stalin de leon trotsky prologo de osvaldo coggiola

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1 TROTSKY, STALIN, E A BUROCRACIA DA URSS Osvaldo Coggiola Pouco mais de setenta anos depois de sua redação, o Stalin de Leon Trotsky poderia ser considerado só um documento histórico, portanto datado. Seria, em nossa opinião, uma consideração estreita. Leon Trotsky não tinha concluido sua biografia de Stalin, cujo manuscrito se encontrava na sua mesa de trabalho, quando um agente deste, Ramón Mercader del Rio, assassinou-o. O atentado foi cometido no dia 20 de agosto de 1940, Trotsky faleceu no dia 21. “Jacson Mornard” (o falso nome que o agente usava junto a Trotsky e seus companheiros) era, na verdade, o braço executor de um grupo especial da NKVD (sucessora da GPU, polícia política stalinista), grupo encabeçado no México pelo general soviético Leonid Eitingon, montado e dirigido desde a URSS por Pável Sudoplátov sob órdens e supervisão direta de Stalin. O grupo tinha como tarefa assassinar Trotsky, refugiado no México desde 1936. Em maio, um atentado precedente (fracassado), com bombas e metralhadoras, fora realizado por um grupo chefiado pelo pintor muralista David Alfaro Siqueiros, membro do Partido Comunista do México. A tradução inglesa (para os EUA) dessa obra inacabada havia sido revisada pelo próprio Trotsky, com exeção do último capítulo, e estava pronta em 1941, quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, e se transformaram em aliados bélicos da URSS (ou seja, de Stalin): a Harper & Brothers adiou então sua publicação (“para época posterior à finalização da guerra”), que só aconteceria em março de 1946. Nos EUA, na década de 1930, havia crescido a influência política de Trotsky nos meios intelectuais de esquerda, desiludidos com a política do PC norte-americano e com os expurgos comandados por Stalin na URSS. Durante o atentado, partes do manuscrito do Stalin ficaram manchadas de sangue devido à luta travada por Trotsky com o assassino em seu escritório, outras foram destruídas. Nunca saberemos, portanto, qual seria a feição definitiva do texto de Trotsky. A edição inglesa procurou recuperar o máximo possível do texto, introduzindo palavras e pequenos fragmentos para dar coerência e legibilidade às partes que Trotsky deixara inacabadas (e indicando, no texto publicado, essas palavras e fragmentos, assim como também é feito nesta edição). A primeira edição portuguesa foi publicada em 1947, pelo Instituto Editorial Progresso, de São Paulo, com tradução do militante trotskista brasileiro Victor de Azevedo. A tradução espanhola foi publicada por Plaza & Janés (de Barcelona). Em anos posteriores, na América Latina, teve boa divulgação a edição mexicana, de Juan Pablos Editora. Em 1981 trabalhamos, na Editora Cidade do Homem (de São Paulo) em uma nova edição brasileira, dividida em três volumes, dos quais só dois foram publicados. Graças aos cuidados da Editora Livraria da Física (dirigida por um antigo editor da Cidade do Homem) temos agora a segunda edição brasileira completa desta obra. Foi preservada a tradução realizada por Victor de Azevedo, compulsada com a versão original inglesa, e com as edições em língua espanhola. Trata-se de uma “biografia vingativa” de Stalin, responsável pela exclusão (do partido e da URSS) e perseguição internacional de Trotsky, como sustenta, por exemplo, o cubano Leonardo Padura (em El Hombre que Amaba los Perros, ficção histórica recente)? Trotsky já tinha analisado detalhadamente a ascensão da burocracia stalinista na URSS, o usufruto em seu próprio benefício das conquistas da Revolução de Outubro de 1917 (expropriação da aristocracia fundiária e da burguesia capitalista, nacionalização e planejamento centralizado da economia, monopólio do comércio externo) e o indispensável papel ditatorial exercido (inclusive sobre a própria burocracia) por Stalin, assim como seu papel histórico e internacional. A Revolução Traída, publicada em 1936, foi o trabalho mais completo de Trotsky nesse sentido, mas não o único. O Stalin “biográfico” era seu complemento necessário?

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TROTSKY, STALIN, E A BUROCRACIA DA URSS Osvaldo Coggiola

Pouco mais de setenta anos depois de sua redação, o Stalin de Leon Trotsky poderia ser considerado só um documento histórico, portanto datado. Seria, em nossa opinião, uma consideração estreita. Leon Trotsky não tinha concluido sua biografia de Stalin, cujo manuscrito se encontrava na sua mesa de trabalho, quando um agente deste, Ramón Mercader del Rio, assassinou-o. O atentado foi cometido no dia 20 de agosto de 1940, Trotsky faleceu no dia 21. “Jacson Mornard” (o falso nome que o agente usava junto a Trotsky e seus companheiros) era, na verdade, o braço executor de um grupo especial da NKVD (sucessora da GPU, polícia política stalinista), grupo encabeçado no México pelo general soviético Leonid Eitingon, montado e dirigido desde a URSS por Pável Sudoplátov sob órdens e supervisão direta de Stalin. O grupo tinha como tarefa assassinar Trotsky, refugiado no México desde 1936. Em maio, um atentado precedente (fracassado), com bombas e metralhadoras, fora realizado por um grupo chefiado pelo pintor muralista David Alfaro Siqueiros, membro do Partido Comunista do México.

A tradução inglesa (para os EUA) dessa obra inacabada havia sido revisada pelo próprio Trotsky, com exeção do último capítulo, e estava pronta em 1941, quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, e se transformaram em aliados bélicos da URSS (ou seja, de Stalin): a Harper & Brothers adiou então sua publicação (“para época posterior à finalização da guerra”), que só aconteceria em março de 1946. Nos EUA, na década de 1930, havia crescido a influência política de Trotsky nos meios intelectuais de esquerda, desiludidos com a política do PC norte-americano e com os expurgos comandados por Stalin na URSS. Durante o atentado, partes do manuscrito do Stalin ficaram manchadas de sangue devido à luta travada por Trotsky com o assassino em seu escritório, outras foram destruídas. Nunca saberemos, portanto, qual seria a feição definitiva do texto de Trotsky. A edição inglesa procurou recuperar o máximo possível do texto, introduzindo palavras e pequenos fragmentos para dar coerência e legibilidade às partes que Trotsky deixara inacabadas (e indicando, no texto publicado, essas palavras e fragmentos, assim como também é feito nesta edição). A primeira edição portuguesa foi publicada em 1947, pelo Instituto Editorial Progresso, de São Paulo, com tradução do militante trotskista brasileiro Victor de Azevedo. A tradução espanhola foi publicada por Plaza & Janés (de Barcelona). Em anos posteriores, na América Latina, teve boa divulgação a edição mexicana, de Juan Pablos Editora. Em 1981 trabalhamos, na Editora Cidade do Homem (de São Paulo) em uma nova edição brasileira, dividida em três volumes, dos quais só dois foram publicados. Graças aos cuidados da Editora Livraria da Física (dirigida por um antigo editor da Cidade do Homem) temos agora a segunda edição brasileira completa desta obra. Foi preservada a tradução realizada por Victor de Azevedo, compulsada com a versão original inglesa, e com as edições em língua espanhola.

Trata-se de uma “biografia vingativa” de Stalin, responsável pela exclusão (do partido e da URSS) e perseguição internacional de Trotsky, como sustenta, por exemplo, o cubano Leonardo Padura (em El Hombre que Amaba los Perros, ficção histórica recente)? Trotsky já tinha analisado detalhadamente a ascensão da burocracia stalinista na URSS, o usufruto em seu próprio benefício das conquistas da Revolução de Outubro de 1917 (expropriação da aristocracia fundiária e da burguesia capitalista, nacionalização e planejamento centralizado da economia, monopólio do comércio externo) e o indispensável papel ditatorial exercido (inclusive sobre a própria burocracia) por Stalin, assim como seu papel histórico e internacional. A Revolução Traída, publicada em 1936, foi o trabalho mais completo de Trotsky nesse sentido, mas não o único. O Stalin “biográfico” era seu complemento necessário?

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É comum considerar este trabalho de Trotsky inferior ao conjunto da sua obra. Para Trotsky, a burocratização da URSS não foi um fenômeno “natural”, mas o produto de lutas políticas em que, depois da revolução, surgira uma nova camada social dominante, que não era uma simples excrescência a ser eliminada pelo desenvolvimento histórico.1 Isso exigia esclarecer o fundo histórico (ideológico, social e cultural) em que surgira, e vencera, a burocracia stalinista, originada nas fileiras da revolução e do bolchevismo, não sendo, porém, sua continuidade, mas, ao contrário, sua negação, ao ponto de tê-lo exterminado fisicamente. As qualidades específicas de Stalin ganhavam, nesse contexto, importância histórica: “mestre da dissimulação”, definiu-o Richard Overy, para explicar sua ascensão no aparelho, sobrevivendo aos momentos mais difíceis de sua carreira; “mestre da dosagem”, chamou-o Trotsky, conhecedor pessoal dessa carreira. Se tratava, através da biografia de Stalin, de pôr em evidência as razões da degeneração da revolução soviética, e as bases do stalinismo como corrente política.

Leon Trotsky à época da Revolução de 1905

As própias singularidades da trajetória de Trotsky só se compreendem plenamente como resumo do percurso de uma geração revolucionária, no fim da Belle Époque e na virada para o século XX, à luz das comoções mundiais provocadas pela Primeira Guerra Mundial. Diversamente de Stalin, em todas as fases da revolução russa, Trotsky (codinome de Lev Davidovitch Bronstein) ocupou o centro do palco político, exercendo diversas responsabilidades: presidente do soviet (conselho operário) de Petrogrado (nas revoluções de 1905 e 1917), responsável pela organização da insurreição de outubro de 1917 (como dirigente do Comitê Militar Revolucionário do soviet), responsável pela política externa da Rússia soviética nos primeiros meses do novo poder, responsável pela direção do Exército Vermelho durante a guerra civil e a intervenção externa, responsável pela reconstrução do sistema de transportes e comunicações e, finalmente, principal opositor a Stalin no partido e na URSS. O partido em que ingressou só em agosto de 1917 (o partido bolchevique, depois rebatizado como Partido Comunista), na véspera da Revolução de Outubro, ficou conhecido como “o partido de Lênin e Trotsky”, um fato menos surpreendente do que parece, se considerarmos que o bolchevismo, até pouco antes, era uma das frações da social-democracia russa, que o próprio bolchevismo possuia diversas frações, e que, em 1917, foi o canal principal em que convergiram diversas correntes e militantes revolucionários (social-democratas) de longa trajetória, ou seja, que a adesão “tardia” de Trotsky esteve longe de ser a única: Uritski, Lozovsky, Antonov-Ovseenko, Manuilski, Vladimirov, Angelica Balabanova, Chudnovski, Lunacharski, Riázanov, Pokrovski, Radek, Ioffe, todos eles depois conhecidos

1 Claude Lefort afirmou que, para Trotsky, “a burocracia não era mais que uma simples casta, parasitária e

transitória, superposta a uma infraestrutura socialista”, o que não corresponde à verdade. Trotsky insistiu em que a URSS era “uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo. Qualificar de intermediário ou transitório o regime soviético, significa afastar categorias sociais acabadas, como capitalismo (incluído o ‘capitalismo de estado’) ou socialismo” (A Revolução Traída). Lefort viu no terror staliniano uma “circunscrição da alteridade”, onde se articularam harmoniosamente “planejamento (econômico), coletivização, industrialização e campos de concentração”.

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dirigentes bolcheviques, tiveram trajetória semelhante. Stalin, “velho bolchevique”, por outro lado, esteve longe de ser um personagem secundário na história precedente.

Depois da morte de Lênin (1924) Trotsky ridicularizou a tentativa de construir um “leninismo” artificial contraposto não só ao chamado “trotskysmo”, mas também apresentado como superação do próprio marxismo “de Marx” (“o leninismo é o marxismo da era das revoluções proletárias”, escreveu Stalin). A noção de “leninismo” surgiu em 1924, através de uma série de proposições simples e repetidas, configurando uma espécie de catecismo, apoiadas em citações de Lênin tiradas do seu contexto (Lenin escrevendo sobre a “vitória do socialismo na Rússia” virou, por exemplo, partidário do “socialismo num só país”). Em alguns anos, o “leninismo”’ transformou-se no “leninismo-stalinismo”. As suas idéias-força eram: o partido deve ser “monolítico” (“de aço”, “de uma peça só”, “em tensão permanente”). Não haveria mais divergências internas, mas “desvios”, introduzidos “do exterior”, que traduziriam a “ideologia do inimigo de classe”. Toda tolerância com eles seria “liberalismo” (o próprio Stalin tinha acusado Lênin de “liberalismo nacional”, durante a crise suscitada pela “questão georgiana”). A discussão interna foi susbstituída pela prática “da crítica e da autocrítica”, sendo esta última uma arma nas mãos da direção partidária, possuidora da “linha justa geral”. E, diversamente do sustentado por Lênin em O Estado e Revolução, o Estado não “se extinguiria”, mas “se reforçaria”, devido ao “agravamento da luta de classes”, à “resistência dos resíduos das classes inimigas”, etc. Ficava assim estabelecida a base “teórica” para o ataque contra qualquer oposição, que passou a ser realizado através da polícia política do Estado e da violência física. E também para a defesa de um novo objetivo: a “construção do socialismo”, agora possível “em um só país”. Para isso, reforçou-se o messianismo nacional russo: enfatizaram-se encomiásticamente as características peculiares da nação e do povo russos, a originalidade do seu desenvolvimento histórico (o historiador bolchevique M. N. Pokrovski negou-se a cumprir essa tarefa “historiográfica”).2 A Internacional Comunista, criada em 1919, passou a ser um “instrumento de defesa da pátria socialista”, ou seja, um instrumento da política exterior da URSS, cuja conduta internacional não deveria trazer ameaças às conquistas obtidas nessa “pátria”.

Mikhail Nikolayevitch Pokrovski

2 Mikhail Nikolayevich Pokrovski (1868-1932) graduou-se na Universidade de Moscou em 1891. Bolchevique desde

1905, publicou livros sobre a história da Rússia baseados no materialismo histórico em 1910-1913. Sua “Breve História da Rússia”, publicada em 1920, foi muito apreciada por Lênin, que a prefaciou. Pokrovski chefiou o Instituto de Professores Vermelhos entre 1921 e 1931. Em 1929, foi eleito para a Academia Soviética de Ciências. Foi responsável pela exclusão de historiadores do “antigo regime” da academia soviética, junto aos quais não gozava de prestígio. Foi o historiador mais importante do primeiro período da Rússia soviética. Caiu no ostracismo depois, acusado de "sociologismo vulgar". Seus livros foram banidos: sua oposição a considerar o papel central das “grandes personalidades” na história chocou-se com o início do “culto à personalidade” (de Stalin) que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi extendido, na historiografia oficial (e até no cinema, vide os filmes de Eisenstein Ivã, o Terrível ou A Conspiração dos Boyardos) aos mais importantes czares, dos quais Stalin proclamou-se implicitamente continuador: Pokrovski era um inimigo declarado do nacionalismo russo. Depois da morte de Stalin, sua obra foi reconsiderada na URSS, sem voltar a ter, no entanto, grande influência. Sua morte, em 1932, poupou-lhe certamente um destino final nos campos stalinistas.

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Joseph Stalin (codinome de Ioseb Besarionis Dze Djughashvili) tinha nascido na Géorgia, oficialmente, a 21 de dezembro de 1879 (as fontes atuais situam seu nascimento em 1878), quase contemporaneamente ao nascimento de Trotsky, em um lar muito pobre. Depois dos estudos básicos, cursou um seminário da Igreja Ortodoxa (esses seminários eram um instrumento da política de russificação do Império Czarista), onde aprendeu russo (que sempre falou com marcado sotaque georgiano), e do qual acabou expulso. Em 1898, vinculou-se a um grupo social-democrata (do POSDR, Partido Operário Social-Democrata da Rússia). Em 1901 participou da criação do periódico clandestino A Luta. Seu apelido juvenil de Sosso, virou Koba. Membro do comitê social-democrata clandestino de Tbilisi, em 1902 foi preso e deportado para a Sibéria, de onde fugiu em 1904. Em 1905 participou da organização uma greve geral em Baku; e também encontrou Lênin no congresso partidário (bolchevique) realizado em Finlândia. Com a derrota da Revolução de 1905, Stalin foi preso e deportado várias vezes (em tempos recentes, devido às suas sucessivas liberações, levantou-se a hipótese de que fora, nesse período, confidente da polícia política czarista, a Okhrana).3 Preso novamente em 1908, foi banido para Vologda, de onde fugiu novamente, dirigindo-se em junho para São Petersburgo. Eleito para o Comitê Central da fração bolchevique, foi preso mais uma vez em 1910, fugindo em meados do ano seguinte. Durante um breve exílio em ocidente, trabalhou com Lênin sobre a “questão nacional”, do que resultaria um texto que credenciou Stalin como teórico na matéria: devido a Stalin pertencer a uma minora étnica – era da Ossétia, uma sub-região da Geórgia – Lênin encarregou-o de elaborar um documento que contestasse as teses do austro-marxista Otto Bauer sobre a questão das nacionalidades, importante para os socialistas austríacos e russos, visto que tanto o império dos Habsburgo como o dos Romanovs compunham-se de um conglomerado de distintas nacionalidades, etnias e religiões. Novamente preso em 1913, Stalin foi exilado para o círculo polar ártico, de onde seria libertado, em março de 1917, pelo governo Kerenski. Em 1913, também, adotou o codinome pelo qual ficaria conhecido: Stalin (“aço”). Segundo Trotsky, “Lênin prezava sua tenacidade, sua audácia, sua obstinação e, até certo ponto, sua hipocrisia, como atributos importantes para a luta”.

Em 1917, já editor do jornal do partido, Pravda, Stalin foi reconduzido ao Comitê Central do partido bolchevique. Depois da insurreição de outubro ingressou no governo soviético (Sovnarkom), ocupando o cargo de presidente do Comissariado das Nacionalidades. Os três anos seguintes foram marcados pela guerra civil (em que teve vários enfrentamentos com o principal comandante militar soviético, o próprio Trotsky, que lhe geraram fortes rancores) depois da qual Stalin, embora pouco conhecido das massas, ascendeu dentro da máquina partidária. Em 1919, entrou no recém criado Politburo (Burô Político) do Comitê Central, sendo designado um dos quatro líderes do partido (junto com Lênin, Trotsky e Sverdlov, que faleceria logo depois). Nesse ano foi reorganizada a estrutura partidária (até então bastante caótica), com a criação (no CC) do Politburo e do Burô de Organização, o que significava, de fato, a reorganização política do Estado, pois o funcionamento dos soviets se esvaziara durante a guerra civil, e o PC(b) passara a ser, de fato (não declaradamente) partido único, depois da dissolução, em maio de 1918, dos “socialistas revolucionários (SR) de esquerda”, aliados iniciais dos bolcheviques no Sovnarkom. No mesmo ano de 1919, Stalin passou o acupar um posto chave para sua ascensão: responsável pela Inspeção Operária e Camponesa (Rabkrin), encarregada do controle do Estado, cujas ramificações passou a conhecer melhor que qualquer outro dirigente soviético. Em abril de 1922 foi designado secretário geral do partido. Este cargo (no início, restrito à organização da agenda e pauta do Politburo) deu uma nova dimensão de poder a Stalin. A burocratização do poder soviético, nessa altura, não era só um

3 Cf. Edvard Radzinsky. Joseph Staline. Paris, Le Cherche Midi, 2011.

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processo objetivo, mas também político e consciente, impulsionado por uma fração partidária não declarada, chefiada pelo próprio Stalin.4

Na fase final de sua vida, Lênin tinha diagnosticado e se insurgido contra o fenômeno burocrático, defendendo a renovação periódica dos dirigentes, a volta ao campo ou às fábricas, a substituição da nomeação pela eleição, propostas em um texto póstumo dirigido ao partido. Mas Lênin morreu em janeiro de 1924 sem conseguir reverter, ou sequer frear, o processo. O “Testamento” de Lênin, redigido pouco antes de sua agonia, foi lido, a 18 de maio desse ano, para os membros do Comitê Central (CC), nos dias prévios à reunião do XIII Congresso do PC(b). Nele, lia-se: “O camarada Stalin, após tornar-se secretário geral concentrou em suas mãos poderes ilimitados, e não estou convencido de que sempre conseguirá usar esse poder com suficiente cuidado”. Em um adendo ao documento, redigido depois de uma agressão física de Ordjonikidzé (próximo de Stalin) aos dirigentes bolcheviques georgianos, Lênin reclamou simplesmente a remoção de Stalin dessa responsabilidade. O CC não deu seqüência ao pedido de Lênin, por solicitação de Zinoviev e Kamenev (logo depois, sabendo que não seria aceita, Stalin ofereceu ao CC sua renúncia, uma atitude de falsa humildade que foi, para seus biógrafos, um exemplo de seu “maquiavelismo”). Não se deve exagerar a importância desse episódio: um eventual recuo tático de Stalin no aparelho (Lênin não propunha sua exclusão da direção ou do partido) não poderia, nessa altura, deter um processo imparável; provavelmente só teria mudado alguma de suas formas políticas. O partido essencialmente operário (com uma fração importante de intelectuais na sua direção) de 1917 já tinha se aberto largamente ao campesinato (origem de 30% dos seus 700 mil membros em 1921) e, sobretudo, ao recrutamento massivo, sem estágio probatório, que começou com a “promoção Lênin”, de 1924, realizada sob responsabilidade de Stalin, consecutiva ao falecimento do líder: 200 mil novos membros foram incorporados nessa “promoção”, inexperientes, mas já elegíveis para cargos de responsabilidade.

Vladimir Ilitch Ulianov, Lênin

Dos novos militantes, 30% apenas sabiam ler, e não mais do que 10% eram capazes de manter um debate político sério. Em cima e no controle deles existia um aparelho enorme e piramidal, em cujo vértice encontrava-se Stalin, secretário-geral do Politburo e membro do Burô de Organização, o Orgburo (o único dirigente que pertencia aos dois corpos). Sob sua direção se encontravam os “departamentos” do secretariado, com amplos poderes de nomeação, revogação e deslocamento. E, sobretudo, a “seção especial” (ou “secreta”) do CC, dirigida a partir de 1929 por Poskrebyschev,5 encarregada das relações com a polícia política (a GPU,

4 Cf. Aleksandr Podtchekoldin. 1922: o nascimento da partidocracia na URSS. In: Osvaldo Coggiola.Trotsky Hoje. São

Paulo, Ensaio, 1992. 5 Alexandre Nikolaïevitch Poskrebyschev (1891-1965) foi secretário particular de Stalin desde 1929, ficando no

posto até a morte deste (1953). Ingressou no partido bolchevique em 1917. Foi comissário político no Exército Vermelho no Turquestão. Formou-se, depois (1927), em Direito. Em 1937 foi nomeado membro suplente do Comitê Central do PCUS, e titular em 1939. Dirigiu a “seção secreta” (chamada “Seção Especial” a partir de 1934) do Comitê Central, se ocupando da correspondência secreta do secretário geral e de sua agenda. Em 1938, redigiu uma “Breve

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sucessora da Tcheka) e diretamente “acompanhada” por outro secretário de Stalin, Malenkov,6 futuro fugaz premiê da URSS. O sistema (burôs, comitês) se organizava sob o princípio da nomeação, e era chamado de nomenklatura (“listas de nomeação”). Qual era a composição dos apparatchiki (“homens do aparelho”) na década de 1920? Entre os dirigentes, 22% de “velhos bolcheviques”; 18% de aderentes à época da guerra civil; o restante eram recrutas posteriores a 1924. A desmoralização política dos velhos quadros se fazia evidente com a supressão do “máximo comunista” dos salários e com a institucionalização de privilégios: carros funcionais, “envelopes” (prêmios, ou “verbas de representação”) e, sobretudo, verbas em rublos-ouro (os únicos conversíveis em divisas externas) para “tratamentos de saúde” no exterior (quer eles fossem realizados ou não). Os valores da concorrência (acumulação) individual começaram a voltar com força.

Em 1921, com o país arrasado pelas guerras, cercado pelas potências ocidentais, e com a classe operária desarticulada, pôs-se em andamento a Nova Política Econômica (NEP), ampliando a margem dos mecanismos de mercado, e buscando incrementar, sobretudo, a produção agrária. A essa altura, a concepção de Lênin, de um partido enxuto de revolucionários empenhados na igualdade e no combate à opressão, parecia um anacronismo. Em 1920, 53% dos membros do partido trabalhavam em instituições estatais, e 27% estavam no Exército Vermelho. Já era claro que a entrada no partido proporcionava certos privilégios. O aparelho do partido passou, progressivamente, a identificar-se com o aparelho do Estado.

Poskrebyschev e suas filhas em 1940. A mãe delas já estava detida

História” do PCUS (Partido Comunista da União Soviética). Sua segunda mulher, Bronislava Poskrebyscheva, foi detida em 1939 pela NKVD, ficando Poskrebyschev em situação semelhante à de Molotov (com um cargo dirigente, mas com a esposa detida, de fato refém). Bronislava foi fuzilada em 1941. Burocrata extremamente eficiente, preparou a documentação da URSS para as conferências de Yalta e Potsdam, no fim da Segunda Guerra Mundial. Ocupou-se também da saúde de Stalin. Em 1952, chegou ao posto de secretário do Presidium do Comitê Central, fugazmente. Foi brevemente detido depois da morte de Stalin, em 1953, depois libertado e aposentado, vivendo até sua morte nos arredores de Moscou. 6 Gueorgi Maksimiliánovitch Malenkov (1902-1988) nasceu em Orenburg, em uma família de oficiais militares.

Entrou para o Exército Vermelho em 1919 e para o PC(b) em abril de 1920. Após dar baixa do exército em 1921, estudou na Escola Técnica Superior de Moscou. Formou-se em 1925 e se tornou um dos confidentes de Stalin. Ajudou Stalin durante os expurgos e os massacres de 1936-1938. Foi indicado para o Politburo, no qual só entraria em 1946, preterido por seus adversários Andreï Jdanov (cultura) e Laurentiy Beria (segurança), mas voltou às graças de Stalin após a derrocada de Jdanov. Uniu então forças com Beria para que aliados de Jdanov fossem excluídos e enviados para campos de trabalho. Em 1952, tornou-se membro do secretariado do partido. Com a morte de Stalin, no ano seguinte, chegou a ser nomeado premiê e primeiro-secretário do partido, mas foi forçado a renunciar à liderança do partido em 13 de março, sendo sucedido por Nikita Khruschev, criando uma espécie de duunvirato, pois Malenkov continuou como premiê por dois anos. Nesse período, defendeu a reorientação da economia soviética para a produção de bens de consumo em detrimento da indústria pesada. Foi destituído de seu cargo em fevereiro de 1955, atacado por suas ligações com Beria (executado em 1953) e pelo ritmo lento das reformas, particularmente quanto à reabilitação de presos políticos, mas permaneceu no Presidium do CC. Em 1957 foi forçado a renunciar em virtude de sua suposta participação numa tentativa de depor Khruschev, da qual também teriam participado Nikolai Bulganin, Viatcheslav Molotov e Lazar Kaganovitch. Em 1961, foi expulso do PCUS e exilado internamente: virou gerente de uma usina hidrelétrica no Cazaquistão até morrer.

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O regime soviético conseguira alguma estabilidade externa, graças às vitórias militares em quase todas as frentes da guerra civil, mas sua situação interna se tornava cada vez mais complicada, com greves em Petrogrado e, sobretudo, com o levantamento da fortaleza marítima de Kronstadt. Coube a Trotsky chefiar a repressão à rebelião de Kronstadt, como responsável militar do Estado. A repressão foi votada pelo X Congresso do PC(b), incluída a “Oposição Operária”, chefiada por Chliapnikov e Alexandra Kollontai, oposição às vezes apresentada (deturpadamente) como expressão (conjuntamente com o levantamento de Kronstadt) da luta pela “democracia operária” contra a “ditadura bolchevique”. Anos depois, Trotsky situou e justificou a repressão de Kronstadt, no quadro dos mesmos problemas que puseram a revolução a perigo naquele momento: “O exército russo se encontrou também sob a influência do campo. Durante os anos da guerra civil foi necessário, mais de uma vez, desarmar regimentos descontentes. A introdução da Nova Política Econômica (NEP) atenuou a tensão, mas não a eliminou. Pelo contrário, preparou o caminho para o renascimento dos kulaki (camponeses ricos) e levou, no início dessa década, à renovação da guerra civil na aldeia. O levantamento de Kronstadt foi somente um episódio na história das relações da cidade proletária e a aldeia pequeno-burguesa. Só é possível compreender esse episódio em relação com o curso geral do desenvolvimento da luta de classes durante a revolução”.7

Gueorgi Malenkov

Pouco antes da insurreição de Kronstadt, Karl Radek tinha resumido brutalmente a situação do governo bolchevique:8 “O partido é a vanguarda consciente da classe operária. Chegou o momento em que o grosso das massas operárias está cansado, receoso de seguir uma

7 Leon Trotsky. Escritos. Vol. XI (1937-1938), Bogotá, Pluma, 1974, p. 201.

8 Karl Radek (1885-1939) nasceu Karol Sobelsohn, numa família de judeus poloneses, em Lemberg (atualmente

Lvov, na Ucrânia, na época parte da Polônia sob o Império Austro-Húngaro). Entrou na social-democracia russa em 1898, participando da Revolução de 1905 em Varsóvia. Exilado na Alemanha, entrou para a social-democracia alemã, da qual foi expulso em 1913. Internacionalista durante a Primeira Guerra Mundial, quando viveu na Suíça, vinculado à “Esquerda de Bremen”, e a Lênin e o “movimento de Zimmerwald”, foi, com Alexander Parvus e Iákov Ganetski, mediador entre Lênin e as autoridades alemãs para a autorização da passagem do líder bolchevique pela Alemanha, em 1917, sob promessa de retirar a Rússia da guerra. Voltou para Rússia depois de fevereiro de 1917, indo logo para Estocolmo, onde publicou as revistas Russische Korrespondez-Pravda e Bote der Russischen Revolution, divulgando as posições bolcheviques em alemão. Entrou para o partido bolchevique também em 1917. Jornalista brilhante e poliglota, escreveu o opúsculo As Forças Motoras da Revolução Russa, amplamente divulgado na Europa. Esteve na Alemanha entre 1918 e 1920 para ajudar a organizar o Partido Comunista Alemão (KPD), com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, chegando a ser preso, e a desempenhar funções consulares do governo soviético na cela da prisão. Em 1920, voltou para a Rússia e entrou para a direção da Komintern (Internacional Comunista). Pioneiro da “revolução sexual”, sua campanha contra a “moral burguesa” e pelo amor livre impregnaram a propaganda revolucionária na Rússia soviética ao ponto de uma geração de filhos de mães solteiras ficar conhecida como “a prole de Karl Radek”. Com Dmitri Manuilsky, foi enviado pela Komintern à Alemanha, para participar da frustrada insurreição de novembro de 1923. Em 1924, perdeu seu posto no Comitê Central bolchevique, e em 1927 foi expulso do partido. Elizabeth Poretski lhe atribuiu diversas piadas políticas sobre Stalin, que circulavam em Moscou nessa época. Depois recuou, foi readmitido no partido em 1930, e ajudou a escrever a Constituição soviética de 1936. Durante o expurgo do ano seguinte, no entanto, foi acusado de traição e confessou no “Processo dos Dezessete”, em 1937, sendo condenado a dez anos de trabalhos forçados. Morreu executado em um campo de trabalho, em 1939, por ordem direta de Beria, chefe da NKVD.

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vanguarda que continua arrastando-as pelo caminho das lutas e dos sacrifícios. Devemos ceder a trabalhadores no limite de suas forças físicas e da sua paciência, menos esclarecidos do que nós sobre seus próprios interesses gerais? Seu estado de espírito se torna por momentos claramente reacionário. O partido estima que não pode ceder, que deve impor sua vontade de vencer aos trabalhadores cansados, dispostos a ceder”. Conceitualmente, isto não pode ser confundido com a transformação do partido em um ente supra-histórico, dirigido por um “guía genial”, embora indique o solo em que essa concepção floresceu.

A repressão da rebelião de Kronstadt (1921)

Uma adoção mais rápida da “nova política econômica” teria evitado a rebelião de Kronstadt? A NEP foi adotada como medida temporária, em 1921, para substituir a política do “comunismo de guerra”, baseada nas requisições forçadas, que prevaleceu durante a guerra civil. Permitiu um crescimento do comércio livre e das concessões estrangeiras junto aos setores econômicos nacionalizados e controlados pelo Estado. Estimulou o crescimento de uma classe de camponeses ricos, de uma burguesia comercial (os nepmen), e de concessões para o comércio e o cultivo privados. Para Edward H. Carr, a NEP não só foi decisiva para os rumos futuros do Estado soviético na Rússia, mas também a viga mestra da sua política internacional: “O advento da NEP, que teve a conseqüência imprevista de fortalecer a autoridade central do partido, estimulou também as forças centralizadoras que já atuavam na formação do Estado soviético. O entusiasmo da massa de 1917 com a destruição do poder estatal havia desaparecido no mundo dos sonhos não realizados. Estes continuaram a perseguir as lembranças de muitos membros do partido. Mas desde [o Tratado de] Brest-Litovsk e o fim da guerra civil, a necessidade de criar um poder estatal suficientemente forte para enfrentar essas emergências havia sido forçosamente aceita. Era, agora, reforçada pela necessidade de construir a economia nacional, devastada e despedaçada. O período da NEP não só modelou o que viria a ser a estrutura constitucional permanente da URSS, como também determinou as linhas a serem seguidas durante muitos anos em suas relações com os países estrangeiros”.9

Houve, portanto, uma “NEP da política externa”, que incluiu o III Congresso da Internacional Comunista (IC), que adotou a política da “frente única operária”? A realidade parece mais complexa. Em 1921 apareceram os sintomas de uma estabilização, não só do capitalismo, mas também da situação política mundial criada pelo surgimento da Rússia soviética: no III Congresso da IC, Trotsky indicou que a revolução mundial não era mais questão de “semanas” ou de “meses”, mas de “anos”. Havia uma espécie de “empate histórico”: a revolução não fora derrotada pela pressão e intervenção militar externa, mas ela estava contida nos limites da Rússia soviética. Lênin referiu-se à revolução russa como sendo, por esse motivo, “semi-vitoriosa e semi-derrotada”. A guerra provocara enormes destruições na Rússia, o retrocesso quase completo das trocas comerciais e do abastecimento: as cidades haviam perdido 30% dos seus habitantes, as linhas de transporte não funcionavam, a população sofria fome e frio (7,5 milhões de russos foram vítimas da fome e das epidemias). A classe operária vivia um processo de decomposição, ao mesmo tempo em que se operava uma rigorosa centralização militar de

9 Edward H. Carr. A Revolução Russa de Lenin e Stalin (1917-1929). Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 43.

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recursos (o “comunismo de guerra”). O endurecimento do regime, o surgimento da Tcheka (polícia política), a passagem dos outros partidos políticos (inclusive de esquerda) para o campo contra-revolucionário na guerra civil, implicara na extinção da democracia soviética e do pluri-partidarismo. A indústria produzia a 20% do seu nível pré-1914; a agricultura, a 50%. A classe operária ficara reduzida a menos da metade de seu efetivo anterior à Grande Guerra, os camponeses recusavam o abastecimento das cidades. A velha vanguarda operária se transformara em uma camada de “governadores de operários” (o conflito sobre a “militarização dos sindicatos”, medida defendida por Trotsky, ilustrou essa situação). Nesse quadro explodiram as greves de Petrogrado e, sobretudo, a insurreição de Kronstadt; mas também a agitação no campo (em Tambov) vencida menos pela repressão do que pela seca e pela fome.

A NEP, adotada em março de 1921 (“tarde demais” para Lênin) consistia basicamente na substituição das requisições forçadas por um imposto em espécie, o que deixava um excedente livremente negociável para o camponês; na liberdade econômica para o pequeno comércio e o artesanato; na oferta de concessões ao capital estrangeiro (os investimentos deste foram importantes no setor petroleiro, em Baku; Hammer, investidor norte-americano, amigo de Lênin, foi chamado de “capitalista vermelho” em seu país). Para os bolcheviques estava claro que se tratava de um encorajamento das tendências capitalistas, e de um recuo político em virtude do adiamento da revolução européia. A partir de 1922, a produção agrícola se recuperou em 75%, a industrial em 25%, o comércio renasceu. Mas também nascia uma “nova burguesia”: o kulak (camponês abastado, que explorava os meeiros), os nepmen (comerciantes), os spetsy (especialistas). A democracia soviética, em troca, se extinguia (os bolcheviques poderiam ser derrotados em eleições gerais livres, como já tinha acontecido nas eleições constituintes de 1918). No partido, começava a imperar o sistema de nomeações por cima, o reino dos apparatchiki, e a hierarquia de secretários que começava a controlá-lo: os Molotov, Kaganovitch e, sobretudo, Stalin. No fim desse ano, Lênin rompeu relações com Stalin, em virtude de sua rudeza pessoal (da qual fora vítima até a mulher de Lênin, Nadeja Krupskaïa, pedagoga) e do tratamento burocrático dado à questão georgiana, um dos nós da “questão nacional”, que deu origem ao “Tratado da União” (base, por sua vez, da existência da União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, a partir de 1922). Internacionalmente, a IC impulsionava a “conquista das massas” com a política da frente única operária, dirigida principalmente à social-democracia européia, ainda majoritária no movimento operário da Europa ocidental.

O fracasso das tentativas revolucionárias no exterior levou à utilização crescente das contradições interimperialistas como meio para superar o isolamento internacional: o Tratado de Rapallo, com a Alemanha, em 1922; o tratado com a Turquia, onde, no entanto, o novo chefe de estado, Mustafá Kemal Atatürk fazia assassinar os dirigentes do PC turco (o Subhi), o que evidenciava os problemas de uma diplomacia que entrava em contradição com a solidariedade comunista. Os bolcheviques tentaram distinguir a política da URSS daquela da Internacional Comunista. A situação interna estava muito condicionada pela situação mundial, os avanços revolucionários no exterior provocavam entusiasmo. Mas, na véspera do “outubro alemão” de 1923, se produziu a primeira grave crise pública do partido. Isto se conjugou com o recuo social e político do proletariado russo, desprovido de seus elementos mais combativos (mortos na guerra civil, ou “aspirados” pelo aparelho de Estado) e com a necessidade de reconstruir uma economia esgotada: o “aparelho burguês” do Estado Operário (que Lênin definia como “um Estado burguês sem burguesia”)10 elevava-se sobre este, nascia uma burocracia, gerente da penúria material.

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A definição fazia referência implícita a Marx (Crítica do Programa de Gotha): “O direito igual, portanto burguês” seria mantido (na primeira fase da sociedade sem classes), no que diz respeito às normas de consumo, porque este

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Trotsky, Lênin e Kamenev

Desde 1923-24, quando a “prosperidade” dos países capitalistas se tornou evidente, boa parte dos novos dirigentes soviéticos começou a propor “aspirações razoáveis” (contra as perspectivas de 1917-23, qualificadas de “sonhos trotskistas”): a construção do socialismo em um só país.11 Mas o proletariado se beneficiava da NEP só na qualidade de consumidor; uma nova crise econômica irrompeu em 1923, com a “crise das tesouras”: os produtos industriais não encontravam mercado devido à estagnação dos preços (e, portanto, do poder adquisitivo) agrícolas. Sua principal conseqüência foi o desemprego industrial: 500 mil desempregados no outono de 1922, 1,25 milhões em 1923. O desemprego diminui nos três anos posteriores, quando o número de operários atingiu dois milhões, e o dos desempregados se estabilizou em um milhão. A maioria dos novos operários, porém, era de origem rural recente, e procurava o pagamento em espécie nas indústrias, essencial em momentos de penúria, “uma massa amorfa, totalmente ignorante dos acontecimentos políticos” (Pierre Sorlin). Os melhores elementos eram absorvidos pelas Rabfak (universidades para operários): o rendimento geral do trabalho era menos que medíocre. Os kulaki somavam entre quatro e cinco milhões de camponeses, proprietários de mais de 10 hectares, que enriqueceram na “grande fome” de 1921-1922: um kulak vendia tanto quanto quatro camponeses médios; 2% dos camponeses (os mais ricos) detinham 60% do mercado, 50% das terras úteis, 60% do capital agrícola. Empregavam 1,5 milhões de jornaleiros (com salários inferiores aos de 1914), alugavam utensílio agrícola para 40 milhões de camponeses, emprestavam dinheiro a juros às outras camadas camponesas, tornavam-se “senhores do campo”: exigiam o fim do divórcio e dos direitos da mulher, establecidos em 1918, assim como a pena de morte para os ladrões de cavalos...

Os kulaki começavam a pesar sobre a economia, que reduzia seus investimentos industriais, e se faziam ouvir também no partido, onde Nikolai Bukharin era,12 de fato, seu porta-voz: o

(o consumo) seria equivalente ao trabalho realizado (“De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo seu trabalho”): “A igualdade consiste aqui no uso de uma medida comum”, em condições em que “os indivíduos são desiguais, não pelas distinções de classe (que desapareceram), mas porque um indivíduo é superior física ou moralmente [intelectualmente] a outro, realizando mais trabalho no mesmo tempo, ou trabalhando mais tempo. Esse direito igual é, pela sua natureza, fundamentado na desigualdade, como todo direito”, escreveu Marx. Para Lênin (O Estado e a Revolução): “O direito burguês no que diz respeito à distribuição dos objetos de consumo, supõe necessariamente um Estado burguês, porque o direito nada é sem um aparelho de coerção capaz de obrigar à observância das normas”: o Estado “socialista”, na medida em que sobrevive um Estado depois da desaparição da sociedade de classes, é, por isso, “um Estado burguês sem burguesia”. 11

Domenico Losurdo lembra que Stalin foi o primeiro dirigente soviético a afirmar que “por um longo período histórico a humanidade continuaria dividida não somente em diferentes sistemas sociais, mas também em diferentes identidades linguísticas, culturais e nacionais”, uma aparente prova de sua excepcional inteligência... 12

Nikolai Ivanovich Bukharin (1888-1938) nasceu em Moscou, filho de professores do ensino básico. Estudou economia na Universidade de Moscou, onde também iniciou sua vida política no movimento estudantil, durante a Revolução de 1905. Ingressou no POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) em 1906, na sua fração bolchevique, tornando-se colaborador próximo de Lênin a partir de 1912, depois de uma deportação para Onega no Arkangelsk, seguida de uma fuga para Hannover, na Alemanha. Desde então foi uma das figuras dirigentes dos bolcheviques. Exilou-se na Europa ocidental, na Suécia e nos EUA. Em Viena, em 1913, ajudou Stalin a redigir seu opúsculo sobre a questão nacional. Durante esses anos, Bukharin redigiu uma importante crítica de A Acumulação de Capital, de Rosa Luxemburgo; e o clássico A Economia Mundial e o Imperialismo (existe versão brasileira, na série

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“principal teórico do partido” (como Lênin o chamou no “Testamento”) defendia uma “industrialização a passo de tartaruga” e a conservação a qualquer preço da aliança com o campesinato (“devemos avançar com passos pequenos, arrastando nossa enorme carroça camponesa”) relançando a palavra de ordem de Guizot: “enriquecei-vos”. Os nepmen, por sua vez, igualaram em 1926 o faturamento do comércio cooperativo, organizado pelo Estado. Os spetsy aumentaram seus salários e cresceram em número (não eram precisas grandes qualificações para ser spetsy: 60% dos membros do partido não sabiam ler...). Para Pierre Sorlin: “Em 1925, quatro anos depois da guerra civil, uma camada de aproveitadores parecia tirar os melhores benefícios da revolução”.

O emigrado “branco” Ustrialov escrevia, em 1925, acerca “do povo renovado, fatigado pela tempestade, com vontade de paz, de trabalho, de submissão”. Para ele, a NEP era “um alento ao crescimento, ao individualismo, é como o campo trabalhador, inevitável como a vida, imperioso como a história”. Expressava assim a esperança de uma restauração capitalista, não necessariamente monárquica. A penúria econômica conseguiria o que não conseguira a agressão e o cerco militares contra a Rússia soviética? Essa era a nova aposta da contra-revolução. Os “novos privilegiados” do Estado, por sua vez, estavam convencidos da justiça da sua condição social. A burocracia surgia, na revolução, com base nos privilégios que outorgava a condição de distribuidor num contexto de penúria e miséria. A necessidade de uma organização da produção e da distribuição (de uma administração estatal) se transformava em fim em si mesmo, fonte de privilégios e, finalmente, de arbítrio. Em 1871, a Comuna de Paris adotara medidas visando à eliminação da burocracia estatal (máximo dos salários, elegibilidade e revogabilidade de todos os cargos, unicameralidade), por isso foi chamado de “um Estado que já não era, tendencialmente, um Estado”: sem burocracia, o Estado “extingue-se”, tal fora a principal conclusão de Marx a respeito.

Nikolai Bukharin

“Os Economistas” da Editora Abril). Após o exílio, regressou em 1917 à Rússia e, durante a Revolução de Outubro, organizou a insurreição em Moscou. Formulou teoricamente os princípios da economia soviética (Economia do Período de Transição, de 1920), co-redigiu, com Préobrazhenski, o manual ABC do Comunismo, e também o mais elaborado Teoria do Materialismo Histórico, que foi criticado por militantes marxistas ocidentais, como Lukács e Gramsci. Passou a ser considerado o “teórico oficial” do bolchevismo. Ocupou importantes cargos políticos no partido (1917-1934, membro do Comitê Central; 1918-1929, redator-chefe do Pravda; 1924-1929, membro do Politburo; 1926-1929, presidente do Comitê Executivo da Komintern). Liderou a ala dos “comunistas de esquerda” na primeira metade da década de 1920, ala partidária de uma “guerra revolucionária” para a extensão da revolução no ocidente. Depois de uma reviravolta, virou entusiasta e teórico da NEP. Com a morte de Lênin, aliou-se a Stalin contra Trotsky e a Oposição de Esquerda. A partir de 1928 foi líder da chamada “Oposição de Direita”, sendo afastado de cargos dirigentes a partir de 1929, quando a NEP foi abruptamente abandonada. Depois de uma “autocrítica”, foi nomeado redator-chefe do Izvestia, em 1934. Em 1935, foi o principal redator da Constituição da URSS (dita “constituição stalinista”). Apesar disso, em 1937 foi preso e, em 1938, condenado à morte no terceiro Processo de Moscou, sendo executado (em que pesem os apelos internacionais de clemência, como o do romancista francês Romain Rolland) nesse mesmo ano, com 50 anos de idade. Em 1988, durante a era de Mikhail Gorbachev, foi reabilitado jurídica e politicamente na URSS.

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A burocracia, de modo geral, é indispensável a todo Estado que se organiza para impor e defender uma dominação de classe ou de casta. Para Max Weber (o “Marx da burguesia”, na definição de Julien Freund), a burocracia (o “poder do bureau”) é uma forma de organização que se baseia na racionalidade, isto é, na adequação dos meios aos objetivos pretendidos, a fim de garantir a máxima eficiência possível no alcance destes. Weber identificou três fatores principais como base da moderna burocracia: 1) O desenvolvimento de uma economia monetária: a moeda assume o lugar da remuneração em espécie para os funcionários, permitindo a centralização da autoridade e o fortalecimento da administração; 2) O crescimento quantitativo e qualitativo das tarefas administrativas do Estado Moderno; 3) A superioridade técnica – em eficiência – do tipo burocrático de administração, que agiu historicamente como uma força autônoma para se impor, a par da imposição da racionalidade e da técnica na produção capitalista: “O Estado moderno, do ponto de vista sociológico, é uma empresa, como uma fábrica, isto é justamente o que tem de historicamente específico. As relações de domínio, em ambos casos, estão submetidas ao mesmo tipo de condições”. Para Weber, a racionalidade (organização racional do trabalho; cálculo e previsão) está ligada à burocracia e à empresa capitalista, e implica na adequação dos meios aos fins. No contexto “burocrático”, isto significa eficiência. Ora, a sociedade capitalista não se organiza como uma empresa: o Estado moderno baseia-se na igualdade jurídica (de direitos) dos indivíduos (que oculta, ou melhor, “inverte”, sua desigualdade real), justificando (legitimando) assim sua dominação. A abordagem weberiana é, portanto, unilateral (deturpada), assim como sua categoria de “racionalidade”, o que questiona seu conceito de burocracia.

A concepção de Weber acerca da burocracia em geral (e da burocracia estatal em particular) era uma polêmica implícita (e certamente consciente) com a crítica marxista da burocracia estatal, já presente na crítica de Marx à filosofía jurídica de Hegel (da qual Weber foi tributário). Para Hegel, a burocracia liga à sociedade civil ao Estado, que é seu espírito idealizado (a “incarnação da idéia moral”) – a burocracia emanciparia o Estado dos interesses particulares presentes na sociedade civil, ela é o ponto de encontro entre os interesses particularistas que percorrem a sociedade e o interesse universal. Para Marx (que chegou a qualificar essa concepção hegeliana como “nojenta”) a burocracia estatal encobre a oposição entre sociedade e Estado, entre interesse geral e interesse particular, configurando-se como expressão da alienação da vida pública. A burocracia estatal não é um “espírito”: é uma corporção, “a sociedade civil do Estado”; não é um ser universal, mas particular, que representa corporativamente seus interesses particulares, e os transforma em fins do Estado, pretensa (e ideológica)mente universais. A sua existência real destina-se a manter a sociedade civil num estado de letargia amorfa (“O espírito geral da burocracia é o segredo, o mistério, conservado no interior da burocracia pela hierarquia, e no exterior dela pelo seu caráter de corporação fechada. Toda manifestação pública do espírito político, do espírito cívico, aparece para a burocracia como traição ao seu mistério. A autoridade é o princípio de seu saber, e o culto à autoridade sua maneira de pensar”); dissimulando a separação entre Estado e sociedade, a burocracia é um instrumento contra a sociedade civil (em benefício dos interesses de classe, isto é, das formas históricas de propriedade dominantes, acrescentaria Marx posteriormente).

Com o desenvolvimento progressivo do Estado moderno (capitalista), popularmente, a burocracia passou a ser vista como uma empresa, repartição ou organização onde o papelório se multiplica e avoluma, impedindo soluções rápidas e eficientes. Na percepção popular, a burocracia identifica-se com o apego dos funcionários aos regulamentos e rotinas, causando ineficiência à organização. A eficiência gera, assim, a ineficiência. À medida que aperfeiçoa sua burocracia, o Estado se manifesta, nas palavras de Marx (referidas ao Estado bonapartista) como “uma jibóia que esmaga à sociedade”, “o aborto sobrenatural da sociedade” – esse mesmo Estado que a burocracia considera como sua “propriedade privada”. Daí o sentido

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revolucionário de livrar o Estado de sua burocracia (um “Estado simples e barato”) que significa a tendência objetiva para a extinção do Estado. Essa tendência, porém, pressupõe um alto nível de desenvolvimento econômico, caso contrário, nas palavras textuais de Marx (em carta a Engels), mesmo depois da expropriação das classes possuidoras, “voltaria a velha merda” (a dominação de classe e a alienação política).

Em um breve texto político da década de 1930, Trotsky chegou a comparar a burocracia no Estado operário ao policial que, cassetete em mão, põe ordem na fila da padaria, em condições de racionamento do pão (previamente, o policial garante para si uma ração superior à media). A luta de Trotsky contra a burocratização foi uma continuidade de seu combate político geral face aos problemas do Estado soviético na década de 1920. Um ano antes da revolta de Kronstadt (1921), que foi o deflagrador do movimento em direção à NEP, Trotsky – isolado, na ocasião, no Politburo – propôs renunciar às requisições forçadas dos excedentes agrários do “comunismo de guerra”, motivadas pela necessidade de abastecimento do exército. Trotsky afirmou que era preciso substituir o sistema de apropriação do excedente por uma taxa progressiva in natura.13 Um ano depois da adoção da NEP, em novembro de 1922, Lênin escreveu: “Eu remeto àqueles que não compreenderam suficientemente nossa NEP ao discurso do camarada Trotsky e ao meu sobre essa questão no IV Congresso da Internacional Comunista”. Dez dias mais tarde, Lênin se dirigia a Trotsky: “Eu li suas teses sobre a NEP e considero-as de modo geral muito boas; algumas formulações são muito bem elaboradas, alguns poucos pontos me parecem discutíveis. Minha vontade, agora, seria publicá-las nos jornais e depois rapidamente reimprimi-las em brochura”. Essa brochura nunca foi publicada. Em 1923, no XII Congresso do partido, Trotsky apresentou um relatório (“Sobre a Indústria”) que, de acordo com a transcrição estenográfica, foi acolhido pelos delegados com aplausos “ardentes e longos”. Ele apresentava uma perspectiva para o desenvolvimento da indústria nos anos subseqüentes, coincidente com a tese-resolução do Congresso: “Só pode ser vitoriosa uma indústria que ofereça mais do que consome. A indústria que vive às custas do orçamento, ou seja da agricultura, não poderia criar o apoio estável e duradouro necessário à ditadura do proletariado”.

Nadeja Krupskaïa, esposa de Lênin

A luta contra a burocratização do Estado e do partido foi, também, “o último [e fracassado] combate de Lênin”,14 que tencionou levá-lo adiante baseado numa aliança com Trotsky. O reproche feito a este é de não ter tornado pública essa aliança, e não ter sido conseqüente com ela, na crise provocada pela questão nacional georgiana (contra a política o chauvinista

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Robert Service nega que as propostas formuladas por Trotsky em 1920 fossem precursoras da NEP (de 1921), pois elas se limitavam a propugnar a substituição das requisições agrárias por prêmios aos camponeses mais produtivos, a descentralização econômica (no marco do planejamento estatal) e a transformação das unidades desmobilizadas do Exército Vermelho em “exércitos do trabalho”, para reativar a combalida indústria russa. Ou seja, não significavam (como a NEP) um retorno a mecanismos de economia de mercado: a NEP não “consertava”, mas punha fim, ao “comunismo de guerra”. 14

Moshe Lewin. Le Dernier Combat de Lénine. Paris, Minuit, 1980.

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grã-russa da nascente burocracia, e de Stalin em especial, ele próprio georgiano) e na revelação e implementação do “Testamento” de Lênin (que propunha, como vimos, a destituição de Stalin do posto de secretário-geral). Historiadores soviéticos posteriores propuseram que Trotsky não só “aceitou” o bloco com Lênin, como também foi politicamente conseqüente com ele (o que não significava que esse bloco tivesse garantida a sua vitória por antecipado, pelo peso do prestígio de ambos dirigentes).15 Trotsky disse, na sua autobiografia: “A idéia de formar um ‘bloco’ Lênin-Trotsky contra a burocracia, somente Lênin e eu a conhecíamos. Os outros membros do Burô Político tinham apenas vagas suspeitas. Ninguém sabia nada a respeito das cartas de Lênin sobre a questão nacional nem do Testamento. Se eu tivesse começado a agir, poderiam dizer que iniciava a luta pessoal para ocupar o lugar de Lênin. Eu não podia pensar nisso sem arrepios. Pensava que, mesmo saindo vencedor, o resultado final seria para mim uma tamanha desmoralização que me custaria muito caro. Em todos os cálculos entrava um elemento de incerteza: o próprio Lênin e seu estado de saúde. Poderá ele manifestar sua opinião? Sobrar-lhe-á tempo para tanto? Entenderá o partido que Lênin e Trotsky lutam pelo futuro da revolução, e não que Trotsky luta pelo posto de Lênin enfermo? A situação provisória continuava. Mas a protelação favorecia os usurpadores, pois Stalin, como secretário-geral, dirigia naturalmente no período do interregno toda a máquina estatal”.

Félix Dzerzhinski, fundador da Tcheka, em 1919

Lênin tornou pública sua ruptura com Stalin nos últimos dias de 1922, pouco antes de ficar afastado da política pela doença, por uma série de fatores. Como Comissário das Nacionalidades, Stalin tinha imposto um governo submisso à Geórgia manu militari, invadindo-a em fevereiro de 1921 e destituíndo o goberno independente menchevique encabeçado por Noah Jordânia, não só contra a vontade da maioria da população, mas também dos bolcheviques georgianos. Dois deles (Mdivani e Macaradze) protestaram publicamente. Lênin manifestou-se numa “Carta ao Congresso”: “Penso que, neste episódio, a impaciência de Stalin e seu gosto pela coerção administrativa, bem como o seu ódio contra o famoso ‘chauvinismo social’, exerceram uma influência fatal. A influência do ódio na política em geral é extremamente funesta. O nosso caso, o de nossas relações com o Estado da Geórgia, constitui um exemplo típico da necessidade de usarmos o máximo de prudência e mostrarmos um espírito conciliador e tolerante, se quisermos resolver a questão de modo autenticamente proletário”. E, referindo-se diretamente a Stalin: “O georgiano que se mostra desdenhoso quanto a esse aspecto do problema, que descaradamente lança acusações de social-nacionalismo (quando ele mesmo é um autêntico social-nacionalista e também um vulgar carrasco grã-russo), esse georgiano, com efeito, viola os interesses da solidariedade proletária

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V. V. Juravlev e N. A. Nenakorov. Trotsky et l’affaire géorgienne. Cahiers Léon Trotsky n 41, Paris, março 1990.

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de classe. Stalin e [Felix] Dzerzhinski [criador e chefe da Tcheka]16 devem ser apontados politicamente como os responsáveis por essa campanha”.

Lênin morreu em janeiro de 1924, depois de um ano de complicações crescentes de saúde - em parte derivadas do atentado contra a sua vida em 1919, realizado por uma ativista SR (social-revolucionários) - e de quase total afastamento da política ativa. Nos últimos meses de sua vida, suas preocupações, registradas no “Testamento”, provocaram constragimento quando lidas ao Comitê Central; a reunião às vésperas do XIII Congresso que resolveu pelo não afastamento de Stalin resolveu também divulgar o documento apenas a alguns delegados, o que contou com a anuência de Trotsky. Seguiram-se, no entanto, e logo depois, uma série de provocações e insultos contra Trotsky, tendendo a polarizar o cenário político: “descobriu-se” uma carta esquecida, escrita por ele em 1913, dirigindo palavras duras contra Lênin. O objetivo, com sua publicação, era mostrar a incompatibilidade entre “leninismo” e “trotskismo”. Com a morte de Lênin, Stalin passou, de maneira rápida, a apresentar-se como o legítimo herdeiro do “leninismo”, definido como um grupo de doutrinas, definidas de maneira vaga, mas infalíveis, que distinguiriam a linha oficial do partido das “heresias” de seus críticos. Trotsky comunicou secretamente o Testamento ao seu simpatizante norte-americano Max Eastman, quem o publicou nos EUA, sendo então desmentido pelo próprio Trotsky. As “queixas” posteriores sobre o comportamento político de Trotsky, com base em esse e outros fatos, apontaram a torná-lo co-responsável, por omissão, pela ascensão política de Stalin, o que foi objeto de uma observação de Ernest Mandel: “Em geral, os que fazem esse gênero de análise querem simultaneamente provar duas coisas contraditórias: por um lado, que Trotsky cometeu muitos erros táticos; por outro lado, que a vitória de Stalin era inevitável, porque correspondia às condições objetivas da Rússia dessa época. Isto é particularmente nítido em Isaac Deutscher, onde essas duas teses se entrecruzam continuamente”.17

Impulsionando o “anti-trotskismo”, em dezembro de 1924, Bukharin escreveu um artigo sobre a teoria da revolução permanente, defendida por (e identificada com) Trotsky desde 1905, procurando expor a discordância entre Lênin e Trotsky. Stalin, dias depois, publicou outro artigo ( “A revolução permanente de Trotsky é a negação da teoria da revolução proletária de Lênin”) que pavimentou a estrada para a elaboração da teoria do socialismo em um só país, oferecendo uma meta definível, por acabar com as expectativas de ajuda do exterior, e por massagear o orgulho nacional, definindo a Revolução do Outubro como fruto do “espírito de vanguarda” do povo russo. Desde os inícios da Internacional Comunista (1919) o PC russo cumpria um papel central, não só pela sua autoridade política, mas também pela ajuda financeira aos outros PCs. Esse papel foi se transformando em direito de tutela. Assim, partidos comunistas que mal tinham se emancipado do “modelo social-democrata” se viram às voltas com uma “bolchevização” que lhes impunha um modelo monolítico, baseado num aparelho rigorosamente centralizado. O aparelho internacional da IC foi sendo criado com

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Félix Edmundovich Dzerzhinski (1877-1926) nasceu em uma rica família aristocrática polonesa, perto de Minsk. Em 1895 ingressou no POSDR da Lituânia. Em 1896 foi expulso da escola em Vilno, por distribuir propaganda socialista e "falar polonês". Passou grande parte de sua vida na prisão. Deportado na Sibéria entre 1897 e 1900, exilou-se em Berlim em 1901, unido-se ao bolchevismo em 1903, quando da divisão em frações do POSDR. Participou da Revolução de 1905, sendo preso pela Okhrana (polícia política do Estado czarista) até 1912, quando compartilhou o exílio siberiano com Trotsky. Por pouco tempo livre, voltou a ser preso, ficando na prisão até fevereiro de 1917. Na Revolução de Outubro foi membro do Comitê Militar Revolucionario do soviet. Organizou e dirigiu a Tcheka (contra-espionagem e polícia política), com mão de ferro, durante a guerra civil (1918-1921); foi responsável pelo "Terror Vermelho". Depois da guerra promouveu a construção de casas para os órfãos da guerra civil. Morreu de infarte, pronunciando um discurso, em 1926. “Idealista a toda prova e cavalheiro impecável”, assim o definiu Victor Serge. Depois de 1991, durante o governo de Bóris Ieltsin, seu monumento em Moscou foi derrubado; depois, o governo Putin repôs sua estátua no Ministério do Interior; o governo da Bielo-Rússia ergeu-lhe outro monumento. 17

Ernest Germain. A Burocracia nos Estados Operários. Lisboa, Fronteira, 1975, p. 93.

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base no financiamento da URSS e também na cooptação baseada na docilidade e no posicionamento dos dirigentes estrangeiros em relação às lutas internas do PC russo.

A partir de 1924, em todos os PCs se constituiu uma “fração da IC” que, no final da década, se solidificaria como aparelho internacional do stalinismo. A sua construção exigiu a eliminação dos pioneiros do comunismo em diversos países: Alfred Rosmer e Pierre Monatte na França, Heinrich Brandler e os antigos partidários de Rosa Luxemburgo na Alemanha. Era o início das “carreiras” de Palmiro Togliatti na Itália, Maurice Thorez e Jacques Doriot na França, Ernest Thälmann e Walter Ulbricht na Alemanha. A “nova política” da IC na China foi explicada “oficialmente” pelo ex-menchevique Martinov, velho adversário de Lênin (que o criticou duramente no Que fazer?). Martinov reivindicou para a China a “revolução por etapas” (primeiro, burguesa, dirigida pela burguesia; só depois, proletária). A evolução do PC russo precedeu essa transformação. Os “kremlinólogos”, em geral, apresentaram a história do PC russo pós-Lênin como uma “luta pela sucessão”: trata-se, no mínimo, de uma simplificação. A crise política já tinha se feito presente no XII Congresso do partido, em 1923, quando Trotsky e Bukharin defenderam contra Stalin a posição de Lênin a respeito do problema das nacionalidades. Simultaneamente, diante da “crise das tesouras”, Trotsky defendeu a ajuda estatal à indústria, para poder baixar seus preços. O contexto social russo de 1923 era o de uma nova onda de greves, com a formação de grupos operários de oposição. O contexto mundial, porém, era o da esperança no “outubro alemão”, ou seja, uma virada favorável da revolução mundial, vinda do ocidente. A insurreição alemã, no entanto, fracassou em finais daquele ano.18

Grigorii Zinoviev

No quadro da derrota alemã, depois do fracasso da tentativa insurrecional de novembro de 1923, Trotsky enviou uma carta ao Buro Político criticando o “regime interno” do partido, apoiada por uma “declaração” de 46 “velhos bolcheviques”: nascia a Oposição de Esquerda, contra a qual engajou a luta o grupo dirigente, composto por Stalin, Zinoviev19 e Kamenev. A

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Depois de marcar até a data (7 de novembro de 1923) e o horário, os comunistas alemães adiaram a insurreição. Para Trotsky: “O PC não foi suficientemente firme, clarividente, resoluto e combativo para garantir a intervenção no momento necessário, e a vitória”. Só os comunistas de Hamburgo cumpriram a ordem insurrecional, enquanto, na URSS, a “troika” dirigente (Stalin-Zinoviev-Kamenev), empenhada no combate contra Trotsky, prestava pouca atenção aos acontecimentos alemães. A revolução alemã foi adiada sine die: ela não voltaria a se apresentar nas próximas décadas. A decisão da direção do KPD (Partido Comunista Alemão) de “adiar a revolução” foi endossada pela comissão alemã da Internacional Comunista – Radek, Piatakov, Ounschlicht – que se encontrava, no mesmo momento, em território alemão. 19

Grigorii Zinoviev, nascido Ovsei-Gershon Aarónovich Apfelbaum na Ucrânia, em 1883, em uma família judia de pecuaristas produtores de leite, fez seus primeiros estudos em casa. Filiou-se ao POSDR em 1901 e foi membro da facção bolchevique desde sua criação, em 1903, fazendo parte da sua direção. Principal dirigente bolchevique depois de Lênin, notabilizou-se pela sua oratória encendida. Em 10 de outubro de 1917, no entanto, ele e Lev Kamenev foram os únicos membros do Comitê Central bolchevique que votaram contra a proposta de Lênin de deflagrar imediatamente a insurreição, chegando a criticá-la publicamente (Lênin chamou-os por isso de “fura-greves” e pediu sua expulsão do partido). Em 29 de outubro do mesmo ano, após a tomada de poder pelos bolcheviques, a direção do sindicato nacional dos ferroviários exigiu que o novo governo compartilhasse o poder

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decisão de lançar publicamente a oposição foi tomada depois de percorrer todas as vias políticas prévias, levou em conta a situação da URSS e também a internacional. A revolução alemã foi um momento-chave na luta interna do partido bolchevique: as vacilações de Zinoviev (principal dirigente da IC) foram um fator decisivo na sua derrota. Mas elas tinham origem clara nas pressões exercidas por Stalin (“é necessário frear os alemães, não empurrá-los”). A derrota alemã condenou claramente à URSS a um período indefinido de isolamento, encerrando as esperanças na revolução européia que seguiram à Revolução de Outubro. A oposição liderada por Trotsky foi condenada na XII Conferência do PC, em janeiro de 1924. Quando Lênin morreu, nesse mesmo mês, Trotsky, doente, não compareceu aos funerais (aparentemente ludibriado quanto à data por Stalin, encarregado das questões organizativas e protocolares no Politburo). Depois da morte de Lênin, a relação, até então fluida, entre Trotsky e a imprensa soviética, esmoreceu rapidamente. A 23 de fevereiro de 1924, no sexto aniversário da criação do Exército Vermelho, o quadro político geral estava visivelmente mudado: Trotsky, fundador do Exército Vermelho, era ainda celebrado pelo Izvestia, mas o Pravda, órgão oficial do partido, já começara a esquecê-lo: “Caro Camarada Lev Davidovitch - escrevia o Izvestia - no sexto aniversário de nosso glorioso Exército Vermelho, a assembléia geral do Soviet de Moscou envia uma calorosa saudação àquele que o organizou e guiou”. O jornal publicava também um boletim médico, explicando que Trotsky vira-se forçado a descansar no sul. O Pravda, ao contrário, deu cobertura a todas as celebrações do Exército Vermelho, sem citar o nome de Trotsky, e afirmando que só Lênin fora seu chefe e organizador. A mensagem do Izvestia apareceu num canto, distante das notícias sobre as comemorações.

Ainda assim, o Politburo determinou, pressionado pela situação de crise do partido, um “novo curso”: o problema, porém, era como interpretá-lo. Em seu texto O Novo Curso, Trotsky atacou a burocratização, a hierarquia dos secretários, evocando o perigo de degeneração da revolução. A troika o acusou de promover a “luta de gerações”, defendendo os “velhos bolcheviques” (depois exterminados pelo stalinismo). A Oposição foi alijada da imprensa e posta em minoria com métodos burocráticos (deslocamentos de opositores, votos “de cabresto” nas células e comitês). O “passado menchevique” de Trotsky foi atacado na imprensa: Stalin o chamou de “patriarca dos burocratas”. A XII Conferência do PC condenou o “fracionismo” da Oposição e pôs em prática a “promoção Lênin”. Em outubro de 1924, Trotsky contra-atacou publicando Lições de Outubro onde, discutindo questões de estratégia revolucionária, atacou a passada hostilidade de Zinoviev e Kamenev à insurreição de outubro de 1917, episódio repetido na Alemanha, novamente com Zinoviev (chefe da Internacional

com outros partidos socialistas, ameaçando com uma greve nacional. Durante essa crise, Zinoviev e Lênin ficaram, mais uma vez, em lados opostos. Depois que a questão se resolveu, Zinoviev e Kamenev se demitiram do CC; Lênin chamou-os agora de "desertores". Trotsky passou a ser, graças a isso, o nº 2 na direção bolchevique. Zinoviev voltou ao CC no VII Congresso do Partido, em 1918, tornando-se responsável pela defesa de São Petersburgo durante os ataques dos contra-revolucionários “brancos”. Membro do Politburo (1919 a 1926), indicou Stálin para a secretaria geral do partido em 1922, no XI Congresso. Escreveu, nesse período uma “Breve História do Bolchevismo”. Presidente da Internacional Comunista desde sua fundação em 1919, em 1926 foi substituído nessa função por Bukharin. Depois da morte de Lênin (1924), uniu-se a Stálin e Kamenev contra Trotsky. Esse triunvirato (troika) manipulou os debates internos, obtendo uma maioria de delegados no congresso do partido, mas, logo depois houve ruptura entre seus membros. Em dezembro de 1925, durante o XIV Congresso, Stalin conseguiu que Zinoviev e Kamenev fossem nomeados para cargos menores, tirando-lhes o controle do partido em Leningrado (antiga São Petersburgo). Zinoviev e Kamenev fizeram então uma efêmera aliança com Trotsky (“Oposição Unificada”). Zinoviev acabou sendo expulso do Comitê Central, em 1927, e do próprio partido, em 1928. Trotsky permaneceu na oposição; Zinoviev e Kamenev capitularam e escreveram textos reconhecendo seus “erros”. Foram readmitidos depois de condenados a um período de reflexão de seis meses. Permaneceram inativos até 1932, quando foram expulsos novamente, sendo readmitidos em 1933, realizando discursos humilhantes no XVII Congresso. No assassinato de Kírov (1934), Zinoviev foi forçado a admitir sua "cumplicidade moral", recebendo uma pena de dez anos de prisão. Em 1936 foi novamente julgado, no primeiro “Processo de Moscou”, condenado e executado a 25 de agosto de 1936. Foi formalmente absolvido das acusações em 1988, durante a “perestroika”.

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Comunista) como protagonista. Trotsky traçou um paralelo entre a vitória do Outubro russo e a derrota do Outubro alemão, sublinhando que os erros de Zinoviev e Kamenev20 não eram devidos ao acaso, mas a uma política sistematicamente vacilante. A reação não se fez esperar e, a 2 de novembro, o Pravda deu o sinal da campanha oficial “anti-trotskista”: “O livro do camarada Trotsky está rapidamente se tornando a última moda. Isso não surpreende, pois o seu objetivo principal é o de causar sensação no seio do partido. A introdução (chave da obra) está escrita em linguagem enigmática. As alusões e insinuações de que está cheia não podem ser facilmente percebidas pelo leitor profano. Por isso é necessário desvendar os mistérios deste linguajar oculto (tão do agrado de Trotsky, apesar de suas exigências de ‘clareza na crítica’). O autor assume a responsabilidade de intervir contra a linha política adotada pelo partido e pela Internacional Comunista. Essa intervenção não tem caráter puramente teórico, mas ao contrário se assemelha a um programa político destinado a anular as decisões dos congressos”.

A troika se solidificou contra o “debate literário” promovido por Trotsky, demissionário do Comissariado de Guerra a partir de 1925. Outra fração (dita “de direita”, embora ela jamais assumisse esse nome) se desenhou em torno das teses de Bukharin, de defesa e aprofundamento da NEP, dirigida contra as teses econômicas da Oposição de Esquerda (que Préobrazhenski teorizara em A Nova Econômica). A viúva de Lênin, Nadeja Krupskaïa, tomou a palavra no Pravda, a 16 de dezembro de 1924: “Não sei se o camarada Trotsky é realmente culpado por todos os pecados mortais de que é acusado, não sem intenções polêmicas. Mas o camarada Trotsky não se deve lamentar por isso. Não nasceu ontem e por conseguinte deve saber que um texto escrito no tom de As Lições de Outubro só pode suscitar a polêmica. Mas não é esse o pivô da questão. O fato é que ao nos convidar à meditação das ‘lições do outubro vermelho’, ele nos propõe enfocá-las precisamente sob o ângulo errado. Nos anos decisivos da

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Lev Borisovich Kamenev, de sobrenome original Rosenfeld, nasceu em Moscou, filho de um operário ferroviário judeu e de uma mãe russa ortodoxa. Depois do ginásio em Tiflis (Tbilisi) frequentou a Universidade de Moscou, até ser preso por atividades políticas em 1902. Incorporou-se jovem ao POSDR e ao bolchevismo, depois de exilado no final daquele ano. Voltou à Russia em 1905; organizou greves nas ferrovias em Tiflis e São Petersburgo. Casou-se, nessa época, com Olga, irmã de Trotsky, com a qual teve dois filhos. Depois da ruptura de Lênin com Alexander Bogdánov, transformou-se, com Zinoviev, no principal colaborador de Lênin. Voltou ao exílio depois da derrota da Revolução de 1905. Adotou, com Zinoviev, uma posição ambígua na tentativa de reunificação bolchevique-menchevique (à qual Lênin se opunha) impulsionada por Bogdánov, que possuia partidários bolcheviques, como Victor Nogin, chamados de “conciliadores” (ou “bolcheviques de partido”). Foi editor do Pravda, editado em Viena por Trotsky, com fundos do POSDR (ainda não formalmente dividido). Em 1912, porém, apoiou Lênin e Zinoviev, no congresso bolchevique de Praga, a proclamar a ruptura com o menchevismo. No entanto, depois da Revolução de Fevereiro de 1917, advogou, com Stalin e Muranov, pelo apóio condicional ao governo provisório e pela reunificação com os mencheviques, posições que foram combatidas por Lênin ao seu retorno do exílio. Oposto, com Zinoviev, à insurreição de outubro, participou dela depois de deflagrada. Em dezembro de 1918 foi enviado pelo partido para expor em Londres a orientação do governo soviético, sendo deportado para a Finlândia, onde ficou preso até janeiro de 1919, quando foi trocado por finlandeses prisioneiros na Rússia. Em seu retorno à Rússia foi eleito presidente do Soviet de Moscou e do Congresso Pan-Russo dos Soviets (uma espécie de chefe de estado) e passou a integrar o Politburo do CC. Aliado de Stalin depois da morte de Lênin, denunciou os “erros” de Trotsky na condução da guerra civil, uma campanha que concluiu com a renúncia deste ao seu cargo de Comissário de Guerra. Compartilhou, depois, com Zinoviev (em uma trajetória quase paralela) a aliança fugaz com Trotsky (foi o portavoz da Oposição no XV Congresso do partido, em dezembro de 1927), as suas expulsões, recuos e reintegrações ao partido, já hegemonizado por Stalin. Sua re-expulsão, em 1932, foi motivada por sua omissão em informar seus contatos com a “oposição de Riutin”. Em 1935 foi preso sob a acusação de envolvimento no assassinato de Kirov (ele negou as acusações), sendo condenado, como Zinoviev, a 10 anos de prisão. Julgado no primeiro “Processo de Moscou”, em 1936, foi acusado de tramar o assassinato de Stalin e de outros líderes do governo, sendo condenado e executado em 25 de agosto de 1936, junto com Zinoviev e outros 14 “velhos bolcheviques”. A família de Kamenev também foi executada: seu segundo filho, Yuri, foi executado a 30 de janeiro de 1938, com 17 anos de idade; seu primogênito, o oficial da força aérea A.L. Kamenev, foi executado a 15 de julho de 1939, com 33 anos. Olga Kameneva, sua primeira mulher, foi fuzilada a 11 de setembro de 1941, em Oryol (Sibéria), junto a Christian Rakovsky e Maria Spiridonova, ex-membro, pelos SR “de esquerda”, do primeiro governo soviético - só um de seus filhos, Vladimir Glebov, sobreviveu aos expurgos stalinistas. Foi, como Zinoviev!, reabilitado na URSS em 1988.

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revolução, o camarada Trotsky dedicou todas as suas forças à luta pelo poder soviético. Desincumbiu-se corajosamente de uma difícil tarefa. Isso o partido jamais esquece. Mas a luta iniciada em outubro (de 1917) ainda não está terminada. É preciso batalhar com denodo até conquistar as metas almejadas pela Revolução de Outubro. A essa altura, seria mortal afastar-se do caminho leninista. E quando um camarada como Trotsky se desvia, talvez inconscientemente, para o caminho da revisão do leninismo, o partido tem o dever de intervir” (grifo nosso). A viúva aportava sua contribuição à construção do mito (poucos anos depois diria que se Lênin fosse ainda vivo, estaria preso...).

Olga Kameneva, irmã de Trotsky, esposa de Kamenev

A “polêmica literária” de 1924 teve um grande vencedor: Stalin, que se beneficiou do desgaste mútuo a que se submeteram Trotsky e Zinoviev-Kamenev, como constatou Pierre Broué: “A maioria dos membros do partido, para quem a revolução de 1917, na melhor das hipóteses, não passava de uma gloriosa lenda, talvez admitisse com certa amargura o papel de ‘mau’ desempenhado por Trotsky, sem acreditar realmente nos méritos do ‘bom’ Zinoviev. Na troika, o discreto Stalin era o menos atingido, uma vez que sua posição de segundo plano em 1917 lhe permitia fugir ao descrédito que abalava os velhos detentores dos primeiros postos”. Stalin aproveitou a situação para tentar subordinar o aparelho do partido em Leningrado, base político-organizativa de Zinoviev e Kamenev, o que levou estes últimos, numa virada, a buscar uma aliança com Trotsky, a princípio resistida pelos membros da Oposição de Esquerda (os militantes oposicionistas de Leningrado, que viam em Zinoviev seu principal adversário, preferiam até uma aliança com Kirov, o homem de Stalin na região).

Ivar Smilga

A reviravolta dos dirigentes de Leningrado se produziu em finais de 1925: Zinoviev e Kamenev atacaram a política oficial, qualificando-a de pró-kulak, e retomaram as teses de Trotsky sobre a democracia partidária (em privado, lhe revelaram os métodos burocráticos e provocadores contra ele usados em 1923-24). Mas o peso do aparelho levou novamente vantagem: no XIV Congresso do partido, a oposição Zinoviev-Kamenev foi esmagada pela aliança Stalin-Bukharin, que impuseram, agora sim, Serguei Kirov como chefe do partido em Leningrado. Zinoviev e Kamenev, com Trotsky, constituiram em 1926 a Oposição Unificada, que reunia uns oito mil

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militantes, com numerosos “velhos bolcheviques”. A aliança foi concluída graças à intervenção do próprio Trotsky. Três dos cinco dirigentes históricos indiscutidos do partido eram “opositores” (Zinoviev, Kamenev e Trotsky): a Oposição parecia uma aliança dos velhos bolcheviques contra Stalin e Bukharin. Com o apoio dado por Nadeja Krupskaïa, a Oposição parecia o grupo dos “companheiros” da vida inteira de Lênin. Uma aliança dos revolucionários contra os “administradores”, da qual faziam parte também boa parte dos comissários do Exército Vermelho. Também estava na Oposição Ivar Smilga,21 que teve sérios conflitos com Trotsky na guerra civil (referidas à “reciclagem” de 60 mil ex-oficiais do Império no exército revolucionário, impulsionada vitoriosamente por Trotsky); Muralov, o herói dos combates de Moscou em 1917, Mrachkovsky (nascido na prisão czarista), Ivan Smirnov, operário chamado “a consciência do partido”.

O combate da Oposição Unificada se estendeu até 1927, e foi fortemente condicionado pela situação internacional, sobretudo pelo destino da revolução chinesa, que apareceu, depois da derrota alemã, como a grande esperança de tirar a URSS do isolamento. O centro político do debate se deslocou para a Internacional Comunista, onde Trotsky enfrentou a aliança Stalin-Bukharin; seu centro teórico foi posto novamente na questão da “revolução permanente”.22 Depois de algum sucesso inicial dos oposicionistas, os métodos burocráticos de 1923 voltaram a ser usados contra eles, em escala e profundidade bem maiores, incluindo provocações policiais (como o suposto uso pela Oposição Unificada da gráfica de um ex-oficial de Wrangel, o chefe da contra-revolução “branca”: o ex-oficial era um agente da GPU, continuadora da Tcheka). A Oposição ficou, assim, amordaçada. Ainda acreditava que fosse possível recuperar o partido, especialmente sobre a base da revolução internacional, mas era acusada de fomentar e organizar uma contra-revolução, o que ia tornar-se dogma durante o “reinado” de Stalin. A Oposição, no momento, porém, estava ganhando forças. Mais de vinte mil militantes compareciam às suas reuniões em Moscou e Leningrado. Zinoviev acreditava que a “oposição conjunta” venceria facilmente: teria bastado Trotsky e Zinoviev aparecerem juntos no palanque para unir o partido. Mas este estava crescentemente entulhado por elementos anteriormente apolíticos; seus comitês estavam apinhados de funcionários do Estado.

Lev Kamenev

Apesar do novo surto oposicionista de 1927, quando as esperanças na revolução chinesa, primeiro, e a crítica à política suicida imposta por Stálin-Bukharin na China, depois, ampliaram

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Ivar Tenisovitch Smilga (1892-1938) foi social-democrata desde 1907, integrando o comitê de Kronstadt do POSDR (fração bolchevique). Após a Revolução de Fevereiro presidiu o Comitê Regional do Exército e da Armada dos Operários da Finlândia e o Comitê Executivo dos Sovietes da Região Norte. Dirigente do Exército Vermelho na frente sul, teve graves divergências (junto a Stalin) com Trotsky, na guerra civil. Foi, no entanto, partidário de Trotsky na discussão sobre os sindicatos (1920-21). Foi expulso do partido em 1927, como membro da Oposição de Esquerda; “capitulador”, foi readmitido no partido em 1930. Em janeiro de 1935 foi condenado a dez anos de prisão, mas foi novamente julgado em 1938, no terceiro “Processo de Moscou”, e condenado a fuzilamento por “atividades anti-soviéticas”. 22

Cf. Pierre Broué. La Question Chinoise dans l’Internationale Communiste. Paris, EDI, 1976; e Grigori Zinoviev et al. El Gran Debate. Córdoba, Pasado y Presente, 1972.

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as bases políticas da Oposição, esta foi finalmente esmagada, suas teses seriam derrotadas de modo acachapante no congresso partidário e postas fora de circulação. Começaram as

exclusões do partido e as detenções. Em novembro de 1927, no X aniversário da revolução de 1917, a Oposição se manifestou em público pela última vez, com faixas próprias no desfile de rua (“abaixo os nepmen”, “Voltemos nossas armas contra a direita - o kulak, o nepman, o burocrata” e “Realizemos a vontade de Lênin”): "Isto aconteceu a 7 de novembro de 1927, em ocasião do gigantesco desfile pelo Xº aniversário da Revolução de Outubro. Um membro do Comitê Central, cujas simpatias se inclinavam por Trotsky, havia decorado o balcão de sua casa com retratos de Lênin, Trotsky e Zinoviev. O desfile passaria sob aquele balcão, na esquina das ruas Moskovaia e Tverkaia. Ali se reuniram os membros da oposição para aclamar Trotsky. O balcão foi então ocupado pela GPU e a polícia, os retratos arrancados e os opositores encarcerados”.23

As agressões físicas começaram: o carro de Trotsky foi ameaçado com armas de fogo; sua mulher, Natália Sedova, foi fisicamente agredida. No dia seguinte, Trotsky pronunciou seu último discurso público na URSS, no enterro do oposicionista Abraham Ioffe (ex-dirigente da política externa da URSS, que tinha se suicidado na véspera), antes de ser detido e deportado para Alma-Ata (no Cazaquistão). Trotsky foi excluído do partido, junto com Kamenev e Zinoviev, sem que os militantes ou o país fossem informados das causas da medida, nem das propostas da Oposição (democracia interna, industrialização baseada no planejamento centralizado e na taxação dos kulaki, abandono da estratégia internacional da “revolução por etapas”). No XV Congresso do partido, em dezembro de 1927, foi exigida a capitulação dos opositores: a maioria destes cedeu, com Zinoviev e Kamenev buscando (e conseguindo temporariamente) sua reintegração no partido. Trotsky, isolado, não cedeu: exilado em Alma-Ata (Cazaquistão) reorganizou seus partidários da Oposição para continuar um combate que se desenvolveria em condições cada vez mais precárias.

Ivan Smirnov

A teoria do socialismo em um só país, aborto teórico sem precedentes surgido do casamento entre a reação interna e a derrota internacional, surgira em completa contradição com qualquer idéia antecedente do movimento socialista, desde suas origens organizadas. Stalin tinha escrito em fevereiro de 1924: “Pode-se conseguir a vitória final do socialismo em um só país, sem os esforços conjuntos do proletariado de vários países avançados? Não, isto é impossível”. O mesmo Stalin escreveu, porém, em novembro do mesmo ano: “O Partido assumiu como ponto de partida a vitória do socialismo neste país, e essa tarefa pode ser realizada com as forças de um só país”. Em 1918, Lênin não estava exprimindo uma idéia pessoal, mas a convicção (e, principalmene, a esperança) de todo o partido, ao afirmar: “Nossa revolução é o prólogo da revolução socialista mundial, um passo em direção a ela. O proletariado russo não pode, pelas suas próprias forças, concluir vitoriosamente a revolução socialista. Mas pode dar à sua revolução uma extensão que crie melhores condições para a

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Margarete Buber-Neumann. Historia del Komintern. A revolução mundial. Barcelona, Picazo, 1975, p. 181.

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revolução socialista, e até certo ponto começá-la. Pode tornar a situação mais favorável para a entrada em cena, nas batalhas decisivas, de seu colaborador principal e mais seguro, o proletariado socialista europeu e norte-americano”. A luta dos povos orientais ainda não estava no foco bolchevique (que ignorava tudo também, como constatou in situ John Reed, da contemporânea Revolução Mexicana). Verdade seja dita, Trotsky foi o primeiro a advogar em favor de uma “orientação asiática”, depois das derrotas comunistas em Alemanha e Hungria (em 1919), sem abandonar a perspectiva da revolução mundial: “O caminho para Paris e Londres passa pelas cidades e aldéias do Afeganistão, do Punjab e de Bengala”, declarou em 1920, propondo fosse preparado um forte e numeroso contingente de expertos para traduzir documentos e proclamas revolucionárias, nas línguas usadas na Índia e na China.

O abandono da perspectiva internacionalista vinculou-se ao retrocesso, isolamento e burocratização do Estado emergente da revolução. Dois fatores foram, sem dúvida, decisivos: 1) O fracasso da revolução européia, devido principalmente ao freio imposto pela social-democracia (aliada à burguesia e aos Estados-maiores europeus) e à inexperiência dos jovens núcleos revolucionários (comunistas); 2) O esgotamento, desmoralização e até dizimação da classe operária russa, após anos de sacrifícios, guerra civil e intervenções estrangeiras. Nesse palco aconteceu o processo de burocratização. O partido, que tinha poucos militantes remunerados em 1917, possuía 15 mil funcionários em 1922 (dos quais 800 no “centro”) até atingir 25 mil em 1926. Em 1928, o PC(b) já contava 1.300.000 membros, dos quais 540.000 recrutados depois de 1924 (isto é, sete anos depois da revolução e três anos depois do fim da guerra civil). O inchaço do aparelho de Estado, começado provavelmente como paliativo contra o desemprego pós-guerra civil (conseqüência da desarticulação econômica e da desmobilização do exército) atingiu proporções descabidas: o Estado czarista (famoso pela sua burocracia obtusa, satirizada pela crítica russa do século XIX) possuía 600 mil funcionários em 1910; o Estado “soviético” possuía, em 1928, 2.000.000 de funcionários, um número equivalente ao de operários industriais. O histórico demônio russo tinha saído novamente da garrafa, em versão quantitativamente piorada. Uma pesada losa passou a esmagar um poder que, segundo Edward H. Carr, em seus dez primeiros anos de vigência elegeu 8,7 milhões de delegados nos soviets camponeses, e 800 mil nos soviets urbanos; com 9 milhões de delegados eleitos para congressos soviéticos regionais e 700 mil para congressos nacionais, configurando uma experiência sem paralelos mundiais precedentes (nem ulteriores) de participação política (com exeção da fugaz e limitada experiência da Comuna parisiense de 1871): mais de 60% desses delegados exerceram sua função só por um mandato, favorecendo uma constante rotação na representação política.

O “socialismo num só país” representou, sobretudo, o abandono do internacionalismo proletário, que era, para o bolchevismo, a precondição da perspectiva socialista para a Rússia. Na tradição marxista e socialista, qualquer país isoladamente não dispunha dos recursos necessários para a construção de uma forma mais elevada de sociedade. Os instrumentos exigidos para uma economia que superasse a capitalista, os avanços técnicos e culturais, requeriam uma associação e planificação mundiais dos recursos acumulados pela sociedade. Coube a Trotsky defender essa idéia, que obviamente não lhe pertencia, mas que embasava o conceito (teoria) de revolução permanente. Tendo assumido o poder, inclusive num país atrasado, a classe operária não podia deter-se no estagio capitalista, mas teria de avançar em direção a empreendimentos socialistas. Para essa meta, todavia, era necessário não parar nas fronteiras nacionais. O socialismo não podia ser construído em um só país, e muito menos em um país atrasado. A idéia contrária fora, no entanto, adotada por acasalar-se com os interesses da nascente burocracia da URSS, em um contexto de penúria material que tornava importantes seus inicialmente pequenos privilégios. Valendo-se da exaustão das massas, portanto, Stalin argumentava vitoriosamente que o socialismo podia ser construído na Rússia, enquanto a classe operária dos países capitalistas evitasse que suas classes dirigentes

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lançassem ataques militares contra a URSS. De órgãos de luta revolucionária, os partidos comunistas dos outros países deveriam tornar-se os partidos dos “amigos da União Soviética”, guarda-fronteiras da URSS. Não demorou muito para que essa doutrina fosse submetida a teste na revolução chinesa de 1925-27.

Antes da tragédia política da China, a idéia foi posta à prova pelo chamado “Comitê Anglo-Russo”, em 1925. Concebido para atrair os dirigentes sindicais britânicos “de esquerda” para a influência dos sindicatos soviéticos, o Comitê rapidamente foi apoiado por líderes “trade-unionistas” de direita como Purcell ou Thomas, que ficariam marcados pela traição à greve geral de 1926, a mais importante da história do movimento operário inglês. Trotsky solicitou que se dissolvesse esse bloco. Zinoviev inicialmente vacilou, mas finalmente apoiou o ponto de vista de Trotsky. Mesmo quando Purcell e outros recuaram de sua aliança com os “soviéticos”, Stalin apegou-se a eles. Quando esses líderes sindicais apoiaram o ataque imperialista britânico de Nanquim, em 1927, o PC inglês ainda não rompeu com eles. Pelo contrário, foram os líderes sindicais britânicos que abandonaram seus “amigos soviéticos” quando não os precisaram mais, passados os efeitos da radicalização grevista. Desta forma, a greve geral de 1926 não foi apenas um acontecimento marcante na história britânica, mas também na vida do PC da URSS. Os escritos de Trotsky a respeito (Para Onde vai Inglaterra? e Lições da Greve Geral) viraram uma leitura de referência, em Ocidente, sobre o porvir da revolução européia.

A derrota da revolução chinesa, em 1927, foi uma catástrofe política que pôs em crise à Internacional Comunista. A política impulsionada por Stalin, Bukharin, e a liderança da Komintern, reproduziu a política menchevique de 1917. Iniciou com a idéia de que sob o jugo imperialista todas as classes do país sofriam por igual. A burguesia estava, supostamente, conduzindo uma guerra revolucionaria contra esta opressão; todas as classes oprimidas deveriam apoiá-la, um bloco revolucionário anti-imperialista teria de ser formado por “quatro classes”: a burguesia, a pequena burguesia, o proletariado e os camponeses. A liderança dessa luta pertenceria à burguesia e seu partido, o Kuomintang. Stalin chegou a propor a admissão do Kuomintang na Internacional Comunista, na qualidade de partido simpatizante, com Trotsky votando contra (sozinho) no Politburo. Esses “simpatizantes da IC”, quando finalmente conseguiram conquistar Xangai, em 1927 (chefiados pelo generalissimo Chiang Kai-shek, “presidente de honra” da Internacional Comunista) afogaram os trabalhadores chineses em seu próprio sangue (como relatado por André Malraux em A Condição Humana), deflagrando uma implacável persegüição aos comunistas. Para a IC, a luta de classes na China tinha de ser subordinada à “unidade (de toda a nação) na luta antiimperialista”. Disto resultou a vitória da contra-revolução e o massacre da vanguarda do proletariado chinês, realizado pelos seus supostos aliados.

Chen Tu-Xiu, fundador e primeiro secretário geral do PC chinês

Para Trotsky e a Oposição de Esquerda, ao contrário, a luta contra o imperialismo era um elemento importante da revolução democrática na China, mas não o único. A solução da questão da terra não seria possível sob a liderança da burguesia. Os latifundiários, os agentes financeiros, os capitalistas, os empresários e, por último, o capital estrangeiro, estavam tão

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intimamente interligados que a revolução democrática somente poderia ser realizada contra eles. A única classe social capaz de liderar as massas pobres nessa luta seria a classe operária, que já possuia suas próprias organizações independentes (sindicais e políticas). A classe operária podia depositar sua confiança apenas em suas próprias forças e organizações, preservando sua independência política da burguesia, não se subordinando a ela. Em oposição à política defendida por Trotsky, a direção da Internacional retomou a idéia de “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses”, resgatando-a do museu em que Lênin a tinha lançado em 1917, logo depois da “revolução de fevereiro”.

Graças à sua crítica à política “oficial” para a China, a Oposição obteve importante apoio nesse país, do fundador do PC chinês, Chen Tu-Xiu,24 mas, ao mesmo tempo, não pôde recuperar-se da derrota da revolução. A análise de Trotsky atraia muitos militantes, mas para a maioria a questão decisiva não era sua previsão correta, mas a derrota da classe operária chinesa. Aliada à derrota dos trabalhadores alemães em 1923, e ao fracasso da greve geral britânica, a catástrofe na China só podia contribuir para intensificar o desapontamento das massas russas: isso foi combustível para Stalin e sua campanha contra Trotsky. A derrota alimentou a burocracia e esta conduziu o processo revolucionário a novo malogro. Uma mudança qualitativa estava já em curso na burocracia russa, que atuava de modo cada vez mais consciente para evitar a revolução no exterior e defender suas posições “em casa”. A Oposição ganhou em autoridade e número, mas a derrota na China teve seu correlato na sua derrota na URSS. A campanha contra Trotsky elevou-se a novo patamar.

Trotsky teve consciência de que uma nova situação histórica, determinada pelas derrotas internacionais, condicionava decisivamente a luta interna do partido russo e da Internacional. Um dos futuros organizadores da IV Internacional (dita “trotskista”), o jovem surrealista e comunista francês Pierre Naville, que o visitou em Moscou em finais de 1927, lembrou: “A exclusão do partido parecia não ter mudado em nada as perspectivas de Trotsky, nem a sua determinação. Estava conversando quando o telefone soou. Pegou o fone, trocou algumas palavras em russo e depois largou o receptor com um gesto de desprezo. Disse: ‘Era Bukharin. Está sempre choramingando: Lev Davidovitch, não é possível, logo você foi expulso do partido. Faça alguma coisa... Vejam - acrescentou, dirigindo-se a nós - eles perdem a cabeça. No

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Chen Tu-Xiu (1880-1942) é considerado, junto a Li Dazhao, o fundador do Partido Comunista da China (PCCh). Nascido em Huaining, em 1896, aprovou os exames escolares imperiais. Em 1900 foi para Xangai, e um ano depois ao Japão, onde entrou em contato com os movimentos de oposição à dinastia Qing. Em 1903 voltou à China, participando dos movimentos que derrubaram a última dinastia na “Revolução Xinhai”, entre 1911 e 1912. Em 1913, viu-se obrigado a fugir para Japão por participar em lutas contra o “senhor da guerra” Yuan Shikai. Em 1915 retornou à China e fundou a revista Nova Juventude, voz dos movimentos reformistas, com artigos criticando a sociedade tradicional chinesa e o confucianismo. Em 1917 obteve o posto de decano da Universidade de Pequim, onde conheceu as idéias marxistas de Li Dazhao, bibliotecário chefe da universidade. Chen e Li tornaram-se dois dos principais líderes do Movimento Quatro de Maio, nascido dos protestos antijaponeses do 4 de Maio de 1919. Chen foi encarcerado durante três meses e expulso da universidade. Livre, instalou-se em Xangai: Nova Juventude adotou abertamente o comunismo, distanciando-se de alguns antigos amigos e colaboradores. A fundação do PCCh aconteceu em julho de 1921: Chen foi nomeado secretário geral do partido in absentia. O Komintern instou-o a fazer uma aliança com o partido nacionalista Kuomintang de Sun Yat-sen, que simpatizava com o “leninismo”. A colaboração política terminou com a morte de Sun, quando o setor conservador do partido liderado por Chiang Kai-shek rompeu-a. Desde Nanjing, no Sul, onde se estabeleceu a capital da República da China em 1927, Chiang Kai-shek lançou uma ofensiva contra os comunistas, ao mesmo tempo em que o senhor da guerra Zhang Zuolin o fazia no Norte. Muitos comunistas, incluído Li Dazhao, foram executados. Chen tentou distanciar-se da prática aventurista do Komintern (que pregou a desastrada e massacrada insurreição de Cantão): foi despojado dos seus cargos em Wuhan (agosto de 1927) em uma manobra da direção da IC, que tornou Chen bode expiatório, responsabilizando-o pelos erros induzidos pelos assessores soviéticos. Em 1929, Chen foi expulso do PCCh, e converteu-se na voz do “trotskismo” na China. Em 1931, em meio à invasão japonesa, o governo nacionalista chinês deteve numerosos ativistas trotskistas e do PCCh. Chen foi detido em 1932, e passaria os seguintes anos da sua vida no cárcere. Liberado em 1937, passou os últimos anos da sua vida em Sichuan, onde escreveu análises da revolução chinesa e da Segunda Guerra Mundial. Doente e enfraquecido pelos anos em prisão, faleceu em maio de 1942.

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entanto, se as coisas tomam esse rumo, é preciso saber enfrentá-las’”.25 No entanto, conquanto demonstrasse força de vontade e autocontrole, na intimidade Trotsky abandonava a máscara e se mostrava acabrunhado e deprimido. Vivia atormentado pela insônia, abarrotava-se de remédios que não faziam efeito, as febres de que sofria tiravam-lhe energia (eram provavelmente uma “somatização” de seus problemas políticos). Sobre o impacto internacional provocado pelo exílio “interno” de Trotsky no Cazaquistão, uma informação basta: “Quando os alemães entraram em Paris, em junho de 1940, *o editor+ Gaston Gallimard tomou cuidado, antes de fugir para o Languedoc, de queimar alguns papéis comprometedores para seus autores, notadamente um documento extraordinário: o plano de uma expedição ao Cazaquistão concebido por André Malraux em 1929, para libertar Leon Trotsky, deportado em Alma Ata por ordem de Stalin”.26 O romancista francês, autor de Os Conquistadores, combatente da revolução indo-chinesa (e futuro combatente da guerra civil espanhola) tinha criado uma associação para arrecadar fundos com esse objetivo, e conquistado adesões importantes: Gallimard o fizera desistir da empresa. Antes da sua ruptura pública, Trotsky admirou o talento literário do autor de A Condição Humana.27

André Malraux jovem

Com as expulsões dos velhos bolcheviques, uma fase da reação completava-se. Se o stalinismo era uma excrescência natural do bolchevismo, não se poderia entender por que foi necessário, para sua vitória, eliminar os veteranos do bolchevismo vivo, perseguí-los e aniquilá-los. O “trotskismo” passou desde então a identificar-se com a luta pela democracia operária na URSS, e com o compromisso com a classe operária internacional, ou seja, com a luta de classes antes que com a defesa da “pátria socialista”. Para Trotsky iniciava-se uma nova etapa, na qual se punha em jogo o destino histórico da revolução que, como dissera John Reed, “abalara o mundo”: “Nós não passaremos a bandeira para as mãos dos senhores da falsificação. Se nossa geração comprovadamente for tão débil que não possa construir o socialismo na terra, daremos sua bandeira a nossos filhos. A luta que se divisa no horizonte em muito suplantará o significado do indivíduo, de facções e de partidos. É uma luta pelo futuro da humanidade. Será uma luta árdua. Será uma luta longa. Quem quer que busque o descanso físico e o conforto espiritual, que se retire. Durante as horas de reação, é mais fácil dobrar-se à burocracia do que permanecer fiel à verdade. Mas para todos aqueles para quem a palavra socialismo não é uma palavra vazia, e sim a substância de sua vida moral - avante! Nem as ameaças, nem a perseguição, nem a violência nos deterá. Talvez seja sobre nossos ossos, mas a verdade triunfará. Estamos pavimentando a estrada para isto, e a verdade será vitoriosa. Sob os golpes terríveis do destino, sentir-me-ei tão feliz quanto nos melhores dias de minha juventude, se puder juntar-me a vocês facilitando a vitória. Pois a mais elevada felicidade humana não jaz no usufruir do presente, mas na preparação do futuro”. A proclamação moral, porém, não

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Pierre Naville. Trotsky Vivant. Paris, Juillard, 1962. 26

Jean Lacouture. André Malraux. Une vie dans le siècle. Paris, Seuil, 1973, p. 209. 27

As lembranças de Malraux de seus encontros com Trotsky, na França, durante a temporária presença do exilado líder nesse país, estão em: André Malraux. Encuentros con Leon Trotsky. Trotsky. Buenos Aires, Jorge Álvarez, 1969.

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bastava: era necessário estabelecer as causas do recuo histórico, como condição para esse futuro.

Refletindo a posteriori acerca da burocratização da URSS, Trotsky formulou uma apreciação sintética: “A desmobilização dos cinco milhões de homens do Exército Vermelho jogou um importante papel na formação da burocracia. Os chefes assumiram postos importantes nos soviets locais, na produção, nas escolas, levando para essas instituições o regime que lhes deu a vitória na guerra civil. As massas foram sendo eliminadas da participação efetiva no poder. Isto fez nascer esperanças e segurança na pequena-burguesia urbana e rural, que tomou coragem, chamada pela NEP a uma vida nova. A jovem burocracia, formada para servir o proletariado, sentiu-se o árbitro entre as classes, cada vez mais autônoma. A situação internacional agia no mesmo sentido: a burocracia se afirmava na medida em que a classe operária sofria cada vez piores derrotas. Entre esses fatos, a relação não é só cronológica, mas também causal e recíproca: a direção burocrática contribuía para as derrotas, que fortaleciam a burocracia. A derrota da insurreição búlgara e o recuo dos operários alemães em 1923, o fracasso da sublevação na Estônia, a pérfida liquidação da greve geral na Inglaterra e a conduta indigna dos comunistas poloneses diante do golpe de Pilsudski, em 1926, a terrível derrota na China em 1927, as ainda piores derrotas em Alemanha e Áustria depois: essas catástrofes históricas erodiram a confiança das massas na revolução mundial e permitiram à burocracia se tornar autônoma e ‘salvadora’”.28 Ao reproche feito de não usar a ascendência que ainda conservava no Exército Vermelho para impedir a vitória da burocracia, Trotsky respondeu, na década de 1930, com um artigo entitulado “Porquê não dei um golpe de estado contra Stalin”. As razões ali argüidas não diferem substancialmente das expostas pelo embaixador italiano na URSS na década de 1930, Piero Quaroni: “Provavelmente no momento de recorrer ao exército, Trotsky se deu conta de que, apoiando-se nos militares, a vitória seria rápida e fácil. Mas, por outro lado, percebeu também que, após a vitória, ele seria prisioneiro de seu exército. Cairia no bonapartismo”.29

Em novembro de 1927, Trotsky fora expulso do partido; em 1928, desterrado para Alma-Ata; em fevereiro de 1929, expulso para a Turquia, onde viveu, até julho de 1933, na ilha de Prinkipo, nas proximidades de Istambul. Ai terminou sua autobiografia Minha Vida (em 1930) e sua História da Revolução Russa (escrita entre 1931 e 1933). Era chegada a hora dos grandes balanços, pré-condição dos próximos passos. Em um opúsculo concluído em finais de 1929, Trotsky formulou uma nova síntese teórica, revista à luz da luta contra o “socialismo em um só país”, da teoria da revolução permanente, posta novamente no centro do debate ideológico: “A questão do programa é inseparável das duas teorias opostas: a teoria da revolução permanente e a teoria do socialismo num só país. O problema da revolução permanente já há muito superou o quadro das divergências episódicas entre Lênin e Trotsky, divergências que, no fundo, foram esgotadas inteiramente pela história”. Nas suas “teses” finais, a nova formulação dava novos desenvolvimentos à teoria, postos pela experiência da URSS: “A conquista do poder pelo proletariado não põe termo à revolução, inicia-a apenas. A construção socialista não é concebível senão com base na luta de classes, à escala nacional e internacional. Esta luta, em face da dominação decisiva das relações capitalistas no plano mundial, conduzirá inevitavelmente a erupções violentas, isto é, a guerras civis no plano interno e a guerras revolucionárias no plano externo. É nisto que consiste o caráter permanente da própria revolução socialista, quer se trate de um país atrasado que tenha acabado de atingir a sua revolução democrática, quer se trate de um velho país capitalista que tenha atravessado um longo período de democracia e parlamentarismo. A revolução socialista não pode completar-se dentro dos limites nacionais. Uma das causas essenciais da crise da

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Leon Trotsky. A Revolução Traída. Lisboa, Antídoto, 1977. 29

Corriere della Sera. Milão, 25 de agosto de 1953.

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sociedade burguesa resulta do fato de as forças produtivas, que esta criou, tenderem a transcender os limites do Estado nacional. De onde, por um lado, as guerras imperialistas e, por outro, a utopia dos Estados Unidos burgueses da Europa”.

Mikhail Tomski, líder dos sindicatos soviéticos

Diversamente, portanto, de outros opositores ao stalinismo (que se limitaram a apontar seus “desvios” ou a denunciar suas medidas repressivas) Trotsky buscou tirar todas as conclusões históricas que derivavam de su vitória teórica e política na URSS e na Internacional Comunista, buscando assim estabelecer as bases para a continuidade do marxismo revolucionário nessas condições: “A revolução socialista começa no plano nacional, desenvolve-se à escala internacional e completa-se à escala mundial. Assim, a revolução socialista torna-se permanente num sentido novo e amplo do termo: a sua conclusão só se verifica com a vitória definitiva da nova sociedade em todo o planeta. O esquema do desenvolvimento da revolução mundial atrás delineado elimina a questão dos países ‘maduros’ ou ‘não maduros’ para o socialismo, segundo a classificação pedante e mecânica fixada pelo programa atual da Internacional Comunista. Na medida em que o capitalismo criou o mercado mundial, a divisão mundial do trabalho e as forças produtivas mundiais, preparou o conjunto da economia mundial para a reconstrução socialista. Os diversos países chegarão aí, com ritmos diferentes. Em determinadas circunstâncias, países atrasados podem chegar à ditadura do proletariado mais rapidamente que países avançados, mas alcançarão o socialismo mais tarde que estes. Num país em que o proletariado chega ao poder depois de uma revolução democrática, a sorte ulterior da ditadura e o socialismo dependerá menos, ao fim e ao cabo, das forças produtivas nacionais que do desenvolvimento da revolução socialista internacional...

“A perspectiva da revolução permanente pode ser resumida assim: a vitória completa da revolução democrática na Rússia somente se concebe em forma de ditadura do proletariado, secundada pelos camponeses. A ditadura do proletariado, que inevitavelmente colocaria sobre a mesa não somente tarefas democráticas, mas também socialistas, daria ao mesmo tempo um impulso vigoroso à revolução socialista internacional. Somente a vitória do proletariado do Ocidente poderia proteger a Rússia da restauração burguesa, dando-lhe a segurança de completar a implantação do socialismo”.30 Para explicar o stalinismo, portanto, Trotsky e seus seguidores não renunciaram ao marxismo. Stalin não era um simples ditador, mas a expressão de uma nova camada social (a burocracia do PCUS – Partido Comunista da União Soviética – e da URSS) que tinha expropriado, em função dos seus próprios interesses, o poder resultante da revolução de outubro de 1917. A destruição da democracia no interior do país e do movimento operário implicava na liquidação da mesma no interior do partido que havia encabeçado a revolução. O stalinismo era assim a negação do bolchevismo, do qual a Oposição de Esquerda proclamou-se continuador. A vitória da burocracia tinha transformado a URSS em um Estado Operário degenerado, onde a classe operária tinha sido excluída do poder político, sem que fossem ainda destruídas as bases econômicas da revolução (nacionalização da

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Leon Trotsky. A Revolução Permanente. Lisboa, Antídoto, 1977, pp. 36-37.

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indústria e do comércio exterior, economia baseada na planificação), embora sua deturpação burocrática preparasse, de fato, essa destruição: “A burocracia derrotou a revolução, mas não a destruiu”, concluiu Trotsky.

A Oposição de Esquerda fora criada sobre uma plataforma de luta pela democratização do partido (pelo direito das frações e tendências a expressar seu ponto de vista), e por um plano centralizado de industrialização (o cerco internacional contra a URSS, e o fato da maior parte das terras continuarem sob regime de uso privado, criavam uma crescente desorganização e penúria econômicas). Depois, a sua luta ampliou-se ao plano internacional. O eixo das posições da Oposição de Esquerda era o internacionalismo. Tanto as questões de política interna da URSS, quanto as de política externa (e a orientação da Internacional Comunista) deviam ser resolvidas sob o ângulo da unidade mundial da luta de classes. A pretensão de Stalin de construir a “sociedade socialista num só país”, sem revolução mundial, ou que pelo menos atingisse os países adiantados, foi rejeitada pela Oposição como uma utopia reacionária. Sob Stalin, de fato, a IC se transformaria num instrumento da política exterior da URSS, até sua dissolução em 1943. A vitória da fração stalinista, e a derrota da Oposição, foi considerada como um produto simultâneo do desgaste do operariado russo, do refluxo da revolução operária na Europa, e da derrota da revolução chinesa, processos estes que se alimentavam mutuamente. Esta análise baseada na interdependência mundial da luta de classes foi caricaturizada pelo stalinismo, afirmando que o trotskismo propunha uma “revolução simultânea” (uma caricatura da “revolução permanente”) em todos os países.

Karl Radek

Refletindo sobre as causas da derrota da Oposição, Trotsky escreveu: “Dezenas de milhares de militantes revolucionários se reagruparam sob a bandeira dos bolchevique-leninistas.31 Os operários sentiam simpatia pela Oposição, mas ela era passiva, pois não achavam possível mudar a situação lutando. A burocracia afirmava: ‘A Oposição nos prepara para uma greve revolucionária pela revolução internacional. Chega! Merecemos um descanso. Construiremos aqui o socialismo. Confiem em nós, vossos chefes!’ Esta propaganda solidificava o bloco dos funcionários e militares, e tinha eco nos operários cansados, mais ainda nos camponeses. Perguntavam-se todos eles se a Oposição não estaria disposta a sacrificar os interesses da URSS em nome da ‘revolução permanente’: eram os interesses vitais da URSS que estavam em jogo”.32 A partir da segunda metade da década de 1920, a Oposição de Esquerda começou a organizar-se internacionalmente. Trotsky, banido da URSS, tomou parte direta nessa atividade desde 1929. Tendo sustentado a necessidade de uma revolução política contra a burocracia na URSS, a Oposição propôs a reforma política da Internacional e dos partidos comunistas. Vários dirigentes e organizações comunistas importantes aderiram a ela. Ocupando-se da organização

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Trotsky acabou adotando a bandeira do “leninismo”, depois de criticar o uso do termo por Stalin, certamente para não deixar essa bandeira nas mãos dos stalinistas. Antes de 1917, em contexto histórico diverso e como adversário político de Lênin, Trotsky tinha-o usado, mas em sentido polêmico e negativo... 32

Leon Trotsky. A Revolução Traída, cit.

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da Oposição no exterior, Trotsky manteve também seus contatos com partidários e simpatizantes oposicionistas na URSS, inclusive nos aparelhos de segurança, às vezes com conseqüências trágicas, como no caso do lendário ex-socialista revolucionário Blumkin, membro da GPU: "De passagem por Constantinopla [Istambul], Blumkin encontrou na rua Leon Sedov (filho de Trotsky). Ljova o levou a Prinkipo. Teve aí uma longa conversa com o Velho, e aceitou levar uma mensagem aos oposicionistas russos. Blumkin voltou à Rússia, onde foi detido e executado. Pensou-se que tinha feito confidência do seu encontro ao seu amigo Radek, que o teria entregue. Outros dizem que Radek, temeroso da confidência, lhe aconselhou desastradamente confiar em Ordjonikidzé, presidente da Comissão de Controle e amigo comum a ambos. Outros até falaram na traição de uma mulher".33

A execução de Blumkin foi a primeira de uma longa série, que iria dizimar grande parte dos protagonistas relevantes do período da revolução e da guerra civil de 1917-1921. A repressão em massa começou com a liquidação da "Oposição de Direita" (Bukharin, Tomski, Rykov)34 e a coletivização agrária forçada: “O princípio dos campos de trabalho ‘corretivo’ fora, na origem, fundado para reeducar os criminosos de direito comum e os contra-revolucionários, fazendo-os trabalhar no interesse da coletividade. Até 1929 os campos foram pouco numerosos e não tinham uma população considerável. O número de campos e de deportados cresceu a partir de 1930, por causa da repressão contra os kulaki e contra todos os camponeses hostis à coletivização. É completamente impossível fornecer números precisos, pois não há fontes seguras. Sabemos que em 1933 existiam cerca de 850 mil kulaki (ou julgados como tais) deportados, mas é quase o único número preciso que possuímos. Sabemos igualmente que vários grandes trabalhos foram executados pela GPU a partir de 1930".35 No início da década de 1930, a influência de Trotsky, na URSS e internacionalmente, começava a alarmar Stalin. Segundo Pável Sudoplátov, chefe da NKVD que executou ou organizou diversas missões sob suas ordens diretas: "Desde o exílio, seus esforços [de Trotsky] para cindir e logo controlar o movimento comunista mundial estavam prejudicando Stalin e a União Soviética. O desafio de Trotsky a Stalin confundiu o movimento comunista e debilitou nossa posição na Europa ocidental e na Alemanha durante os anos 30".36

Alexei Rykov

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Gérard Rosenthal. Avocat de Trotsky. Paris, Robert Laffont, 1975, p. 103. 34

Alexei Ivanovitch Rykov (1881-1938) nasceu em Saratov, de uma família de camponeses. Em 1899, juntou-se ao POSDR, aderindo aos bolcheviques no Congresso de 1903. Representante da fração bolchevique na Rússia, teve um papel importante na Revolução de 1905. Com o triunfo da Revolução de Outubro, Rykov foi eleito Comissário do Povo do Interior e, após a morte de Lenin, tornou-se presidente do Conselho de Comissários do Povo (cargo equivalente a Primeiro Ministro), se mantendo no exercício dessa função de 1924 a 1929. Próximo de Bukharin, na ala dita “direita” do PC (b), colaborou com a fração de Stalin (o “centro”) para derrotar e expulsar a Oposição de Esquerda, mas acabou deposto em 1929, com Bukharin. Reintegrado por um tempo a funções dirigentes depois da capitulação da oposição bukharinista, foi no entanto incluído entre os réus dos Processos de Moscou, sendo condenado e executado em 1938. 35

Jean Ellenstein. O Estalinismo. História do fenômeno estaliniano. Póvoa de Varzim, Europa-América, 1976, p. 102. 36

Pável Sudoplátov e Anatoli Sudoplátov. Operaciones Especiales. Barcelona, Plaza & Janés, 1994, p. 105.

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Na URSS, repressão massiva e repressão seletiva contra os oposicionistas coexistiram desde 1930 (300 oposicionistas foram detidos só em Moscou durante os primeiros meses desse ano). A Oposição de Esquerda parecia protagonizar uma contra-ofensiva, ou pelo menos assim o pensava no exterior: "Em que pesem as fanfarronadas dos chefes do aparelho, a Oposição vive, trabalha e continuará a fazê-lo. Basta percorrer os jornais soviéticos para convencer-se de que não existe reunião de célula ou conferência do partido sem que oposicionistas ou semi-oposicionistas tomem a palavra. A luta do aparelho contra a Oposição de Esquerda é levada adiante só através da repressão. Na véspera do congresso [do partido] a repressão agravou-se terrivelmente. O monolitismo podre da cúpula é garantido pela força, as detenções, o exílio".37 Não há dúvidas de que a atividade da Oposição de Esquerda na URSS foi importante na década de 1930: na clandestinidade continuou a atrair pessoas que tinham se oposto antes a ela; o terror de 1936 (que vitimou um milhão dos dois milhões de membros que o PCUS possuia em finais da década de 1920) parece ter sido também uma resposta de Stalin a um movimento de protesto social, e à oposição que crescia dentro do próprio partido.38 As “revoluções de palácio” fracassadas indicaram a ainda insegura posição de Stalin na hierarquia da URSS, em que pese o início do “culto à personalidade” (certamente uma arma para consolidar essa posição). Em 1931, houve o “caso” de Syrtsov e Lominadzé, acusados de formar um “bloco antipartido”. Os dois dirigentes acusavam à direção do partido de “tratar operários e camponeses à maneira dos barines” (antigos senhores do campo): foram excluídos do CC. "Estamos cem anos atrasados em relação às nações desenvolvidas. Precisamos ultrapassar esta distância em 10 anos. Ou faremos isto ou seremos esmagados!", disse Stalin em fevereiro de 1931, justificando a urgência da coletivização forçada do campo e da industrialização acelerada, que seriam a expressão econômica do “socialismo em um país só”.

Vítima do Holodomor, a grande fome ucraniana, em 1932

Em 1932, a oposição "de Riutin", surgida no aparelho dirigente, vinculou-se a esse estado de coisas. Seu inspirador, Martemian Riutin (membro suplente do Comitê Central, e secretário do partido em Moscou), escreveu um programa de 200 páginas e o fez difundir secretamente. Reclamava, entre outras coisas, uma diminuição do ritmo da industrialização e da coletivização, a destituição de Stalin (a quem apresentou como o "espírito mau" da revolução, comparável com os piores déspotas da história), a reintegração dos oposicionistas excluídos. Stalin propôs que Riutin fosse executado. Riutin pertencia à direção da organização moscovita do partido, o que tornava obrigatório que o Politburo se pronunciasse. Stalin não obteve a maioria. Kirov,39 e Ordjonikidzé, recusaram-lhe apoio: um antigo dispositivo estabelecia que a

37

N. Markin. In: Biulleten Opositsii n 14, Paris, agosto 1930. 38

Vadim Rogovin. 1937. Stalin's year of terror. Londres, Oak Park-Mehring Books, 1998. 39

Serguei Kirov (1886-1934) nasceu Serguei Mironovich Kostrikov de família pobre. Órfão desde cedo, ganhou uma bolsa para a escola industrial de Kazan, onde se formou em engenharia. Aderiu ao POSDR em 1904, participou na Revolução de 1905, chegando a ser preso, e tornou-se bolchevique. Em 1906 voltou à prisão por mais três anos. Afastou-se depois para o Cáucaso, onde permaneceu até a revolução de fevereiro de 1917. Depois de outubro, encabeçou a administração militar soviética em Astrakan, e lutou na guerra civil. Em 1921, passou a liderar o partido no Azerbaijão. Com a derrota da “Oposição Unificada” em 1927 ganhou a nomeação para liderar o partido em Leningrado. Por volta de 1930, a popularidade de Kirov era crescente, sendo já considerado como possível

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pena de morte não poderia aplicar-se a nenhum membro do partido (Trotsky tinha feito executar um bolchevique, Panteleev, durante a guerra civil, provocando uma crise no partido, com fortes acusações contra Trotsky). Riutin e seu grupo foram condenados a penas de prisão. Para Stalin, isto representou uma derrota que, segundo Margarete Buber-Neumann, jamais pode se explicar,40 e que provavelmente o lançou à busca de métodos mais radicais. Das 200 páginas da "plataforma de Riutin", 50 eram consagradas à descrição da personalidade de Stalin, caracterizada pela ambição pessoal e a sede de vingança. Ela recolheu numerosas assinaturas, entre elas as de antigos partidários de Bukharin.41 Em 1933, houve o “caso Smirnov” (Ivan Smirnov propusera uma unificação de todos os grupos opositores).42 Os expurgos de intelectuais atingiram importantes proporções. Nesse clima, a segunda mulher de Stalin (Nadejda Svetlana Allelluyeva) se suicidou, em novembro de 1932. Aparentemente, a resistência à brutalidade de Stalin no próprio Comitê Central do partido fez crescer a figura de Kirov, que fazia papel de “conciliador”: os choques no aparelho evidenciavam que a própria burocracia era consciente e temia o “espírito opositor” reinante em amplas camadas da população. Isto era particularmente visível na juventude, que repudiava o “stakhanovismo” (do nome de Stakhanov, o “operário-padrão”: um sistema que, em nome da “emulação”, resultava numa espécie de trabalho por peças, ou por mínimos de produção). Mas os burocratas opositores a Stalin temiam derrubá-lo: pelo menos uma parte deles pensava que se assim fizessem abririam o caminho para a ainda ativa contra-revolução nobiliárquica e burguesa.

Martemian Riutin

sucessor de Stalin. Em 1934 Stalin pediu a Kirov que trabalhasse com ele em Moscou: Kirov recusou. Em 1º de dezembro de 1934 Kirov foi assassinado pelo estudante Leonid Nikolaev no Instituto Smolny, em Leningrado. Kirov havia ido ao Smolny para trabalhar no seu gabinete, e deixou seus guarda-costas nas escadarias, vigiando os pisos superiores. Nikolaev, supostamente, saiu de um banheiro e seguiu Kirov, atirando nele pelas costas. Foi enterrado no Kremlin, em um funeral de Estado. Cidades, ruas e fábricas passaram a ter seu nome. Por muitos anos, uma imensa estátua de Kirov em granito e bronze dominou a cidade de Baku. Erigida em 1939, foi desmantelada em janeiro de 1992, depois da URSS ser dissolvida e o Azerbaijão ganhar sua independência. 40

Margarete Buber-Neumann. Op. Cit., p. 425. 41

Cf. Anna L. Boukharina. Boukharine ma Passion. Paris, Gallimard, 1989, pp. 275-6. 42

Ivan Nikitich Smirnov, a “consciência do partido”, era filho de camponeses e ferroviário, revolucionário social-democrata desde os 18 anos. Foi várias vezes preso sob o czarismo. Com a Grande Guerra, Smirnov foi mobilizado ao exército, onde conseguiu construir uma organização bolchevique clandestina de 400 membros. Depois da revolução de 1917, dirigiu o Comitê Militar Revolucionário do V Exército do Exército Vermelho, com um papel decisivo na batalha de Kazan. Com a derrota do almirante “branco” Kolchak foi feito presidente do comitê revolucionário da Sibéria, o que lhe valeu o apelido de "Lênin da Sibéria". Em 1921-1923 foi membro do Comitê Executivo do partido e do Conselho Superior da Economia Nacional, depois Comissário do Povo de Correios e Telégrafos. Em 1923 aderiu à Oposição de Esquerda, subscreveu a “Declaração dos 46” e a posterior “Declaração dos 83”. Sua popularidade junto ao exército obrigou à direção do partido a cassar o direito ao voto das células militares. Desenvolveu o conceito de “acumulação socialista primitiva” que posteriormente foi exposto por Préobrazhenski. Em 1927 foi preso, expulso do partido e exilado na Sibéria. Durante a década de 1930 organizou clandestinamente a Oposição de Esquerda dentro da URSS, que Trotsky declarou considerar a maior seção da Oposição Internacional. Depois do assassinato de Kirov foi acusado nos Processos de Moscou de “organizar um centro trotskista conspiratório subversivo”, sendo fuzilado em 1937.

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O XVII Congresso do PCUS, no início de 1934, consagrou o estado de espírito majoritário: aceitou-se uma autocrítica de alguns ex-opositores (Zinoviev, Bukharin, Lominadzé), outorgou-se um estatuto jurídico aos kolkhozianos, anistiou-se muitos kulaki perseguidos, a GPU foi reorganizada (transformou-se em NKVD) sob controle de um “comissariado do interior”. Era a calmaria que precede à tempestade. Um conflito se desenhou no próprio congresso: os secretários regionais pediram a Kirov candidatar-se ao posto de secretário-geral (Kirov recusou); segundo Roy Medvedev, se agrupavam em torno de Kirov, “aqueles que pensavam que era necessário executar o testamento de Lênin” (ou seja, tirar Stalin do secretariado geral e dos postos dirigentes). A reunião dos secretários regionais destacou um grupo, com Anastas Mikoyan (futuro chanceler), o georgiano Ordjonikidzé, Petrovsky, Orachenlanchvili, encarregado de pressionar Kirov para que se candidatasse. Pela primeira e única vez na “era staliniana” houve um semi-consenso para a readmissão dos opositores a Stalin, com exceção de Trotsky e dos trotskistas, assim como de Ivan Smirnov e seus amigos do “bloco das oposições”. A figura "conciliadora" do chefe do partido em Leningrado, Kirov, foi a mais votada para o Comitê Central eleito; na eleição, Stalin chegou em último posto, com 270 votos contrários. As palavras do informe de Stalin soaram mais como expressão de desejos, ou como ameaça, do que como constatação objetiva: "Se no XV Congresso, de 1927, era necessário ainda demonstrar a correção da linha do partido e combatir certos grupos anti-leninistas; se, no XVI Congresso, de 1930, foi necessário dar o golpe de graça aos últimos partidários desses grupos, não há nada mais a ser demonstrardo neste Congresso, nem grupos a serem derrotados. Todo mundo compreende que a linha do partido venceu. Os debates do Congresso demonstraram a completa unidade dos dirigentes em todas as questões da política do partido. Não foi feita nenhuma objeção ao Informe".43 Stalin, no entanto, recusou fazer o tradicional discurso de clausura.

Lazar Kaganovitch

No quadro da crise de 1932-34 se situou um nebuloso episódio: a entrevista, em Paris, entre um "membro do CC do PCUS, enviado de Kirov", e Leon Sedov, filho e braço direito de Trotsky, na qual Kirov, por pessoa interposta, teria deixado entrever sua vontade de reintegrar todos os oposicionistas no partido, incluídos Trotsky e os trotskistas.44 Jean-Pierre Joubert se apoiou em um depoimento de Marcel Body (ex dirigente francês da Internacional Comunista), “cuja honestidade é indiscutível”, que “diz ter facilitado o contato com Leon Sedov (filho de Trotsky, residente em Paris) de um emissário de Kirov, membro do CC do PCUS e cunhado do Dr. Levin, enviado (à França) para informar Trotsky da intenção de Kirov de reintegrá-lo, e aos seus partidários, no partido. Pierre Broué indicou também a existência de um texto de Sedov, que

43

Joseph Stalin. Rapport au XVII Congrès du PCUS. Paris, Éditions Sociales, 1934. 44

Jean-Pierre Joubert. L'affaire Kirov commence en 1934. Cahiers Leon Trotsky n 20, Paris, dezembro 1984. Nos escritos de Trotsky não existe nenhum indício nesse sentido: Kirov é qualificado como um burocrata, cujo assassinato foi usado por Stalin como pretexto para o terror e os “Processos”.

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confirma essa informação, referido às intenções de ‘camaradas bem posicionados’”. Essas informações, se verdadeiras, jogariam uma nova luz sobre o posterior assassinato de Kirov e o papel de Trotsky na crise do PCUS de 1934, e sobre os próprios Processos de Moscou, nos quais Trotsky foi o principal acusado in absentia.

Stalin, no meio das dificuldades do XVII Congresso, conseguiu fazer nomear seus homens de confiança (Kaganovitch,45 Ekhov e o jovem Malenkov) em postos-chave. Kirov foi claramente designado como “nº 2” do PCUS (e do Estado), e promovido a “secretário do partido”. Esse foi

o “compromisso” de 1934. Onze meses depois, a 1 de dezembro desse ano, Kirov foi assassinado por um jovem, Leonid Nikolaiev, esposo da suposta amante de Kirov. Kirov morreu alvejado por um tiro. O assassinato desencadeou os brutais expurgos stalinistas. Deflagrou-se uma repressão em massa, rápida e espetacular, com leis de exceção, milhares de deportados na Sibéria (remetidos nos chamados “trens de Kirov”), todos “suspeitos” de... assassinar Kirov: Nikolaiev, julgado a portas fechadas, foi executado. A repressão em massa acabou com a “sociedade dos velhos bolcheviques”. Os trotskistas passaram a ser chamados de “assassinos”. Trotsky indicou, na época, que o assassinato de Kirov fora “facilitado”, se não organizado, pela NKVD (“Stalin fez assassinar seu melhor amigo porque estava se tornando importante demais no partido, ou porque tenciona debitar o delito à Oposição, para poder eliminá-la”): as investigações de Roy Medvedev (assim como o “informe” de Kruschev no XX Congresso do PCUS, em 1956, quando o chefe da KGB, novo nome da polícia política, A. N. Scieliepin, declarou: “O assassinato de Kirov foi usado por Stalin, Molotov e Kaganovitch como pretexto para eliminar seus adversários”) confirmaram, de modo indireto, a opinião de Trotsky.

Serguei Kirov, o “conciliador”

Amy Knight se perguntou: como Nikolaiev teria conseguido passar por todo um destacamento de guardas armados sem ajuda externa? ("Há diversas circunstâncias não explicadas que nos levam a suspeitar de uma conspiração"). Todo o caso parecia uma montagem, com seus fios remontando até Stalin, que matava assim dois coelhos de uma só cajadada, eliminado seu

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Lazar Moiseyevich Kaganovitch (1893-1991) nasceu em um lar judeu, perto de Kiev, e teve educação religiosa. Bolchevique desde 1911, quando tinha 18 anos. Depois da revolução, ascendeu lentamente no aparelho partidário. Com Stalin, passou a ser líder do PC da Ucrânia. Em 1930, tornou-se responsável por um departamento especial da polícia política, o departamento "de casos molhados" (sangrentos), que passou a organizar execuções (como em Vinnitsa, na Ucrânia). Entre 1935 e 1937, ocupou o cargo de Comissário do Povo para os Transportes, e entre 1937-1939 o de Comissário do Povo para a Indústria Pesada e a Indústria Petrolífera. Foi responsável pela construção do metrô de Moscou, com farto uso de trabalho forçado de prisioneiros políticos e comuns. Quando o exército alemão invadiu a URSS em 1941, segundo sua biografia, Kaganovitch arranjou a evacuação de judeus das áreas de fronteira e seu reassentamento ao Leste. Depois da morte de Stalin, Nikita Khruschev acusou Kaganovitch , no XX Congreso do PCUS, de ter assassinado milhões de inocentes durante sua carreira; Kaganovitch revidou acusando Khruschev de ser um assassino também. Khruschev treplicou afirmando ter seguido as ordens de Kaganovitch. Expulso do Comitê Central em 1957, foi excluído do partido em 1962. Viveu mais 30 anos, em um pequeno apartamento em Moscou, até sua morte em 1991, aos 98 anos. Antes disso, em 1987, foi publicada nos EUA sua biografia (The Wolf of the Kremlin) escrita pelo seu sobrinho norte-americano, Stuart Kahan, com base em conversas mantidas com ele em iídiche, e com revelações sobre seus crimes, o que não lhe criou problemas jurídicos de qualquer espécie.

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principal rival potencial no aparelho partidário, e obtendo um pretexto para a repressão dos seus rivais, assim como de toda e qualquer oposição no partido e na URSS.46 O chefe da NKVD, Pável Sudoplátov, se contrapôs, nas suas memórias, à interpretação de que o assassinato de Kirov fora preparado entre bastidores por Stalin. Para ele tratou-se só de um "crime passional" executado pelo marido da amante de Kirov, Nikolaev: "Não há provas de que Stalin ordenou o assassinato de Kirov para eliminá-lo como rival no poder; Stalin, ao ficar sabendo de sua morte, viu a oportunidade e soube aproveitá-la. Ele decidiu inventar uma grande conspiração contra Kirov ou ele mesmo; explorou aquela situação para liquidar a todos os que ele considerava como rivais ou oponentes desleais, coisa que não podia tolerar".47 Domenico Losurdo foi mais longe: a tese de Khruschev, segundo a qual caberia a Stalin a responsabilidade pelo assassinato de Kirov, porque este estaria implicado numa vasta conspiração contra ele, careceria de fundamento, pois Kirov tinha uma grande admiração por Stalin, “que depositava nele uma confiança total”.48 Ainda que isso fosse verdade, qual seria sua importância diante das conseqüências objetivas do assassinato? Trotsky, além de denunciar a "mão de Stalin" por trás do assassinato (o crime e seu executor tinham sido, no mínimo, manipulados pela NKVD),

46

Na Enciclopedia Soviética da era stalinista, lia-se: “Kirov foi assassinado por um degenerado trotskista, agente do imperialismo, membro de um grupo contra-revolucionário às ordens do Judas Trotsky (sic) e dos inimigos jurados do povo, Zinoviev e Kamenev”. 47

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 89. A interpretação de Sudoplátov merece tanto crédito quanto a sua capacidade (aparentemente nula) de raciocínio político. Suas memórias, sem deixar de ser uma fonte importante, são uma enumeração quase rotineira de assassinatos, alguns cometidos de modo atroz, justificados por Sudoplátov pela sua (dele) "ingenuidade política", explicação que não tem qualquer valor em si, soando claramente como um álibi: Sudoplátov tendeu, por outro lado, a negar a implicação da GPU-NKVD em qualquer crime em que ela não tivesse sido já provada. 48

No seu Stalin, Losurdo busca se opor à “lenda negra” sobre seu personagem (a “demonização de Stalin”) construída pela historiografia anticomunista ocidental. Aceitando que Stalin nada tinha de comunista (teria sido mais um “ditador desenvolvimentista”) e distanciando-se da sua repressão sem limites, do seu extermínio do bolchevismo histórico e do universo concentracionário (hoje inegáveis: o próprio Vychinsky, quando Procurador-Geral da URSS, disse que em alguns campos “soviéticos” os homens eram tratados como “animais selvagens”), Losurdo lhes contrapõe os progressos econômicos da URSS stalinista e sua vitória contra o nazismo na guerra mundial (coisa que já tinha sido feita por Isaac Deutscher). Com relação à repressão stalinista, Losurdo emprega repetidamente a expressão “as três guerras civis” para desculpar a amplidão que assumiu (a última teria findo com a execução de Bukharin) – um argumento que lembra a “guerra civil européa” supostamente deflagrada pelo bolchevismo, com que Ernest Nolte justificou (embora, claro, sem aprovar) a emergência do nazismo. Ora, tout comprendre c´est tout pardonner. No varejo, Losurdo acaba encontrando razões “plausíveis”, embora exageradas, para quase todos os crimes stalinistas, com destaque para o “estado de exceção permanente” em que a URSS se

encontrava, interna e externamente. Para diferenciar os campos nazistas dos stalinistas, Losurdo lembra que “nos

campos soviéticos havia bibliotecas para os deportados, a direção promovia espectáculos, concertos e conferências, e os prisioneiros em muitos Gulag estavam autorizados a publicar jornais murais” (será que Losurdo não ouviu falar nas orquestras judias organizadas por nazistas nos campos de extermínio do III Reich?). Um resenhista (Dominique Pinsolle) comentou que “as fontes usadas [por Losurdo] são bastente contestáveis” (só um exemplo: a respeito do “complô dos médicos judeus”, de 1953, Losurdo cita “o diplomata britânico Sir Joe Gascoigne, que admitiu na época que os médicos do Kremlin eram culpados de traição”) e que “mesmo se Stalin tivesse sido um ditador obrigado a preservar a existência de seu regime por todos os meios, ainda resta o fato de que a URSS era supostamente um Estado diferente, destinado a cambiar a história” – coisa esquecida por Losurdo no seu afã “compreensivo”. Jean Bricmont, um belga menos delicado (porque stalinista declarado) que o filósofo transalpino, disse, a respeito do “poderoso exército [da URSS] que venceu quase sozinho o nazismo” que ele foi “o resultado de uma ditadura feroz: mas, como poderia ter sido de outro modo?” (!): então, chega de “socialismo ou barbárie”, a alternativa real é “stalinismo ou barbárie” (ou seja, barbárie ou barbárie). A cereja do bolo losurdiano é que, para provar a qualidade de estadista de Stalin, negada pela “lenda”, cita Roosevelt (“que o definiu como um estadista de grande talento e cultura”), e Churchill (que lhe fez numerosas referências altamente elogiosas, identificando nele “um dos mais dotados estadistas do século XX”), ou seja, os chefes, à época, do mesmo ocidente anticomunista que construiu a “lenda negra” combatida por Losurdo (os mesmos personagnes também elogiaram Hitler e Mussolini). Comprenne qui pourra...

35

previu suas imensas conseqüências políticas (no que o desenvolvimento dos fatos lhe deu razão).49

Em um clima de repressão e denúncias histéricas, foram preparados os Processos de Moscou, em que um número considerável de “velhos bolcheviques” confessaram crimes espantosos e reivindicaram seu próprio castigo, sendo finalmente condenados e executados. Os delegados ao recente XVII Congresso foram recompensados por Stalin do modo relatado por Nikita Kruschev no seu Informe Secreto ao XX Congresso do PCUS: "Estabeleceu-se que dos 139 membros do CC do partido eleitos no XVII Congresso, 98 pessoas, ou seja, 70%, foram detidas e fuziladas (a maioria em 1937-38). Esta mesma sorte sofreram não só os membros do CC, mas também a maioria dos delegados do XVII Congresso do partido. Dos 1950 delegados com voz deliberativa ou consultiva, 1108, ou seja, mais da metade, foram detidos sob a acusação de crimes contra-revolucionários". A quase totalidade deles foi executada. Teria sido o assassinato de Kirov uma ação destinada tanto a evitar uma aliança entre o setor "conciliador" do aparelho (Kirov) e a oposição (Trotsky), contra Stalin, ao mesmo tempo que a fornecer o álibi do "grande terror" stalinista dos anos seguintes? A explicação parece demasiado perfeita, e não existem indícios claros para aceitá-la. Em que pese seu "recuo" no aparelho, Stalin parece ter agido, em 1934, seguindo o critério de que qualquer retrocesso político era aceitável, conquanto ele próprio conservasse e aumentasse o seu controle desse aparelho (cujo poder e projeção cresceriam de modo espetacular nos anos sucessivos). Stalin possuía, em relação aos seus aliados "conciliadores", maior trajetória e conhecimento do aparelho partidário e, com certeza, maior experiência política. Por outro lado, na década de 1930, a possibilidade de uma crise política que levasse Trotsky de volta ao poder era vista, segundo Nicholas Mosley, como uma possibilidade real pelos estadistas ocidentais.

Desde inícios dessa década houve tentativas da polícia política “soviética” de infiltrar a corrente internacional trotskista, inclusive pressionando/cooptando alguns de seus membros: "Onde se encontra o limite entre um 'agente' e um militante que não o é, mas que cede às pressões da GPU? Em 1932, Pável Okhun, chamado de Mill ou J. Obin, secretário administrativo do secretariado internacional da Oposição de Esquerda, parece pertencer à última opção. Esse judeu ucraniano, vindo da Palestina para a Bélgica, tinha se unido nesse país à Oposição de Esquerda, onde assumiu, devido às necessidades da correspondência em russo com Trotsky [aquela responsabilidade]".50 Em 1932, "Mill" voltou definitivamente à URSS. Na mesma época, registrou-se a infiltração de "Senin", constatada só na década de 1950: Senin, ou Abraham Sobolevicius, ou Sobolevitch, era filho de um industrial lituano, que possuia fábrica em Leipzig (Alemanha). Com seu irmão Ruvin (“Roman Well”) organizou uma oposição comunista que se juntou à Oposição de Esquerda alemã. Em 1936, Victor Serge, resgatado da prisão na URSS, transmitiu os rumores que lá existiam: "Senin" era agente da GPU. Nos anos 1950, Senin foi detido nos EUA, sob um novo codinome (Jack Soblen), ficando comprovada não só sua condição de agente dos serviços secretos da URSS, como o trabalho de informação que tinha desempenhado nas fileiras trotskistas na década de 1930, fato que Trotsky e Sedov ignoravam. Segundo testemunhas, Stalin lia regularmente e colecionava o Biulleten Opositsii, editado por Leon Sedov na Alemanha e, depois da ascensão de Hitler, em Paris: Stalin estava impressionado pela quantidade e qualidade das informações do órgão oposicionista (o que provavelmente aguçou a sua mania persecutória), assim como pelas suas análises políticas.

A 20 de fevereiro de 1932, quando Trotsky ainda se encontrava na ilha de Prinkipo, Stalin o privou da nacionalidade soviética, por decreto especial. A importância do fato consiste em que, daí em diante, qualquer russo que entrasse em contato com Trotsky se tornava

49

Roy Medvedev. Le Stalinisme. Origines, histoire, conséquences. Paris, Seuil, 1972. 50

Pierre Broué. L'Assassinat de Trotsky. Bruxelas, Complexe, 1980, p. 37.

36

responsável por manter relações não apenas com a oposição interna, mas também com um traidor estrangeiro ou, para usar as palavras de Stalin, "com o líder da vanguarda da contra-revolução mundial". A influência internacional de Trotsky, sobretudo no interior da Internacional Comunista, cresceu com a vitória de Hitler (que destruiu o partido comunista mais forte do Ocidente) pois foi o primeiro – e, na época, o único – que procurou prevenir os operários alemães e o Komintern contra Hitler, incitando-os a formarem a tempo uma frente única contra o nazismo: "Foram palavras jogadas ao vento. Naquele tempo, ninguém havia previsto que Hitler iria instaurar um regime totalitário. Todos o julgaram apenas mais um político ambicioso que almejava criar a seu redor um partido reacionário qualquer. Stalin afirmou que 'o fascismo e a social-democracia são irmãos gêmeos'. E Trotsky: 'Trabalhadores alemães, se Hitler subir ao poder, não haverá mais a mínima esperança para vós'. E previu tudo, tudo o que aconteceu a seguir..." (Joseph Gorgerinski).51 O KPD (partido comunista alemão) insistia na procura de temas comuns com os nazistas (contra o Tratado de Versalhes, pela independência nacional, contra os “bonzos” sindicais social-democratas) até usar uma terminologia semelhante (“revolução popular”). Chegou a afirmar que antes de combater o “fascismo”, era preciso combater o “social-fascismo” (o SPD), propondo então a “frente única pela base” aos operários socialdemocratas. No conjunto, sua política era definida pelo dirigente da Internacional Comunista, Manuilski: “O nazismo será o último estágio do capitalismo antes da revolução social”... Em julho de 1932, os partidos operários obtinham ainda 13.300.000 votos (mas os nazistas já obtinham 13.779.000). Em novembro desse ano, SPD e KPD (Partido Comunista da Alemanha) reunidos obtinham 13.230.000 votos; o NSDAP, 11.737.000: foi quando se desenhava um declínio político do nazismo que o presidente Hindenburg (eleito com apoio socialista) chamou (em janeiro de 1933) o chefe nazista Hitler, para ocupar a chancelaria do Reich. Hitler chegou ao poder sem resistência operária e com o apoio da burguesia.

O desenvolvimento da crise revolucionária na Espanha, a partir de 1931, foi outro elemento decisivo no julgamento de Stalin. Segundo Lilly Marcou, “se a decisão de matar Trotsky foi expressa em 1939, na mente de Stalin ela começou a amadurecer a partir de 1931, como testemunha um documento inédito dos arquivos daquele período. Em uma carta postal enviada ao Politburo, Trotsky aconselhava aos dirigentes soviéticos não se misturarem nas questões internas dos comunistas espanhóis, ou seja, 'não lhes impor uma cisão vinda do exterior'. Furioso porque Trotsky ousava ainda dizer qual devia ser a conduta do partido, Stalin escreveu imediatamente: 'Penso que Trotsky, esse despudorado falastrão menchevique, deveria ser eliminado. Assim aprenderá a ficar no seu lugar'".52 O Partido Comunista Español (PCE) era uma organização debilitada por numerosas expulsões na década anterior, e encontrava-se muito desprestigiado durante os primeiros anos da revolução espanhola (1931-32, quando a monarquia de Alfonso XIII caiu, e foi proclamada a República), por sua política sectária em face das grandes correntes do movimento operário. A Federação Catalã-Balear (posteriormente BOC-Bloco Operário-Camponês), implantada principalmente em Catalunya, era fortemente influenciada pelo nacionalismo catalão, tendo se separado do PCE em razão da política ultra-esquerdista deste em relação ao problema nacional catalão. O PCE fora fundado em 1920 e 1921 a partir de cisões do Partido Socialista (PSOE).

Para Pierre Broué, as tentativas stalinistas de assassinar Trotsky foram anteriores à sua partida para o México, em 1937: "[Elas] estiveram sempre nas inquietudes de seus camaradas. No primeiro período de seu exílio, duas tentativas merecem atenção, as duas vindas de 'brancos'

51

Os partidários da “Frente Única Operária” no SPD (partido social-democrata alemão) foram excluídos: eles constituíram o SAP (Partido Socialista Operário), com milhares de membros, partido que em 1933 (depois da ascensão de Hitler) assinaria, junto aos partidários de Trotsky (a Liga Comunista Internacionalista) e a dois partidos socialistas holandeses, uma declaração em favor da IV Internacional. 52

Lilly Marcou. Stalin Vita Privata. Roma, Editori Riuniti, 1996, p. 132.

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manipulados pela GPU: a do grupo Turkul e a de Larionov. Nunca, pelo que se sabe, conseguiram localizar seu alvo. Mas o grupo principal [da GPU] de Paris apareceu em 1935, o grupo de Efrom, que seguiu Sedov, preparou seu seqüestro em Antibes, assassinou Ignace Reiss, e tentou envenenar a mulher e o filho deste. Esse grupo tinha também Trotsky na sua mira".53 Os "brancos" anti-comunistas, o bando contra-revolucionário da guerra civil de 1918-21, tinha todos os motivos para odiar Trotsky, chefe militar dos seus vencedores "vermelhos". Gérard Rosenthal, advogado de Trotsky na França, e ex artista surrealista, confirmou Broué, com diferença de alguns meses: "No início do verão de 1936, uma rede de espionagem foi constituída por Serge Efrom, compreendendo também Marcel Rollin (Smirenski), o falso fotógrafo Louis Ducomet ('Bob') e François Rossi, ou seja, Roland Abbiate, com mais dois ou três comparsas não identificados. Essa rede estava dotada de uma mensalidade regular".54 Efrom era casado com a poeta russa Marina Tsévátieva: o ponto comum entre seu grupo e o "grupo Turkul" era a presença em ambos de exilados russos "brancos" (inclusive ex-oficiais do general czarista Wrangel) e membros do submundo europeu (como Abbiate). Como o revelaram diversas affaires depois desvendadas, o serviço secreto soviético não vacilava em recrutar nos mais diversos meios (inclusive os criminosos) e preferia agir através de pessoas interpostas, de preferência estrangeiros (não-russos).55

Andreï Vychinski, o procurador-zoologo

O assassinato de Kirov foi usado por Stalin, como vimos, para provar da existência de um vasto complô com vistas a assassinar todos os dirigentes soviéticos, complô supostamente chefiado por Trotsky. Os três processos judiciais públicos decorrentes, os “Processos de Moscou”, que se estenderam de 1936 a 1938, abalaram a opinião pública mundial, e foram acompanhados de uma repressão política em massa (Vadim Rogovin menciona 4 milhões de detidos e 800 mil fuzilados) sem precedentes na história moderna. Stalin não exagerava ao dizer, na época, que era chegada a hora de usar "métodos de guerra civil" contra a oposição interna. Rogovin afirmou que, longe de ser a expressão de “um acesso de violência irracional e insensata”, o sanguinário terror desencadeado por Stalin foi na realidade a única maneira pela qual ele conseguiu quebrar a resistência “das verdadeiras forças comunistas”. O mundo assistiu consternado às “confissões” de boa parte dos dirigentes da revolução de 1917. Kamenev dizia: “Estamos aqui sentados lado a lado com os agentes de departamentos da polícia secreta estrangeira... Servimos ao fascismo, organizamos a contra-revolução contra o socialismo. Este

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Pierre Broué. Trotsky. Paris, Fayard, 1988, p. 925. 54

Gérard Rosenthal. Op. Cit., p. 227. 55

Por exemplo, os "cinco de Cambridge" (Kim Philby, Guy Burgess, Donald McLean, Anthony Blunt e John Cairncross), agentes duplos na inteligência britânica, recrutados pela espionagem da URSS (Alexander Orlov, do qual falaremos adiante) quando estudantes na Universidade de Cambridge. Durante longo tempo se supôs que fossem apenas três, excluindo, além de Cairncross, Anthony Blunt, curador das jóias e coleções de arte da coroa inglesa: o impacto que a descoberta dessa rede provocou na opinião pública deveu-se tanto ao seu caráter espetacular como a origem social elevada dos seus membros.

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foi o caminho que tomamos e este é o abismo de desprezível traição em que caímos”. E Zinoviev, o ex-presidente da Internacional Comunista, confirmava: “Sou culpado de ter sido o organizador, secundando apenas Trotsky no bloco trotskista-zinovievista, da proposição com o objetivo de assassinar Stalin, Vorochilov e outros líderes... Fizemos uma aliança com Trotsky. Meu bolchevismo distorcido acabou se transformando em anti-bolchevismo e através do trotskismo chegou ao fascismo. O trotskismo é uma variação do fascismo, e o zinovievismo uma variação do trotskismo”.

Andreï Vychinski nos Processos de Moscou

Os “processos” mais famosos foram três. Em agosto de 1936, o Processo dos Dezesseis, que comoveu o mundo, em especial os partidos comunistas e sua área de influência, pelas “confissões” de Kamenev, Zinoviev e Ivan Smirnov, dirigentes da Revolução de Outubro, e pela brutalidade do procurador, o ex-menchevique Vychinsky (o mesmo que, em 1917, tinha lançado contra Lênin a acusação de “agente do Império Alemão”, devido ao uso pelo dirigente bolchevique do “vagão blindado”, cedido pela Alemanha, para chegar à Rússia). Trotsky, em sua coletânea Os Crimes de Stalin, e Leon Sedov (seu filho), no Livro Vermelho dos Processos de Moscou, desmontaram a farsa jurídica do processo. Neste, como nos dois processos ulteriores, Trotsky seria o principal acusado, condenado a morte “à revelia”. Trotsky era denunciado como a alma do “bloco terrorista”, e o trotskismo, como uma agência da Gestapo e do fascismo, no mesmo momento em que o CC do PC italiano propunha uma aliança “aos nossos irmãos fascistas”, sobre a base do programa (fascista) de 1919, e em que Stalin sondava secretamente as possibilidades de um acordo com Hitler, que se concretizaria três anos depois.

Em janeiro de 1937 teve lugar o Processo dos Dezoito dirigentes bolcheviques acusados de colusão com o nazismo e com Trotsky, assim como (ao igual que os acusados do processo anterior) do assassinato de Kirov. Todos “confessaram”, sendo condenados e executados, com exceção de Radek (que exagerou propositalmente na “confissão”). Em plena guerra civil espanhola e governo da Frente Popular na França, “os 18” (entre outros, Radek, Serebryakov, Piatakov, Muralov, Drobnis, Sokolnikov) foram acusados e condenados por “ter constituído um centro de reserva trotskista”, executando sabotagens e envenenamentos em massa, por conta da Gestapo e do Mikado. Assim como no processo anterior, e no posterior, observadores jurídicos oficiais das “democracias” ocidentais certificaram, para o mundo, a “lisura” do processo jurídico, o que era um sinal político claro do interesse dos líderes do mundo capitalista na “normalização” da URSS. Em março de 1938, enfim, houve o Processo dos Vinte e Um: desta vez “confessaram” o ex-chefe da GPU, Iagoda, e os velhos bolcheviques Bukharin e Rykov (chefes da ex-“Oposição de Direita”), além de vários outros. Um dos acusados negou as “confissões” obtidas durante o inquérito; Bukharin, por sua vez, “confessou” em geral (no atacado), mas negou todas as acusações precisas (no varejo). As acusações eram as mesmas dos processos precedentes: espionagem para Hitler (ou para Mussolini, ou para o Mikado), “bloco” com Trotsky e... assassinato de Kirov. Como nos processos anteriores, Stalin assistiu e

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controlou o desenrolar das coisas nos bastidores. Os acusados foram condenados, e quase todos executados. O procurador estatal, Andreï Vychinski,56 se tornou célebre pela sua inclinação zoológica para referir-se aos seus inimigos bolcheviques de 1917, que ele agora acusava em nome do “bolchevismo”, como “hienas”, “chacais”, “serpentes”, “cães raivosos”, etc.

A “animalização” dos opositores a Stalin nos “Processos” não foi levada em conta por Slavoj Zizek ao afirmar que “o stalinismo de fato salvou o que entendemos como humanidade do homem” (sic). Certamente, é difícil imaginar a humanidade de outra coisa que não do homem. Segundo Zizek, “podemos afirmar que essa visão *a “biopolítica” bolchevique, segundo Zizek defendida por Trotsky] caso fosse realmente imposta, seria muito mais terrível do que foi na realidade o stalinismo”: “Foi contra essa ameaça de mecanização modernista em grande escala que a política cultural stalinista reagiu, exigindo não só o retorno a formas artísticas mais atraentes para as multidões [o “realismo socialista”+, como também, embora possa parecer cínico, a volta das formas tradicionais elementares de moralidade. Nos julgamentos stalinistas, as vítimas foram responsabilizadas por determinados atos, forçadas a confessar... Em resumo, embora possa parecer obsceno (e foi, de fato) elas foram tratadas como sujeitos éticos autônomos, não como objetos da biopolítica. Contra a utopia do ‘coletivismo mecanizado’, o alto stalinismo (sic) da década de 1930 defendeu a volta da ética em seu aspecto mais violento, como medida extrema para contrabalançar a ameaça de perda de sentido das categorias morais tradicionais, em que não se visse mais culpa do sujeito num comportamento inaceitável, mas um mau funcionamento medido por barômetros ou velocímetros...”. Para apresentar Trotsky e os bolcheviques como antecipadores da “biopolítica”, Zizek valeu-se de uma citação isolada (de segunda mão), certamente delirante, do engenheiro Alexei Gastev (depois militante da Oposição de Esquerda), un point c´est tout. Teria sido bom lembrar a Zizek que também existe uma ética filosófica e historiográfica.

Assim, “a tênue diferença entre o gulag stalinista e o campo de extermínio nazista, naquele momento histórico, também era a diferença entre civilização e barbárie”. Tortura, humilhação pública e execução privada de milhares de homens seriam “obscenas”, e deportação de milhões, exterminados em campos de trabalho forçados, “civilizada”, se comparada com o exterminismo nazista, porque Stalin, diversamente de Hitler, não queria matar (exterminar) mas dominar; embora o genocídio nazista fosse “psicanalíticamente”, segundo Zizek, um fenômeno “reativo” ao terror stalinista, que teria atirado a primeira pedra da barbárie contemporânea (idéia em absoluto nova). Ora, infringir a morte (e se arrogar o direito a fazê-lo) é a forma suprema do domínio. Do caráter racista do exterminismo nazista não se deduz o caráter “humano” da brutal e massiva repressão stalinista (que incluiu elementos racistas, sem explicitá-los): abordar a certamente diversa natureza social, política e ideológica do stalinismo e do nazismo (que os levou à guerra mais mortífera da história) pela suposta “menor desumanidade” do primeiro é fazê-lo pelo ângulo mais estúpido. Zizek cita como

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Andreï Januaryevich Vychinsky (1883-1954), nascido em Odessa (Ucrânia), tornou-se membro do POSDR e de sua fração menchevique em 1903. Participou da Revolução de 1905 em Baku, sendo preso na prisão de Bailov (onde cruzou com Stalin). Nos anos posteriores, graduado na Universidade de Kiev, começou a advogar em Moscou. Em 1917 assinou a ordem para prender Lênin, em seqüência da decisão do governo provisório instalado em fevereiro. Depois da Revolução de Outubro, permaneceu na sombra em cargos secundários, até se filiar em 1920 ao PC (bolchevique). Em 1935 tornou-se Procurador Geral da URSS, o que o tornou personagem central nos “Processos de Moscou” (1936-1938), obtendo lucros pessoais na tarefa, pois expropriou a casa e o dinheiro de Leonid Serebryakov, advogado dos acusados no primeiro processo, depois também executado. Depois do pacto germano-soviético (1939), teve papel central na anexação da Lituânia à URSS, em 1940. Representou a URSS no julgamento dos criminosos de guerra no Tribunal Internacional Militar, em 1945. Vice-premiê da URSS (1939–1944), Ministro de Relações Externas (1949–1953), membro da Academia de Ciências desde 1939 e, depois da Segunda Guerra, representante permanente da URSS na ONU, morreu em 1954 em Nova York, no exercício dessa função. Foi enterrado na Praça Vermelha.

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antecipadores de sua análise Karl Kautsky, Herbert Marcuse e, et pour cause, o historiador “revisionista” alemão Ernest Nolte, que qualificou Hitler e os campos de concentração nazistas como a inevitável resposta à "guerra civil européia" deflagrada pela Revolução de Outubro. Isto é mais que uma boutade infeliz.57

Com o massacre da década de 1930, Stalin superou a crise política precedente, motivo imediato deflagrador dos Processos de Moscou. No expurgo decorrente, além dos remanescentes da velha guarda bolchevique, foram eliminados a quase totalidade dos membros do Comitê Central eleito em 1934, a maioria dos delegados ao XVII Congresso, quatro membros do Politburo, três dos cinco membros do Buro de Organização, todos perfeitamente “stalinistas”. Foram substituídos por outros stalinistas, tão incondicionais quanto os precedentes, e certamente mais apavorados. O “monolitismo” stalininiano foi, portanto, o véu ideológico de um regime de crise e divisão. No seu Stalin Trotsky referiu-se, justamente, contra os analistas do seu tempo (e posteriores) ao mito desse monolitismo. A imprensa dos PCs do mundo, e até a “democrática” (incluida a Liga dos Direitos Humanos da França) se somou em todos os países à campanha “contra o trotskismo”, e em geral contra qualquer um que não aderisse à linha da “Frente Popular”.58

Mikhail Tukhachevsky

O massacre paralelo aos “Processos” abrangeu todos os antigos opositores e suas famílias, 90% dos quadros superiores do Exército Vermelho, todos os dirigentes da polícia política antes de Ekhov, a maioria dos comunistas estrangeiros refugiados na URSS (no total, houve de quatro a cinco milhões de detenções, um soviético para cada 17 foi detido, um para cada 85, executado).59 No meio do terror, floresceram os oportunismos e as vinganças pessoais através da “deduragem”. Um clima de delação geral instalou-se na sociedade “soviética”, chegando-se

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Slavoj Zizek. O stalinismo revisitado, ou como Stalin salvou a humanidade do homem. Em Defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Boitempo, 2011. 58

Em 1934 se pôs na ordem do dia a política de Frente Popular contra o fascismo, que seria consagrada no VII Congresso da Internacional Comunista, em agosto. Essa política decorreu da vitória de Hitler na Alemanha: a 6 de fevereiro de 1934, um ano depois daquela, se produziu uma tentativa fracassada de golpe fascista na França. O Partido Comunista francês (PCF), durante os dias em que se desenvolveu a tentativa golpista, continuou acusando principalmente a social-democracia. A 12 de fevereiro, porém, estourou uma greve geral em toda a França e, nas ruas, nas passeatas, nas mobilizações, os operários comunistas e socialistas concretizaram a Frente Única da classe operária na França: eles já sabiam, dada a experiência alemã, o significado da divisão da classe operária. O nazismo completara um ano na Alemanha, as organizações operárias tinham sido completamente ilegalizadas, e os dirirgentes operários, presos. O PCF propôs, através de um discurso de Maurice Thorez, em outubro, a ampliação da Unidade de Ação para os setores “democráticos” e à classe média (ou seja, para o Partido Radical, que participava com peso em todos os governos há mais de uma década, incluídos os de direita). A frente única, segundo o PCF, devido a que era preciso conquistar as classes médias, então supostamente “representadas” pelo Partido Radical, deveria ser não unicamente proletária, virou por isso a “Frente Popular”. Vitoriosa eleitoralmente em 1936, a Frente Popular acabaria capitulando ao nazismo. Quem levou o marechal Pétain e o fascismo francês ao governo, depois da drôle de guerre de 1940, e depois de ilegalizar o PCF, foi a Câmara Legislativa eleita em maio de 1936, com maioria da Frente Popular. 59

Pierre Sorlin. The Soviet People and Their Society. Nova York, Praeguer, 1970.

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a registrar casos (divulgados publicamente como exemplos a serem seguidos) de delação dos pais pelos filhos. Paralelamente, a tendência para a destruição das conquistas sociais de outubro 1917 verificou-se em medidas como o fim do direito ao aborto e ao ensino superior gratuito. Em todos os processos, as acusações lidas pelo procurador pareciam o produto de uma imaginação delirante e doentia: a investigação teria provado “que, desde 1932 até 1936, se havia organizado em Moscou um centro unificado trotskista-zinovievista, com o propósito de perpetrar toda uma série de atos terroristas contra os chefes do PCUS e o governo soviético, com vistas à tomada do poder. Que o centro unificado trotskista-zinovievista havia organizado muitos grupos terroristas e adotado um certo número de medidas para proceder ao assassinato dos camaradas Stalin, Vorochilov, Jdanov, Kaganovitch, Kirov, Kossior, Ordjonikidzé e Postychev (...) Que um dos grupos terroristas, sob as ordens diretas de Zinoviev e Leon Trotsky, e sob a direção imediata do acusado Bakaiev, havia perpetrado no 1º de dezembro de 1934 o assassinato do camarada S. M. Kirov".

No seu veredicto principal, a Corte Suprema da URSS concluiu em que: “Os inimigos do povo, Trotsky, Lev Davidovitch e seu filho Sedov, Lev Ivovitch, expulsos da URSS em 1929 e privados da nacionalidade soviética por decisão do Comitê Executivo Central da URSS, em caso de ser encontrados em território russo devem ser imediatamente presos e postos à disposição do Tribunal Militar da Corte Suprema da URSS”.60 No que respeita ao suposto “apoio popular” aos “Processos”, citemos o testemunho de Margarete Buber-Neumann, esposa do dirigente comunista alemão Heinz Neumann, então em Moscou: “A 23 de janeiro de 1937 - naquela mesma manhã havia começado o segundo Processo de Moscou - Neumann e eu assistimos à manifestação do povo soviético, tão ‘odiado’ pelos acusados. Para dizer a verdade, esta manifestação não tinha nada de espontânea, foi organizada pelo governo. Desde as fábricas, os operários haviam sido trazidos diretamente ao local da reunião. Assistir a ela era obrigatório. Também os empregados e colaboradores das ‘Edições dos Trabalhadores Estrangeiros’ deviam estar presentes. Uma numerosa multidão se amontoava nessa ingrata jornada invernal. Não se escutava grito algum. Os homens estavam em silêncio, de pé sobre a neve; as bandeiras e letreiros que levavam mostravam consignas espetaculares: ‘Abatam-nos como a cães raivosos!’, ‘Morte aos traidores fascistas!’ Sobre um cartaz vi a imagem de um punho gigantesco armado de pregos, acompanhado por esta inscrição: ‘Viva a NKVD, punho encouraçado da revolução!’”.61

Tukhachevsky submetido a julgamento secreto, em junho de 1937

No exterior, quase todos os partidos comunistas organizaram comícios e manifestações para apoiar o fuzilamento de Bukharin, Rykov, e outros. Tomando a palavra numa assembléia em Paris, a 3 de junho de 1938, Maurice Thorez, líder do Partido Comunista Francês, afirmou, por

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People's Commissariat of Justice of the URSS. Report of Court Proceedings in the case of the Anti-Soviet "Bloc of Rights and Trotskyites". Moscou, 1938. 61

Margarete Buber-Neumann. Op. Cit., p. 431.

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exemplo: “A justiça da União Soviética prestou inestimável serviço à causa da paz, golpeando impiedosamente os traidores trotskistas-bukharinistas, esses assassinos e agentes da Gestapo, elementos da ‘quinta coluna’, cagoulards que tiveram alguns a chorar por eles na Inglaterra, mas que foram punidos com a necessária severidade”. Na primavera de 1938, um “numeroso grupo de comunistas franceses” enviou uma carta a Ekhov, chefe da NKVD, onde se lia: “A sua firmeza e a sua vontade indomável levaram ao desmascaramento dos infames agentes do fascismo [...] Asseguramos-lhe a nossa plena confiança na justiça popular, que puniu os traidores como eles mereciam”. Um processo em separado “depurou” a diplomacia soviética (com Karakhan como principal acusado) e o secretariado executivo dos soviets. A repressão se abateu sobre centenas de milhares de membros do PCUS, que eram, no entanto, fiéis stalinistas. Paralelamente aos processos públicos (que foram a ponta do iceberg) aconteceram os processos “a portas fechadas”, provavelmente devido à impossibilidade de extorquir confissões dos acusados, ou de apresentá-los em público: em junho de 1937, a condenação e execução da cúpula do Exército Vermelho e de seus chefes, o marechal Tukhachevsky,62 e o general Piotr Iakir (que tinham atuado na guerra civil sob o comando de Trotsky); em julho de 1937, o processo, condenação e execução dos dirigentes do Partido Comunista da Geórgia (Mdivani e Okudjava, os comunistas da Georgia que em 1922 fizeram apelo a Lênin contra a “russificação” staliniana); em dezembro de 1937, a continuação do anterior, com a condenação e execução de Enukidzé. Com os fuzilamentos em massa de oposicionistas de esquerda na Sibéria, em 1938, a ekhovtchina (do nome do chefe da NKVD, Ekhov) stalinista ficou completa.

A decapitação do Exército Vermelho teve uma importância imediata para os destinos da URSS. Em junho de 1937, Tukhachevsky, vice-ministro de Defesa, submetido a julgamento secreto, foi executado quarenta e oito horas mais tarde, junto a outros sete generais que constituíam a flor e a nata do Exército. Poucos dias antes, o general Gamalrik, comissário geral do Exército, tinha se “suicidado”. Os generais foram acusados de espionagem em favor da Alemanha nazista e de preparar um complô junto a Hitler para favorecer uma derrota soviética. Os acusados eram todos heróis da guerra civil: Iakir, comandante de Leningrado, Uborevich

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Mikhail Tukhachevsky (1893-1937), conhecido como Misha, oriundo da pequena nobreza russa e estudante brilhante, em 1911 ingressou no Corpo de Cadetes Catarina II, de Moscou. Em 1914 participou da Primeira Guerra Mundial com o Regimento da Guarda Semenovsky. Em 1915 foi ferido e feito prisioneiro permanecendo em um campo alemão, com o oficial francês Charles de Gaulle. Ingressou no PC (bolchevique) em 1918, pouco depois de ser convocado por Trotsky para o Exército Vermelho. Nesse tempo, sua primeira esposa se suicidou para salvá-lo, pois havia sido flagrada roubando comida para a família. Teve uma ascensão meteórica durante a guerra civil (1918-1921), sendo promovido a Comandande em Chefe da Frente Sul com apenas 26 anos. Três meses depois era comandante supremo do Front no Caúcaso. Domenico Losurdo afirma que em 1920, durante a guerra na Polónia, Tukachevsky tinha deixado transparecer uma ambição militarista preocupante ao impor a marcha sobre Varsóvia, que teve um desfecho desastroso (ora, a marcha sobre Varsóvia foi “imposta”... por Lênin). Em 1924, Tukhachevsky começou a reorganizar o Exército Vermelho. Em 1928 era Chefe do Estado Maior Geral. Na década de 1930, durante os expurgos, tinha certeza que seus dias estavam contados. No Exército soviético, foi o grande teórico e defensor da utilização de blindados com apoio da infantaria, em substituição da cavalaria. Em 1936 foi nomeado Marechal da União Soviética, após as vitórias alcançadas contra o Japão na Mongólia. Era apenas o início de seu declínio. Fez uma série de viagens pela Europa e recebeu transferências forçadas, que não aproveitou para desertar da URSS. Em 26 de maio de 1937, foi preso e submetido a julgamento secreto, conhecido como Processo da Organização Militar trotskista anti-soviética. Tukhachevsky e mais oito comandantes militares foram condenados à morte em 12 de junho de 1937 e imediatamente executados. Tukhachevsky foi morto pelo capitão da NKVD Vassily Blokhin. Sua execução não foi comunicada à sua família: sua filha soube da morte na escola, quando os colegas começaram a questioná-la como filha de um traidor "fascista" (ela foi para casa e se enforcou). A viúva de Tukhachevsky foi presa pelo NKVD dias depois do suicídio da garota, sendo deportada para os Urais. Svetlana Tukhachevskaya, outra filha, foi enviada para um orfanato especial para os filhos dos “inimigos do povo”. Foi presa em 1944 e condenada por um órgão extrajudicial do Conselho Especial da NKVD a cinco anos de trabalhos forçados. Sobreviveu, morrendo em 1982. Em 15 de fevereiro de 1963, durante o “degelo” kruscheviano, houve uma modesta cerimônia na Academia Militar Frunze em memória de Tukhachevsky, reabilitando parcialmente um dos mais importantes oficiais executados por Stalin.

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comandante do distrito ocidental, Kork comandante da Academia Militar, e o chefe da cavalaria Primakov. O marechal stalinista Vorochilov, ministro da Defesa, acusou-os de serem coniventes com Trotsky. “O Exército Vermelho foi decapitado”, declarou Trotsky, ao inteirar-se das execuções: eram oficiais formados com ele durante as guerras civis, os melhores quadros militares, os mais populares e capazes. O processo dos generais foi, contudo, só a parte visível de um expurgo desintegrador das Forças Armadas. Em agosto de 1937, segundo Leopold Trepper (criador e chefe da rede de espionagem soviética durante a Segunda Guerra Mundial, a Orquestra Vermelha), “Stalin reuniu os dirigentes políticos do Exército para preparar a depuração dos ‘inimigos do povo’ que poderiam existir nos meios militares. Aquele foi o sinal para iniciar a matança: treze dos 19 comandantes do Exército, 110 de seus 130 comandantes de divisão e de brigada, a metade dos comandantes de regimento, e a maior parte dos comissários políticos, foram executados. O Exército Vermelho, assim desintegrado, ficou fora de combate por alguns anos”. Foram mais de 35 mil os oficiais assassinados. Os quatro marechais que endossaram as acusações contra Tukhachevsky foram também executados.

Nikolai Ekhov

A provável causa dessa “limpeza secreta” foi que, no quadro criado pelos processos públicos, o choque entre Stalin (e a GPU-NVKD) e o Exército Vermelho, era inevitável. Em 1937, os comandos do Exército Vermelho estavam formados por quadros surgidos durante a guerra civil, a maioria sob o comando de Trotsky. Mesmo não tendo sido oposicionistas, e tendo se adaptado ao crescente controle stalinista, a crise permanecia latente. Os chefes do Exército tinham autonomia, e não deviam seus cargos a Stalin. A popularidade deles era grande, em particular a de Tukhachevsky, reconhecido como o modernizador que havia colocado o Exército Vermelho em um alto nível técnico e estratégico (mecanização, paraquedismo, etc.). Tukhachevsky e os comandos do Exército Vermelho viam com inquietude a evolução da Alemanha nazista e consideravam inevitável um conflito militar com ela. Mesmo que Tukhachevsky e Kirov não fossem líderes políticos comparáveis a Trotsky e Zinoviev, a autoridade de um sobre o Exército, e de outro sobre a própria burocracia, transformava-os em rivais potenciais perigosos para o georgiano.

A “limpeza” também chegou à Internacional Comunista: direções inteiras de diversos partidos comunistas foram executadas. Relatou Trepper que, quando aluno da Universidade para estrangeiros em Moscou, pereceram 90% dos militantes comunistas estrangeiros residentes em Moscou. Stalin assinava listas de condenações que continham, às vezes, milhares de nomes. Foram “depurados” os PCs da Ucrânia e Bielorrússia, as Juventudes Comunistas (Komsomol). O sindicalista e delegado da IC na China, Lominadzé, se suicidou. Outros foram fuzilados a portas fechadas, irredutíveis ou impresentáveis para um processo púbico: Préobrazhenski,63 Slepkov, Riutin, Smilga, o general Dimitri Schmidt, Gaven (ex-secretário de

63

Yevgueni Alexéievich Préobrazhenski (1866-1937), filho de um padre cristão ortodoxo, era filiado à fração bolchevique do POSDR desde 1904. Membro do Comitê Central a partir de 1917. Autor, com Nikolai Bukhárin, do ABC do Comunismo (1920), principal manual de divulgação do bolchevismo no período revolucionário. Desde 1923

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Trotsky), todo o comando político do Exército Vermelho (Antonov-Ovseenko, Bubnov, Gamarnik), a velha direção da IC residente em Moscou (Piatniski, Béla Kun, dezenas de comunistas alemães, o suíço Fritz Platten, companheiro e amigo de Lênin). Direções inteiras dos PCs estrangeiros foram convocadas a Moscou e executadas (entre outras, as dos PCs da Iugoslávia, excluído Tito, e da Polônia). A máquina de executar se precipitou também sobre juristas, historiadores, pedagogos, filósofos, físicos, matemáticos, biólogos, cientistas e artistas em geral: o diretor teatral Meyerhold foi executado após ser obrigado a beber a própria urina, foi fuzilado o romancista Isaak Babel (A Cavalaria Vermelha), símbolo literário de 1917...

Genrikh Iagoda

No restante do mundo, a intelectualidade de esquerda e os “companheiros de estrada” dos PCs sofreram um abalo profundo. Daí a importância das declarações feitas, no meio dos Processos, pelo romancista André Malraux, símbolo mundial da “intelectualidade engajada”, e amigo pessoal de Trotsky: “Trotsky é uma força moral no mundo, mas Stalin deu dignidade à humanidade e, da mesma maneira que a Inquisição não atingiu a dignidade fundamental do cristianismo, os processos de Moscou não diminuíram a dignidade fundamental do comunismo”.64 Trotsky, indignado, rompeu relações com Malraux. A quantidade e, por assim dizer, “qualidade” das mortes, só admitiam comparação com a monstruosidade delirante das acusações. A admissão passiva delas pelos governos e a intelligentsia ocidentais constituiu, para Victor Serge, a “falência da consciência moderna”; isto inclusive no país em que essa consciência tinha sido galvanizada pelo “caso Dreyfuss”, cujo eco ainda ressoava nos discursos políticos: “Eu lia na Pravda as resenhas truncadas dos processos. Apontava centenas de fatos inverossímeis, contrasentidos, grossas deformações, afirmações insensatas. Mas o delírio era também um dilúvio. Apenas tinha concluído de levantar um monte de imposturas, um monte maior chegava, varrendo o trabalho da véspera. Isto ultrapassava todos os limites. O Intelligence Service misturava-se à Gestapo, ao Japão, os acidentes ferroviários viravam crimes políticos, a grande fome da coletivização [agrária] tinha sido organizada pelos trotskistas (todos presos na época!), uma multidão de acusados a espera de processo desaparecia nas trevas, milhares de execuções eram realizadas sem nenhum processo, e havia nos países civilizados juristas instruídos e ‘avançados’, que consideravam esses procedimentos normais e dignos de crédito. Tudo virava uma lamentável falência da consciência moderna. Na Liga Francesa dos Direitos Humanos havia juristas de essa espécie: ela se dividia entre uma maioria

foi um dos membros mais destacados da Oposição de Esquerda. Em 1926, publicou A Nova Econômica, em que expôs a teoria da “acumulação socialista primirtiva”, e defendeu a industrialização da URSS. Em 1927 foi expulso do PCUS, e internado em um campo na Sibéria; sua “capitulação” o liberou em 1929. Foi novamente preso em 1935, e morreu executado durante os expurgos de Stalin, depois de testemunhar no segundo “Processo de Moscou”. 64

Cf. Curtis Cate. Malraux. São Paulo, Scritta, 1995; e Maria Teresa de Freitas. Trotsky e Malraux: sobre o marxismo na literatura. In: Osvaldo Coggiola. Trotsky Hoje. São Paulo, Ensaio, 1994.

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contrária a qualquer investigação a respeito, e uma minoria desencorajada, que se retirava. O argumento mais comum era: ‘Rússia é a nossa aliada’...” 65 (grifo nosso).

Certamente, houve vozes que protestaram, minoritárias: o esforço do próprio Victor Serge, que constituiu em Paris, junto com o surrealista André Breton, o pacifista Félicien Challaye, o “poeta proletário” Marcel Martinet, escritores socialistas como Magdeleine Paz e André Philip, Henry Poullaille e Jean Galtier-Boissière, militantes pioneiros do PCF como Pierre Monatte e Alfred Rosmer, militantes de esquerda (Georges Pioch, Maurice Wullens, Emery), historiadores como Georges Michon e Maurice Dommanget, um “Comitê pela Investigação dos Processos de Moscou e pela Liberdade de Opinião na Revolução”. Leon Sedov tentou, em vão, constituir uma comissão independente na Suíça, com ajuda de um advogado de Basiléia. O mais importante foi a constituição de uma comissão nos Estados Unidos, que colheu o depoimento de Trotsky no México (depois de tentar em vão obter um visto para que pudesse fazê-lo nos EUA). Entre seus membros, apenas um amigo de Trotsky: Alfred Rosmer. Os outros membros eram de diversas tendências, sindicalistas, radicais, anarquistas, comunistas, na maioria militantes politicamente adversários de Trotsky. O presidente da Comissão foi o filósofo e pedagogo norte-americano John Dewey. Após meses de trabalho extenuante e meticuloso, cada ítem e cada acontecimento histórico haviam sido investigados e analisados, até se eliminar toda sombra de dúvida. O veredicto da Comissão Dewey foi de total e absoluta inocência dos acusados: “Com base em todas as provas em nosso poder afirmamos que os processos realizados em Moscou em agosto de 1936 e janeiro de 1937 não passam de uma fraude... Declaramos inocentes Lev Davidovitch Trotsky e Leon Sedov”. Ao lado de John Dewey, Suzanne La Follette e Otto Rühle tiveram importante papel nessa comissão, que teve forte repercussão na intelectualidade e na opinião pública dos Estados Unidos. 66

Muito tempo depois, os raros sobreviventes dos “Processos de Moscou” deixaram clara a armação existente. Vladimir Astrov, “velho bolchevique”, incorporado ao partido antes da Revolução de Outubro, jornalista e historiador que pertenceu ao grupo de Bukharin na década de 1920, foi preso em 1933, e se converteu em seksot, colaborador secreto da NKVD; acareado com Bukharin, afirmou que a oposição “direitista” havia preconizado o terrorismo em geral e o assassinato de Stalin em particular. Quando escreveu a respeito em 1989, com noventa anos de idade, disse que pensara que os investigadores eram representantes do partido e havia acatado suas exigências, o que havia terminado na acareação com Bukharin; depois, caso excepcional, saiu da prisão. A grande defesa política de Trotsky, porém, foi realizada pelo seu filho, Leon Sedov, que não só trabalhou para a criação das “comissões” na França e nos Estados Unidos (e no frustrado “contra-processo” suíço), mas também publicou, em finais de 1936, o Livro Vermelho dos Processos de Moscou, onde desmontou a falsidade de facto e jurídica dos processos, e analisou a lógica política existente por trás deles: “Quando Trotsky estava ainda na URSS, nas mãos da camarilha thermidoriana, Stalin tinha pensado que uma operação minuciosa finalizada no exílio era o melhor meio de se livrar de um bolchevique irredutível. Enganou-se, e não é necessário ser muito perspicaz para perceber o quanto esse erro o angustia. Hoje, diante da oposição renascida e em crescimento, faz fuzilar friamente bolcheviques, velhos dirigentes do partido e da IC, heróis da guerra civil. Stalin quer a cabeça de Trotsky, esse é seu objetivo principal. Irá até o fim para conseguí-lo. Qualquer ilusão contrária foi dissipada pelo Processo de Moscou. Stalin odéia Trotsky como representante vivo

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Victor Serge. Mémoires d'un Révolutionnaire. Paris, Seuil, 1978, p. 350. 66

Cf. Gérard Roche. Les intellectuels américains et la Commission Dewey. Cahiers Leon Trotsky n 42, Paris, ILT, julho 1990; e Alan Wald. La Commission Dewey 40 ans après. Cahiers Léon Trotsky nº 3, Paris, ILT, 1979. Em Moscou, a Comissão Dewey foi combatida através da “detenção” de um certo Donald L. Robinson, norte-americano, apresentado como “espião trotskista” vinculado ao Japão, aos trotskistas dos EUA e à própria Comissão. A reação nos EUA, em especial a investigação do jornalista Herbert Solow, demonstrou rapidamente que se tratava de uma montagem, que visava preparar o terreno para um processo contra a Comissão. “Robinson” nunca foi identificado.

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das idéias e tradições da Revolução de Outubro, que atrai todo o que resta de revolucionário na URSS. Para ter a sua cabeça, Stalin se livra às piores intrigas na Noruega, e prepara outras na Sociedade das Nações [a URSS tinha sido nela admitida a partrir de 1933, NDA], preparando o terreno para a extradição de Trotsky. É por isso que o governo soviético manifestou grande interesse pela colaboração policial internacional contra os terroristas, por ocasião do assassinato do rei da Iugoslávia” (grifo nosso).67

Lavrentiy Beria, resumo pessoal do terror stalinista

Para Trotsky, os "processos" e a repressão na União Soviética significaram o recrudescimento da sua perseguição. Depois da estadia na Turquia, foi expulso da França para a Noruega, e “internado” neste país em 1936 pelo governo "socialista" (social-democrata) de Trygve Lie, não sem antes ter sua casa queimada e parte dos seus arquivos roubados por um grupo nazista norueguês. Trotsky viu na ação uma provável conivência com a GPU russa, conhecedor do modo de agir indireto do serviço de Stalin, suspeita indiretamente confirmada pelo comentário posterior do chefe da Noruega ocupada por Hitler, o colaboracionista (nazista) Quisling ("Teria sido mais simples entregá-lo à embaixada russa. Provavelmente o teriam enviado a Moscou em uma urna..."). Trotsky enfrentava, na verdade, uma coalizão stalino-nazista com cobertura social-democrata: “Entre o ataque nazista e a saída de Trotsky da Noruega, a cumplicidade da URSS e a Alemanha nazista foi visível nas tomadas públicas de posição de ambas e das organizações políticas a elas vinculadas. Ambas afirmavam defender a Noruega e suas leis, contra um revolucionário sem fé nem lei, para os nazistas; contra um contra-revolucionário terrorista, para a URSS. Ambas estavam de acordo nas acusações, nas injúrias e nas ameaças, e também na reivindicação da expulsão de Trotsky da Noruega, que colocaria a possibilidade de um seqüestro pela URSS, onde o esperava um assassinato judicial”.68

A obtenção do asilo político no México deu a Trotsky o prazo suplementar que esperava da vida, por motivos políticos: "O desmoronamento das duas Internacionais trouxe um problema que nenhum dos seus chefes tem possibilidade de enfrentar. As particularidades de meu destino pessoal me colocaram diante desse problema, armado com uma séria experiência. Oferecer um método revolucionário à nova geração, por cima das cabeças dos chefes da II e III Internacionais, é uma tarefa que não tem, afora minha pessoa, homem nenhum que a possa cumprir (...) Preciso ainda de pelo menos cinco anos de trabalho ininterrupto para assegurar a transmissão desta herança", escreveu Trotsky em 1935.69 Ele teria quase exatos cinco anos de vida suplementar. As organizações da Oposição de Esquerda, que ainda se proclamavam parte da Internacional Comunista, foram sumariamente excluídas dos partidos comunistas: em alguns países, elas eram numericamente maiores do que as seções “oficiais” da Internacional: na Polônia (onde militava o futuro historiador e biógrafo de Trotsky, Isaac Deutscher, que

67

Leon Sedov. Le Livre Rouge des Procès de Moscou. Paris, La Pensée Sauvage, 1981 (1 ed., Paris, 1936), p. 9 e 123. 68

Pierre Broué. Op. Cit., p. 839. 69

Leon Trotsky. Diário do Exílio. São Paulo, Edições Populares, sdp, p. 53.

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representou o país no congresso de fundação da IV Internacional), na Tchecoslováquia, na Grécia, na Espanha, e inclusive em dois países latino-americanos: Cuba e Chile. Partidos ou grupos comunistas desses países aderiram às teses da Oposição de Esquerda. No conjunto, porém, a Oposição era extremamente minoritária. Nos anos 1930-1933, Alemanha foi o eixo de sua luta. Nas vésperas da ascensão nazista, Trotsky criticou a recusa da IC em propor uma Frente Única Operária dos partidos socialista e comunista contra o nazismo. Nos anos 1920, o nazismo ainda era chamado na imprensa mundial de esquerda de “fascismo alemão”. Nas condições sociais criadas pela crise econômica mundial iniciada em 1929, que determinaram um novo papel para o Estado na estabilidade da ordem capitalista, o nazismo foi adquirindo características peculiares e insuspeitas, até para um movimento de extrema reação política, bem que inicialmente inspiradas no “Estado corporativo” de Mussolini. A cegueira dos PCs diante do desastre político provocado pela vitória do nazismo foi completa. Na França, o jornal comunista L’Humanité, de 31 de janeiro de 1933 (um dia depois do empossamento de Hitler), incluía a notícia nas páginas internas, sob o título: “Resultados da política do mal menor: Hitler chanceler”. Nos dias posteriores, o francês Gabriel Péri e o italiano Palmiro Togliatti, dirigentes dos PCs, afirmaram que o acontecimento não era comparável à “Marcha sobre Roma” de Benito Mussolini, e prognosticaram “uma nova ascensão das massas” na Alemanha. Nos Cahiers du Communisme insistiu-se em que “o movimento hitleriano é portador de contradições sociais insuperáveis”, e em que o proletariado alemão não estava ainda derrotado. Até Révolution Prolétarienne, de tendência sindicalista revolucionária, demorou para noticiar a ascensão de Hitler, que se recusou a comentar, porque isto seria “ridículo, da parte daqueles que estão fora da ação (do teatro dos acontecimentos)”.

A consolidação do stalinismo na URSS na década de 1930 foi um processo permeado de crises, precedido por violentas lutas internas no PCUS entre frações que tinham combatido conjuntamente contra a Oposição de Esquerda, lutas que se resolveram ao preço de milhares de detenções, deportações, execuções e assassinatos, e concluíram com matanças maciças (para Edvard Radzinski foi “o Estado mais monstruoso de todos os tempos”);70 e pela criação de um quadro internacional reacionário (fascismo, nazismo, derrota da revolução no Oriente). Pretender analisar a burocratização da URSS a partir de frases de textos vinte anos anteriores à revolução, passando por cima desse processo histórico, seria dar prova de completa imbecilidade. A hipértrofia da burocracia estatal, de um modo geral, se desenvolve onde a luta pela existência individual ocupa um lugar dominante nas energias da sociedade. Sua função é aliviar os conflitos que se originam nessa luta, seu objetivo tirar privilégios dessa função. A burocracia da URSS teve como base a ausência de artigos de consumo, e a luta de todos contra todos que resultava dessa ausência. É contrário à verdade, e à mais leve sombra de inteligência, afirmar que a alienação dos trabalhadores soviéticos e a burocratização da URSS foram produtos da opção “ideológica” pela indústria pesada, em vez da indústria leve de consumo: a burocratização da URSS e do Partido Comunista já estavam mais do que

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A discussão sobre os “graus de monstruosidade” dos Estados ou governos não parece fazer maior sentido, em especial as comparações entre a URSS stalinista e a Alemanha nazista. Os relatórios do governo da URSS, abertos desde 1991, admitiam 800 mil executados na década de 1930, 1,7 milhões de vítimas de fome e privações (campos de trabalho), 389 mil vítimas de “reassentamentos forçados” (uma cifra ridiculamente baixa), totalizando aproximadamente três milhões de vítimas. Robert Conquest, no extremo oposto, calculou oito milhões de executados; 14 milhões de vítimas de fome e privações; dois milhões de deportados; um milhão de prisioneiros civis, para um total aproximado de 25 milhões de pessoas, cifra endossada por Vladimir Fédorovitch. Vadim Erlikman calculou o total de vítimas em nove milhões. Historiadores russos pós-URSS incluíram boa parte dos mortos na Segunda Guerra Mundial na conta do stalinismo (devido às suas responsabilidades político-militares), perfazendo uma cifra superior à de Conquest. Para Simon Sebag Montefiore, "talvez 20 milhões foram mortos; 28 milhões foram deportados, dos quais 18 milhões foram escravizados no gulag". A ponderação das cifras obedece a critérios ideológicos e políticos. As diversas contabilidades macabras deixam claro um Estado hiper-reacionário, embora a qualificação encubra ângulos ideológicos divergentes e contraditórios.

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consumadas antes que se desse o menor passo em direção à indústria pesada, através dos planos qüinquenais, e foi paralela à coletivização forçada da agricultura.

Dizer que a contra-revolução stalinista estava inscrita no Que Fazer?, os “Processos de Moscou” na interdição das frações no partido, e così via, seria ignorar a intervenção estrangeira contra a jovem república soviética, a aliança da social-democracia alemã com o Estado-Maior do exército do seu país, o próprio sistema imperialista mundial, responsável pela guerra, pelo atraso da sociedade russa e pela barbárie vitoriosa; seria negar a intervenção, na história, da vontade consciente sob a forma elementar da organização, apregoar a renúncia e a resignação. A burocracia surgiu da penúria interna da URSS, contra o pano de fundo do fracasso da revolução internacional. Seu nascimento foi resultado da pressão do capitalismo internacional (inclusive dos regimes “democráticos”) sobre a jovem república operária. Ela se apossou do poder através de um golpe de Estado (ou de uma série de golpes), à margem e contra a legalidade do partido bolchevique e da república soviética, golpe impulsionado no interior do poder pela fração stalinista, que desde muito cedo teve uma política consciente nesse sentido. É sob este ângulo que cabe questionar a suposta continuidade política existente entre bolchevismo e stalinismo. A evolução da URSS na década de 1930 apareceu como o complemento simétrico da tendência para o Estado depois chamado “totalitário” que caracterizava o mundo capitalista, mergulhado na crise econômica mundial, com sua principal conseqüência, o crescente intervencionismo estatal dito “keynesiano”. Nesse período, autores (ex-militantes de esquerda) como Bruno Rizzi (A Burocratização do Mundo) e James Burnham (este, um ex-trotskista, que escreveu o best seller The Managerial Revolution, publicado em 1940) teorizaram a convergência de stalinismo e nazi-fascismo, produtos de uma tendência histórica para a substituição da propriedade privada (capitalista) pelo poder burocrático.

Já foi dito que teria sido possível imaginar outra história da URSS (a sua destruição por pressão externa) na década de 1930, se o capitalismo mundial não tivesse estado em crise, podendo então se consagrar a hostilizar o regime soviético, o que não lhe foi possível devido aos seus próprios problemas. Mas também seria possível imaginar, de modo simetricamente oposto, o que teria sido do capitalismo em crise, com seus desempregados e massas de esfomeados,71 se a URSS tivesse sido uma força revolucionária e um exemplo internacional, não na propaganda, mas na realidade do seu desenvolvimento econômico e social. Na década de 1930, a URSS e o mundo capitalista se equilibraram neutralizando-se, devido às suas respectivas dificuldades internas, revelando (bem antes da “globalização”) a unidade orgânica e a interdependência de todos os setores do mundo contemporâneo, assim como a tendência para a unificação do seu ritmo histórico.72 A marcha em direção do stalinismo vitorioso reconheceu várias etapas, com suas especificidades. Eliminada a Oposição de Esquerda, liderada por Trotsky, em 1927, a fração stalinista, expressão política visível da burocracia emergente, apossou-se da titularidade do poder político em 1928/29, com a eliminação da Oposição de Direita (liderada por

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A generalização mundial da depressão econômica tornou a situação dos trabalhadores desesperante em todas as economias industriais, com um desemprego sem precedentes, e por mais tempo do que já se experimentara em qualquer época. No pior período da depressão (1932-1933), 22% a 23% da força de trabalho britânica e belga, 24% da sueca, 27% da norte-americana, 29% da austríaca, 31 % da norueguesa, 32% da dinamarquesa e nada menos que 44% da alemã, não tinham emprego. A recuperação depois de 1933 não reduziu o desemprego médio da década de 1930 abaixo de 16% a 17 % na Inglaterra e na Suécia. O único Estado ocidental que conseguiu eliminar o desemprego foi a Alemanha nazista, graças ao seu programa militarista, entre 1933 e 1938. A previdência pública na forma de seguro social ou auxílio-desemprego não existia, como nos EUA, ou era parca, sobretudo para os desempregados de longo prazo. 72

Na década de 1930, no meio da depressão econômica, a liderança de Stalin ganhou projeção mundial, ao lado do crescimento econômico da URSS, contraposto ao retrocesso capitalista. Os esboços biográfico-jornalísticos de Stalin redigidos no Ocidente levaram essa marca. Christian Windecke (Stalin, o Czar Vermelho) publicado em 1933, sustentou a tese de que, depois do agito revolucionário, Rússia retomara a política do velho regime absolutista.

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Bukharin-Rykov-Tomski),73 favorecedora mais ou menos explícita das tendências pró-capitalistas localizadas principalmente no campo (kulaki) e também na cidade (nepmen). O aparente “progresso” representado pela derrota da fração de Bukharin anulou-se pelo fato daquela contribuir para a consolidação do monolitismo staliniano.

Em finais da década de 1920 acentuou-se a crise do abastecimento de trigo para as cidades: os kulaki seguravam os estoques, ou plantavam milho no seu lugar. Em vez de uma transformação gradual das relações campo-cidade (como preconizava a Oposição de Esquerda desde 1923) Stalin deu a ordem a 27 de dezembro de 1929: “Para o diabo com a NEP!”; “Destruir o kulak como classe.” Mas a “coletivização forçada” do campo impulsionada por Stalin não foi, obviamente, voluntária, nem podia sê-lo: a indústria era incapaz de fornecer as máquinas que convenceriam o camponês a aderir às explorações coletivas. Por isso, apesar de certo entusiasmo da parte dos camponeses pobres e da juventude operária, não era possível falar em um “Outubro do campo”, como postulou o ex-aliado de Trotsky, Christian Rakovsky (e afirmou posteriormente Issac Deutscher). A “coletivização” foi administrativa, burocrática e violenta: os camponeses matavam o gado para não entregá-lo, as perdas foram enormes, houve aproximadamente dez milhões de deportados; a fome da Ucrânia, em 1932-1933, causou aproximadamente 4,5 milhões de mortes, além das três milhões de vítimas em outras regiões da URSS. Do processo surgiram os kolkhozes, cooperativas de produção controladas através de “estações” de maquinário agrícola e tratores. E, em menor escala, os sovkhozes, fazendas coletivas piloto, que englobaram só 4% dos camponeses: nos kolkhozes faltava material, a burocracia tornava pesados e demorados todos os processos. Os kolkhozianos acabam desenvolvendo uma fixação nas suas pequenas parcelas, o que dificultaria mais tarde o aprofundamento da coletivização.

O conteúdo burocrático (contra-revolucionário) da eliminação da “oposição direitista” explica o paradoxo constatado por Michal Reiman: “As camadas governantes dos estados industriais [capitalistas, NdA], que apenas meio ano antes se negaram a favorecer uma eventual vitória da orientação moderada na URSS, se mostraram dispostas - ironias do destino - a financiar o despotismo de Stalin. Os órgãos do planejamento puderam contar com relações econômicas [internacionais] de maior amplidão”.74 Isso não foi apenas uma orientação ditada pela crise econômica mundial (que dividiu o mundo capitalista em blocos econômicos autárquicos, que concorriam de modo acirrado no mercado mundial, tornado mais estreito pela crise, assim como pelo espaço econômico da URSS), mas também o fruto de uma escolha política, que favorecia uma orientação internacional (da URSS) que se afastava da luta pela revolução

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Mikhaíl Pávlovitch Tomski (1880-1936) nasceu em Kolpino, perto de São Petersburgo. Era operário industrial, tendo sido demitido de sua fábrica em São Petersburgo por organizar um sindicato. Aderiu ao POSDR em 1904, unindo-se à fração bolchevique. Participou na Estônia da Revolução de 1905, criando o Soviet de Revel e o Sindicato de Metalúrgicos de Revel. Foi preso e deportado a Siberia. Fugiu, voltando a São Petersburgo. Nos anos sucessivos, foi presidente do Sindicato de Tipógrafos. De novo preso em 1908, exilou-se na França, voltando à Rússia em 1909, sendo novamente preso e condenado a cinco anos de trabalhos forçados. Anistiado pela Revolução de Fevereiro de 1917, participou em Moscou da Revolução de Outubro. Foi o principal dirigente do Conselho Central de Sindicatos da Rússia entre 1917 e 1929. Membro do Comitê Central do Partido Comunista (bolchevique) desde 1919, do Orgburo desde 1921, e do Politburo desde abril de 1922. Em 1920 foi eleito secretário geral da Internacional Sindical Vermelha. Aliado de Bukharin e Rykov na ala “moderada” (ou de direita) do Partido na década de 1920, esta se aliou a Stalin contra Trotsky, em 1924. Depois da derrota da esquerda “trotskista”, a “direita” foi derrotada por Stalin no Plenum do Comitê Central de abril de 1929: Tomski foi forçado à dimissão de seus cargos de direção sindical soviética, sendo “reciclado” na indústria química. Destituído do Politburo em julho de 1930, permaneceu no Comitê Central até o XVII Congresso, de janeiro de 1934, quando foi novamente “degradado”. Dirigiu a Editora Estatal desde 1932 até agosto de 1936, quando foi acusado de terrorismo no primeiro Processo de Moscou. Suicidou-se antes de ser detido pela NKVD, o que não impediu que fosse acusado postumamente (!), por “alta traição”, no terceiro Processo (1938), em que foram condenados e executados seus antigos companheiros de fração, Bukharin e Rykov. Em 1988, o governo Gorbachev levantou todas as inculpações contra Tomski, 52 anos depois de sua morte. 74

Michal Reiman. El Nacimento del Stalinismo. Barcelona, Grijalbo, 1982, p. 82.

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mundial, tirando o “fantasma do comunismo” (que poderia ganhar carne e osso graças à crise mundial) das preocupações imediatas dos capitalistas. Assim aplainava-se o caminho que levou, primeiro, ao Pacto Laval-Stalin,75 depois ao Pacto Hitler-Stalin e, depois ainda, à aliança da URSS com a Inglaterra e os EUA (na Segunda Guerra Mundial), isto é, à transformação da URSS, até então isolada, em partner internacional das grandes potências capitalistas.

Todas as medidas “progressistas” adotadas pela burocracia (que foram pretexto dos stalinistas e “amigos da URSS” de todos os tempos e latitudes para justificar sua brutalidade), tais como a expropriação da propriedade privada agrária e a centralização das forças produtivas através do planejamento, foram realizadas levando em conta a defesa do poder e dos privilégios da burocracia. Assim, o primeiro “plano qüinqüenal” traçou objetivos mirabolantes: duplicar a produção de ferro, quintuplicar a de eletricidade, elevar a produção industrial total em 250%. Nenhum país, nem no período mais violento da Revolução Industrial, tinha crescido nesse ritmo (os objetivos do plano não foram atingidos). Os enormes custos do plano foram financiados pela inflação (queda do salário real), pelo saque do campesinato, pela diferenciação salarial em nome da emulação, na verdade um retorno ao “salário por peças” (movimento stakhanovista) assim como pela severidade na disciplina do trabalho.

"Trabalhe duro, como ensina Stalin"

A Oposição de Esquerda havia proposto uma economia planejada, em que a primeira etapa do desenvolvimento fosse lenta, mas equilibrada, para assimilar de modo mais rico o que a técnica e a cultura mundiais haviam criado. Isto permitiria que numa etapa posterior houvesse um desenvolvimento vertiginoso. O desenvolvimento econômico soviético foi, em vez disso, um processo de graves crises de produção, que se acentuaram pela crescente diferenciação funcional e social da burocracia. Paralelamente, iniciou-se a convergência profunda com as potências capitalistas na preservação da ordem mundial: em 1933, a URSS foi admitida como membro pleno da Sociedade das Nações (SDN), a mesma que Lênin, logo depois da Grande Guerra, tinha definido como um “covil de bandidos”. O resultado duradouro da super-industrialização, foi a super-burocratização do aparelho produtivo, com empresas gigantes de dois tipos, “combinados” e trusts (em 1940, 640 trusts geriam 573.000 estabelecimentos).

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Em 1933, enquanto não ficavam claras as intenções de Hitler, Stalin manteve uma política de boa vizinhança com a Alemanha nazista, e chegou a renovar o tratado de Locarno, assinado em 1926. Em 1934, com o fracasso da conferência européia sobre desarmamento, Alemanha retirou-se da Liga das Nações e iniciou o seu rearmamento. O chanceler soviético Litvinov, rompendo uma tradição de oposição à política armamentista das potências imperialistas, fez declarações favoráveis ao rearmamento francês. Em maio de 1935, foi assinado o Pacto Stalin-Laval (ministro das relações exteriores do governo Flandrin), que estabelecia um compromisso de ajuda mútua em caso de agressão e no qual Stalin “compreendia e apoiava os esforços da França em matéria de defesa nacional”.

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Cada ramo industrial era controlado por um ministério especial, perfazendo 52 ministérios industriais no total; o comércio controlado pelo Estado passou de 13% das lojas (1929) para 75% (1937). As cifras, impressionantes per se, o são ainda mais quando se leva em conta que esta supercentralização foi realizada através de um sistema que não tolerava quaisquer meios de controle democrático. Ficava assim colocada a base da “centralizada” anarquia produtiva da URSS, que se tornaria evidente (e cada vez mais destrutiva) nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial.76 Quanto à expropriação do campesinato, ela foi realizada de maneira tão brutal que liquidou a aliança operário-camponesa, base histórica da Revolução de Outubro, substituída pelo poder burocrático, equilíbrio cuja ruptura foi paga por uma burocratização na economia camponesa, e nas relações agrárias. equivalente àquela existente na indústria: “Após dois anos de coletivização, existiam kolkhozes, mas não existiam os kolhkozianos, e nessas condições era inevitável que o Comitê Central se orientasse para uma interpretação cada vez mais autoritária da palavra de ordem do ‘reforçamento econômico-organizativo dos kolkhozes’. A coletivização desembocou numa estrada tal que seu fruto seria decidido quase que exclusivamente pelas iniciativas adotadas pelo grupo dirigente do partido, e não pela evolução geral do mundo kholkhoziano. Na contraditória fórmula da ‘revolução pelo alto’, o significado do adjetivo ampliara-se irremediavelmente, até o ponto de esmagar e eliminar o do substantivo”.77

Stalin, em pose típica (e retocada)

No meio de um aguçamento brutal da diferenciação social, a URSS experimentou um forte crescimento econômico, especialmente na indústria, na década de 1930, mais espetacular ainda quando contrastado com o retrocesso econômico das principais potências capitalistas (EUA, Inglaterra, França, e inclusive Alemanha, em que pese o retrocesso do desemprego determinado pela política do regime de Hitler). A exaltação desse crescimento foi realizada, no exterior, pelo aparelho internacional stalinista e seus “amigos”, ocultando (de modo consciente ou inconsciente) a repressão política e o massacre social em que se baseava. Trotsky, certamente, era consciente delas, e não as ocultava (muito pelo contrário), o que não lhe impediu escrever, em A Revolução Traída, de 1936: “Os imensos resultados obtidos pela indústria, o início cheio de promessas de um surto na agricultura, o extraordinário crescimento das velhas cidades industriais, a criação de novas, o rápido aumento do número de operários, a elevação do nível cultural e das necessidades, são os resultados incontestáveis da Revolução de Outubro, na qual os profetas do velho mundo pretenderam ver o túmulo da civilização. Já não há necessidade de discutir com os senhores economistas burgueses: o socialismo demonstrou o seu direito à vitória, não só nas páginas de O Capital, mas numa arena

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Cf. Pierre Gilormini. Histoire Économique de l’URSS. Paris, Marketing, 1974; Alec Nove. Historia Económica de la Unión Soviética. Madri, Alianza, 1973. 77

Fabio Bettanin. A Coletivização da Terra na URSS. Stalin e a “revolução do alto” (1922-1933). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981, p. 251.

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econômica a cobrir a sexta parte da superfície do globo; não na linguagem da dialética, mas na do ferro, do cimento e da eletricidade. Mesmo que a URSS sucumbisse sob os golpes do exterior e pelos erros dos seus dirigentes - o que, firmemente o esperamos, ser-nos-á poupado - continuaria, como prova para o futuro, o fato indestrutível de que só a revolução proletária permitiu a um país atrasado obter em menos de vinte anos resultados sem precedentes na história. Assim se encerra o debate com os reformistas no movimento operário. Poderemos, ainda que por um momento, comparar a sua agitação de ratos à obra titânica de um povo chamado a uma nova vida? Se, em 1918, a social-democracia alemã tivesse aproveitado o poder que os operários lhe confiavam para consumar a revolução socialista, e não para salvar o capitalismo, não seria difícil conceber, apoiando-nos no exemplo russo, o invencível poder econômico que seria hoje o do maciço socialista da Europa central e oriental e de uma parte considerável da Ásia. Os povos do mundo terão ainda que pagar, com novas guerras e novas revoluções, os crimes históricos do reformismo”.78

Seria fácil acusar Trotsky de otimismo ingênuo, ou até de completa cegueira política, a partir desse fragmento, tirando-o de seu contexto. Essas linhas (escritas em 1935) precederam o terror em massa (1936-1938): a repressão política era ainda, de algum modo, “seletiva”. Mas foram posteriores à brutalidade da coletivização forçada do agro (incluída a “grande fome” na Ucrânia natal de Trotsky), que o autor certamente conhecia, o que torna indigerível a menção ao “início cheio de promessas de um surto na agricultura” – sem falar na violência social do Plano Qüinqüenal da indústria contra os operários fabris. Contra o pano de fundo da vitória do fascismo (ou seja, da derrota da revolução proletária na Europa) Trotsky apreciava a atitude dos operários soviéticos diante da burocracia: “Não há dúvida de que a imensa maioria dos operários soviéticos está descontente com a burocracia, e que um setor considerável, certamente não o pior, a odeia. Contudo, não se deve somente à repressão o fato de que esta insatisfação não assuma formas massivas e violentas; os operários temem aplainar o caminho para o inimigo de classe se derrubarem a burocracia. As relações entre a burocracia e a classe operária são muito mais complexas do que supõem os democratas superficiais. Os operários soviéticos já teriam acertado as contas com o despotismo do aparato se fossem outras as perspectivas que se abrem diante deles - se o horizonte ocidental, em vez do tom pardo do fascismo, se incendiasse com o vermelho da revolução. Enquanto isto não ocorre, o proletariado, rangendo os dentes, sustenta (‘agüenta’) a burocracia e, neste sentido, a reconhece como porta-voz da ditadura do proletariado. Numa conversa pessoal, nenhum operário soviético economizará xingamentos para qualificar a burocracia. Mas nenhum deles admitirá que a contra-revolução já aconteceu”.79 A URSS, sob Stalin, virou um país industrial, com uma forte indústria pesada, mas também com uma indústria de bens de consumo atrasada. As principais conseqüências foram o rápido ritmo da urbanização, o crescimento da própria burocracia, a diferenciação salarial, a severidade da disciplina do trabalho, que descaracterizaram o regime como “socialista”, em qualquer significado histórico desse termo.

No plano internacional, a política ultra-esquerdista (dita do “terceiro período”) do stalinismo começou com a fracassada insurreição de Cantão, na China, em 1927. Na Europa, o KPD (partido comunista) alemão caracterizou à social-democracia como “social-fascismo”, numa negativa da Frente Única dos partidos operários contra o nazismo. Essa política foi levada adiante em todos os países: criaram-se “sindicatos vermelhos”, que organizavam só os setores operários diretamente influenciados pelos partidos comunistas, anunciou-se o “afundamento iminente do capitalismo”, impulsionou-se o aventureirismo em todas suas formas. O balanço foi dramático: as organizações de massas controladas pelos partidos comunistas afundaram (a CGTU na França, o TUUL nos EUA, a NMM na Inglaterra). Nos países balcânicos, os jovens

78

Leon Trotsky. A Revolução Traída, cit., p.57. 79

Leon Trotsky. A natureza de classe da URSS. A Revolução Russa. São Paulo, Informação, 1989, p. 53.

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partidos comunistas foram quase exterminados. Na Europa ocidental, eles viraram uma espécie de seita: assim foi na Bélgica, na Inglaterra, na Espanha (onde diversas outras organizações comunistas eram mais fortes que os PCs), na França (onde o PCF tinha 25 mil membros em 1933, um quarto do seu efetivo na segunda metade da década de 1920). Nos países “periféricos”, o nacionalismo e os movimentos democratizantes (por exemplo, o APRA peruano, ou a UCR argentina) também foram qualificados de “fascistas”, o que levou os partidos comunistas coloniais e semicoloniais ao isolamento político e organizativo. A Internacional Comunista ficou reduzida a 600 mil membros, sem contar o PCUS: os seus partidos viraram “monolíticos”, como Stalin pretendia, com dirigentes “incondicionais”, que aceitavam tudo o que vinha “de cima”, inclusive as explicações mais inacreditáveis das derrotas. “Monolíticos”, sim, mas incapazes de intervir revolucionariamente na crise mundial do capitalismo da década de 1930.

Os dirigentes da URSS, na verdade, desencorajavam movimentos revolucionários no exterior, que poderiam desestabilizá-los.80 As correntes “de esquerda” que surgiam da social-democracia e do nacionalismo não tiveram, por isso, quase nenhuma influência dos partidos comunistas (em que pese os congressos mundiais “antiimperialistas”, como o de Frankfurt, animado por Willi Munzenberg). Em contrapartida, o capitalismo mundial parecia ter renunciado momentaneamente a intervir diretamente contra a URSS (intervenção que tinha se desenhado depois da ruptura diplomática anglo-russa de 1927) pelo menos até a consolidação da Alemanha nazista. Trotsky, desde 1933, qualificou Hitler de “super-Wrangel” (do nome do chefe do campo “branco” da guerra civil de 1918-1921) e de “ponta-de-lança do imperialismo mundial”: os dirigentes stalinistas qualificaram então Trotsky de “social-fascista”, “belicista”, na verdade preocupados em buscar um statu quo com o “novo regime” da Alemanha. Ironia do destino, os chefes do Exército Vermelho, que criticavam Stalin pela escassa preparação da URSS frente a uma potencial guerra contra a Alemanha nazista, foram condenados como espiões alemães, em uma falsificação de documentos da qual participaram os próprios nazistas. Os mecanismos da falsificação foram postos à luz por Leopold Trepper, detido durante a Segunda Guerra pela Gestapo. Seu captor, Hermann Göering, contou-lhe como havia forjado a falsa acusação com Heydrich, comandante das SS. Para isso, contaram com o apoio de um ex-general russo branco, Skoblin (quem, na época, trabalhava para a GPU-NVKD) que fez a denúncia de que Tukhachevsky preparava um complô. Rapidamente juntaram provas falsas e fizeram com que o material chegasse a Stalin, através do governo da Frente Popular tcheca, presidido por Benès.

Na política internacional, os expurgos stalinistas coincidiram com a adoção, pela URSS, da política de “segurança coletiva”, e da busca de uma aliança com o bloco franco-britânico (Pacto Laval-Stalin), assim como com a política das Frentes Populares, adotada pelos partidos e a Internacional Comunista, que revigoraram a teoria da “revolução por etapas”, dando-lhe caráter universal (ou seja, não só para os países “atrasados”), agora em nome das “alianças amplas contra o fascismo” (incluída a “burguesia progressista”) ou, no caso dos países periféricos, “contra o feudalismo” (Trotsky caracterizou as Frentes Populares como “a aliança dos partidos operários com a sombra da burguesia”). Depois da “limpeza” do Exército Vermelho, Hitler proclamou: “Neutralizamos a Rússia por dez anos”. A partir disto, pôde preparar a conquista da Tchecoslováquia (1938) e a guerra na frente ocidental (1939). A decapitação do Exército Vermelho preparou assim as condições para o Pacto Hitler-Stalin de 1939. Em 1939, antes desse pacto, Trotsky analisou as causas das mudanças diplomáticas da burocracia stalinista: “Em 1933, Stalin tentou antes de mais nada tornar-se aliado de Hitler.

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Isto inclui a “insurreição de 1935” no Brasil, realizada com um programa capitalista, e fadada ao fracasso, menos pelo “erro de cálculo” acerca da influência de Luiz Carlos Prestes no Exército brasileiro, e muito mais pelo fato de que a fantansmagórica “burguesia progressista” brasileira não iria, como ponderou Mário Pedrosa, aceitar uma aliança e uma ação política comandadas por “comunistas armados”.

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Mas Hitler rechaçou sua mão estendida, já que, para fazer-se amigo da Inglaterra, apresentava-se como o homem que salvaria a Alemanha e a Europa do bolchevismo. Em conseqüência, Stalin se deu a tarefa de demonstrar à Europa capitalista que Hitler não lhe fazia falta, que o bolchevismo não possuía nenhum perigo, que o governo do Kremlin era um animal doméstico disposto a ficar de joelhos para pedir um favor. Assim, ao alijar-se de Hitler, ou mais exatamente, ao ser por este rechaçado, Stalin converteu-se gradualmente num lacaio do imperialismo mais rico. Esta é a origem das súbitas genuflexões do bando totalitário do Kremlin ante a maltratada democracia burguesa, da idealização estupidamente falsa da Liga das Nações, das ‘frentes populares’ que estrangularam a revolução espanhola, da substituição da luta de classes real pelas declamações contra o fascismo”.

Em dezembro de 1936 firmou-se o pacto anti-Komintern, entre Alemanha, Itália e Japão, que invadira a China. A princípios de 1938, o envio de armas da URSS à Espanha começou a se reduzir: os envios soviéticos continuaram sendo o apoio principal à República, embora chegassem como se quisessem evitar a derrota mais do que garantir a vitória. A ameaça das potências do Eixo e a impotência da diplomacia francesa e britânica inquitevam o Kremlin. Stalin dirigiu seus esforços para uma nova aproximação com a Alemanha. Se França e Inglaterra se mostravam reticentes em estabelecer uma aliança com a URSS, Alemanha poderia ser a nova candidata. A meados de março de 1938, Hitler havia entrado em Viena e anexado Áustria ao Terceiro Reich. Stalin aproximava-se da Alemanha: em julho de 1938, o chanceler russo Litvinov havia expressado para diplomáticos alemães o desejo da URSS de abandonar a guerra espanhola. A última batalha do Ebro atrasou o avanço das tropas franquistas durantes alguns meses, mas seu fracasso final abriu as portas da Catalunha aos falangistas espanhóis, com pouca resistência organizada. O avanço das tropas franquistas foi rápido: liquidada a revolução, apenas enfrentaram as massas desmoralizadas pela eliminação das conquistas revolucionárias. Depois da batalha do Ebro, entre julho e novembro de 1938, cessou a ajuda soviética à Espanha. O governo republicano de Negrín enviou uma carta desesperada a Stalin solicitando novos envíos, sem resposta. As esperanças de uma intervenção militar da França e Grã-Bretanha em defesa da República dissiparam-se definitivamente em setembro de 1938, quando se assinou o “Acordo de Munique” entre as duas potências “democráticas” e os nazi-fascistas (Hitler e Mussolini). O destino da República Espanhola estava sentenciado. A carta espanhola já estava jogada. A 18 de julho, no segundo aniversário do início da guerra civil, o presidente da República, Azaña, pronunciou um discurso pedindo “paz, piedade, perdão”. Com os Acordos de Munique entre as “democracias” européias e as potências fascistas, em setembro de 1938, o bloco franco-britânico acreditou ter “apaziguado” Hitler e, como gesto de boa vontade, rompeu relações diplomáticas com o governo espanhol republicano de Negrín, reconhecendo o governo de Franco. As negociações entre Stalin e Hitler já estavam sendo levadas a cabo, e as armas soviéticas deixaram de ser enviadas ao governo republicano. O último episódio da revolução européia da década de 1930 se fechava. Para Trotsky, con a derrota da República e da revolução espanhola, o caminho estava aberto para a Segunda Guerra Mundial.

Em 1939, após o fracasso das negociações URSS/França-Inglaterra, Stalin celebrou o pacto com Hitler, declarando seu apoio ao regime contra-revolucionário alemão: “Não se tratou apenas de um pacto de não-agressão, mas de uma delimitação de esferas de influência, de um acordo para dividir a Europa Oriental. Stalin reconhecia que a guerra entre Alemanha e o Ocidente era inevitável”.81 O pacto foi assinado a 23 de agosto de 1939, logo depois da derrota da Espanha republicana. As direções dos partidos comunistas de todo o mundo declararam que o acordo era um exemplo de exploração das contradições interimperialistas. Foram retirados de todos os cinemas e teatros da URSS os filmes e obras antifascistas. A NKVD executou a maioria dos

81

J. P. Nettl. Bilan de l’URSS 1917-1967. Paris, Seuil, 1967, p. 162.

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dirigentes do Partido Comunista Alemão (KPD) que se encontrava em seu país, exilada: Hugo Eberlein, Hans Kiepenberger, Hermann Remmele, Heinz Neuman e Fritz Hekert. Outros militantes comunistas alemães foram expulsos da URSS, e entregues à Gestapo, para morrerem nos campos de extermínio da Alemanha nazista. O Pacto Hitler- Stalin (ou Pacto Molotov-82Ribbentrop, do nome dos chanceleres que o assinaram) não foi, por outro lado, apenas político: as importações soviéticas na Alemanha passaram (no biênio de vigência do pacto, 1939-1940) de 56,4 para 419,1 (milhões de rublos), e as exportações de 61,6 para 736,5.83 Trotsky denunciou a ilusão stalinista de uma neutralização duradoura da Alemanha mediante o pacto, estabelecendo a inevitabilidade da agressão da URSS pelo nazismo hitleriano, denúncia reafirmada em seu último documento publicado em vida, o Manifesto de Emergência da IV Internacional (de maio de 1940, que antecipou a iminência da invasão alemã da URSS).

Analistas do mundo inteiro anunciavam a convergência vitoriosa dos “totalitarismos fascista e comunista”; Trotsky não perdeu de vista a diversa natureza de ambos estados, e as contradições políticas e nacionais em que estavam envolvidos, um desafio aos que caracterizam a vitória de Stalin sobre Trotsky como produto da superior realpolitik do primeiro: o “realista” Stalin foi apanhado de surpresa pela invasão nazista de julho de 1941, na iminência da qual não conseguiu acreditar nem mesmo após os informes da rede de espionagem soviética.84 Quando finalmente Hitler invadiu a Rússia em 1941, infrigiu no começo terríveis derrotas ao Exército Vermelho, que demorou meses para se recompor, às custas de milhões de mortos e prisioneiros. Os novos comandos ascendidos depois dos expurgos se destacavam por seu servilismo ao grande chefe. O massacre da cúpula do Exército foi portanto um fator de enfraquecimento da URSS, uma aposta em que se punha em jogo a própria existência do Estado (da URSS).

Vyacheslav Molotov

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Vyacheslav Mikhailovich Skriabine (Molotov) (1890-1986) tornou-se bolchevique em 1909, dirigiu o POSDR em Petrogrado; antes da chegada de Lênin, em abril de 1917, foi redator chefe da Pravda. Em 1920 ingressou no Comitê Central do PCUS, foi dirigente da Internacional Comunista no período 1928-1934. Um dos principais colaboradores de Stalin (que o chamava Molotstein, fazendo alusão à sua origem judia) foi Ministro de Relações Exteriores da URSS no período 1939-1949 e 1953-1956, em que pese sua mulher estar detida em um campo de trabalho do gulag. A “bomba Molotov” (coquetel molotov) não foi inventada por ele: a denominação teve sua origem na guerra russo-finlandesa de 1940 quando Molotov comunicou por rádio à população da Finlândia que o exército russo não estava bombardeando, mas enviando alimentos. Sarcasticamente, os finlandeses chamaram às bombas russas «cestas de comida Molotov». O exército finlandês declarou que se Molotov punha a comida, ele “poria os coquetéis”, ou seja, as bombas incendiárias depois conhecidas por esse nome. Em 1957, foi afastado da direção do partido em virtude da sua oposição à "destalinização" kruscheviana, e nomeado embaixador da URSS na Mongólia, cargo que exerceu até 1960; depois foi indicado para chefiar a representação da URSS na Organização Internacional de Energia Atômica sediada em Viena, cargo em que permaneceu até 1962, quando foi excluído do PCUS. Foi readmitido no partido em 1984, já nonagenário e pouco mais de um ano antes de sua morte. 83

Alec Nove. Historia Económica de la Unión Soviética. Madri, Alianza, 1973. 84

Cf. Leopold Trepper. O Grande Jogo. Lisboa, Horizonte, 1977.

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Quase todos os “revolucionários profissionais” da época pré-revolucionária e da guerra civil, a maioria dos companheiros de Lênin, haviam sido assassinados. Seu lugar no partido foi ocupado por homens que ingressaram no período stalinista: era o início da carreira dos Brezhnev, Kossyguin, Podgorny, Gromyko, que se uniram aos “homens de Stalin” (Beria, Malenkov, Postrebychev). Era esta uma nova expressão da (suposta) lei histórica de que “todas as revoluções devoram os seus filhos?”. Essa idéia vulgar (que não é “lei” em absoluto) é um obstáculo ao conhecimento e à reflexão. O “culto à personalidade” de Stalin desenvolveu-se contra o pano de fundo da destruição de parte das conquistas sociais da revolução e do reforçamento sem precedentes da disciplina do trabalho. Analisar os expurgos a partir do seu “discurso” (a luta da burocracia stalinista, que teria sido, afinal das contas, sincera, contra o “perigo alemão”, da qual os “processos” teriam sido a “manifestação excessiva”) é insustentável: o massacre stalinista visou (e conseguiu) aterrorizar as massas (na URSS e alhures) e destruir as origens revolucionárias do regime da URSS,85 e nada tiveram a ver com uma política anti-nazista (durante a vigência do Pacto Hitler-Stalin, Trotsky passou bruscamente a ser denunciado como agente do imperialismo anglo-francês, e até dos EUA...).

No meio desses acontecimentos, Trotsky buscou definir as causas da tensão interna de uma “sociedade socialista” isolada. Sua análise acerca das origens e dinâmica da burocracia transformou-se em referência obrigatória para todos os debates acerca da natureza da URSS, e para todas as análises acerca da burocratização das organizações sindicais, políticas e estatais. Para isso, levou em conta a situação da URSS e sua camada dirigente, seu caráter contraditório e transitório, para determinar as alternativas históricas: “Duas tendências opostas crescem no seio do regime: desenvolvendo as forças produtivas - ao contrário do capitalismo estagnante - são criados os fundamentos econômicos do socialismo; e levando ao extremo, por complacência em relação aos dirigentes, as normas burguesas de repartição, preparam uma restauração capitalista. A contradição entre as formas de propriedade e as normas de repartição não pode crescer indefinidamente. Ou as normas buguesas se estenderão, de uma ou de outra maneira, aos meios de produção, ou as normas socialistas terão de ser concedidas à propriedade social”.86 As chances da revolução antiburocrática, por sua vez, não repousavam na idealização das massas soviéticas, exaustas e apáticas, mas nas tensões decorrentes da instabilidade do domínio burocrático numa sociedade na qual o capital fora expropriado: “Na própria sociedade dita ‘sem classes’ existem, sem dúvida, os mesmos grupos que na burocracia, mas com uma expressão menos clara e em proporção inversa: as tendências capitalistas conscientes, próprias, sobretudo, da parte favorecida dos kolkhozianos, são a característica de uma ínfima minoria da população. Mas encontram uma larga base na tendência pequeno-burguesa à acumulação pessoal que nasce da miséria geral e que a burocracia encoraja conscientemente. Coroando este sistema de antagonismos correntes, que destróem cada vez mais o seu equilíbrio social, procura manter-se, por métodos de terror, uma oligarquia termidoriana que, agora, se reduz sobretudo à camarilha bonapartista de Stalin”. A sua formulação mais sintética encontra-se no documento que, em 1938, Trotsky redigiu para a IV Internacional: “A União Soviética saiu da Revolução de Outubro como um Estado Operário. A estatização dos meios de produção, condição necessária do desenvolvimento socialista, abriu a possibilidade de um crescimento rápido das forças produtivas. O aparelho do Estado Operário sofreu entretanto uma degenerescência completa, transformando-se de instrumento da classe operária em instrumento de violência burocrática contra a classe operária e, cada vez mais, em instrumento de sabotagem da economia. A

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Para Costanzo Preve (Storia Critica del Marxismo. Napoli, La Città del Sole, 2007) a função dos expurgos e do terror stalinista teria sido, no essencial, a promoção social (da burocracia), garantindo a força do seu regime através da renovação regular de seu aparelho “de baixo para cima” (sic). O stalinismo não teria sido um bonapartismo, mas uma variante tardia (e melhor sucedida) do jacobinismo. 86

Leon Trotsky. A Revolução Traída. Lisboa, Antídoto, 1977, p. 244.

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burocratização de um Estado Operário atrasado e isolado e a transformação da burocracia em casta privilegiada, todo poderosa, são a refutação mais convincente - não somente teórica, mas prática - da teoria do socialismo em um só país”.

Stalin, versão “(sur)realismo socialista”

A análise de Trotsky foi controvertida. A caracterização da URSS como Estado Operário “degenerado” parecia contraditória, por embutir a própria contradição real, a refração da luta de classes mundial em um Estado “socialista” isolado : um Estado em cuja base se encontravam (instável, parcial e transitoriamente) as conquistas históricas da revolução proletária de 1917, mas politicamente dirigido por uma burocracia, órgão da burguesia mundial no interior do Estado Operário: “O prognóstico político tem um caráter de alternativa: ou a burocracia, tornando-se cada vez mais o órgão da burguesia mundial nos Estados Operários, destrói as novas formas de propriedade e lança o país no capitalismo, ou a classe operária esmaga a burocracia e abre uma via para o socialismo”. Nas décadas ulteriores, a primeira alternativa foi levando a melhor sobre a segunda, esta, no entanto, também presente e expressa em diversas lutas contra o domínio burocrático, não só na URSS, mas, sobretudo, nos países que constituíriam, depois da Segunda Guerra Mundial, o chamado “campo socialista”. Trotsky se ateve à sua caraterização ao longo dos diversos zigue-zagues da burocracia, inclusive aqueles “de esquerda”, que levaram alguns de seus contemporâneos, e historiadores posteriores a falar num “segundo Outubro”, ou numa “virada à esquerda” (quando Stalin atacou a direita do PCUS). Trotsky não se iludiu a respeito: “Os últimos processos [refere-se aos “Processos de Moscou”+ foram um golpe contra a esquerda. Isto também é verdadeiro em relação à repressão contra os chefes da oposição de direita, pois, do ponto de vista dos interesses e tendências da burocracia, o grupo de direita do velho partido bolchevique representava um perigo de esquerda. O fato da camarilha bonapartista, que teme também seus aliados de direita, ficar constrangida a recorrer, para assegurar o seu domínio, ao extermínio quase geral da velha geração de bolcheviques, é a prova indiscutível da vitalidade das tradições revolucionárias nas massas e do seu descontentamento crescente”.

A burocratizaçao não foi produto de conspirações de cúpula (embora as incluísse), mas do processo concreto da revolução proletária (e da contra-revolução burguesa) em dadas condições históricas. A conclusão central de Trotsky foi: “Um Estado saído da revolução operária existe pela primeira vez na história. As etapas que deve percorrer não estão escritas em qualquer lado. Os teóricos e os construtores da URSS esperavam, é verdade, que o sistema sutil e claro dos soviets permitisse ao Estado transformar-se pacificamente, dissolver-se e desaparecer, à medida que a sociedade realizasse a sua evolução econômica e cultural. A realidade mostrou-se mais complexa do que a teoria. O proletariado de um país atrasado teve de fazer a primeira revolução socialista. Este privilégio histórico terá de ser pago com uma segunda revolução, esta contra o absolutismo burocrático”.87 Em vez de se encaminhar para 87

Idem, p. 280.

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uma sociedade em que “a administração dos homens é substituída pela administração das coisas”, fora vitorioso “o burocratismo *como+ fenômeno ou sistema de adminstração dos homens e das coisas” (O Novo Curso). O Estado burocrático nasceu da transformação dessa deformação em sistema. Toda a teoria política ulterior, em suas diversas vertentes, foi tributária (explícita ou sorrateiramente) das análises de Trotsky sobre o stalinismo: “Iniciada em 1923 e mantida até o fim da vida de Trosky, essa crítica englobou todas as áreas da vida social: dos sangrentos horrores da coletivização obrigatória stalinista à corrupção bizantina do ‘culto da personalidade’, das sacrossantas medidas envolvendo assuntos tais como o aborto às atitudes brutais em relação à vida cultural, do chauvinismo grã-russo à esquiva indulgência para com o anti-semitismo. Haverá outro exemplo na história, de uma mente poderosa ter-se voltado com tal persistência e paixão à denúncia dos falsos reclamos de um regime que ainda comandava a lealdade de milhões de pessoas em todo o mundo? É certo que Trotsky cometeu erros durante esse longo e heróico combate, mas foi nos fundamentos desses erros pioneiros que as análises posteriores se basearam. Embora os estudiosos contemporâneos do totalitarismo possam divergir de Trotsky em pontos essenciais, quase todos eles lhe são largamente devedores”.88

A análise trotskista sobre a URSS não foi só uma construção intelectual, mas a expressão teórica de uma luta política levada adiante num quadro organizado. Isto permitiu a Trotsky antecipar politicamente os problemas que depois desenvolveria teoricamente: “A linha expressa por Trotsky em 1923-1924 já trazia à luz os problemas de fundo que ele abordou posteriormente, depois de sua completa derrota política no interior do grupo dirigente soviético, de seu afastamento do poder e do exílio: a burocratização do partido e do Estado, bem como seu nexo com os desenvolvimentos internos da URSS, já estava dominada pela idéia de que a consolidação do isolamento da URSS terminaria por levar o sistema político para uma crescente degenerescência”.89 Esse esquema teórico apareceu já formulado em 1928, quando afirmou que a raíz da derrota da oposição diante de Stalin devia ser buscada no “aumento da pressão econômica e política exercida pelos ambientes burocráticos e pequeno-burgueses no interior do país, contra o pano de fundo das derrotas da revolução proletária na Europa e na Ásia”.90 A análise de Trotsky sobre o fenômeno da burocratização dos Estados operários foi considerada por muitos como sua principal contribuição teórica. Foram as condições em que se desenvolveu a revolução soviética que obrigaram a superar a formulação inicial de Lênin: “A luta contra a deformação burocrática da organização soviética fica garantida pela solidez dos vínculos existentes entre os soviets e o povo, pela flexibilidade e elasticidade desses vínculos. Os pobres nunca consideram os parlamentos burgueses como instituições suas, inclusive na república capitalista mais democrática do mundo. Os soviets, pelo contrário, são instituições deles, não alheias às massas de operários e camponeses”.91 Já em 1921, no entanto, no decorrer da polêmica sobre os sindicatos, Lênin se referia ao Estado soviético como “um Estado operário com a particularidade de que no país não predomina a população operária, mas a camponesa e, em segundo lugar, um Estado operário com uma deformação burocrática” (grifo nosso).92 Em O Imposto em Espécie, observou que “há entre nós *a Rússia soviética+ uma base econômica da burocracia: o isolamento, a dispersão, dos pequenos produtores, sua miséria”. A miséria (e a arbitragem política entre classes e camadas sociais que ela faz nascer)

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Irving Howe. As Idéias de Trosky. São Paulo, Cultrix, 1978, p. 81. 89

Massimo Salvadori. A crítica marxista ao stalinismo. In: E. J. Hobsbawm. História do Marxismo, vol. 7, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 310. 90

Leon Trotsky. El Gran Organizador de Derrotas. A III Internacional después de Lenin, Buenos Aires, El Yunque, 1974. 91

V.I. Lenin. Las tareas inmediatas del poder soviético (março 1918). In: Selección de Trabajos. Buenos Aires, Cartago, 1985. 92

V.I. Lenin. La crisis del partido (janeiro 1921). In: Selección de Trabajos. Ed. cit.

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estava na origem da burocracia. Dois anos depois, em O Novo Curso (1923), Trotsky fazia observação semelhante: “Na Rússia, a fonte essencial do burocratismo reside na necessidade de criar e sustentar um aparelho de Estado que alie os interesses do proletariado e os do campesinato” (no 18 Brumário de Luis Bonaparte Marx já tinha sublinhado que o predomínio da pequena propriedade agrária favorecia, na França, a emergência de um poder paternalista).

A passagem da deformação para a degeneração burocrática foi um processo político (stalinismo) e social (consolidação de uma casta burocrática). Christian Rakovsky antecipou, em 1928, o miolo do problema: “A situação de uma classe que luta pelo poder e a de uma classe que detém o poder é diferente (...) Quando uma classe toma o poder, uma parte dela transforma-se em agente desse poder. Em um Estado socialista, onde a acumulação capitalista está proibida, esta diferença começa sendo funcional, e depois transforma-se em social”.93 Rakovsky enfatizou a questão dos “métodos de direção” e a substituição da eleição pela nomeação por cima do aparelho dirigente, fazendo uso da analogia histórica com a Revolução Francesa e o sistema centralizador baseado em nomeações do jacobinismo, que conduzira à sua ruína (o stalinismo teria sido, analogamente, o “Termidor” soviético). Rakovsky propunha a demissão de ¾ do aparelho (partidário): “Nas condições da ditadura do Partido, um poder gigantesco concentrou-se nas mãos da direção, um poder que nenhuma organização política conheceu na história”.94 No seu Stalin, Trotsky lhe fez eco: “L’ État c’ est moi [fórmula da monarquia absolutista de Luis XVI] é quase uma fórmula liberal comparada à realidade do regime totalitário de Stalin, que compreende toda a economia do país” (a estatização da economia, inexistente ou muito parcial no absolutismo monárquico ou no bonapartismo capitalista, conferia ao bonapartismo burocrático um poder político qualitativamente superior).

Partindo da analogia com a Revolução Francesa, Trotsky corrigiu, precisou e aprofundou essa premissa, situando-a nas condições históricas e políticas que presidiram o nascimento do stalinismo. Ao definir a especificidade do stalinismo (como fenômeno da revolução russa) tirou-lhe caráter universal, e buscou determinar as condições da sua superação. O recurso continuado à analogia com a revolução francesa mostrou-se uma barreira à compreensão política: levava a obscurecer o caráter único da experiência revolucionária russa, e tendia a subestimar as diferenças fundamentais entre 1917 e 1789. Deixava de lado o ponto nuclear de que uma revolução burguesa pode prosseguir, durante certo tempo, mesmo sem o comando político direto da burguesia (como acontecera durante o período jacobino), enquanto uma revolução proletária, empreendida por uma classe sempre despossuída, somente poderia atingir seus objetivos se esta classe mantivesse o controle do Estado: “O Termidor cortou as asas da ala radical da burguesia francesa, mas não ameaçou a propriedade burguesa; o stalinismo eliminou a ala radical do proletariado russo e o deixou indefeso ente os assaltos do Estado. Ou, em linguagem comum: a economia burguesa pode sobreviver sob uma democracia, um ditador à moda antiga, um regime fascista, mas o socialismo somente pode ser construído, se tal é possível, como um processo livre e humano, como desenvolvimento popular da democracia. Este ponto era obscurecido pela analogia ‘termidoriana’ e, na verdade, a incapacidade de apreendê-lo foi responsável pela capitulação de muitos trotskistas, a partir

93

Christian Rakovsky. Los peligros profesionales del poder (agosto de 1928). Praxis n 2, Buenos Aires, junho 1984. Originalmente chamado “Carta a Valentinov” (pois era uma resposta a um oposicionista com ese nome, que lhe perguntava sobre a surpreendente passividade das massas russas “dez anos depois de terem feito a maior revolução da história”) o texto foi amplamente divulgado fora da URSS, ganhando vida própria com esse título. 94

A base desse poder se encontrava no poder de nomeação e cooptação da direção partidária: “O orçamento dos sindicatos é de 400 milhões de rublos, com 80 milhões dedicados aos salários. Qual é o montante dos salários dos militantes permanentes dos aparelhos do partido, das cooperativas, dos kolkhozes, dos sovkhozes, da indústria, da administração, com todas suas ramificações?”, se perguntava Rakovsky, já desterrado para um campo de trabalho.

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do momento em que Stalin empreendeu a super-industrialização e forçou a coletivização no final da década de 1920”.95

Trotsky não rejeitou, porém, a analogia com Termidor, conquanto se precisasse sua natureza específica na Rússia soviética:96 “O significado social do Termidor soviético começa agora a se formar diante de nós. A pobreza e o atraso cultural das massas encarnou-se novamente na figura maligna do governador que possui um grande cacetete em suas mãos. A rejeitada e difamada burocracia, no início serva da sociedade, tornou-se seu senhor. Neste caminho, ela corrompeu-se de tal forma, e em tal nível de alienação moral diante das massas populares, que não pode permitir agora qualquer controle nem sobre suas atividades, nem sobre seus rendimentos”. Os métodos políticos do stalinismo eram análogos ao bonapartismo, que consagrou o declínio da revolução francesa: “A divinização cada vez mais desavergonhada de Stalin é necessária ao regime. A burocracia precisa de um árbitro supremo inviolável, primeiro-cônsul, na falta do imperador. Stalin personifica a burocracia e é isso que forma a sua personalidade política. O bonapartismo foi um dos instrumentos do regime capitalista em seus períodos críticos. O stalinismo é uma de suas variantes, mas com base no Estado operário dilacerado pelo antagonismo entre a burocracia soviética organizada e armada e as massas trabalhadoras desarmadas”. E, recapitulando seu combate: “Defendi a democracia dos soviets contra o absolutismo burocrático, a elevação do nível de vida das massas contra os privilégios excessivos da cúpula, a industrialização e a coletivização sistemáticas em benfício dos trabalhadores, e, finalmente, uma política internacional no espírito do internacionalismo revolucionário contra o conservadorismo nacionalista”.97 Trotsky não se iludiu em vencer a burocracia por meios diversos da luta revolucionária, nem sequer quando reuniu na sua oposição dez dos dezoito membros do CC do partido bolchevique eleito em 1919. Recusou usar contra a burocracia seus próprios métodos, no que Nicolas Krassó viu uma “incompreensão [de Trotsky] da autonomia das instituições políticas”.98 Trotsky já havia respondido a essa argumentação: “Sem dúvida teria sido possível fazer um golpe de estado militar contra a fração Zinoviev-Kamenev-Stalin, sem dificuldades e sem derramar uma gota de sangue, mas o seu resultado teria acelerado o ritmo da burocratização e do bonapartismo contra os quais a Oposição de Esquerda deflagrara a sua luta”.99

Consumada a degeneração do Estado surgido da revolução, a quebra do partido bolchevique e da Internacional Comunista, o balanço era o de retrocesso histórico-político sem precedentes: “O stalinismo não é uma ditadura abstrata, mas uma grandiosa reação burocrática contra a ditadura proletária num país atrasado e isolado. A Revolução de Outubro anulara os privilégios, declarara guerra às discriminações sociais, substituíra a burocracia pelo autogoverno dos trabalhadores, abolira a diplomacia secreta; esforçara-se para dar a mais completa transparência a todas as relações sociais. O stalinismo restaurou as formas mais ofensivas de privilégio, conferiu à desigualdade um caráter provocativo, sufocou com absolutismo policial a atividade espontâena das massas, fez da administração um monopólio da oligarquia do Kremlin, ressuscitou o fetichismo do poder sob formas que a própria monarquia absoluta não tivera sequer coragem de sonhar. O partido de Lênin deixou de existir desde longa data; as dificuldades internas e o imperialismo mundial o quebraram. A burocracia stalinista, que o sucedeu, representa um aparelho de transmissão do imperialismo. Na política mundial, a burocracia substituiu a luta de classe pela colaboração de classe, o internacionalismo pelo social-patriotismo. Para adaptar o partido dirigente às necessidades da

95

Irving Howe. Op. Cit., p.72. 96

Cf. Jacques Caillose. La question du Thermidor soviétique dans la pensée de Trotsky. Cahiers Léon Trotsky n 37, Paris, março 1989. 97

Leon Trotsky. Autobiografia. El Testamento de Lenin. Buenos Aires, El Yunque, 1983. 98

Nicolas Krassó. Trotsky’s marxism. New Left Review n 44, Londres, julho 1967, pp. 64-86. 99

Leon Trotsky. Porque Stalin venció a la oposición (novembro 1935). Escritos. Bogotá, Pluma, 1974.

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reação, a burocracia ‘renovou’ a composição do PC soviético com o extermínio dos revolucionários e o recrutamento de arrivistas”.100 Que semelhante caracterização não tivesse impedido Trotsky postular a “defesa incondicional da URSS” contra qualquer ataque imperialista, demonstrou que sua caracterização não era unilateral, unilateralismo que levou muitos de seus contemporâneos de esquerda a identificarem a defesa da URSS com a defesa da burocracia, ou a rejeitarem o stalinismo junto com as conquistas sociais da Revolução de Outubro, preparando ideologicamente o caminho da restauração capitalista, que se realizaria, finalmente, sob a forma de uma “democratização” do regime. Na definição mais abrangente de Trotsky: “A União Soviética é uma sociedade contraditória a meio caminho entre capitalismo e socialismo, na qual: a) as forças produtivas estão ainda longe de dar um caráter socialista à propriedade de Estado; b) a tendência à acumulação primitiva criada pela carência manifesta-se em inumeráveis poros da economia planificada; c) normas de repartição que preservam o caráter burguês, estabelecendo as bases da nova diferenciação da sociedade; d) o crescimento econômico, enquanto melhora vagarosamente a situação dos trabalhadores, promove uma formação rápida dos estratos privilegiados; e) explorando os antagonismos sociais, a burocracia converteu-se numa casta incontrolável alheia ao socialismo; f) traída pelo partido dominante, a revolução social ainda existe nas relações de propriedade e na consciência das massas trabalhadoras; g) um desenvolvimento das contradições acumuladas pode tanto levar ao socialismo quanto voltar ao capitalismo; h) no caminho do capitalismo, a contra-revolução teria que quebrar a resistência dos trabalhadores; i) no caminho do socialismo, os trabalhadores teriam que derrotar a burocracia. Em última análise, a questão será decidida pelo confronto das forças sociais, nas duas arenas, a nacional e a mundial”.101

Sem contar os difamadores, boa parte dos críticos de Trotsky veio do próprio “trotskismo”, criticando o dirigente por não ter sido suficientemente hábil para conservar o poder na URSS, ou seja, por não ter sabido vencer a burocracia no próprio terreno desta. Como perdera o poder, tendo sido o símbolo mundial desse poder? “Por trás desta pergunta, há geralmente a idéia ingênua de alguma coisa que escapa entre os dedos, como se perder o poder fosse o mesmo que perder um relógio, ou uma caderneta. Quando os revolucionários que lideraram a conquista do poder começam a perdê-lo (seja por via pacífica ou catastrófica), isso significa que determinadas idéias estão perdendo a sua influência, nos círculos dirigentes da revolução, ou a tensão revolucionária das massas está enfraquecendo, ou até ambas as coisas”.102 Questionou-se a análise de Trotsky sobre a URSS como “Estado operário burocratizado” (ou “degenerado”) opondo-lhe as categorias de “capitalismo de estado”, de “coletivismo burocrático”, ou uma mistura de ambas. Foi o que fizeram os ex-trotskistas norte-americanos James Burnham e Max Schachtman,103 ou o ex-comunista italiano Bruno Rizzi nos anos 1930 e 1940, cujas conclusões principais foram depois retomadas por Claude Lefort, Cornelius Castoriadis (na revista Socialisme et Barbarie) e outros. Segundo Castoriadis: “O capitalismo burocrático não respeita apenas os países nos quais o partido stalinista domina. Longe de ser um fenômeno exclusivamente político, o papel preponderante da burocracia é igualmente um fenômeno econômico. Ele exprime as tendências mais profundas da produção capitalista moderna: concentração das forças produtivas e desaparecimento ou limitação consecutiva da propriedade privada com fundamento do poder da classe dominante; aparição no seio das grandes empresas, de enormes aparelhos burocráticos de direção: fusão dos monopólios de Estado; regulamentação estatal da economia. Quanto ao essencial, a divisão das sociedades

100

Leon Trotsky. Moral e Revolução, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. 101

Leon Trotsky. A Revolução Traída, cit. 102

Leon Trotsky. Ma Vie. Paris, Gallimard, 1953. 103

Schachtman virou social-democrata, defensor do da guerra dos EUA contra o Vietnã; Burnham ideólogo do Departamento de Estado e da “guerra fria”, um dos formuladores da teoria do containment da “ameaça comunista”.

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contemporâneas - ocidentais ou orientais - em classes, já não corresponde à divisão entre proprietários e não proprietários, mas à outra muito mais profunda e difícil de eliminar - entre dirigentes e executantes no processo de produção”.104 Isaac Deutscher acompanhou essa hipótese, ao afirmar a existência “de uma clara tendência à burocratização das sociedades contemporâneas, independentemente de suas estruturas sociais e políticas”,105 concluindo na impossibilidade de se sustentar o “postulado marxista” (sic) do “Estado-Comuna”, ou seja, que a burocracia estatal (e privada) seria incontornável e historicamente insuperável

.

Cornelius Castoriadis

Relegar o regime de propriedade a um segundo plano, em nome de uma tendência burocrática surgida dos interesses específicos da intelectualidade (os “dirigentes”) não era uma análise nova. Em 1898, o socialista polonês Makhaiski, nascido em 1866, escrevia: “Com a supressão dos capitalistas privados, a classe operária moderna, os escravos contemporâneos, não deixam de estar condenados a um trabalho manual durante toda a sua vida. Por conseqüência, a mais-valia por eles criada não desaparece, mas passa para as mãos do Estado democrático”. Uma nova classe, interessada na expropriação da burguesia, e apoiada no movimento operário, buscaria estabelecer sua própria dominação de classe e viver da exploração do trabalho: eram os trabalhadores qualificados e competentes (técnicos, engenheiros, cientistas, pessoal gestor e administrativo), junto aos intelectuais tradicionais (advogados, jornalistas, professores): “Cada geração de assalariados privilegiados, da intelligentsia, absorve no momento da sua educação uma parte da mais-valia. É assim que ela se torna uma força de trabalho 'altamente qualificada’, de ‘grande qualidade’ e de ‘valor superior’. É justamente porque absorveram certa massa de mais-valia que eles adquirem, conformemente à lógica da pilhagem, o direito de receber posteriormente, sob a forma de um salário atribuído pela educação recebida, o produto não pago do trabalho de outrém”. O “trabalho complexo”, mais que uma força de trabalho de maior valor, era um capital rentável e remunerado através de altos salários. O socialismo marxista seria, na verdade, a ideologia do interesse social da nova classe dominante: “A função primeira do marxismo é a de mascarar o interesse da classe cultivada ao longo do desenvolvimento da grande indústria, o interesse de classe dos mercenários privilegiados, dos trabalhadores intelectuais no Estado capitalista”. Marx seria o profeta da nova classe, o marxismo sua religião, com seu culto pelo desenvolvimento das forças produtivas. A “elite do saber” tomaria o lugar dos capitalistas privados: a teoria de Burnham (a “revolução dos executivos”, managerial revolution, que inspirou A Rebelião dos Bichos, de George Orwell) e Rizzi, a de Castoriadis e Lefort, e até a “nova classe” de Milovan Djilas, se encontrava portanto in nuce em Makhaiski, que propunha: “Nesta nova época de luta, conduzida exclusivamente pelas reivindicações dos operários manuais (reivindicações puramente econômicas), os operários, ao alargarem as suas conspirações e as suas

104

Cornelius Castoriadis. A economia burocrática e a exploração do proletariado. In: A. Castro Neves (org.). A Natureza da URSS. Porto, Afrontamento, 1977, p. 173. 105

Isaac Deutscher. Las Raíces de la Burocracia. Barcelona, Anagrama, 1978, p. 9.

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insurreições, executarão a expropriação, não apenas dos capitalistas, mas também de toda a sociedade cultivada, de todos os consumidores de rendimentos superiores ao rendimento do operário”. Makhaiski publicou uma revista na Rússia em 1918, propondo sem sucesso que os desempregados constituissem organizações para a obtenção condições equivalentes às dos operários empregados. Isolado e sem influência, morreu em 1925.106

Jan Waclaw Makhaiski

A tendência universal para a burocratização das corporações capitalistas, dos Estados e dos sindicatos, aparece assim sobreposta e sobredeterminando à luta de classes, que passaria a ser um elemento subordinado. A questão da divisão técnica do trabalho (base do burocratismo) foi também o ponto de partida de Antoine Artous para abordar criticamente as análises dos dirigentes bolcheviques quanto à questão do Estado revolucionário, que revelaria um “ponto cego da tradição marxista”.107 Em O Estado e a Revolução, Lênin teria abordado a questão da extinção do Estado como resultado quase automático da estatização dos meios de produção, esquecendo “o despotismo de fábrica” (ou seja, a oposição entre “dirigentes e executantes no processo de produção”). Os soviets (representação direta dos produtores), base política do Estado operário, não resolveriam o problema que, no entanto, tinha sido registrado e analisado por Marx como uma componente orgânica e imprescindível da produção capitalista, sem, no entanto, tirar disso nenhuma conclusão política para a transição socialista. A degeneração do Estado operário não poderia ser explicada só, como proposto por Trotsky, pela formação, segundo suas palavras, de “uma poderosa casta de especialistas da distribuição, criada e fortalecida graças à operação em absoluto socialista consistente em tirar de dez pessoas para dar a uma só” (grifo nosso), esquecendo, segundo Artous, o “despotismo de fábrica ou formas semelhantes reproduzidas pela revolução russa” (Artous se referiu à defesa por Lênin do sistema taylorista de disciplina do trabalho, como já o fizera Robert Linhart). Seria questionável, por isso, a definição trotskista da URSS como “Estado operário degenerado” (embora fosse correta a definição de Lênin, “Estado operário deformado”, na

106

Jan Waclaw Makhaiski. Le Socialisme des Intellectuels. Paris, Seuil, 1977. Cf. João Freire. Os capitalistas do saber. Espaço Acadêmico nº 63, São Paulo, Unesp, agosto de 2006; e Marshall S. Shatz. Jan Waclaw Machajski: A Radical Critic of the Russian Intelligentsia. Pittsburg, University of Pittsburg Press, 1989. No seu primeiro exílio siberiano, em 1900, Trotsky se confrontou pessoalmente, de modo bastante violento, com Makhaiski e sua teoria. Em 1912, no entanto, quando tentava intermediar entre as numerosas frações do POSDR, tomando distância de todas elas, em prol da “unidade do partido”, Trotsky afirmou, na conferência social-democrata de Viena: “Nosso velho partido era uma ditadura da intelectualidade democrática, apoiada no ponto de vista marxista, sobre o movimento operário”. Ecos de Makhaivski? Só em parte, se fosse o caso: Trotsky criticava, tanto em mencheviques quanto em bolcheviques (e suas diversas frações internas) suas teorias “etapistas” (portanto, “democráticas”) da revolução. 107

Antoine Artous. État ouvrier et bureaucratie. Critique Communiste nº 150, Paris, outono 1997. Segundo o autor, o ponto cego (“esquecimento”) já se encontrava em Engels: “O primeiro ato em que o Estado aparece realmente como representante de toda a sociedade – a posse dos meios de produção em nome da sociedade – é ao mesmo tempo seu último ato como Estado... O governo das pessoas cede seu lugar à administração das coisas e à direção das operações de produção” (Anti-Dühring): isto equivaleria a esquecer o (provável) despotismo na produção numa economia estatizada.

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década de 1920): “Depois da contra-revolução stalinista, esse Estado não é operário, no plano político (partido e aparelho estatal) ou no plano das relações de produção”.

O poder stalinista, porém, não era burguês, pois o Estado capitalista se estrutura com base na distinção entre poder econômico e poder político, inexistente na URSS. Ao defini-lo como “operário”, porém, “Trotsky ficou preso a categorias operacionais do modo de produção capitalista e da burguesia, mal adaptadas à nova realidade social *da URSS stalinista+”. Artous opôs “Estado transitório” (categoria que Trotsky usava) a “Estado operário degenerado”, oposição que não existia em Trotsky, e, finalmente, não propôs uma definição alternativa desse Estado (reconhecendo em Trotsky, no entanto, a melhor análise do problema anterior à Segunda Guerra Mundial). A interessante filologia comparativa (entre Marx, Engels, Lênin e Trotsky) apresentada por Artous carece, porém, de análise das especificidades históricas: as opções bolcheviques quanto à organização do trabalho, logo depois da revolução e da guerra civil, foram em grande parte condicionadas por urgências determinadas por uma inaudita penúria econômica e alimentar (que incluiu, como se sabe, casos de canibalismo em regiões remotas), assim como por conflitos sociais, políticos e internacionais, que nenhum balanço crítico do bolchevismo poderia ignorar.

Outra linha de questionamento situou no próprio bolchevismo a origem do fenômeno burocrático, não o considerando uma tendência universal, mas um traço específico e singular do marxismo russo (ou oriental), na sua variante bolchevique: a tomada do poder teria sido um equívoco histórico (posição de Fernando Claudín em A Crise do Movimento Comunista), pois não levou em conta que, na Rússia czarista, as forças produtivas capitalistas não tinham se desenvolvido o suficiente no quadro da velha sociedade (o proletariado só poderia tomar o poder nos países capitalistas desenvolvidos). Bem antes de Claudín, o comunista alemão Karl Korsch explicitou esse ponto de vista: “O marxismo russo, em todas as suas fases de desenvolvimento, e em todas as suas correntes, desde o início e subseqüentemente, não foi nada mais do que a forma ideológica para a luta material em favor do êxito do desenvolvimento capitalista na Rússia czarista feudal. A sociedade burguesa, já plenamente desenvolvida no Ocidente, necessitava - para sua afirmação histórica no Leste - de uma nova veste ideológica”.108

Karl Korsch

Outubro 1917 teria sido, portanto, uma revolução capitalista feita contra a burguesia e em nome do “comunismo”. As forças produtivas capitalistas não teriam um caráter mundial, nem a luta proletária contra o capital um caráter internacional, com independência do grau de desenvolvimento capitalista de cada país. Afirmar que a especificidade do socialismo russo era a de ser capitalista era teorizar uma conclusão pré-concebida, politicamente fatalista (conformista): a burocratização do Estado revolucionário na Rússia estava inscrita na sua própria lógica, com independência da luta de classes e da política de seus protagonistas. O ponto de partida dessa análise era a constatação de que na maioria dos países do globo, as transformações sociais imediatamente necessárias correspondem mais aos objetivos da

108

Karl Korsch. Scritti Politici. Bari, Laterza, 1975, vol. 1, p. 157.

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revolução democrática (reforma agrária, independência nacional, desenvolvimento econômico) do que aos da revolução socialista. Trotsky, ciente disso, não deixava de assinalar que, qualquer que fosse o grau de seu atraso econômico e político, esses países faziam parte da economia capitalista mundial, possuindo portanto os elementos para se integrarem na luta socialista mundial: “Os países coloniais e semicoloniais são, por sua própria natureza, países atrasados. Mas estes países atrasados vivem nas condições da dominação mundial do capitalismo. É por isso que o seu desenvolvimento tem um caráter combinado: reúne em si as formas econômicas mais primitvas e a última palavra da técnica e da civilização capitalista. É isto que determina a política do proletariado dos países atrados: ele é constrangido a combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial. Neste luta, as reivindicações da democracia, as reivindicações transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas em épocas distintas, mas procedem imediatamente umas das outras” (Programa de Transição, 1938).

Para Trotsky, o ponto de partida da política socialista não poderia ser a análise de cada país (ou grupo de países) separadamente, mas a economia (e a revolução) mundial, concebida como um processo histórico global que dava seu conteúdo à história nacional: “A economia mundial e, em particular, a economia européia estão perfeitamente maduras para esta revolução. A ditadura do proletariado na Rússia nos levará ou não ao socialismo? Em que ritmos e através de que fases? Tudo isso dependerá do futuro do capitalismo europeu e mundial (...) Em certas circunstâncias, países atrasados poderão chegar à ditadura do proletariado mais rapidamente do que os países desenvolvidos, mas chegarão mais tarde ao socialismo, Em um país no qual o proletariado chegue ao poder em seguida a uma revolução democrática, o destino futuro da ditadura e do socialismo dependerá menos - no fim das contas - das forças produtivas nacionais do que do desenvolvimento da revolução socialista internacional”.109 Esse eixo da teoria da revolução permanente não era especificamente “trotskista”: a Internacional Comunista, nos seus primeiros congressos, tinha colocado a perspectiva de uma luta pelo socialismo em países onde a maioria da população se encontrava ainda dentro de relações de produção pré-capitalistas: “Seria certamente um erro grosseiro querer aplicar imediatamente nos países orientais, na questão agrária, os princípios comunistas. Em seu primeiro estágio, a revolução nas colônias deve ter um programa de reformas pequeno-burguesas, tais como a divisão da terra. Mas isso não quer dizer necessariamente que a direção da revolução deve ser abandonada à democracia burguesa. O partido proletário deve, pelo contrário, desenvolver uma propaganda pujante e sistemática em favor dos soviets e organizar soviets de camponeses e operários. Estes soviets deverão trabalhar em estreita colaboração com as repúblicas soviéticas e os partidos comunistas dos países capitalistas avançados, para alcançar a vitória final sobre o capitalismo no mundo inteiro. Assim, as massas dos países atrasados, conduzidas pelo proletariado consciente dos países capitalistas desenvolvidos, chegarão ao comunismo sem passar pelos diferentes estágios do desenvolvimento capitalista”.110

Deve-se a Trotsky, no entanto, a busca do fundamento dessa possibilidade nas leis gerais do desenvolvimento capitalista, tirando a desigualdade do desenvolvimento e a combinação de etapas históricas da constatação empírica, para incorporá-las à teoria marxista: “Seria certo dizer que toda a história da humanidade se desenvolve sob o signo do desenvolvimento desigual. O capitalismo já encontra os diversos setores da humanidade em graus diversos de evolução, cada um com suas próprias contradições internas profundas. A extrema variedade dos níveis atingidos e a desigualdade extraordinária do ritmo de desenvolvimento das diversas partes da humanidade, no curso das diferentes épocas, constituem o ponto de partida do

109

Leon Trotsky. La Revolución Permanente, Madri, Cenit, 1931. 110

II Congresso da Internacional Comunista. Teses sobre a Questão Nacional e Colonial, 1920.

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capitalismo. É apenas gradualmente que este último consegue dominar a desigualdade que herdou, para rompê-la e modificá-la com seus métodos e com seus sistemas. Distinguindo-se dos sistemas econômicos precedentes, o capitalismo tem como característica a tendência à contínua expansão econômica, à penetração em regiões novas. Mas, aproximando os vários países e equiparando os níveis de seu desenvolvimento, o capitalismo opera com seus métodos, isto é, com métodos anárquicos, que minam continuamente o seu próprio trabalho, opondo um país a outro e um setor da indústria a outro, favorecendo o desenvolvimento de certas partes da economia mundial, freando e fazendo regredir outros. Só a combinação destas duas tendências fundamentais, centrípeta e centrífuga, ambas conseqüências da própria natureza do capitalismo, explica a conexão viva do processo histórico. O imperialismo, graças à universalidade, à mobilidade e à difusão do capital financeiro, esta força motriz do imperialismo que penetra por todas as partes, acentua ulteriormente estas duas tendências. O imperialismo liga bem mais rapidamente e bem mais profundamente em um única entidade, todas as unidades nacionais e continentais particulares, cria entre essas a mais íntima e vital dependência, aproxima os seus métodos econômicos, as suas formas sociais e os níveis de sua evolução. Ao mesmo tempo, persegue este fim com métodos tão contraditórios, fazendo tais saltos à frente, abandonado-se a tais saques nos países e nas regiões atrasadas, que a unificação e o nivelamento da economia mundial que ele realiza são por sua própria obra desarranjados de maneira mais violenta e convulsiva do que em qualquer período precedente”.111 A partir dessas premissas, Trotsky elaborou a lei histórica mais geral do desenvolvimento capitalista nos países atrasados, exposta no prefácio da História da Revolução Russa: “A desigualdade de desenvolvimento, que é a lei mais geral do processo histórico, se manifesta com maior vigor e complexidade no destino dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a sua cultura em atraso é obrigada a avançar por saltos. Desta lei universal da desigualdade deriva uma outra lei que, à falta de uma denominação mais adequada, pode ser definida como ‘lei do desenvolvimento combinado’ e que pretende indicar a proximidade de diversas fases, a combinação de diversos estágios, a mistura de formas arcaicas com as formas mais modernas”.

A aparência impressionante do poder de Stalin levou a que a URSS fosse definida como “um Estado comunista nacional de partido único ou uma burocracia universal ideocrática”, cujo fundamento seria “a aliança, entente, existente entre Stalin e o povo, que o venera até hoje”.112 Ao autor dessa definição não lhe ocorreu pensar que certas “venerações” (como a de deus, ou Deus) estão simplesmente baseadas no pavor. Por impressionante que fosse o seu domínio, a burocracia stalinista carecia, para Trotsky, de perspectiva histórica própria; o seu prognóstico sobre a revolução russa situou-se no plano mais geral: “A perspectiva da revolução permanente pode ser assim resumida: a vitória completa da revolução democrática na Rússia somente pode ser concebida na forma de ditadura do proletariado, secundado este pelos camponeses. A ditadura do proletariado, que inevitavelmente poria sobre a mesa não só tarefas democráticas, mas também as socialistas, daria ao mesmo tempo um vigoroso impulso à revolução socialista mundial. Somente a vitória do proletariado do Ocidente poderia proteger a Rússia da restauração burguesa, dando-lhe a segurança de completar a implantação do socialismo”.113

Perry Anderson buscou situar as causas da consistência teórica da análise trotskista da burocracia: “Na sua descrição da natureza da burocracia soviética, Trotsky procura sempre situá-la na lógica da sucessão dos modos de produção e das suas transições, com os correspondentes poderes de classe e regimes políticos, lógica que herdou de Marx, Engels e

111

Leon Trotsky. El Gran Organizador de Derrotas. A III Internacional despúes de Lenin, cit. 112

Martin Malia. Comprendre la Révolution Russe. Paris, Seuil, 1980, p. 210. 113

Leon Trotsky. Stalin. México, Juan Pablos, 1973.

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Lênin”. No entanto, para Anderson, Trotsky errou “em qualificar o papel exterior da burocracia soviética simplesmente como contra-revolucionário”, pois esse papel “externo” seria tão contraditório quanto o “interno” (a burocracia como defensora das conquistas sociais de Outubro em proveito próprio). Anderson assinalou o papel da URSS na derrota do fascismo e no fim do colonialismo, assim como a sua ajuda nas vitórias das revoluções cubana e vietnamita: “O stalinismo provou ser não só um aparelho, mas também um movimento, capaz de manter o poder num ambiente atrasado, dominado pela escassez (a URSS) e de conquistar o poder em lugares ainda mais atrasados e empobrecidos (China e Vietnã)”, isto porque o stalinismo não seria só “uma degeneração de um Estado pré-existente de relativa pureza de classe; pode ser também uma geração espontânea produzida pelas forças de classe revolucionárias em sociedades muito atrasadas, sem tradição democrática, burguesa ou operária”, o que “não foi entrevisto por Trotsky”.114 Anderson misturou dois níveis diversos da análise de Trotsky: a natureza social da burocracia (contraditória, ou “dual”, pois simultaneamente apoiada no Estado operário e transmissora da pressão imperialista) e a sua natureza política (contra-revolucionária, interna ou externa, pois anti-operária nos países em que domina, e freio da revolução no mundo capitalista), finalizando com uma constatação: “Ao apontar a maneira em que o stalinismo continuou atuando, é necessário apontar como também continuou agindo como fator reacionário internacional (...) Sua negação absoluta de democracia proletária inibe a classe operária para um ataque contra o capitalismo dentro das estruturas da democracia burguesa, portanto fortalece decisivamente os bastiões do imperialismo no final do século XX”. O caráter contra-revolucionário do stalinismo se limitaria ao seu caráter antidemocrático? Toda a crítica trotskista à política frente-populista dos PCs, decorrência de uma política internacional moldada na defesa dos interesses sociais da burocracia, desapareceria.

Cabe citar também aqueles que situam a origem da degeneração burocrática na política do bolchevismo. Para Ernest Mandel, uma série de erros “insitucionais” do partido bolchevique favoreceram esse processo, erros que tornaram o partido “sociologicamente” (sic) incapaz de desempenhar o papel de freio na burocratização: 1) A partir do momento em que se proibiram as frações no partido bolchevique, a democracia interna não podia se manter no partido: com efeito, se existe liberdade de discussão, inevitavelmente também, sobretudo se existe um começo de burocratização, as tendências se convertem em frações, porque as divergências se sistematizam e se generalizam. 2) O estabelecimento do princípio do partido único: até 1921, vários partidos (menchevique de esquerda, socialista-revolucionário, anarquista) tiveram uma existência legal, na medida em que não se aliavam à contra-revolução: alguns soviets eram dirigidos por outros partidos; em outros soviets houve eleições com listas diferentes que representavam vários partidos: “A partir de 1921, sem legislar teoricamente sobre o princípio do partido único, se atuou como se essa regra existisse”.115 Mandel não julgou os motivos que levaram o partido bolchevique a suprimir temporariamente as frações em 1921, nem os que levaram à ilegalização dos partidos. Lênin, impulsionador das medidas, tinha antes considerado o pluripartidarismo soviético como “a via mais rica” para o desenvolvimento revolucionário. Essas medidas foram explicitamente determinadas por fatores como o bloqueio externo da URSS, as pressões internas que atingiram seu ponto máximo em Kronstadt, a NEP. Para Trotsky, a interdição das frações era “considerada como uma medida excepcional a ser abandonada assim que a revolução se consolidasse. O Comitê Central, aliás, foi extremamente cauteloso em aplicar a nova lei, preocupando-se ao máximo em não produzir um estrangulamento da vida interna do partido. Entretanto, o que era em seu projeto original meramente uma concessão necessária face a uma situação difícil, evidenciou-se

114

Perry Anderson. La interpretación de Trotsky sobre el stalinismo. Democracia y Socialismo. Buenos Aires, Tierra del Fuego, 1988, pp. 110 e 116-117. 115

Ernest Mandel. A Burocracia. São Paulo, sdp, p. 22.

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perfeitamente conveniente para o gosto da burocracia, que começou então a julgar vida interna do partido, exclusivamente do ponto de vista da conveniência da administração. Já em 1922, durante breve melhora em seu estado de saúde, Lênin, atemorizado com o crescimento ameaçador do burocratismo, começou a preparar um trabalho contra a fração de Stalin, que havia feito de si próprio o eixo da máquina do partido, como um primeiro degrau em direção à captura do aparelho de Estado”.116

Ernest Mandel

Edward H. Carr coincidiu com a versão de Trotsky, na parte relativa aos fatos históricos: “Quando o Congresso do partido, de 1921, proibiu o ‘fracionismo’ e a propagação da oposição dissidente, o objetivo foi manter a unidade do partido e a fidelidade de seus membros. A dissensão era punida com sanções, mas ainda não constituía deslealdade para com o Estado. Os representantes partidários das instituições estatais eram obrigados a seguir a linha do partido e a falar numa única voz. Essa obrigação, porém, não se estendia aos representantes que não eram do partido. Em 1927 a distinção entre partido e Estado havia sido gradualmente eliminada”.117 Mandel, por sua vez, desculpou “os dirigentes do partido bolchevista que compreenderam finalmente, entre 1923 e 1936, o caráter monstruoso da empresa burocrática; o verdadeiro drama é que eles não o compreenderam no próprio instante e nem sequer o compreenderam a tempo. E, precisamente porque não viram o perigo a tempo, deixaram-se arrastar nas lutas de frações que não desempenhavam qualquer importância histórica, que permitiram o desenrolar ininterrupto desse processo de degenerescência”.118 Porque? Neste ponto, Mandel nada disse, o que não lhe impediu generalizar teoricamente sua crítica: “O caráter inevitável das deformações burocráticas na sociedade de transição se reduz, em último termo, a dois fatores históricos fundamentais: 1) O nível do desenvolvimento insuficiente das forças produtivas; 2) As sobrevivências capitalistas”.119 Mandel incorreu numa simplificação da teoria de Trotsky acerca da burocracia. Mas há mais do que isso. Para Trotsky, a burocracia stalinista era uma camada parasita originada nas condições específicas da revolução russa (atraso social, econômico e cultural interno, miséria pós-revolucionária, isolamento internacional); para Mandel, ela seria uma tendência universal dos processos revolucionários (que, claro, deveria ser combatida). A suposta inevitabilidade da degeneração burocrática da revolução socialista é uma das principais críticas burguesas ao marxismo. Em pleno zênite stalinista, Trotsky não teorizou a inevitabilidade das deformações burocráticas nas revoluções futuras, afirmando ao contrário que nelas seria menos necessária a coerção estatal: “À medida que um número maior de Estados se encaminhe para a revolução socialista, a ditadura proletária assumirá formas mais livres e flexíveis, e a democracia dos trabalhadores

116

Leon Trotsky. La degeneración del partido bolchevique (1936). Escritos, Ed. cit. 117

Edward Hallet Carr. A Revolução Russa de Lênin a Stalin. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 111. 118

Ernest Germain (Ernest Mandel). A Burocracia nos Estados Operários. Ed. cit., p. 92. 119

Ernest Mandel. Op. Cit., p. 20.

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será mais ampla e profunda”.120 Esta perspectiva não se realizou, pela ausência de revoluções socialistas nos países adiantados, e pelas características específicas (burocrático-militares) da constituição do chamado “campo socialista” no segundo pós-guerra.

A crítica do marxista inglês Tony Cliff, autor de livros sobre Trotsky e Lênin, partiu da idéia de que não poderia haver “Estado operário” (degenerado ou não) onde não existisse controle operário da produção (e do próprio Estado), o que não era, evidentemente, o caso da URSS. Supor o contrário seria, para Cliff, evadir-se da teoria marxista do Estado; considerar “a forma da propriedade independentemente das relações de produção (seria) uma abstração metafísica”. Trotsky, para Cliff, deu duas definições contraditórias do Estado operário: “Por um lado, o critério é o nível de controle do proletariado, seja direto ou indireto, sobre o poder do Estado, por mais restringido que possa resultar; isto significa que o proletariado tem a capacidade de desfazer-se da burocracia com simples reformas, sem necessidade de uma revolução. A segunda definição de Trotsky baseia-se em um critério completamente diferente. Por mais que a máquina do Estado esteja separada das massas, e a única forma de desfazer-se da burocracia seja através da revolução, enquanto os meios de produção sigam nas mãos do Estado, este permanece um Estado operário, e o proletariado continuaria como classe dirigente”. Para Cliff, a teoria trotskista da burocracia era insustentável e contraditória. Propôs, por isso, substituir a definição de Trotsky (Estado operário degenerado) pela fórmula de “capitalismo de Estado”, que não se ateria à forma (estatal), mas ao conteúdo (burguês) da propriedade: se era verdade que “Trotsky contribuiu mais que qualquer outro marxista para a compreensão do regime stalinista, sua análise esbarrou em uma grave limitação - um formalismo conservador contraditório com a natureza do marxismo, que subordina sempre a forma ao conteúdo” (grifo nosso).121 Subordinar sempre a forma ao conteúdo talvez fosse parte do marxismo de Cliff, que não tinha, porém, o direito de transformar isso em um dogma (oriundo de uma suposta “natureza do marxismo”), entre outras coisas, por ser perfeitamente falso (do ponto de vista marxista ou de qualquer teoria dotada de bom senso). A questão de fundo proposta por Cliff foi, em grande medida, terminológica: Trotsky insistiu em que um “Estado operário degenerado” já não era, em certo sentido, operário (do mesmo modo que o “Estado operário” já não é, em sentido estrito, um Estado), isto é, é burguês, na medida em que sobrevivem (e crescem) as “normas burguesas de distribuição”. A sua conclusão política levou Cliff a romper com a teoria trotskista, e ao abandono da “defesa incondicional da URSS” contra um ataque capitalista, pois, nesse caso, tratar-se-ia da defesa de um capitalismo contra outro.

Ygael Gluckstein (“Tony Cliff”)

No final da sua vida, envolvido em polêmicas no interior da IV Internacional, Trotsky tentou afastar qualquer debate terminológico, sublinhando o caráter transitório da sua definição, e mostrando como ela incluía os conteúdos que lhe reclamavam tanto os partidários da definição “totalitária” da URSS quanto os da definição “capitalista” (inclusive “fascista”): “O

120

Leon Trotsky. A 90 años del Manifiesto Comunista. Escritos. Ed. cit. 121

Tony Cliff. State Capitalism in Russia. Londres, Pluto Press, 1974.

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rumo dos acontecimentos demonstrou que o atraso da revolução socialista engendrou o indiscutível fenômeno da barbárie: desemprego crônico, pauperização da pequena burguesia, fascismo e finalmente guerras de extermínio que não abrem nenhum caminho novo. Que formas sociais e políticas pode tomar a nova ‘barbárie’, se admitimos teoricamente que a humanidade não será capaz de se elevar ao socialismo? Temos a possibilidade de nos expressarmos mais concretamente que Marx sobre este tema. O fascismo por um lado, a degeneração do Estado soviético por outro, esboçam as formas sociais e políticas de uma neo-barbárie. Uma alternativa desta espécie - socialismo ou servidão totalitária - não tem somente um interesse puramente teórico, mas também uma enorme importância para a agitação, porque à sua luz aparece mais claramente a necessidade do socialismo”.122 Além disso: “No caso de que o proletariado dos países capitalistas avançados, assim que tenham conquistado o poder, resulte ser incapaz de mantê-lo e o ceda, como na URSS, a uma burocracia privilegiada, nos veríamos obrigados a reconhecer que a causa da reincidência burocrática radica não no atraso do país, nem no cerco capitalista, mas em uma incapacidade congênita do proletariado para transformar-se em classe dominante. Seria então necessário estabelecer retrospectivamente que, em seus traços fundamentais, a URSS atual era a precursora de um novo regime de exploração em escala internacional. Estamos aqui muitos distantes da controvérsia terminológica sobre o título que se deve dar ao Estado soviético. Que não protestem nossos críticos; somente tomando a necessária perspectiva histórica pode-se estabelecer um juízo correto sobre questões de tal magnitude como a substituição de um regime social por outro. A alternativa histórica, levada até o fim, é como segue: o regime de Stalin é uma detestável reincidência no processo de transformação da sociedade burguesa em uma sociedade socialista, ou o regime de Stalin é a primeira etapa de uma nova sociedade de exploração. Se o segundo prognóstico for correto, supõe-se que a burocracia se transformará em uma classe exploradora. Por mais dura que seja esta segunda perspectiva, se o proletariado mundial se mostrar incapaz de cumprir a missão que lhe colocam os acontecimentos, não teríamos mais que reconhecer que o programa socialista, baseado nas contradições internas da sociedade capitalista, era uma utopia. Seria preciso, naturalmente, um novo programa ‘mínimo’ - para defender os interesses dos novos escravos da sociedade burocrática totalitária”.123 Qualquer crítica superadora da teoria trotskista da burocracia deveria levar em conta que ela enfrentou todas as suas implicações, e deu resposta às objeções que contra ela foram levantadas: sua avaliação contemporânea só pode ter esse ponto de partida.

A teoria de Trotsky sobre a burocracia foi produto de um debate político no qual tomaram parte centenas de militantes organizados, às vezes em condições limítrofes de sobrevivência. Com a derrota da Oposição de Esquerda no PCUS e o banimento de Trotsky em 1929, a luta da Oposição prosseguiu em condições dramáticas, com a maioria dos seus membros expulsos do partido e enviados para os campos de deportação na Sibéria. Continuaram aí, no entanto, o debate político com outras correntes opositoras ao stalinismo (zinovievistas, bukharinistas), o seu debate interno e, sobretudo, a organização da resistência à repressão, o que lhes permitiu crescer numericamente na década de 1930. Testemunhos do papel dos trotskistas nas lutas do universo concentracionário nos chegaram através de obras literárias, como as do escritor Aleksandr Solyentisyn (O Primeiro Círculo e o Arquipélago Gulag), ou de historiadores como Vadim Rogovin (1937, o Ano do Terror de Stalin). Segundo o do chefe da espionagem soviética durante a Segunda Guerra Mundial, Leopold Trepper, que viveu boa parte do período stalinista na URSS: “A chama de Outubro extinguiu-se nos crepúsculos carcerários. A revolução degenerada havia dado nascença a um sistema de terror e horror, em que os ideais socialistas

122

The New International. Nova York, novembro 1939. 123

Leon Trotsky. In Defense of Marxism. Nova York, Pathfinder Press, 1976 (1 ed. 1942).

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eram escarnecidos em nome de um dogma fossilizado, que os carrascos ainda tinham o desplante de chamar marxismo. E, no entanto, nós continuávamos, dilacerados, mas dóceis, triturados pela engrenagem que tínhamos posto em marcha com as nossas próprias mãos. Rodas do aparelho, aterrorizados até a loucura, estávamos transformados no instrumento da nossa própria submissão. Todos quantos não se opuseram à máquina stalinista são responsáveis, coletivamente responsáveis. Eu próprio não escapo a este veredicto. Mas, quem é que protestava nessa época? Quem se ergueu para bradar a sua condenação? Os trotskistas podem reivindicar essa honra. Incitados por seu líder, que pagou a obstinação com a morte, eles combateram totalmente o stalinismo - e foram os únicos. Na época dos grandes expurgos, já não podiam gritar sua revolta senão nas imensidões geladas para onde os levaram a fim de melhor exterminá-los. Sua conduta foi digna e mesmo exemplar nos campos. Mas sua voz se perdeu na tundra. Hoje, os trotskistas têm o direito de acusar os que outrora uivavam à morte com os lobos. Mas que não esqueçam que eles tinham sobre nós a vantagem de possuir um sistema político coerente, suscetível de substituir o stalinismo, e do qual podiam lançar mão da angústia profunda da revolução traída. Eles não ‘confessaram’, porque sabiam que suas confissões não serviam ao partido nem ao socialismo”.124

Poucos documentos da Oposição de Esquerda nos “campos” eram conhecidos, até 1980: o mais divulgado era o folheto Os Perigos Profissionais do Poder (1928), de Christian Rakovsky, veterano revolucionário, chefe moral da oposição na URSS (sua “capitulação” perante Stalin, em inícios da década de 1930, foi um golpe forte contra a oposição, acusado por Trotsky, seu amigo pessoal).125 Em 1980, a abertura da parte fechada dos arquivos de Trotsky, depositados na Biblioteca da Universidade de Harvard, permitiu jogar nova luz sobre a luta da Oposição na URSS, em especial nos campos de trabalho forçado, no período stalinista.126 O stalinismo levou adiante uma repressão sistemática das atividades oposicionistas, mas não conseguiu sua desarticulação política: valendo-se de métodos clandestinos de comunicação, a Oposição continuou suas análises sobre a situação da URSS e mundial, e desenvolveu uma atividade política, tanto nos campos de deportação como nos centros urbanos. A Oposição existia como corrente de idéias no interior da URSS, até seu extermínio físico. Os documentos elaborados pelos deportados oposicionistas buscavam compreender as causas de seu retrocesso e o caráter do novo período político: “Por suas raízes profundas, a crise de nossa revolução torna-

124

Leopold Trepper. O Grande Jogo. Lisboa, Horizonte, 1977, p. 61. 125

Christian Rakovsky (Krystiu Gheorgiev Stanchev, 1873-1941), revolucionário romeno-búlgaro, era médico, de origem abastada. Desde 1890, militou em organizações políticas da Internacional Socialista, na Romênia, Bulgária, Suíça, França e Alemanha, tendo chegado a ser o principal dirigente do Partido Social Democrata da Romênia. Em 1914, qualificou a Primeira Guerra Mundial de imperialista, e desde setembro de 1915 fez parte da “Esquerda de Zimmerwald”, com Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo. Encarcerado pelo governo romeno, em agosto de 1916, por seu ativismo contra a guerra, foi libertado por soldados russos em 1° de maio de 1917. Transferindo-se para a Rússia, passou a ser perseguido pelo governo provisório da Revolução de Fevereiro, por opor-se à guerra. Ajudado pelos bolcheviques, conseguiu sair do país, chegando à Suécia, de onde regressou com a Revolução de Outubro. Foi presidente do soviet da Ucrânia (1918) e líder dessa república até 1923, quando foi nomeado embaixador da URSS no Reino Unido, e depois na França (1925). Foi o inspirador-redator do Tratado de Rapallo (Alemanha-URSS). Próximo de Trotsky, foi um dos primeiros dirigentes da Oposição de Esquerda, sendo deportado para a Ásia Central, em 1928, onde sofreu graves doenças, sem cuidados médicos. Em 1930, juntamente com Vladimir Kossior, Nikolai Muralov e Varia Kasparova, escreveu uma carta ao Comitê Central do Partido Comunista da URSS: "Diante de nossos olhos, se formou uma grande classe de governantes que tem seus próprios interesses internos e que cresce mediante uma cooptação bem calculada, através de promoções burocráticas e de um sistema eleitoral fictício. O elemento aglutinador dessa classe original é uma forma singular de propriedade privada: o poder estatal". Em 1934 “capitulou” perante o regime stalinista, o que lhe permitiu um breve período de liberdade, durante o qual ocupou postos de segundo escalão no governo, no Comissariado do Povo da Saúde. Detido novamente em 1937, em 1938 se tornou um dos principais acusados no “Processo dos 21”, sendo condenado a 20 anos de cárcere. Em setembro de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, Rakovsky foi fuzilado. Foi reabilitado na URSS em 1988, durante o governo de Mikhail Gorbatchov (Cf. Pierre Broué. Rakovsky. La révolution dans tous les pays. Paris, Fayard, 1996). 126

Parte da documentação foi apresentada por Pierre Broué, nos Cahiers Léon Trotsky n 6, Paris, 1980.

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se uma crise da revolução mundial, estreitamente ligada ao declínio da onda revolucionária iniciado com a derrota da revolução alemã de 1923. Isto conduziu ao reforço da reação internacional e dos elementos democrático-burgueses no interior da URSS, o que se refletiu no estado de ânimo do proletariado e conduziu à derrota da ala leninista do partido, transformada em oposição à direção, que começou a abandonar os trilhos da política proletária. A oposição de direita tendia a enveredar pelo caminho do abandono aberto das bases da ditadura e do submetimento do país ao capital estrangeiro. A realização desse programa foi impossível porque a oposição leninista o denunciou desde o princípio como ‘termidoriano’, desde 1927, porque ela suscitou um movimento e uma luta e, enfim, por causa da pressão das massas, que foi insuficiente para que a direção passasse às mãos da Oposição, porém suficiente para impedir que caísse nas mãos dos direitistas. Esta é a causa fundamental da crise do bloco entre direitistas e centristas, que terminou na sua ruptura. Vimos a linha da direção, centrista vacilante entre a burguesia e o proletariado, que executa ziguezagues incessantes entre nossa linha e a dos direitistas”.127 O fragmento citado pertence a um extenso documento, redigido em papel de embrulhar cigarros, que desse modo conseguiu chegar ao exterior (e que da mesma forma circulou entre os deportados na URSS).

Christian Rakovsky, “Rako”

Em sua ruptura com a “direita”, Stalin adotara alguns dos pontos que haviam sido defendidos pela Oposição: industrialização do país, coletivização do campo. Os oposicionistas, no entanto, não consideraram isto um retorno do “centro” stalinista ao “leninismo”: “Esta política (da direita) na questão da indústria e a preparação insuficiente dos planos tornaram o terreno extremamente favorável ao desenvolvimento de forças de classe hostis e à tendência oportunista de direita nas camadas não proletárias do partido. O recrudescimento do estado de ânimo pró-kulak e o debilitamento das posições de classe do proletariado preparavam o Termidor. A vitória e a restauração das relações capitalistas ameaçavam o país. Isto foi o que determinou que os centristas deixassem de se deslocar para a direita: romperam sua aliança com os ‘termidorianos’ de direita e ocuparam as posições da esquerda, acompanhando esta mudança de gestos e de acrobacias ultra-esquerdistas (a ausência de uma real democracia operária cria uma situação na qual toda medida vital e necessária, ditada pela vontade e pelos interesses de classe do proletariado, é executada de maneira degenerada e corrompida, que faz às vezes mais mal do que bem). A industrialização, decidida pela XVI Conferência [do PCUS] que, por seu ritmo acelerado, tem o mesmo perfil que a da Europa ou da América, não faz mais do que basear-se na mesma fonte: a exploração intensa das massas operárias. Há muito tempo, numa de suas reivindicações essenciais, a Oposição pediu a revisão da repartição da receita nacional em proveito da indústria e da classe operária, enquanto que a política do grupo dirigente não passava de uma transferência de fundos da cidade para o campo... A política do grupo dirigente reduzia-se ao rebaixamento mecânico dos preços, o que implicava

127

Documento dos deportados de Vejneuralsk, junho de 1930.

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inevitavelmente na queda do salário real dos operários e da qualidade dos produtos; através dos preços, os ganhos da indústria eram transferidos para o campo. A política falsa dos anos precedentes fez com que o partido e a classe operária entrassem debilitados e desmoralizados no terceiro período, o da coletivização forçada”.

Yevgueni Préobrazhenski

“Diante da pressão crescente dos kulaks, que semeavam a revolta contra a industrialização, faziam-se necessária maior organização e firmeza. As camadas semi-proletárias de camponeses pobres e operários agrícolas deveriam ter atuado firmemente para fazer com que os camponeses médios passassem para o seu lado. O proletariado deveria ter dado provas de maior combatividade para fazer frente ao inimigo de classe. Teria sido mais necessário do que nunca criar uniões de camponeses pobres (era a exigência da Oposição), que, dirigidas pelo partido, tivessem se encarregado da organização soviética do campo contra o avanço dos kulaks... A campanha de coletivização estava em pleno desenvolvimento, porém as organizações de massas não estavam preparadas para ela, e sua atividade se encontrava amarrada dentro dos limites estreitos do burocratismo. Não se havia sensibilizado as massas, e todo o trabalho se fazia através do aparato do partido, contaminado pelo burocratismo, o mesmo aparato que, durante muitos anos, entrelaçou-se com os elementos kulaks da aldeia. Está claro que a campanha pela coletivização integral deve ter tido em grande parte um efeito negativo”.128 O autor do texto citado não possuía a informação que confirmava sua apreciação: a “coletivização forçada” conduziu a um enfrentamento com o campesinato, inclusive suas camadas média e pobre, no qual milhões de camponeses foram mortos, e mais da metade do gado da URSS foi abatida pelos próprios camponeses, que recusavam a “coletivização” burocrática. A respeito da industrialização empreendida pelo stalinismo, o mesmo militante da Oposição concluía: “Para resumir, digamos que há ‘industrialização’ e industrialização. E não nos deixamos seduzir pelas belas palavras dos capituladores que nos dizem que nossas exigências estão sendo realizadas, enquanto não nos provarem que a industrialização é praticamente impossível sem exercer sobre a classe operária uma pressão muito violenta, sem bacanais burocráticas, e sem a supressão de toda atividade autônoma verdadeira do proletariado”. Os “capituladores” eram setores da Oposição que, no começo dos anos 1930, da suposta analogia do novo rumo stalinista com o programa da Oposição, deduziam que o stalinismo havia adotado o seu programa. Uma analogia formal e puramente econômica. O centro do programa da Oposição, pórém, estava nas exigências políticas (democracia no partido, revitalização dos soviets), sem as quais as medidas econômicas não se convertiriam em um meio de fortalecimento da ditadura proletária. Outros setores da Oposição travaram batalha política contra a pressão capituladora: “A palavra de ordem de todos os que se preparam para capitular é a de ‘atenuar o aguçamento da luta’. O que é o aguçamento da luta? Colocamos, em primeiro lugar, a pergunta: nossa luta contra os centristas é concebível com suavidade? Isso seria possível, com o preço de nosso silêncio, do abandono de nossas

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Documento do oposicionista Dingelstedt, maio de 1930.

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idéias e de qualquer esforço para inseri-las na realidade. Só a existência de nossas idéias levou (e leva) à direção atual a uma resistência tal que não pôde (e não pode) existir sem o que se chama irrefletidamente de ‘aguçamento da luta’. Em síntese, não haveria aguçamento se não houvesse luta. Está claro que os que querem uma luta atenuada (e vão atenuá-la até que ponto? A luta mais atenuada é a ausência de luta) estão, no fundo, querendo deter totalmente a atividade fraccional, e, por isso mesmo, se afastam de nós e se deslocam para o centrismo”.129

A Oposição sofreu baixas, porém, a maioria de seus membros não capitulou. Um de seus debates foi sobre o caráter do Estado Soviético depois do triunfo da burocracia: “O secretário, o presidente do soviet local, o coletor de trigo, o cooperador, os membros dos sovkhozes, os chefes de empresa, os do partido e os sem partido, os especialistas, os capatazes que, indo pela linha da menor resistência, estabelecem em nossa indústria um sistema de pressão e de despotismo na fábrica - eis aqui o poder real no período da ditadura proletária que atravessamos! Esta etapa pode ser caracterizada como a dominação e a luta dos interesses corporativos das diferentes categorias da burocracia. De um Estado proletário com deformações burocráticas - como Lênin definia a forma política de nosso Estado - estamos passando para um Estado burocrático com sobrevivências proletárias comunistas. Sob nossos olhos, formou-se e continua formando-se uma grande classe de governantes com suas próprias divisões internas, que aumenta pela cooperação prudente, direta ou indireta (promoção burocrática, sistema fictício de eleições). O que une esta classe é uma forma original também de propriedade privada, a saber, a posse do poder de Estado. ‘A burocracia possui o Estado como sua propriedade privada’, escrevia Marx (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel)”.130 Eram as primeiras tentativas de definir a natureza do Estado soviético burocratizado: a burocracia não era definida como classe no sentido da posse dos meios de produção, mas sim no sentido de possuidora do poder estatal. Outros textos de da Oposição nos campos (“As leis da acumulação socialista durante o período ‘centrista’ da ditadura proletária”, “As leis do desenvolvimento da ditadura socialista”, de Rakovsky; “As conquistas da ditadura proletária no ano XI da revolução”, de Préobrazhenski e Smilga; “A lei do desenvolvimento desigual em Marx”, de Sosnovsky) são mencionados nos documentos, mas nunca foram achados.

O documento citado foi contestado: “Mesmo considerando a burocracia uma casta, sua dominação, por despótica que fosse, não tira do Estado seu caráter proletário, da mesma forma que o reino despótico de Luís Bonaparte não anulava o caráter pequeno-burguês do Segundo Império. Porém, a partir do momento em que a burocracia se transforma em classe - e vocês escrevem que ela já o é - o Estado Soviético se despoja de repente de seus hábitos proletários, isto porque a dominação de uma classe não admite o domínio de outra. Temos de decidir: ou a burocracia governante é uma classe e isto significa que já não existe a ditadura proletária, ou ela não é mais que um grupo, uma casta, e, nesse caso, ainda que sob domínio da burocracia, o Estado conserva seu caráter proletário. Nós acreditamos que vocês tomam Marx muito ao pé da letra. A burocracia não foi criada pelo Estado Soviético, ela se desenvolveu paralelamente ao crescimento dos Estados burgueses. Em todas as partes esse grupo-casta se multiplica por cooptação nas classes dominantes e, também freqüentemente nas classes que lhe são hostis (com referência aos Estados burgueses, temos entre nós uma diferença quantitativa e não qualitativa), em toda parte a burocracia possui o Estado como propriedade privada. Marx, pelo que sabemos, nunca qualificou a burocracia como ‘classe’, nem no sentido lato, nem por inexatidão terminológica - encontrada muito raramente em seus trabalhos históricos - nem no sentido estrito, quando analisa abstratamente o sistema social. É

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A política da inconstância, documento dos oposicionistas deportados Askendarian e Bertinskaia. 130

Documento de Rakovsky, Kossior, Muralov e Kasparova, abril de 1930.

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inútil dizer que a parte importante da burocracia na apropriação da renda nacional, ainda que ela aumente, assim como seu papel organizador do processo de produção, não são as etapas de uma construção que a constituem enquanto classe, porque uma classe não é uma categoria de repartição, mas uma categoria de produção ligada à propriedade dos meios de produção. Ainda tendo em conta a correção do camarada Christian [Rakovsky], que defende essa concepção, assinalando que se trata de um processo em andamento, isto é, que a burocracia está se transformando numa classe, ainda nesse caso, nossas objeções não perdem seu valor. Pensamos que a burocracia não é uma classe e que não o será jamais. A burocracia, camada dirigente da sociedade, irá se degenerar; é o gérmen de uma classe que não será uma classe burocrática desconhecida até hoje, cujo aparecimento significaria que a classe operária se transformou em alguma outra classe oprimida. A burocracia é o gérmen de uma classe capitalista que domina o Estado e possui coletivamente os meios de produção.

“Marx escrevia em 1875: ‘Esse desenvolvimento das forças produtivas é a premissa absolutamente indispensável [para o socialismo], porque de outro modo não é senão a miséria que se generaliza. Ora, com a miséria, a luta pelos bens de primeira necessidade vai recomeçar, e com ela toda a velha confusão’ (Crítica ao Programa de Gotha). A ‘velha confusão’ ressuscitará necessariamente sob a forma de degeneração da ditadura proletária em ditadura pequeno-burguesa ou em ordem capitalista, ou sob alguma forma de capitalismo de estado original, o que, mais do que uma ditadura pequeno-burguesa ou um capitalismo ordinário, corresponderia a uma atitude de grande potência do Estado russo, na medida em que esta reconstituição se produziria sob as condições de expansão imperialista na época do capitalismo agonizante”.131 Os documentos oposicionistas empregavam uma conhecida passagem de Marx, cuja idéia central serviu a Trotsky como chave da análise da burocracia soviética, em A Revolução Traída. Citemos um documento - resposta ao precedente: “A evolução do sistema soviético na URSS, devido aos choques entre as classes, mal regrados e dirigidos por uma política errônea e ziguezagueante, se traduz numa linha quebrada. No momento, não podemos definir senão a tendência geral, a direção que segue. Ela está muito bem expressa na declaração de Rakovsky. Os camaradas Khotimsky, etc., não estão contentes com essa definição dialética, dinâmica, que admite que se possa produzir na linha quebrada um desvio que modificaria a direção prevista. O camarada Khotimsky exige uma definição estática, que possa ter lugar num manual e constitua um ponto fixo num lugar onde os fatos reais, os fenômenos controlados, não possam marcá-la. (...) O que é a burocracia? pergunta o camarada Khotimsky; é uma classe ou não? Esquece que, segundo Marx e Lênin, a burocracia, saída das classes da sociedade, tornou-se estranha a essas classes que a engendraram para se elevar acima delas. Não há na citação (de Rakovsky) nada de novo sobre a burocracia, classe que possui o Estado como sua propriedade privada. Porém não é a burocracia em geral que se deve discutir, mas sim até que ponto a burocracia da URSS se distanciou da sociedade. São os problemas da democracia proletária - unidade entre os dirigentes e os dirigidos - e do burocratismo, que estão na ordem do dia. Nossa tarefa mais urgente é a de estudar o mais atentamente possível o processo de formação da burocracia soviética, o processo de transformação do Estado Soviético em Estado burocrático”.132 As comunicações com Trotsky e o acesso às informações eram muito fragmentárias para esses militantes deportados, sem mencionar a constante repressão da burocracia. Eis um fragmento de uma carta escrita por dois militantes deportados, dirigida a Trotsky: “Esses atrasos (na recepção e envio de cartas) nos têm sido muito úteis; permitem-nos verificar a linha e as posições que nós mesmos temos elaborado. E temos constatado, freqüentemente, com prazer, que, frente aos mesmos acontecimentos, o mecanismo do pensamento e as formulações eram as mesmas sobre a ilha

131

Documento de Khotimsky e Cheikman, julho de 1930. 132

Documento de Trigubov, julho de 1930.

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do Ural e de Prinkipo... É para nós a prova conclusiva dos laços que unem a nossa corrente para além das distâncias”.133

Os trabalhos de Trotsky sobre a burocracia foram produto da elaboração coletiva de uma corrente política. Não era recurso literário, portanto, a afirmação do Programa de Transição da IV Internacional de 1938, de que “a seção mais forte de nossa internacional se encontra na URSS”. Um dos materiais de base para a elaboração de uma das principais obras de Trotsky (A Internacional Comunista Depois de Lênin, elaborado como crítica às teses apresentadas para o VI Congresso da Internacional Comunista, depois publicado como Stalin, o Grande Organizador de Derrotas) foi um texto elaborado por um militante deportado, Lapine, chamado Crítica do Projeto de Programa da Internacional Comunista. Os militantes deportados, antes que toda comunicação fosse interrompida, conseguiam discutir e aprovar a orientação pela construção da IV Internacional. Em um informe de um militante trotskista sobrevivente aos expurgos da década de 1930, se lê: “Somos neste momento muito pouco numerosos: algumas centenas, mais ou menos quinhentos. Porém esses quinhentos não se inclinarão. São homens provados, que aprenderam a pensar e sentir por si próprios e que aceitam com tranqüilidade a perspectiva de uma perseguição sem fim”. Muitos militantes já haviam sido fuzilados; os que restavam tinham sido separados do restante dos deportados, e enviados a campos de confinamento nas zonas mais inóspitas, pois seu trabalho político fazia crescer a Oposição entre os milhares de deportados. Até finais da década de 1930, praticamente todos os oposicionistas de esquerda foram fuzilados. O trabalho político realizado por eles, refletido em centenas de documentos, e mesmo em jornais de manufatura clandestina e precária (O Bolchevique Militante, O Pravda detrás das Grades), que circularam manuscritos ou impressos artesanalmente, mostravam a existência de uma atividade política organizada, que levou Stalin a eliminar todos os remanescentes trotskistas da URSS nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. A conexão dessa atividade com Trotsky exilado, demonstra que as formulações deste sobre a burocratização da URSS foram o resultado de um debate no interior de uma corrente política atuante, embora em condições limítrofes de atividade. Não é, portanto, totalmente correto afirmar que, “em A Revolução Traída, terminada em 1936 na Noruega, se recopila, ordena e complementa o que Trotsky havia dito até então sobre o stalinismo”. Afirmar a seguir que, “como demonstra sua exposição da nova camada social, Trotsky fez, certamente, uma tentativa para se desprender da cartilha da doutrina marxista, mas retrocedeu no último instante ante as conseqüências de tal passo, e insistiu obstinadamente no conceito marxista de classe”,134 é simplesmente beirar a estupidez. O debate e a atividade dos deportados na URSS na década de 1930, as elaborações de Trotsky nas condições da persegüição política no “planeta sem visto de entrada”, como as elaborações de Gramsci nas prisões do fascismo, estão entre as páginas mais heroicas da história do pensamento político contemporâneo.135

Até meados da década de 1930, Stalin ainda enviava oposicionistas ao exterior, afastando-os da URSS, para missões diplomáticas ou econômicas: “Afastados do terreno principal de luta, o partido soviético, [os oposicionistas] participaram no combate das nascentes oposições comunistas internacionais”:136 “Essa oposição russa, antes da sua exclusão, informava [no exterior] sobre os acontecimentos no partido bolchevique, e convencia comunistas de outros PCs da justiça de seu combate. Para os opositores comunistas, a nível internacional, ela jogou

133

Carta de Jakovine e Ardachelia, novembro de 1930. 134

Heinz Brahm. Trotsky. In: C.D. Kernig (org.). Marxismo y Democracia. Madri, Rioduero, 1975, vol. 5, p. 146-147. 135

Pierre Broué perguntou-se: “Se os trotskistas tivessem sido «sectários» impenitentes, ou «sonhadores» utópicos, desconectados da realidade, pode-se crer que teria sido necessário, para acabar com sua existência - que era em si mesma uma forma de resistência- massacrá-los até o último em Vorkuta? Dentre os milhões de detentos libertados dos campos de concentração depois da morte de Stalin, os trotskistas sobreviventes podem se contar com os dedos de uma mão: é isto devido ao azar?" 136

Pierre Broué. Gauche Allemande et Opposition Russe. Cahiers Léon Trotsky n 22, Paris, junho 1985.

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um papel de farol, vanguarda da luta contra a degeneração da revolução russa, que começava a contaminar, através da Internacional Comunista, o conjunto do movimento comunista internacional”.137 Em março de 1929, Trotsky deu a conhecer um artigo - No caminho de uma oposição internacional - que estendia o combate contra o stalinismo ao terreno internacional. Em junho desse ano, quatro dirigentes comunistas oposicionistas - o francês Alfred Rosmer, o austríaco Jacob Frank, o alemão Wolfgang Salus, e o chinês Liu Renjing - que visitavam Trotsky

em Prinkipo, fizeram um chamado internacional: “O 10 aniversário da IC encontra uma Internacional em completo declínio: sua direção é incapaz de levar adiante suas tarefas, suas seções se enfraquecem constantemente. Diante desse perigo, que cresce a cada dia, comunistas de diversos países, reunidos a 10 de junho de 1929, decidiram formar um Comitê Internacional provisório da Oposição Comunista de Esquerda. Esse comitê adota o objetivo principal de agrupar as forças comunistas opositoras de todos os países, na base do programa preparado pela oposição do Partido Comunista russo. Considera como seus os métodos e concepções elaborados pelos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista. Defendé-los-á, ao mesmo tempo que denunciará os erros funestos das novas práticas que

caracterizaram o V e o VI congressos [da IC]. Propõe-se editar uma revista internacional, em diversas linguas, para apressar o reagrupamento dos operários comunistas, através do estudo e da discussão dos problemas que enfrenta a classe operária em cada país”.

Os seguintes quatro anos (1929-1933) seriam os da existência da Oposição de Esquerda internacional, o nascimento do “trotskismo” em escala mundial.O conjunto das contribuições de Trotsky, surgidas do debate político, constituíam já um corpus teórico que justificava o termo “trotskismo” poder ser usado para além do seu conteúdo inicialmente polêmico e despectivo. Devia-se a Trotsky, “a lei do desenvolvimento combinado e desigual, a crítica à degeneração do Estado soviético, e em particular à sua burocratização, a elaboração das características constitutivas da sociedade socialista, e o internacionalismo. Sob muitos aspectos, cada uma destas temáticas pode ser reduzida à teoria da revolução permanente, que dá o verdadeiro quadro interpretativo e global do pensamento de Trotsky, mas cada uma delas, por sua vez, foi desenvolvida posteriormente até alcançar um status autônomo de modelo explicativo (tenha-se particularmente em vista a crítica da burocratização)”.138 Trotsky se esforçou em reagrupar um amplo arco de militantes e organizações comunistas opostas ao stalinismo, como o Leninbund dos “esquerdistas” alemães Ruth Fischer, Hugo Urbahns, Arkadi Maslow e Werner Scholem, constituído em abril de 1928, continuador da Liga Spartakus; do Partido Social-Democrata Independente e do Partido Comunista Operário da Alemanha: Trotsky buscou publicar com eles uma revista internacional, Opposition, enquanto seu filho Leon Sedov era responsável pelos contatos clandestinos com os oposicionistas da URSS; deslocado da Turquia para a Alemanha, garantia também a publicação (em russo) do Biulleten Opositsii, distribuído na URSS. A luta da Oposição contra a burocratização, e a luta por um novo reagrupamento político mundial, foram dois aspectos de um único combate. Um novo surto revolucionário do movimento operário, no Oriente ou no Ocidente, poderia devolver aos trabalhadores soviéticos a vitalidade necessária para se oporem à burocracia stalinista.

Em julho de 1937, o crítico literário e ensaísta Dwight MacDonald convidou Trotsky a colaborar na Partisan Review, que durante um período foi considerada uma revista “trotskyzante”, o que lhe acarretou as fúrias do PC norte-americano e dos intelectuais a ele vinculados (Louis Fischer, Dashiell Hammett, Lilian Hellman, entre outros). Trotsky aceitou, embora fizesse reservas em relação à atitude política geral dos “intelectuais independentes” da revista. Quatro anos antes, um conhecido jornalista afirmava: “Pode acontecer que os comunistas que vivem na Rússia

137

Damien Durand. Opposants à Staline. L’Opposition de Gauche Internationale et Trotsky (1929-1930). Paris, La Pensée Sauvage, 1988, p. 9. 138

Gianfranco Pasquino. Trotskismo. In: Norberto Bobbio et al. Dicionário de Política. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 1261.

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estejam satisfeitos com o programa de Stalin, mas os camaradas que estão fora dela sentem-se prensados contra a parede, e aqui se encontra o alicerce da influência de Trotsky na Europa e a causa do medo que Stalin sente dele. Stalin não oferece nada ao comunismo mundial; Trotsky sim. Trotsky tem uma personalidade extremamente magnética. se vivesse na Alemanha, poderia em poucos anos reunir em torno de si os cinco milhões de comunistas alemães. Eis porque está exilado em Prinkipo. O movimento trotskista tem uma organização bem definida, embora embrionária, suas publicações ainda são muito fracas. Em muitas nações existe um núcleo de agitadores trotskistas que recebem ordens diretamente de Prinkipo. São pobres, e Trotsky, enquanto possível, financia pessoalmente o movimento. Em nenhum país os trotskistas se acham suficientemente fortes para desafiar abertamente a organização stalinista, mas na Grécia, Tchecoslováquia, Alemanha, e sobretudo na Espanha, a sua força está aumentando”.139

O processo abortou porque as derrotas do movimento operário na década de 1930 abriram o caminho para a Segunda Guerra Mundial; a época encontrava sua chave no fato de que a revolução russa de 1917 não encontrou um desenvolvimento vitorioso no cenário europeu e mundial. O capitalismo conheceu um processo de reorganização, que começou em 1924, com a estabilização européia depois dos abalos revolucionários do pós-guerra, e culminaria com os efeitos da Segunda Guerra Mundial. A crise e a bancarrota da Internacional Comunista foi um produto do retrocesso da revolução européia, da burocratização da URSS e da derrota da corrente revolucionária encabeçada por Trotsky. A bancarrota da Internacional iniciou-se com a derrota da revolução chinesa de 1927-28, tomou forma com a claudicação do PC alemão em 1932-34, e se consolidou com a aliança entre a burocracia soviética e a aristocracia operária européia, e destas com a “sombra” da burguesia, mediante as Frentes Populares e a cristalização do reformismo e “etapismo” dos PCs, operadas na década de 1930. A vitória do nazismo na Alemanha e suas conseqüências internacionais abriam uma nova etapa política mundial: “O fascismo, nascido da bancarrota da democracia diante das tarefas da época do imperialismo, é uma síntese dos piores males desta época. Traços de democracia conservam-se apenas nas aristocracias capitalistas mais ricas: para cada ‘democrata’ inglês, francês, holandês, belga, trabalha certo número de escravos coloniais; ‘sessenta famílias’ governam a democracia nos Estados Unidos, etc. Elementos de fascismo crescem rapidamente em todas as democracias. O stalinismo é, por sua vez, o produto da pressão do imperialismo sobre o Estado operário, atrasado e isolado, e constitui, de certo modo, o complemento simétrico do fascismo”.140

Dessas circunstâncias desfavoráveis, Trotsky tentou tirar a força de uma nova Internacional, forjando-a sobre a base da continuidade revolucionária das três Internacionais precedentes, e da assimilação a fundo das causas das derrotas. Levou adiante esse trabalho internacional ao longo de pouco mais de onze anos. Seu assassinato comoveu o mundo. Rapidamente, porém, ele desapareceu dos comentários e manchetes de jornal, abafado pelos acontecimentos da “guerra européia” (a Segunda Guerra Mundial), iniciada com a invasão conjunta da Polônia pelos exércitos da Alemanha e da URSS, um resultado do Pacto Hitler-Stalin celebrado em 1939 (a partilha da Polônia era uma das suas cláusulas secretas), pacto ao qual o assassinato de Trotsky se vinculou por mais de um fio. Fruto dessas circunstâncias, o assassinato do homem que simbolizou a intransigência revolucionária na primeira metade do século XX não chegou a ocupar, no imaginário popular mundial, um grande lugar. Com os anos, porém, o fato cresceu até tornar-se um momento-chave da história contemporânea, literal ou metafóricamente, como fez um romance de Jorge Semprún.141 O cinema o registrou diversas

139

John Gunther, in Harper’s Magazine, Nova York, abril de 1933. 140

Leon Trotsky. Moral e Revolução. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978 (1º ed. 1938). 141

Jorge Semprún. La Segunda Muerte de Ramón Mercader. Caracas, Tiempo Nuevo, 1970.

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vezes, com destaque para a produção de Joseph Losey, com Richard Burton no papel de Trotsky, Alain Delon no de seu assassino, e uma muito improvável Romy Schneider no papel da fisicamente pouco graciada Sylvia Ageloff, a militante de origem judeu-russa, irmã da secretária de Trotsky, que, seduzida por Mercader, acabou facilitando involuntariamente o ingresso do homicida no entourage imediato do revolucionário. Eric Hobsbawm se referiu ao regime stalinista e seus opositores: “Poucos desses centros dissidentes contavam muito do ponto de vista político. De longe o mais prestigioso dos hereges, o exilado Leon Trotsky - co-líder da Revolução de Outubro e arquiteto do Exército Vermelho - fracassou por completo em seus esforços políticos. Sua IV Internacional, destinada a competir com a stalinizada Terceira Internacional, foi praticamente invisível. Quando foi assassinado por ordem de Stalin em seu exílio no México, em 1940, a importância política de Trotsky era insignificante”.142 Em 1940, Trotsky estava certamente isolado. A apreciação de Hobsbawm parte dos seguintes pressupostos: 1) Trotsky carecia de qualquer importância política nesse período; 2) Seu assassinato não teve, portanto, nenhum vínculo com os acontecimentos políticos conemporâneos, e nenhuma influência neles; 3) Teria sido fruto exclusivo de uma vingança pessoal de Stalin. Esses pressupostos devem ser confrontados com os fatos.

Alain Delon como Ramón Mercader no cartaz do filme de Joseph Losey

A hipótese de que o assassinato resultou de uma vingança pessoal do seu arqui-inimigo, o todo-poderoso secretário geral, não é surpreendente, se levarmos em conta que o mandante do assassino já tinha demonstrado sua falta de escrúpulos com relação à vida alheia. As características doentio-vingativas de Stalin já haviam sido apontadas por Trotsky (Stalin não procurava “atingir as idéias dos seus adversários, mas sim o seu cérebro”). A interpretação de Hobsbawm tendeu a apagar as divergências político-históricas entre Stalin e Trotsky, chegando a apoiar-se na suposição de que Trotsky teria procedido do mesmo modo caso ele e Stalin estivessem lugarer invertidos. Descarta que o assassinato fizesse parte de uma luta entre forças políticas contraditórias. A importância do crime ficaria reduzida à de testemunho da psicopatologia elevada à razão de Estado, onde só a figura do assassino ganharia contornos históricos, tendo a vítima só a função de exemplo de ocasião. Em maio de 1989, a revista soviética Sputnik - porta-voz oficioso da glasnost e da perestroika - publicou o artigo “Trotsky: demônio da revolução”, onde eram retomadas as mesmas calúnias, com o mesmo fundo religioso, elaboradas mais de meio século antes pelo ex-seminarista georgiano. Depois, segundo a própria revista, “recebemos muitas cartas sobre esta personalidade” (Trotsky), que obrigaram Sputnik a publicar outro artigo, “Trotsky: um rosto por trás do vitral da história”, admitindo alguns fatos elementares, como o papel central de Trotsky na Revolução de Outubro e na criação e direção do Exército Vermelho.143 A emergência da ditadura stalinista

142

Eric Hobsbawm. Era dos Extremos. O Breve Século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 80. 143

Nikolai Vassetski. Lev Trotski: um rosto por trás do vitral da história. Sputnik n 4, Moscou, abril 1990.

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era no entanto apresentada como produto da adoção por Stalin das idéias de Trotsky (“seus métodos [de Stalin] deixaram de se diferenciar do plano trotskista”), isto porque “a guerra entre estes dois inimigos mortais - Trotsky e Stalin - não foi só uma luta de idéias. Ambos estavam imbuídos de igual demonismo [sic], ambos procuravam sub-rogar o leninismo pelo seu próprio ‘ismo’”.

Para Sputnik, como para Hobsbawm, o assassinato de Trotsky fora produto da sua inimizade mortal com Stalin, o que deixava sem explicação o massacre de milhares de trotskistas e de outros opositores nos campos siberianos, e inocentava o Estado, pois o fato seria apenas conseqüência de uma vingança pessoal. Na medida em que essa interpretação apoiou-se em elementos reais (a conturbada psique staliniana), ela adquiriu valor explicativo. Sem explicar por que, apesar de Stalin comandar pessoalmente a caçada ao exilado Trotsky, esta foi transformada em “assunto de Estado”, mobilizando a diplomacia soviética, que pressionou o governo francês de Laval para que não lhe fosse concedido asilo político a Trotsky. Na NKVD se constituiu uma “seção Trotsky”, com dezenas de funcionários e oficiais militares consagrados à perseguição, e Stalin fez de Trotsky réu principal in absentia dos “Processos de Moscou” não desistindo do projeto depois do fracasso da inicial tentativa homicida dos stalinistas mexicanos. Ao contrário da suposição citada, o exilado de Coyoacán não era uma personagem política insignificante nesses anos. A imagem contrária chegou até nós, não só através das ressonâncias místicas do título da obra do biógrafo de Trotsky, Isaac Deutscher (O Profeta Desterrado). Na década de 1930 não escapava a nenhum bom observador a potencial instabilidade política das ditaduras nazista e stalinista, e o papel que, nesse quadro, poderia jogar o fundador, junto com Lênin, do Estado Soviético. Em 1939, o pacto Hitler-Stalin tendia a reforçar ambos os governos. Mas a instabilidade política internacional varreu esse acordo, em junho de 1941, quando Alemanha invadiu a URSS. A Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo que adiou a crise dos regimes reacionários, tornou-a mais catastrófica. O constrangimento com que, nos anos 1930, meia dúzia de governos ocidentais se livraram de Trotsky, ao arrepio das elementares normas de direito de asilo, até o líder ser aceito num país ainda governado por pessoas que tinham de fato lutado pela democracia, só pôde ter tido razões vinculadas ao peso político internacional que Trotsky ainda possuía.

Segundo uma ex-dirigente alemã da Internacional Comunista, “o governo francês deu a Trotsky o direito de residir na França no mesmo momento em que se aproximava de Moscou. Cabe supor que tinham informações acerca da fragilidade da situação de Stalin, e do reagrupamento da oposição (na URSS). Considerava-se possível um retorno de Trotsky a Moscou, e pode ter sido vista como uma boa política, em 1933, dar a Trotsky um tratamento amistoso, com um olho posto numa futura reorganização do Politburo russo”.144 Na URSS a influência de Trotsky crescia entre os opositores anti-stalinistas. Mas os trotskistas organizados estavam na sua quase totalidade deportados na Sibéria, onde as metralhadoras acabariam com eles. Na Espanha, os trotskistas e o POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) foram perseguidos na própria República em guerra contra o franquismo; o principal líder do POUM, Andreu Nin,145 foi seqüestrado e assassinado por agentes da NKVD. Os membros da

144

Ruth Fischer. Trotsky à Paris, 1933. Cahiers Léon Trotsky n 22, Paris, junho 1985. 145

Andreu Nin nasceu em 1892 em El Vendrell (Tarragona), filho de um sapateiro e uma camponesa. Estudou para professor, e militou no republicanismo nacionalista catalão, deslocando-se depois para o socialismo. Em Barcelona, antes da Primera Guerra Mundial, trabalhou como professor em uma escola libertária, dedicando-se depois ao jornalismo e à política. Em 1917 participou da greve geral de agosto, e se integrou ao Partido Socialista Obrero Español (PSOE), indo depois para o sindicalismo revolucionário. Filiado à Confederación Nacional del Trabajo (CNT), em 1918 organizou o Sindicato de Profesiones Liberales; no segundo congresso da CNT, em 1919, defendeu a entrada da CNT na Internacional Comunista. Em 1921 se transformou em secretário geral da CNT, em substituição de Evelio Boal. Foi amigo de Salvador Seguí, e trabalhou com Angel Pestaña, David Rey, Manuel Buenacasa, Joaquín Maurín. Participou do III da Internacional Comunista (1922) como delegado da CNT, sendo membro de seu Comitê Executivo, e presidente da Internacional Sindical Vermelha (Profintern). Escreveu, nesses anos, dois importantes

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NKVD russa dominaram a polícia republicana espanhola, a repressão contra os anarquistas, trotskistas e poumistas aumentou à medida que a revolução retrocedia. As milícias foram integradas ao novo aparato policial. As coletivizações, sufocadas pela falta de créditos, acabaram controladas pelos representantes do governo, à espera de que o final do conflito abrisse a oportunidade de devolvê-las a seus antigos proprietários. A ajuda militar da URSS se converteu numa chantagem contra as forças republicanas. A repressão republicano-stalinista contra os revolucionários (o POUM foi tornado ilegal pela própria República) foi o prólogo da vitória franquista.

Quando, em 1938, os partidários de Trotsky se reuniram em Paris para fundar a IV Internacional, Stalin mandou seu recado: o principal organizador da reunião, Rudolf Klement, apareceu boiando esquartejado no Sena. O mesmo destino coube a Ignace Reiss, agente internacional da NKVD, que rompeu com Stalin e se aproximou de Trotsky, sendo assassinado na Suíça (não sem antes ter enviado uma carta ao Politburo do PCUS, anunciando a sua ruptura e a sua adesão à IV Internacional, imprudência que lhe custou a vida).146 Apesar de assassinatos e perseguições, em 1938, o jornal francês Paris-Soir transcrevia as preocupações surgidas numa reunião entre Hitler e o embaixador francês Coulondre: a de que, em caso de uma nova guerra mundial dela saísse vitorioso, não um dos blocos envolvidos, mas... “Monsieur Trotsky”, ou seja, que a guerra mundial se desdobrasse em guerra civil internacional.147 No seu último texto publicado, Trotsky escrevera: “A guerra mundial é a continuação da última guerra. Mas continuação não significa repetição. Como regra geral, uma continuação significa um desenvolvimento, um aprofundamento, uma acentuação”. A II Guerra Mundial deixou um lastro de sangue e morte maior do que a Primeira, num cenário mundial ampliado consideravelmente. A Segunda Guerra terminou com sintomas inequívocos

trabalhos: Os Movimentos de Emancipação Nacional, e O Movimento Sindical Mundial. Em 1926 vinculou-se à Oposição de Esquerda da URSS. Foi expulso de Moscou antes dos grandes expurgos, em 1930, por sua “afinidade com Trotsky”. Membro da Oposição de Esquerda Internacional, fundou a Izquierda Comunista de España (em 1931), publicando El Soviet. Como parte da Alianza Obrera interveio nos acontecimentos de outubro de 1934 na Catalunya. Em 1935 convergiu com o BOC (Bloc Obrer i Camperol) de Joaquin Maurín para criar o POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista). Nin foi diretor de sua revista La Nueva Era; foi nomeado secretário geral da Federación Obrera de Unidad Sindical (FOUS) em maio de 1936. Nesse período aconteceu sua ruptura política com Trotsky, que qualificou o POUM de “centrista” (o POUM assinou o programa da Frente Popular, qualificado por Trotsky de contra-revolucionário). Durante a guerra civil, como máximo dirigente do POUM, Nin entrou no Consell d'Economia de Catalunya (entre agosto e setembro de 1936) e foi conselheiro de justiça da Generalitat (governo catalão) até dezembro desse ano, sendo demitido por pressão do PSUC (stalinista). Depois dos acontecimentos de maio de 1937 em Barcelona, Nin foi detido pela policia, junto com Julián Gorkin e José Escuder (dirigentes do POUM) acusados, com base em documentos falsificados pela NKVD, de colusão com o franquismo. Os dirigentes do POUM foram levados a Valencia e depois a Madri, mas Nin foi separado de seus companheiros, sendo trasladado para Alcalá de Henares, interrogado e torturado de modo selvagem (18, 19 e 21 de junho de 1937). A pesar das torturas, Nin negou toda cumplicidade com os " nacionais". Nin foi assassinado a 22 de junho, sob ordem do “general Orlov”, em Alcalá de Henares, estrangulado pelo húngaro Erno Gëro, da NKVD. Imediatamente circulou a versão de que Nin fora “libertado” por "seus amigos da Gestapo": assim o declarou Juan Negrín, chefe do Governo da República. Em março de 2008 foi achada uma fossa com restos de cinco corpos da época da guerra civil: supõe-se que um deles seja Nin. A neta de Negrín afirmou que este sabia a verdade, e a encobriu com a “versão da Gestapo”, por ter sido “enganado” pelo Partido Comunista da Espanha (!). Oficialmente, Nin foi dado como “desaparecido”. 146

Cf. as memórias da esposa de Ignace Reiss (codinome de Ignacy Poretski, militante comunista originário da Galizia austro-húngara, por 16 anos agente do GPU e da NKVD; Poretski também usava o codinome “Ludwig”): Elisabeth K. Poretski. Les Nôtres. Vie et mort d’un agent soviétique. Paris, Denöel, 1969 (existe versão espanhola: Nuestra Propia Gente. Vida y muerte de un agente soviético. Madri, Zero, 1972). Um texto de Trotsky a respeito do assassinato de Reiss foi transformado em prefácio do livro. 147

Robert Coulondre. De Stalin à Hitler. Souvenirs de deux ambassades. Paris, Hachette, 1950. Segundo Nicholas Mosley (The Assassination of Trotsky. Nova York, Josef Schaftel, 1972): “O embaixador francês na Alemanha, Coulondre, teve uma entrevista com Hitler, em 1939, e falou no tumulto e nas revoluções que poderiam seguir-se a uma guerra. Relatou que disse a Hitler: vocês se julgam vitoriosos, mas já pensaram em outra possibilidade, a de que a vitória seja de Monsieur Trotsky? Hitler pulou ‘como se tivesse levado um soco no estômago’ e gritou que esta era mais uma razão para que França e Inglaterra não entrassem em guerra com a Alemanha”.

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de guerra civil (evidentes na presença de poderosas forças de partisanos irregulares nos principais teatros de operações) mas sem a vitória, ou sequer o fortalecimento, do previamente morto Trotsky nem dos seus partidários. A dizimação destes continuou durante a Segunda Guerra: os dirigentes da organização trotskista belga (Abraham Leon e o sindicalista Leon Lesoil) foram mortos pelos nazistas; o ex-dirigente do PC italiano, Pietro Tresso, “Blasco”, engajado no maquis francês, foi morto por seus “companheiros” do PC francês, o que foi denunciado pelo historiador Marc Bloch, resistente fuzilado em 1943 pelos nazistas.148 O “perigo Trotsky”, seu peso político potencial nos acontecimentos, não se devia só ao seu relevante papel na fundação do Estado soviético, ainda vivo na memória. O assassinato de Trotsky foi parte da dizimação de uma corrente política, que sustentava perante a guerra mundial uma política semelhante à defendida pelos bolcheviques durante guerra precedente, também propondo uma revolução anti-burocrática na URSS. Foi o aspecto central da tentativa, em boa parte bem sucedida, de liquidar essa corrente e seu papel potencial diante da catástrofe mundial.

As etapas prévias e os fatos do assassinato de Trotsky são conhecidos. Na noite de 24 de maio de 1940, aproximadamente 25 indivíduos disfarçados de policiais conseguiram entrar na sua residência de Coyoacán, seqüestrando previamente o guarda pessoal de Trotsky, Robert Sheldon Harte, que estava de sentinela, e amarrando os policiais encarregados de vigiar a casa. Dirigindo-se ao dormitório em que descansavam Trotsky e sua mulher, começaram a disparar com metralhadoras contra as janelas e as duas portas. Não atingidos pelos primeiros disparos, o líder bolchevique e sua companheira, Natalia Sedova, conseguiram chegar, arrastando-se, até um canto do quarto. O fogo cruzado continuou, um dos atiradores entrou no quarto e descarregou sua metralhadora sobre as camas. Saiu logo, aparentemente acreditando consumado seu objetivo, e jogando uma bomba incendiária no cômodo contíguo, onde se encontrava o neto de Trotsky, menino de catorze anos que se salvou da morte (foi ferido no pé). Os atiradores afastaram-se, cobrindo sua retirada com o fogo das metralhadoras, em dois carros que depois foram abandonados. Um deles pertencia ao pintor Diego Rivera, ex-amigo e anfitrião de Trotsky quando da sua chegada ao México, cujo motorista foi detido. Rivera fugiu para Hollywood, de onde regressou ao saber que não o implicavam no atentado. Trotsky havia rompido todo tipo de relações com Diego Rivera em 1938, quando este apoiou o partido reacionário do general Almazán; depois, filiou-se ao Partido Comunista mexicano.149 Rivera justificou sua intervenção precedente junto ao presidente Cárdenas, para que se concedesse asilo político a Trotsky, dizendo que respondia ao ânimo de atraí-lo para facilitar sua eliminação física...

As investigações policiais, apesar de um começo desnorteado, provocado pela suspeita do chefe da polícia Sänchez Salazar de que se tratasse de um “auto-atentado”,150 se encaminharam. Triste papel coube à imprensa do PC do México, dirigida pelo advogado e líder sindical Vicente Lombardo Toledano, a quem Trotsky acusou perante o Procurador Geral da República de ser cúmplice moral do atentado. As suas vociferações anti-Trotsky demonstraram que Toledano conhecia perfeitamente os detalhes do atentado antes da própria polícia. Em junho, esta conseguiu esclarecer a trama, provando a culpa de vários membros do Partido Comunista mexicano, cujas confissões proporcionaram pistas para chegar aos principais organizadores: o pintor David Alfaro Siqueiros e seu secretário Antonio Pujol; também participaram David Serrano Andonaegui, membro do Comitê Central do partido, Néstor

148

Um relato pormenorizado desse fato, incluindo a identidade dos militantes do PCF que assassinaram Pietro Tresso, encontra-se em: Pierre Broué e Raymond Vacheron. Meurtres au Maquis. Paris, Grasset & Frasquelle, 1997. 149

Natalia Sedova disse que, “de todos nossos antigos camaradas, foi o único que posteriormente se converteu de forma escandalosa ao stalinismo”. 150

Cf. Leandro A. Sánchez Salazar. Así Asesinaron a Trotski. México, La Prensa, 1955.

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Sánchez Hernández, quem, juntamente com Siqueiros, havia atuado nas “brigadas internacionais” da Espanha, e outros membros do PC.

David Alfaro Siqueiros

Não foi possível chegar a estabelecer, naquele momento, a identidade de um “judeu francês” presente no atentado e que, com toda probabilidade, era o agente direto da NKVD. Julián Gorkin propôs que o homem fosse Gregori Rabinovitch, presidente da Cruz Vermelha Soviética de Chicago, instituição que servia como cobertura da GPU nos EUA, e que se encontrava no México durante os fatos. Logo depois do assalto de 24 de maio, Rabinovitch retornou aos EUA, mas na capital mexicana “caiu” seu mais próximo colaborador, Vittorio Vidali (futuro deputado da República Italiana pelo PCI), antigo agente da NKVD, conhecido na guerra civil espanhola como “comandante Carlos Contreras”. O estrangeiro presente no atentado não parece ter sido Rabinovitch..151 A 25 de junho, o réu confesso Néstor Sánchez Hernández conduziu a polícia até uma casa situada em Tlalminalco, no deserto dos Leões, onde se encontrou o cadáver de Robert Sheldon Harte. A casa estava alugada pelos irmãos Luis e Leopoldo Arenal, cunhados de Siqueiros. Este e Pujol, fugitivos, foram finalmente presos a 4 de outubro de 1940, quando Trotsky já estava morto. Em junho, Siqueiros havia enviado uma carta aos jornais, dizendo: “O Partido Comunista não buscou, ao cometer o atentado, mais do que provocar a expulsão de Trotsky do México; os inimigos do Partido Comunista podem esperar ser tratados do mesmo modo”. Esta declaração tendia, provavelmente, e reconhecendo uma culpabilidade já inegável, a encobrir a NKVD, fazendo com o que o atentado fosso considerado fruto de um arrebatamento de cega paixão política, para o qual se anunciava “ingenuamente” que se perpetrariam outros.

Trotsky salvou-se dessa primeira tentativa com extrema dificuldade. Mas sabia que a tentativa de assassinato se repetiria, e assim o declarou à imprensa mexicana. Reforçou-se então a guarda policial em Coyoacán e se fortificou a casa, que chegou a parecer uma fortaleza. No seu livro de memórias This is My Story, o ex-dirigente do PC dos EUA, Louis Budenz, convertido ao catolicismo em 1946, relatou que no final de 1936, ao se conhecer a próxima partida de Trotsky para o México, expulso do seu precário refúgio na Noruega, o líder do PC americano, Earl Browder, discutiu com um de seus ajudantes, Jack Stachel, a possibilidade do assassinato. Budenz, que reconheceu ter sido um dos agentes da GPU que operavam nos EUA, declarou que lhe foi pedido para encontrar uma pessoa simpatizante do partido, que pudesse colocar um homem de confiança em relação com os trotskistas americanos. Budenz indicou Ruby Weill, colaboradora de uma publicação simpatizante do PCA, que mantinha relações de amizade com uma jovem militante do Socialist Workers Party (SWP, Partido Socialista dos Trabalhadores, o partido trotskista dos EUA), Sylvia Ageloff, de origem russa, cuja irmã Ruth

151

O “judeu francês”, segundo Pável Sudoplátov, era Leonid A. Eitingon, codinome de Naum Iakovlevich Ettingon, que tinha “servido” na França como “Pierre”, também como “Tom”, e na Espanha, durante a guerra civil, como “general Kotov”. Sudoplátov nega que Eitingon fosse amante ou marido de Caridad Mercader, mãe do assassino de Trotsky. Atuou no México, segundo Sudoplátov, “com um falso passaporte francês de um judeu sírio que padecia de uma doença mental”.

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trabalhava como secretária de Trotsky em Coyoacán. Ambas fizeram juntas uma viagem à França em 1938, na qual Weill colocou sua amiga em contato com um jovem, supostamente belga, que se dizia filho de diplomata, rico, grande viajante, que desejava ser jornalista: “Jacques Mornard” era seu suposto nome. Este cortejou Sylvia e se tornou seu amante. Em janeiro de 1939, ambos fizeram uma viagem ao México, onde encontraram os velhos amigos e hóspedes de Trotsky, Alfred e Marguerite Rosmer, aos que conduziu várias vezes em seu automóvel a Coyoacán. Como Trotsky observasse que era descortês deixar o marido de Sylvia na porta, convidou-o a entrar no jardim. Três dias depois do atentado de 24 de maio, Mornard conduziu os Rosmer em seu automóvel até Veracruz; antes de partir, compartilhou pela primeira vez o café da manhã com os habitantes da casa. Desde então, pode entrar na casa de Trotsky como uma pessoa de confiança. Fazia breves visitas, Trotsky o atendia por cortesia alguns minutos no jardim, enquanto dava de comer a seus coelhos. Em junho de 1940, Mornard foi aos EUA, de onde regressou em agosto, em estado de extremo nervosismo e doente. Provavelmente já lhe haviam dado a ordem de executar o assassinato, visto o fracasso da tentativa prévia de Siqueiros. Uma semana antes do assassinato, Sylvia e seu “marido” fizeram uma visita a Coyoacán, oportunidade em que esta discutiu com Trotsky em favor dos pontos de vista da minoria do Socialist Workers Party, encabeçada por Max Schachtman. “Mornard”, que apenas participou na discussão e não pareceu muito interessado, escreveu um artigo curto a respeito, mostrou-o a Trotsky, que o considerou primário. Escreveu então uma segunda versão, que a 20 de agosto de 1940 levou a Trotsky para lhe pedir seu parecer.

Pável Sudoplátov

Uma vez no gabinete deste último, Mornard levou a cabo seu atentado, enquanto Trotsky estava lendo seu texto, desferindo um golpe de picão no crânio do revolucionário. Quando se apressava para repetir o golpe, Trotsky se lançou sobre ele, conseguindo impedí-lo. Com o grito de Trotsky, os guardas e sua esposa vieram ajudá-lo. Trotsky, com o rosto ensangüentado, sem lentes e com as mãos caídas, apareceu no vão da porta. Indicou com dificuldade que não se devia matar “Jacson” (“Mornard” tinha sido apresentado a ele como “Frank Jacson”)152 sem conseguir que ele falasse. O assassino, ao ser golpeado pelos guardas, gritou: “Eles têm a minha mãe... Eles prenderam a minha mãe. Sylvia não tem nada a ver com isso... Não, não é a GPU. Eu não tenho nada a ver com a GPU”. “Eles” quem, então? Um médico declarou que a ferida de Trotsky não era grave, mas este se dirigiu a seu secretário Joseph Hansen (dirigente do SWP, que fraturou o braço batendo em “Mornard”-Mercader) em inglês, dizendo-lhe, apontando seu coração: “Eu sinto aqui que é o fim... Desta vez eles conseguiram”. Depois de uma intervenção cirúrgica, Trotsky faleceu a 21 de agosto pela noite. No bolso do assassino se encontrou uma carta na qual tentava justificar seu ato como sendo o de um “trotskista desiludido com seu mestre”, que teria lhe exigido deslocar-se para a URSS a fim de cometer atentados e assassinar o próprio Stalin, além de proibí-lhe casar com Sylvia;

152

“Mornard” explicara a Sylvia Ageloff que comprara um passaporte canadense a nome de “Frank Jacson” para sair da Bélgica se livrando do serviço militar, passaporte que usou nos EUA e no México.

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tanto os conceitos como o estilo da mesma era típicos das “provas” forjadas pela NKVD-GPU. Já se haviam encontrado cartas semelhantes ao lado do cadáver de outras vítimas, como Rudolf Klement. A carta de “Mornard” repetia os “argumentos” do fiscal Vychinsky nos Processos de Moscou (Trotsky como organizador de atentados na URSS, visando eliminar Stalin e todos os dirigentes do país). A carta estava datilografada, mas a data tinha sido acrescentada a mão, o que era outro indício do seu (primário) caráter forjado. Cinquenta anos depois, o coordenador do assassinato, Pável Sudoplátov, admitiu o fato: “Era importante deixar entrever uma motivação que pudesse desprestigiar a imagem de Trotsky e desacreditar seu movimento”.153

O velório de Trotsky na cidade do México durou cinco dias. 300 mil pessoas vieram se despedir pela última vez do revolucionário. O presidente Lázaro Cárdenas e sua esposa, que tinham se abstido de conhecer pessoalmente Trotsky, visitaram Natalia Sedova e expressaram sua indignação pelo crime, assegurando que compreendiam bem onde cartas como a encontrada no bolso do assassino haviam sido fabricadas, e que ela não devia se inquietar a esse respeito. A identidade de “Jacson-Mornard”, que este conseguiu ocultar durante anos, apesar de sua origem belga e demais referências serem claramente falsas, foi esclarecida por um médico mexicano, o Dr. Quiroz, que consultou em 1950 (por ocasião de um congresso médico na Espanha) fichas datilares da polícia espanhola, que coincidiam com as do assassino no México. “Jacson Mornard” na verdade chamava-se Ramón Mercader del Río e era filho da agente espanhola da GPU, ativa na guerra civil, Caridad Mercader (uma irmã desta, atriz, casou-se com o diretor e ator italiano Vittorio de Sica).154 Condenado a 20 anos, o assassino dispôs, durante a sua permanência na prisão de Lecumberri, de abundantes fundos de proveniência desconhecida, e assegurou-se um trato de favor na penitenciária. Demonstrou-se, também, sua conexão com Siqueiros. Numa determinada ocasião, antes do crime, em que Sylvia Ageloff lhe perguntou por sua direção comercial, deu as senhas de um escritório no edifício Ermita, no

153

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 115. 154

O estabelecimento definitivo dessa identidade, baseado em todas as provas e documentos do caso, foi feito por Isaac Don Levine: L’Homme qui a tué Trotsky. Paris, Gallimard, 1960. Eustasia María Caridad del Río Hernández nasceu em 1892 em Santiago de Cuba, com nacionalidade espanhola (Cuba era ainda colônia da Espanha), em rica família que depois se estabeleceu em Catalunya. Durante a juventude, parece ter tido forte vocação religiosa, chegando ao noviciado nas Carmelitas Descalzas (Dolores Ibarruri, La Pasionaria, foi também una católica fervente, devota da Virgen de Begoña). Em 1911 casou com Pablo Mercader, transformando-se em Caridad Mercader. Teve cinco filhos: Jorge, Ramón, Pablo, Luis e Montserrat. Ramón, futuro assassino de Trotsky, nasceu em Barcelona em fevereiro de 1913, cursando o primário nas Escuelas Pías. Em 1925, Caridad abandonou seu marido, indo à França com seus filhos, e iniciando uma relação com um militante do PCF. Teria tentado suicidar-se diversas vezes. Em 1928 teria se vinculado à GPU soviética, junmto a sua filha, Montserrat. Caridad foi destinada a cumprir missões em Cuba, México e outros países da América Latina. Na guerra civil espanhola, Caridad Mercader militou no Partido Socialista Unificado de Catalunya (PSUC), vinculado à Internacional Comunista, como secretária da Unión de Mujeres Comunistas. Foi chefe de uma brigada na frente de Aragón, sendo ferida em combate; Ramón foi nomeado tenente e comissário político nessa frente, enquanto seu irmão Pablo morreu na frente de Madri. Caridad viajou a México em novembro de 1936, transformando-se em colaboradora de Erno Gerö (“Pedro”), agente que chegaria ser chefe de governo na Hungria (derrubado pela revolta de 1956), junto com Ramón, e passando a trabalhar sob responsabilidade do general soviético Leonid Eitingon, configurando o núcleo que finalmente conseguiu matar Trotsky. No dia do assassinato (20 de agosto de 1940), Caridad e Eitingon esperavam Ramón perto da casa de Coyoacán: a prisão de Ramón os obrigou a fugir. Caridad foi para os EUA, e daí para Moscou, instalando-se em Kalujskaia, setor residencial privilegiado nos arredores de Moscou. Continou atuando para o serviço secreto, na URSS e no exterior, tendo sido responsável por aproximadamente trinta assassinatos (segundo o ex-comunista Castro Delgado, citado por Julián Gorkin), recebendo, assim como depois receberia Ramón, as Ordens de Lênin e Herói (heroína?) da União Soviética. Em 1945, foi autorizada a sair da URSS, indo a Cuba, e daí, para o México, onde Ramón estava preso (sua conduta na prisão estava sob responsabilidade de uma célula da NKVD chefiada pelo polonês Kupper). Caridad tentou, sem sucesso, obter legalmente a liberdade ou a redução de pena de Ramón. Em finais de 1945 foi para Paris, com sua filha Monserrat, casando-se novamente com um certo Dudouyt. Morou também em Cuba, mas morreu em Paris, em 1975 (a embaixada da URSS pagou seu funeral e seu enterro no cemitério de Pantin).

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Distrito Federal, que se comprovou estar alugada em nome de Siqueiros. Mercader foi libertado em 1960, dirigindo-se a Cuba, onde o recém instalado (um ano e meio) regime de Fidel Castro lhe negou asilo político. Mercader foi então para a Tchecoslováquia, e daí para a URSS, onde recebeu a “Ordem ao Mérito” de Lênin. Esquecido depois, voltou para a Tchecoslováquia, onde, segundo alguns, morreu de um câncer no estômago em finais da década de 70 (Sudoplátov sustentou que morreu em Cuba em 1978, depois de “trabalhar como assessor de Fidel Castro”, sendo seu cadáver transportado para Moscou, onde foi enterrado como “Ramón Ivanovich López”). Em 1966, o jornal belga Le Soir anunciou a morte do verdadeiro Jacques Mornard, cuja identidade Ramón Mercader “expropriara” e que, em vida, negou sempre ter tido qualquer relação ou conhecimento de Mercader. Sylvia Ageloff, sua ex-mulher “trotskista”, mudou-se depois do assassinato para Nova York, onde nunca mais voltou a falar no assunto, casando-se com outro militante trotskista, professor de literatura na New York University.

Ramón Mercader detido pela polícia mexicana

Levando em conta que a Oposição de Esquerda já estava derrotada, na URSS, e os métodos habitualmente empregados por Stalin, pode parecer surpreendente que o assassinato de Trotsky tenha demorado tanto e, sobretudo, que Stalin não o tivesse preso e executado quando aquele ainda se encontrava na URSS, optando por exilá-lo em 1929. Trotsky deu uma explicação para esse fato: "Em 1928, quando fui excluído do partido e exilado na Ásia Central, não era ainda possível se falar em pelotão de execução, nem mesmo em detenção. A geração com a qual eu tinha compartilhado a Revolução de Outubro e a guerra civil estava ainda viva. O Politburo se sentia pressionado por todos os lados. Desde Ásia central, eu consegui manter contatos diretos com a Oposição [de Esquerda]. Nessas condições, Stalin, depois de vacilar durante um ano, decidiu-se pelo exílio como um mal menor. Pensou que Trotsky, isolado da URSS e sem aparelho nem recursos materiais, seria incapaz de fazer qualquer coisa. Além disso, calculou que depois de me desprestigiar perante a população, não teria dificuldades em obter do governo aliado da Turquia o meu retorno a Moscou para o golpe final. Os acontecimentos posteriores, no entanto, demonstraram que era possível, sem aparelho ou recursos materiais, tomar parte na vida política. Com a ajuda de jovens camaradas, estabelecí as bases da IV Internacional... Os processos de Moscou de 1936-37 foram organizados para obter minha expulsão da Noruega, isto é, para me livrar às mãos da GPU. Mas isto não foi possível. Consegui chegar ao México. Sei que Stalin reconheceu diversas vezes que exilar-me tinha sido um erro enorme".155

No trabalho de preparação da IV Internacional estiveram associados vários quadros bolcheviques russos ainda sobreviventes, os chineses Chen Tu-Xiu e Pen Shu-Tze (primeiros secretário-geral e secretário de organização do PC chinês), os belgas Leon Lesoil e Abraham Leon, o holandês Henk Sneevliet (fundador do PC da Indonésia), o francês Alfred Rosmer (fundador do PCF e da Internacional Comunista), os italianos Pietro Tresso e Alfonso Leonetti (dirigentes do PCI), o vietnamita Ta Thu-Thau, dirigente da luta contra o colonialismo

155

Leon Trotsky. Oeuvres. Maio-agosto 1940. Vol. 24, Paris, ILT, 1987, p. 103.

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francês,156 o catalão Andreu Nin (ex dirigente da IC), Zavis Kalandra, surrealista e dirigente comunista tcheco, Pantelis Poliopoulos, secretário-geral do PC grego e, na América Latina, o senador comunista chileno Manuel Hidalgo, o cubano Sandalio Junco (primeiro grande dirigente operário negro), o dirigente gráfico brasileiro João da Costa Pimenta (fundador do PCB), o argentino Mateo Fossa (fundador da CGT, central sindical), e outros. Era parte da flor e a nata do movimento operário e revolucionário internacional, perseguida pelo fascismo e pelo stalinismo (metade dos nomeados morreu assassinada): o seu programa baseava-se na defesa da revolução proletária (abandonada pelas II e III Internacionais), retomava as linhas básicas dos quatro primeiros congressos da III Internacional (1918-1922) e analisava a nova situação mundial criada pelo retrocesso da revolução soviética (surgimento da burocracia stalinista) propondo uma revolução política na URSS, que devia completar a revolução social de outubro de 1917. A revolução política na URSS era um aspecto da revolução proletária internacional.

Trotsky no México

A repressão contra Trotsky e seus partidários não se limitou à URSS, embora fosse nela especialmente forte. Em 1938, em carta a um procurador francês, Trotsky denunciava: “Iagoda levou uma das minhas filhas a uma morte prematura, e a outra ao suicídio. Deteve meus dois genros, que desapareceram sem deixar rasto. A GPU deteve meu filho menor, Serguei, sob a acusação inacreditável de envenenar operários, depois do que ele desapareceu. Levou ao suicídio dois dos meus secretários, Glazman e Butov, que preferiram a morte a realizar declarações contra sua honra ditadas por Iagoda. Outros dois secretários russos, Poznansky e Sermuks, desapareceram na Sibéria. Ainda há pouco, a GPU sequestrou na Franca outro ex-secretário meu, Rudolf Klement. A polícia francesa o buscará, o encontrará? Eu duvido. A lista citada não compreende mais do que as pessoas mais próximas, não falo das milhares que morreram na URSS, nas mãos da GPU, sob a acusação de serem ‘trotskistas’”.157 Além desses, em julho de 1937 “desaparecera”, na Espanha, o jovem tcheco Erwin Wolf, ex-secretário de Trotsky e um dos principais organizadores da IV Internacional, provavelmente morto por Erno Gerö. Esse ano a NKVD levou sua atividade ao mundo inteiro, contra todos aqueles que Stalin designava como trotskistas. Há uma longa lista de mortes que lhe são atribuídas na Espanha, através das suas agências locais, chamadas de tchekas. Sob responsabilidade de russos como Orlov e Eitingon,158 de italianos como Vittorio Vidali,159 de alemães como Herz, de húngaros

156

Cf. Daniel Hémery. Révolutionnaires Vietnamies et Pouvoir Colonial en Indochine. Paris, François Maspéro, 1975. 157

Leon Trotsky. Lettre à Pagenel (24 de outubro 1938). Oeuvres. Vol. 18, Paris, p. 251. 158

Leonid Eitingon [Naum Iakovlevich Ettingon], filho de um fabricante de papel de origem judia, era primo do psicanalista, colaborador de Sigmund Freud, Max Eitingon. Ocupou cargos de responsabilidade na NKVD, em países como China, Turquia e, sobretudo, na Espanha. Foi acusado, entre diversos assassinatos, daquele do general bielo-russo Miller e do general Skoblin. Caiu “em desgraça” em 1951, quando foi preso, depois de uma “missão de limpeza” nos países bálticos, anexados à URSS em 1939, como parte do pacto Hitler-Stalin. Depois da morte de Stalin, seu ex-chefe Lavrentiy Beria o libertou, mas foi novamente detido sob ordens de Kruschev, passando doze anos na prisão, até 1964. Morreu em 1981, sendo oficialmente reabilitado em 1991, já no fim da URSS.

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como Gerö, da ítalo-americana Tina Modotti, do ítalo-argentino Vittorio Codovilla, se sucederam sequestros e mortes de adversários políticos de Stalin.160 Essa ação internacional expressava a transformação decisiva na URSS nesses anos: “Entre 1936 e 1938, num fenômeno sem precedentes na história, a direção do partido fez um gigantesco golpe de estado: aproximadamente 80% dos quadros do partido foram substituídos, foi levantado um novo partido, com Stalin na cabeça, um novo conjunto de quadros na economia e na agricultura, no exército”.161

A Espanha da guerra civil (1936-1939) foi campo fundamental de ação da polícia política internacional de Stalin, como reconheceu o seu chefe Pável Sudoplátov, de maneira curiosamente neutra: “De 1936 a 1939 houve na Espanha duas lutas de vida ou morte. Uma enfrentava as forças nacionalistas dirigidas por Francisco Franco, ajudado por Hitler, contra os republicanos, apoiados pelos comunistas. A outra a livravam os próprios comunistas entre si. Stalin, na URSS, e Trotsky, no exílio, abrigavam a esperança de serem os salvadores e fiadores dos leais à República, transformando-se assim na vanguarda da revolução comunista mundial. Os soviéticos enviamos para a Espanha nossos jovens e inexperientes agentes de espionagem, assim como nossos instrutores avançados. Espanha foi uma escola magnífica para nossas operações futuras”.162 O autor do fragmento citado parece esquecer que os mortos dessa “guerra civil paralela” só se encontravam em um dos lados em disputa, e que a “escola de espionagem” se exercitou contra o restante da esquerda, não contra o fascismo franquista. Na verdade, Espanha foi o cenário de uma luta política fundamental entre a revolução e a contra-revolução. Nas retaguardas republicanas, a burguesia “democrática” e seus aliados stalinistas realizaram uma verdadeira “guerra suja” contra os “comitês” que levantaram os trabalhadores espanhóis para defender sua revolução. Acredita-se que o brigadista internacional brasileiro Alberto Besouchet tenha sido assassinado desse modo: “O PCB desconfiava que Besouchet fosse trotskista...Há dados que comprovam que os PCs francês e espanhol o investigaram e, provavelmente, o assassinaram por lutar em uma milícia trotskista”.163 A brutalidade da repressão no campo republicano levou o escritor mexicano Octavio Paz, que visitou Espanha durante a guerra civil, a mudar sua posição de simpatia pelo Partido Comunista mexicano: “Octavio e Elena *sua esposa+ ficaram impactados pelas lutas partidistas existentes nas fileriras anti-franquistas... Em contato com socialistas verdadeiramente independentes, pôde conhecer a fundo a crua realidade da retaguarda republicana... A posição de Octavio Paz diante do assassinato de Andreu Nin, dirigente do POUM, despertou a admiração e a estima para o POUM de jovens socialistas *mexicanos+”.164

Os “comissários” da NKVD foram os chefes dos “grupos de tarefa” que assassinaram centenas de revolucionários, anarquistas, poumistas e trotskistas. Assassinando a revolução, o stalinismo colaborou para abrir o caminho para a vitória de Franco. Foram esses homens, 159

Depois da Segunda Guerra Mundial, Vidali foi deputado no parlamento italiano pelo PCI, passando boa parte do restante da sua vida se defendendo das acusações de assassinato de mlitantes das mais diversas tendências de esquerda, incluído o dirigente anarquista Carlo Tresca, que choveram sobre ele. 160

Sobre o papel de Tina Modotti, atriz, pintora, fotógrafa, na “segurança” staliniana na Espanha, e no México, existe uma vasta documentação recolhida por Pierre Broué nos Cahiers Léon Trotsky de 1978-1980. Numa biografia que às vezes descamba para a hagiografia, Christiane Barckhausen-Canale (No Rastro de Tina Modotti. São Paulo, Alfa-Omega, 1989) descartou esse aspecto da sua biografada, desprezando as alegações dos “trotskistas”, aos quais se refere com um linguajar tipicamente staliniano. Margaret Hooks (Tina Modotti. Fotógrafa e revolucionária. Rio de Janeiro, José Olympio, 1997, p. 262) confirma que, na Espanha e no México, “Tina estava envolvida em algum tipo de trabalho clandestino”, sem ir além dessa constatação. 161

Martin Malia. Comprendre la Révolution Russe. Paris, Seuil, 1980, p. 219. 162

A. e P. Sudoplátov. Op. Cit., p. 59. 163

Thais Battibugli. A Militância Anti-fascista: Comunistas Brasileiros na Guerra Civil Espanhola. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP (Departamento de História), 2000. 164

Bartomeu Costa-Amic. Leon Trotsky y Andreu Nin. Dos asesinatos del stalinismo. Cholula, Altres Costa-Amic, 1994, pp. 19 e 31.

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transformados em assassinos profissionais de revolucionários, os recrutados para assassinar

Trotsky. Seu arquétipo era o italiano Vittorio Vidali, “comissário” do “5 Regimento” da guerra civil, e responsável pelo seqüestro, tortura e assassinato do dirigente do POUM, e ex-presidente da Internacional Sindical Vermelha, Andreu Nin. Fizeram também sua carreira na repressão na Espanha homens como Palmiro Togliati e Vittorio Codovilla, secretários-gerais "vitalícios" dos PCs da Itália e Argentina. Ramón Mercader também "serviu" na Espanha.

Andreu Nin, dirigente do POUM espanhol

O assassinato de Andreu Nin, amigo pessoal de Trotsky, revestiu-se de particular crueldade. Em 1937, no quadro da ofensiva contra o POUM, Nin foi sequestrado por um comando da NKVD chefiado pelo “general Alexandre Orlov” (do qual voltaremos a falar), que tentou arrancar-lhe em vão uma confissão de colaboração com o fascismo. De acordo com o ex-dirigente do PC espanhol, e ex-ministro da República, Jesús Hernández, depois de interrogatórios intermináveis, nos quais “Nin não capitulava”, seus sequestradores “decidiram abandonar o método ‘seco’. O sangue vivo, a pele rasgada, os músculos destroçados, poriam à prova a sua capacidade de resistência. Nin suportou a crueldade da tortura e a dor do tormento refinado. Depois de alguns dias seu corpo tinha virado uma massa informe de carne machucada”.165 Para disfarçar sua morte, foi desastradamente fingido um “sequestro” por um comando da Gestapo alemã infiltrado... nas Brigadas Internacionais. O suposto “comando” nunca foi identificado, e o corpo de Nin nunca foi achado. A Espanha foi a “prova de fogo” que treinou e “formou” esses homens, que alguma vez haviam sido comunistas sinceros.

Alexandre Orlov

Ai também se forjaram os homens que entrariam na Europa do Leste com os tanques soviéticos para criar as “democracias populares” da Europa do Leste, depois da Segunda Guerra: entre o sangrento esmagamento da insurreição operária de Barcelona e a brutal repressão dos levantamentos dos trabalhadores de Berlim, Budapeste e Praga nas décadas de 1950 e 1960 há um fio condutor através da história. O assassinato de Trotsky começou a ser preparado na Espanha: “Após Cárdenas ter dado asilo político a Trotsky, Siqueiros y Vidali foram a uma reunião do PCE, onde La Pasionaria [a dirigente comunista espanhola Dolores Ibarruri] praticamente esbofeteou os mexicanos em relação ao caso Trotsky. Com sua masculinidade revolucionaria desafiada, Siqueiros disse que ele e outros membros da

165

Apud Victor Alba. Dos Revolucionarios. Andreu Nin y Joaquin Maurin. Madri, Ediciones Castilla, 1975, p. 508.

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sociedade Javier Mina de ex-combatentes, da qual Vidali era membro, se consideraram obrigados a levar a cabo o ataque e a destruir a chamada fortaleza de Trotsky em Coyoacán”.166 Em inícios de 1937 fracassou uma tentativa da NKVD se seqüestrar Leon Sedov, em Mulhouse (França), destinada provavelmente a sentá-lo no banco dos acusados do segundo processo de Moscou.167 No mesmo ano, segundo Pável Sudoplátov, teria fracassado a primeira tentativa de eliminação de Trotsky, confiada por Stalin pessoalmente a um dos dirigentes da NKVD, Mikhail Spiegelglass.168 Mas em fevereiro de 1938, Leon Sedov morreu misteriosamente, com 32 anos, depois de uma operação de apendicite em uma clínica parisiense de propriedade de um emigrado russo branco, provavelmente vinculado à NKVD. As circunstâncias da morte, assim como o fato comprovado de que o principal colaborador de Sedov, o russo de origem polonesa Mordchka Zborowski, foi desmascarado em 1954, nos EUA (onde era professor universitário de antropologia) como agente da NKVD, sob o codinome "Mark" (na IV Internacional, seu codinome era "Etienne") - mas este fato foi ignorado por Trotsky enquanto viveu - levaram a pensar que Sedov fora assassinado pela NKVD.169 Isto nunca ficou provado.

Leon Sedov, filho de Trotsky e seu principal colaborador

Dmitri Volkogonov sustentou que Sedov foi assassinado pela NKVD, o que foi negado por Sudoplátov, que afirmou não ter encontrado provas disso no seu processo (nos arquivos da KGB russa), e que “ninguém foi condecorado ou reivindicou essa honraria”, por esse fato.170 Volkogonov, militar de alta patente (antes de morrer foi assessor militar de Boris Ieltsin) deve ter tido fortes razões para sustentar o contrário. “Mark” ou “Etienne” já tinha despertado as suspeitas de Victor Serge e Pierre Naville, que se dirigiram a Trotsky nesse sentido. Em 1939, “Trotsky recebeu em Coyoacán uma estranha carta anônima. Seu autor afirmava ser um velho judeu apátrida refugiado nos EUA. Pretendia ter recebido de um alto chefe dos serviços secretos soviéticos, tránsfuga no Japão, a confidência dos brilhantes serviços de um certo Mark, cuja descrição coincidia com a pessoa de Étienne”.171 O “velho judeu apátrida” era Alexandre Orlov (codinome de L. L. Feldbine, de fato judeu, mas não apátrida nem velho), um dos principais agentes da NKVD (ou "espião da URSS", como se dizia nos meios ocidentais) no exterior, veterano não só da guerra civil espanhola, mas também da guerra civil na Rússia de 1918-21, em que tinha servido no Exército Vermelho sob o comando de Trotsky. Em 1938, o

166

Margaret Hooks. Op. Cit., p. 263. 167

Cf. Pierre Broué. Ljova, le “fiston”. Cahiers Leon Trotsky n 13, Paris, março 1983. 168

A. e P. Sudoplátov. Op. Cit., p. 103. 169

Dois médicos franceses, fazendo uma “autópsia retroativa”, chegaram à conclusão de que Sedov pôde, de fato, ter morrido de complicações pós-operatórias (Jean Michel Krivine e Marcel-Francis Kahn. La mort de Leon Sedov.

Cahiers Leon Trotsky n 13, Paris, março 1983). Gérard Rosenthal sustentou que os “agentes russos” encontraram certas facilidades para infiltrar-se no entourage de Trotsky e Sedov devido a que ambos “eram muito sensíveis ao clima em comum e ao universo compartilhado que teciam entre si os oriundos da Rússia, facilitando uma conivência privilegiada, na qual os ocidentais não acediam com facilidade” (Gérard Rosenthal. Op. Cit., p. 262). 170

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 121. 171

Gérard Rosenthal. Op. Cit., p. 263.

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“general Orlov” tinha desertado, e “havia mandado uma carta pessoal a Stalin, dos EUA, explicando sua deserção por sua iminente prisão a bordo de um barco soviético. A carta estabelecia que se Orlov descobrisse qualquer tentativa dos soviéticos de averiguar seu paradeiro ou indícios de ser vigiado, pediria a seu advogado que tornasse pública uma carta que ele havia depositado em um banco suíço, que continha informação secreta sobre falsificação de materiais para o Comitê Internacional para a Não-Intervenção na guerra civil espanhola. Orlov ameaçava também contar toda a verdade sobre o ouro espanhol, depositado secretamente em Moscou, e proporcionar as listas de embarque. Esta história teria significado um embaraço para o governo soviético e para os refugiados de guerra espanhóis no México, porque o apoio militar soviético à causa republicana era concedido supostamente em nome da solidariedade socialista”.172

Jornal stalinista inglês noticia a colaboração entre os trotskistas e Franco

Nas suas memórias, Orlov afirmou também ter tentado entrar em contato telefônico com Trotsky, para advertí-lo sobre a presença de Etienne-Zborowski (que ele chamava de “Mark”) no seu círculo, e sobre o papel deste no roubo dos arquivos de Trotsky depositados na filial de Paris do Instituto de História Social de Amsterdã, onde ficariam aos cuidados do historiador menchevique David Dallin (casado com Lola Estrine, Lilia Ginzberg, ex-colaboradora direta de Leon Sedov em Paris). Na ocasião, Orlov não conseguiu passar do secretário de Trotsky no México (o holandês, futuro matemático e lógico de destaque, Jan Van Heijenoort). Quando a parte fechada dos arquivos de Trotsky na Harvard Library foi aberta, Pierre Broué descobriu uma cópia de uma carta de Trotsky (dirigida a quem?) a respeito de “Etienne” e outra da carta do “velho judeu”, que desmente a versão de que Trotsky teria feito ouvidos surdos às suspeitas que pesavam sobre o ex-colaborador de Sedov: “É necessário seguí-lo de maneira discreta e eficiente. Me parece que devemos pôr no assunto a [Boris] Nicolaievski.173 Criar uma comissão de três: Rosmer, Gérard [Rosenthal] e Nicolaievski, agregando dois ou tres jovens para o seguimento, de modo individual e absolutamente secreto. Se a informação se revelar verdadeira, garantir a possibilidade de denunciá-lo à polícia francesa pelo roubo dos arquivos, em condições que não possa fugir. Comunicar de imediato estas informações a Rosmer. O melhor seria através de [James P.] Cannon, se ainda está aí [Paris], ou de [Max] Schachtman, se ele for [a Paris]. Vocês encontrão os meios. Peço notificação de recepção”. Aparentemente, nada foi feito, e “Etienne” só foi descoberto em 1954, nos EUA, pelo FBI, após confissão de “Soblen” (Sobolevicius), ele também ex-espião stalinista. Pouco tempo antes, tinha se entrevistado com Gérard Rosenthal, enviando calorosas saudações “aos camaradas [trotskistas] franceses”. Nos EUA, Zborowski-“Etienne” só recebeu uma pena leve, por perjúrio nas suas declarações a respeito das atividades dos "irmãos Soblen": no interrogatório a que foi submetido, muito minucioso, quase nada lhe foi inquirido a respeito da sua longa relação com

172

A. e P. Sudoplátov. Op. Cit., p.78. 173

Boris Nicolaievski foi, depois, autor de uma biografia de Karl Marx, publicada pela Penguin Books, que durante anos foi considerada a mais completa sobre a vida do revolucionário alemão.

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Sedov como agente da NKVD, nem a respeito da sua possível implicação na morte dele, assuntos que evidentemente pouco interessavam aos serviços secretos (ou à justiça maccarthysta) dos EUA.174 Zborowski-“Etienne”-“Mark” morreu na década de 1990 nos EUA, transformado em anti-comunista.

Um aspecto a ser destacado é que os principais “desertores” do “sistema de segurança” internacional do aparelho stalinista, durante a década de 1930, buscaram alguma forma de colaboração com Trotsky, com graus diversos de aproximação política. Na verdade, tratava-se de quadros militantes em processo de ruptura política, muito mais que “espiões russos passados para o Ocidente”, como fomos acostumados a vê-lo pela literatura e a mitologia do “mundo livre” (capitalista) no pós-guerra: eram os quadros da GPU-NKVD, e do aparelho clandestino da Internacional Comunista, recrutados durante a revolução russa e a guerra civil.175 Já falamos de “Alexandre Orlov”,176 célebre por ter recrutado e formado o “círculo de Cambridge” (Russell, Philby, MacLean, Burgess, Blunt e Cairncross), depois infiltrado no serviço secreto britânico.177 Walter Krivitsky (codinome de Samuel Ginzburg),178 rompeu com a NKVD em 1937, esteve em contato direto com Leon Sedov e, depois, com Jan Frankel, trotskista americano, “com a consciência pesada, recusando dramaticamente julgar ou ser julgado, não querendo ser outra coisa que um soldado prestes a obedecer, inacapaz de refletir ou de pensar por conta própria, propondo só ser útil a Trotsky lhe fazendo conhecer, através dele, um tipo de homem que Trotsky não conhecia. E Sedov, diante dele, lhe falando em nome de Outubro e da revolução mundial, reivindicando e exigindo-lhe uma declaração política condenatória do stalinismo, e chamando à defensa da URSS”.179 Devia ser uma situação embaraçosa: os trotskistas sabiam que Krivitsky e Orlov eram responsáveis pelo assassinato de vários de seus camaradas, principalmente na Espanha...

Walter Krivitsky

Durante o “grande terror”, os expurgos atingiram também os aparelhos clandestinos e de segurança da URSS. Pável Sudoplátov lembrou disso à sua “ingênua” maneira: “Muitos de nossos amigos, gente em quem confiávamos completamente, haviam sido detidos sob acusação de traição. Nós supunhamos que aquilo era o resultado da incompetência de Ekhov.

174

Cf. Michel Lequenne. Les demi-aveux de Zborowski. Cahiers Leon Trotsky n 13, Paris, março 1983. 175

A crise política dos aparelhos de segurança da URSS durante os grandes expurgos é um aspecto negligenciado pela historiografia, mais preocupada nos aspectos espetaculares da “espionagem”, ou na elaboração de uma base historiográfica para o anti-comunismo. Cf., por exemplo: John J. Dziak. Chekisty. A history of the KGB. Lexington, DC Heath, 1988; John Barron. KGB Today. The hidden hand. Londres, Hodder & Soughton, 1985; Christopher Andrew e Oleg Gordievskij. La Storia Secreta del KGB. Milão, Rizzoli, 1996. 176

Alexander Orlov. The Secret History of Stalin’s Crimes. Nova York, 1953. 177

Esse “círculo” teria inspirado o romance de Graham Greene, The Third Man, do qual foi tirado o filme homônimo, de Michael Curtiz, com Orson Welles e Joseph Cotten nos papéis principais. 178

Walter G. Krivitsky. In Stalin’s Secret Service. Nova York, 1939. Krivitsky (1899-1942) foi um alto funcionário dos serviços secretos soviéticos; rompeu com Moscou em 1937, após o assassinato do seu superior Ignace Reiss (Reiss havia rompido com a NKVD quando do primeiro «Processo» de Moscou). Depois de publicar seu livro, juntou-se aos mencheviques exílados nos EUA; foi misteriosamente assassinado num quarto de hotel em Nova York, em 1942. 179

Pierre Broué. Ljova, le Fiston, cit.

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Quero revelar aqui um fato importante, que os livros dedicados à história da polícia política soviética passaram por cima. Antes de Ekhov assumir o comando da NKVD, não existia nenhum departamento especial para investigações internas. Isto queria dizer que o agente de enlace devia investigar pessoalmente qualquer delito cometido por seu pessoal. Ekhov criou o Departamento de Investigações Especiais dentro da NKVD *com esse objetivo+”.180 Sudoplátov aproveitou para negar qualquer responsabilidade da NKVD na morte (assassinato) de Krivitsky, nos EUA, em 1942, aderindo à tese oficial de “suicídio”. Outro membro do aparelho clandestino da URSS, depois conhecido mundialmente graças ao seu livro de memórias, Jan Valtin (codinome de Richard Krebs), talvez deva a sua vida ao contato com os trotskistas, pois se encontrava em situação extremamente difícil (buscado simultaneamente pela Gestapo hitleriana – Krebs era alemão – e pela NKVD) no momento da sua ruptura com Stalin: “Depois que tomou a sua decisão, Valtin foi para Anvers [porto na Bélgica] onde, segundo o agente da Gestapo ‘König’, um grupo trotskista, chefiado por certo Jiske, ajudou-o a embarcar em um barco inglês destinado aos EUA, onde chegou em fevereiro de 1938”.181 O próprio chefe da espionagem soviética no ocidente durante a Segunda Guerra Mundial – a Orquestra Vermelha – reconheceu, nas suas memórias, o papel dos trotskistas na luta contra o stalinismo, na década de 1930.182

Ignace Reiss

Embora tenha sido principalmente um jornalista, cabe também mencionar o galês Burnett Bolloten, correspondente da agência United Press na Espanha durante os primeiros anos da guerra civil. Instalado no México com uma enorme documentação espanhola (foi autor de um célebre estudo sobre a guerra civil), teve uma experiência com seus amigos “comunistas”, pois logo depois do atentado de 24 de maio de 1940 contra Trotsky, Vittorio Vidali lhe pediu para esconder Tina Modotti, procurada pela polícia por esse atentado. Passou então a analisar a sua documentação sob um ângulo novo, e a defender a revolução espanhola destruída pelo stalinismo. Em 1961, publicou uma das mais completas denúncias do papel do stalinismo na revolução e na guerra civil espanholas.183 O mais importante, porém, foi o “caso Ignace Reiss” (codinome do polonês Ignacy Poretski). Este, um dos mais importantes agentes da NKVD na Europa ocidental, rompeu com o stalinismo denunciando não só os seus crimes, mas também sua base política, e aderindo explicitamente à IV Internacional: “O dia em que o socialismo internacional julgar os crimes cometidos no curso dos dez últimos anos está próximo. Nada será esquecido, nada será perdoado. A história é severa: ‘o chefe genial, o pai dos povos, o sólido socialismo’ darão conta de seus atos: a derrota da revolução chinesa, o plebiscito vermelho [na Alemanha], o esmagamento do proletariado alemão, o social-fascismo e a frente popular, as confidências ao senhor Howard, o idílio enternecido com Laval: todas elas histórias

180

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 71. 181

Jacques Baynac. Post-face. In: Jan Valtin. Sans Patrie ni Frontières. Paris, Jean Claude Lattès, 1975, p. 708. 182

Cf. Leopold Trepper. O Grande Jogo. Lisboa, Horizonte, 1977. 183

Burnett Bolloten. El Gran Engaño. Las izquierdas y su lucha por el poder en la zona republicana. Barcelona, Caralt, 1975.

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insólitas! Esse processo será público e com testemunhas, uma multidão de testemunhas, mortos e vivos: todos falarão uma vez mais, porém desta vez para dizer a verdade, toda a verdade. Comparecerão todos esses inocentes destruídos e caluniados, e o movimento operário internacional reabilitará a todos, a Kamenev, Mratchkovski, Smirnov, Muralov, Drobnis, Serebriakov, Mdivani, Okudjana, Rakovsky e Andreu Nin, todos esses ‘espiões e provocadores, todos esses agentes da Gestapo e sabotadores’! Para que a União Soviética e o movimento operário internacional em seu conjunto não sucumbam definitivamente sob os golpes da contra-revolução aberta e do fascismo, o movimento operário deve se desvincular de Stalin e do stalinismo”.184

Reiss anunciou a sua ruptura numa carta ao CC do PCUS de julho de 1937 (citada acima) na qual anexou a “Ordem da Bandeira Vermelha”, condecoração que tinha obtido em 1928, pois “seria contrário à minha dignidade levá-la ao mesmo tempo que os carrascos dos melhores representantes da classe operária russa”. Vítima de uma cilada da NKVD, Reiss foi assassinado pouco depois em Lausanne (Suíça). Trotsky criticou o modo em que efetuou a sua ruptura: “É inútil dirigir uma carta a Moscou. Não é possível influir em nada sobre esses bonapartistas corrompidos até a medula por meio de uma carta. O dia da ruptura impunha-se difundir uma declaração política à imprensa mundial, que não informasse da passagem de Reiss para a IV Internacional – o que só interessa neste momento a uma ínfima minoria – mas sim de suas atividadess passadas na GPU, dos crimes desta, da fraude dos Processos de Moscou e da sua ruptura”.185 Trotsky concluiu que a ruptura de “Ludwig” (outro codinome de Reiss) era, além de uma atitude corajosa, o índice claro de que “mais de um membro do aparelho de Stalin vacila”, embora estes não tirassem a conclusão de Reiss: “Pretendo consagrar minhas humildes forças à causa de Lênin: quero combater, pois somente nossa vitória – a vitória da revolução proletária – libertará a humanidade do capitalismo e a União Soviética do stalinismo! Avante para novos combates pelo socialismo e pela revolução proletária! Pela construção da IV Internacional!”. Pável Sudoplátov admitiu o assassinato de Reiss pela NKVD, fornecendo inclusive os nomes dos executores (o búlgaro Boris Afanasiev e o russo Viktor Pravdin) mas, como de hábito, procurou um álibi que não só ignorou suas motivações políticas, como também deformou os acontecimentos até chegar à calúnia: “Reiss, aliás Poretski, era um espião sediado na Europa ocidental, que havia recebido grandes somas de dinheiro, das que não havia prestado contas, e temia ser vítima dos expurgos. Reiss decidiu fazer uso dos fundos operacionais para desertar, e assim foi como depositou dinheiro em um banco norte-americano. Antes de desertar em 1937, Reiss escreveu uma carta à embaixada soviética em Paris denunciando Stalin. A carta conseguiu chegar até uma publicação trotskista; foi um erro decisivo. Do expediente de Reiss, se percebia que nunca havia simpatizado com Trotsky”.186 Quando isso foi escrito, já se sabia que não “a carta”, mas seu autor em carne e osso, tinha se entrevistado com os trotskistas, notadamente com o holandês Henk Sneevliet (deputado na Holanda, ex-funcionário da Internacional Comunista na China sob o codinome “Maring”) antes de redigir a carta. No seu Trotsky, de 1988, Pierre Broué ainda sustentava que os assassinos de Reiss pertenciam ao “grupo de Paris” chefiado por Serguei Efron, com o mafioso Roland Abbiate e a professora suíça Renata Steiner, que tinha tentado seqüestrar Leon Sedov em 1937.187

Sudoplátov também admitiu a responsabilidade da NKVD, em agosto de 1938, no assassinato de Rudolf Klement, jovem trotskista alemão, ex-secretário de Trotsky em Turquia, que fora um dos principais organizadores da conferência de fundação da IV Internacional. O ato foi

184

Carta de Ignace Reiss ao CC do PCUS. In: Elisabeth K. Poretski. Nuestra Propia Gente. Madri, Zero, 1972, p. 10. 185

Leon Trotsky. Una lección trágica. In: Elisabeth K. Poretski. Op. Cit., p. 7. 186

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 78 187

Pierre Broué. Trotsky. Paris, Fayard, 1988, p. 871.

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especialmente atroz, pois Klement foi seqüestrado em Paris, estrangulado e esquartejado num apartamento da NKVD por um certo “Turco”: seu tronco apareceu boiando no Sena poucos dias depois. Klement conhecera pessoalmente (em Paris, em 1938) o futuro assassino de Trotsky, Ramon Mercader (então ainda “Jacques Mornard”): “Porquê a GPU atacou Klement? Não era uma personalidade eminente da IV Internacional. Mas a intimidade conseguida com o longo secretariado feito para Trotsky faria dele uma testemunha valiosa nos processos fraudulentos [de Moscou]. Sua coragem e resistência transformaram o seu seqüestro em assassinato?”, se perguntou Gérard Rosenthal. A conferência de fundação da IV Internacional, em setembro de 1938, realizou-se sob a presidência de honra de Leon Sedov, Erwin Wolf e Rudolf Klement, assassinados. Pouco depois, “a 15 de novembro [de 1938] as duas pernas foram encontradas no Sena, em Garganville, amarradas. Os ossos tinham sido serrados. As pernas adaptavam-se perfeitamente ao tronco. A cabeça nunca foi encontrada. Assim desapareceu em plena Paris, sem que a polícia nunca descobrisse nada, por ter sido o secretário de Trotsky, Rudolf Klement, esquartejado morto ou vivo”.188

James P. Cannon, pioneiro do comunismo e do trotskismo nos EUA

Previamente, a 16 de julho, uma carta dirigida a Trotsky, (falsamente) assinada por Klement, declarava que este se transformara em um aliado do fascismo, motivo pelo qual seu autor se retirava da IV Internacional, preferindo “sumir” do cenário. Depois da descoberta de seu corpo, em agosto, Trotsky dirigiu uma carta à mãe de Klement, Ruthe, que lhe solicitara informações sobre seu filho, informando-lhe tudo o que sabia sobre sua vida, e acrescentando: “Estou certo que a carta era falsa. Contém afirmações falsas e inúteis, emitidas por alguém informado só de modo geral e imperfeito das atividades de Rudolf. A semelhança da escrita não é uma prova da sua autenticidade. Não é mais que semelhança: os inimigos de Rudolf dispõem dos melhores especialistas do mundo, que já fizeram várias vezes coisas semelhantes. Isto descarta a hipótese segundo a qual Rudolf teria passado voluntariamente para o campo dos seus inimigos. Nesse caso não teria nenhuma necessidade de se esconder. Ao contrário: se oporia abertamente aos seus camaradas de ontem, senão a deserção careceria de sentido. Nesse caso, também, teria dado um sinal de vida à sua mãe. A situação é clara, não tenho nenhuma dúvida que Rudolf foi assassinado por seus inimigos”. No mesmo ano de 1938, foram exterminados quase todos os remanescentes da “fração bolchevique-leninista”, os trotskistas da URSS, que desde o início dos “Processos de Moscou” (1936) tinham sido reagrupados no campo de concentração de Vorkuta, no círculo polar, com temperaturas inferiores a 50 graus negativos, onde esses quatro ou cinco mil sobreviventes “se recusaram a trabalhar mais de oito horas, ignoraram sistemáticamente os regulamentos, criticavam organizada e abertamente Stalin e a ‘linha geral’, declarando-se prontos para a defesa incondicional da URSS. No outono de 1936, depois do primeiro ‘processo’, organizaram comícios e manifestações de protesto, e depois uma greve de fome, decidida em assembléia geral. Suas reivindicações foram, segundo Maria Ioffé [filha do ex-diplomata soviético Abraham Ioffé, e sobrevivente dos campos de trabalho]: 1) O reagrupamento dos presos políticos, separando os criminosos daqueles de direito comum; 2) A reunião das famílias dispersas em campos

188

Gérard Rosenthal. Op. Cit., p. 280-1.

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diferentes; 3) Um trabalho conforme à especialidade profissional; 4) O direito de receberem livros e jornais; 5) A melhora das condições de alimentação e de vida. O menchevique MB acrescentou a jornada de oito horas, o envio fora das regiões polares dos inválidos, das mulheres e dos idosos. No comitê de greve estavam G.J. Iakovin, Sokrat Gevorkian, Vasso Donadzé e Sacha Milechin, todos bolchevique-leninistas, os três primeiros veteranos das greves de fome de 1931 e 1933 em Verkhneuralsk”.189

Em março-abril de 1938, sob ordens diretas de Stalin, os sobreviventes trotskistas nos campos siberianos foram fuzilados em massa. Da Espanha em guerra até a gélida Sibéria, passando pela Alemanha nazista, nunca uma organização política sofreu perseguição semelhante. O assassinato de Trotsky não tinha acontecido ainda devido à notoriedade de Trotsky e aos cuidados adotados em relação a ele, e também ao asilo político concedido pelo governo mexicano em 1937, quando a eliminação de Trotsky já estava na agenda de prioridades da NKVD: Sudoplátov admitiu que Stalin encomendou a tarefa a Spiegelglass em 1937 (o que não lhe impediu afirmar que “em agosto de 1938, fiquei sabendo, pela primeira vez dos assassinatos e seqüestros de trostskistas e desertores ocorridos na Europa durante os anos trinta”).190 Nazismo, fascismo, franquismo e stalinismo eliminaram fisicamente uma geração de revolucionários, nas décadas de 1930 e 1940, o que teve enormes conseqüências sobre a toda a história ulterior. Em 1937, também, a investigação suíça sobre a morte de Reiss estabeleceu que o já conhecido “executor” mafioso Roland Abbiate, e um certo “Martignac” tinham se dirigido ao México (em março de 1937) no rastro de Leon Trotsky. O assassinato de Trotsky tornara-se um objetivo institucional do Estado stalinista, isto é, relativamente independente das circunstâncias políticas imediatas. Era, também, estratégico, pois implicava um grande risco diplomático: assassinar um homem de Estado – e também uma das personalidades políticas mais conhecidas internacionalmente – em uso do seu direito de asilo, em território estrangeiro. Isto significava que a empresa só seria possível se contasse, não só com os meios organizativos (o aparelho internacional da NKVD), mas também com os meios políticos, isto é, com cumplicidades “diplomáticas” do mais alto nível. Não deve surpreender que o ato criminal fosse consumado num período de relativo “abrandamento” da repressão da URSS, devido à guerra.

A 13 de novembro de 1938, o Comitê Central e o Conselho dos Comissários do Povo decidiram (em texto não publicado) um abrandamento da repressão. A 8 de dezembro foi anunciado que o responsável da NKVD, Ekhov, abandonava o seu posto. Milhares, entre os mais cruéis torturadores da NKVD, foram por sua vez torturados e fuzilados. Alguns milhares de pessoas foram libertadas, como os futuros marechais Rokossovski e Meretskov, o futuro general Gorbatov, o físico Landau, e Tupolev, o construtor de aviões. O número de novas prisões diminuía, mas não parava. Eikhe, ex-membro do Politburo, foi fuzilado em 1940. Numerosos oficiais que tinham servido em Espanha foram presos e fuzilados quando voltaram. Foi o caso de Antonov-Ovseenko (que tinha planejado a insurreição e a tomada do Palácio de Inverno em 1917), do general Stern, de Gorev e de muitos outros. Foi nessas condições que se abriu o XVIII Congresso do PCUS, em abril de 1939. Milhões de soviéticos estavam ainda deportados; três membros do Politburo, Tchubar, Eikhe e Postychev, estavam na prisão, prestes a serem fuzilados. Iakovlev foi fuzilado quando transcorria o Congresso. Dos 1827 delegados ao XVIII Congresso, somente 35 tinham estado presentes no XVII Congresso, de 1934 (apenas 2%).191

189

Pierre Broué. Les trotskistes en Union Soviétique. Cahiers Leon Trotsky n 6, Paris, ILT, 1980. 190

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 78. Esta contradição, entre outras, joga luz sobre o método de confissão-ocultamento que permeia todo o livro de Sudoplátov que, como os de outros ex-agentes (também da CIA) procura resolver o problema de confessar os crimes, defendendo ao mesmo tempo a inocência do autor. 191

Cf. Robert C. Tucker. Stalin in Power. Revolution from above. Nova York, Norton, 1990. Entre os fuzilados, cabe contar os agentes Serguei Efron, Vadim Kondratiev e Roland Abbiate, que participaram das primeiras tentativas de

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Depois da chegada de Trotsky ao México, diversos “homens de ação” do aparelho internacional da NKVD chegaram também a esse país, aberta ou clandestinamente, o que se intensificou com a derrota do campo republicano na guerra civil espanhola: o ex-cônsul da URSS em Madri, Lev Haikiss, o já mencionado Eitingon, junto com Caridad Mercader, Vittorio Vidali com sua (então) companheira Tina Modotti (“Maria Ruiz”), que controlava os quadros das Brigadas Internacionais. Também chegam o venezuelano Enrique Martinez, o ex-guarda-costas de Gramsci, Carlo Codevilla, transformado em agente da GPU, o ítalo argentino Vittorio Codovilla.192 As coisas chegaram ao ponto que, a 8 de setembro de 1938, o advogado norte-americano de Trotsky, Albert Goldman, fez uma declaração à imprensa: depois das mortes de Wolf, Klement e Sedov, “a GPU [NKVD, nessa altura] está determinada a um esforço deseperado para elimnar o próprio Trotsky”. Advertiu que “a campanha será levada adiante pelo PC mexicano, com a ajuda de altos funcionários do Ministério de Educação, e por Vicente Lombardo Toledano, que recebeu as instruções necessárias na sua recente visita `Europa”.

Tina Modotti

Bem antes disso, segundo Sudoplátov, a ordem já tinha sido dada pessoalmente por Stalin: “Trotsky e seus seguidores significavam uma séria ameaça para a União Soviética ao competir conosco para ser a vanguarda da revolução comunista mundial. Beria sugeriu que me colocassem no comando de todas as operações antitrotskistas da NKVD, a fim de inflingir o golpe decisivo ao movimento trotskista. Aquela era a razão para que eu tivesse sido nomeado subdiretor do Departamento do Estrangeiro, sob as ordens de Dekanózov. Minha missão consistiria em mobilizar todos os recursos disponíveis da NKVD para eliminar Trotsky, o pior inimigo do povo. ‘No movimento trotskista não há figuras políticas importantes além do próprio Trotsky, disse Stalin. Eliminado Trotsky, a ameaça desaparece’. Dito isto, Stalin voltou a se sentar à nossa frente e começou a falar lentamente de quão insatisfeito estava com o atual estado de nossas operações, que, a seu modo de ver, não eram ativas o bastante”. Na NKVD, seu chefe máximo, Lavrentiy Beria, sugeriu que fossem usados para a tarefa os contatos de Alexander Orlov, e que “falássemos com ele *Orlov+ em seu próprio nome [de Beria]”. 193 Ora, Orlov já tinha desertado no ano anterior e, como vimos, tinha contatado Trotsky para advertí-lo das ameaças que pairavam sobre ele: se o conselho de Beria tivesse sido seguido, Trotsky teria sido provavelmente informado com boa antecedência dos planos exatos do seu assassinato (Sudoplátov e Eitingon, evidentemente, não seguiram a sugestão de Beria).194

assassinar Trotsky (coordenados, segundo Sudoplátov, por Spiegelglass): sem dúvida, tratou-se menos de um castigo à ineficiência, do que de uma garantia de discrição, a conhecida “queima de arquivo”. 192

Olivia Gall. Trotsky en México y la Vida Política en el Periodo de Cárdenas 1937-1940. México, ERA, 1991. A autora confunde Codevilla con Codovilla. 193

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 103 e 108. 194

Lavrentiy Pavlovich Beria nasceu em 1899 em Mercheuli, Geórgia, conterrâneo, portanto, de Stalin. Participou da Revolução de Outubro na Geórgia. Após a vitória ingressou na Tcheka, depois foi chefe da segurança na Geórgia. Em 1930, foi trazido por Stalin para Moscou para servir sob o comando de Nikolai Ekhov, a quem substituiu após a sua prisão. Executor do “Grande Expurgo” (tchistka) de Stalin na década de 1930, presidiu-o nas fases finais, como

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Trotsky perante a Comissão Dewey

Em setembro de 1939, os “enviados de Moscou” acusaram alguns dos dirigentes do PC mexicano de “debilidade ante Trotsky”. No congresso do PC celebrado nos meses seguintes, formou-se uma comissão especial, secreta, encarregada de planificar “a luta contra Trotsky”, dirigida realmente por Vidali, mas presidida “nominalmente”, segundo Pierre Broué, por Vittorio Codovilla que, de acordo com o mesmo autor, era um agente da GPU desde fins da década de 1920. A questão do assassinato de Trotsky tinha sido posta para a direção do PC mexicano, pelos “enviados internacionais”, desde setembro de 1938. Desde a sua chegada ao México, Trotsky vinha sendo atacado violentamente pela imprensa do PC. La Voz de Mexico, El Popular e Futuro protestaram contra o presidente Cárdenas pela concessão do asilo; continuavam a pedir a sua expulsão. Essa campanha aumentou em virulência nos primeiros meses de 1940; era conduzida com os chavões habituais – “Trotsky, o velho traidor, demonstra que quanto mais velho fica, mais covarde se torna...”, “Que peixe escorregadio é este velho traidorzinho!”, “...O novo pontífice, Leon XXX, à vista das trinta peças de prata do Judas sujo...”.195 Trotsky observou: “Esta é a maneira de escrever das pessoas que estão prestes a

substituir a caneta pela metralhadora”. No dia 1 de maio de 1940, uma manifestação uniformizada do PC marchou através da cidade do México (Distrito Federal), portando faixas que diziam “Fora Trotsky!”. Pouco antes, em março desse ano, no congresso do PC mexicano, sua direção (aparentemente reticente em passar das palavras aos atos) foi “depurada”: “Laborde foi excluído do secretariado, *Valentin+ Campa do Buro Político, qualificados de sectário-oportunistas, sectários por não terem combatido pela unidade das forças populares, e terem se enfrentado na CTM com Lombardo Toledano, e oportunistas por não terem mantido a independência do partido frente ao cardenismo. A isso, os ‘enviados de Europa’, acrescentam as acusações de corrupção, provocação, cumplicidade com a maçonaria e o

Comissário do Povo para a Segurança do Estado (1938-1953). Em 1940, tornou-se membro do Politburo e do Presidium do Comitê Central do PCUS. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi responsável pelo “massacre de Katyn”, no qual mais de 22 mil oficiais e intelectuais poloneses foram assassinados. A coordenação do projeto nuclear soviético, iniciado em 1943, foi entregue a Beria, uma das pessoas em quem Stalin parecia ter confiança absoluta. Célebre repressor e estuprador em série, seu nome causava terror nas pessoas. Depois da morte de Stalin, integrou, com Malenkov e Molotov, a "troika" dirigente da URSS, de março a junho de 1953. Em julho, Beria foi detido e processado por "atividades criminosas contra o partido e o Estado" (suposta criação de um “grupo anti-partido”), tendo sido oficialmente executado em dezembro do mesmo ano ou, segundo outras versões (Jorge Semprún), assassinado a tiros, antes de dezembro, pelos seus “colegas” do Politburo, em plena sessão deste, com Nikita Kruschev à cabeça (seu cadáver teria sido retirado do Kremlin oculto em um tapete: a sua “execução” secreta em dezembro teria sido fictícia). 195

Um papel (ao menos literário) nessa campanha coube ao uruguaio José Harari. Nós o conhecimos em 1977, quando ministrava uma espécie de curso (junto com Apolônio de Carvalho) na Universidade de Paris VIII (Vincennes). Nos disse que Trotsky, impressionado com a qualidade de seus artigos, quis conhecé-lo pessoalmente, e lhe fez chegar um pedido para visitá-lo em Coyoacán (!), coisa que (Harari) recusou, pois Trotsky, segundo ele, “jamais entendera a dialética” (!). Obviamente, a história soava a invencionice. Em um material elaborado por trotskistas ingleses, nessa década, Harari foi mencionado como agente da NKVD, envolvido na conspiração para matar Trotsky.

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trotskismo. A convocação para o Congresso Extraordinário (La Voz de México, 25 de novembro de 1939) chamou à exclusão dos traidores, divisionistas, fracionistas, trotskistas, inimigos do povo, agentes do fascismo, almazanistas, corrompidos, infiltrados no passado no partido”.196

Nas suas memórias, Valentin Campa relatou que Laborde “tinha-lhe comunicado que um camarada delegado da Internacional Comunista lhe expôs a decisão de eliminar Trotsky, e pediu-lhe sua colaboração como secratário-geral do partido, e a de uma equipe adequada para a eliminação...[Laborde] estava convencido de que Stalin participava na eliminação de Trotsky e no uso [para esse fim] da Internacional Comunista. Sempre tinha tido um bom conceito de Stalin, mas, indignado pelas suas manobras, chegou a dizer que Stalin ‘era un cabrón’...Desde que saí da prisão, em 1970, insistí perante a direção do PCM na necessidade de esclarecer essas verdades históricas”.197 Campa reivindicou no mesmo texto a campanha anti-trotskista do PCM em 1937-1940. A 19 de maio de 1940, a Voz de México, principal órgão do Partido Comunista mexicano, dedicou um artigo ao “velho traidor”, como Trotsky era chamado pelo secretário-geral da central de trabalhadores (CTM), Lombardo Toledano. O artigo era extremamente violento e exigia a expulsão de Trotsky do México por suas “atividades anti-proletárias e anti-mexicanas”. O general Lázaro Cárdenas (então presidente do México) também foi alvo de ataques de dois lados – da burguesia mexicana pró-americana e do PC. Quando ocorreu uma tentativa de putsch direitista, liderada pelo general Cedillo nas montanhas, os stalinistas acusaram Trotsky de tê-la inspirado. A direita viu, ao contrário, a “mão de Trotsky” no fato de que as companhias de petróleo euro-americanas fossem nacionalizadas: para a direita, Cárdenas era uma marionete nas garras do “exilado vermelho”. Mas Trotsky nunca se encontrou com o presidente durante seus anos no México.198

Leonid Eitingon, general do NKVD e assassino em série

A 24 de maio de 1940, houve o atentado do grupo chefiado por Siqueiros. O PCM tentou desvincular-se deste (Siqueiros foi apresentado como “elemento incontrolável”) mas, quando retornado em 1942 do “exílio” auto-imposto no Chile (para fugir das acusações e processos), foi recebido pelo mesmo PCM como um herói. No breve período que passou na prisão, em 1941, quem cuidou da sua libertação foi o poeta chileno (vinculado ao PC do seu país) Pablo Neruda, cônsul do Chile na cidade do México, que contou: “David Alfaro Siqueiros estava então na prisão. Alguém o havia embarcado em uma incursão armada para a casa de Trotsky. Conheci-o na prisão, mas, na verdade, também fora dela, porque saíamos com o comandante Pérez Rulfo, chefe da prisão, e íamos beber por ali, onde não nos vissem muito. Já tarde na noite, voltávamos e eu me despedia, com um abraço, de David, que ficava atrás das grades... Entre saídas clandestinas da prisão e conversas sobre tudo o que há, Siqueiros e eu tratamos de sua libertação definitiva. Munido de um visto que eu mesmo estampei em seu passaporte,

196

Pierre Broué. L’Assassinat de Trotsky. Bruxelas, Complexe, 1980, p. 87. 197

Valentin Campa. Mi Testimonio. México, Cultura Popular, 1985, p. 161-166. 198

Cf. Alain Dugrand. Trotsky in Mexico 1937-1940. Manchester, Carcanet, 1992.

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dirigiu-se ao Chile com sua mulher, Angelica Arenales.”199 Assim Neruda deu sua contribuição ao ocultamento da trama do crime (o embaixador chileno viu-se obrigado a desculpar-se diante do governo mexicano pela atitude inconsulta, e violatória das normas diplomáticas, do seu cônsul-poeta). Trotsky foi o primeiro em concluir que o fracasso do atentado de maio não produziria a desistência dos seus perseguidores, mas exatamente o contrário. Ainda os que acreditaram no caráter só “intimidatório” desse ataque, o admitiram: “Tudo não passou de um alarde de força feito não só para atemorizar o ex-Secretário de Guerra, como também para obrigar o governo de Lázaro Cárdenas a decretar a expulsão de Trotsky do país, para não correr o risco de se envolver em uma questão internacional se o político russo fosse morto em território mexicano. Essa estratégia do medo tinha dado certo na Noruega. Mas Lázaro Cárdenas não era como o ministro da Justiça da Noruega, Trygve Lie, e aos stalinistas só restava um caminho para acabar de vez com o exilado soviético: matá-lo”.200

Seva (Esteban) Volkov, neto de Leon Trotsky, residente no México

Trotsky não se fazia qualquer ilusão quanto a alguma reação nas fileiras “comunistas” diante da perseguição de que era objeto: “90% dos revolucionários que construíram o partido bolchevique, fizeram a Revolução de Outubro, criaram o Estado Soviético e o Exército Vermelho, dirigiram a guerra civil, foram exterminados como traidores nos últimos doze anos. Em troca, o aparelho stalinista acolheu nesse período a imensa maioria dos que estavam do outro lado da barricada nos anos da revolução... Por meio de exclusões permanentes, pressões materiais, corrupção, expurgos e execuções, a camarilha totalitária do Kremlin transformou completamente a Komintern [Internacional Comunista] em instrumento dócil. A sua atual camada dirigente, como as suas seções, compreende homens que não se uniram à Revolução de Outubro, mas à oligarquia vitoriosa que distribui títulos políticos elevados e favores materiais”.201 Que precauções adotou Trotsky, diante dessa perspectiva, além da fortificação da sua casa? Esse ponto deu lugar a controvérsias. O “sistema de segurança” de Trotsky era amador, ele o sabia e assim o declarou a um jornalista: “Alguns jornais dizem que eu ‘alugo’ para a minha guarda só estrangeiros, mercenários. Isto é falso. Minha guarda existe desde o meu exílio na Turquia, há doze anos. Sua composição mudou de acordo com o país em que me encontrava, embora alguns tenham me acompanhado de um país a outro. Sempre esteve composta de jovens camaradas, vinculados pela identidade de idéias políticas, e escolhidos

199

Pablo Neruda. Confieso que he Vivido. Buenos Aires, Circulo de Lectores, 1976, p. 168-9. O descaso com que Neruda se refere a Trotsky e ao atentado contra sua vida, o tom de “pilheria irresponsável” com que se refere à participação nele de seu amigo Siqueiros, talvez revelem algo mais do que a imagem de irresponsável bon vivant “comunista” que tenta passar na sua autobiografia. A NKVD parece ter trabalhado com três círculos concêntricos: a) O “núcleo político”, composto por membros do aparelho russo; b) Os “executores”, de diversas nacionalidades, se possível não-russos; c) A “periferia”, na qual tinham seu lugar os “companheiros de estrada”, que eventualmente podiam desempenhar tarefas de importância. Tina Modotti, por exemplo, deve ter tido seu lugar neste nível, assim como o futuro Prêmio Nobel de Literatura chileno. 200

José Ramón Garmabella. Operação Trotsky. Rio de Janeiro, Record, 1972, p. 60. 201

Leon Trotsky. Oeuvres. Maio-agosto 1940. Vol. 24, Paris, ILT, 1987, p. 313.

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pelos meus amigos mais velhos e experimentados entre voluntários que nunca faltaram”. Além disso, continuou na casa do revolucionário o desfilar de dirigentes políticos, amigos, reuniões, etc. Isto sem dúvida facilitou a “infiltração” daquele que seria finalmente seu assassino, que exibia uma conduta que, para Isaac Deutscher, devia ter levantado suspeitas muito antes: “Este exibia um desinteresse tão completo pela política que sua atitude parecia beirar a indolência mental, algo muito surpreendente no culto ‘filho de um diplomático’. Tinha relações impenetravelmente obscuras no comércio e jornalismo; e seus antecedentes familiares eram enigmáticos. As histórias que contou a Sylvia sobre si mesmo eram estranhas e incoerentes; e gastava dinheiro aos montes, como se o sacasse de uma bolsa da abundância eterna, com festas e diversões”.202 Para Pierre Broué, o risco da infiltração era inevitável dada a atividade e os objetivos políticos de Trotsky: “Estava condenado a viver os poucos anos que lhe restavam na plena consciência de que existiam pessoas como os irmãos Sobolevicius, tomando as precauções indispensáveis, mas sem parar de correr os riscos necessários à continuidade de uma vida militante e de combate. A conclusão se impunha: nesse quadro, os assassinos só poderiam ganhar”.203

Joseph Hansen, dirigente do Socialist Workers Party

Nos anos 1970, um grupo trotskista inglês, chefiado por Gerry Healy, acusou os responsáveis pela guarda de Trotsky (basicamente, a direção do SWP, o partido trotskista dos EUA, em primeiro lugar Joseph Hansen) de cumplicidade com a NKVD-GPU e com... a CIA, e, portanto, com o assassinato. A acusação baseou-se em indícios circunstanciais: a campanha feita em torno dela não teria qualquer transcendência se não tivesse tido como principal porta-voz a atriz inglesa Vanessa Redgrave, membro do grupo de Healy.204 O outro indício, a sempre suspeitada participação de um dos guarda-costas americanos de Trotsky no atentado de 24 de maio, Robert Sheldon Harte (o pai de Harte era amigo pessoal do chefe do FBI, J. Edgar Hoover),205 foi definitivamente desfeito nas memórias de Sudoplátov, que esclareceu que esse não era o caso, e também os motivos do assassinato de Harte (o que, de passagem, deu razão póstuma a Trotsky, que sustentou contra a polícia mexicana, seu chefe Sánchez Salazar em particular, que Harte jamais fora um agente stalinista).

202

Isaac Deutscher. Trotsky. El profeta desterrado (1929-1940). México, ERA, 1969, p. 434. 203

Pierre Broué. Op. Cit., p. 52. 204

Cf. Is a Shameless Frame-up! A statement on the slanders circulated by the Healy Group against Hansen, Novack, and the SWP, 1976. Em um relatório interno do FBI, Hoover acusou Joseph Hansen e outros dirigentes do SWP de terem assassinado “George Mink” (codinome do lituano Dimitri Utnik, segundo Albert Balcells), “executor” da GPU-NKVD residente nos EUA (responsável pelo assassinato dos libertários italianos Camillo Berneri e Francesco Barbieri) jogando seu cadáver na crátera de um vulcão. “Mink” estava no México no período da preparação do assassinato de Trotsky. 205

Toda a “responsabilidade” de Harte parece ter sido a de conhecer um agente, Ióssif Grigúlevitch, a quem Sudoplátov empresta o codinome “Padre”, supostamente também conhecido por outros trotskistas como “politicamente neutro”, que foi o responsável pela abertura das portas da casa de Coyoacán no atentado de 24 de maio de 1940 (o que também desemente a versão de que Mercader teria enganado Harte nessa ocasião). Harte, segundo Sudoplátov, foi assassinado para que não revelasse a verdadeira condição de agente de Grigúlevitch.

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Ramon Mercader fez um trabalho de longo prazo (mais de dois anos), onde não faltaram os erros e as vacilações. Desde 1938, segundo Sudoplátov, “seguindo instruções de Eitingon, absteve-se de toda atividade política. Seu papel consistia em fazer-se de amigo, que ocasionalmente dava apoio financeiro, mas sem desempenhar nenhum papel político”. Sua linha geral de atuação foi lembrada pela última testemunha viva do crime de Coyoacán, Seva Volkov, neto de Trotsky: “O pseudo-belga, Jacson Mornard, começou a cultivar a amizade dos guardas. Era uma pessoa muito generosa, amável e prestativa. Levava os guardas para comer, convidou-os para o casamento de Otto Rühle, às vezes também convidava Charles Cornell, um professor primário norte-americano, e um dos guardas. Cultivava a amizade do casal Rosmer. Chegou a dar-me pequenos presentes e levou-me ao campo, juntamente com Margarite e Alfred [Rosmer]. Porém nunca mostrou interesse em agradar Leon Trotsky. Algumas vezes, casualmente, encontravam-se no jardim e Mornard apenas o saudava. Uma vez, apresentou sua companheira Sylvia e nada mais. Assim foi-se criando a imagem de um homem que queria ajudar e ser amável com os camaradas”.206

Caridad Mercader del Rio, agente da NKVD e mãe do assassino de Trotsky

A 17 de agosto de 1940, Mercader teve uma primeira ocasião (ficou a sós com Trotsky, no seu gabinete, em atitude nervosa, que chamou a atenção deste) que não aproveitou: “Mercader ou Mornard ou Jacson, mostrara sinais de sua angústia, ficara doente; espalhava pistas que poderiam expor sua falsa identidade. Pode ser que para se sentir mais confiante para o assassinato, tenha precisado de um ensaio geral. Os criminosos e a polícia, como Trotsky observara, parecem necessitar de cenários, como nas peças de teatro. Ou, diante de Trotsky, a sós no escritório, Jacson pôde simplesmente ter-se sentido sem jeito”.207 Ainda assim, Trotsky tornou a recebê-lo três dias depois, quando Mercader consumou o atentado mortal. Sobre a mesa de Trotsky restou seu último escrito, inconcluso, cujo parágrafo final, o último que escrevera, adaptava-se ao cenário: “Houve mais obstáculos, dificuldades e etapas, na estrada do desenvolvimento revolucionário do proletariado, do que previram os fundadores do socialismo científico. O fascismo e a série de guerras imperialistas são a terrível escola através da qual o proletariado deverá libertar-se das tradições pequeno-burguesas e das superstições, desembarçar-se dos partidos oportunistas, democráticos e aventureiros, forjar e educar a vanguarda revolucionária, preparndo assim a solução da tarefa fora da qual não há saída para o desenvolvimento humano”.208 No dia seguinte, antes de morrer, pronunciou suas últimas palavras: “Estou certo da vitória da IV Internacional. Avante!”, seguidas de um “Natalia, te amo”, dirigido a sua esposa. Pouco depois, morreu. Dois dias mais tarde, Pravda (“Verdade”) de Moscou anunciava simplesmente: “Tendo ultrapassado ainda mais os limites do

206

Esteban Volkov-Trotsky. Leon Trotsky: lembranças e significado. In: Osvaldo Coggiola. Trotsky Hoje. São Paulo, Ensaio, 1992, p. 315. Este texto é a transcrição do depoimento que o neto de Trotsky fizera, como sobrevivente dos acontecimentos de agosto de 1940, no simpósio internacional que organizamos, no Departamento de História da

USP, em setembro de 1990, por ocasião do 50 aniversário do assassinato de Trotsky. 207

Nicholas Mosley. The Assassination of Trotsky. Nova York, Josef Schaftel, 1972, p. 148. 208

Leon Trotsky. Op. Cit., p. 376.

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aviltamento humano, Trotsky ficou preso em sua própria rede e foi assassinado por um dos seus discípulos”. Uma década e meia depois, no seu Informe Secreto ao XX Congresso do PCUS, Kruschev denunciou os crimes de Stalin (morto em 1953),209 mas legitimou a eliminação de Trotsky. O assassino, obviamente, não negou o crime: atribuiu-o à “impulsão súbita” de um discípulo desiludido. O informe da polícia mexicana, no entanto, não deixou dúvidas: além do picão de alpinista usado no crime, nas roupas do ainda chamado “Mornard” “encontrava-se uma bainha de couro cor de café, recamada de prata, com um punhal de 35 centímetros de comprimento e três de largura, e o punho de metal cinzelado (...) Além disso, foi encontrada com o assassino uma pistola Star, calibre 45, número de registro P.195-264, com oito balas no pente e uma no cano. Todas essas armas demonstravam que o assassino estava disposto a matar Trotsky de qualquer maneira. Por que não usara a pistola em vez do picão? Sem dúvida, para evitar o ruído da detonação. Tinha evidentemente a intenção de fugir após desferir o golpe mortal”.

No primeiro parte policial, Mercader era ainda chamado de “Raft Jakkson” (sic, seguramente insistindo na sua identidade de “Frank Jacson”, assim transcrita pelo escrevente mexicano).210 Nos depoimentos posteriores, feitos à polícia mexicana, Mercader incorreu em todo tipo de contradições e faltas de verossimilhança, sempre negando qualquer vínculo com a GPU-NKVD. Sua declaração, na carta apócrifa, de que Trotsky era um agente do imperialismo americano (ainda estava vigente o pacto Hitler-Stalin) mudou em menos de um ano, depois da invasão da URSS pela Alemanha, para “agente da Gestapo”. Menos de duas semanas depois do crime, o Juiz de Instrução encarregado, Raúl Carrancá Trujillo, recebeu uma carta anônima em que era ameaçado: “Qualquer ação que você faça no processo que acusa Jacques Mornard pelo homicídio de Trotsky, que tenha que fazê-lo declarar que é agente da GPU e em consequência esclarecer uma questão internacional de profunda e gravíssima transcendência, você pagará muito caro. Lembre-se de que a ação poderosa de uma organização perfeita se infiltrou até uma mansão que se acreditava inatacável. Limite-se a buscar uma causa ordinária sem pretender, no mínimo que for, ir além das fronteiras do assunto tratado. Não se esqueça, camarada Juiz, que você pode ser premiado ou castigado segundo sua atuação. Não se esqueça e tenha sempre presente, durante o julgamento, que há mil olhos sobre você, de todas as raças, que vigiam seus atos. Saudações, camarada”.211 Nos vinte anos posteriores, preso, Mercader não rompeu o seu silêncio a respeito dos seus vínculos com a GPU-NKVD, o que lhe deu fama de “homem de aço”. Sua vida na prisão – que parece ter incluído um caso amoroso com sua diretora, vinculada ao PC mexicano, e que incluiu a celebração de um matrimônio com outra mulher mexicana – não parece justificar a fama, pois pouco pareceu-se com uma vida de sofrimentos. A revista italiana Oggi informava, a 23 de outubro de 1951, que “alguém continua cuidando dele por todos esses anos; alguém, pagando generosamente,

209

Provavelmente envenenado pelos seus colegas do Politburo do PCUS, temerosos de um novo expurgo que os atingisse: é o que insinuou seu ex “braço direito”, Lazar Kaganovitch. Cf. Stuart Kahan. The Wolf of the Kremlin. Nova York, William Morris, 1987. Nos meses de fevereiro-março de 1953 houve uma atividade febril (coordenada por Stalin) nos preparativos de uma nova onda de perseguições, que seria deflagrada por um suposto “complô dos médicos”: em 3 de janeiro de 1953, foi anunciado que nove catedráticos de medicina, quase todos judeus e que tratavam os membros da liderança do Kremlin, tinham sido "desmascarados" como agentes da espionagem americana e britânica, membros de uma organização judaica internacional. Tratava-se da preparação de um novo “Processo de Moscou”, desta vez com traços de anti-semitismo, que implicaria , segundo Isaac Deutscher, na auto-destruição das próprias raízes ideológicas do regime, razão pela qual a morte de Stalin pareceu ter sido provocada pelos seus seguidores imediatos, alarmados diante da provável fascistização promovida por Stalin, que os atingiria pessoalmente (no mínimo, a Molotov e Kaganovitch). O fato de que Beria estivesse alheio à preparação do novo expurgo fez com que fosse apresentado como possível autor intelectual do suposto assassinato. Depois da morte de Stalin, os médicos foram deixados em liberdade. 210

As atas policiais completas, tanto do atentado de 24 de maio como do assassinato de 20-21 de agosto, encontram-se nos Arquivos da Generalitat de Catalunya. 211

Um relato minucioso do inquérito policial se encontra no livro do general Leandro A Sánchez Salazar.

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providenciou que se garantissem a ele todas as comodidades de que se pode dispor numa prisão (e nas prisões mexicanas tais comodidades são muitas e notórias). A cela número 27 da penitenciária Juárez não fica muito longe de um bom apartamento de hotel. Basta ter o dinheiro para pagar tais luxos e, no caso do assassino de Trotsky, esse dinheiro jamais falta.”

Trotsky assassinado

A figura de “homem de aço” de Mercader, exaltada em um poema por Nicolás Guillén, foi desmentida por Seva Volkov, que presenciou, adolescente, os momentos seguintes ao crime: “Muitas pessoas na porta, policiais, um carro mal-estacionado... Rapidamente senti uma angústia interior. Sabia que algo acontecera e, ao mesmo tempo, o temor de que tivesse sido algo grave. Ocorreu-me que, da outra vez, havíamos tido sorte, porém já era ir contra o destino que na primeira ocasião fora esquivado. Apressei os passos. Vi a porta aberta e entrei em casa. Imediatamente encontrei um dos guardas, Harold Isaacs, todo agitado e perguntei o que estava acontecendo. A única coisa que pude ouvir, pois ele se afastara, foi ‘Jacson, Jacson...’. Eu não entendia o que isto teria a ver com tudo o que estava se passando. Efetivamente, quando atravessei o jardim, vi dois policiais detendo um homem que era, de fato, o famoso stalinista que mais tarde receberia a Legião de Honra. Era um autêntico covarde. Guinchando, lamentando-se, queixando-se de dores. Realmente apresentava algumas manchas de sangue, pois havia sido golpeado. A sua triste figura significava um grande contraste com os trotskistas que foram levados aos campos de concentração e de extermínio da URSS, onde foram mortos. Este era o suposto herói stalinista, em oposição aos prisioneiros políticos trotskistas dos campos de Vorkuta, de Kolyma, que morriam sem claudicar e proclamando vivas à revolução, a Lênin e a Trotsky”.212 Em 1952, ainda na prisão, Ramón Mercader fez um depoimento frio a La Nuova Stampa (18 de novembro) acerca do crime: “Abriram-me a porta e encontrei Trotsky no quintal, ocupado em dar comida aos coelhos. Disse-lhe que eu tinha um artigo de estatística muito interessante sobre a França e ele me convidou para entrar no escritório, assim como eu havia previsto. Fiquei de pé, à sua esquerda. Coloquei minha capa impermeável sobre a escrivaninha, a fim de tirar o picão de alpinista que estava no bolso. Decidi não perder a excelente oportunidade que surgira para mim, e no momento preciso em que Trotsky começava a ler o artigo que me servira de pretexto, saquei o picão da gabardina, segurei-o fortemente e desfechei-lhe um violento golpe na cabeça. Trotsky se atirou contra mim, mordeu minha mão, obrigando-me a soltar o picão. Lutamos, entrou gente no escritório e me golpearam. Implorei aos secretários de Trotsky que me matassem, mas não quiseram fazê-lo”. Na verdade, foi Trotsky que lhes impediu de fazê-lo.

O único traço de personalidade de Mercader que se tornou visível, durante a sua prisão, foi uma espécie de esquizofrenia teatral: “Tornou-se teatral e, a princípio, exageradamente encantador para as pessoas que vinham vê-lo; a seguir, ao se defrontar com as perguntas

212

Esteban Volkov-Trotsky. Op. Cit., p. 317.

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difíceis, ficava outra vez imóvel, de olhos fixos e mãos trêmulas; ou remexia os cigarros e espalhava as cinzas e fagulhas por toda a roupa. Repentinamente começava a falar sem parar, incoerente outra vez, antes de escapar e fingir que era surdo. Demonstrava certo desprezo pelos psiquiatras. Ria e lhes contava histórias de caipiras que ‘não enxergavam além da ponta do nariz’. Ocasionalmente, realizava uma espécie de pantomima, representando vários papéis diferentes, fazendo vozes diversas”.213 Outros agentes da NKVD que estiveram perto de Trotsky manifestaram distúrbios de conduta, como o já mencionado Sobolevicius (“Soblen”), que tornou-se psiquiatra nos EUA e que, preso, tentou se matar em 1957, engolindo quase “meio quilo de pregos e parafusos” (!) na Penitenciária de Lewisburg (finalmente suicidou-se em 1962). De acordo com Sudoplátov, “Mercader estava preparado para três alternativas: matar Trotsky com um tiro, apunhalá-lo ou matá-lo a golpes”. Quando Mercader, já livre, se encontrou com Sudoplátov em Moscou, em 1969, confessou: “Eu, que tinha morto um guarda a facadas na guerra civil espanhola, fiquei paralisado pelo grito do Trotsky”. Em consequência, “quando a mulher de Trotsky apareceu com os guarda-costas, Mercader estava paralisado e não conseguiu usar o revolver”.214 O último grito e a última resistência de Trotsky permitiram prender seu assassino, o que contribuiria para desvendar o crime e sua trama (caso Mercader não fosse preso, é provável que a tergiversação sobre o seu assassinato persistisse).

Ramón Mercader com Dolores Ibarruri (“La Pasionaria”) em Moscou, na década de 1960

A fama de “homem de aço”, por outro lado, parece ter existido só entre os “companheiros de estrada” dos PCs, não entre os profissionais do aparelho de “segurança”. Pouco se sabe sobre a vida ulterior de Mercader, livre e condecorado em Moscou, salvo que foi “infeliz” (embora recebesse, como comprovam os arquivos, “uma pensão equivalente à de um general de divisão aposentado”), talvez pelo motivo apontado por Jorge Semprún, que conhecia esse mundo de perto (foi dirigente clandestino do PC espanhol), em um romance semi-autobiográfico, ao relatar uma conversa entre dois “agentes” a respeito do seu célebre colega: “- Este inverno, em Moscou, foi-me mostrado [Mercader]. No Bolshoi, dizia Walter. Um desamparo abjeto: assim se podia qualificar a expressão desse homem. E o que faz lá?, perguntava Herbert. Nada, dizia Walter. Tem uma datcha, uma pensão por velhice. Ninguém lhe fala. Walter ria. Atualmente, não se morre. Ás vezes me pergunto se isso é melhor” (grifo nosso).215 Em 1977, Mercader pediu em Moscou a Santiago Carrillo (principal dirigente do PC espanhol, e figura principal do “euro-comunismo”) que interferisse junto ao governo da Espanha para passar os últimos anos de sua vida em sua Catalunya natal. Carrillo pôs como condição que Mercader escrevesse suas memórias contando quem lhe ordenara o assassinato de Trotsky. Mercader teria rejeitado o pedido, dizendo: "A los míos nunca los voy a traicionar".

O assassinato de Trotsky não foi o “episódio final” da caçada. O ex general Dmitri Volkogonov, o primeiro a realizar pesquisas na parte fechada dos arquivos da KGB, disse em um artigo:

213

Nicholas Mosley. Op. Cit., p. 153. 214

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit., p. 115-116. 215

Jorge Semprún. La Segunda Muerte de Ramón Mercader. Caracas, Tiempo Nuevo, 1970, p. 117.

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“Pouco tempo depois da notícia da morte de Trotsky, foi dada a ordem de ‘liquidar os trotskistas ativos nos campos’. E, na véspera da guerra, houve uma nova onda silenciosa, que varreau as últimas pessoas condenadas por ‘trotskismo ativo’. *Os campos de+ Petchura, Vorkuta, Kolyma, foram as testemunhas mudas de uma vingança que entoou o réquiem da luta contra o dirigente assassinado da IV Internacional. Stalin não queria compreender que matar alguém era um modo ineficaz de combatir suas idéias” (sic).216 No plano internacional, “penetrar nos grupos trotskistas continuou sendo de máxima prioridade para o serviço secreto soviético em 1940. Como saberiamos o que se passava no movimento trotskista depois de matar Trotsky? Continuariam os trotskistas sendo um perigo para Stalin depois de perderem seu líder? Stalin lia regularmente os informes do agente que haviamos infiltrado no jornal trotskista de Nova York... Lia amiúde artigos e documentos trotskistas antes que fossem publicados”. Stalin sabia, pela sua própria experiência no bolchevismo, que a importância de um partido não se media pelo seu número circunstancial de adeptos, mas pela força das suas idéias. Segundo o mesmo depoimento, “depois do assassinato de Trotsky, vários membros da rede dos EUA e México foram incorporados a outras redes da região. Essa rede ampliada teria um valor incalculável no hora de obter os segredos da primeira bomba atômica”. 217

Como explicar o papel dos governos do “mundo livre” na perseguição aos anti-stalinistas da URSS, e a Trotsky em particular? Esses governos legitimaram os “Processos de Moscou” através do envio de observadores oficiais dos poderes judiciários. Já vimos a cumplicidade stalino-nazista na Noruega, em relação a Trotsky, bem antes do “pacto germano-soviético” de 1939: “O atentado [contra Trotsky] foi evidentemente obra de Stalin, mas isso não exclui que tenha sido realizado em aliança concreta com Hitler, e não se pode duvidar que Churchill, se consultado, teria dado seu aval. A eliminação de Trotsky era uma necessidade absoluta, no momento em que a guerra explodia, abrindo o risco de uma revolução que a concluísse. Com o primeiro atentado falido, os assasinos fizeram funcionar a máquina de intoxicar destinada a enfraquecer a defesa, e a criar condições mais favoráveis para uma segunda tentativa que não demoraria”.218

Natalia Sedova, esposa de Trotsky

Na véspera do assassinato de Trotsky, jornais americanos alertavam para o perigo da “instalação de um governo revolucionário no hemisfério norte”, devido à presença do líder bolchevique no México. Podiam os serviços secretos americanos (FBI) desconhecer os planos do assassinato, em um país que forma parte de sua “área de segurança”, e onde seus agentes circulavam (e circulam ainda hoje) livremente? A burguesia americana odiava explicitamente Trotsky. O Departamento de Estado negou-lhe asilo político em 1933; a imprensa norte-americana hostilizou o México por haver lhe dado refúgio; em 1938, a chancelaria dos EUA

216

Pravda, Moscou, 9 de setembro 1988. 217

P. e A. Sudoplátov. Op. Cit, p. 113 e 121. 218

Pierre Broué. Présentation. In: León Trotsky. Oeuvres. Vol. 24, Paris, ILT, 1987, p. 19.

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rejeitou sua entrada temporal, mesmo convidado por uma Comissão parlamentar (a Comissão Dies). Morto Trotsky, o Departamento de Estado proibiu a entrada de suas cinzas, solicitada pelos trotskistas norte-americanos para realizar um ato de homenagem.

Nos anos posteriores ao assasinato, a viúva de Trotsky, Natalia Sedova, que continuou a viver no México, recebeu ameaças de morte,219 e viu-se obrigada a desmentir um suposto “testamento” – falsificado – de Trotsky, em que este renunciava à (e denunciava a) revolução socialista, provando tratar-se de uma nova falsificação da NKVD.220 Quando a publicação das memórias do ex-dirigente do PC norte-americano e ex-agente da GPU, Louis Budenz, jogou alguma luz sobre a trama da conspiração para matar seu marido, solicitou um novo interrogatório de Mercader - ainda chamado de “Mornard” - e publicou um artigo em que concluía: “A responsabilidade do crime de Coyacán - e de tantos outros - recai diretamente, muito mais que sobre miseráveis agentes secretos, sobre Stalin, quem os concebeu, ordenou e pagou. Uma investigação completa exigiria a extradição de Stalin, e sua posta a disposição dos tribunais mexicanos. Em qualquer hipótese, será Stalin quem responderá perante a opinão do mundo, perante o fururo, perante a história”.221 Um silêncio ensurdecedor acompanhou a luta da (fisicamente) pequena mulher, que perdeu seu marido e seus dois filhos, assassinados pelo stalinismo. A história “oficial” nunca respondeu: o regime de Gorbachev negou-se a reabilitar Trotsky, para não falar do regime “pós-comunista” (a fúria literária contra Trotsky foi, no regime pós-URSS, comparável à do período stalinista, por motivos ideológicos diversos, embora convergentes).222 O assassinato de Trotsky não foi um episódio marginal, mas um acontecimento situado no olho do furacão que arrasaria o mundo nos anos imediatamente sucessivos, os da Segunda Guerra Mundial; no próprio centro, portanto, da crise histórica do século XX. A burocracia stalinista concluiu, através dele, a destruição física da geração marxista que encabeçou a Revolução de Outubro de 1917.

Stalin com Harry Truman e Clement Attlee, em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial

Stalin sobreviveu em treze anos ao seu principal adversário pólítico. Mais de uma centena de biografias dele foi escrita desde sua morte em 1953, de valor muito desigual, combinando estudos sérios com trabalhos sensacionalistas animados por uma ideologia anti-comunista primária. Os arquivos russos foram gradualmente abertos desde inícios da década de 1980. Um Stalin Desconhecido, de Roy e Zhores Medvedev, por exemplo, é um estudo detalhado a partir dos documentos que vieram a público com a abertura dos arquivos secretos, após o colapso da União Soviética. Os Medvedev desmentiram a crença de que Stalin foi assassinado por integrantes do governo soviético. Em quinze ensaios, detalharam o processo e a política

219

Victor Alba. Trotsky visto por Natalia Sedova, manuscrito inédito, Arquivo da Generalitat de Catalunya. 220

Demanda de Natalia Sedova contra “France-Dimanche”. Excelsior, México, 8 de maio de 1948. 221

Natalia Sedova Trotsky. La culpabilidad de Stalin en el asesinato de Leon D. Trotsky. Novedades, México, 21 de abril de 1947. 222

Boris Kagarlitsky. A Desintegração do Monolito. São Paulo, Edunesp, 1997.

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que envolveu a construção das usinas e bombas nucleares; o relacionamento com os cientistas; o assassinato de velhos bolcheviques e a condução de estratégias militares na Segunda Guerra Mundial. A análise detalhada dos dias que antecederam e sucederam o início da guerra com a Alemanha deixou claro que Stalin estava informado das intenções de Hitler, desmentindo o principal mérito que a historiografia pró-Stalin continuou a lhe atribuir (seu papel decisivo e insubstituível na derrota militar do nazismo).

O Stalin de Leon Trotsky, cujas páginas seguem, obra inconclusa pelo assassinato de seu autor por ordem do próprio “biografado”, é simultaneamente documento histórico, texto político, reconstrução historiográfica e reflexão teórica acerca das origens, do desenvolvimento, das encruzilhadas e impasses da mais importante revolução do século XX. Poucos (o nenhum) texto produzido em nossa época se reveste de todas essas condições. Em momentos em que o capitalismo mundial enfrenta uma crise sem precedentes, em que mobilizações e lutas sociais (de classe) se desenvolvem, no mundo todo, com inédita abrangência geográfica, enfrentando antigos e novos problemas históricos e políticos, cabe ao leitor julgar sua atualidade, sem considerá-lo, na nossa opinião, uma obra menor de um dos principais autores e homens políticos da era contemporânea.

São Paulo, agosto de 2011

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