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TRANSPLANTE RENAL Os pacientes com insuficiência renal crônica terminal (IRCT) são os beneficiados com o transplante renal, sendo esse o melhor, mais barato e definitivo tratamento para essa patologia, devolvendo-os a sociedade em condições adequadas de vida, retirando os pacientes das sessões semanais de hemodiálise, de alto custo monetário e social. A causa mais comum de Insuficiência renal crônica (IRC) é a diabetes mellitus seguido de hipertensão arterial, glomerulonefrite e doença renal cística, proporcionando assim falência renal, confirmada por taxas de filtração glomerular inferior a 10ml/min ou nível sérico de creatinina superior a 8,0mg/dl. Essas causas levaram nos EUA em 1995, cerca de 250 novos casos para cada milhão de habitantes, a darem entrada em programas de transplante renal. O primeiro transplante renal realizado com sucesso foi em 1902 por Emerich Ullman em Viena, que implantou um dos rins do próprio cão no pescoço do mesmo, com subseqüente eliminação de urina, comprovando a eficiência das anastomoses vasculares. Em 1906, Jaboulay realizou o primeiro transplante em seres humanos, utilizando rins de cabra e porco sem sucesso. Uma das dificuldades na época era as anastomoses vasculares até que Alex Carrel as aperfeiçoou em transplantes experimentais, recebendo em 1912 o Prêmio Nobel de medicina como reconhecimento. Em 1933 na Ucrânia, Voronoy realizou o primeiro transplante renal entre seres humanos, sendo também o primeiro de doador cadáver. O rim foi retirado de um homem seis horas após a sua morte e implantado na região femoral de uma paciente de 26 anos, sob anestesia local, a qual veio a falecer 48 horas após. Voronoy ainda realizou mais seis procedimentos e despertou interesse na avaliação da função renal pós-operatória e mecanismos de rejeição, atribuídos como causas dos insucessos. Mesmo com resultados insatisfatórios, em 1950 na França, Küss estabeleceu a técnica cirúrgica empregada até hoje. Em 1952, em Paris, foi realizado o primeiro transplante de doador vivo, com o enxerto funcionando por vinte e dois dias. Em 1954, Hume realizou em Boston o primeiro transplante com sucesso prolongado, utilizando rim de um doador gêmeo idêntico. Com esse resultado, ficou provado que transplante entre identidade tecidual não ocorria rejeição, criando-se assim o conceito de antígenos individuais ou teciduais que estariam envolvidos na rejeição. Isso estimulou o desenvolvimento de técnicas para identificação desses tecidos e análise da imunidade humoral, sendo que drogas para efetuar a imunossupressão eram experimentais e o corticosteróide (inibir inflamação) foi usada para esse fim desde 1953, seguida da azatioprina. Em 1958 foi descrito o primeiro antígeno de histocompatibilidade por Jean Dausset em Paris que mostrou que alguns soros de pacientes com reações transfusionais aglutinavam leucócitos e, em 1960, surgiram técnicas desenvolvidas para tipar sangue e tecidos. Estudos iniciais em camundongos demonstraram a existência de um grupo de antígenos envolvidos nos processos de rejeição de tecidos e pela rejeição de transplantes, sendo denominados de antígenos de histocompatibilidade e a região do genoma, onde são codificados, de “complexo principal de histocompatibilidade”. Em humanos é designada de HLA (“human leukocyte antigens” – antígenos leucocitários humanos), localizada no braço curto do

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TRANSPLANTE RENAL

Os pacientes com insuficiência renal crônica terminal (IRCT) são os beneficiados com o transplante renal, sendo esse o melhor, mais barato e definitivo tratamento para essa patologia, devolvendo-os a sociedade em condições adequadas de vida, retirando os pacientes das sessões semanais de hemodiálise, de alto custo monetário e social. A causa mais comum de Insuficiência renal crônica (IRC) é a diabetes mellitus seguido de hipertensão arterial, glomerulonefrite e doença renal cística, proporcionando assim falência renal, confirmada por taxas de filtração glomerular inferior a 10ml/min ou nível sérico de creatinina superior a 8,0mg/dl. Essas causas levaram nos EUA em 1995, cerca de 250 novos casos para cada milhão de habitantes, a darem entrada em programas de transplante renal.

O primeiro transplante renal realizado com sucesso foi em 1902 por Emerich Ullman em Viena, que implantou um dos rins do próprio cão no pescoço do mesmo, com subseqüente eliminação de urina, comprovando a eficiência das anastomoses vasculares. Em 1906, Jaboulay realizou o primeiro transplante em seres humanos, utilizando rins de cabra e porco sem sucesso. Uma das dificuldades na época era as anastomoses vasculares até que Alex Carrel as aperfeiçoou em transplantes experimentais, recebendo em 1912 o Prêmio Nobel de medicina como reconhecimento. Em 1933 na Ucrânia, Voronoy realizou o primeiro transplante renal entre seres humanos, sendo também o primeiro de doador cadáver. O rim foi retirado de um homem seis horas após a sua morte e implantado na região femoral de uma paciente de 26 anos, sob anestesia local, a qual veio a falecer 48 horas após. Voronoy ainda realizou mais seis procedimentos e despertou interesse na avaliação da função renal pós-operatória e mecanismos de rejeição, atribuídos como causas dos insucessos. Mesmo com resultados insatisfatórios, em 1950 na França, Küss estabeleceu a técnica cirúrgica empregada até hoje. Em 1952, em Paris, foi realizado o primeiro transplante de doador vivo, com o enxerto funcionando por vinte e dois dias. Em 1954, Hume realizou em Boston o primeiro transplante com sucesso prolongado, utilizando rim de um doador gêmeo idêntico. Com esse resultado, ficou provado que transplante entre identidade tecidual não ocorria rejeição, criando-se assim o conceito de antígenos individuais ou teciduais que estariam envolvidos na rejeição. Isso estimulou o desenvolvimento de técnicas para identificação desses tecidos e análise da imunidade humoral, sendo que drogas para efetuar a imunossupressão eram experimentais e o corticosteróide (inibir inflamação) foi usada para esse fim desde 1953, seguida da azatioprina. Em 1958 foi descrito o primeiro antígeno de histocompatibilidade por Jean Dausset em Paris que mostrou que alguns soros de pacientes com reações transfusionais aglutinavam leucócitos e, em 1960, surgiram técnicas desenvolvidas para tipar sangue e tecidos. Estudos iniciais em camundongos demonstraram a existência de um grupo de antígenos envolvidos nos processos de rejeição de tecidos e pela rejeição de transplantes, sendo denominados de antígenos de histocompatibilidade e a região do genoma, onde são codificados, de “complexo principal de histocompatibilidade”. Em humanos é designada de HLA (“human leukocyte antigens” – antígenos leucocitários humanos), localizada no braço curto do

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cromossomo 6, sabendo-se hoje que sua função é bem mais ampla, como em regular a resposta imune para proteger o indivíduo. [...] Em 1966 foi introduzida a prova cruzada entre linfócitos do doador e soro do receptor (“cross match”), evitando-se assim, quando negativas, as rejeições hiperagudas por identificação de anticorpos ao doador, circulantes no receptor, os quais são desenvolvidos por transplantes prévios, transfusões de sangue ou durante a gravidez. Nessa década começaram a surgir as primeiras soluções para conservação renal e o processo de rejeição ficou mais amenizado por volta de 1978 com a introdução da ciclosporina, sendo uma poderosa arma no controle da rejeição celular. Atualmente novas drogas surgiram, como o micofenolato, tacrolimus e basiliximale, com resultados animadores e de menos efeitos colaterais, por não inibir a medula óssea e não provocar alterações gástricas severas. Em 1965 realizava-se o primeiro transplante renal no Brasil pelo Prof. Geraldo de Campos Freire no Hospital das Clínicas de São Paulo, sendo assim estruturada a unidade de transplante renal, cabendo ao Prof. Emil Sabbaga a coordenação clínica. Em 1968 foi realizado o primeiro transplante doador cadáver da América do Sul, sendo esse um transplante de rim, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, pelo Prof. Antônio Carlos Pereira Martins. Com os seus ensinamentos transmitidos ao Prof. Antônio Fernando D. Maynard, durante a realização de seu curso de pós-graduação, juntamente com a coordenação nefrológica do Prof. Geraldo Moreira Melo, foi realizado num dia de sábado em outubro de 1985, o primeiro transplante renal em Aracaju, no Hospital São Lucas, cujo doador foi a irmã do receptor e no dia seguinte, domingo, o segundo transplante renal em uma paciente que recebeu o rim de um presidiário, que teve sua pena suspensa. As dificuldades na época eram imensas desde a seleção pela tipagem de histocompatibilidade que eram feitas na cidade de Ribeirão Preto, como também de montar toda uma infra-estrutura necessária para o sucesso que foi alcançado. Esse paciente viveu por muitos anos e com enxerto funcionante até que por sepsemia provocada por ferimento em sua perna, veio a falecer. Dessa maneira foram feitos mais 19 transplantes dos quais tive o prazer de coordenar a equipe que realizava a nefrectomia (paciente doador) até que no ano de 1998 com o falecimento do Prof. José Calumby (1º auxiliar de todas as cirurgias de transplante) e em seguida do Prof. Fernando Maynard, os transplantes ficaram suspensos. Assim tive de estruturar e coordenar nova equipe juntamente com Dr. Roberto Maurício, Dr. Marcos Aurélio, Dr. Lourival, Inst. Luciana e os anestesistas Dr. Sérgio e Dr. Enedino (equipe que realiza o implante renal). Dr. Luciano Franco, juntamente com Dra. Sônia Lima, Dr. José Luiz, Inst. Maria Luiza e o anestesista Dr. Geraldo Filho integram a equipe que realiza a nefrectomia (paciente doador). A perfusão renal e o acompanhamento clínico são realizados pela equipe de nefrologia chefiada por Dr. Geraldo Moreira Melo, juntamente com Dr. Roberto Nogueira, Dr. Antônio Alves, Dra. Carmem Virgínia, Dr. Sérgio Campos e Dr. Washington Coutinho. Com esses colegas realizei em Dezembro de 1998 o 20º transplante. Com a estruturação e instalação da Central Estadual de Transplante, fui nomeado Coordenador dos Transplantes Renais no Estrado de Sergipe e assim reiniciamos os transplantes em Fevereiro de 2000,

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sendo esse o primeiro transplante sob a coordenação da Central Estadual, também realizado no Hospital São Lucas, cujo paciente recebeu o rim de sua irmã. Com a estruturação atual da Central Estadual de Transplantes, realizamos em 2003 os primeiros transplantes de rim, doador cadáver e após sete dias, realizamos mais dois transplantes também de doador cadáver. O primeiro paciente dessa série, faleceu no 30º dia de pós-operatório por hemorragia digestiva, porém com a função renal normal. Os pacientes em IRCT, com estado clínico saudável são incluídos em programa de transplante (receptores), desde que tenham idade acima de cinco e abaixo de 65 anos, mediante avaliação clínica laboratorial extensa, iniciando pela classificação ABO Rh e tipagem HLA. Os outros exames são dosagens sangüíneas habituais, bioquímica, testes sorológicos, dosagens de anticorpos virais, exame de urina e parasitológico de fezes, exames de imagens (Rx tórax, cistografia miccional), ECG, exame de fundo de olho, avaliação odontológica, esofagogastroduodenoscopia e avaliação ginecológica para mulheres. Quando o doador é vivo, será aceito desde que haja parentesco em até terceiro grau com o receptor (doador vivo relacionado – evitar a comercialização de órgãos), ausência de patologias associadas e os exames já citados são acrescidos de urografia excretora, arteriografia renal, clearance de creatinina, proteinúria e US., suprimindo-se a cistografia, exame oftalmológico e a avaliação gástrica. Quando o doador é cadáver, o diagnóstico de morte encefálica tem de ser feito como preconizado pelo Conselho Federal de Medicina (testes clínicos e confirmação por exame complementar específico como ECG ou Angiografia cerebral). Se o doador cadáver for uma criança, aceita-se acima de cinco anos de idade ou acima de 15 quilos (por dificuldades técnicas do pedículo renal e se o receptor for adulto, o implante será em bloco com os dois rins). Se o doador for adulto, terá de ter abaixo de 50 anos de idade e em ambas as situações livres de doenças associadas ou de intercorrências verificadas entre o trauma e o diagnóstico de morte encefálica que possam comprometer a função renal, bem como a doação autorizada pelo parente responsável. Existem contra-indicações para o transplante que podem ser temporárias (risco de recorrência de câncer, glomerulonefrites, tuberculose, foco de infecção, hepatites) ou definitivas (doença psiquiátrica grave ou déficit mental incapacitante, recorrência da doença de base no rim transplantado como glomeruloesclerose ou hiperoxalúria primária, amiloidose ou outros distúrbios metabólicos de herança genética). [...] Ao serem completados 21 anos de transplante renal em Sergipe, a equipe da Nefroclínica – Hospital São Lucas, já realizou 48 transplantes. Desses transplantados a doença de base mais comum foi a hipertensão arterial sistêmica em 62,5% seguida de glomerulonefrite crônica em 22,9%. O transplante foi mais realizado no sexo masculino com 34 casos (70,8%), com 56,2% entre 20 a 40 anos de idade. As complicações mais freqüentes foram de rejeição aguda em 16,4%, seguido de abscesso de parede em 6,2%, sendo que 50% evoluíram sem complicações.

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A situação atual dos 48 pacientes transplantados são de 28 pacientes com função renal, enxerto funcionante (58,3%), 2 em tratamento de rejeição com certa insuficiência renal crônica (4,1%), perfazendo assim 30 pacientes com enxerto renal funcionante, livres de processo dialítico (62,4%). Temos 4 pacientes (8,3%) que retornaram para a diálise e assim permanecem até a data atual. Cinco (0,4%) retornaram a diálise por processo de rejeição e após evoluíram para óbito. Sete (14,5%) também faleceram sem realizar diálise pós transplante, sendo que desses 4 estavam clinicamente normais, 2 em situação de rejeição e 1 com insuficiência renal crônica, perfazendo assim 12 óbitos (24,9%) de 48 transplantes realizados. Apenas dois pacientes (4,1%) não se têm acompanhamento, pois reside na região norte do país. Assim esperamos continuar nesse ato glorioso de restabelecer uma condição digna de vida para esses pacientes renais crônicos, com a esperança de não faltarem doadores entre parentes, bem como campanhas efetivas para doação de órgãos e que as entidades públicas de saúde continue nos apoiando e favorecendo cada vez mais estímulo e condições para que mais transplantes sejam realizados. O paciente renal crônico agradece.

Ricardo José Viana de Bragança.

Prof. Assistente de Urologia da UFS. Mestre em Urologia pela FMRP-USP. Coordenador de Transplante Renal da CNCDO em Sergipe