tese sylvia tamie anan

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SYLVIA TAMIE ANAN CRÔNICA DA VIDA INTEIRA Memórias da Infância nas Crônicas de Manuel Bandeira Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Joaquim Alves de Aguiar. São Paulo, maio de 2006.

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  • SYLVIA TAMIE ANAN

    CCRRNNIICCAA DDAA VVIIDDAA IINNTTEEIIRRAA

    MMeemmrriiaass ddaa IInnffnncciiaa nnaass CCrrnniiccaass ddee MMaannuueell BBaannddeeiirraa

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-graduao em Teoria

    Literria e Literatura Comparada da Faculdade

    de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, sob orientao do

    Prof. Dr. Joaquim Alves de Aguiar.

    So Paulo, maio de 2006.

  • Para minha me

  • Contar muito, muito dificultoso. No pelos anos que se j passaram. Mas pela

    astcia que tm certas coisas passadas de fazer balanc, de se remexerem dos

    lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem no.

    So tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo mido

    recruzado.

    Voc tem saudade do seu tempo de menino, Riobaldo? ele me perguntou,

    quando eu estava explicando o que era o meu sentir. Nem no. Tinha saudade

    nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu

    pudesse possvel. Por certo que eu j estava crespo da confuso de todos.

    ( Grande Serto: Veredas )

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, ao Joaquim, pelos anos de orientao atenta e

    paciente, desde a Iniciao Cientfica, apesar de todos os meus atrasos e limitaes.

    Aos professores Vagner Camilo e Yudith Rosenbaum, pelas argies

    em meu Exame de Qualificao, repletas de preciosas sugestes.

    Aos professores Alcides Villaa, Marcus Vinicius Mazzari, Jorge Coli,

    Antonio Dimas de Morais e, novamente, a Vagner Camilo e Yudith Rosenbaum, pela

    oportunidade de aprendizado em cursos de graduao e ps-graduao.

    FAPESP, pelo indispensvel apoio pesquisa desde a Iniciao

    Cientfica, tanto financeiro quanto acadmico, atravs da atenta leitura dos relatrios.

    A Ana Paula, Bruno, Fernando, Ulisses e Valria, amigos sem cujo apoio

    o caminho teria sido muito mais longo.

    minha famlia: meus pais, Monika e Edson, e a Renato e Lieselotte.

  • RESUMO / BREF

    Embora tradicionalmente vistas como textos menores da obra de Manuel

    Bandeira, suas crnicas para jornal apresentam uma riqueza particular, relacionada e ao

    mesmo tempo distinta de sua poesia: enquanto transportam para a prosa alguns dos

    principais temas de sua lrica, entre eles a memria de infncia, conferem-lhes um outro

    tratamento que evidencia a sua presena no cotidiano do poeta, transcendendo o vnculo

    primrio do gnero com o tempo presente. Seja nas crnicas sobre a vida cotidiana, seja

    naquelas em que o poeta faz crtica literria ou de artes plsticas, uma viso vinculada a

    um passado muito particular pode ser depreendida e iluminar facetas pouco exploradas

    de sua obra.

    Bien quelles soient vues par tradition comme textes moindres de luvre

    de Manuel Bandeira, seus chroniques crites pour journaux prsentent une richesse

    particulire, qui se rapporte et en mme temps se distingue de sa posie: pendant

    quelles transportent la prose quelques thmes importants de sa lyrique, parmi lesquels

    la mmoire de linfance, elles leur donnent un autre traitement qui met en relief leur

    prsence au quotidien du pote, de manire transcender la vinculation primaire du

    genre avec le temps prsent. Soit aux chroniques sur la vie quotidienne, soit auxquelles

    o le pote fait de la critique litraire ou de lart, un point de vue li un pass trs

    particulier peut tre dcouvert et claircir facettes peu explores de son uvre.

  • NDICE

    Introduo ................................................................................................. 07

    Captulo I: Infncia Prxima....................................................................211. Quadros da Infncia .................................................................... 23

    Pintura Anglica ................................................................. 25Eu vi o mundo... ................................................................. 33

    2. A trinca do Curvelo .....................................................................42

    Captulo II: Infncia Distante.................................................................. 551. Crnicas da Provncia ................................................................. 56

    Menino de Engenho ............................................................ 61O Mestre de Apipucos .........................................................67

    2. Cidades de Interior ...................................................................... 73Quixeramobim e Campanha ................................................74Pernambuco e Bahia ........................................................... 79

    3. Rua da Unio ...............................................................................81

    Captulo III: Infncia e Paisagem Urbana ............................................. 911. Das Laranjeiras ao Castelo ..........................................................922. Ai, rvores! .................................................................................103

    O Largo do Boticrio ...........................................................103Um P de Milho .................................................................. 106

    3. Carnavais .....................................................................................109Carnaval Distante ................................................................ 110Carnaval Prximo ................................................................116

    4. O Retorno ao Lar .........................................................................124Cachoeiro do Itapemirim .....................................................125De Volta ao Recife .............................................................. 128

    Consideraes Finais ................................................................................ 132

    Bibliografia ................................................................................................ 134

  • 7IntroduoConhecido como um dos maiores poetas brasileiros do sculo XX, Manuel

    Bandeira foi tambm um cronista contumaz. Desde 1917, mesma data de publicao de A

    Cinza das Horas, at pouco antes de sua morte, em 1968, conta-se mais de meio sculo de

    contribuies em diversos jornais de vrios Estados, principalmente do Rio de Janeiro. Mas,

    embora constituam a parte mais significativa da obra em prosa de Bandeira, as crnicas foram

    relegadas a um segundo plano pelo prprio autor, de forma que apenas um nmero limitado

    de textos encontra-se disponvel justamente aqueles publicados em suas coletneas em livro:

    Crnicas da Provncia do Brasil (1937), Flauta de Papel (1957), que recebeu uma reedio

    bastante ampliada no segundo volume de Poesia e Prosa (1958), da editora Jos Aguilar, e

    Andorinha, Andorinha (1966).

    Dessas crnicas, possvel apreender os temas pelos quais interessava-se o

    poeta em seu cotidiano. Trata-se de textos em que a ambincia artstica da poca, atravs de

    comentrios crticos a respeito de novos livros, concertos, peas de teatro, filmes e

    exposies, alm das inmeras amizades de Bandeira, convive com pequenos fatos da

    vizinhana em que vivia, em seus vrios endereos, e da vida mundana da ento capital da

    Repblica. Entretanto, mesmo que abrilhantado pela perspectiva de um observador muito

    particular, o valor dessas crnicas no reside apenas no registro histrico ou na simples

    curiosidade. Captados por um olhar nico, acontecimentos importantes ou insignificantes

    ganham uma nova dimenso na prosa bandeiriana, que, atravs de um estilo claro e conciso,

    transpe o limite do relato de miudezas para alcanar uma forma rara de lirismo, muito cara

    ao prprio Bandeira.

    Dessa maneira, o cronista acaba transportando para a prosa alguns dos

    principais temas de sua lrica, entre eles a vivncia do cotidiano e a memria de infncia.

    em suas crnicas mais ricas que estes dois temas se mesclam, transformando-as em

  • 8testemunhais de como o resgate das primeiras vivncias estava presente no dia-a-dia do poeta.

    preciso, no entanto, que a leitura das crnicas no se oriente apenas como apoio

    interpretao dos poemas: os textos que encontramos nas coletneas em livro, mesmo que

    preservados revelia do autor, que aceitava publicar em jornais para garantir a sua

    subsistncia e enviava os originais s redaes sem guardar sequer uma cpia consigo, so

    textos literrios de primeira linha, no raramente altura de seus melhores poemas.

    Em todo caso, mesmo que produzida para uma publicao efmera, a crnica

    no depende de que se recuperem todas as suas informaes contingentes para a sua

    compreenso. Embora, algumas vezes, seja relevante recuperar alguns fatos de poca, o

    essencial interpretao de uma crnica reside, como em qualquer outra obra literria, no

    prprio texto. Nas crnicas de Manuel Bandeira, os fatos adjacentes mais fundamentais so de

    conhecimento de todos que se interessam por sua obra; de resto, permanece apenas a fruio

    da leitura, que flagra o poeta em seu cotidiano, datilografando a crnica com a mquina no

    colo enquanto observa a vizinhana pela janela. A centralizao da obra bandeiriana nas

    miudezas do cotidiano transforma portanto as suas crnicas em uma pea fundamental.

    Entre as caractersticas mais marcantes da crnica, os conceitos que

    corriqueiramente se associam ao gnero, encontra-se certamente a idia de leveza, tanto na

    escolha dos temas quanto no seu tratamento, e at mesmo na sua forma original de

    publicao, em que o recorte de jornal se contrape ao peso de um livro, por exemplo. Em

    geral escrita em linguagem simples e breve, a crnica mantm relao com a sua origem

    modesta, o folhetim ou nota de rodap comuns nos jornais cariocas do sculo XIX, e que

    resulta em um estilo despretensioso e na preferncia por temas midos e cotidianos. Como

    demonstra Antonio Candido, a crnica segue na contramo do gosto brasileiro pela

    grandiloqncia, abandonando aos poucos sua funo inicial de informar e comentar os

    principais fatos do dia para dedicar-se poesia e fico, atravs da vivncia pessoal do

    cotidiano do cronista e de uma escrita preocupada sobretudo em divertir: leveza que constitui

    principalmente uma viso muito peculiar da literatura, da vida e dos homens.

    Na sua despretenso, humaniza; e esta humanizao lhe permite, comocompensao sorrateira, recuperar com a outra mo uma certa profundidade designificado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer delauma inesperada embora discreta candidata perfeio. (...) H estilos roncantesmas eficientes, e muita grandiloqncia consegue no s arrepiar, mas nosdeixar honestamente admirados. O problema que a magnitude do assunto e a

  • 9pompa da linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo daverdade. A literatura corre com freqncia esse risco, cujo resultado quebrarno leitor a possibilidade de ver as coisas com retido e pensar em conseqnciadisto. Ora, a crnica est sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer adimenso das coisas e das pessoas.1

    O jornal uma instituio moderna, diretamente ligada mecanizao da

    imprensa, que tem como uma de suas conseqncias mais profundas a acelerao do tempo,

    atravs de notcias que envelhecem rapidamente, e da informao que se espalha e desatualiza

    simultaneamente sem que o leitor tenha o tempo de reflexo para assimil-la. Se quisermos

    definir a crnica, portanto, podemos afirmar que se trata de um gnero

    essencialmente moderno, porque nascido em um meio de comunicao em massa. Nenhuma

    crnica escrita com a inteno de ser publicada em livro, pelo menos num primeiro

    momento, e isso determina sua particularidade: ao contrrio do escritor em outros gneros, o

    cronista no pretende, a princpio, eternizar-se. Tambm no se trata de uma obra que exige o

    mesmo esforo e concentrao de um romance; aparentemente, ela pode ser rabiscada s

    pressas, minutos antes de ser enviada tipografia e grfica. Em contrapartida, o que

    caracteriza a crnica o fato de surgir em funo da publicao, que praticamente anterior

    obra, ao lado de sua capacidade de permanecer, de sobreviver a um meio de publicao que se

    torna obsoleto no dia seguinte, e de aparecer muitas vezes como objeto estranho em meio a

    uma multido de informaes heterogneas e mesmo superficiais que o jornal traz todos os

    dias.

    Ainda que alguns estudiosos considerem inadequada a publicao de crnicas

    em livro, julgando que ela s pode ser compreendida no contexto do jornal2, na verdade a

    crnica recolhida em livro pode ser vista como resultado de uma decantao, de um processo

    em que se torna a nica remanescente de sua publicao original, como as crnicas da

    coletnea Andorinha, Andorinha, de Manuel Bandeira, cujos textos foram selecionados,

    recortados e guardados pelos leitores dos jornais para os quais o poeta escrevia, e reunidos

    anos mais tarde por Carlos Drummond de Andrade. De certa forma, a dimenso literria

    atingida pela crnica brasileira est relacionada ao programa modernista: embora o final do

    sculo XIX e o incio do sculo XX seja um perodo repleto de cronistas interessantes, o gne-

    1 Antonio Candido. A vida ao rs-do-cho, em A Crnica, pp.13-14.2 V. Temstocles Linhares. O maior inimigo da crnica e Situao da crnica, em O Estado de S. Paulo,Suplemento Literrio.

  • 10ro abandonou o tom jornalstico para se tornar francamente literrio nos anos 20, quando os

    escritores ligados ao Modernismo passaram a escrever em jornais a maioria do Rio de

    Janeiro , em parte como meio de divulgao das idias modernistas3, em parte como meio de

    vida. assim que escritores j reconhecidos em outros gneros enveredaram pela crnica,

    como Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Alcntara Machado, Carlos Drummond de

    Andrade, e posteriormente Rachel de Queiroz, Joo Guimares Rosa, Vinicius de Moraes e

    Ceclia Meireles, entre muitos outros. As crnicas de escritores brasileiros a partir desse

    perodo constituem portanto um amplo campo de estudos, interessante para a compreenso do

    movimento modernista e ainda pouco estudado.

    O primeiro trao que une as contribuies de Manuel Bandeira para a imprensa

    atividade jornalstica de outros escritores contemporneos justamente que a maior parte

    deles escreve e, na maioria das vezes, publica no Rio de Janeiro, palco dos principais

    acontecimentos polticos e sociais da poca, sendo tambm a metrpole em que a imprensa

    florescia desde meados do sculo XIX. Mas o cronista no era nascido na capital, condio

    em que se igualava a tantos outros escritores a partir das dcadas de vinte e trinta, como

    Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga e Clarice Lispector. Ou seja, embora fosse o

    cenrio e ao mesmo tempo o grande assunto da atividade jornalstica, a vida carioca no era a

    base da experincia pessoal de alguns daqueles que a comentavam nas crnicas.

    A condio de migrante, mesmo privilegiada em relao a tantos outros

    migrantes que assomam s metrpoles em busca de melhores condies, traz uma outra

    perspectiva da vida na cidade, que se faz sentir nas crnicas. As razes, principalmente de

    ordem econmica, do deslocamento no espao geogrfico parecem fora de questo para estes

    cronistas, que no raramente demonstram encarar a vida urbana como uma espcie de exlio,

    talvez voluntrio, mas sempre temporrio. A questo da sobrevivncia legada a um segundo

    plano, e o afastamento das razes compreendidas tanto como passado individual quanto

    como lao familiar ou de grupo torna-se a principal conseqncia da migrao. O mundo

    infantil, em relao vida de subsistncia e de responsabilidades do adulto, e o cotidiano das

    cidades no interior do pas, em contraste com a agitao da capital, abrem, no espao e no

    tempo, um outro leque de referncias para a observao do que acontece no Rio de Janeiro. A

    memria da infncia, sentida direta ou indiretamente na prosa despretensiosa na crnica,

    acrescenta novas possibilidades ao texto jornalstico, incluindo o lirismo.

    3 Tome-se como exemplo a seo Ms modernista, mantida pelo jornal A Noite, em 1925.

  • 11A crnica, entretanto, um gnero voltado para o presente e a vida pblica,

    apesar do tom pessoal utilizado geralmente pelo cronista, e da estrutura em que os assuntos

    surgem por associao, sem a preocupao aparente de formar um sentido muito definido. A

    coeso do texto garantida por um vnculo preestabelecido entre o cronista e o leitor de

    jornal, pela vivncia de um mesmo cotidiano e um mnimo conhecimento comum dos

    assuntos, por mais variados que sejam. De forma potica ou humorstica, o cronista

    dificilmente se ocupa de alguma situao que o leitor tambm no tenha vivenciado,

    principalmente na rotina comum dos centros urbanos, em que predomina a leitura rpida do

    peridico.

    Provavelmente por esta razo, a memria de infncia um tema que demora a

    surgir na crnica brasileira. Quando surge, em Lima Barreto ou Mrio de Andrade, por

    exemplo, sempre em crnicas em que a recordao no o tema principal, mas uma espcie

    de tema subjacente que introduz ou conclui outro, este mais afinado com o gnero4. A

    nostalgia da infncia presente nas crnicas de Manuel Bandeira parece restrita literatura de

    memrias propriamente dita, e mesmo em sua obra o tema aparece aos poucos, levando

    alguns anos at ocupar crnicas inteiras. Mesmo tendo se tornado comum em cronistas

    posteriores, como veremos, possvel afirmar que a recordao de infncia foi introduzida na

    crnica por Manuel Bandeira.

    Ao adoecer, aos dezoito anos de idade, Manuel Bandeira morava em So

    Paulo. Como recorda em algumas crnicas e em Itinerrio de Pasrgada, o futuro poeta

    estudava arquitetura na Escola Politcnica e desenho no Liceu de Artes e Ofcios, porque

    desejava ser um arquiteto como hoje so Lcio Costa, Carlos Leo e Alcides Rocha Miranda.

    Tinha aspiraes excessivas construir casas, remodelar cidades, encher o Rio ou o Recife de

    edifcios bonitos como Ramos de Azevedo fizera em So Paulo (...). Desforrei-me das minhas

    arquiteturas malogradas reconstruindo uma cidade da Prsia Antiga Pasrgada.5. Embora

    nunca realizada, a vocao para a arquitetura acompanhou Bandeira vida afora, em desenhos,

    poemas e crnicas. Pasrgada, porm, no foi a nica cidade a ser reconstruda atravs da

    literatura: nos textos de Bandeira, encontramos inmeras cidades que o poeta conheceu

    como a prpria So Paulo ou Petrpolis , entre as quais algumas do interior do pas, como

    vimos, visitadas na procura de um clima mais adequado sua sade Quixeramobim,

    4 V. crnicas Feiras e Mafus, em Feiras e Mafus, de Lima Barreto, e Macobba, em Txi e crnicas noDirio Nacional, de Mrio de Andrade.5 Confidncias a Edmundo Lys,, de Andorinha Andorinha, p.43.

  • 12Campanha , e mesmo grandes cidades europias, visitadas na maturidade Paris, Londres,

    Amsterd. Mas encontramos, principalmente, as duas cidades centrais na formao de

    Bandeira, presentes na citao acima Rio de Janeiro e Recife.

    O Recife e o Rio de Janeiro so, como se sabe, as duas cidades da infncia do

    poeta. O Recife, cidade natal, a conhecida fonte da mitologia pessoal presente em poemas

    como Evocao do Recife e Profundamente:

    Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residncia no Recife, compequenos veraneios nos arredores Monteiro, Sertozinho do Caxang, BoaViagem, Usina do Cabo , construiu-se a minha mitologia, e dito mitologiaporque os seus tipos, um Totnio Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a pretaTomsia, velha cozinheira do meu av Costa Ribeiro, tm para mim a mesmaconsistncia herica das personagens dos poemas homricos. A Rua da Unio,com seus quatro quarteires adjacentes limitados pela rua da Aurora, daSaudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Trada; a casa do meu av, acapital desse pas fabuloso. Quando comparo estes quatro anos da minhameninice a quaisquer outros quatro anos da minha vida de adulto, ficoespantado do vazio destes ltimos em cotejo com a densidade daquela quadradistante.6

    Graas profisso do pai, engenheiro civil, durante sua infncia Bandeira

    morou em diversas cidades: depois da natal Recife, Petrpolis, So Paulo, Santos, novamente

    Petrpolis, Recife e Rio de Janeiro, onde a famlia se estabeleceu aps a morte do av

    materno. A ento capital federal tornou-se a segunda cidade no imaginrio da infncia do

    poeta, que permaneceu ali at os dezoito anos, passando portanto no Rio a maior parte de sua

    vida escolar. Anos mais tarde, j marcado pela tuberculose, sozinho e empobrecido, Bandeira

    retornou ao Rio de Janeiro, onde morou at o final de sua vida, em diversos endereos e em

    diferentes bairros: ao longo dos anos, o poeta veio a conhecer a cidade profundamente, no

    tempo e no espao. Esta circunstncia marca uma diferena fundamental entre as duas cidades

    no imaginrio de Bandeira, e, portanto, daquilo que representam em sua obra. Ao contrrio do

    Recife, que na maturidade do poeta s voltaria a ser visto de passagem, o Rio de Janeiro a

    cidade que cresceu, modernizou-se, deixou de ser Capital Federal e continuou crescendo sob o

    olhar atento e bastante crtico do poeta-arquiteto. De outro lado, o Recife tambm no

    permaneceu parado no tempo, contrariando o desejo de Bandeira, que em mais de uma

    ocasio criticou as deformaes em sua cidade natal, mas que sempre retornava distncia

    6 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, p. 35.

  • 13necessria para continuar a idealiz-la. Impedido em seu sonho de remodelar, sua maneira,

    as duas capitais da sua infncia, Bandeira acaba construindo uma terceira cidade, intacta,

    suspensa no ar, diferente daquela que encontrou em sua vida adulta, mas que talvez tambm

    no corresponda exatamente que conheceu na infncia, e sim mais provavelmente a uma

    cidade que podia ter sido e no foi.

    A primeira contribuio de Manuel Bandeira para jornal data de 1917, mesmo

    ano de publicao de A Cinza das Horas: trata-se da crnica intitulada Le Bateau Ivre,

    publicada no Rio-Jornal do Rio de Janeiro; depois disso, o Correio de Minas de Juiz de Fora

    seria o primeiro jornal em que o poeta contribuiria com regularidade7. A partir dos anos trinta,

    Bandeira viria a contribuir com regularidade para inmeros jornais de diversos Estados,

    principalmente do Rio de Janeiro, at o fim de sua vida. Por isso, as crnicas formam a parte

    mais substanciosa da obra em prosa do poeta. Nelas, Bandeira trata de uma gama variada de

    assuntos, desde temas relacionados a cultura at aqueles estritamente ligados ao cotidiano.

    Partindo sempre da prpria vivncia, o cronista fala de literatura, arquitetura e artes plsticas,

    msica, teatro e cinema; ao mesmo tempo faz retratos de amigos e conhecidos, a maioria

    ligada ao mundo da cultura e das artes, e acaba tambm retratando a vida e a cidade do Rio de

    Janeiro de sua poca.

    Aqueles que so retratados nas crnicas de Bandeira, como observou Davi

    Arrigucci Jr. em relao a Jaime Ovalle, chegam a se tornar verdadeiras personagens no

    universo bandeiriano, fazendo destes textos praticamente uma extenso de seu mundo

    potico8. Nesse sentido, as crnicas como um todo caracterizam-se pelo mesmo estilo

    humilde que trao marcante de toda sua obra. Afinal, como esclarece o prprio cronista,

    (...) o poeta no um sujeito que vive no mundo da lua, perpetuamente entretido em coisas

    sublimes. , ao contrrio, um homem profundamente misturado vida, no seu mais limpo ou

    no sujo cotidiano9. Da mesma forma que tematiza a arte e a vida alheias, Bandeira fala

    tambm de si mesmo e de sua poesia, sendo possvel reconstituir, atravs das crnicas, um

    retrato do poeta e de sua obra.

    O objetivo inicial do presente trabalho a leitura e anlise das crnicas, a parte

    mais importante da obra em prosa de Manuel Bandeira. Dado o volume e a complexidade da

    obra em questo, que no se limita aos textos publicados em livro, optou-se por fazer um

    7 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, p.44.8 Davi Arrigucci Jr. Humildade, Paixo e Morte: a poesia de Manuel Bandeira, p. 51.9 Correio da Espada, em Andorinha Andorinha, p.18.

  • 14recorte que permitisse rastrear a presena de elementos autobiogrficos nas crnicas, de modo

    a reconstituir, atravs da obra, o perfil do poeta e do homem, flagrado nas representaes do

    seu cotidiano e do contexto histrico em que se move. O projeto de pesquisa teria,

    inicialmente, se dedicado ao seu texto em prosa mais conhecido, a autobiografia Itinerrio de

    Pasrgada, mas considerou-se que o Itinerrio j tinha sido comentado e analisado diversas

    vezes, incluindo o captulo A poesia em trnsito: Revelao de uma potica, em Humildade,

    Paixo e Morte, de Davi Arrigucci Jr. No levantamento da fortuna crtica de Manuel Bandeira

    foi encontrada a seguinte sugesto de Stefan Baciu, no captulo O Cronista de Manuel

    Bandeira de Corpo Inteiro:

    Notvel lugar nas crnicas vem ocupando a parte de memrias, tanto no quese refere ao apontamento humano, como redao de pginas que, semnenhuma dificuldade, poderiam figurar em seu Itinerrio de Pasrgada. Aocorrer dos anos, Bandeira escreveu sobre fatos, coisas e acontecimentosgrandes ou pequenos com uma ternura que se igualou ao sentido crtico comque sempre encara os acontecimentos. Essa riqueza de material, essasreferncias, essas evocaes de tipos e nomes, ora do Brasil, ora do estrangeiro,podero constituir uma espcie de apndice do Itinerrio, no qual o autor, pordiscrio ou devido ao fato de os captulos terem sido escritos e publicadosms aps ms, deixou de dizer uma srie de coisas, consignadas com riquezade cores em suas crnicas. A atividade de cronista de Manuel Bandeiraconstitui complemento do memorialista, e em seus artigos de jornal temos ricamatria-prima para aqueles que desejam penetrar no mundo do Itinerrio dePasrgada.10

    Em primeiro lugar, a forma de publicao original do Itinerrio de Pasrgada,

    em captulos mensais no Jornal de Letras, o aproxima dos formatos do folhetim e da crnica.

    Depois, a constncia dos temas presentes na autobiografia nas crnicas, tanto anteriores

    quanto posteriores ao Itinerrio, acrescenta um fator de interesse a esses textos. Pouco

    estudados pela crtica bandeiriana, eles retomam temas caros sua poesia, alm de

    tematizarem a prpria potica do autor, suas amizades e influncias literrias, compondo um

    rico painel de sua obra. Devido qualidade da prosa em suas crnicas, Bandeira era

    estimulado por seus amigos a escrever contos e romances, mas confessava ter feito algumas

    tentativas e concludo que no nasci com bossa para isso11. Talvez tenha sido a crnica, em

    10 Stefan Baciu, Manuel Bandeira de Corpo Inteiro, p.79 (grifo meu).11 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, p.83.

  • 15sua simplicidade e despretenso, o gnero em prosa que melhor se adequasse ao estilo de um

    poeta que sempre se disse de circunstncias e desabafos.

    Como dissemos, Bandeira publicou trs coletneas de crnicas ao longo da

    vida; , inclusive, interessante notar que nenhum desses livros foi publicado por iniciativa do

    poeta. O seu primeiro livro de prosa, Crnicas da Provncia do Brasil, rene crnicas escritas

    para o Dirio Nacional de So Paulo, A Provncia do Recife e O Estado de Minas de Belo

    Horizonte, escritas entre 1929 e 1933, e foi publicado em 1937 em homenagem ao

    cinqentenrio do poeta pela Civilizao Brasileira, tendo sido talvez a nica coletnea em

    que o poeta participou diretamente da seleo de textos. Duas dcadas mais tarde, Bandeira

    publicaria Flauta de Papel, cuja primeira edio, de tiragem limitada, trazia a seguinte

    Advertncia:

    As minhas Crnicas da Provncia do Brasil, cuja edio, que de 1936, seachava h muito esgotada, no mereciam reimpresso: alguma coisa delas foiaproveitada em outros livros, como, por exemplo, o que se referia a Ouro Pretoe ao Aleijadinho; muita outra perdeu a oportunidade. Decidi, pois, reeditarapenas o que nelas me pareceu menos caduco, juntando-lhe numerosascrnicas escritas posteriormente, a maioria para o Jornal do Brasil. Chamei aovolume Flauta de Papel, querendo significar, com tal ttulo, que se trata deprosa para jornal, escrita em cima da hora, simples bate-papo com os amigos.No lhes dou, a estes escritos, outra importncia seno a de ver em alguns deleso registro de fatos que desapareceriam comigo, se eu no os lanasse ao papel.A idia da publicao partiu de Irineu Garcia, Lcio Rangel e Paulo MendesCampos, aos quais deixo aqui os meus agradecimentos.

    A edio original de Flauta de Papel , portanto, uma reedio de Crnicas da

    Provncia do Brasil, publicada por iniciativa de, entre outros, Paulo Mendes Campos, que

    tambm incentivara Bandeira a escrever o Itinerrio de Pasrgada, trs anos antes. O ttulo

    da coletnea, alm do sentido expresso na Advertncia, tambm remete, indiretamente,

    infncia; mais exatamente, ao poema Infncia, de Belo Belo:

    O urubu pousado no muro do quintal.Fabrico uma trombeta de papel.Comando...O urubu obedece.Fujo aterrado do meu primeiro gesto de magia.

  • 16Atravs da escolha do ttulo, Bandeira estende, pela publicao das crnicas,

    que alcanam um pblico relativamente amplo, aquele seu primeiro gesto de magia, que

    no raramente suscitam uma reao inesperada do cronista: algumas crnicas de Flauta de

    Papel e Andorinha Andorinha registram a resposta dos leitores a determinadas afirmaes

    suas no texto de jornal, deixando o poeta muitas vezes surpreso. Na rplica a estes leitores,

    vemos que Bandeira considerava os seus textos freqentemente sobrevalorizados pelo

    pblico, que ampliava tanto sua importncia quanto o seu significado. Uma prova disso so as

    suas duas posteriores publicaes em prosa: a segunda edio de Flauta de Papel, publicada

    pela editora Jos Aguilar um ano depois da primeira e contida no segundo volume de Poesia e

    Prosa, e a coletnea Andorinha Andorinha renem quase exclusivamente textos recolhidos

    por leitores e amigos do poeta.

    Os textos da segunda edio de Flauta de Papel, segundo a prpria editora,

    ultrapassam de tal modo as enfeixadas no volume de igual nome, anteriormente dado a lume,

    que se pode afirmar que s o ttulo se conserva: quase duzentos textos foram acrescentados

    aos sessenta que, originalmente, participavam da coletnea. Da mesma forma,

    aproximadamente trezentas crnicas, at ento inditas em livro, integram Andorinha

    Andorinha, volume organizado por Drummond para publicao pela editora Jos Olympio em

    comemorao ao octogsimo aniversrio do poeta, em 1966, com uma reedio pstuma no

    seu centenrio, em 198612.

    Mesmo pouco conhecidas, portanto, as crnicas de Manuel Bandeira no

    formam um volume pequeno de textos. Sua leitura permanece limitada a especialistas e

    curiosos sobre a obra bandeiriana, geralmente em busca de referncias para a interpretao de

    seus poemas. De fato, o cronista recorda com freqncia a concepo de determinados

    poemas e episdios recuperados mais tarde em poemas, e os temas de sua poesia surgem, de

    forma quase automtica, nas crnicas, razo pela qual estas normalmente so lidas em relao

    quase exclusiva com os poemas e muito dificilmente em relao entre si. Davi Arrigucci Jr.

    sinaliza a importncia da crnica para o prprio programa modernista em geral e para a

    mudana no conceito de literatura de Bandeira em particular, ao explorar possibilidades

    12 As crnicas de Bandeira ainda receberam duas reedies recentes: a primeira, que rene os textos originais deCrnicas da Provncia do Brasil e Flauta de Papel, alm de uma seleo de Andorinha Andorinha, entre outrostextos em prosa, foi organizada por Jlio Castaon Guimares e publicada sob o ttulo Seleta de Prosa pelaeditora Nova Fronteira, em 1997; a segunda, uma pequena antologia pela coleo Melhores Crnicas, comseleo e prefcio de Eduardo Coelho, publicada pela editora Global, em 2003.

  • 17poticas contidas em fatos do cotidiano, naquilo que at ento era considerado apenas

    prosaico:

    As crnicas, favorecidas pelo modo de ser do gnero, que desde o sculopassado vinha abrindo espao para a entrada do prosaico e outros aspectos davida moderna na prosa literria, demonstram como a observao do cotidianono se desgarrava necessariamente da inteno artstica e podia dar com a maisalta poesia no terra-a-terra, constituindo, por isso mesmo sem desdouros, umterreno propcio para a sondagem lrica. Da mesma forma, um escritormoderno que principalmente cronista, como Rubem Braga, formado sob ainfluncia do Modernismo, poder aprender muito com a lrica de Bandeira e omistrio da simplicidade de sua forma potica, construda em grande parte compalavras simples e imagens de todo dia.13

    Como o crtico sintetiza de forma exemplar, no apenas os fatos narrados por

    Bandeira revelam a sua importncia na concepo das crnicas, mas o prprio gnero

    contribui para a maturao de sua potica, quando no para uma reflexo constante a respeito

    dela. De forma oculta, portanto, disfarada pela aparente simplicidade, como prprio do

    poeta pernambucano, as crnicas constituem textos propriamente literrios, no dificilmente

    revelando um trabalho potico.

    Entre as crnicas que apresentam um maior grau de lirismo, encontram-se

    justamente aquelas que tratam de um tema caro poesia bandeiriana a memria de infncia.

    So textos que chamam a ateno do leitor de forma particular, por resgatarem o passado

    individual do cronista na massa catica do momento presente, principalmente no meio

    urbano. Em funo de sua natureza jornalstica, entretanto, as crnicas, com algumas

    excees, recuperam o passado em uma relao muito ntima com o presente. Se, no dizer de

    Emil Staiger, o passado como objeto de narrao pertence memria; o passado como tema

    do lrico um tesouro de recordao14, possvel afirmar que a crnica se localiza em uma

    linha intermediria entre a narrativa e o gnero lrico e, em especial no caso das crnicas que

    analisaremos, a recordao surge como resposta a uma srie de contradies entre o sujeito e

    o meio em que ele se encontra.

    No apenas dois tempos, o presente e o passado, como dois espaos, o da

    infncia e o da idade adulta, dividem o cronista, que por sua vez tambm exerce uma funo

    intermediria entre narrador e eu-lrico. A presena destes dois espaos de fundamental

    13 Davi Arrrigucci Jr., Humildade, Paixo e Morte a poesia de Manuel Bandeira, p.53.14 Emil Staiger, Estilo Lrico: a Recordao, em Conceitos fundamentais da potica, p.55.

  • 18importncia ao refletirmos sobre o processo de urbanizao e modernizao sofrido, na

    primeira metade do sculo XX, pelas duas principais cidades do imaginrio bandeiriano Rio

    de Janeiro e Recife , com a funo de eliminar os traos do passado pr-republicano da

    paisagem urbana e, em conseqncia, muito da paisagem da prpria infncia do cronista.

    Por isso, escolheu-se analisar as crnicas de Manuel Bandeira, uma vez

    focalizadas na memria de infncia, atravs de sua movimentao no espao urbano. O

    presente trabalho concentrou o seu foco nas crnicas publicadas em livro, apesar da

    possibilidade de recuperar textos publicados somente nos jornais em arquivos, por se

    considerar que as coletneas Crnicas da Provncia do Brasil, Flauta de Papel e Andorinha

    Andorinha j formavam um corpus de trabalho bastante amplo e, ao mesmo tempo,

    selecionado, seja pelo prprio autor ou por pessoas ligadas a ele. Ademais, a heterogeneidade

    dos temas nas crnicas em livro, e mesmo no prprio gnero, no permitiria, mesmo com a

    escolha do tema da memria de infncia, a formao de um corpus de anlise muito estrito.

    Desta forma, o primeiro captulo procura destacar, nas crnicas, as situaes do

    momento presente que suscitam a memria de infncia, notadamente o contato com crianas e

    com a obra de determinados artistas. Primeiramente, analisaremos como a nostalgia da

    infncia manifesta-se nos seus textos de crtica de arte, atividade que o poeta exerceu por

    longos anos, de forma a tambm analisar o elemento de plasticidade em suas memrias, com

    destaque para a pintura de seu conterrneo Ccero Dias. Em seguida, nos voltaremos para uma

    das sries de crnicas mais conhecidas de Bandeira, que narra a convivncia com as crianas

    da rua do Curvelo, em Santa Teresa, primeiro endereo em que o cronista morou sozinho no

    Rio de Janeiro, de forma a tentar compreender como a influncia daquelas crianas, vivendo

    uma infncia em quase tudo oposta quela passada por Manuel em Pernambuco, o leva a

    recuperar o passado.

    O segundo captulo volta-se para as crnicas que tratam de dois momentos

    especficos na biografia do poeta: sua infncia no Recife e os anos de peregrinao pelo

    interior do pas, em busca de um clima adequado sua sade. Da mesma forma que a crtica

    de arte, a crtica literria presente nos textos de Bandeira tambm revela uma certa maneira de

    recordar a infncia, em especial nos seus textos sobre Jos Lins do Rgo, que mostram uma

    identificao com a decadncia da economia canavieira; por isso, preciso tambm relembrar

    a amizade de Bandeira com Gilberto Freyre e o seu posicionamento ante as medidas

    urbanistas e higienistas tomadas no Recife, quando o poeta j vivia distante da cidade natal.

  • 19Da mesma forma que defende a preservao do seu Recife, Bandeira tambm

    revela toda uma viso do passado e do patrimnio histrico do pas em crnicas em que

    recorda perodos passados em cidades do interior do Nordeste, e que de certa forma tambm

    constituem crnicas sobre uma infncia prolongada sob os cuidados familiares. Finalmente,

    ao final do segundo captulo chegamos ao ncleo da presente pesquisa, nos textos em que

    Bandeira recorda a sua infncia na rua da Unio, no Recife.

    No ltimo captulo, a anlise amplia-se para as crnicas em que a memria de

    infncia e a vida adulta contradizem-se na vida cotidiana do poeta, no Rio de Janeiro. A

    trajetria de Bandeira na ento capital da Repblica, onde viveu mais de setenta anos, pode

    ser reconstituda atravs das crnicas, que mostram um movimento gradativo de

    distanciamento da infncia. Apesar disso, uma busca pelos pilares em que se apoiava o

    passado permanece atravs da constncia de certos temas, em especial a da preservao das

    rvores na cidade do Rio, no que os textos de Bandeira dialogam com crnicas de Rubem

    Braga e Carlos Drummond de Andrade, escritores que passavam pela mesma experincia de

    migrantes na metrpole.

    Entre as crnicas que contrapem presente e passado, toda uma srie de textos

    sobre o carnaval destaca-se das coletneas de Bandeira, em que no se recordam apenas

    episdios da infncia, mas tambm determinadas percepes do perodo da infncia que o

    cronista recupera. As lembranas carnavalescas, que pelo seu destaque na cultura brasileira

    transformam-se num marco anual da passagem no tempo, levam o cronista a evidenciar certas

    mudanas, no apenas na paisagem, mas nos costumes populares. Finalmente, a ltima parte

    tenta analisar como a recordao do passado determina uma viso do presente, nos momentos

    em que o cronista retorna terra natal: para efeito de anlise, aos textos em que Manuel

    Bandeira retorna ao Recife contrapomos aqueles em que Rubem Braga, escritor considerado

    essencialmente cronista e cuja obra traz muitos pontos em comum com a bandeiriana, rev a

    cidade natal de Cachoeiro do Itapemirim, no Esprito Santo.

    Como j dito, a pesquisa considerou que as crnicas publicadas em livro

    formavam um corpus de anlise suficiente e bastante volumoso. Por isso, escolheu-se, para

    cada tema a ser abordado, fazer referncia s crnicas mencionadas e cit-las

    convenientemente, uma vez que uma seleo fixa de textos limitaria a anlise. Quando

    resgatada em crnica, a memria da infncia parece menos tensa e mesmo menos

    comprometedora do que na escrita autobiogrfica; de outro lado, a crnica assume, em sua

  • 20forma, o carter fragmentrio e instantneo da reminiscncia. Em funo da brevidade que

    caracteriza o gnero, as crnicas freqentemente focalizam pequenos detalhes e eventos que

    nos permitem recompor o enredo desta infncia como num mosaico. No caso de Bandeira, as

    peas desse mosaico encontram-se em parte nas crnicas, em parte na sua poesia, alm de seu

    livro de memrias, que aqui tentamos reconstituir.

  • 21

    Captulo I: Infncia PrximaEm suas crnicas, freqentemente encontramos Bandeira rodeado de crianas.

    Filhos de amigos, como Eduarda, filha do escultor Edgard Duvivier, e o pequeno Alexandre15,

    filho de Tiago de Melo e Pomona Poltis, ou simples crianas quase annimas, que ele

    encontra ou com quem convive por acaso, como o grupo de meninos que enchia de alegria e

    balbrdia o seu cotidiano na rua do Curvelo, em Santa Teresa. A cada uma delas, o poeta, que

    no teve filhos, dedica a mesma ateno e carinho que transparecem em vrios de seus

    poemas.

    Na coletnea Flauta de Papel, a crnica que se segue a Antiga trinca do

    Curvelo, a ltima escrita por Bandeira em homenagem queles meninos, intitula-se Joo.

    Nela, o cronista posa para um poeta que virou escultor e que , possivelmente, Celso

    Antnio de Meneses, que esculpiu a cabea de Bandeira para ser erigida em uma praa do

    Recife, e cujo trabalho ainda descrito em Depoimento do Modelo, tambm de Flauta de

    Papel. Em ambas crnicas, o poeta queixa-se do desgastante papel de modelo vivo, durante os

    cinco meses em que precisou posar, tendo como nica forma de distrao que, enquanto o

    meu amigo vai modelando os meus traos cansados, conversamos sobre uma coisa ou outra

    poesia, pintura, bichos, mulheres, crianas.

    Ora, estes so os temas das prprias crnicas de Bandeira, que, segundo ele

    mesmo, escrevia-as em tom de conversa com os amigos. E para alguns desses temas que a

    conversa com o escultor e com um amigo de visita, e por conseguinte a prpria crnica, acaba

    escorregando: bichos, com a histria de um gato de Santa Teresa; mulheres, sobre uma das

    amantes de Joo; e ainda crianas, com a chegada, logo no primeiro pargrafo, de Ratinho:

    15 Apesar do menino chamar-se Alexandre Manuel, Bandeira trata-o de Manuelzinho, o que trai tanto a suaternura, atravs do diminutivo, quanto a sua identificao com a criana. V. Manuelzinho, em Flauta de Papel Poesia e Prosa, vol. II, pp.419-420.

  • 22

    Uma vez apareceu Ratinho. Ratinho uma menininha de onze anos, filha deum empregado da Light que tem sete filhos e ganha 350 cruzeiros por ms.Perguntei a Ratinho se achava a cabea do escultor parecida com o modelo.Achou mas sem mostrar grande interesse pela arte. Estava evidentementefascinada pelo meu suspensrio de vidro (sub-repticiamente comeou logo aarranh-lo com a unha). Ratinho ganha 20 cruzeiros mensais para pajear umpequenino-burgus laganho, e entrega todo o dinheiro ao pai. Quando soubedisso, propus-lhe jogarmos cara-ou-coroa: perdi para ela seis cruzeiros. Pedi-lhe um beijo de indenizao: no v que me deu!

    No h como saber o verdadeiro nome da menina, e muito menos de onde

    provm o seu apelido, se no foi inventado pelo prprio Bandeira. Em Ratinho,

    encontramos um elemento de degradao, de associao a um animal pouco nobre,

    contrabalanado pela afetuosidade ligada ao uso do diminutivo, especialmente na poesia

    bandeiriana16, e que se prolonga no substantivo menininha. Tampouco o leitor sabe por que

    a menina se encontra na casa do escultor, onde modelada a cabea, se vizinha sua casa

    ou de seu patro; em compensao, toda a situao social da famlia comentada sem

    prembulos.

    O pargrafo escrito em frases curtas e simples, como se transcrevessem as

    falas do poeta e de Ratinho, com exceo do advrbio sub-repticiamente da frase entre

    parnteses, que exerce a funo de frase narrativa em meio a um dilogo. Tambm no tema da

    conversa Bandeira compactua com a criana: depois da dbil tentativa de faz-la interessar-se

    pela escultura, a ateno dele volta-se para o suspensrio de nilon, material sinttico que

    ainda era novidade no incio dos anos 50, e que a menina provavelmente no conhecia de

    perto. Ele a deixa aproximar-se do caro objeto de fascnio e diverte-se com a sua curiosidade,

    e continua a divertir-se com a menina ao disfarar um pequeno gesto de caridade em uma

    brincadeira: como veremos, no relacionamento de Bandeira com as crianas, percebe-se

    sempre uma certa confuso entre trabalho e jogo infantil, como uma forma de mascarar a luta

    precoce pela sobrevivncia.

    Ratinho deixa de aparecer, seja nesta crnica, seja em outras, o que j se previa

    de incio, na frase com um vago tom de conto de fadas: Uma vez.... Antes disso, porm, o

    poeta ganha um beijo seu, como indenizao pelo dinheiro perdido nas moedas: assim que

    16 Notou Mrio de Andrade como em minha poesia a ternura se trai quase sempre pelo diminutivo. V. Minhame, em Flauta de Papel Poesia e Prosa, vol. II, p.337.

  • 23essa criana, sem nenhuma descrio mais cuidadosa que a inclua no rol dos personagens

    bandeirianos, despede-se da crnica, como uma figura hbrida de criana, bichinho e mulher,

    para dar lugar conversa dos homens. Mas no deixa de ser mais uma entre as vrias crianas

    que, em crnicas e poemas, prendem a ateno do poeta.

    Algumas aparecem em grupos, como a trinca do Curvelo, mas outras so

    assunto de crnicas inteiras, como Lenine e Eduarda Duvivier. Naturalmente, h uma relao

    entre o interesse do cronista por elas e a forma com que recorda a prpria infncia. As

    crnicas sobre crianas antecedem em alguns anos as crnicas memorialsticas, adiantando

    temas e imagens, alm de se inclurem entre os textos mais lricos encontrados nas crnicas

    em livro de Manuel Bandeira. Observar crianas , enfim, uma forma de recordar a prpria

    infncia, como possvel depreender de algumas de suas melhores crnicas.

    1. Quadros da Infncia

    Entre as atividades que Manuel Bandeira exerceu atravs de suas crnicas de

    jornal, uma que parece incluir-se entre as suas favoritas a crtica de arte. Nas suas trs

    coletneas em livro, destacam-se textos sobre pintura e escultura, teatro e cinema, msica e

    dana, alm de, naturalmente, literatura. No volume Andorinha Andorinha, organizado por

    Carlos Drummond de Andrade, cada uma destas manifestaes chega a merecer uma seo

    prpria, em que se concentram as apreciaes sobre exposies, concertos, apresentaes e

    novos livros. Mas as suas duas outras coletneas, Crnicas da Provncia do Brasil e Flauta de

    Papel, tambm contm numerosos textos significativos a esse respeito.

    Sua importncia no se limita ao testemunho de uma percepo

    contempornea, do registro de uma obra no seu surgimento, mas constitui tambm o

    julgamento crtico de um profundo conhecedor e apreciador de arte. Em Crnicas da

    Provncia do Brasil, por exemplo, encontram-se vrias crnicas sobre os livros de Drummond

    e Mrio de Andrade publicados no incio da dcada de trinta, e tanto neste perodo quanto nos

    seguintes Bandeira manteve uma admirvel disposio em utilizar o seu espao no jornal para

    esclarecer a arte moderna a leigos. Alm disso, no se deve esquecer que nestes textos pesa a

    proximidade do contato entre o cronista e a maioria dos pintores, escritores e msicos da

    poca, cujo aparecimento acompanhou de perto e com os quais travou longas relaes de

    amizade.

  • 24

    Tempo houve em que, parte por necessidade, parte por presuno, aindaescrevendo sobre msica e sobre artes plsticas. Na Idia Ilustrada, colaboreicom resenhas crticas de concertos, e certa revista musical (...) em certa pocaera redigida por mim de cabo a rabo, com o meu nome ou com pseudnimos.NA Manh, convidado por Cassiano Ricardo, mantive uma seo diria sobreartes plsticas. Fiz parte da tropa de choque que defendeu, apregoou e procurouexplicar a arte nova de msicos, pintores, escultores e arquitetos modernos.Pouco a pouco, porm, fui perdendo no s a presuno como tambm oentusiasmo. que os artistas s nos reconhecem, a ns poetas, autoridade parafalar sobre eles quando os lisonjeamos. Caso contrrio, no passamos depoetas.17

    Apesar da erudio e do gosto, que afinal so os requisitos da boa crtica, ao

    que tudo indica Bandeira sofreu ataques por no ser um crtico especializado, principalmente

    no campo das artes plsticas: No me esquecerei nunca de certo sorriso de superioridade

    com que um pintor, enciumado com os elogios dados a outro pintor por um poeta de fina

    intuio para as artes plsticas, disse desenfadadamente: Crtica de poeta....18 Contudo,

    apesar dos textos de Bandeira serem de fato interessantssimos, principalmente pela dimenso

    histrica que adquirem agora, no se deve negar a dimenso pessoal sempre presente nestas

    crnicas, o que alis constitui uma de suas estratgias de aproximao das artes plsticas com

    o pblico.

    Ora, tanto a empatia pessoal de Bandeira com determinados artistas e obras,

    quanto o seu espao de divulgao da arte moderna e o seu julgamento crtico, mais acurado

    mesmo diante das obras mais recentes e inovadoras, so justamente os elementos que mantm

    o frescor de textos de um gnero a princpio datado como a crnica. Mais do que retratos de

    artistas, resenhas de exposies ou testemunho da concepo de determinadas obras, a leitura

    destas crnicas ajuda a recuperar um elemento de dilogo entre as artes plsticas e a literatura

    no Brasil, dilogo que foi fundamental durante as dcadas da atividade de cronista de

    Bandeira. Elas tratam de uma poca de desenvolvimento mpar na histria das artes plsticas

    brasileiras, com a viso privilegiada de algum que pde conviver com alguns de seus

    melhores representantes.

    17 Itinerrio de Pasrgada, em Poesia Completa e Prosa, pp.85-86.18 O poeta provavelmente Murilo Mendes, que tambm fazia crtica de arte, ou mesmo o prprio Bandeira. V.Velho Lus Soares, em Andorinha Andorinha, p.70.

  • 25No somente artistas consagrados so privilegiados pelas crnicas de Bandeira

    publicadas em livro. Assim como encontramos, em suas crnicas de crtica literria, um

    nmero de escritores hoje cados no esquecimento, tambm alguns dos artistas plsticos

    presentes nestes textos tornaram-se menos clebres do que outros. Naturalmente, para o

    interesse especfico do presente trabalho, no se analisar o conjunto da crtica de arte de

    Manuel Bandeira, mas aqueles que representam, de alguma forma, sua relao com crianas e,

    em conseqncia, com a infncia. Apesar de haver uma relao entre as artes plsticas, em

    particular a pintura, e a infncia na obra em prosa de Bandeira, esta relao torna-se mais

    ntida em textos sobre dois pintores em especial, que destacaremos mais adiante: Cndido

    Portinari e Ccero Dias.

    Pintura Anglica

    Na organizao do volume Andorinha Andorinha, Carlos Drummond de

    Andrade reuniu sob o mesmo ttulo, Pintura Anglica, crnicas de pocas distintas e

    relativamente distantes Crianas Inglesas, de 1941, e Crianas francesas, escrita

    dezessete anos mais tarde, em 1958. Ambas crnicas tratam de exposies de desenhos

    infantis vindas do exterior: a primeira, organizada pelo British Council de Londres e

    apresentada aqui pelo Museu de Belas-Artes, sob os auspcios do nosso Ministrio da

    Educao e de vrias sociedades de Educao e Cultura; e a segunda, exposta num rs-do-

    cho da Avenida Marechal Cmara, com a qual estava a Escolinha de Arte [uma escola de

    belas-artes destinada s crianas] comemorando o dcimo aniversrio de sua Fundao.

    Bandeira no hesita em coment-las no mesmo tom em que comenta as exposies de arte

    adulta, chegando mesmo a fazer algumas comparaes em tom de ironia: Nunca, em toda

    a minha vida, recebi numa exposio de artes plsticas mais deliciosa, mais completa e mais

    alta revelao de poesia. (Crianas Inglesas). s vezes se misturava ao sorriso algum

    sentimento de admirao diante de certas manifestaes que j traem um artistazinho.

    (Crianas francesas).

    Em Crianas Inglesas, Bandeira comea avisando que se trata de trabalho

    guiado e selecionado pelos professores das crianas. Mas, apesar da tentativa inicial de fazer

    uma anlise mais objetiva, chegando a tomar notas para assinalar o que agradava mais, os

    quadros mais ricos de sugestes estticas, aos poucos o cronista parece ceder ao encanto

    puro de deparar-se com obras que, numa idade refratria a qualquer especulao de influncia

  • 26artstica, nada ficam a dever s escolas de vanguarda, como o surrealismo de um boneco cuja

    mo tem dezesseis dedos, ou a possvel sugesto impressionista de um quadro intitulado

    Noite Vitoriana: as crianas desenhavam sob orientao dos professores, cujo cuidado

    principal residia em subtrair aos seus alunos s influncias deformadoras, para que com toda a

    espontaneidade se expandisse a faculdade criadora. Isto foi quase sempre conseguido.

    Naturalmente impossvel suprimir o pendor imitativo das crianas. Assim, Wendy Coram,

    que pintou aquela Noite Vitoriana, no ter visto quadros de Matisse? Ou ser Matisse que

    se ter deixado impressionar por alguma Wendy Coram do seu tempo? (Crianas

    Inglesas).

    As duas crnicas, escritas no incio da dcada de quarenta, quando entrava em

    voga o abstracionismo, e no final da dcada de cinqenta, quando surgia a arte concreta,

    contm ironias sem reserva para a pintura de vanguarda: Um modernista, sem se lembrar de

    que hoje sou um medalho, um acadmico19, tanto que j comecei a engordar, como convm,

    aproximou-se de mim e disse, ferino: Que lio para os passadistas!. Eu sorri, com

    duplicidade: para fora o sorriso concordava; mas para dentro acrescentava: Que lio para os

    modernistas!. Notei que nenhuma daquelas crianas deu bola ao concretismo.

    Positivamente, a infncia figurativista. Abstracionista uma vez por outra, mas nunca fugindo

    inteiramente palpvel e gostosa realidade. So comentrios muito semelhantes a vrios

    outros encontrados em sua crtica de arte, como em Cores da Misria, sobre Portinari:

    Toda essa misria esplende, porm, em tonalidades ricas, em jogos de volumes capazes de

    fazer inveja aos mais ousados concretistas20.

    Nas crnicas de Pintura Anglica assinalam-se vrios fatos importantes para

    as artes plsticas brasileiras das dcadas de 40 e 60. Em primeiro lugar, a presena de grandes

    exposies vindas do exterior com apoio e organizao de departamentos governamentais de

    cultura, todos fundados recentemente e dirigidos por profissionais da arte ligados ao

    Modernismo, como Lcio Costa, o que contribuiria, em conjunto com a profissionalizao e a

    ampliao do ensino da arte, para a sua divulgao junto ao grande pblico e sua expanso

    para fora do eixo Rio So Paulo. Tambm faz parte desse processo a formao de uma 19 1941, ano de publicao de Crianas Inglesas, tambm o ano de ingresso de Manuel Bandeira naAcademia Brasileira de Letras.20 Tambm dos anos 50 lemos uma crnica sobre uma exposio de Alfredo Volpi: Decretaram mesmo outrosgolpistas ou volpistas que ele era o primeiro pintor brasileiro e a sua pintura a primeira manifestao de umaarte autenticamente brasileira. Ora, isso fazer do excelente Volpi gato morto para bater na cara de Portinari, Die outros pintamonos estrangeiros. Na mesma crnica, Bandeira explica que a arte concreta o deixavaintelectualmente interessado, mas frio. V. Volpi, em Flauta de Papel Poesia e Prosa, vol. II, p.554.

  • 27crtica de arte, atravs de publicaes especializadas, como a revista Forma (1930), na qual

    Manuel Bandeira publicou um artigo sobre Ccero Dias, e das colunas de arte nos jornais de

    grande circulao, onde Bandeira exerceu um dos papis centrais, divulgando e esclarecendo

    o pblico a respeito das vanguardas e dos sales e exposies21. Antes de todo o contexto

    histrico, porm, nessas crnicas encontramos o que Bandeira procura na obra de um artista

    plstico: a capacidade de reelaborar o mundo, que nas crianas aparece de forma

    espontnea22.

    Nas duas crnicas, o movimento do narrador e crtico de arte muito

    semelhante mudana de atitude que se percebe nas crnicas sobre arte de Bandeira em geral:

    se durante a dcada de vinte e no incio dos anos trinta a disposio do cronista didtica e

    tem como objetivo ampliar a recepo da arte moderna entre o pblico leitor de jornais, com o

    passar dos anos ele deixa de defender determinadas escolas artsticas e abandona suas

    denominaes, a no ser para mencion-las como rtulos ou de forma irnica, para concentrar

    suas observaes apenas em artistas e obras que o agradassem em particular. Assim, se em

    Crnicas da Provncia do Brasil, seu primeiro livro publicado em prosa, encontram-se textos

    pontuais sobre escritores e artistas plsticos que se destacaram depois da Semana de Arte

    Moderna, em Flauta de Papel e Andorinha Andorinha j possvel destacar sries de crnicas

    sobre alguns artistas preferidos, cujo trabalho esses textos acompanham ao longo dos anos.

    Alguns deles so de tal maneira constantes nas crnicas de Bandeira que

    chegam a formar sries completas de textos que se destacam em suas coletneas em livro,

    como a que Drummond intitulou O numeroso Portinari, em Andorinha Andorinha. A srie

    de oito crnicas comea com Um rapaz de 23 anos, de 1928, quando Portinari ganhou uma

    viagem de dois anos como prmio do Salo da Escola Nacional de Belas-Artes, e se encerra

    com Cmara Ardente, de 1962, ano de seu falecimento, com apenas 57 anos. Como o pintor

    era filho de imigrantes italianos, nascido em uma pequena cidade do Noroeste paulista, com o

    extico nome de um engenheiro polons, Portinari sempre referido como o menino de

    Brodvsqui, mesmo depois de muitos anos de carreira, assim como Ccero Dias sempre o

    menino de engenho da pintura, como veremos a seguir.

    21 Cf. Walter Zanini. Histria Geral da Arte no Brasil, volume II: Arte Contempornea, pp.572-578.22 No poema Na rua do Sabo, de O Ritmo Dissoluto, a mo da criana concentra a possibilidade de criaoartstica: O que custou arranjar aquele balozinho de papel! / Quem fez foi o filho da lavadeira. / Um quetrabalha na composio do jornal e tosse muito. / Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, comps osgomos oblongos....

  • 28Noite bonita foi a exposio de Portinari na Galeria Bonino. A grande salaestava cunha, havia muita alegria, quanta bonita mocidade se acotovelava ali!Fiquei eufrico. De repente, Mrio Barata me abraa e evoca o Salo de 31:toda a minha alegria murchou. que naquele zunzum de vozes comecei asentir a ausncia de muitas vozes de antigamente (...). Em vez de viver ominuto presente, passei a tentar reviver o extinto passado.

    A crnica Exposio em Bonino, de 1960, integra a srie sobre Portinari e

    comenta uma de suas exposies da fase madura; mas, a partir de certo momento, Bandeira

    passa a procurar, entre as pinturas ali presentes, os retratos dos amigos mortos, de autoria do

    prprio Portinari. Na voragem do ubi sunt?, misturam-se na memria as imagens dos

    amigos e de seus retratos, as lembranas dos dias tempestuosos do Salo de 31 e dos

    ocorridos de ento; misturam-se, enfim, a trajetria da pintura de Portinari e a prpria histria

    da pintura brasileira, ambas inseridas na histria pessoal de Bandeira, por envolverem o seu

    crculo de amigos, incluindo o pintor.

    O Salo de Arte Moderna realizado em 1931, no Rio de Janeiro, foi um marco

    na histria das artes plsticas no Brasil. Sem o escndalo que cercou a Semana de Arte

    Moderna, mas despertando a ateno pela afluncia de artistas modernos e o confronto destes

    com os acadmicos, a XXXVIII Exposio Geral de Belas-Artes contribuiu para trazer mais

    fora de persuaso s novas tendncias. Reestruturada por Lcio Costa, e organizada por uma

    comisso composta por ele mesmo, Anita Malfatti, Celso Antnio, Portinari e Manuel

    Bandeira, a capital federal dava finalmente importante passo ao encontro da cultura plstica

    em seu curso criador23. Destinado a permanecer como um evento nico, o Salo de 31, como

    ficou conhecido, ou salo revolucionrio, como a imprensa o chamou, exerceu um papel

    fundamental ao formar uma viso abrangente do que se produzia de vanguarda nas artes

    plsticas do Brasil daquele incio da dcada de trinta, alm de abrir as portas para a

    receptividade do pblico e da imprensa.

    exceo de Oswaldo Goeldi, todos os artistas que haviam se destacado

    durante a dcada de vinte, como Lcio Costa, Anita Malfatti, Brecheret, Di Cavalcanti, Lasar

    Segall, Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Ccero Dias e Celso Antnio compareceram com a

    maior parte de suas obras, alm de novos talentos como Cndido Portinari, que acabava de

    retornar da Europa. Portinari viveu em Paris durante dois anos, graas ao prmio do Salo de

    1928, e, quando retornou, esperava-se que o bolsista, como era costume entre os ganhadores

    23 Walter Zanini. Op. cit., pp.578-579.

  • 29do concurso, tivesse feito inmeros cursos com os professores clebres que lecionavam arte

    em Paris na poca, e que trouxesse um punhado de obras prontas que, por assim dizer,

    justificassem o seu prmio. Mas Portinari passara a maior parte do tempo visitando os museus

    europeus e retornou ao Brasil decidido a pintar sua cidade natal24. Para o espanto dos crticos

    e dos professores da Escola que o premiara, no voltou com um nico quadro pronto. Na

    opinio de muitos, tal atitude poderia desabonar o seu trabalho, mas no para Bandeira, que

    chega a destacar o fato para ressaltar o que considera autntico em sua obra. Para o Salo de

    31, Portinari realizou uma srie de retratos, a maioria de amigos e intelectuais que

    participavam do Salo, obras que inclusive deixavam transparecer as influncias de pintores

    que conhecera na Europa Picasso e Modigliani, por exemplo. Bandeira, que considerava

    Portinari um excelente retratista, aprovou os quadros apresentados no Salo, incluindo o seu

    prprio retrato.

    Apesar do prazer que revela nas lembranas desta poca, Bandeira procura

    reintegrar-se ao presente, prosseguindo a crnica sobre a exposio de 1960: Portinari

    continua o grande pintor o melhor que j tivemos, digam o que disserem os novos talentos e

    seus entusisticos pregoeiros. Dou graas ao cu de possuir ainda a mesma sensibilidade que

    me fazia tremer de emoo diante dos meninos de Brodvsqui com os seus papagaios de

    papel e as suas arapucas. Embora insista no esforo de voltar ao momento presente, a

    lembrana do Salo contribui na verdade para a reflexo do cronista sobre a obra de Portinari,

    mesclando os planos temporais para melhor avaliar a sua trajetria artstica.

    Poucos artistas detm o privilgio de incluir, em sua fortuna crtica, uma srie

    de textos de Manuel Bandeira que acompanhe assim de perto a sua produo ao longo dos

    anos. Em comum com as demais crnicas sobre arte, encontramos o trabalho de aproximao

    s artes plsticas do grande pblico, atravs do uso de um tom muito pessoal que mescla as

    impresses subjetivas do cronista diante de cada obra com comentrios a respeito da vida e da

    personalidade do artista. Nas crnicas de Portinari, h sempre uma referncia sua origem

    italiana e sua infncia em Brodvsqui, mas sempre procurando a justa medida da influncia

    dessas vivncia na obra do pintor, sem deixar de anotar os progressos trazidos pela

    maturidade: a fora de Portinari veio cada vez mais acrescendo com as experincias murais,

    com a confiana em si prprio dilatada pelo sucesso, primeiro nacional, depois continental, e

    24 Sobre as conseqncias do perodo em Paris sobre a obra de Portinari, v. Annateresa Fabris. CndidoPortinari. So Paulo, Edusp, 1996.

  • 30agora, nestes painis [da sede da rdio Tupi] se expande com uma liberdade para alm da qual

    no se pode distinguir onde ir ter. (A fora do povo).

    Entretanto, apesar da relativa ponderao da apresentao esttica de Bandeira,

    o que interessa ao cronista e ao presente trabalho so os detalhes que remetem infncia

    no interior: Portinari sempre o homem de Brodvsqui, filho do menino que passava os dias

    armando arapucas nos capes e destronco a coxa jogando futebol no Largo da Matriz, o

    amigo de Balaim, a figura mais notvel de Brodvsqui, homem da rua. (grifo meu). Na

    crnica Florentino quase caipira ttulo que sintetiza as origens do pintor , Bandeira

    reafirma, quase de passagem, a assero freudiana de que o menino o pai do homem, e

    alm: somente torna-se pai do homem de um grande artista o menino que viveu em

    Pasrgada, com a liberdade absoluta das crianas e seu universo de diverses sem

    conseqncias: E o homem de Brodvsqui no se esqueceu de Brodvsqui. H nesta galeria

    admirvel do Palace Hotel um grande quadro a leo e vrias aquarelas inspirados em aspectos

    e cenas da pequena cidade paulista. So as melhores cousas que j comps Portinari, dir-se-ia

    que o pintor esperava a maturao de todos os seus recursos para encetar a transposio

    grfica de suas reminiscncias de infncia.

    Tais observaes no significam que Bandeira seja insensvel aos demais temas

    da pintura de Portinari ou mesmo de outro artista. Em diferentes crnicas da mesma srie,

    como Fora do Povo ou Cores da Misria, a comear pelos seus ttulos, observa-se a

    sensibilidade do poeta para temas sociais e populares, pelos quais a obra de Portinari ficaria

    clebre. Mas, em Bandeira, a sensibilidade artstica despertada pela identificao com

    vivncias ou temas que tambm sejam importantes para quem v a obra e, por isso, mesmo

    em Cores da Misria no falta uma ligeira observao sobre meninos brincando (h entre

    eles um de bodoque, que uma de suas obras-primas). Naturalmente, s se encontra mrito

    artstico na infncia recuperada, em poesia ou pintura artes que Bandeira considera irms

    gmeas , atravs do prisma da maturidade artstica, como demonstra a seguinte verso da

    trajetria do pintor:

    Portinari, estudante de pintura na Escola Nacional de Belas-Artes, viviasonhando com a Europa. Um dia ganhou, no Salo, o prmio de viagem aoestrangeiro e o sonho realizou-se. Mas, na Europa, um caso extraordinrio sepassou: Portinari descobriu Brodvsqui, o seu torro natal, no fundo de SoPaulo. Na verdade, no fundo de sua subconscincia, e a princpio sob a formado mais pobrinho e mais humilde de seus conterrneos. Escreveu ento o pintoruma pgina, que pode ser considerada como o prefcio de toda a sua obra de

  • 31artista plstico a histria de Balaim, um beira-crrego de Brodvsqui (...).Descoberta Brodvsqui, estava definitivamente traado o itinerrio artstico dePortinari: quando regressasse ao Brasil, iria pintar Brodvsqui. A paisagemonde a gente brincou pela primeira vez e a gente com quem a gente conversoupela primeira vez no sai mais da gente e eu, quando voltar, vou ver se consigofazer a minha terra. Pondo de para a sua prodigiosa tcnica, a sua estupendagaleria de retratos, a melhor poro da obra de Portinari isto: Brodvsqui esua infncia em Brodvsqui, o menino e o povoado, o menino no seu povoado.Por esse fundo vivencial que Portinari se afirma profundamente brasileiro eprofundamente ele mesmo, mesmo quando influenciado por Picasso ou pelossurralistes.25 (Poemas de pintor)

    O trecho acima faz parte de uma crnica que anuncia a publicao de um livro

    de poemas de Cndido Portinari, intitulado O menino e o povoado. Tanto nas consideraes

    sobre a pintura quanto sobre a poesia de Portinari, que se mesclam e se confundem, o cronista

    aborda questes fundamentais sua prpria obra: a ligao com a terra natal que emerge de

    forma subconsciente em meio vida adulta, a identificao com a gente simples daquela terra,

    fazendo a figura portinariana de Balaim evocar o personagem Totnio Rodrigues, de tantos

    poemas fundamentais de Bandeira, e finalmente a possibilidade de mesclar criativamente a

    experincia pessoal da infncia com as mais altas influncias artsticas do sculo: a viagem e

    o contato com as vanguardas europias no so momentos dispensveis da experincia, mas,

    pelo contrrio, provam-se essenciais para o processo em que a memria plasmada em

    matria artstica.

    Ao mesmo tempo, o comentrio de Bandeira a respeito da pintura e da poesia

    de Portinari refora a aproximao entre as duas artes mencionada h pouco, uma

    aproximao que tem uma longa histria, marcada principalmente pelo livro Lacoonte ou

    sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, de G. E. Lessing, e retomada por Joseph Frank.

    Baseado na distino entre as artes do espao e as artes do tempo preestabelecida por Lessing,

    Frank analisa o processo pelo qual a literatura moderna, a partir do romance do sculo XIX e

    da poesia de Ezra Pound, tende espacializao: Atravs dessa justaposio entre passado e

    presente (...) a histria se torna anti-histrica: j no mais vista como uma progresso

    objetiva e causal no tempo, com diferenas distintamente marcadas entre cada perodo, mas

    sentida como um continuum em que as distines entre passado e presente esto obliteradas.

    25 Note-se tambm o deleite esttico, de pura iluminao verbal, de Bandeira com o extico nome polons dacidadezinha, que lembra o seu fascnio pelo nome de Pasrgada, e que ele repete nada menos que 22 vezes aolongo de oito crnicas que ocupam nove pginas.

  • 32Assim como a dimenso da profundidade foi se esvanecendo das artes plsticas, ela tambm

    foi se esvaecendo da histria medida que formava o contedo dessas obras 26.

    Esse processo de espacializao, que o autor nota nos romances de Marcel

    Proust e James Joyce, repete-se em menores propores na crnica de Bandeira sobre a

    exposio de Portinari, atravs do procedimento marcadamente proustiano de notar, no meio

    da agitao do salo repleto, as conseqncias da passagem do tempo27: entre a linda

    mocidade que ocupa a galeria presente surgem, atravs dos retratos de Portinari, os amigos j

    mortos ao lado dos quais Bandeira enfrentara as rivalidades do passado. Da mesma forma, em

    Crianas Inglesas, ao reproduzir ironicamente o comentrio do amigo modernista sobre a

    proximidade das pinturas infantis com a vanguarda, Bandeira marca a mesma passagem do

    tempo que j o transformara em um acadmico, um medalho, e em obsoleta toda a verve

    de seu companheiro contra os passadistas, ao contrrio do frescor mantido pelos desenhos

    das crianas. Mesmo quando alterna, nas descries dos desenhos, os termos utilizados pelos

    artistas de vanguarda, duas dcadas antes, o cronista repete palavras desgastadas pelo uso, e

    que j no dizem muita coisa a respeito das obras propriamente ditas, tendo se transformado

    em meros rtulos.

    Dessa maneira, a ironia do cronista no se volta exatamente em direo

    vanguarda, interpretao muito comum devido participao passiva de Manuel Bandeira na

    Semana de Arte Moderna, mas sim passagem do tempo, que envelhece as escolas e os

    manifestos, mas no as obras que contenham real valor artstico, e que se contrape ao

    encanto atemporal da arte provinda da infncia. Um termo como pureza, por exemplo,

    aparece com alguma freqncia na crtica bandeiriana de artes plsticas, usado para designar

    determinadas tcnicas e snteses visuais, tendo uma importncia particular em suas crnicas

    sobre arquitetura; as esculturas de barro de Vitalino, por exemplo, so descritas pela sua

    plstica to ingenuamente pura, expresso que as relaciona duplamente puerilidade dos

    traos infantis.

    H, evidentemente, um carter plstico muito acentuado nas memrias de

    infncia de Bandeira, na forma em que elas aparecem nas crnicas, razo pela qual vimos

    analisando, em primeiro lugar, as crnicas sobre artes plsticas em que as crianas marcam

    26 Joseph Frank, A forma espacial na literatura moderna. Revista USP, So Paulo, n.58, pp.225-241, junho-agosto de 2003.27 Nas referncias obra de Marcel Proust na prosa bandeiriana, conveniente recordar que Manuel Bandeira fezparte da equipe da Editora Globo responsvel pela primeira traduo brasileira de Em busca do Tempo Perdido,do qual traduziu o quinto volume, A Prisioneira.

  • 33presena. Em Proust, por exemplo, as reprodues de obras de arte localizadas em museus

    distantes servem para aproxim-las do narrador de Em busca do tempo perdido, diminuindo a

    distncia entre elas no espao; nas crnicas de Bandeira, como veremos, fotos antigas e

    pinturas de lugares vistos na infncia trabalham para que o cronista recupere-os como

    conheceu da primeira vez, aproximando-os dele no tempo, de forma que a memria opera

    uma restaurao imaginria, que contribui para que o indivduo negue as transformaes ou

    deformaes, como prefere Bandeira do presente. Em algumas crnicas, essa atitude pode

    partir de visitas aos espaos da infncia, mas a partir da observao de suas imagens que a

    atitude do cronista diante do presente se nota de forma mais marcante.

    Eu vi o mundo...

    Em Notcias de Ccero, de Flauta de Papel, o que primeiramente chama a

    ateno do leitor, como em diversas outras crnicas de Bandeira, a aparente contradio

    entre o tom jornalstico do texto e a crnica em si, que se preocupa antes em fazer um

    histrico da trajetria artstica do pintor Ccero Dias que, naquela poca meados dos anos 40

    , j morava em Paris. O primeiro passo do cronista uma quebras de expectativas: No se

    trata do Ccero de Arpino, do Ccero das Cantilinrias e das Filpicas, mas o Ccero de

    Cajazeiras, do Estado de Pernambuco. Ccero Dias, Ccero dos Santos Dias, pintor e poeta. O

    Ccero que pertence Histria, o orador da Antigidade Clssica, colocado em segundo

    plano, atravs da explorao do nome, para dar lugar a um Ccero particular do universo de

    Bandeira, do artista conterrneo, ex-vizinho e amigo do poeta, mais prximo no tempo e no

    espao28.

    A quase duas dcadas de distncia, Bandeira recorda a primeira exposio de

    Ccero Dias no Rio de Janeiro, em 1928, no edifcio da Escola Politcnica em que funcionava

    o Instituto de Psicanlise. Em carta a Mrio de Andrade, o poeta registrou o assombro

    causado pela primeira impresso das aquarelas expostas naquela ocasio, que ele descreveria

    como uma impresso de atropelamento: A novidade aqui um rapaz de Pernambuco que

    vive no Rio Ccero Dias. Uma arte profundamente sarcstica e deformadora, por exemplo,

    uma entrada da Barra com o fio do carrinho eltrico do Po de Acar preso na outra

    28 Nas crnicas de Bandeira, esse procedimento comum a todos os textos sobre amigos cujos nomes remetam apersonagens da Antigidade. V. Orestes, sobre o compositor Orestes Barbosa, e Tasso e Gomide, sobre opoeta Tasso da Silveira, ambos em Flauta de Papel.

  • 34extremidade ao galo da torre da igrejinha da Glria, e a igrejinha toda torta. Acho muita

    imaginao e verve nele. Entre os entendem e pintam est cotado. No meio modernista, claro.

    Assim o [Oswaldo] Goeldi, o Di [Cavalcanti] e o [Ismael] Nery gostaram muito29. Apesar de

    escusar-se do mrito de ter descoberto Ccero, que cabia na verdade a Murilo Mendes,

    Bandeira contribuiu para a divulgao do seu trabalho, inclusive acompanhando de perto a

    composio do mural Eu vi o mundo, ele comeava no Recife, exposto no Salo de 31.

    Em ambas ocasies na sua primeira exposio carioca e na exposio de seu

    mural no Salo Ccero Dias enfrentou vrios tipos de crtica: desde a acusao de que seria

    apenas louco, em funo do seu tratamento dos temas e de sua tcnica absurda em que

    entrava at tinta de escrever, apesar da propriedade em expor temas ligados ao universo

    onrico em um instituto de psicanlise; passando pelo rtulo de pintor imoral, por causa do

    forte erotismo das figuras femininas em Eu vi o mundo, ele comeava no Recife; e por fim

    a observao que competia ao seu estilo em particular e ao surrealismo em geral, de que

    qualquer criana seria capaz de desenhos e aquarelas iguais s de Ccero, e da qual Mrio

    de Andrade j o defendera publicamente30. Em sua crnica, Bandeira ainda explica aos leigos

    a esttica surrealista, justamente pela analogia com os desenhos de crianas: se os quadros de

    Ccero se assemelham aos desenhos infantis pela libertao das tcnicas tradicionais e pela

    atitude ingnua diante dos aspectos humorsticos e mal-assombrados da vida, que

    caracteriza a sua sensibilidade, ele ainda se diferencia pelo dom da expresso, que

    certamente no se desenvolve em tenra idade.

    Apesar disso, para Bandeira como j pudemos observar em outras crnicas ,

    nunca deixa de haver uma relao bastante ntima entre arte e universo infantil. A ingenuidade

    da criana parece expressar-se em duas atitudes: a primeira o humor, que na infncia

    identifica-se com o esprito ldico, e que se manifesta na capacidade de reorganizar o mundo

    ou de criar um mundo prprio, interior, que no artista adulto enriquecida pelo dom 29 Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira, p.393.30 A aquarela de Ccero Dias ingnua como expresso, bem sei. At a compararam com os desenhos dascrianas, comparao que acho falsa. No tem nada que afaste mais a sensao de infantilidade que a parecenacom criana. Aqui mesmo no hotel esto uns anezinhos incompreensveis, grande sucesso do dia no quarteirodos cinemas... E no h nada menos criana do que eles. Criana vida, da mesma forma que manga ou ticotico.Ano fenmeno no sentido popular da palavra. esse contraste insubstituvel na comparao da genteperversa entre os desenhos de criana e os desenhos de Ccero Dias. Aqueles trazem essa eqidade justiceiracom que a vida vulgariza as coisas. J falei uma feita e repito: Se uma vez por outra a criana desenha uma obra-prima caso raro. No geral os desenhos infantis sob o ponto de vista da arte so perfeitamente idiotas e nosinteressam por valores que nada tm de plsticos ou de estticos. Ora, Ccero Dias justamente o contrrio disso.Possui uma personalidade surpreendente. Possui uma fatalidade de expresso formidvel, cujos valores

  • 35complementar de exprimir plasticamente este mundo, de modo a suscitar nos outros a

    emoo artstica; e a segunda o que Bandeira gosta de chamar de assombro, a disposio

    em encontrar mistrio e de surpreender-se com pequenos detalhes do cotidiano que se

    encontram a todo momento, nos grandes centros e nas cidades do interior:

    Possu uma pintura de Ccero que era um quadro bem pernambucano: umacasa de engenho encostada igrejinha modesta. Foi uma casa que visitei noCabo em criana e que nunca mais se apagou da minha memria. O vazio tristedaquela igreja velha onde me contaram que havia noite almas penadas, eradentro de mim uma coisa sem voz que reclamava existncia no plano da arte.Ccero adulto viu-a com os olhos e a alma da minha infncia, e realizou umaadmirvel criao. (grifo meu)

    Bandeira refere-se a um lugar chamado Usina do Cabo, um dos retiros de

    veraneio de sua famlia durante a infncia no Recife. Se o quadrinho de Ccero Dias bem

    pernambucano, no por captar a paisagem em si ou como qualquer criana a veria, mas sim

    como o menino Manuel a viu um dia: os olhos e a alma da minha infncia. A emoo

    artstica do quadro que descreve vem da capacidade do pintor de captar a sua imaginao

    infantil, no espanto que relaciona a tristeza e o vazio do interior da igreja com a presena de

    almas penadas, que resulta em uma imagem cristalizada no passado. No lhe importa o

    aspecto atual da casa de engenho e da igreja, nem mesmo o seu aspecto quando Ccero Dias a

    pintou: em inmeras crnicas, ele critica as restauraes em construes de cidades do

    interior como deformaes de seu aspecto autntico, o que de certa forma traduz a sua

    vontade de reencontr-las sempre como as conheceu pela primeira vez Bandeira no procura

    uma reelaborao da paisagem, mas uma traduo da imagem fixada em sua memria.

    No so apenas imagens do interior de Pernambuco, entretanto, que agradam

    Bandeira na obra de Ccero Dias, como indica o trecho j citado da carta de 1928. H tambm

    as imagens do presente da vida no Rio de Janeiro, que se destacam pela mesma combinao

    de mistrio e ternura: Ccero tem tirado do noticirio policial dos jornais algumas obras da

    mais tocante piedade, como fez do caso banal de uma mocinha de Niteri, a qual, abandonada

    pelo namorado, se matou. Ccero ofereceu-se o que sempre oferece aos infelizes e s mulheres

    que ama flores e estrelas. O grupo da famlia da suicida entrada do cemitrio uma das

    imagens mais ingenuamente dolorosas que j vi. Quem pensa em tcnica diante dessas

    psicolgicos principais so a sexualidade, sarcasmo e misticismo. Justamente as cousas que a criana menospossui. O Turista Aprendiz, 29 de novembro de 1928, p.204.

  • 36imensidades puras da piedade?. Sequer seria preciso explorar as relaes entre a descrio do

    pequeno quadro e o clebre Poema tirado de uma notcia de jornal, de Libertinagem (1930):

    a pungente tragdia suburbana e a morte banalizada pelo meio de comunicao em massa,

    redimidos pela sensibilidade artstica, em particular a de vanguarda. O quadro descrito foi

    composto na mesma poca de Libertinagem trata-se da tela Enterro (Cortejo) (nanquim e

    aquarela sobre papel, 47x 30cm, 1930), dedicada a Mrio de Andrade e destinada,

    originalmente, ao clebre Salo de 31, no qual Ccero Dias acabou expondo o escandaloso

    painel Eu vi o mundo... ele comeava no Recife (tcnica mista sobre papel kraft com cola de

    peixe, 2x 15m, 1929).

    Parte da repercusso e do escndalo causados pelo Salo de 31 deveram-se

    obra de Ccero Dias, apesar do pintor j ser conhecido pelas tendncias surrealistas em seu

    trabalho. A princpio idealizada como homenagem ao abolicionista Joaquim Nabuco, a obra

    surpreendeu tanto pelo seu tamanho e suporte incomuns quanto pelo erotismo cru de suas

    figuras femininas, que causaram tamanho impacto a ponto de quase trs metros do trabalho

    serem cortados. O painel acabou esquecido em uma fbrica de Bangu, no Rio de Janeiro,

    durante vinte anos, at ser reencontrado e encaminhado para restauro, com retoques do

    prprio autor. Atualmente, restam apenas doze metros da obra, que pertence a uma coleo

    particular31.

    Pela sua extenso, o painel repleto de detalhes que captam o olhar. Embora

    pela fora do hbito ele seja normalmente lido da esquerda para a direita, os cantos

    fornecem uma pista contrria: o canto inferior direito contm um semicrculo negro com os

    dizeres Entrada -$5,00 acima e ao lado, enquanto a assinatura Rio de Janeiro/ Ccero Dias

    encontra-se no canto inferior esquerdo. Essa lgica confirmada pela progresso de figuras

    ao longo da obra, a comear pela representao dos ciclos de nascimento, com a imagem de

    uma ama-de-leite, e morte. A extenso do painel seccionada em trs partes, onde as folhas

    de papel kraft foram coladas uma outra: a primeira sesso traz direita um grupo de pessoas

    que se despede estendendo lenos brancos, embora a margem direita mostre apenas um ramo

    de flores e a saia branca de uma figura que foi cortada. Seguindo para a esquerda,

    encontramos fileiras de casas o Recife , e uma casa de engenho, com a moenda de onde

    31 Nos ltimos anos, o painel Eu vi o mundo... ele comeava no Recife foi exposto duas vezes ao pblico dacidade de So Paulo: na mostra Da Antropofagia a Braslia. Brasil 1920-1950, realizada em dezembro de2002, e na exposio Ccero Dias dcadas de 20 e 30, em novembro de 2004, ambas no Museu de ArteBrasileira da Fundao Armando lvares Penteado.

  • 37nasce o rio, uma casa-grande e a senzala. Logo acima h um carro de bananas puxado por dois

    bois, aoitados por um homem de bigode e montados por duas crianas, uma branca e outra

    negra. Mais ao fundo, um boi de cara preta dorme sob uma rvore.

    Ainda h morros floridos com crianas dando de comer s galinhas, na seo

    central entre as duas emendas de papel. Mas dominam a cena trs mulheres gigantescas,

    segurando vacas no ar, e um homem vestido de noivo que aparece na horizontal, arrastado por

    uma vaca que usa uma guirlanda de flores brancas. A esta altura, as construes j

    prevalecem, como as duas torres ligadas por um terrao quadriculado, sob cujas colunas v-se

    o Po de Acar, presente na maioria de suas pinturas cariocas. O mar encontra-se ao fundo, e

    sobre ele h um barco em que se deita um casal de amantes e o sol mergulha na gua. A seo

    esquerda do painel tambm traz figuras femininas gigantes, como a mulher que toca

    sanfona, e flores soltas em vasos e cestos que se distribuem pela tela e na imagem de um

    velrio. Animais, figuras com chicotes e morro com casinhas repetem-se por todo o painel. A

    lateral esquerda mostra, assim como a direita, duas fileiras de casas, mas com uma rua

    definida entre elas sem dvida a rua do Curvelo, onde morava Bandeira, bem prximo de

    seu conterrneo.

    Uma abordagem descritiva da obra de Ccero Dias mais conhecida no Brasil

    expe de forma bastante clara as suas afinidades com Manuel Bandeira, o que tambm seria

    possvel constatar em vrias de suas aquarelas das dcadas de 20 e 30. O mundo comeava no

    Recife, onde Bandeira nasceu e Dias passou parte da infncia, e no interior de Pernambuco

    onde Dias nasceu e Bandeira passava os veres com a famlia, mas a sua outra ponta estava

    no Rio de Janeiro, na casinha de Santa Teresa, cujo bonde aparece em Chegada a Muratori

    (aquarela sobre papel, 1927, coleo IEB). Perto da rua do Curvelo, na rua Aprazvel,

    nmero 8, morava Ccero Dias. A casa, preservada at hoje, faz esquina com a rua do

    Aqueduto (...). Nas paredes que a circundam Ccero Dias pendurava as enormes tiras de papel

    para secar, medida que pintava. Foi assim que o artista pernambucano pintou o fantstico

    painel Eu vi o mundo... ele comeava no Recife32. No incio dos anos 30, portanto,

    encontramos dois artistas pernambucanos, morando no Rio de Janeiro em casas prximas e

    convivendo com o mesmo grupo, ligado vanguarda artstica de seu tempo. O esprito

    pernambucano que marca a obra de ambos os leva a resgatar plstica e liricamente a terra

    na