leon trotsky - questões do modo de vida

47
Questões do Modo de Vida A época do “militantismo cultural” e as suas tarefas Leon Trotsky 1923 Transcrição autorizada Escrito em: 1923. Fonte: Titulo Original: Les questions du mode de vie, Léon Trotsky. Lisboa: Edições  Antídoto, edição: n°44 1° ed ição: Maio 1979. Tradução: A. Castro. Transcrição:  Rogério Freitas; Anibal Brito; Adnelson Araujo; Otávio Aranha e Emerson Monte membros do GETROTSKY- Grupo de Estudos Trotsky. HTML: Fernando A. S. Araújo  Direitos de Reprodução: © Edições Antídoto. Gentilmente cedidos pela Associação Política Socialista Revolucioná ria. Índice Introdução Prefácio da segunda edição  Prefácio da primeira edição  O homem não vive a não ser de política  (vide nota) O jornal e o seu leitor  A atenção deve incidir sobre os detalhes  Para construir o modo de vida é preciso conhecê-lo A Vodka, a igreja e o cinema

Upload: calinicos

Post on 13-Feb-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 1/47

Questões do Modo de VidaA época do “militantismo cultural” e as

suas tarefasLeon Trotsky

1923

Transcrição autorizada

Escrito em: 1923. Fonte: Titulo Original: Les questions du mode de vie, Léon Trotsky. Lisboa: Edições

 Antídoto, edição: n°44 1° edição: Maio 1979.

Tradução: A. Castro.Transcrição: Rogério Freitas; Anibal Brito; Adnelson Araujo; Otávio Aranha eEmerson Monte membros do GETROTSKY- Grupo de Estudos Trotsky.HTML: Fernando A. S. Araújo Direitos de Reprodução: © Edições Antídoto. Gentilmente cedidos pela AssociaçãoPolítica Socialista Revolucionária. 

Índice

Introdução 

Prefácio da segunda edição 

Prefácio da primeira edição 

O homem não vive a não ser de política (vide nota) 

O jornal e o seu leitor  

A atenção deve incidir sobre os detalhes 

Para construir o modo de vida é preciso conhecê-lo

A Vodka, a igreja e o cinema

Page 2: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 2/47

Da Antiga à Nova família

A família e os ritos 

As atenções e a delicadeza como condições necessárias para relações harmoniosas 

É preciso lutar por uma linguagem depurada 

Anexo

Perguntas e respostas sobre o modo de vida operário

Introdução

Quando em 1923 são publicadas As questões do modo de vida, Trotsky é aindacomissário do povo para o exército e a marinha, é ainda o segundo personagem da vida política da Rússia dos sovietes. Quem ignore o que é a situação da Rússia nessa época,

 pode admirar-se de ver Trotsky dispender tempo com questões na aparênciasecundárias: comportamento humano na sociedade, alcoolismo, relações familiares,

emancipação das mulheres, correcção da linguagem cotidiana, etc. Explicam alguns aatenção que Trotsky dispensou às “pequenas coisas” pelos traços do seu caráter:

exactidão e meticulosidade; mas estas explicações não vão até ao fundo da questão. Seem 1923 Trotsky considera necessário por o acento nestes problemas é porque asituação na Rússia pós-capitalista dos primeiros anos da  N.E.P. conferiu a estes

 problemas caráter essencial.

A  N.E.P., ou Nova Economia Política, foi adoptada pelo X° Congresso do partido (8-16de Março de 1921). Surge na sequência do chamado período do “comunismo de

guerra”, caracterizado além do mais pelo afundamento quase total das forças produtivas, pela política de requisições forçadas nos campos para permitir a sobrevivência nascidades, pelo total desaparecimento do sector privado, pequenas ou grandes fábricas,

 por efeito da fuga dos antigos proprietários. Esta situação conduz à colectivização, comfrequência não desejada, de todos os sectores da economia russa. A  N.E.P.  põe fim à

 política das requisições. Autoriza a reconstituição do sector privado na indústria e nocomércio. Encara a criação de sociedades de economia mista, associando capitais privados estrangeiros a capitais do Estado. Os primeiros resultados desta nova políticasão positivos. A agricultura desenvolve-se e atinge rapidamente uma produção igual a

dois terços da de antes da guerra. As cidades, que grande parte da população tinhaabandonado para se refugiar nos campos, começam a renascer. Pela primeira vez após arevolução a produção tende a aumentar. A melhoria das condições de vida torna-se real.

Mas a  N.E.P.  –  economicamente inevitável nas condições que eram as de 1921  –  está,ao mesmo tempo, cheia de ameaças para a revolução. Permite o desigual

enriquecimento dos camponeses, chegando rapidamente à constituição de uma categoria

de camponeses ricos, os “Kulaks”, cujos domínios se vão alargando, e que empregamcada vez mais camponeses pobres, ou “Biedniaks”, como operários assalariados. Nas

Page 3: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 3/47

cidades, assiste-se a uma verdadeira mutação no seio da classe operária. Os quadrosoperários do antigo partido bolchevique tinham sido dizimados pela guerra civil. Oesgotamento físico, as doenças, as missões e os cargos longínquos dispensaram e

reduziram esse primeiro núcleo de revolucionários proletários. Constituiu-se uma novaclasse operária. Esta, saída do campesinato pobre e desprovida de toda a tradição

 política proletária, mostra-se por isso particularmente sensível á influência da nova burguesia engendrada pela  N.E.P., que rapidamente se apresentará aos olhos das massascomo um modelo de “modo de vida” totalmente estranho aos ideais revolucionário. Este

modo de vida, com o seu luxo gritante e o seu gosto pelo lucro terá um papel profundamente desmoralizador em todas as camadas sociais desfavorecidas da Rússia

dos sovietes e particularmente na classe operária urbana em contacto com os novos burgueses, que são os “ Nepmen”, e com os antigos quadros administrativos e técnicos

que houve que voltar a utilizar por ter faltado o tempo para formar outros novos.

 No plano estritamente econômico, a  N.E.P. também não foi um sucesso total. Aindústria ligeira, na qual os “privados” investiram de preferência a fazê-lo na industria

 pesada por os lucros serem naquela mais rápidos, progride mais depressa em detrimentodesta última que, no essencial, se manteve como sector do Estado. A alta dos preços dos produtos da indústria ligeira torna-os inacessíveis à grande massa dos camponeses. É a

chamada crise “das tesouras”. Depois de se terem alinhado, os preços industriais e os preços agrícolas passam a afastar-se. Esta crise reforça por um lado os fenômenos deautarquia local nos campos; incita as indústrias do Estado, ou “indústrias vermelhas”, adiminuir as suas despesas e a aumentar a sua produtividade, tendo como efeito imediato

a estagnação dos salários e o crescimento do desemprego. O desequilíbrio entre ossalários e os preços torna-se cada vez mais gritante.

Há que ter também em conta a situação internacional. Em 1923, existe na Alemanhauma situação revolucionária explosiva, mas, no fim desse ano, a revolução alemã está

esmagada, enquanto que a revolução búlgara de Setembro de 1923 termina emcatástrofe. Estes acontecimentos dão-se no seguimento da liquidação da República dosSovietes na Hungria, em Agosto de 1919, do revés da greve geral italiana m Agosto de

1922 e da subida de Mussolini ao poder em Outubro de 1922. A revolução russaencontra-se isolada no plano internacional. No plano interno, tem que defrontar-se comum perigo que Lenine tinha pressentido logo após Outubro: o ascenso da burocracia. É

esse mesmo perigo que Trotsky denunciará na sua carta de 8 de Outubro de 1923 aoComitê Central, na qual escreve:

“ A burocratização do aparelho do partido desenvolveu-se em incríveis proporções peloemprego do método de selecção (dos quadros) pelo secretariado. Criou-se uma larga

camada de militantes, com entrada no aparelho governamental do partido, que

renunciacompletamente às suas próprias opiniões de partido ou, pelo menos, à sua

aberta expressão, como se a hierarquia burocrática fosse o aparelho que cria a opinião

do partido e as suas decisões”. 

Esta mesma idéia será retomada e expressa a 15 de Outubro de 1923 por uma grupo de46 militantes, certos dos quais dos mais eminentes dirigentes do partido e veteranos da

guerra civil. Essa será a “Carta dos Quarenta e Seis”, na qual será dito:

“O regime que foi posto em vigor no partido é absolutamente intolerável. Mata toda ainiciativa no partido, submete-o a um aparelho de funcionários permanente que

Page 4: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 4/47

inegavelmente funciona em período normal mas que inevitavelmente se arrasta em

 período de crise e ameaça ir para a bancarrota total em face dos sérios acontecimentos

que se preparam”. 

É este aparelho que esmagará a oposição, levando em 23-26 de Outubro de 1926 à

exclusão de Trotsky do “bureau” político, à adopção da “teoria estalinista de construçãodo socialismo num só país’” e à construção do Estado soviético por métodos burocráticos e autoritários, que Trotsky e os “Quarenta e Seis” tinham denunciado. Éem relação a todo este contexto, que apenas podemos esboçar nas linhas que precedem,

que se deve ler As questões do modo de vida.

A revolta de Kronstadt tinha sido esmagada enquanto se desenrolava o X Congresso queia decidir da instauração da  N.E.P.  Nesse mesmo ano de 1921, o país conhecia diversas

insurreições. Com freqüência, como em Kronstadt, há comunistas ao lado dosinsurrectos, que, na maioria, ou são camponeses ou são operários recentemente vindosdo campo. Já vimos que a guerra civil, as doenças, as diversas tarefas revolucionárias,

tinham dizimado a classe operária inicial, aquela que tinha feito Outubro. A vanguardarussa sofreu igualmente o efeito do esgotamento da vaga revolucionária européia do pós-guerra. A Internacional Comunista levou aliás isso em conta ao modificar a sua

táctica durante o seu III Congresso (22 de Junho/12 de Julho de 1921), ao, decidirempreender, antes de qualquer nova acção revolucionária de envergadura, a conquista

da classe operária internacional.

Também a classe operária russa, saída das mutações pós-revolucionárias, deve –  comoaliás as insurreições de Kronstadt e outras o mostraram –  ser conquistada para as idéiasda revolução. As greves “selvagens” dos anos 21 e 22 puseram em evidência o baixonível de consciência das massas russas privadas da sua vanguarda revolucionária. É

 preciso, segundo Trotsky empreender com urgência uma acção em produndidade, umaacção cultural no mais amplo sentido do termo, inseparável da acção de educação

 proletária, para chegar a uma tomada de consciência pelas massas dos objectivos darevolução, a uma transformação dessa consciência, extirpando dela todos os aspectosnegativos herdados do regima pré-revolucionário. Esta acção, que será oficialmente

designada na Rússia por Pérestroika Byta, ou Reconstrução do modo de vida, constituio objectivo principal de Trotsky ao escrever As questões do modo de vida. Face a

influência desagregadora da  N.E.P., a criação de um “homem novo” é uma questãourgente. Face ao ascenso da burocracia, é preciso poder opor-lhe o mais rapidamente

 possível já não uma massa amorfa e incapaz de tomar em mãos os seus próprios

assuntos mas um novo proletariado consciente dos seus interesses como classe. Face ao peso dos hábitos e das tradições nos quais os inimigos da revolução se apóiam: religião,alcoolismo, subordinação das mulheres, é preciso desenvolver nas massas outrosvalores, propor-lhes outras idéias. É preciso, enfim, tomar consciência de que a

construção a longo prazo de uma sociedade exige, para a erguer fora dos métodos burocráticos e autoritários, uma larga participação das massas, passando pelo que então

se chamava na Rússia uma “revolução cultural”, da qual a Reconstrução do modo de

vida era um dos instrumentos. Ao escrever os artigos que constituem As questões do

modo de vida, Trotsky opunha ao esquema estalinista de construção do socialismo, umaoutra via. Para ele como para todos os marxistas, não bastava começar por criar em primeiro lugar industria pesada, seguida de uma industria ligeira, assentar as bases

econômicas, para que automaticamente e de qualquer modo surjam as superestruturas

Page 5: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 5/47

ideológicas. É esta versão do socialismo que Estaline defenderá nas Questões do

 Leninismo.

Para Trotsky, é ao mesmo tempo que devem ser edificadas as bases econômicas e asrelações sociais inseparáveis do novo modo de produção.

Esta vontade de agir, simultaneamente, sobre as bases econômicas e sobre as relaçõesde produção, logo sobre o modo de vida, é característica do período pré-estalinista, do

 período dos anos 20. Os escritores, poetas e artistas reagrupados no seio do L.E.F.(Frente de Esquerda da Arte, definem o “byt” (o modo de vida) como sua “nova frente”.Aos seus olhos, a arte deve tornar-se um instrumento de transformação social, incitandoà prática de novas relações sociais. Para eles, ao contrário daqueles que lhes sucederão

durante o período do “realismo socialista” estalino-idanovista, não se trata derepresentar, por exemplo, uma sociedade ideal liberta de todo o conflito e povoado por

heróis do trabalho, por mães-heroínas, por famílias sem problemas, por brigadas deelite, seguindo com entusiasmo e sem discutir as directivas do representante infalível do

Partido. Trata-se de utilizar a literatura, a poesia, a arte, o desenho, a arquitetura, paraagir directamente sobre o comportamento humano e o transformar.

Essas preocupações são em particular evidentes no domínio do habitat. Se a arquitetura,o urbanismo, a implantação territorial dos estabelecimentos humanos do passado dão aimagem da sociedade abatida e reflectem as antigas relações sociais, então uma nova

arquitetura e um novo urbanismo à escala de todo o território devem ser imaginados demodo a permitir a expansão das novas relações sociais, a ajudar à sua transformação, prefigurando o futuro. Mais tarde, pelo fim dos anos 20, já quando demasiado tarde,dirigentes políticos como You Larine, economistas como L. Sabsovitch, sociólogos

como M. Okhitovitch e arquitectos como M. La. Guinzburg, irão propor formasconcretas de uma nova implantação socialista da humanidade à escola de todo o

território. Tentarão definir o que Sabsovitch chamará o “novo modo de vida socialista”, baseado na coletivização de funções até então delineadas no seio da célula familiar,

facilitando a libertação das mulheres das penosas obrigações domésticas e favorecendotambém largas permutas e contactos sociais. Para isso, partirão das primeiras

experiências so bre o tema “viver diferentemente” realizadas no seio das massas no princípio dos anos 20 e que Trotsky descreve no capítulo intitulado “Da antiga à nova

família”. 

É acerca dessas primeiras experiências de vida colectiva que Trotsky disse que deviam

constituir os “germens da vida nova”. (Rostki novi jyzni). É também a partir dessas primeiras experiências que os arquitectos e os urbanistas imaginarão mais tarde as“casas comunais” e os esquemas descentralizados de um novo habitat socialista.

Trotsky demonstrou que e essa “vida nova”, que é objecto fundamental do socialismo,só pode ser edificada tendo em conta a relação dialéctica que existe entre o

desenvolvimento das forças produtivas e aquilo que chama a “esfera da moral”.(Capítulo: Hábitos e Costumes).

As novas relações de produção e as novas relações entre os homens e entre os sexos,que constituem o fundamentos das verdadeiras “experiências sociais” realizadas durante

os anos 20, ilustram um aspecto mal conhecido mas essencial da ditadura do

 proletariado, não apenas como “conceito” mas como prática social viva que toca todosos aspectos da vida quotidiana das massas. É através do alargamento e generalização

Page 6: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 6/47

dessas experiências que se podia esperar atingir novas formas de funcionamentodemocrático da sociedade, com as próprias massas a ocuparem-se dos seus problemasao nível da fábrica, da exploração agrícola, da “escola comum”, do bairro, da região.

Estariam então melhor preparados para se oporem vitoriosamente às

“ poderosas forças que desviam o Estado soviético do seu caminho (...e que) emanamdum aparelho que nos é fundamentalmente estranho e que representa uma mescla de

 sobrevivências burguesas e tzaristas “coberta apenas de um verniz soviético” que (14)mergulha o país na opressão”. (Lenine, Obras Completas, tomo 36, PP. 620-623).

A “reconstituição do modo de vida”, se não tivesse sido bloqueada logo após o seuinício, teria podido constituir uma arma eficaz na luta contra a burocracia estalinista. Foi para evitar essa catástrofe, que já se perfilava no horizonte, que Trotsky publicou em

1923 As questões do modo de vida.

 Na nossa época fala-se muito, em certos grupos e em certas publicações, de “mudar de

vida” e de “viver diferentemente” desde já. Aqueles que preferem fugir da sociedade ecombatê-la, que se afastam para “viver diferentemente” em efêmeras comunidades

constituídas em quintas ou aldeias abandonadas e que por vezes acreditam situar-se nalinha da “reconstrução do modo de vida” soviético, hão-de compreender, sem lerem As

questões do modo de vida, que nada conseguem. Verão que, para Trotsky, a “Vida Nova” é inseparável da transformação das relações de produção e, portanto, do próprio

modo de produção num processo dialéctico global. É precisamente nessa necessáriarelação dialéctica que se situa a actualidade das idéias avançadas por Trotsky em As

questões do modo de vida perante certas concepções contemporâneas que opõem o carroà frente dos bois.

Toda uma geração poderá hoje pensar que é só a partir de Maio de 68 que certascorrentes do movimento operário reflectiram sobre os problemas da vida quotidiana:

relações ócio/trabalho, condição feminina, família, gestão pelas massas dosequipamentos colectivos, habitações de novo tipo, urbanismo e quadro de vida. Poderácrer que só no fim de toda uma série de etapas: eleições, Programa comum, democracia“avançada”, conducentes a um socialismo indefinido, é que essas questões, conquantoessenciais, poderão ser abordadas. Em As questões do modo de vida, Trotsky mostraque, na Rússia, foi logo no dia imediato ao ato da Revolução que foram encaradas,

apesar da miséria material e da impreparação cultura, sob a forma de autênticas“experiências sociais”. Os textos que apresentamos a seguir, que são inéditos, foram

escritos há cerca de 50 anos. Seria absurdo buscar neles receitas acabadas para o futuro.A situação da França e hoje poucas relações tem com a da Rússia de antes de 1917, querse trate do modo de vida ou de outros aspectos. Sabe-se hoje que se a libertação dasmulheres passa pela sua libertação econômica, essa é decerto uma medida necessária

mas não suficiente. Também os problemas da família, da habitação, etc., se apresentamhoje em termos diferentes daqueles em que Trotsky os colocava em 1923. Contudo, asabordagens por ele desenvolvidas podem ainda permitir evitar certo número de erros,

alguns dos quais já foram cometidos e outros podem sê-lo ainda. E é essencial lembrarhoje que após a revolução e a tomada do poder pela classe operária, sem deixar de

encarar as etapas ligadas às possibilidades materiais e culturais, o poder soviético pôs naordem do dia não apenas a elevação decalcada do modelo burguês, não apenas a

colectivização dos meios de produção e de troca mas o que então se chamava

Page 7: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 7/47

“reconstrução do modo de vida” inclusivamente nos seu detalhes aparentemente maisinsignificantes e mais íntimos.

* * *

Estes textos foram traduzidos por Joelle Aubert-Yong com base na 2ª edição dasQuestões do modo de vida, publicada em Moscovo em 1923 pelas edições do Estado

(Gosizdat). Em 15 de Janeiro de 1925 Trotsky demitia-se das suas funções decomissário do povo para o exército e a marinha; em 23-26 de Outubro de 1928 seria

excluído do bureau político; em 15 de Novembro de 1927 seria excluído do partido; em16 de Janeiro de 1928 seria deportado para Alma-Ata; seria expulso da URSS em 10 de

Fevereiro de 1929 e assassinado em Coyoacan (México) em 20 de Agosto de 1940.

 Anatole Kopp 

Page 8: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 8/47

 

Prefácio da segunda edição

Esta segunda edição, em relação à primeira, apresenta-se consideravelmente aumentada:em parte por artigos que directamente se relacionam com as questões do modo de vida,e principalmente por artigos muito recentes. Expresso aqui o meu reconhecimento aoscamaradas que responderam ao meu apelo quando lhes pedi que me enviassem as suasobservações, as suas propostas e outros materiais sobre o tema do modo de vida. Estoulonge de ter utilizado todos esses materiais. Mas o trabalho não está terminado. E, de

resto, não pode deixar de ter um carácter colectivo, de amplitude cada vez maior.

Algumas cabeças iluminadas tentam, tanto quanto sei, opor as tarefas relativas à culturado modo de vida às tarefas revolucionárias. Semelhante abordagem não pode deixar de

ser definida como um grosseiro erro político e teórico. Num artigo sobre a cultura proletária ( Pravda, n° 207), escrevemos:

“Qualquer que seja a importância e a necessidade vital do nosso militantismo cultural,este está ainda colocado por inteiro sob o signo da revolução cultural e mundial. Tal

como antes, somos soldados em campanha. Trata-se do nosso dia de folga. Que é preciso utilizar para lavar a roupa, cortar e pentear o cabelo e, antes de mais, limpar e

olear a própria baioneta. O nosso trabalho cultural resume-se unicamente a por um pouco de ordem nos nossos assuntos, entre duas campanhas. Os combates mais

importantes estão ainda por vir; estão talvez mesmo já próximos. A nossa época não éainda a da nova cultura; não passa da sua antecâmara”. 

Quanto mais o nosso trabalho econômico e cultural atinja um caracter sistemático e prático, mais poderemos resolver com êxito as importantes tarefas que se nos

apresentam. A segunda vaga não será em nenhum caso uma simples repetição da primeira, mas exigirá de nós, em todos os domínios, uma preparação e uma qualificaçãoincomparavelmente superiores. Impor-se-à então antes de mais uma compreensão mais profunda, por parte das massas trabalhadoras, das perspectivas construtivas que só arevolução mundial triunfante pode totalmente oferecer-nos em toda a sua amplitude.

9 de Setembro de 1923

Page 9: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 9/47

 

Prefácio da primeira edição

Para melhor se compreender o livro, é preciso contar a sua história em duas palavras.Pareceu-me que faltava na biblioteca do partido uma pequena brochura que, sob a formamais popular, mostrasse ao operário e ao camponês médio o elo que une certos factores

e certos fenômenos da nossa época de transição, e que, apontando para uma justa perspectiva, serviria de arma para a educação comunista. Para comprovar esta idéia,

dirigi-me ao secretário do comitê de Moscovo, camarada Zelensky, e pedi-lhe quereunisse uma pequena assembléia de agitadores, durante a qual seria possível permutar

os nossos pontos de vista acerca dos meios e dos métodos literários da nossa propaganda.

A reunião ultrapassou de imediato os limites do projecto inicial. Os problemas relativosà família e ao modo de vida apaixonaram todos os participantes. No decurso das três

sessões que em conjunto duraram dez a doze horas, pode-se, quando não resolver, pelomenos aflorar e em parte aclarar os diferentes aspectos da vida operária numa época de

transição, bem como os nossos meios de acção sobre o modo de vida operário.

Entre a primeira e a segunda sessão e sob proposta dos participantes, formulei de formaescrita perguntas às quais alguns responderam também por escrito; por outro lado,

algumas dessas respostas foram o resultado de pequenas assembléias ao nível de bairro.As nossas conversações com os agitadores do comitê de Moscovo foram

estenografadas. São esses estenogramas e esses inquéritos que constituem a base da presente obra. Esse material é, por certo, extremamente insuficiente. Além disso,

depressa foi preciso refazê-lo. Mas o meu objectivo não consistia em esclarecer sobtodos os ângulos o modo de vida operário, a sua evolução e os meios de agir sobre eles,

mas fundamentalmente em apresentar o problema do modo de vida operário comoobjecto digno dum estudo atento.

O pequeno livro que aqui se submete ao leitor não é de modo nenhum a brochura popular cuja idéia foi o ponto de partida deste trabalho. Procurarei ainda redigir essa

 brochura, caso as circunstâncias m’o permitam. A presente obra destina-se em primeirolugar aos membros do Partido, aos dirigentes sindicais, das cooperativas e dos

organismos culturais.Em anexo encontram-se os extractos mais interessantes e mais importantes dos

questionários e dos estenogramas da nossa reunião. O leitor fará talvez bem começando por ler esse anexo. Evitará assim certas dificuldades de compreensão que poderiam

resultar do facto de que, para economizar tempo e espaço, omiti certas citações e certaschamadas.

L. Trotsky4 de Julho de 1923

Page 10: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 10/47

 

O Homem Não Vive Só de "Política"

Esta idéia muito simples, é preciso que a compreendamos duma vez por todas e quenunca a esqueçamos na nossa propaganda oral ou escrita. Cada época tem a sua divisa.A história pré-revolucionária do nosso partido foi uma história de políticarevolucionária. A literatura de partido, as organizações de partido tudo se encontravasubmetido à palavra de ordem de "política" no sentido mais estreito do termo. Arevolução e a guerra civil aumentaram ainda mais a acuidade e a intensidade das tarefasdos interesses políticos. Durante esse período, o partido reuniu nas suas fileiras oselementos politicamente mais ativos da classe operária. No entanto, as conclusões

 políticas fundamentais desses anos são claras para a classe operária no seu conjunto. Arepetição mecânica dessas conclusões nada lhe trará de novo; antes poderá desvanecerna sua consciência as lições do passado. Após a tomada do poder e a sua consolidaçãoem seguida à guerra civil, as nossas tarefas fundamentais deslocaram-se para o domínioda construção econômica e cultural, tornaram-se mais complexas, parcelaram-se,adquiriram um caráter mais detalhado e, ao que parece, mais "prosaico". Mas, aomesmo tempo, as nossas lutas anteriores, com o seu cortejo de esforços e de sacrifícios,não encontrarão justificação senão na medida em quê consigamos enunciarcorretamente e resolver as tarefas particulares, do dia a dia, aquelas que dependem do"militantismo cultural".

Com efeito, o que é que a classe operária exatamente ganhou, o que é que obteve nodecurso das suas anteriores lutas?

1.  A ditadura do proletariado (por intermédio de um Estado operário e camponêsdirigido pelo partido comunista).

2.  O Exército Vermelho, como apoio material da ditadura do proletariado.3.  A nacionalização dos principais meios de produção sem a qual a ditadura do

 proletariado seria uma forma vazia, sem conteúdo.4.  O monopólio do comércio externo, condição necessária da construção socialista

 perante um envolvimento capitalista.

Estes quatro elementos, cuja conquista é definitiva, constituem a armadura de aço detodo o nosso trabalho. Graças a isso, graças a essa armadura, cada um dos nossos êxitosno domínio econômico ou cultural - quando êxito real e não imaginário - tornou-senecessariamente um elemento constitutivo da construção socialista.

Em que consiste hoje a nossa tarefa, que devemos nós aprender em primeiro lugar, emque sentido devemos tender?

Precisamos aprender a bem trabalhar - com precisão, com limpeza, com economia.Temos necessidade de desenvolver a cultura do trabalho, a cultura da vida, a cultura do

modo de vida. Após uma longa preparação e graças à alavanca da insurreição armada,derrubamos a supremacia dos exploradores. Mas não existe alavanca que possa de um

Page 11: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 11/47

só golpe elevar a cultura. Um lento processo de auto-educação da classe operária e paralelamente do campesinato, é aqui necessário. O camarada Lênin, num artigo sobre acooperação, evoca essa mudança de direção da nossa atenção, dos nossos esforços, dosnossos métodos:

"... Somos forçados - diz ele - a reconhecer uma transformação radical do nosso pontode vista sobre o socialismo. Essa transformação radical provém de que outrora nóscolocávamos, e devíamos colocar, o centro de gravidade da nossa atividade no combate

 político, na revolução, na conquista do poder, etc.. Hoje, esse centro de gravidadevariou a tal ponto que se deslocou para um trabalho organizacional, pacífico, cultural.Estaria pronto a dizer que, para nós, o centro de gravidade se deslocou para omilitantismo cultural, se não existissem nem as relações internacionais nem a obrigaçãode defender a nossa situação à escala internacional. Mas se nos abstrairmos disso e noslimitarmos às relações econômicas internas, então hoje o centro de gravidade reduz-seefetivamente ao "militantismo cultural" (1)."

Assim, só o problema da nossa situação internacional nos desvia do militantismocultural, e isso apenas em parte como em seguida veremos. O fator principal da nossasituação internacional é a defesa nacional, isto é, o Exército Vermelho. Ora, nessedomínio fundamental, as nossas tarefas relacionam-se ainda uma vez mais, em novedécimos, com o militantismo cultural; elevar o nível do exército, levar a bom termo asua completa alfabetização, ensinar-lhe a utilizar os guias, os livros e as cartas, habituá-lo ao asseio, à exatidão, à pontualidade, à observação. Não há remédio milagroso que

 permita resolver imediatamente esses problemas. No fim da guerra civil, quandoabordávamos uma nova fase da nossa atividade, a tentativa de criar uma "doutrinamilitar proletária" foi a expressão mais clara e a mais gritante da incompreensão dastarefas da nova época. Os orgulhosos projetos que visam criar uma "cultura proletária"em laboratório, procedem da mesma incompreensão. Nesta busca da pedra filosofal, onosso desespero perante o nosso atraso une-se a uma crença no milagre, que é ela

 própria um sinal desse atraso. Mas não temos nenhuma razão de desesperar e é mais doque tempo de nos libertarmos dessa crença nos milagres, dessas práticas pueris decurandeiros, do gênero "cultura proletária" ou doutrina militar proletária. Pararobustecer a ditadura do proletariado é necessário desenvolver um militantismo culturalquotidiano, o único a garantir um conteúdo socialista para as conquistas fundamentaisda revolução. Quem não tenha compreendido isso, representa um papel reacionário naevolução do pensamento e do trabalho do partido.

Quando o camarada Lênin afirma que as nossas tarefas de hoje não são tanto políticascomo culturais, é necessário entendermo-nos sobre a terminologia a fim de nãointerpretar erradamente o seu pensamento. Num certo sentido, a política domina tudo. Oconselho do camarada Lênin de transferir a nossa atenção do domínio político para odomínio cultural, é um conselho político. Quando um partido operário, em tal ou tal

 país, decide que é necessário num dado momento colocarem em primeiro plano asexigências econômicas e não as políticas, essa decisão tem um caráter "político". É

 perfeitamente evidente que a palavra "política", é utilizada aqui em dois sentidosdiferentes: em primeiro lugar num sentido largo, materialista-dialético, englobando oconjunto das idéias diretivas, dos métodos e dos sistemas que orientam a atividade dacoletividade em todos os domínios da vida social; em segundo lugar, num sentido

estreito, especializado, caracterizando uma certa parte da atividade social, intimamenteligada à luta pelo poder e oposta ao trabalho econômico, social, etc.. Quando o

Page 12: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 12/47

camarada Lênin escreve que a política é economia concentrada, encara a política nosentido largo, filosófico. Quando o camarada Lênin diz: "um pouco menos de política,um pouco mais de economia", encara a política no sentido estreito e especializado dotermo. As duas acepções são igualmente válidas visto que legitimadas pelo uso. Importaapenas compreender bem do que se fala em cada um dos casos.

A organização comunista é um partido político no sentido amplo, histórico, ou, se prefere, filosófico do termo. Os outros partidos atuais são políticos unicamente nosentido em que fazem (pequena) política. Se o nosso partido transfere a sua ação para odomínio cultural, isso de modo nenhum significa que enfraqueça o seu papel político.Historicamente, o papel dirigente (isto é, político) do partido, manifesta-se precisamentenessa deslocação lógica da sua atenção para o domínio cultural. Só após longos anos deatividade socialista, conduzida com êxito no interior e garantida no exterior, é que o

 partido poderá libertar-se pouco a pouco da sua carapaça "partisan" (2)  para se confundircom a comunidade socialista. Mas isso está ainda tão longe que se torna inútil anteciparsobre o futuro... No imediato, o partido deve conservar totalmente as suas características

fundamentais: coesão ideológica, centralização, disciplina, e, correlativamente,combatividade. Mas precisamente essas inestimáveis qualidades de "espírito de partido"comunista não podem manter-se e desenvolver-se se não se satisfazem as exigências eas necessidades econômicas e culturais de forma mais completa, mais hábil, mais exatae mais minuciosa. Em conformidade com essas tarefas, que devem desempenhar hojeum papel preponderante na nossa política, o partido reagrupa, distribui as suas forças eeduca a jovem geração. Por outras palavras, a grande política exige que na base dotrabalho de agitação, de propaganda, de repartição de forças, de instrução e deeducação, sejam hoje colocadas tarefas e exigências econômicas e culturais e nãoexigências "políticas" no sentido estreito do termo.

* * *

A poderosa unidade social que representa o proletariado surge em toda a sua amplitudenas épocas de luta revolucionária intensa. Mas no interior dessa unidade, observamos aomesmo tempo uma incrível diversidade e mesmo uma grande heterogeneidade. Do

 pastor obscuro e inculto ao maquinista altamente especializado escalona-se toda umavariedade de qualificações, de níveis culturais, de hábitos de vida. Cada camada social,cada oficina de empresa, cada grupo, é constituído por indivíduos de idade e caráterdiferentes, de passado diversificado. Se não existisse essa diversidade, o trabalho do

 partido comunista no domínio da educação e da unificação do proletariado seria de todo

simples. Mas, pelo contrário, o exemplo da Europa prova-nos quanto esse trabalho é narealidade difícil. Pode dizer-se que quanto mais a história de um país, e portanto a própria história da própria classe operária, é rica, mais reminiscências, tradições ehábitos nela se encontram; quanto mais os grupos sociais nela são antigos, mais difícil érealizar a unidade da classe operária. O nosso proletariado quase não tem história nemtradições. Isso facilitou sem dúvida a sua preparação para a Revolução de Outubro.Mas, em contrapartida, isso torna mais difícil a sua construção após Outubro. O nossooperário (com exceção da camada superior) ignora inclusivamente os hábitos culturaismais elementares (desconhece, por exemplo, o asseio e a exatidão, não sabe ler nemescrever, etc.). O operário europeu adquiriu pouco a pouco esses hábitos no quadro doregime burguês: é por isso - vê-se nas camadas superiores - que está tão fortemente

ligado a esse regime, com a sua democracia, a sua liberdade de imprensa e outros bensdo mesmo gênero. Entre nós, um regime burguês tardio quase nada deu ao operário; foi

Page 13: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 13/47

 justamente por isso que, na Rússia, o proletariado pôde romper e derrubar maisfacilmente a burguesia. Mas é também pela mesma razão que o nosso proletariado, nasua maioria, é obrigado a adquirir hoje, isto é, no quadro de um governo socialistaoperário, os mais simples hábitos culturais. A história nada dá gratuitamente: se faz umdesconto numa coisa, sobre política, vai recuperá-lo por outro lado, sobre a cultura.

Quanto mais fácil foi (relativamente, entenda-se) ao proletariado russo fazer arevolução, tanto mais lhe será difícil realizar a construção socialista. Mas, emcompensação, a armadura da nossa nova sociedade, forjada pela revolução ecaracterizada pelos quatro elementos fundamentais citados no princípio deste capítulo,imprime um caráter objetivamente socialista a todos os esforços conscientes e nacionaisno domínio da economia e da cultura. O operário, em regime burguês, sem o querer esem mesmo o saber, enriquece a burguesia e enriquece-a tanto mais quanto melhortrabalha. No Estado soviético, o operário consciencioso, mesmo sem nisso pensar nemcom tal se preocupar (se é sem-partido e apolítico) realiza um trabalho socialista,aumenta os meios da classe operária. Está aí precisamente todo o sentido da Revoluçãode Outubro, que a  N.E.P. em nada modificou.

Existe um enorme número de operários sem partido, profundamente dedicados à produção, à técnica, à máquina. Deve falar-se com reserva do seu "apolitismo", isto é,da sua ausência de interesse pela política. Nos momentos difíceis e importantes darevolução estiveram ao nosso lado. Na sua grande maioria, Outubro não os assustou,não desertaram nem traíram. Quando da guerra civil, numerosos dentre eles estiveramna frente e outros trabalharam para equipar o exército. Depois regressaram ao trabalho

 pacífico. Chamou-se-lhes apolíticos, e não sem fundamento, porque colocam o seutrabalho ou o seu interesse familiar mais alto do que o interesse político, pelo menosdurante os períodos "calmos". Cada um deles quer tornar-se um bom operário,aperfeiçoar-se, elevar-se a um nível superior, tanto para melhorar a situação da suafábrica como devido a um amor próprio profissional legítimo. Cada um deles, como jádissemos, realiza um trabalho socialista mesmo que não tenha fixado isso comoobjetivo. Mas o que nos interessa a nós, partido comunista, é que esses operários-

 produtores tenham uma clara consciência da ligação existente entre a sua particular produção quotidiana e os fins da construção socialista no seu conjunto. Os interesses dosocialismo estarão assim melhor garantidos e esses produtores individuais retirarãodisso uma satisfação moral bastante maior.

Mas como chegar a isso? É difícil sustentar com este tipo de operários questões de política pura. Já escutou todos os discursos. Não se sente atraído pelo partido. O seu

 pensamento só desperta quando está junto da sua máquina e, de momento, aquilo quenão o satisfaz é a ordem que existe na oficina, na fábrica, no trust. Esses operários procuram ir tão longe quanto possível na sua reflexão; são freqüentemente reservados;vê-se sair das suas fileiras os inventores autodidatas. Não é de política que se lhes devefalar, não é pelo menos isso que os apaixonará ao primeiro contato, más, emcompensação, pode e deve falar-se-lhe de produção e de técnica.

Um dos participantes na reunião dos agitadores moscovitas, o camarada Koltsov (do bairro de Krasnáia Presnia) sublinhou a enorme falta de manuais, de livros de estudo, deobras sobre especialidades técnicas ou outras profissões particulares. Os velhos livrosestão esgotados; aliás, alguns dentre eles envelheceram no plano técnico, enquanto que

no plano político estão geralmente impregnados dum servil espírito capitalista. Quantoaos novos manuais, existe um ou dois no máximo; é difícil encontrá-los porque foram

Page 14: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 14/47

editados em momentos diferentes por empresas ou serviços diversos, fora de todo o plano geral. Não são sempre tecnicamente válidos: são com freqüência demasiadoteóricos e acadêmicos; enquanto que, politicamente, estão em geral não referenciados,não sendo no fundo mais do que a tradução de obras estrangeiras. Temos necessidade deuma série de novos manuais de algibeira: para o serralheiro soviético, para o torneiro

soviético, para o eletricista soviético, etc.. Estes manuais devem adaptar-se à nossatécnica e à nossa economia atuais, devem ter em conta a nossa pobreza assim como asnossas imensas possibilidades, devem visar a desenvolver na nossa indústria métodos ehábitos novos muito mais racionais. Devem ainda, numa medida mais ou menos larga,evidenciar as perspectivas socialistas do ponto de vista das necessidades e dos interessesda própria técnica (é aqui que se localizam os problemas de normalização, deeletrificação, de economia planificada). Em tais obras, as idéias e as conclusõessocialistas devem integrar-se na teoria prática de tal ou tal setor de atividade. De modonenhum devem ter caráter de agitação supérflua e inoportuna. É enorme a procura paraessas edições, devido à carência de operários qualificados, e ao desejo, por parte dos

 próprios operários, de elevar a sua qualificação. Essa procura acentua-se pela baixa de

 produtividade registrada no decurso da guerra civil e imperialista. Temos aqui umatarefa extremamente importante e útil a realizar.

 Não se pode certamente ignorar quanto é difícil redigir esses manuais. Os operários,mesmo os altamente qualificados, não sabem escrever livros. Os escritoresespecializados que abordam certos problemas ignoram com freqüência os seus aspectos

 práticos. Finalmente, entre estes, poucos há que possuam um pensamento socialista. Noentanto, este problema só pode encontrar uma solução combinada e não "simples", istoé, rotineira. Para escrever um manual, é preciso reunir um grupo de três pessoas (troika)formado por um escritor especialista, tecnicamente informado, que conheça - ou queseja capaz de conhecer - o estado do ramo correspondente da nossa produção, por umoperário altamente especializado nesse domínio, de espírito inventivo, e por um escritormarxista, com formação política e com alguns conhecimentos no campo da técnica e noda produção. Quer se utilize esta solução ou outras análogas, permanece a necessidadede pôr em marcha uma biblioteca exemplar de obras técnicas destinadas às oficinas,convenientemente encadernadas, de formato prático e pouco dispendiosas. Semelhante

 biblioteca desempenharia um duplo papel: favoreceria a elevação da qualificação dotrabalho e por conseqüência o êxito da construção socialista; ajudaria, ao mesmo tempo,a reunir um grupo de operários-produtores extremamente válidos para a economiasoviética no seu conjunto e, portanto, para o partido comunista.

Sem dúvida que não se pode ter por limite único uma série de manuais de estudo. Senos detivemos de forma tão detalhada sobre esse particular problema foi porque ele nosoferece, ao que parece, um exemplo bastante evidente da nova abordagem ditada pelos

 problemas do período atual. A luta pela conquista ideológica dos proletários "apolíticos" pode e deve ser conduzida por meios diversificados. É preciso editar semanários oumensários científicos e técnicos especializados por sector de produção; é preciso criarsociedades científicas e técnicas destinadas a esses operários. É com vista a eles que,numa boa metade, deve orientar-se a nossa imprensa profissional se de fato não quer seruma imprensa destinada unicamente ao pessoal dos sindicatos. Mas o argumento

 político mais convincente para os operários desse tipo consistirá em cada um dos nossosêxitos práticos no domínio industrial, em cada organização real do trabalho na fábrica

ou na oficina, em cada esforço ponderado do partido nessa direção.

Page 15: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 15/47

Pode formular-se da maneira seguinte o ponto de vista político do operário-produtor que presentemente nos interessa e que raramente exprime as suas idéias: "quanto àrevolução e ao derrube da burguesia, nada há a opor, houve razão em fazê-lo. Nãotemos necessidade da burguesia. Não temos também necessidade dos representantesmencheviques ou outros. No que respeita à "liberdade de imprensa?"- isso não é de

tanta importância e não é esse o fundo do problema. Mas como ides vós resolver o problema da economia? Vós, comunistas, haveis tomado a direção dos negócios. Osvossos fins e os vossos planos são válidos, sabemo-lo, é inútil repeti-lo, houvemo-los,estamos de acordo, damo-vos o nosso apoio, mas, vejamos, como ides resolver

 praticamente esses problemas? Até ao presente, não vale a pena escondê-lo, aconteceu-vos com freqüência pôr o dedo onde não era devido. Sabemos que não se pode agir bemà primeira, que é preciso aprender, que os erros são inevitáveis. Sempre assim sucede. Evisto que suportamos os crimes da burguesia, suportaremos tanto mais os erros darevolução. Mas isso não durará eternamente. Entre vós, comunistas, existe gentediferente entre si, como aliás também entre nós sucede, pobres pecadores: certos há queestudam realmente, fazem conscienciosamente o seu trabalho, diligenciam chegar a um

resultado econômico prático, enquanto que outros se limitam à pantominice. E os pantomineiros são muito prejudiciais, porque o trabalho se lhes escapa por entre osdedos ...". Este tipo de operário, eis o que ele é: torneiro, serralheiro ou fundidor zeloso,hábil e atento ao seu trabalho; não é entusiasta, é antes politicamente passivo, masreflete, tem espírito crítico; é por vezes um pouco cético, mas mantém-se sempre fiel àsua classe; é um proletário de valor. É em direção a este tipo de operários que o partidodeve atualmente dirigir os seus esforços. O nosso grau de implantação nessa camadasocial - na economia, na produção, na técnica - será o índice mais seguro dos nossosêxitos em matéria de militantismo cultural, encarado no seu sentido mais amplo, nosentido leninista do termo.

Dirigir os nossos esforços para o operário consciencioso, de modo nenhum contradiz,claro está, a tarefa primordial do partido que consiste em enquadrar a jovem geração do

 proletariado, porque esta jovem geração se desenvolve em condições precisas; forma-se,fortalece-se e endurece-se resolvendo determinados problemas. A jovem geração deve,antes de mais, ser uma geração de operários especializados, altamente qualificados,amantes do seu trabalho. Deve adquirir consciência de que a sua produção serve aomesmo tempo o socialismo. A atenção dispensada à aprendizagem, o desejo de adquiriruma alta qualificação, aumentará, aos olhos da juventude, a autoridade dos "velhos"operários, que, como já se disse, permanecem na maioria fora do partido. Ao mesmotempo que dirigimos os nossos esforços para o operário consciencioso e hábil, devemos

também aplicar-nos em educar a juventude proletária. Sem isso, seria impossível seguirem frente, rumo ao socialismo.

Início da página 

Notas: 

(1) É útil lembrar aqui a definição do "militantismo cultural" que dou nos meus"Pensamentos sobre o Partido":

"Ao nível da sua realização política, a revolução parece ter-se "dispersado"#8221 emtarefas particulares: é preciso reparar as pontes, ensinar a ler e a escrever, baixar o preço

Page 16: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 16/47

de custo da fabricação das botas nas fábricas soviéticas, lutar contra a imundície, prender os escroques, levar a eletricidade aos campos, etc. Alguns grosseirosintelectuais de espírito invertido (é decerto a razão pela qual se consideram poetas efilósofos), falaram já da revolução com grandiosa condescendência. Aprende-se, dizemeles, a vender (como é patusco) e a coser os botões (deixai-nos rir). Mas deixemos esses

tagarelas palrar no vazio. Realizar um trabalho puramente prático e quotidiano nodomínio da economia e da cultura soviéticas - mesmo no do comércio de retalho - demodo nenhum significa ocupar-se de "coisas mínimas" e não implica necessariamentementalidade mesquinha. Coisas mínimas sem grandes coisas é o que mais abunda navida humana. Mas em história não se fazem nunca grandes coisas sem pequenas coisas.Mais exatamente: as pequenas coisas, numa grande época, quando integradas numagrande obra, deixam de ser "pequenas coisas".Entre nós, trata-se da construção da classe operária, que, pela primeira vez, constrói

 para si e segundo o seu próprio plano. Esse plano histórico, ainda extremamenteimperfeito e confuso, deve englobar no seu conjunto criativo único todos os elementos,mesmo os mais insignificantes, da atividade humana.

Todas as tarefas menores e isoladas - até ao comércio soviético de retalho - são parteintegrante da classe operária dominante que procura ultrapassar a sua fraquezaeconômica e cultural.A construção socialista é uma construção planificada de grande envergadura. Através dofluxo e refluxo, dos erros e das viragens, dos meandros da  N.E.P., o partido persegue oseu plano, ensina a cada um a ligar a sua atividade particular à obra geral, que exigehoje que se cosam os botões com cuidado e que amanhã pedirá que se morracorajosamente sob a bandeira do comunismo.Devemos exigir, e exigimos, da parte da nossa juventude, uma especialização superior eaprofundada; deverá pois se libertar do principal defeito da nossa geração, que blasonade tudo conhecer e de tudo saber fazer; mas tratar-se-á de uma especialização ao serviçodo plano geral, pensado e aceite por cada um em particular. (voltar ao texto) 

(2) Em russo: "partijnost". (voltar ao texto) 

Page 17: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 17/47

 

II - O jornal e seu leitor

O aumento numérico do partido bem como o desenvolvimento da sua influência sobreos sem-partido, por um lado, e a nova etapa da revolução que hoje abordamos, por

outro, explica que o partido se defronta, ao mesmo tempo, com problemas novos mastambém com antigos problemas que aparecem sob nova forma, inclusive no domínio daagitação e da propaganda. Precisa-se reexaminar muito atentamente os instrumentos e

os meios da nossa propaganda. Serão eles suficientes em volume, isto é, abarcarão todosos problemas que é preciso esclarecer? Terão tomado uma expressão adequada,

acessível ao leitor e capaz de o interessar?

Este problema entre outros foi examinado pelos vinte e cinco agitadores e propagandistas moscovitas reunidos em assembléia. Os seus pontos de vista, as suas

opiniões, as suas apreciações, foram estenografadas. Espero que poderei em breve editartodo esse material. Os nossos camaradas jornalistas encontrarão aí um grande númerode amargas censuras, e devo confessar que, na minha opinião, a maior parte delas são

 justificadas. A questão da organização da nossa agitação escrita, e em primeiro lugar danossa agitação jornalística, é demasiado importante para que se deixe em silencio seja o

que for. É preciso falar francamente.

Há um provérbio que diz: “É o uniforme que faz o general ...”. É preciso pois começar pela técnica jornalística. Esta é por certo melhor do que em 1919-1920, mas mostra-seainda extremamente defeituosa. Devido à falta de cuidado na paginação e ao excesso detinta, o leitor cultivado, e com mais razão aquele que o não é, terá dificuldade em ler o jornal. Os jornais de grande tiragem destinados às largas massas operárias, como o“Moscovo trabalhador” ou “Gazeta operária”, são extremamente mal impressos. A

diferença de um exemplar para outro é muito grande: umas vezes, quase todo o jornal élisível, outras vezes não se compreende quase metade. É por isso que a compra dum

 jornal se assemelha a uma lotaria. Tomo ao acaso um dos últimos números da “Gazetaoperária”. Examino o “canto das crianças”: “O conto do gato inteligente ...”. Impossívellê-lo, de tal modo a impressão é defeituosa; e isso destina-se a crianças! É preciso dizerfrancamente: a nossa técnica em matéria de jornais é a nossa vergonha. Apesar de nossa

 pobreza, apesar de nossa imensa necessidade de instrução, pagamos com freqüência oluxo de sujar a quarta parte quando não mesmo a metade duma folha de jornal. Um tal“farrapo” não pode deixar de irritar o leitor; um leitor pouco informado cansa-se disso,

um leitor cultivado e exigente range os dentes e despreza abertamente aqueles que assimtroçam dele. Porque existe exactamente alguém que escreve esses artigos, alguém queos pagina, alguém que os imprime, e no fim de contas o leitor, não obstante todos os

seus esforços não consegue decifrar metade. Que vergonha e que infâmia! Quando doúltimo congresso do partido, dedicou-se atenção particular ao problema da tipografia. E

 põe-se a questão: até quando vamos nós suportar tudo isto?

“É o uniforme que faz o general ...”. Vimos já que uma impressão defeituosa impede

 por vezes que se penetre no espírito de um artigo. Mas falta ainda saber proceder adisposição do material, à paginação, às correcções, que são entre nós particularmente

Page 18: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 18/47

mal feitas. Não é raro encontrar erros de impressão e enormes gralhas, não só nos jornais mas também nas revistas científicas, em especial na revista “Sob a bandeira domarxismo”. Leão Tolstoi disse um dia que os livros eram um instrumento para difundira ignorância. Esta afirmação de grande senhor desdenhoso é, sem dúvida, totalmenteenganosa. Mas, infelizmente, justifica-se em parte... se se considera as correcções de

que carece a nossa imprensa. E isso também não se pode continuar a suportar! Se aimprensa não dispõe dos quadros necessários, de correctores-revisores cultivados queconheçam o seu trabalho, será então necessário aperfeiçoar no conjunto os quadros

existentes. É preciso dar-lhes cursos de apoio bem como cursos de instrução política.Um corrector deve compreender o texto que corrige, caso contrário não será um

corrector mas um involuntário propagador da ignorância; a imprensa, diga o que disserTolstoi, é, e deve ser, um instrumento de educação.

Observemos agora um pouco mais de perto o conteúdo do jornal.

Um jornal serve antes de mais de elo de ligação entre os indivíduos; dá-lhes a conhecer

o que se passa e aonde. O que dá alma a um jornal é uma informação actual, abundantee interessante. Nos nossos dias, o telégrafo e a rádio desempenham um papel muito

importante na informação jornalística. É por isso que o leitor habituado a um jornal efamiliarizado com a sua leitura se precipita antes de mais sobre a rubrica dos

“comunicadores”. Mas para que os telegramas ocupem o primeiro lugar  num jornalsoviético é necessário que apresentem factos importantes e de interesse sob uma formacompreensível para a massa dos leitores. Não é isso, porém, o que sucede. Nos nossos jornais, os comunicadores são compostos e impressos por uma forma semelhante à da

“grande” imprensa burguesa. Quando se segue quotidianamente os comunicados decertos jornais, tem-se a impressão que os camaradas que se ocupam dessa rubrica, ao paginarem os novos telegramas, já esqueceram de todo o que tinham publicado navéspera. O seu trabalho não apresenta em absoluto nenhuma sequência lógica. Cada

telegrama assemelha-se a um estilhaço que ali caiu por acaso. As explicações que se lhereferem têm um caráter fortuito e frequentemente irreflectido. Quando muito, ao lado do

nome de tal ou tal político burguês estrangeiro, o redactor da rubrica limita-se amencionar entre parêntesis: “lib.” ou “cons.”. O que significa: liberal ou conservador.Mas como três quartas partes dos leitores não compreendem essas abreviaturas, taisesclarecimentos apenas podem confundi-los ainda mais. Os comunicadores que, por

exemplo, nos informam do que se passa na Bulgária ou na Roménia, passamhabitualmente por Viena, Berlim, Varsóvia. Os nomes destas cidades, citados no início

do telegrama, confundem totalmente a massa de leitores, completamente ignaros em

geografia. Por que cito eu estes detalhes? Sempre pela mesma razão: porque mostram,melhor do que tudo, a que ponto dedicamos pouca atenção à preparação dos nossos jornais, à situação do leitor pouco advertido, às suas necessidades, às suas dificuldades.

A forma como se apresentam os telegramas num jornal operário é o que há de mais

difícil, o que requer maior responsabilidade. Exige um trabalho atento e minucioso. É preciso reflectir sobre todos os aspectos de um comunicado importante e dar-lhe umaforma tal que corresponda imediatamente ao que a massa dos leitores saiba já mais ou

menos bem. É preciso reagrupar os telegramas antes de os fazer preceder dasnecessárias explicações. De que serve um título destacado, de duas, três ou mais linhas,

se não faz mais do que repetir o que diz o comunicado? Com freqüência, tais títulosapenas servem para confundir o leitor. É freqüente apresentar uma greve sem

importância com este título: “Aí está” ou “Em breve o desfecho”, enquanto que o próprio telegrama menciona apenas um vago movimento dos ferroviários, sem

Page 19: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 19/47

mencionar nem a sua causa nem os seus fins. No dia seguinte, nem uma palavra sobre oacontecimento; mesmo silêncio no dia seguinte. Quando o leitor lê de novo um

comunicado intitulado “Aí está”, pensa que se trata de um trabalho pouco sério, dumaespeculação jornalística, e o seu interesse pelos comunicados e pelo próprio jornaldiminui. Se, pelo contrário, o redactor da rubrica dos telegramas se lembra do que

 publicou na véspera e na ante-véspera, e se ele próprio procura compreender o que ligaos acontecimentos e os factos entre si a fim de os explicar ao leitor, a informação,mesmo quando imperfeita, adquire desde logo um imenso valor educativo. No espírito

do leitor essas informações ordenam-se pouco a pouco com crescente solidez. Torna-se-lhe cada vez mais fácil compreender os factos novos e aprende a procurar e encontrarnum jornal as informações importantes. Deste modo, o leitor dá um passo enorme no

caminho da cultura. É indispensável que as relações concentrem todos os seus esforçosna informação telegráfica, é indispensável que consigam dar a essa rubrica a

composição devida. Só na medida em que os próprios jornais fazem pressão e dão oexemplo, é que se poderá educar progressivamente os correspondentes da agência

 Rost a(1). 

Uma vez por semana, com preferência evidente pelo domingo, ou seja, o dia em que ooperário está livre, dever-se-ia fazer um balanço dos factos mais significativos. Diga-se,a propósito, que um tal trabalho seria um maravilhoso meio de educar os responsáveisdas diversas rubricas. Aprenderiam assim a investigar mais cuidadosamente o que liga

entre si os diversos acontecimentos, com reflexos benéficos sobre a redacção quotidianade cada rubrica.

É impossível compreender as notícias do estrangeiro sem possuir certos conhecimentosgeográficos elementares. As vagas cartas que os jornais reproduzem por vezes, mesmo

no caso em que são lisíveis, não ajudam muito os leitores que ignoram como se dispõemos diversos países do mundo, como se repartem os diversos Estados. A questão dascartas geográficas representa, na nossa situação, isto é, em vista do envolvimento

capitalista e do ascenso da revolução mundial, um importante problema de educaçãosocial. Onde quer que se organizem conferências ou reuniões, ou pelo menos nos locaismais importantes, é necessário dispor de cartas geográficas especiais com as fronteiras

entre Estados bem delimitadas e das quais constem certos elementos dedesenvolvimento econômico e político desses Estados. Seria talvez bom, como durante

a guerra civil, afixar esse gênero de cartas esquemáticas em certas ruas e locais. Nãoseria difícil proceder assim. No ano passado, foram espalhadas bandeirolas com incrível

 profusão, sob qualquer pretexto. Não teria sido melhor utilizar esses meios para dotar as

fábricas, as oficinas e depois as aldeias de cartas geográficas? Cada conferencista, cadaorador, cada agitador, etc., ao evocar a Inglaterra e as suas colônias, podeimediatamente situá-las na carta. Mostraria da mesma forma aonde se encontra o Ruhr.

Será o orador quem, antes de mais, disso tirará proveito: saberá mais clara e mais precisamente acerca do que fala visto dever verificar antecipadamente aonde se

encontra tal ou tal país, tal ou tal Estado. E os auditores, se a questão lhes interessa, nãodeixarão de se recordar do que lhes foi mostrado, não talvez pela primeira vez mas pelaquinta ou décima vez. E a partir desse momento, quando as palavras “Ruhr”, “Londres”

ou “Índia” deixarem de mostrar -se vazias de sentido, o leitor lerá os comunicados deforma totalmente diferente. Sentirá prazer em ler no jornal a palavra “Índia”, uma vezque saiba aonde se encontra esse país. Sentir-se-à mais cultivado e ter-se-à tornado de

facto mais culto. Deste modo, as cartas geográficas claras e expressivas tornam-se um

Page 20: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 20/47

elemento fundamental da educação política de todos. O Gosizdat(2) devia ocupar-seseriamente deste problema.

Mas voltemos ao jornal. Os defeitos que assinalamos a propósito das “notícias doestrangeiro” repetem-se na informação “sobre o país” em parte no que respeita à

actividade das empresas, das cooperativas soviéticas, etc. Esta atitude negligente edesenvolta em relação ao leitor observa-se com freqüência nos “pequenos nadas” que bastam para tudo estragar. As empresas soviéticas são mencionadas por abreviações;

são, por vezes, designadas unicamente pelas suas iniciais (a primeira letra de cada palavra). Tal permite que na própria empresa ou nas que lhe estão próximas se façaeconomia de tempo e papel. Mas a grande massa dos leitores não pode decifrar essas

abreviações convencionais. Por outro lado, os nossos jornalistas, cronistas e repórteres jogam com um amontoado de siglas incompreensíveis, como palhaços com os seus

 balões. Por exemplo, relata-se uma discussão com determinado camarada, presidente da“S.A.M.”. Esta sigla é utilizada dezenas de vezes ao longo de todo o artigo. É preciso

ser-se um burocrata informado para compreender que se trata do Serviço de

Administração Municipal(3). A massa dos leitores nunca decifrará esta abreviatura e,irritada, porá de parte o artigo e talvez todo o jornal. Os nossos jornalistas devem

compenetrar-se de que as abreviaturas e as siglas só são válidas na medida em que setornem imediatamente compreensíveis; quando apenas servem para confundir os

espíritos, é criminoso e estúpido utilizá-las.

Um jornal, como já dissemos, deve antes de mais informar correctamente. Não poderáser um instrumento de educação se a informação não for correcta, interessante e judiciosamente exposta. Um dado acontecimento deve primeiro que tudo ser

apresentado de forma clara e inteligível: deve precisar aonde o facto se passa e como se passa. Consideramos com freqüência que os próprios acontecimentos e factos são

conhecidos do leitor, ou que ele os compreende por uma simples alusão, ou ainda quenão têm nenhuma importância e que o fim do jornal é, pretensamente, discorrer “a

 propósito” de tal ou tal facto (que o leitor ignora ou não compreende) sobre muitascoisas edificantes de que há muito se está saturado. É isso o que com freqüência sucede porque o autor do artigo ou da pequena notícia não sabe sempre do que fala e, para serfranco, porque é demasiado preguiçoso para se informar, para ler, para usar o telefone

comprovando as suas informações. Evita pois o lado vivo do assunto e relata, “a propósito” de qualquer facto, que a burguesia é a burguesia e o proletariado é o

 proletariado. Caros colegas jornalistas, o leitor suplica-vos que evitem dar-lhes lições,fazer-lhes sermões, dirigir-lhes apóstrofes ou ser agressivos, mas antes que lhe

descrevam e expliquem clara e inteligivelmente o que se passou, aonde e como se passou. As lições e as exortações ressaltarão por si mesmas.

O escritor, e em particular o jornalista, não deve partir do seu ponto de vista mas sim dodo leitor. Trata-se de uma distinção muito importante, que se reflecte na estrutura de

cada artigo em particular e na do jornal em conjunto. No primeiro caso, o escritor(inábil e pouco consciente do seu trabalho) apresenta simplesmente ao leitor a sua própria pessoa, os seus próprios pontos de vista, os seus pensamentos e até, com

freqüência, as suas frases. No outro caso, o escritor que encara a sua tarefa com rigor,leva o leitor a por si próprio tirar as conclusões necessárias, utilizando para isso a

experiência quotidiana das massas. Esclareçamos esta idéia utilizando um exemplo

citado quando da reunião dos agitadores de Moscovo. Este ano, como se sabe, umaviolenta epidemia de malária devastou o país. Enquanto que as antigas epidemias –  tifo,

Page 21: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 21/47

coleta, etc. –  diminuíram claramente nos últimos tempos (atingindo mesmo uma taxainferior à de antes da guerra), a malária desenvolveu-se em proporções inauditas. Atingeas cidades, os bairros, as fábricas, etc., as suas aparições súbitas, o seu fluxo e refluxo, a periodicidade (regularidade) dos seus acessos, fazem com que a malária actue não só

sobre a saúde mas também sobre a imaginação. Fala-se e reflecte-se sobre ela,

oferecendo terreno propício tanto às superstições como à propaganda científica. Mas ointeresse que manifesta a nossa imprensa é ainda insuficiente. No entanto, cada artigosobre a malária suscita, como relataram os camaradas de Moscovo, o maior interesse: o

número do jornal passa de mão em mão, o artigo é lido em voz alta. É de toda aevidência que a nossa imprensa, sem se limitar à propaganda sanitária do comissariado

 para a saúde pública, deve empreender sobre o seu tema um importante trabalho. É preciso começar por descrever o próprio desenvolvimento da epidemia, precisar as

regiões em que se expande, enumerar as fábricas e oficinas mais particularmenteatingidas. Isso estabelecerá já uma ligação viva com as massas mais atrasadas,mostrando-lhes que se conhecemos, que nos interessamos por elas, que não são

esquecidas. Depois, é preciso explicar a malária de um ponto de vista científico e social,

mostrar com dezenas de exemplos que se desenvolve em condições de vida e de produção particulares, dar todo o destaque às medidas tomadas pelos organismos

governamentais, dispensar os conselhos necessários, e repeti-los com insistência emcada número, etc.. Neste terreno, pode e deve-se desenvolver a propaganda contra os

 preconceitos religiosos. Se as epidemias, como em geral todas as doenças, representamum castigo dos pecados cometidos, porque então se propagam mais nos lugares

húmidos do nos lugares secos? Uma carta do desenvolvimento da maláriaacompanhadas das explicações práticas necessárias, é um notável instrumento de

 propaganda anti-religiosa. O seu impacto será tanto mais importante quanto o problemaafecta ao mesmo tempo e muito intensamente amplos grupos de trabalhadores.

Um jornal não tem direito de não se interessar pelo que interesse às massas, à multidãooperária. Certamente que todo o jornal pode e deve dar a sua interpretação dos factosvisto que é chamado a educar, desenvolver e elevar o nível cultural. Mas não atingirá

esse objectivo, salvo se se apoiar nos factos e nos pensamentos que interessem à massados leitores.

É indubitável que, por exemplo, os processos e o que se chama os “faits divers”:desgraças, suicídios, crimes, dramas passionais, etc., sensibilizam grandemente largascamadas da população. E isso por uma razão muito simples: são exemplos expressivosda vida que se faz. Contudo, regra geral, a nossa imprensa apenas concede muito pouca

atenção a esses factos, limitando-se no melhor dos casos a algumas linhas em pequenoscaracteres. Resultado: as massas colhem as suas informações, com freqüência malinterpretadas, de fontes menos qualificadas. Um drama de família, um suicídio, um

crime, uma sentença severa, impressionam e impressionarão a imaginação. O “processode Komarov” eclipsou mesmo durante um certo tempo o “caso Curzon”(4)  –  escrevemos camaradas Lagutine e Kasanski, da manufactura de tabaco “Estrela Vermelha”. A

nossa imprensa deve manifestar o maior interesse pelos “faits divers”: deve comentá-lose esclarecê-los, deve fornecer deles uma explicação que, ao mesmo tempo, tenha em

conta a psicologia, a situação social e o modo de vida. Dezenas ou centenas de artigosrepetindo lugares comuns sobre o emburguesamento da burguesia e sobre a estupidez

dos pequenos burgueses não terão maior influência sobre o leitor do que um importuno

chuvisco de outono. Mas o processo dum drama familiar bem descrito e ordenado nodecurso duma série de artigos pode interessar milhares de leitores, despertar-lhes

Page 22: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 22/47

 pensamentos e sentimentos novos, descobrir-lhes um horizonte mais vasto. Após o quealguns leitores solicitarão talvez um artigo geral sobre o tema da família. A imprensa

 burguesa de sensação tira enorme partido dos crimes e dos envenenamentos, jogandocm a curiosidade doentia e com o mais vis dos instintos do homem em geral. Isso seriada mais pura hipocrisia. Somos o partido das massas. Somos um Estado revolucionário

e não uma confraria espiritual ou um convento. Os nossos jornais devem satisfazer nãosó a curiosidade mais nobre mas também a curiosidade natural; precisa-se apenas queelevem e melhorem o nível dessa curiosidade, apresentando e esclarecendo os factos deforma adequada. Os artigos e as pequenas notícias desse gênero têm sempre e em toda a parte um grande sucesso. Ora, não se vêem quase nunca na imprensa soviética. Dir-se-àque faltam para esse tema os necessários especialistas literários. Isso porém só em parte

é verdade.

Quando um problema é clara e judiciosamente exposto, encontra-se sempre quem sejacapaz de o resolver. É preciso antes de mais encaminhar a atenção geral para uma séria

viragem. E em que sentido? No sentido do leitor vivo, tal qual é, do leitor de massa,

despertado pela revolução mas ainda pouco letrado, ávido de conhecer mascompletamente carente, e que continua sendo um homem a quem nada de humano éestranho. O leitor tem necessidade de que se lhe manifeste interesse, ainda que nem

sempre saiba exprimir esse desejo. Mas os vinte e cinco agitadores e propagandistas docomitê de Moscovo souberam muito bem falar por ele.

* * *

 Nem todos os jovens escritores propagandistas sabem escrever de modo a sercompreendidos. Talvez porque não tiveram que rasgar caminho através da dura

carapaça do obscurantismo e da ignorância. Dedicaram-se à literatura de agitação numaépoca em que, nas largas camadas da população, um conjunto de idéias, de palavras e de

tendências tinham já largo curso. Um perigo ameaça o partido: ver-se cortado dasmassas sem partido, o que se deve ao hermetismo do conteúdo e da forma da

 propaganda, à criação duma gíria política inacessível não só a nove décimos doscamponeses mas também aos operários. A vida, porém, não pára um único instante e as

gerações sucedem-se.

Hoje, o destino da República soviética está a cargo, em grande parte, daqueles que nomomento da guerra imperialista e das revoluções de Março e de Outubro tinham 15, 16

e 17 anos. Este “impulso” da juventude far -se-á sentir cada vez mais. Ninguém pode

dirigir-se a essa juventude com as formular feitas, as frases, as expressões e as palavrasque para nós os “velhos” tem um sentido, porque decorrem da nossa anteriorexperiência, mas que, para ela, são vazios de conteúdo. É preciso aprender a falar a sua

linguagem, isto é, a linguagem da sua experiência.

A luta contra o tzarismo, a revolução de 1905, a guerra imperialista e as duas revoluçõesde 1917 são para nós experiências vividas, recordações, factos significativos da nossa

 própria actividade. Falamos a seu respeito por alusões, recordamos e complementamosem pensamento aquilo que não exprimimos. Mas a juventude? Ela não compreende

essas alusões porque não conhece os factos, não os viveu e não pode tomarconhecimento deles nem através dos livros nem de descrições objectivas que não

existem. Aonde uma alusão é bastante para a velha geração, para a juventude é

Page 23: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 23/47

necessário um manual. É tempo de editar uma série de manuais e de obras de educação política revolucionária para uso da juventude.

Início da página 

Notas: 

(1) ROSTA: Agência Telegráfica Russa; ancestral da agência TASS. (retornar ao texto) 

(2) Gosizdat: GOSudarstvenoje IZDAT’stvo; Edições do Estado. (retornar ao texto) 

(3) Em russo: “OKX” –  Otd’el Kommunal’nogo Xoz’ajstva. (retornar ao texto) 

(4) O caso Curzon: trata-se dos manejos anti-soviéticos do diplomara inglês G. N.

Kurzon (1859-1925) que foi um dos organizadores da intervenção contra a URSS; em1919 enviou uma nota ao governo soviético emprazando-o a cessar o avanço das tropas

do Exército Vermelho segundo uma linha chamada “linha Curzon”. Em 1923 enviouum ultimatum provocador ao governo soviético, ameaçando-o com uma nova

intervenção. (retornar ao texto) 

III - A atenção deve incidir sobre os detalhes(1) 

Devemos repor de pé a nossa destruída economia. É preciso construir, produzir, reparar,consertar. Gerimos a economia em bases novas, que devem garantir o bem-estar detodos os trabalhadores. Mas a produção, na sua essência, reduz-se à luta do homemcontra as forças hostis da natureza, a utilização racional das riquezas naturais. A

 política, os decretos e as consignas apenas podem regularizar a actividade econômicaimprimindo-lhe uma direção geral. Só porém a produção de bens materiais e umtrabalho sistemático e persistente podem realmente satisfazer as necessidades dohomem. O progresso econômico do homem compõe-se de parcelas de elementosdiversos, de detalhes e de pequenos nadas. Não se pode repor de pé uma economia sem

dedicar enorme atenção aos detalhes. Ora, entre nós, esse interesse é nulo ou quase nulo.A tarefa principal da educação e da auto-educação no domínio da economia é a dedespertar, desenvolver e reforçar essa atenção perante as exigências particulares,insignificantes e quotidianas da economia; nada se deve negligenciar tudo se deveanotar, agir em tempo oportuno e exigir o mesmo dos outros. Esta tarefa impõe-se-nosem todos os domínios da vida política e da construção econômica.

Vestir e calçar o exército, dado o estado atual da produção, não é um problema simples.O abastecimento é com freqüência muito irregular. Por outro lado, há no exército pouca

 preocupação em consertar e manter em bom estado o calçado e o vestuário disponível.Quase nunca se engraxa o calçado. E quando se pergunta porquê, ouvem-se as mais

diversas respostas: ora é porque falta a pomada, ora porque não foi distribuída a tempo,ou ainda porque o calçado é castanho e a pomada é preta, etc. Mas a razão principal é

Page 24: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 24/47

que nem os soldados nem os quadros do Exército Vermelho cuidam de suas coisas.Calçado não engraxado, sobretudo quando encharcado, seca e só serve para deitar foraao fim de algumas semanas. E como não se consegue o seu suficiente fornecimento,começa-se a produzi-lo de qualquer maneira. As botas estragam-se ainda mais depressa.Está-se num círculo vicioso. E contudo há um meio para encontrar a solução, que é um

meio muito simples: é preciso que as botas sejam encebadas a tempo, é preciso que osatacadores sejam apertados com cuidado, pois de contrário perdem a aparência edeformam-se. Destruímos bom calçado americano unicamente por não termosatacadores. É possível encontrá-los se se insiste um pouco; e se não há atacadores é

 precisamente porque não se dispensa atenção aos detalhes da vida quotidiana. Ora, sãoestes pequenos nadas que acabam por constituir um todo.

Passa-se a mesma coisa, ou pior ainda, com as baionetas. É difícil fabricá-las, mas fácilinutilizá-las. É preciso cada um cuidar de sua baioneta, limpá-la e oleá-la. E isso exigeatenção cuidada e permanente, torna necessária toda uma aprendizagem, toda umaeducação.

Estes pequenos nadas, que se acumulam e se combinam, acabam por preservar ou...destruir qualquer coisa de importante. As pequenas degradações dos caminhos quandonão reparadas a tempo, avolumam-se e formam covas e sulcos que tornam difícil acirculação, danificam os carros, as viaturas e os caminhões, estragam os pneus. Umcaminho em mau estado obriga a dispêndios de dinheiro e de esforços dez vezes maisimportantes do que seria necessário para o reparar. E é também devido a pequenosnadas deste gênero que as máquinas, as fábricas e os edifícios se deterioram. Paramanter umas e outros em bom estado é preciso dedicar atenção quotidiana e permanentea vários detalhes. Essa atenção falta-nos, porque a educação econômica e cultural éinsuficiente.

É freqüente confundir-se o interesse dedicado aos detalhes com o burocratismo. Hánisso um erro grave. O burocratismo consiste em dedicar atenção a uma forma vazia emdetrimento do conteúdo, em detrimento da acção. O burocratismo enreda-se noformalismo, nos pecadilhos, sem resolver nenhum detalhe prático. O burocratismo, pelocontrário, evita em geral os detalhes práticos que constituem o conjunto dum problema,contentando-se unicamente em fazer a articulação da papelada.

Pedir que não se cuspa para o chão ou que não se lancem pontas de cigarros nas escadasou corredores, é um “pequeno nada”, uma exigência mínima, mas que no entanto tem

um significado educativo e econômico enormes. Aquele que, sem se constranger, cospenuma escada ou num assoalho, é um inútil e um irresponsável. Não é com ele que se pode contar para repor a economia de pé. Não cuidará de seu calçado, partirá asvidraças, por descuido, será portador de parasitas...

Acharão alguns, repito-o, que uma obstinada atenção a este gênero de detalhes procededa quesília e do “burocratismo”. Mas é muito freqüente que os inúteis e osirresponsáveis escondam sua natureza lutando aparentemente contra o burocratismo.“Que complicação por causa duma simples ponta de cigarro lançada na escada!” —  dizem eles. Eis uma verdadeira inépcia. Lançar pontas de cigarro para o chão edesdenhar do trabalho alheio. Ora, para que as casas-comunas possam desenvolver-se, é

 preciso que cada locatário, homem ou mulher, dispense atenção a que a limpeza e aordem reinem em toda a casa. De contrário, terão de encontrar-se, como frequentemente

Page 25: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 25/47

sucede, numa espécie de antro piolhoso, cheio de escarros, e de modo nenhum numacasa-comuna. É preciso combater incansável e impiedosamente essa desenvoltura, essafalta de educação, essa negligência, combatê-la explicando, dando o exemplo, fazendo

 propaganda, exortando as pessoas e levando-as a tornarem-se responsáveis. Aquele que,sem comentários, sobe uma escada emporcalhada ou atravessa um pátio sujo, é um mau

cidadão e um construtor sem consciência.

O exército reflecte os aspectos positivos bem como os aspectos negativos da vida popular. Isso verifica-se totalmente no que respeita è educação econômica. O exércitodeve a todo o custo elevar-se nesse domínio, nem que seja de um só grau. Esse nível

 pode ser atingido graças aos esforços conjugados dos quadros dirigentes do próprioexército, de alto a baixo da escada, em correlação com os melhores elementos da classeoperária e do campesinato no seu conjunto.

 Na época em que o aparelho governamental soviético estava em vias de se formar, oexército mostrava-se impregnado de um espírito “partisan”(2) cujos métodos aplicava.

Conduzimos uma luta persistente e impiedosa contra essa mentalidade, o que semqualquer dúvida produziu importantes resultados: criou-se não só um aparelho dedirecção e de administração centralizado, mas o que é ainda essencial, esse mesmoespírito “partisan” foi profundamente posto em causa na consciência dos trabalhadores.

Hoje devemos conduzir uma luta por igual importante: temos de combater todas asformas de indolência, de indiferença, de falta de asseio. De falta de pontualidade, demoleza e de desperdício. Trata-se de graus e matizes diversos de uma mesma doença:

 por um lado, uma atenção insuficiente; por outro uma petulância de mau quilate. É preciso conduzir neste domínio uma acção de envergadura, um combate quotidiano, persistente e sem quebra, no qual se faça intervir, tal como quando nos foi necessáriodestruir a mentalidade “partisane”, todos os meios disponíveis —  a agitação, o exemplo,a exortação e o castigo.

O plano mais grandioso que não leve em conta os detalhes, não passa de purafrivolidade. Para que servirá, por exemplo, o melhor decreto, se, por negligência, nãochega a tempo ao seu destino, se é recopiado com erros ou se é lido sem atenção? O queé justo a nível inferior, sê-lo-à também a nível superior.

Somos pobres, mas perdulários. Não conhecemos a pontualidade. Somos negligentes.Somos carentes de asseio. Estas taras mergulham as suas raízes num passado servil, e só

 poderemos libertar-nos delas progressivamente, graças a uma propaganda obstinada,graças ao exemplo, à demonstração, a um controle minucioso, a uma vigilância e a umaexigência de cada minuto.

Para realizar projectos grandiosos, é preciso dispensar grande atenção aos mais pequenos detalhes!- é essa a palavra de ordem que deve congregar todos os cidadãosconscientes do país quando abordam um novo período de construção e dedesenvolvimento cultural.

Início da página 

Page 26: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 26/47

Notas: 

(1) Este capítulo foi escrito há dois anos ( Pravda: 1 de Outubro de 1921). Actualmenteno exército dispensa-se uma atenção infinitamente maior do que então à manutençãodas baionetas e do calçado. Mas, no conjunto, a palavra de ordem: “a atenção deve

incidir sobre os detalhes”, conserva ainda hoje todo o seu valor. (retornar ao texto) 

(2) Em russo: “partizanssina”: termo pejorativo designando os quadros do partido quequerem ser “mais partisans que o próprio partido”, levando finalmente à anarquia e aausência de disciplina. (retornar ao texto) 

IV - Para construir o modo de vida é preciso conhecê-lo

É o problema do modo de vida que nos mostra, mais claramente do que qualquer outracoisa, em que medida um indivíduo isolado se mostra ser o objecto dos acontecimentose não o seu sujeito. O modo de vida, isto é, o meio ambiente e os hábitos quotidianos,elabora-se, mais ainda do que a economia ‘nas costas das pessoas’ (expressão de Marx).A criação consciente no domínio do modo de vida ocupou um lugar insignificante nahistória da humanidade. O modo de vida é a soma das experiências inorganizadas dosindivíduos; transforma-se de maneira de todo espontânea sob a influência da técnica oudas lutas revolucionárias e, no total, reflete muito mais o passado da sociedade do queseu presente.

Entre nós, ao logo dos últimos decênios, um proletariado jovem destacou-se docampesinato e somente em parte da pequena burguesia. O modo de vida desse

 proletariado reflecte claramente sua origem social. Basta recordar “Os costumes da ruaRasteriaev”, de Gleb Uspensk i(1) isto é, isto é, os operários de Tula do último quarto doséculo XIX? Trata-se de pequenos burgueses ou de camponeses, que na maior parte,

 perderam toda a esperança de se tornarem integralmente proprietários; é uma mistura de pequena burguesia inculta e de pés descalços.

Desde essa época o proletariado fez progressos gigantescos, decerto bastante maisimportantes em política do que quanto ao seu modo de vida e aos seus costumes. O

modo de vida é terrivelmente conservador. É certo que a rua Rasteriaev já não existesob a forma primitiva. As violências inflingidas aos alunos, o servilhismo ante os patrões, o alcoolismo, a delinquência, tudo isso deixou de existir. Mas as relações entremarido e mulher, entre pais e filhos, na família isolada do mundo, estão aindafortemente impregnados dessa mentalidade Rasteriaev(2). Serão precisos anos oudecênios para escorraçar essa mentalidade do seu último refúgio —  O modo de vidaindividual e familiar —  e para remodelar totalmente num espírito colectivista.

Os problemas do modo de vida familiar foram objecto duma discussão particularmenteapaixonada quando da reunião dos agitadores moscovitas a que já nos referimos. Era

 para todos um problema doloroso. Acumulavam-se impressões, observações e

sobretudo interrogações, mas nenhumas respostas; e, além disso, as própriasinterrogações não encontravam qualquer eco na imprensa nem nas assembléias.

Page 27: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 27/47

Contudo, que imenso campo de investigação, de reflexão e de acção oferece o modo devida comunista e o das largas massas operárias.

 Neste domínio, a nossa literatura artística não nos traz nenhuma ajuda. Pela sua próprianatureza, a arte é conservadora, está em atraso sobre a vida, é pouco apta a apreender os

fenômenos em vias de formação. “A semana”, de Libedinsk i(3)

 suscitou da parte dealguns camaradas um entusiasmo que, confesso, me parece imoderado e perigoso para o jovem autor. Dum ponto de vista formal e não obstante alguns traços de talento, “Asemana” tem um caráter didático, e só um trabalho intenso, obstinado e minucioso

 permitirá a Libendisnki tornar-se um verdadeiro artista. Quero esperar que assimacontecerá. Mas não é este aspecto do problema que nos interessa no presente. O êxitode “A semana” deve-se não às qualidades artísticas da obra, mas a forma “comunista”de encarar a vida que nela descreve. No entanto, sobre esse ponto preciso, a descriçãocarece de profundidade. O “comitê de província” é-nos apresentado de forma demasiadocientífica, não raízes profundas, não se integra na região. É por isso que “A Semana”,no seu conjunto, se assemelha a um romance em episódios, como essas novelas que

descrevem a vida da emigração revolucionária. Decerto que é interessante e instrutivodescrever o “modo de vida” de um comitê da província, mas as dificuldades e ointeresse surgem quando a vida de uma organização comunista entra em contato —  tãoestreitamente como ossos do crânio se interligam —  com a vida quotidiana do povo.Deve-se atacar os problemas de forma radical. É por isso que o ponto de junção do

 partido comunista com as massas populares é o lugar fundamental de todo o actohistórico de colaboração ou oposição.

A teoria comunista está em avanço de vários decênios e, em certos domínios, de váriosséculos, sobre a nossa visa quotidiana. Sem isso, o partido comunista não poderia serum fator histórico de uma imensa força revolucionária. Graças ao seu realismo, a suaflexibilidade dialéctica, a teoria comunista elabora métodos políticos que garantem a suaacção em todos os domínios. Mas a teorias política é uma coisa, e o modo de vida éoutra. A política é flexível, enquanto que o modo de vida é imóvel e tenaz. É por issoque no meio operário existem tantos choques quando a consciência se apóia sobre atradição, choques esses tanto mais violentos quanto não encontram eco. Nem a literaturaartística, nem mesmo os jornais, se lhes referem. A nossa imprensa matém-se mudasobre estes problemas. Quanto às novas escolas artísticas que procuram marchar com arevolução, o modo de vida, em geral não existe para elas. Propõem-se criar a vida nova,reparai, mas não representá-la. Não se podem, porém inventar, em todas as suas peças,um novo modo de vida. Pode-se construí-lo a partir de elementos reais e capazes de se

desenvolver. Por isso, antes de construir, é preciso conhecer aquilo de que se dispõe. Oque é necessário não só para agir sobre o modo de vida, mas em geral para toda aactividade humana consciente. Para poder participar na elaboração do modo de vida,necessita-se conhecer o que existe e quais são as transformações possíveis do materialde que se dispõe. Mostrai-nos, e mostrai antes de mais a vós próprios, o que se passanuma fábrica, numa cooperativa, no meio operário num clube, numa escola, na ruanuma loja de bebidas, procurai compreender o que aí se passa, isto é, encarai os

 problemas de tal modo que neles reencontreis os restos do passado, perscrutando ouadivinhando através deles os germes do futuro. Este apelo dirige-se por igual aoshomens de letras e aos jornalistas, aos correspondentes operários e aos repórteres.Mostrai-nos a vida real tal como saiu do cadinho revolucionário.

Page 28: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 28/47

 Não é, no entanto, difícil adivinhar que não serão estes votos piedosos que vão fazermudar nossos escritores. Aqui é necessário pôr e dirigir bem os problemas. O estudo e aanálise do modo de vida operário devem antes de mais ser apresentados como umamissão que incumbe aos jornalistas, pelo menos aqueles que sabem usar os olhos eouvidos; é preciso orientá-los para esse trabalho, dar-lhes instruções, corrigi-los e

educá-los, para deles fazer os cronistas da revolução do modo de vida. Ao mesmotempo, é necessário alargar o ponto de vista dos correspondentes operários. Na verdade,cada um deles poderia elaborar artigos bastantes mais interessantes e instrutivos do queaqueles que actualmente escrevem. Mas para isso é preciso formular as questões deforma reflectida, pôr justamente os problemas, suscitar as discussões e permitir o seuavanço útil.

Para que se eleve a um nível cultural superior, a classe operária, e antes de mais a suavanguarda, devem refectir o seu modo de vida. E para isso é preciso conhecê-lo. A

 burguesia, principalmente por intermédio da sua inteligentsia, tinha já resolvido esse problema bastante antes de conquistar o poder: ao mesmo tempo que se encontrava

ainda na oposição, era já a classe possidente, e os artistas, os poetas e os jornalistasestavam a seu serviço, ajudavam-na a pensar e pensavam por ela.

O século XVIII francês, chamado o século-das-luzes, foi uma época em que os filósofos burgueses analisaram os diferentes aspectos do modo de vida individual e social,esforçando-se por os racionalizar, isto é, por os submeter às exigências da “razão”. Foiassim que encararam não só os problemas do regime político e da igreja, mas tambémos problemas das relações entre os sexos, da educação das crianças, etc.. É evidente queo simples facto de ter levantado e estudado esses problemas lhes permitiu elevar o nívelcultural do individuo, burguês evidentemente, e intelectual antes de mais. No entanto,todos os esforços da filosofia das luzes para racionalizar, isto é, para reconstruirsegundo as leis da razão as relações sociais e individuais, se apoiavam na propriedade

 privada dos meios de produção, que devia constituir a pedra angular da sociedade nova,fundada na razão. A propriedade nova significava o mercado, o jogo cego das forçaseconômicas não dirigidas pela “razão”. Foi assim que na base das relações econômicasmercantis se elaborou um modo de vida por igual mercantil. Desde que alei do mercadoreinava em absoluto, era impossível pensar uma verdadeira racionalização do modo devida das massas populares. É por isso que a aplicação prática das construçõesracionalizantes dos filósofos do século XVIII, por vezes tão penetrantes e audaciosas, semostra extremamente limitada.

 Na Alemanha, o século das luzes estende-se pela primeira metade do século XIX. Àcabeça do movimento encontra-se a “Jovem Alemanha”, cujos chefes de fila são Heine e Börne. Tratava-se mais uma vez de uma reflexão crítica da ala esquerda da burguesia,da sua inteligentsia, que tinha declarado a guerra à escravatura, a servidão, aofilistinismo, a estupidez pequeno-burguesa e aos preconceitos, e que se esforçavam, mas

 já com um septicismo maior do que os seus predecessores franceses, por instaurar oreino da razão. Esse movimento confundia-se a seguir com a revolução pequeno-

 burguesa de 1848, que foi incapaz de derrubar as múltiplas dinastias alemães e, commaior razão, de reconstruir inteiramente a vida humana.

Entre nós, na nossa Rússia atrasada, o movimento das luzes não assumiu a sua

importância antes da segunda metade do século XIX. Tchernychevski, Pissarev, Dobroliubov, saídos da escola de Belinski, orientaram a sua crítica não tanto quanto às

Page 29: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 29/47

relações econômicas como sobre a incoerência, o seu carácter reacionário e asiático domodo de vida, opondo ao tipo de homem tradicional um homem novo, um “realista”,um “utilitarista”, que desejava construir a sua vida segundo as leis da razão e quedepressa se transformou numa “personalidade crítica”. Esse movimento, que seconfundiu com o populismo, representa a forma russa e tardia do Século das Luzes. Mas

se os espíritos esclarecidos do século XVIII francês apenas puderam numa muitoescassa medida transformar um modo de vida e uns costumes elaborados não pelafilosofia mas pelo mercado, se o evidente papel histórico das Luzes na Alemanha foiainda mais limitado, a influência directa da inteligentsia russa esclarecida sobre o modode vida e os costumes do povo foi praticamente nula. No fim das contas, o papelhistórico do movimento das Luzes na Rússia, incluindo nele o populismo, reduzia-se a

 preparar as condições do surto dum partido revolucionário proletário.

Só com a tomada do poder pela classe operária se criaram as condições de umaverdadeira e radical transformação do modo de vida. Não se pode racionalizar o modode vida, isto, é transformá-lo segundo as exigências da razão, se não se racionaliza a

 produção, visto que o modo de vida tem as suas raízes na economia. Só o socialismoassume a tarefa de encarar racionalmente e de submeter à razão toda a atividadeeconômica do homem. A burguesia por intermédio dos seus elementos mais

 progressivos, contenta-se, por um lado, com racionalizar a técnica (as ciências naturais,tecnologia, química, as descobertas, a mecanização) e, por outro lado a política (graçasao parlamentarismo), mas não a economia que permanece como área de umaconcorrência cega. Essa é a razão porque inconsciência e ignorância continuavam adominar o modo de vida da sociedade burguesa. A classe operária, que tomou o poder,chama a si a tarefa de submeter a um controle e a uma direção conscientes ofundamento econômico das relações humanas. É exclusivamente isso que permitirá umaconstrução deliberada do modo de vida.

Mas tal implica que os nossos êxitos no domínio do modo de vida dependamestreitamente dos nossos êxitos do domínio econômico. Sem dúvida que, mesmoconsiderando a nossa situação econômica actual, poderíamos aumentar a crítica, ainiciativa e a racionalidade no que respeita ao nosso modo de vida. É nisso que concisteuma das tarefas fundamentais da nossa época. Mas é evidente que uma reconstruçãoradical do modo de vida (libertar a mulher de sua situação de escrava doméstica, educaras crianças num espírito coletivista, libertar o casamento das imposições econômicas,etc.), não é possível senão na medida e que as formas socialistas da economiasubstituam as formas capitalistas. A análise crítica do modo de vida é hoje a condição

necessária para que esse modo de vida, conservador devido as suas tradições milenárias,não se mantenha em atraso em relação as possibilidades de progresso presente e futuroque nos abrem os nossos recursos econômicos atuais. Por outro lado, os êxitos mesmoos mais ínfimos, no domínio do modo de vida, que permitam elevar o nível cultural dooperário e da operária, alargam imediatamente as possibilidades de uma racionalizaçãoda economia e, por conseqüência, de uma acumulação socialista mais rápida; esteúltimo ponto oferece por sua vez possibilidades de novas conquistas no domínio dacoletivização do modo de vida. A dependência aqui é dialectica: o factor histórico

 principal é a economia, mas nós, partido comunista, Estado operário, não podemos agirsobre ela a não ser por intermédio da classe operária, elevando continuamente aqualificação técnica e cultural dos seus elementos constitutivos. O militantismo cultural,

num Estado operário, serve o socialismo, e o socialismo significa a expansão da culturasem classes, duma cultura humana e humanitária.

Page 30: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 30/47

Início da página 

Notas: 

(1) Gleb Uspenski (1843-1902): escritor realista ligado à “escola natural”, cujas obrasoferecem um panorama completo da vida do povo miúdo (pequenos funcionários,camponeses, operários). “Os costumes da rua Rasteriaev”, são a sua obra maisimportante. (retornar ao texto) 

(2) Em russo: “Rast’er’ajevssina”. (retornar ao texto) 

(3) Libedinski luri Nikolaevitch (1898-1959), um dos primeiros representantes da jovem prosa soviética. Participa da guerra civil, da qual dá uma descrição romântica na sua primeira novela- “A semana”. (retornar ao texto) 

V - A Vodka, a Igreja e o Cinema

Dois fenômenos importantes imprimiram a sua marca no mundo de vida operário: a jornada de oito horas e a proibição da vodka. A liquidação do monopólio da vodka, quea guerra exigia meios tão avultados que o tzarismo podia renunciar, como a um

 pecadilho, aos rendimentos que lhe advinham da venda de bebidas alcoólicas. Um biliãode mais ou de menos era a diferença mínima. A revolução foi herdeira da liquidação domonopólio da vodka; sancionou o facto, fundando-se, porém em considerações de

 princípio. É só depois da conquista do poder pela classe operária —  poder construtorconsciente de uma economia nova —  que a luta do governo contra o alcoolismo, luta aomesmo tempo cultural, educativa e coerciva, adquire toda a significação histórica. Nessesentido a interdição da venda devido à guerra imperialista, de nenhum modo modifica ofacto fundamental de que a liquidação do alcoolismo vem acrescentar-se ao inventáriodas conquistas da revolução. Desenvolver, reforçar, organizar, conduzir com êxito uma

 política anti-alcoólica no país do trabalho renascente —  eis a nossa tarefa. E os nossosêxitos econômicos e culturais aumentaram paralelamente com a diminuição do números

de “graus”. Nenhuma concessão é aqui possível.

 No que respeita à jornada de oito horas, é uma conquista directa da revolução e das maisimportantes. Em si mesmo, este fato provoca uma modificação fundamental da vida dooperário ao libertá-lo de dois terços da jornada de trabalho. Cria-se assim uma base paratransformações radicais do modo de vida, para melhorar a forma de viver, paradesenvolver a educação coletiva, etc., mas trata-se apenas de uma base. Quanto mais otempo de trabalho seja utilizado conscienciosamente, mas a vida do operário seorganizará de forma completa e inteligente. É precisamente nisso que consiste, como jáse disse, o sentido fundamental da convunção de Outubro: os êxitos econômicos de cadaoperário conduzem automaticamente a uma elevação material e cultural da classe

operária no seu conjunto. “Oito horas de trabalho, oito horas de repouso, oito horas deliberdade” —  proclama a velha fórmula do movimento operário. Nas atuais condições,

Page 31: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 31/47

essa fórmula adquire um conteúdo de todo novo: quanto mais as oito horas de trabalhoforem produtivas, mais as oito horas de repouso serão reparadoras e higiênicas e mais asoito horas de liberdade serão culturais e enriquecedoras.

Por conseguinte, o problema das distrações apresenta-se como um problema cultural e

educativo muito importante. O caráter da criança revela-se e forma-se nos jogos. Ocaráter do adulto manifesta-se mais claramente nos jogos e nas distrações. Mas asdistrações e os jogos podem da mesma forma ocupar um lugar de eleição na formaçãodo caráter de toda uma classe se esta classe é jovem e segue avante como o proletário. Ogrande utopista francês Fourier , ao insurgir-se contra o ascetismo cristão e contra arepressão da natureza humana, construiu os falanstérios (as comunas do futuro) na basede uma utilização e de uma combinação justa e racional dos instintos e das paixões.Consusbstancia-se aqui um pensamento profundo. Um Estado operário não é nem umaordem espiritual nem um convento. Consideramos os homens tal como a natureza oscriou e tal como a antiga sociedade em parte os educou e em parte os mutilou. Nessematerial humano vivo, buscamos qual o ponto em que fixar a alavanca da revolução, do

 partido e do Estado. O desejo de distração, de entretenimento, de diversão e de riso, éum desejo legítimo da natureza humana. Podemos e devemos proporciona-lhesatisfações cada vez mais artísticas e, ao mesmo tempo, devemos fazer do divertimentoum instrumento de educação coletiva, sem constrangimentos e dirigismo inoportunos.

Atualmente, neste domínio, o cinema representa um meio que ultrapassa de longe todosos outros. Essa surpreendente invenção penetrou na vida humana com uma rapidez

 jamais vista no passado. Nas cidades capitalistas, o cinema faz agora parte integrante davida quotidiana do mesmo modo que os balneários, os estabelecimentos de bebidas, aigreja e as demais instituições necessárias, louváveis ou não. A paixão pelo cinema éditada pelo desejo de diversão, de ver qualquer coisa de novo, de desconhecido, de rir aaté de chorar, não acerca das infelicidades próprias mas das de outrem. Todas essasexigências o cinema satisfaz de forma mais direta, mas espetacular, mais imaginativa emais viva, sem que nada se exija do espectador, nem mesmo a cultura mais elementar.Daí esta reconhecida atração do espectador pelo cinema, fonte inesgotável deimpressões e de sensações. Tal é o ponto de partida, e não só o ponto de partida, mas odomínio imenso a partir do qual se poderá desenvolver a educação socialista.

O fato de até o presente, isto é, desde há quase em breve seis anos, não temos dominadoo cinema, mostra até que ponto somos toscos e ignaros, para não dizer simplesmentetacanhos. É um instrumento que se nos oferece o melhor instrumento de propaganda

qualquer que esta seja —  técnica, cultural, anti-alcoólica, sanitária e política; permiteuma propaganda atraente e acessível a todos, que fala a imaginação e que além disso,constitui uma fonte possível de rendimento.

Motivo de atração e distração, o cinema por isso mesmo concorrência às cervejas e àsfeiras de compra e venda. Não sei quais são atualmente em Paria e Nova Iorque osestabelecimentos mais numerosos —  se os bares ou as salas de cinema. Nem quais sãoos mais rendosos. Mas é claro que o cinema rivaliza antes de mais com as lojas de

 bebidas no que respeita as oito horas livres. Poderemos nós dominar esse incomparávelinstrumento? Por que não? O governo tsarista alguns anos toda uma rede de lojas de

 bebidas, o que lhe rendia milhões de rubros-ouro. Porque não poderia um governo

operário organizar uma rede de salas de cinema, porque não poderia implantar essemodo de distração e de educação na vida popular, opondo-se ao alcoolismo e tornando-

Page 32: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 32/47

o ao mesmo tempo uma fonte de receitas? Será isso realizável? Por que não? Não édecerto empresa fácil, mas é em todo o caso mais natural, corresponde melhor anatureza, às forças e as capacidades de um Estado operário do que digamos, arestauração da rede de lojas de bebidas(1). O cinema rivaliza com os bares, mas tambémcom a igreja. E essa concorrência pode tornar-se fatal para a igreja desde que

completemos a separação da igreja do Estado socialista por uma união do Estadosocialista com o cinema.

 Na classe operária russa, o sentimento religioso é praticamente nulo. Nunca, aliás,existiu verdadeiramente. A igreja ortodoxa representava o conjunto de costumes e umaorganização política. Não conseguiu penetrar profundamente nas consciências nem ligaros seus dogmas com e os seus cânones aos sentimentos profundos das massas

 populares. A razão disso é sempre a mesma: a incultura da velha Rússia, inclusive a dasua igreja. É por isso que, ao despertar para a cultura, o operário russo se liberta tãofacilmente da igreja à qual está superficialmente ligado. É verdade que para o camponêsisso é mais difícil, não por ter penetrado mais profunda e intimamente nos ensinamentos

da igreja —  não se trata evidentemente disso —  mas porque o seu modo de vidauniforme e rotineiro está estreitamente ligado aos ritos uniformes e rotineiros da igreja.

O operário —  inferimo-nos à massa operária sem partido —  mantém com a igreja namaioria dos casos relações fundadas no hábito, habito esse enraizado, sobretudo nasmulheres. Conservam-se os ícones pendurados em casa, porque lá estão há longo tempo.Decoram as paredes, sem que estas pareceriam nuas e não se está a isso habituado. Ooperário não adquire novos ícones, mas não manifesta o propósito de retirar os antigos.Porque modo celebrar a festa da primavera, a ser fazendo um kulitch ou uma Paskha?(2) E é uso fazê-los benzer para que não falte qualquer coisa. De modo nenhum sefreqüenta a igreja por espírito religioso, mas sim porque há lá muita e esplendor, muitagente e se canta bem; a igreja atrai devido a toda uma série de motivos sócio-estéticos,que nem a fábrica, nem a família nem a rua oferecem. A fé não existe ou quase nãoexiste. Em todo o caso, não existe qualquer respeito pela hierarquia eclesiástica,nenhuma confiança na força mágica do rito. Não existe também vontade de cortar comtudo isso. O divertimento e a distração representam um enorme papel nos ritos da igreja.A igreja age por métodos teatrais sobre a vista, o ouvido e o olfato (o incenso!) e,através deles, age sobre a imaginação. No homem, a necessidade de espetáculo —  ver eouvir qualquer coisa de não habitual e de colorido, qualquer coisa para além doacinzentado do quotidiano —  é muito grande, é irremovível e persegue-o desde ainfância até à velhice. Para libertar as largas massas desse ritual, dessa religiosidade

rotineira, a propaganda anti-religiosa não basta, embora seja necessária. A suainfluência limita-se apenas de tudo a uma minoria ideologicamente mais informada. Seas largas massas não se submetem a propaganda anti-religiosa, não é porque seja fortesos seus laços com a religião; é, pelo contrário, porque não tem nenhum vínculoideológico, mantendo com a igreja relações uniformes, rotineiras e automáticas, de quenão tem consciência, como basbaque que não recusa participar numa procissão, ounuma solenidade fautosa, ouvir cânticos ou agitar as mãos. É nesse ritualismo semfundamento ideológico que pela sua inércia se incrusta na consciência, e do qual acrítica por si só não pode triunfar, mas que se pode desagregar por meio de novasformas de vida, por novas distrações, por uma nova espetaculosidade de efeitosculturais. E aqui o pensamento volta-se de novo naturalmente para o instrumento mais

 poderoso por ser o mais democrático: o cinema. O cinema não carece de uma hierarquiadiversificada, de brocados ostentosos, etc.; basta-lhe um pano branco para fazer nascer

Page 33: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 33/47

uma espectaculosidade muito mais penetrante do que a igreja, da mesquita ou dasinagoga mais rica ou mais habituada às experiência teatrais seculares. Na igreja apenasse realiza um ato, aliás sempre igual, ao passo que o cinema mostrará que na vizinhançaou do outro lado da rua, no mesmo dia e à mesma hora, se desenrolam simultaneamentea páscoa pagã, judia e cristã. O cinema diverte, excita a imaginação pela imagem e

afasta o desejo de entrar na igreja. Tal é o instrumento de que devemos saber fazer usocuste o que custar!

Início da página 

Notas: 

(1) Estas linhas estavam já escritas quando encontrei no último artigo do “Pravda” (datado de 30 de junho) o seguinte extrato de um artigo que o camarada Gordeev tinha

enviado a redação: “a indústria cinematográfica é um empreendimento extremamentelucrativo, que oferece imensos benefícios. A utilização judiciosa, racional e sensata domonopólio do cinema poderia representar para as nossas finanças uma melhoriasemelhante à que trazia o monopólio da venda da vodka às finanças tzaristas”. Maisadiante, o camarada Gordeev expõe considerações práticas sobre a forma de transpor

 para o cinema o modo de vida soviético. Eis aqui um problema que requer uma análiseseria e concreta! (retornar ao texto) 

(2) Kulitch e Paskha: bolos pascais. Kulitch: espécie de bolo cilíndrico; paskha: bolo dequeijo branco, de forma piramidal. (retornar ao texto) 

VI - Da antiga à nova família

As relações e os acontecimentos internos da família, pela sua própria natureza, são maisdifíceis de submeter do que quaisquer outros a um estudo objectivo ou a um cálculoestatístico. É por isso difícil dizer em que medida os laços familiares (na vida e não no

 papel) se deterioram hoje mais facilmente do que outrora. Neste caso, é preciso

contentarmo-nos, em larga medida, com aquilo que se pode ver. Além disso, o queactualmente difere do período pré-revolucionário é que outrora os conflitos e os dramasde uma família operária passavam de todo despercebidos até para a própria massaoperária, enquanto que no presente a vida de um grande número de operários devanguarda que ocupam postos de responsabilidade está patente aos olhos de todos, detal modo que cada catástrofe familiar se toma objecto de um juízo, ou até por vezes deatoardas.

 No entanto, mesmo tendo em conta esta importante restrição, há que reconhecer que afamília, incluindo a família proletária, foi fortemente abalada. Este facto, claramentesublinhado quando da assembleia dos agitadores moscovitas, não foi contestado por

ninguém. Durante a discussão, o problema foi encarado de diversos modos: referiam-se-lhe uns com angústia, outras com reserva e certos com perplexidade. Em todo o caso,

Page 34: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 34/47

era claro para todos que se estava perante um processo importante, totalmente caótico,cujas formas ora eram doentias, ora repelentes, ora cómicas, ora ainda trágicas, processoeste que não tinha ainda deixado aparecer as possibilidades de nova ordem familiar queem si continha. A imprensa, pelo seu lado, só raramente se refere ao desmantelamentoda família. Aconteceu-me ler num artigo uma explicação em que se considerava que se

devia muito simplesmente ver na degradação da família operária uma manifestação dainfluência burguesa sobre o proletariado. Semelhante explicação é totalmente falsa. O problema é mais profundo e mais complexo. A influência passada e presente da burguesia é por certo evidente. Mas o processo fundamental deve-se a uma evoluçãodoentia da família proletária em situação de crise, assistindo-se actualmente as primeirasmanifestações caóticas desse processo.

É conhecido o papel profundamente destrutivo da guerra sobre a família.

A guerra age nesse domínio de forma puramente mecânica, separando as pessoas porlongo tempo e reunindo-as ao acaso. A revolução prolongou e reforçou a influência da

guerra. No conjunto, a guerra abalou o que se mantinha apenas pela força de inércia dahistoria: o regime tzarista, os privilégios de classe e a antiga família. A revoluçãoconstruiu um Estado novo, resolvendo então o problema mais imediato e mais simples.

 No plano económico, as coisas passaram-se de modo muito mais complicado. A guerratinha abalado a antiga ordem económica e a revolução derrubou-a. Hoje construímosqualquer coisa de novo —  de momento principalmente a partir do passado, mas um

 passado reorganizado por nós de uma nova maneira. No domínio económico, não hámuito tempo que ultrapassamos o período de destruição, para começar a expandir-nos.Os nossos êxitos são ainda mínimos e estamos ainda bastante longe das formas de umanova economia socialista. Mas saímos da fase de destruição e de ruína. O momentomais critico foi o dos anos 20-21.

 No que respeita ao modo de vida familiar, o período de destruição está longe de terterminado e encontramo-nos ainda em pleno numa época de desmantelamento e dedeslocação. É necessário termos clara consciência desse fenômeno. No plano dasrelações familiares, estamos por assim dizer ainda em 1920-1921, e de modo nenhumem 1923. O modo de vida é muito mais conservador do que a economia e é alias essa arazão por que é de mais difícil compreensão. Em política e em economia, a classeoperária procede como um todo; é por isso que coloca a sua vanguarda —  o partidocomunista —  na primeira fila e através dela realiza as suas tarefas históricas. Nodomínio do modo de vida, a classe operária está dividida em pequenas células

familiares. A transformação do poder e mesmo a do regime econômico (com ostrabalhadores tornados proprietários das fábricas e oficinas) são tudo factos que, porcerto, se reflectem na família, mas só do exterior e por forma indirecta, sem abalar osseus hábitos directamente herdados do passado. A metamorfose do modo de vida e dafamília exige da classe operária no seu conjunto uma consciência aguda dos problemase dos esforços a fazer; isso pressupõe, da parte da própria classe operária, um enormetrabalho de educação cultural. A charrua deve rasgar a terra em profundidade.Estabelecer a igualdade política da mulher e do homem no Estado soviético é um dos

 problemas mais simples. Estabelecer a igualdade económica do trabalhador e datrabalhadora na fábrica, na oficina, no sindicato, é já muito difícil. Mas estabelecer aigualdade efectiva do homem e da mulher na família, eis o que é incomparavelmente

mais complicado e exige imensos esforços para revolucionar todo o seu modo de vida.E, no entanto, é evidente que enquanto a igualdade do homem e da mulher não fôr

Page 35: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 35/47

atingida na família, não se poderá falar seriamente da sua igualdade na produção nemmesmo da sua igualdade política, pois se a mulher continua escravizada à família, àcozinha, à barrela e à costura, as suas possibilidades de agir na vida social e na vida doEstado conservam-se reduzidas em extremo.

Tomar o poder foi o mais simples. Mas isso ocupou todas as nossas forças durante o período da revolução e exigiu inumeráveis sacrifícios. A guerra civil teve necessidadede medidas extremamente austeras. Os espíritos triviais e pequeno-burguesesdenunciavam a selvajaria dos costumes, a sangrenta corrupção do proletariado, etc.Mas, de facto, através das medidas de constrangimento impostas pela revolução, o

 proletariado lutava por uma nova cultura, por um verdadeiro humanismo. No domínioeconômico, durante os quatro a cinco primeiros anos do regime, conhecemos um

 período de destruição, de completa degradação da produtividade. Os inimigos viamnisso, ou queriam ver, o apodrecimento do regime soviético. Mas, de facto, tratava-seunicamente duma inevitável etapa de destruição das antigas formas da economia e das

 primeiras e frágeis tentativas para criar outras novas.

 No domínio da família e do modo de vida houve também um período inevitável dedeslocação de todas as formas antigas e tradicionais, herdadas do passado. Mas esse

 período de crise e de destruição é mais tardio, tem mais longa duração, é mais penoso emais doloroso, ainda que as suas formas, em extremo parcelizadas, não sejam semprevisíveis quando de um exame superficial. É necessário termos clara consciência dessasfracturas nos domínios político, económico e do modo de vida, para não nosassustarmos com os fenómenos que observamos e, em vez disso, os avaliar comexactidão, isto é, para compreender por que se manifestam na classe operária e para agirsobre eles de forma consciente no sentido de uma socialização das formas do modo devida.

 Não nos desorientemos, repito, visto que já se fizeram ouvir vozes temerosas. Durante areunião dos agitadores moscovitas, certos camaradas sublinharam, com justificadainquietação, a facilidade com que se rompem os antigos laços familiares e se atamnovos laços, por igual pouco sólidos. A mãe e os filhos são aqueles que com isso maissofrem. Por outro lado, quem dentre nós não terá escutado essas ladaínhas sobre a“decadência” dos costumes da juventude soviética, particularmente dos komsomols. Essas lamentações não são por certo todas exageradas e possuem um fundo de verdade.Se encararmos as coisas de forma relativa, há que lutar para elevar a cultura e a

 personalidade do individuo. Mas se se coloca correctamente o problema, sem nosdeixarmos arrastar por um moralismo reaccionário ou por uma melancolia sentimental,

apercebemo-nos de que é preciso, antes de mais, conhecer o que existe e compreender oque se passa.

Como já se disse, acontecimentos de importância considerável —  a guerra e a revolução —  subverteram o modo de vida familiar, trouxeram consigo o pensamento crítico, areorganização consciente e a reavaliação das relações familiares e do modo de vidaquotidiano. É precisamente a combinação da força mecânica desses grandiososacontecimentos com a força critica do pensamento que explica, no domínio da família, o

 período destrutivo que hoje conhecemos. É somente hoje, após a tomada do poder, queo operário russo dá os seus primeiros passos na via da cultura. Sob a influência deabalos profundos, a personalidade subtrai-se pela primeira vez às formas e as relações

impostas pela rotina e a tradição da Igreja; será estranho que a sua revolta individualcontra a antiga ordem assuma de inicio formas anárquicas ou, falando mais

Page 36: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 36/47

grosseiramente, formas desenfreadas? O mesmo observamos na política, na economia eno exército: anarco-individualismo, “esquerdismos” de toda a espécie, espírito“partisan”, mania das reuniões. Será afinal estranho que esse processo encontre a suamais intima, e logo a sua mais dolorosa expressão, no domínio da família? Neste caso, a

 personalidade libertada que quer construir a sua vida de forma nova e não segundo a

tradição, manifesta-se pelo desregramento, o “vício” e outros males evocados nodecurso da assembléia de Moscovo.

O marido, arrancado pela mobilização às suas condições de vida habituais, toma-se nafrente um cidadão revolucionário. É objecto de uma imensa revolução interior. O seuhorizonte alarga-se, as suas exigências espirituais elevam-se e tornam-se maiscomplexas. Ei-lo um outro homem. Regressa à família. Tudo ou quase tudo ali

 permanece como antes. A antiga unidade familiar desapareceu, enquanto que uma novaunidade não surgiu. A surpresa de parte a parte transforma-se em descontentamento. Odescontentamento em irritação. A irritação leva a separação.

O marido, comunista, faz uma vida social activa, progride e encontra nela o sentido dasua vida pessoal; Mas a mulher, também comunista, deseja tomar parte no trabalho dacolectividade, participar nas reuniões, trabalhar no Soviete ou no sindicato. A famíliadesagrega-se pouco a pouco ou a intimidade familiar desaparece, os conflitosmultiplicam-se, o que suscita uma irritação mútua que conduz ao divorcio.

O marido é comunista. A mulher não tem partido. O marido é absorvido pelo seutrabalho de militante, a mulher está, tal como antes, confinada ao circulo familiar. Asrelações são “pacificas”, fundando-se de facto sobre a indiferença mútua. Mas eis quena célula se decide que os camaradas devem pôr de parte os ícones. O marido consideraque isso é natural. Mas, para a mulher —  é um drama. E este pretexto verdadeiramentefortuito revela que abismo espiritual separa o marido da mulher. As relaçõesenvenenam-se e desfecham na separação.

Uma velha família, dez ou quinze anos de vida em comum. O marido é um operárioconsciencioso, um bom pai de família, e a mulher gosta do seu lar e dispensa toda a suaenergia à família. O acaso põe-na em contacto com uma organização feminina. Umnovo mundo se abre para ela. A sua energia encontra ai um campo de acção muito maisvasto. Na família, é a derrocada. O marido zanga-se, a mulher vê-se ofendida na suadignidade de cidadã. É o divórcio.

Poder-se-ia multiplicar até ao infinito o número destes dramas familiares que conduzemsempre ao mesmo resultado: o divórcio. Mas citamos aqui os exemplos mais correntes.Todos tem por denominador comum a linha de separação entre os elementos comunistase os sem partido. Mas a decadência da família (da antiga família) não se limita apenasaos elementos de vanguarda da classe operária, mais sensíveis às novas condições;

 penetra mais profundamente. No fim de contas, a vanguarda comunista experimentamais cedo e mais intensamente o que é mais ou menos inevitável para a classe no seuconjunto. Estes fenômenos —  reformulação da vida pessoal, exigências novas no querespeita a família —  ultrapassa com toda a evidência o domínio em que o partidocomunista entra em contacto com a classe operária. A instituição do casamento civil,

 por si só, não pode deixar de dar um golpe mortal na antiga família consagrada pela

Igreja e que não é mais do que uma fachada. Quanto mais os laços eram frágeis, mais aunidade da família se limitava ao aspecto exterior, aparente e em parte ritual das

Page 37: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 37/47

relações. Ao destruir o rito golpeou-se por isso mesmo a família. O ritual, vazio deconteúdo objectivo e não mais reconhecido pelo Estado, apenas se mantém pela suainércia, servindo de muleta a família tradicional. Mas se não existem laços sólidos nointerior da própria família, se esta não perdura a não ser pela força da inércia, cadagolpe que se lhe disfere do exterior é capaz de a destruir, reduzindo a nada o seu

carácter ritual. E, na nossa época, a família sofreu golpes como nunca antes. Eis porqueela vacila, eis porque se desloca e cai em ruínas, eis porque se refaz e se desagrega denovo. O modo de vida é submetido a rude prova por esta critica severa e dolorosa para afamília. Não se fazem omoletas sem partir os ovos.

Vê-se surgir elementos da família de um tipo novo? Sem qualquer dúvida.

Mas é preciso fazer-se uma idéia clara da natureza desses elementos e da maneira comose formam. Como noutros domínios, é necessário distinguir aqui as condições materiaisdas condições psíquicas ou, ainda, as condições objectivas das condições subjectivas.

 No plano psíquico, a aparição de uma família de tipo novo e de novas relações

humanas, equivale para nós no conjunto ao progresso cultural da classe operaria, aodesenvolvimento da personalidade, a uma melhoria das suas necessidades e da suadisciplina interna. Deste ponto de vista, a revolução em si mesma representa decerto umgrande passo em frente, e os fenômenos mais penosos do desmantelamento da famíliasão unicamente a expressão dolorosa do despertar da classe operária e o desabrochar da

 personalidade do individuo nessa classe. Assim, todo o nosso trabalho cultural —  aquele que fazemos e, em particular, aquele que só nós devemos fazer —  deve servir

 para estabelecer relações e uma família dum tipo novo. Sem a melhoria do nível culturalindividual do operário e da operária, essa família de um tipo novo e superior não existe,

 porque, nesse domínio, só pode claramente tratar-se de disciplina interior e não deconstricção exterior. E a força dessa disciplina pessoal define-se pela vida que se faz nointerior da família e pelo conjunto e a natureza dos laços que unem o marido e a mulher.

Mais uma vez, as condições de aparição de um modo de vida e de uma família de tiponovo não podem separar-se da obra geral de construção socialista. O governo operáriodeve valorizar-se para que seja possível organizar de modo sério e adequado a educaçãocolectiva das crianças, para que seja possível libertar a família da cozinha e daslimpezas A colectivização da economia familiar e da educação das crianças éimpensável sem um enriquecimento de toda a nossa economia em conjunto. Temosnecessidade da acumulação socialista. Só nessas condições poderemos libertar a famíliadas funções e ocupações que a sobrecarregam e a destróiem. A lavagem de roupas deve

ser feita numa boa lavandaria colectiva. As refeições devem ser tornadas num bomrestaurante colectivo. Os vestuários devem ser confeccionados num atelier de costura.As crianças devem ser educadas por bons pedagogos que nisso encontrarão o seuverdadeiro emprego. Desde então, os laços do marido e da mulher deixarão de serentravadas pelo que lhes é exterior, supérfluo, acrescentado e ocasional. Um e outrodeixarão de se envenenar mutuamente a existência. Ver-se-à por fim aparecer umaverdadeira igualdade de direito. Os laços serão unicamente definidos pela atracçãomútua. E é precisamente por essa razão que serão mais sólidos, diferentes decerto paracada um mas para ninguém constritivos.

Assim, uma nova vida conduz a família de tipo novo: a) a educação da classe e do

individuo na classe, e b) enriquecimento material da classe que forma o Estado. Estesmecanismos estão estreitamente ligados entre si.

Page 38: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 38/47

Entenda-se bem que o que se acaba de dizer de modo nenhum significa que exista ummomento exacto de desenvolvimento material favorável à aparição imediata desta novafamília. Não, a formação da nova família é possível a partir do presente. É verdade queo Estado não pode ainda encarregar-se da educação colectiva das crianças, da criação delavandarias colectivas nas quais as roupas não sejam rasgadas ou roubadas. Mas isso em

nada impede as famílias mais progressistas de tomar a iniciativa de se reagruparemdesde já numa base colectivista. Semelhantes experiências devem, por certo, serconduzidas com a maior prudência a fim de que os meios técnicos de ordenaçãocolectiva correspondam aos interesses e as exigências do próprio grupo e proporcionema todos os membros vantagens evidentes, mesmo que ainda mínimas, nos primeirostempos.

Há tempos, o camarada Semachko(1) escrevia a propósito da reconstrução do nossomodo de vida familiar:

“É preciso que sejamos demonstrativos; não se obterá grande coisa se nos limitarmos a

tomadas de posição ou mesmo à propaganda. Mas o exemplo e a demonstração terãomais impacto do que um milhar de brochuras bem escritas. A melhor forma de conduzircom sucesso essa propaganda consiste em utilizar o método que, na pratica cirúrgica, sechama a transplantação. Quando a pele é arrancada numa grande área do corpo (porefeito de uma ferida ou de uma queimadura), quando não há esperanças que a pelerenasça sobre essa área, os cirurgiões destacam pedaços de pele de uma parte sã eaplicam-na sobre a parte nua; a pele enxerta-se e esses pequenos pedaços começam aestender-se, tornam-se cada vez maiores e recobrem por fim toda a superfície afectada.

A mesma coisa se passará com esta propaganda demonstrativa: se, numa fábrica ounuma oficina, se adopta um modo de vida comunista, outras empresas seguirão esseexemplo”. (Noticias do Comitê Central, n° 8, de 4 de Abril de 1923. N. Semachko: “Omorto aproveita do vivo”). 

A experiência dessas colectividades familiares, que constituem uma primeiraaproximação, ainda que muito imperfeita, do modo de vida comunista, deve sersubmetida a um estudo e a uma análise minuciosos. É preciso que o poder, e em

 primeiro lugar os conselhos e os organismos económicos, dêm o seu apoio a estasiniciativas pariciais. A construção de habitações —  pois vamos, apesar de tudo, tratar deconstruir alojamentos! —  deve ser encarada de acordo com as exigências dos laresfamiliares. Os primeiros êxitos evidentes e indiscutíveis neste domínio, mesmo quando

limitados, incitarão inevitavelmente camadas mais largas a organizar-se da mesmamaneira. Quanto a uma iniciativa planificada vinda de cima, as coisas não seapresentam ainda maduras para isso, nem do ponto de vista dos recursos materiais doEstado nem do ponto de vista da preparação do próprio proletariado. Actualmente nãose pode arrancar nesta matéria a não ser com a criação de lares demonstrativos. Seránecessário adquirir progressiva segurança, sem querer ir demasiado longe e sem cair nofantástico burocrático. Num dado momento será o Estado que se encarregará desses

 problemas, por intermédio dos conselhos locais, das cooperativas, etc., que generalizaráo trabalho já feito, que o desenvolverá e aprofundará. Deste modo, a humanidade, comodiz Engels, “passará do reino da necessidade para o reino da liberdade”. 

Início da página 

Page 39: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 39/47

VII - A família e os ritos

Existem três momentos rituais fundamentais na vida do homem e da família, através dos

quais a Igreja acorrenta o operário, pouco crente ou mesmo descrente: o nascimento, ocasamento e a morte. O governo operário afastou-se do ritual da Igreja; explicou aoscidadão que tinham o direito de nascer, de casar e de morrer sem recorrer a gastos nem aincantação mágicas desses indivíduos vestidos de sotaina ou de outros trajessacerdotais. Mas o modo de vida tem bastante mais dificuldade do que o governo em sedesfazer dos ritos. A vida dos trabalhadores é demasiado monótona (demasiadouniforme) e essa mesma monotonia esgota o sistema nervoso. De onde a necessidade doálcool: uma pequena garrafa encerra todo um mundo de imagens. De onde anecessidade da Igreja com todo o seu ritual. Como festejar um nascimento ou umcasamento da família? Como homenagear um parente que acaba de morrer? É sobre estanecessidade de sublinhar, de celebrar, de encarecer as principais etapas da vida, que se

apoia o ritual da Igreja.

Que opor-lhe? Opomos, é certo, às superstições em que assenta a base do ritual, a criticamarxista, a relação objectiva com a natureza e as suas forças. Mas esta propagandacientifica e critica não resolve o problema: desde logo, porque não atinge ainda, nematingirá durante longo tempo, mais do que uma minoria de pessoas; depois, porque essa

 própria minoria sente a necessidade de encarecer, de elevar, de enobrecer a sua vida pessoal, pelo menos nos momentos mais importantes.

O Estado operário tem já as suas festas, os seus cortejos, os seus desfiles, as suas paradas, os seus espectáculos simbólicos, a sua teatralidade. É facto que essateatralidade recorda muito a do passado, que o imita e que dele é em parte continuaçãodirecta. Mas o essencial do simbolismo revolucionário é novo, claro e poderoso: a

 bandeira vermelha, a foice e o martelo, a estrela vermelha, o operário e o camponês, ocamarada, a Internacional. Ora, na célula familiar, concentrada em si mesma, estainovação é praticamente inexistente e em todo o caso, é insuficiente. No entanto, a vidado individuo está estreitamente ligada à sua vida familiar. É isso que explica que, nafamília, os elementos mais conservadores se sobreponham com frequência nas relaçõesquotidianas; conserva-se os ícones, perdura o baptismo e os funerais religiosos, pois oselementos revolucionários da família nada tem a contrapor-lhe. Os argumentos teóricosagem apenas sobre o espírito, enquanto que a teatralidade ritual age sobre os

sentimentos e sobre a imaginação; a sua influência é portanto bastante maior. É por issoque, no próprio meio comunista, se toma necessário opor a esse antigo ritual formasnovas e um simbolismo novo, não só ao nível oficial em que já se encontramlargamente implantadas mas também ao nível da família. Há entre os operários umatendência para festejar a data do nascimento e não o santo do dia, para dar ao recém-nascido não o nome de um santo mas um prenome novo, que simbolize os factos,acontecimentos ou idéias que lhes estão ligados. Por ocasião da assembléia dosagitadores de Moscovo, soube pela primeira vez que, em relação as raparigas, o

 prenome Outubrina era muito popular. Foi também citado o de Ninel (Lenine aoinverso), REP (Revolução, Electrificação, Paz(1)). Para se mostrar que se está ligado arevolução dá-se as crianças o prenome Vladimir, Ilitch e mesmo Lenine (empregado

como prenome), Rosa (em recordação de Rosa Luxemburgo), etc. Em certos casos, umnascimento é assinalado por um rito humorístico: o recém-nascido é “examinado” pelo

Page 40: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 40/47

comité de fábrica, e a seguir é redigida uma “resolução” na qual se reconhece que orecém-nascido faz parte dos cidadãos da URSS. Após o que se abanca à mesa.

Algumas vezes, nas famílias operárias, a entrada de uma criança na escola é tambémocasião para uma festa. É um acontecimento muito importante, porque se liga a escolha

de uma profissão, de um rumo de vida. O sindicato pode aqui intervir de modoconsciente. No conjunto, serão precisamente os sindicatos que sem dúvida ocuparão umlugar destacado na criação e organização das formas do novo modo de vida. Asconfrarias da Idade Média eram poderosas justamente porque englobavam a vida doaluno, do aprendiz e do mestre. Ocupavam-se da criança desde o seu nascimento,acompanhavam-na até a porta da escola, conduziam-na ao altar no dia do casamento efaziam-lhe o enterro após cumprida a sua missão. As confrarias não se limitavam apenasa reunir as pessoas da mesma profissão; organizavam todo o modo de vida. É

 provavelmente neste sentido que, naturalmente, o novo modo de vida, ao contrário domodo de vida da Idade Média, estará totalmente liberto da Igreja e das suas superstiçõese que se fundara no desejo de utilizar cada conquista científica e técnica para enriquecer

e embelezar a vida do homem.

O casamento dispensa mais facilmente a cerimónia. Ainda que, mesma aqui, tenhahavido muitos “mal-entendidos” e exclusões do Partido em consequência de casamentoscelebrados na Igreja. O modo de vida tem dificuldade em habituar-se a um casamentosingelo, sem a pompa de qualquer teatralidade.

É porém o enterro que apresenta muito maiores dificuldades. Enterrar um morto semofícios é tão inacostumado, estranho e vergonhoso como criar uma criança sem ter sido

 baptizada. No caso em que o funeral, devido à personalidade do defunto, tem umsignificado político, surge um novo ritual espectacular e impregnado de simbolismorevolucionário: acompanham-no bandeiras vermelhas, toca-se uma marcha fúnebrerevolucionária, dispara-se uma salva em sinal de adeus. Alguns dos participantes naassembleia de Moscovo sublinharam a importância da incineração e propuseram que,

 por exemplo, se comece por incinerar os corpos dos revolucionários eminentes, o queseria justamente um poderoso meio de luta anti-religiosa. Mas, a incineração, à qual jáseria tempo de recorrer, não significa que se abandone os cortejos, os discursos, asmarchas fúnebres e as salvas. A necessidade de exprimir os próprios sentimentos é umanecessidade poderosa e legítima.

Se no passado a espectaculosidade do modo de vida estava estreitamente ligada a Igreja,

isso de modo nenhum significa, como já se disse, que seja impossível dissociar uma daoutra. A separação entre o teatro e a Igreja ocorreu bastante antes que entre a Igreja e oEstado. Nos primeiros tempos, a Igreja lutou contra o teatro “público” porque comrazão via nele um perigoso concorrente as suas encenações. O teatro sobreviveu, mascomo um espectáculo especial, limitado por quatro paredes. E na vida quotidiana, aIgreja conservou como outrora o monopólio das encenações. Algumas sociedadessecretas, como a Maçonaria, fizeram-lhe concorrência. Mas elas próprias estavamimpregnadas de um misticismo mundano. É possível criar um ”ritual” revolucionário aonível do modo de vida (utilizamos a palavra “ritual” à falta de termo mais ajustado) eopor esse ritual ao da Igreja, não só quanto aos acontecimentos de carácter colectivomas também familiar. Desde agora, uma orquestra ou uma banda que executa uma

marcha fúnebre pode com frequência fazer concorrência a um ofício religioso. Edevemos por certo utilizar essa orquestra para lutar contra o ritual da Igreja, fundado na

Page 41: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 41/47

crença servil num outro mundo, num mundo em que se será compensado em cêntuplo pelo mal e a mediocridade da vida terrestre. O cinema pode ser-nos ainda mais útil.

Esse modo de vida, essa teatralidade dum género novo, só podem desenvolver-se paralelamente ao desenvolvimento da alfabetização e do bem-estar material. Temos

todos os motivos para estudar esse mecanismo com a maior atenção. Não pode por certotratar-se de uma intervenção constrangente, vinda de cima, isto é, de uma burocratização dos novos fenómenos do modo de vida. Só a criação colectiva das largasmassas, ajudada pela fantasia, pela imaginação criadora e pela iniciativa dos artistas,

 pode conduzir-nos, ao longo dos anos e decénios vindouros, até à via de novas formasde vida, espiritualizadas, enobrecidas e impregnadas de espectaculosidade colectiva. Noentanto, e sem regulamentar esse processo criativo, é preciso desde já e por todos osmeios ajudá-lo a desenvolver-se. E para isso é antes de mais necessário restituir a vista aesse cego que é o modo de vida. É preciso estudar atentamente tudo o que se passa nafamília operária e na família soviética em geral. Cada inovação, cada embrião oumesmo cada alusão a essas novas formas deve ser referido na imprensa e levado ao

conhecimento de todos, a fim de despertar fantasia e o interesse e de dar assim umimpulso a criação colectiva de um novo modo de vida.

Esta tarefa incumbe acima de tudo ao komsomol. O que se tenha imaginado ouempreendido não resultará obrigatoriamente. Que mal há nisso? As escolhas serão feitas

 pouco a pouco. A vida nova engendrará as formas que lhes convêm. E, afinal, será maisrica, melhor, mais vasta, mais bela e mais luminosa. É bem esse o fundo do problema.

Page 42: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 42/47

 

VIII - As atenções e a delicadeza como condições necessárias para relaçõesharmoniosas

 Numa das nossas múltiplas reuniões criticas, o camarada Kisselev, presidente doSovnarkom, sublinhou ou pelo menos lembrou um aspecto muito importante do

 problema do aparelho de Estado. Tratava-se de saber como, de que maneira, esteentrava em contacto com a população, como “discutia” com ela, como eram recebidosos visitantes, os “pleiteantes”, os solicitantes, como eram considerados e atendidos, quelinguagem era usada e se havia diálogo em quaisquer circunstâncias... Também issorepresenta um aspecto importante do “modo de vida”. 

Por outro lado, importa também distinguir aqui duas coisas: a forma e o fundo.

Por certo que, em todas as democracias civilizadas, a burocracia “está ao serviço” do povo; o que não a impede de formar, acima do povo, uma casta profissionalestreitamente homogénea; e se a burocracia “oferece” realmente os “seus serviços” aosmagnatas capitalistas, isto é, se rasteja em face deles, mostra-se cheia de altiveza

 perante o camponês ou o operário e dirige-se-lhes como se fossem objectos (isto tantoem França como na America ou na Suíça). Mas ai, nas democracias “civilizadas”, issoreveste-se de certa polidez, de afabilidade —  mais acentuada num dado país, menosaparente num outro. Cada vez que seja necessário, (o que sucede diariamente) o punhoda policia rompe sem dificuldade essa cortina de delicadeza. Agride-se os grevistas noscomissariados de Paris, de Nova Iorque e de outras grandes cidades. Mas no conjunto adelicadeza “democrática”, oficial, que orienta as relações da burocracia com as

 populações, é o produto e a consequência da revolução burguesa: a exploração dohomem pelo homem é uma constante, mas a sua forma mudou, é menos “grosseira”,dissimula-se com os cenários da igualdade, recobre-se dum verniz de boas maneiras.

O aparelho da burocracia soviética é particular e complexo; transporta consigo oshábitos de diversas épocas, ao mesmo tempo que os embriões de futuras relaçõeshumanas. Regra geral, a delicadeza não existe entre nós. Em contrapartida, a grosseriaherdada do passado manifesta-se em excesso. Mas aqui também, a grosseria não ésempre a mesma. Há a grosseria simples, a do mujik, decerto não isenta de sagacidade

mas que não humilha. Esta porém torna-se insuportável e objectivamente reaccionáriaquando os nossos jovens literários a utilizam para não se sabe qual conquista “artística’.Os trabalhadores de vanguarda são essencialmente hostis a este género de falsa rudeza,

 porque vêem com razão na grosseria de linguagem e de maneiras vestígios daescravatura e desejam fazer sua a linguagem da cultura, com as limitações que elaimplica. Mas que fique isto dito de passagem...

Além desta grosseria simplista, indiferenciada, camponesa e passiva, por assim dizer,existe urna particular grosseria “revolucionária” —  que provérn da impaciência, doardente desejo de fazer melhor, da irritação que nela suscita a nossa “oblomoveria”(1) eda tensão nervosa. Por certo que essa grosseria, como tal, carece também de finura, e

nós combatêmo-la; mas, no fundo, alimenta-se com frequência da mesma fonterevolucionária que, no decurso destes últimos anos, mais de uma vez removeu

Page 43: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 43/47

montanhas. Aqui, não é o fundo das coisas que deve ser alterado, porque é são namaioria dos casos, mas sim a sua forma cheia de rudeza...

Existe porém ainda entre nós —  e é aí que mais dói —  um outro tipo de grosseria, umagrosseria ancestral, a do rico, do “barine”, que vem da época da servidão, penetrada de

uma odiosa baixeza. Ainda não desapareceu e não é fácil livrarmo-nos dela. Nosorganismos de Moscovo, especialmente nos mais importantes, essa superioridade degrande senhor não se manifesta na sua forma mais combativa —  não se grita nemgesticula perante os solicitantes —  mas apresenta-se com mais frequência sob o aspectode um formalismo desumanizado. Não é por certo esta a única fonte do “burocratisrno eda lentidão administrativa”, mas é um dos seus factores essenciais: uma totalindiferença perante os indivíduos e o seu trabalho. Se fosse possível registrar numa fita

 particularmente sensível as consultas, as respostas, as explicações, as ordens e as prescrições que se verificam em todos os departamentos de um organismo burocráticode Moscovo no decurso de um só dia. obter-se-ia um conjunto particularmentedemonstrativo. E é ainda pior na província, especialmente onde a cidade entra em

contacto com o campo.

O burocratismo é um fenómeno muito complexo e em absoluto não homogéneo; é antesuma combinação de fenómenos, de numerosos mecanismos que surgiram em diversosmomentos da historia. E as razoes que mantêm e alimentam o burocratismo são tambémmuito diversificadas. A nossa incultura, o nosso atraso, a nossa ignorância, ocupam o

 primeiro lugar. A desorganização geral do nosso aparelho governamental, sem cessarreconstruído (o que é inevitável em período revolucionário), arrasta consigo um grandenúmero de fricções que favorecem enormemente o burocratismo. É precisamente nessascondições que a heterogeneidade social do aparelho soviético e, em particular, aexistência de hábitos senhoriais e burgueses, se manifesta nas suas formas maisrepelentes.

Por isso mesmo, a luta contra o burocratismo não pode deixar de assumir um carácterdiversificado. Na base, há que lutar contra a incultura, contra a ignorância, contra aimundície, contra a miséria. O melhoramento técnico do aparelho burocrático, acompressão dos quadros, uma maior regularidade, um maior rigor e uma maiorexactidão no trabalho bem como outras medidas do mesmo tipo não resolvem, porcerto, o problema histórico do burocratismo, mas permitem reduzir-lhe os aspectos maisnegativos. A formação de uma burocracia soviética de um tipo novo e a formação de“especialistas”, é extremamente importante. E aqui, claro está, não há que ter ilusões

sobre a dificuldade que representa, numa época de transição e dados os hábitos herdadosdo passado, a educação de dezenas de milhar de novos trabalhadores fundada em basesnovas, isto é, num espírito de trabalho, de simplicidade e de humanidade. É coisa difícilmas não impossível; somente que isso não será feito de uma só vez mas

 progressivamente, graças a promoção de ”séries” cada vez melhores de jovenstrabalhadores soviéticos.

Todas estas medidas, encaradas a mais ou menos longo prazo, em nenhum caso,contudo, excluem uma luta imediata contra esse desdém administrativo em relação aoindividuo e ao seu caso, contra esse niilismo de plumitivo que oculta, umas vezes, aindiferença em relação seja ao que for, outras vezes a própria incapacidade, outras ainda

um desejo consciente de sabotagem ou até a aversão orgânica de uma classe degradada

Page 44: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 44/47

 para com a classe que a degradou. É aqui que se encontra um dos pontos fundamentaisde apoio da alavanca revolucionária;

É preciso que o homem simples, o humilde trabalhador, deixe de recear as instituiçõesadministrativas às quais lhe acontece ter que recorrer. É preciso que, ao acolhê-lo, se lhe

manifeste atenção tanto maior quanto ele se mostra mais carente, mais obscuro e maisignorante. E, no fundo, é preciso que se tente ajudá-lo e não simplesmente afugentá-lo.Para isso, além de todas as demais medidas, é preciso que a opinião pública sejaconstantemente informada do problema, é preciso que nisso participe da forma maislarga possível, e é preciso ainda e em particular que este problema desperte o interessede todos os elementos realmente soviéticos, revolucionários, comunistas ou muitosimplesmente conscientes do próprio aparelho de Estado; e esses elementos, felizmente,são numerosos: e sobre eles que repousa o aparelho de Estado e é graças a eles que

 progride.

 Neste domínio, a imprensa pode desempenhar um papel singularmente decisivo.

Os nossos jornais, infelizmente, não fornecem em geral mais do que material educativoextremamente restrito no que respeita ao modo de vida. E quando dão uma informação,é frequentemente sob forma de relatórios monótonos: existe —  pode ler-se neles —  umafábrica, a fábrica tal; nessa fábrica, existe um comité e um director; o comité faz o seutrabalho de comité e o director o seu trabalho de director, etc. E, contudo, o nosso modode vida regurgita de episódios, de conflitos, de contradições manifestas e instrutivas, emespecial quando o aparelho de Estado entra em contacto com a população. Apenas é

 preciso ter coragem de arregaçar as mangas e de meter mãos a obra...

É claro que esse trabalho de denúncia e de educação deve ser isento de toda amaledicência, de toda a intriga, de toda a acusação gratuita, de toda a manigância e detoda a demagogia. Mas tal trabalho, conduzido correctamente, é necessário e vital,

 parecendo-me que os responsáveis dos jornais devem encarar os meios de o realizar.

Para isso, precisamos de jornalistas que aliem a ingenuosidade do repórter americano àhonestidade soviética. E eles existem. O camarada Sosnovski ajudar-nos-á a mobilizá-los. E como lema do seu mandato (sem por isso recearem assemelhar-se a KuzmaPrutkov), é preciso inscrever: vamos até ao fundo das coisas!

O “calendário” da luta poderia ser mais ou menos o seguinte: se durante os próximos

seis meses chegarmos a denunciar em toda a URSS —  com exactidão e imparcialidade,após duas ou três constatações —  uma centena de burocratas que manifestem umdesprezo de raiz para com os nossos trabalhadores; se, apos ter divulgado isso por todoo país e ter talvez mesmo organizado um processo público, excluirmos essa centena de

 burocratas do aparelho do partido sem permitir nunca a sua reintegração seja aonde for —  estariamos perante um bom princípio. Não é par certo possível esperar milagresimediatos. Mas quando se trata de substituir o antigo pelo novo, um pequeno passo àfrente é mais valioso do que as mais longas discussões.

Notas: 

Page 45: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 45/47

(1) Em russo: “oblomovssina”: neologismo formado a partir do nome do herói doromance de Gontcharov —  “Oblomov”, prototipo do preguiçoso consciente de o ser eincapaz de se corrigir. (retornar ao texto) 

IX - É preciso lutar por uma liguagem depurada

Por ocasião de uma assembleia geral na fábrica de calçado “A Comuna de Paris”, foidecidido pôr fim à linguagem grosseira e aplicar multas pelos “palavrões”, etc. 

Comparado com as “palavras” de Lord Curzon(1), a quem não se pode ainda aplicarmultas, trata-se de um pequeno facto no turbilhão da nossa época, mas é um factosignificativo, que só adquirirá toda a sua importância em relação ao eco que essa

iniciativa venha a encontrar.

A grosseria de linguagem —  em particular a grosseria russa —   —  é uma herança daescravidão, da humilhação e do desprezo pela dignidade humana, tanto a alheia como a própria. Seria necessário perguntar aos filólogos, aos linguistas e aos folcloristas se seencontra noutros países uma grosseria tão desenfreada, tão repugnante e tão chocantecomo entre nós. Tanto quanto sei, não existe em nenhuma outra parte. Nas camadas

 populares, a grosseria exprime o desespero, a irritação e, acima de tudo, uma situação deescravo sem esperança e sem saída. Mas essa grosseria nas camadas superiores, na bocade um senhor ou do intendente de um domínio, era a expressão de uma superioridade declasse, do firme e do inabalável direito do esclavagista. Diz-se que os provérbios são aexpressão da sabedoria popular, são-no também da ignorância, dos preconceitos e da

escravatura. “Um palavrão depressa se esquece”, diz um antigo provérbio russo que nãoreflecte apenas a escravatura mas também a sua aceitação passiva. Dois tipos de

grosseria —  a dos “barines”, dos funcionários, da polícia, uma grosseria de repleto, devoz cheia, e uma outra, esfomeada e desesperada —  coloriram a vida russa com seus

tons repugnantes. E a revolução herdou isso, como muitas outras coisas.

Mas a revolução é acima de tudo o despertar da personalidade humana em camadas queoutrora nenhuma personalidade possuíam. Apesar de toda a crueza e sangurenta

ferocidade dos seus métodos, a revolução é sobretudo um despertar do sentido humano;

 permite progredir, dar mais atenção, à dignidade própria e à alheia, ajudar os fracos esem defesa. A revolução não é uma revolução se, com todas as suas forças e por todosos meios, não permite que a mulher, dupla e triplamente alienada, se desenvolva pessoal

e socialmente. A revolução não é uma revolução se não dispensa o maior interesse àscrianças que são o futuro em cujo nome ela se efectua. E poder-se-á criar –  mesmo de

forma parcelar e limitada –  uma vida nova fundada sobre o respeito mútuo, sobre orespeito para consigo próprio, sobre a igualdade da mulher, sobre uma verdadeira

solicitude pelas crianças, numa atmosfera em que ressoe, retumbe, estale a linguagemgrosseira dos senhores e dos escravos, uma linguagem que nunca poupou nada nem

ninguém? É tão necessário para a cultura do espírito lutar contra a grosseria dalinguagem como é necessário para a cultura material combater a imundice e os

 parasitas. Não é nada simples nem fácil dominar essa licenciosidade linguística porquenão tem as suas raízes na palavra em si mesma mas no psiquismo e no modo de vida. É

Page 46: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 46/47

com toda a evidência necessário encorajar as tentativas da fábrica “A Comuna de Paris”,mas, mais do que isso, é necessário desejar aos seus iniciadores paciência e obstinação, pois os hábitos psíquicos, que se transmitem de geração em geração e dos quais toda aatmosfera está ainda hoje impregnada, não são fáceis de desenraizar. Acontece amiúdequerer fazer progressos a todo o custo; esfalfamo-nos e, finalmente, baixamos os braços

deixando tudo como antes.

Devemos confiar em que os operários, e em primeiro lugar os comunistas, secundem ainiciativa de “A Comuna de Paris”. Pode-se dizer que, regra geral (existem sem dúvidas

excepções), as grosserias são dirigidas as mulheres e aos filhos, não só por parte dasmassas atrasadas mas com frequência também por alguns da vanguarda e por vezesmesmo “responsáveis”. Não se pode negar o facto de que estas formas de expressão

estão ainda vivas seis anos após Outubro, mesmo entre os “altamente colocados”. Forada cidade, fora da capital, certas “personalidades” consideram que é de seu dever

exprimir-se grosseiramente por verem nisso um meio de entrar em contacto com ocampesinato...

A nossa vida é totalmente contraditória, tanto no plano econômico como no cultural. Nocentro do país, não longe de Moscovo, estendem-se imensos espaços pantanosos, de

caminhos impraticáveis e, mesmo a seu lado, elevam-se fábricas que impressionam peloseu nível de tecnicidade européia ou americana... Encontram-se contrastes análogos nos

nossos costumes; ao lado de Kit Kitytch o jovem(2), que atravessou a revolução,conheceu a expropriação, a especulação clandestina e a especulação legal, e queconservou praticamente intactos todos os caracteres de sua classe, encontramos o

melhor tipo de operário comunista, que só vive para os interesses da classe operária, queestá pronto a bater-se pela revolução a todo o momento e seja em que país for. Alémdeste contraste social –  grosseria obtusa e idealismo revolucionário –  podemos comfrequência realçar contrastes psíquicos no interior de um mesmo indivíduo, de uma

mesma consciência. Eis, por exemplo, um comunista autêntico, devotado à sua tarefa,mas para quem as mulheres não são mais do que “babas”(3) (que palavra tão grosseira),das quais não se pode falar seriamente. Ou ainda, a propósito da questão nacional, um

“communard”(4) emérito que emite de súbito um chuveiro de injúrias dignas de umUgrium Burtchéev,(5) de fazer fugir. Deve-se isso ao facto de que os diferentes domínios

da consciência não se transformam e não evoluem paralela e simultaneamente.Deparamos também aqui com uma particular economia. O psiquismo é flagrantementeconservador; na consciência, só se transformam os elementos directamente submetidos

às exigências da vida. A evolução social e política dos últimos decénios fez-se a um

ritmo sem exemplo, com saltos e viragens sem precedentes. É por isso que a Confusão ea Desorganização são entre nós tão poderosas. Mas seria injusto pensar que essas duasirmãs reinam unicamente na produção e no aparelho de Estado. Não, há o que confessar,

agem também sobre as mentalidades, em que se combinam convicções de vanguardasinceras e reflectidas (nesse domínio temos qualquer coisa a ensinar à Europa e à

América), com estados humorais, hábitos e opiniões directamente herdados doDomostroj.(6)  Nivelar a frente ideológica, isto é, analisar todos os domínios da

consciência por meio do método marxista –  tal é a fórmula geral da educação e da auto-educação que se deve aplicar antes de mais ao partido, começando pelos dirigentes. E,

uma vez mais, essa tarefa é terrivelmente complexa; não será realizada de forma escolarnem literária, porque as contradições e as desordens do psiquismo mergulham as suas

raízes mais profundas na confusão e na desorganização do modo de vida. A consciência,no fim de contas, define-se pelo ser. Mas a dependência aqui não é mecânica nem

Page 47: Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

7/23/2019 Leon Trotsky - Questões Do Modo de Vida

http://slidepdf.com/reader/full/leon-trotsky-questoes-do-modo-de-vida 47/47

automática; é recíproca. Eis porque se precisa abordar o problema de diversas maneiras,incluindo a dos operários da fábrica “A Comuna de Paris”. 

Façamos votos pelo seu êxito!

A luta contra a grosseria faz parte da luta pela pureza, a clareza e a beleza da linguagem.

Início da página 

Notas: 

(1) O caso Curzon: trata-se dos manejos anti-soviéticos do diplomara inglês G. N.Kurzon (1859-1925) que foi um dos organizadores da intervenção contra a URSS; em1919 enviou uma nota ao governo soviético emprazando-o a cessar o avanço das tropas

do Exército Vermelho segundo uma linha chamada “linha Curzon”. Em 1923 enviouum ultimatum provocador ao governo soviético, ameaçando-o com uma novaintervenção. (retornar ao texto) 

(2) Kit kitych: nome colectivo aparecido no início do século XIX e que designa um tipode comerciante, déspota familiar, cujos traços característicos eram a grosseria e aastúcia. (retornar ao texto) 

(3) Em russo: “bab’jo”, termo pejorativo, denominação colectiva que rebaixa a mulher àcategoria de animal de carga. (retornar ao texto) 

(4) “Communard”: partidário da Comuna de Paris de 1871. (retornar ao texto) 

(5) Ugrium Burtchéev: um dos personagens do romance de Saltykov-Chédrine –  “História de uma cidade”. Protótipo do déspota que só se exprime por onomatopéiasgrosseiras. (retornar ao texto) 

(6) “Domostroj”: recolhida escrita no século XVI, em que são reunidas as regrasfundamentais da vida quotidiana, fundada principalmente numa submissão total aochefe de família. (retornar ao texto)