade de direito. Os laços serão unicamente definidos pela atracção mútua. E é precisamente por essa razão que serão mais sólidos, diferentes decerto para cada um mas para ninguém constritivos.

Assim, uma nova vida conduz a família de tipo novo: a) a educação da classe e do individuo na classe, e b) enriquecimento material da classe que forma o Estado. Estes mecanismos estão estreitamente ligados entre si.

Entenda-se bem que o que se acaba de dizer de modo nenhum significa que exista um momento exacto de desenvolvimento material favorável à aparição imediata desta nova família. Não, a formação da nova família é possível a partir do presente. É verdade que o Estado não pode ainda encarregar-se da educação colectiva das crianças, da criação de lavandarias colectivas nas quais as roupas não sejam rasgadas ou roubadas. Mas isso em nada impede as famílias mais progressistas de tomar a iniciativa de se reagruparem desde já numa base colectivista. Semelhantes experiências devem, por certo, ser conduzidas com a maior prudência a fim de que os meios técnicos de ordenação colectiva correspondam aos interesses e as exigências do próprio grupo e proporcionem a todos os membros vantagens evidentes, mesmo que ainda mínimas, nos primeiros tempos.

Há tempos, o camarada Semachko(1) escrevia a propósito da reconstrução do nosso modo de vida familiar:

“É preciso que sejamos demonstrativos; não se obterá grande coisa se nos limitarmos a tomadas de posição ou mesmo à propaganda. Mas o exemplo e a demonstração terão mais impacto do que um milhar de brochuras bem escritas. A melhor forma de conduzir com sucesso essa propaganda consiste em utilizar o método que, na pratica cirúrgica, se chama a transplantação. Quando a pele é arrancada numa grande área do corpo (por efeito de uma ferida ou de uma queimadura), quando não há esperanças que a pele renasça sobre essa área, os cirurgiões destacam pedaços de pele de uma parte sã e aplicam-na sobre a parte nua; a pele enxerta-se e esses pequenos pedaços começam a estender-se, tornam-se cada vez maiores e recobrem por fim toda a superfície afectada.

Page 39: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

A mesma coisa se passará com esta propaganda demonstrativa: se, numa fábrica ou numa oficina, se adopta um modo de vida comunista, outras empresas seguirão esse exemplo”. (Noticias do Comitê Central, n° 8, de 4 de Abril de 1923. N. Semachko: “O morto aproveita do vivo”).

A experiência dessas colectividades familiares, que constituem uma primeira aproximação, ainda que muito imperfeita, do modo de vida comunista, deve ser submetida a um estudo e a uma análise minuciosos. É preciso que o poder, e em primeiro lugar os conselhos e os organismos económicos, dêm o seu apoio a estas iniciativas pariciais. A construção de habitações — pois vamos, apesar de tudo, tratar de construir alojamentos! — deve ser encarada de acordo com as exigências dos lares familiares. Os primeiros êxitos evidentes e indiscutíveis neste domínio, mesmo quando limitados, incitarão inevitavelmente camadas mais largas a organizar-se da mesma maneira. Quanto a uma iniciativa planificada vinda de cima, as coisas não se apresentam ainda maduras para isso, nem do ponto de vista dos recursos materiais do Estado nem do ponto de vista da preparação do próprio proletariado. Actualmente não se pode arrancar nesta matéria a não ser com a criação de lares demonstrativos. Será necessário adquirir progressiva segurança, sem querer ir demasiado longe e sem cair no fantástico burocrático. Num dado momento será o Estado que se encarregará desses problemas, por intermédio dos conselhos locais, das cooperativas, etc., que generalizará o trabalho já feito, que o desenvolverá e aprofundará. Deste modo, a humanidade, como diz Engels, “passará do reino da necessidade para o reino da liberdade”.

Notas:

(1) Semachko Nicolas Alexandrovitch (1874-1949): foi o primeiro comissário do povo para a saúde publica. Desenvolveu a profilaxia, a política de defesa da mãe e da criança, etc.

Page 40: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

VII - A família e os ritos

Existem três momentos rituais fundamentais na vida do homem e da família, através dos quais a Igreja acorrenta o operário, pouco crente ou mesmo descrente: o nascimento, o casamento e a morte. O governo operário afastou-se do ritual da Igreja; explicou aos cidadão que tinham o direito de nascer, de casar e de morrer sem recorrer a gastos nem a incantação mágicas desses indivíduos vestidos de sotaina ou de outros trajes sacerdotais. Mas o modo de vida tem bastante mais dificuldade do que o governo em se desfazer dos ritos. A vida dos trabalhadores é demasiado monótona (demasiado uniforme) e essa mesma monotonia esgota o sistema nervoso. De onde a necessidade do álcool: uma pequena garrafa encerra todo um mundo de imagens. De onde a necessidade da Igreja com todo o seu ritual. Como festejar um nascimento ou um casamento da família? Como homenagear um parente que acaba de morrer? É sobre esta necessidade de sublinhar, de celebrar, de encarecer as principais etapas da vida, que se apoia o ritual da Igreja.

Que opor-lhe? Opomos, é certo, às superstições em que assenta a base do ritual, a critica marxista, a relação objectiva com a natureza e as suas forças. Mas esta propaganda cientifica e critica não resolve o problema: desde logo, porque não atinge ainda, nem atingirá durante longo tempo, mais do que uma minoria de pessoas; depois, porque essa própria minoria sente a necessidade de encarecer, de elevar, de enobrecer a sua vida pessoal, pelo menos nos momentos mais importantes.

O Estado operário tem já as suas festas, os seus cortejos, os seus desfiles, as suas paradas, os seus espectáculos simbólicos, a sua teatralidade. É facto que essa teatralidade recorda muito a do passado, que o imita e que dele é em parte continuação directa. Mas o essencial do simbolismo revolucionário é novo, claro e poderoso: a bandeira vermelha, a foice e o martelo, a estrela vermelha, o operário e o camponês, o camarada, a Internacional. Ora, na célula familiar, concentrada em si mesma, esta inovação é praticamente inexistente e em todo o caso, é insuficiente. No entanto, a vida do individuo está estreitamente ligada à sua vida familiar. É isso que explica que, na família, os elementos mais conservadores se sobreponham com frequência nas relações quotidianas; conserva-se os ícones, perdura o baptismo e os funerais religiosos, pois os elementos revolucionários da família nada tem a contrapor-lhe. Os argumentos teóricos agem apenas sobre o espírito, enquanto que a teatralidade ritual age sobre os sentimentos e sobre a imaginação; a sua influência é portanto bastante maior. É por isso que, no próprio meio comunista, se toma necessário opor a esse antigo ritual formas novas e um simbolismo novo, não só ao nível oficial em que já se encontram largamente implantadas mas também ao nível da família. Há entre os operários uma tendência para festejar a data do nascimento e não o santo do dia, para dar ao recém-nascido não o nome de um santo mas um prenome novo, que simbolize os factos, acontecimentos ou idéias que lhes estão ligados. Por ocasião da assembléia dos agitadores de Moscovo, soube pela primeira vez que, em relação as raparigas, o prenome Outubrina era muito popular. Foi também citado o de Ninel (Lenine ao inverso), REP (Revolução, Electrificação, Paz(1)). Para se mostrar que se está ligado a revolução dá-se as crianças o prenome Vladimir, Ilitch e mesmo Lenine (empregado como prenome), Rosa (em recordação de Rosa Luxemburgo), etc. Em certos casos, um nascimento é assinalado por um rito humorístico: o recém-nascido é “examinado” pelo comité de fábrica, e a seguir é redigida uma “resolução”

Page 41: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

na qual se reconhece que o recém-nascido faz parte dos cidadãos da URSS. Após o que se abanca à mesa.

Algumas vezes, nas famílias operárias, a entrada de uma criança na escola é também ocasião para uma festa. É um acontecimento muito importante, porque se liga a escolha de uma profissão, de um rumo de vida. O sindicato pode aqui intervir de modo consciente. No conjunto, serão precisamente os sindicatos que sem dúvida ocuparão um lugar destacado na criação e organização das formas do novo modo de vida. As confrarias da Idade Média eram poderosas justamente porque englobavam a vida do aluno, do aprendiz e do mestre. Ocupavam-se da criança desde o seu nascimento, acompanhavam-na até a porta da escola, conduziam-na ao altar no dia do casamento e faziam-lhe o enterro após cumprida a sua missão. As confrarias não se limitavam apenas a reunir as pessoas da mesma profissão; organizavam todo o modo de vida. É provavelmente neste sentido que, naturalmente, o novo modo de vida, ao contrário do modo de vida da Idade Média, estará totalmente liberto da Igreja e das suas superstições e que se fundara no desejo de utilizar cada conquista científica e técnica para enriquecer e embelezar a vida do homem.

O casamento dispensa mais facilmente a cerimónia. Ainda que, mesma aqui, tenha havido muitos “mal-entendidos” e exclusões do Partido em consequência de casamentos celebrados na Igreja. O modo de vida tem dificuldade em habituar-se a um casamento singelo, sem a pompa de qualquer teatralidade.

É porém o enterro que apresenta muito maiores dificuldades. Enterrar um morto sem ofícios é tão inacostumado, estranho e vergonhoso como criar uma criança sem ter sido baptizada. No caso em que o funeral, devido à personalidade do defunto, tem um significado político, surge um novo ritual espectacular e impregnado de simbolismo revolucionário: acompanham-no bandeiras vermelhas, toca-se uma marcha fúnebre revolucionária, dispara-se uma salva em sinal de adeus. Alguns dos participantes na assembleia de Moscovo sublinharam a importância da incineração e propuseram que, por exemplo, se comece por incinerar os corpos dos revolucionários eminentes, o que seria justamente um poderoso meio de luta anti-religiosa. Mas, a incineração, à qual já seria tempo de recorrer, não significa que se abandone os cortejos, os discursos, as marchas fúnebres e as salvas. A necessidade de exprimir os próprios sentimentos é uma necessidade poderosa e legítima.

Se no passado a espectaculosidade do modo de vida estava estreitamente ligada a Igreja, isso de modo nenhum significa, como já se disse, que seja impossível dissociar uma da outra. A separação entre o teatro e a Igreja ocorreu bastante antes que entre a Igreja e o Estado. Nos primeiros tempos, a Igreja lutou contra o teatro “público” porque com razão via nele um perigoso concorrente as suas encenações. O teatro sobreviveu, mas como um espectáculo especial, limitado por quatro paredes. E na vida quotidiana, a Igreja conservou como outrora o monopólio das encenações. Algumas sociedades secretas, como a Maçonaria, fizeram-lhe concorrência. Mas elas próprias estavam impregnadas de um misticismo mundano. É possível criar um ”ritual” revolucionário ao nível do modo de vida (utilizamos a palavra “ritual” à falta de termo mais ajustado) e opor esse ritual ao da Igreja, não só quanto aos acontecimentos de carácter colectivo mas também familiar. Desde agora, uma orquestra ou uma banda que executa uma marcha fúnebre pode com frequência fazer concorrência a um ofício religioso. E devemos por certo utilizar essa orquestra para

Page 42: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

lutar contra o ritual da Igreja, fundado na crença servil num outro mundo, num mundo em que se será compensado em cêntuplo pelo mal e a mediocridade da vida terrestre. O cinema pode ser-nos ainda mais útil.

Esse modo de vida, essa teatralidade dum género novo, só podem desenvolver-se paralelamente ao desenvolvimento da alfabetização e do bem-estar material. Temos todos os motivos para estudar esse mecanismo com a maior atenção. Não pode por certo tratar-se de uma intervenção constrangente, vinda de cima, isto é, de uma burocratização dos novos fenómenos do modo de vida. Só a criação colectiva das largas massas, ajudada pela fantasia, pela imaginação criadora e pela iniciativa dos artistas, pode conduzir-nos, ao longo dos anos e decénios vindouros, até à via de novas formas de vida, espiritualizadas, enobrecidas e impregnadas de espectaculosidade colectiva. No entanto, e sem regulamentar esse processo criativo, é preciso desde já e por todos os meios ajudá-lo a desenvolver-se. E para isso é antes de mais necessário restituir a vista a esse cego que é o modo de vida. É preciso estudar atentamente tudo o que se passa na família operária e na família soviética em geral. Cada inovação, cada embrião ou mesmo cada alusão a essas novas formas deve ser referido na imprensa e levado ao conhecimento de todos, a fim de despertar fantasia e o interesse e de dar assim um impulso a criação colectiva de um novo modo de vida.

Esta tarefa incumbe acima de tudo ao komsomol. O que se tenha imaginado ou empreendido não resultará obrigatoriamente. Que mal há nisso? As escolhas serão feitas pouco a pouco. A vida nova engendrará as formas que lhes convêm. E, afinal, será mais rica, melhor, mais vasta, mais bela e mais luminosa. É bem esse o fundo do problema.

Notas:

(1) Em russo — Rem: “revolucija, elektrifikacija, mir”.

Page 43: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

VIII - As atenções e a delicadeza como condições necessárias para relações harmoniosas

Numa das nossas múltiplas reuniões criticas, o camarada Kisselev, presidente do Sovnarkom, sublinhou ou pelo menos lembrou um aspecto muito importante do problema do aparelho de Estado. Tratava-se de saber como, de que maneira, este entrava em contacto com a população, como “discutia” com ela, como eram recebidos os visitantes, os “pleiteantes”, os solicitantes, como eram considerados e atendidos, que linguagem era usada e se havia diálogo em quaisquer circunstâncias... Também isso representa um aspecto importante do “modo de vida”.

Por outro lado, importa também distinguir aqui duas coisas: a forma e o fundo.

Por certo que, em todas as democracias civilizadas, a burocracia “está ao serviço” do povo; o que não a impede de formar, acima do povo, uma casta profissional estreitamente homogénea; e se a burocracia “oferece” realmente os “seus serviços” aos magnatas capitalistas, isto é, se rasteja em face deles, mostra-se cheia de altiveza perante o camponês ou o operário e dirige-se-lhes como se fossem objectos (isto tanto em França como na America ou na Suíça). Mas ai, nas democracias “civilizadas”, isso reveste-se de certa polidez, de afabilidade — mais acentuada num dado país, menos aparente num outro. Cada vez que seja necessário, (o que sucede diariamente) o punho da policia rompe sem dificuldade essa cortina de delicadeza. Agride-se os grevistas nos comissariados de Paris, de Nova Iorque e de outras grandes cidades. Mas no conjunto a delicadeza “democrática”, oficial, que orienta as relações da burocracia com as populações, é o produto e a consequência da revolução burguesa: a exploração do homem pelo homem é uma constante, mas a sua forma mudou, é menos “grosseira”, dissimula-se com os cenários da igualdade, recobre-se dum verniz de boas maneiras.

O aparelho da burocracia soviética é particular e complexo; transporta consigo os hábitos de diversas épocas, ao mesmo tempo que os embriões de futuras relações humanas. Regra geral, a delicadeza não existe entre nós. Em contrapartida, a grosseria herdada do passado manifesta-se em excesso. Mas aqui também, a grosseria não é sempre a mesma. Há a grosseria simples, a do mujik, decerto não isenta de sagacidade mas que não humilha. Esta porém torna-se insuportável e objectivamente reaccionária quando os nossos jovens literários a utilizam para não se sabe qual conquista “artística’. Os trabalhadores de vanguarda são essencialmente hostis a este género de falsa rudeza, porque vêem com razão na grosseria de linguagem e de maneiras vestígios da escravatura e desejam fazer sua a linguagem da cultura, com as limitações que ela implica. Mas que fique isto dito de passagem...

Além desta grosseria simplista, indiferenciada, camponesa e passiva, por assim dizer, existe urna particular grosseria “revolucionária” — que provérn da impaciência, do ardente desejo de fazer melhor, da irritação que nela suscita a nossa “oblomoveria”(1) e da tensão nervosa. Por certo que essa grosseria, como tal, carece também de finura, e nós combatêmo-la; mas, no fundo, alimenta-se com frequência da mesma fonte revolucionária que, no decurso destes últimos anos, mais de uma vez removeu montanhas. Aqui, não é o fundo das coisas que deve ser alterado, porque é são na maioria dos casos, mas sim a sua forma cheia de rudeza...

Page 44: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Existe porém ainda entre nós — e é aí que mais dói — um outro tipo de grosseria, uma grosseria ancestral, a do rico, do “barine”, que vem da época da servidão, penetrada de uma odiosa baixeza. Ainda não desapareceu e não é fácil livrarmo-nos dela. Nos organismos de Moscovo, especialmente nos mais importantes, essa superioridade de grande senhor não se manifesta na sua forma mais combativa — não se grita nem gesticula perante os solicitantes — mas apresenta-se com mais frequência sob o aspecto de um formalismo desumanizado. Não é por certo esta a única fonte do “burocratisrno e da lentidão administrativa”, mas é um dos seus factores essenciais: uma total indiferença perante os indivíduos e o seu trabalho. Se fosse possível registrar numa fita particularmente sensível as consultas, as respostas, as explicações, as ordens e as prescrições que se verificam em todos os departamentos de um organismo burocrático de Moscovo no decurso de um só dia. obter-se-ia um conjunto particularmente demonstrativo. E é ainda pior na província, especialmente onde a cidade entra em contacto com o campo.

O burocratismo é um fenómeno muito complexo e em absoluto não homogéneo; é antes uma combinação de fenómenos, de numerosos mecanismos que surgiram em diversos momentos da historia. E as razoes que mantêm e alimentam o burocratismo são também muito diversificadas. A nossa incultura, o nosso atraso, a nossa ignorância, ocupam o primeiro lugar. A desorganização geral do nosso aparelho governamental, sem cessar reconstruído (o que é inevitável em período revolucionário), arrasta consigo um grande número de fricções que favorecem enormemente o burocratismo. É precisamente nessas condições que a heterogeneidade social do aparelho soviético e, em particular, a existência de hábitos senhoriais e burgueses, se manifesta nas suas formas mais repelentes.

Por isso mesmo, a luta contra o burocratismo não pode deixar de assumir um carácter diversificado. Na base, há que lutar contra a incultura, contra a ignorância, contra a imundície, contra a miséria. O melhoramento técnico do aparelho burocrático, a compressão dos quadros, uma maior regularidade, um maior rigor e uma maior exactidão no trabalho bem como outras medidas do mesmo tipo não resolvem, por certo, o problema histórico do burocratismo, mas permitem reduzir-lhe os aspectos mais negativos. A formação de uma burocracia soviética de um tipo novo e a formação de “especialistas”, é extremamente importante. E aqui, claro está, não há que ter ilusões sobre a dificuldade que representa, numa época de transição e dados os hábitos herdados do passado, a educação de dezenas de milhar de novos trabalhadores fundada em bases novas, isto é, num espírito de trabalho, de simplicidade e de humanidade. É coisa difícil mas não impossível; somente que isso não será feito de uma só vez mas progressivamente, graças a promoção de ”séries” cada vez melhores de jovens trabalhadores soviéticos.

Todas estas medidas, encaradas a mais ou menos longo prazo, em nenhum caso, contudo, excluem uma luta imediata contra esse desdém administrativo em relação ao individuo e ao seu caso, contra esse niilismo de plumitivo que oculta, umas vezes, a indiferença em relação seja ao que for, outras vezes a própria incapacidade, outras ainda um desejo consciente de sabotagem ou até a aversão orgânica de uma classe degradada para com a classe que a degradou. É aqui que se encontra um dos pontos fundamentais de apoio da alavanca revolucionária;

Page 45: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

É preciso que o homem simples, o humilde trabalhador, deixe de recear as instituições administrativas às quais lhe acontece ter que recorrer. É preciso que, ao acolhê-lo, se lhe manifeste atenção tanto maior quanto ele se mostra mais carente, mais obscuro e mais ignorante. E, no fundo, é preciso que se tente ajudá-lo e não simplesmente afugentá-lo. Para isso, além de todas as demais medidas, é preciso que a opinião pública seja constantemente informada do problema, é preciso que nisso participe da forma mais larga possível, e é preciso ainda e em particular que este problema desperte o interesse de todos os elementos realmente soviéticos, revolucionários, comunistas ou muito simplesmente conscientes do próprio aparelho de Estado; e esses elementos, felizmente, são numerosos: e sobre eles que repousa o aparelho de Estado e é graças a eles que progride.

Neste domínio, a imprensa pode desempenhar um papel singularmente decisivo.

Os nossos jornais, infelizmente, não fornecem em geral mais do que material educativo extremamente restrito no que respeita ao modo de vida. E quando dão uma informação, é frequentemente sob forma de relatórios monótonos: existe — pode ler-se neles — uma fábrica, a fábrica tal; nessa fábrica, existe um comité e um director; o comité faz o seu trabalho de comité e o director o seu trabalho de director, etc. E, contudo, o nosso modo de vida regurgita de episódios, de conflitos, de contradições manifestas e instrutivas, em especial quando o aparelho de Estado entra em contacto com a população. Apenas é preciso ter coragem de arregaçar as mangas e de meter mãos a obra...

É claro que esse trabalho de denúncia e de educação deve ser isento de toda a maledicência, de toda a intriga, de toda a acusação gratuita, de toda a manigância e de toda a demagogia. Mas tal trabalho, conduzido correctamente, é necessário e vital, parecendo-me que os responsáveis dos jornais devem encarar os meios de o realizar.

Para isso, precisamos de jornalistas que aliem a ingenuosidade do repórter americano à honestidade soviética. E eles existem. O camarada Sosnovski ajudar-nos-á a mobilizá-los. E como lema do seu mandato (sem por isso recearem assemelhar-se a Kuzma Prutkov), é preciso inscrever: vamos até ao fundo das coisas!

O “calendário” da luta poderia ser mais ou menos o seguinte: se durante os próximos seis meses chegarmos a denunciar em toda a URSS — com exactidão e imparcialidade, após duas ou três constatações — uma centena de burocratas que manifestem um desprezo de raiz para com os nossos trabalhadores; se, apos ter divulgado isso por todo o país e ter talvez mesmo organizado um processo público, excluirmos essa centena de burocratas do aparelho do partido sem permitir nunca a sua reintegração seja aonde for — estariamos perante um bom princípio. Não é par certo possível esperar milagres imediatos. Mas quando se trata de substituir o antigo pelo novo, um pequeno passo à frente é mais valioso do que as mais longas discussões.

Notas:

(1) Em russo: “oblomovssina”: neologismo formado a partir do nome do herói do romance de Gontcharov — “Oblomov”, prototipo do preguiçoso consciente de o ser e incapaz de se corrigir.

Page 46: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

IX - É preciso lutar por uma liguagem depurada

Por ocasião de uma assembleia geral na fábrica de calçado “A Comuna de Paris”, foi decidido pôr fim à linguagem grosseira e aplicar multas pelos “palavrões”, etc.

Comparado com as “palavras” de Lord Curzon(1), a quem não se pode ainda aplicar multas, trata-se de um pequeno facto no turbilhão da nossa época, mas é um facto significativo, que só adquirirá toda a sua importância em relação ao eco que essa iniciativa venha a encontrar.

A grosseria de linguagem — em particular a grosseria russa— — é uma herança da escravidão, da humilhação e do desprezo pela dignidade humana, tanto a alheia como a própria. Seria necessário perguntar aos filólogos, aos linguistas e aos folcloristas se se encontra noutros países uma grosseria tão desenfreada, tão repugnante e tão chocante como entre nós. Tanto quanto sei, não existe em nenhuma outra parte. Nas camadas populares, a grosseria exprime o desespero, a irritação e, acima de tudo, uma situação de escravo sem esperança e sem saída. Mas essa grosseria nas camadas superiores, na boca de um senhor ou do intendente de um domínio, era a expressão de uma superioridade de classe, do firme e do inabalável direito do esclavagista. Diz-se que os provérbios são a expressão da sabedoria popular, são-no também da ignorância, dos preconceitos e da escravatura. “Um palavrão depressa se esquece”, diz um antigo provérbio russo que não reflecte apenas a escravatura mas também a sua aceitação passiva. Dois tipos de grosseria — a dos “barines”, dos funcionários, da polícia, uma grosseria de repleto, de voz cheia, e uma outra, esfomeada e desesperada — coloriram a vida russa com seus tons repugnantes. E a revolução herdou isso, como muitas outras coisas.

Mas a revolução é acima de tudo o despertar da personalidade humana em camadas que outrora nenhuma personalidade possuíam. Apesar de toda a crueza e sangurenta ferocidade dos seus métodos, a revolução é sobretudo um despertar do sentido humano; permite progredir, dar mais atenção, à dignidade própria e à alheia, ajudar os fracos e sem defesa. A revolução não é uma revolução se, com todas as suas forças e por todos os meios, não permite que a mulher, dupla e triplamente alienada, se desenvolva pessoal e socialmente. A revolução não é uma revolução se não dispensa o maior interesse às crianças que são o futuro em cujo nome ela se efectua. E poder-se-á criar – mesmo de forma parcelar e limitada – uma vida nova fundada sobre o respeito mútuo, sobre o respeito para consigo próprio, sobre a igualdade da mulher, sobre uma verdadeira solicitude pelas crianças, numa atmosfera em que ressoe, retumbe, estale a linguagem grosseira dos senhores e dos escravos, uma linguagem que nunca poupou nada nem ninguém? É tão necessário para a cultura do espírito lutar contra a grosseria da linguagem como é necessário para a cultura material combater a imundice e os parasitas. Não é nada simples nem fácil dominar essa licenciosidade linguística porque não tem as suas raízes na palavra em si mesma mas no psiquismo e no modo de vida. É com toda a evidência necessário encorajar as tentativas da fábrica “A Comuna de Paris”, mas, mais do que isso, é necessário desejar aos seus iniciadores paciência e obstinação, pois os hábitos psíquicos, que se transmitem de geração em geração e dos quais toda a atmosfera está ainda hoje impregnada, não são fáceis de desenraizar. Acontece amiúde querer fazer progressos a todo o custo; esfalfamo-nos e, finalmente, baixamos os braços deixando tudo como antes.

Page 47: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

Devemos confiar em que os operários, e em primeiro lugar os comunistas, secundem a iniciativa de “A Comuna de Paris”. Pode-se dizer que, regra geral (existem sem dúvidas excepções), as grosserias são dirigidas as mulheres e aos filhos, não só por parte das massas atrasadas mas com frequência também por alguns da vanguarda e por vezes mesmo “responsáveis”. Não se pode negar o facto de que estas formas de expressão estão ainda vivas seis anos após Outubro, mesmo entre os “altamente colocados”. Fora da cidade, fora da capital, certas “personalidades” consideram que é de seu dever exprimir-se grosseiramente por verem nisso um meio de entrar em contacto com o campesinato...

A nossa vida é totalmente contraditória, tanto no plano econômico como no cultural. No centro do país, não longe de Moscovo, estendem-se imensos espaços pantanosos, de caminhos impraticáveis e, mesmo a seu lado, elevam-se fábricas que impressionam pelo seu nível de tecnicidade européia ou americana... Encontram-se contrastes análogos nos nossos costumes; ao lado de Kit Kitytch o jovem(2), que atravessou a revolução, conheceu a expropriação, a especulação clandestina e a especulação legal, e que conservou praticamente intactos todos os caracteres de sua classe, encontramos o melhor tipo de operário comunista, que só vive para os interesses da classe operária, que está pronto a bater-se pela revolução a todo o momento e seja em que país for. Além deste contraste social – grosseria obtusa e idealismo revolucionário – podemos com frequência realçar contrastes psíquicos no interior de um mesmo indivíduo, de uma mesma consciência. Eis, por exemplo, um comunista autêntico, devotado à sua tarefa, mas para quem as mulheres não são mais do que “babas”(3) (que palavra tão grosseira), das quais não se pode falar seriamente. Ou ainda, a propósito da questão nacional, um “communard”(4) emérito que emite de súbito um chuveiro de injúrias dignas de um Ugrium Burtchéev,(5) de fazer fugir. Deve-se isso ao facto de que os diferentes domínios da consciência não se transformam e não evoluem paralela e simultaneamente. Deparamos também aqui com uma particular economia. O psiquismo é flagrantemente conservador; na consciência, só se transformam os elementos directamente submetidos às exigências da vida. A evolução social e política dos últimos decénios fez-se a um ritmo sem exemplo, com saltos e viragens sem precedentes. É por isso que a Confusão e a Desorganização são entre nós tão poderosas. Mas seria injusto pensar que essas duas irmãs reinam unicamente na produção e no aparelho de Estado. Não, há o que confessar, agem também sobre as mentalidades, em que se combinam convicções de vanguarda sinceras e reflectidas (nesse domínio temos qualquer coisa a ensinar à Europa e à América), com estados humorais, hábitos e opiniões directamente herdados do Domostroj.(6) Nivelar a frente ideológica, isto é, analisar todos os domínios da consciência por meio do método marxista – tal é a fórmula geral da educação e da auto-educação que se deve aplicar antes de mais ao partido, começando pelos dirigentes. E, uma vez mais, essa tarefa é terrivelmente complexa; não será realizada de forma escolar nem literária, porque as contradições e as desordens do psiquismo mergulham as suas raízes mais profundas na confusão e na desorganização do modo de vida. A consciência, no fim de contas, define-se pelo ser. Mas a dependência aqui não é mecânica nem automática; é recíproca. Eis porque se precisa abordar o problema de diversas maneiras, incluindo a dos operários da fábrica “A Comuna de Paris”.

Façamos votos pelo seu êxito!

Page 48: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida

A luta contra a grosseria faz parte da luta pela pureza, a clareza e a beleza da linguagem.

Notas:

(1) O caso Curzon: trata-se dos manejos anti-soviéticos do diplomara inglês G. N. Kurzon (1859-1925) que foi um dos organizadores da intervenção contra a URSS; em 1919 enviou uma nota ao governo soviético emprazando-o a cessar o avanço das tropas do Exército Vermelho segundo uma linha chamada “linha Curzon”. Em 1923 enviou um ultimatum provocador ao governo soviético, ameaçando-o com uma nova intervenção.

(2) Kit kitych: nome colectivo aparecido no início do século XIX e que designa um tipo de comerciante, déspota familiar, cujos traços característicos eram a grosseria e a astúcia.

(3) Em russo: “bab’jo”, termo pejorativo, denominação colectiva que rebaixa a mulher à categoria de animal de carga. (4) “Communard”: partidário da Comuna de Paris de 1871.

(5) Ugrium Burtchéev: um dos personagens do romance de Saltykov-Chédrine – “História de uma cidade”. Protótipo do déspota que só se exprime por onomatopéias grosseiras.

(6) “Domostroj”: recolhida escrita no século XVI, em que são reunidas as regras fundamentais da vida quotidiana, fundada principalmente numa submissão total ao chefe de família.

Questões do Modo de VidaA época do “militantismo cultural” e as suas tarefasLeon Trotsky1923

Escrito em: 1923.Fonte: Titulo Original: Les questions du mode de vie, Léon Trotsky. Lisboa: Edições Antídoto, edição: n°44 1° edição: Maio 1979.

Tradução: A. Castro.Transcrição: Rogério Freitas; Anibal Brito; Adnelson Araujo; Otávio Aranha e Emerson Monte membros do GETROTSKY- Grupo de Estudos Trotsky.HTML: Fernando A. S. AraújoDireitos de Reprodução: © Edições Antídoto. Gentilmente cedidos pela Associação Política Socialista Revolucionária.

In: http://www.marxists.org/portugues/trotsky/1923/vida/index.htm

Page 49: Trotsky-1923-Questões do Modo de Vida