sus e banco mundial

Upload: yuri-camara-barnabe

Post on 15-Jul-2015

203 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

MARIA LUCIA FRIZON RIZZOTTO

O BANCO MUNDIAL E AS POLTICAS DE SADE NO BRASIL NOS ANOS 90: um projeto de desmonte do SUS

CAMPINAS 2000

ii

MARIA LUCIA FRIZON RIZZOTTO

O BANCO MUNDIAL E AS POLTICAS DE SADE NO BRASIL NOS ANOS 90: um projeto de desmonte do SUS

Tese de Doutorado apresentada Ps-Graduao da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas para obteno do ttulo de Doutor em Sade Coletiva

Orientador: Gasto Wagner de Souza Campos

CAMPINAS 2000

iii

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE CINCIAS MDICAS UNICAMP

R528b

Rizzotto, Maria Lucia Frizon O Banco mundial e as polticas de sade no Brasil nos anos 90: um projeto de desmonte do SUS / Maria Lucia Frizon Rizzotto. Campinas, SP : [s.n.], 2000. Orientador : Gasto Wagner de Sousa Campos Tese ( Doutorado) Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas. 1. Sade Pblica. 2. Poltica de Sade - Brasil. 3. Sade - Brasil. 4. Banco Mundial. II. Gasto Wagner de Souza Campos. III. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas. IV. Ttulo.

iv

v

vi

Banca examinadora da tese de Doutorado

Orientador: Prof. Dr. Gasto Wagner de Sousa Campos

Membros:1. Dr. Gasto Wagner de Souza Campos - UNICAMP 2. Dra. Laura Tavares Ribeiro Soares - UFRJ 3. Dra. Denise Elvira Pires de Pires - UFSC 4. Dra. Maria Elizabete Sampaio Prado Xavier - UNICAMP 5. Dr. Everardo Duarte Nunes - UNICAMP

Curso de ps-graduao em Sade Coletiva da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas.

Data: 27/11/2000

DEDICATRIADedico este trabalho aos que

sonharam com um Sistema de Sade gratuito e universal para o Brasil e, aos trabalhadores da sade que na lida diria continuam lutando para constru-lo.vii

viii

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Gasto, que permitiu que eu andasse pelos caminhos que escolhi, possibilitando e estimulando a construo da minha independncia terica e intelectual. Dra. Maria Elizabete S. P. Xavier, pelo desprendimento em ler o trabalho e sugerir questes que o enriqueceram terica e metodologicamente. Aos meus filhos Tatiana, Marcelo e Carla, pela vontade que manifestaram em deixar neste trabalho alguma contribuio pessoal. Estar com vocs neste tempo de estudo enlouquecido tornou este perodo melhor, e eu mais feliz. minha famlia, pelo carinho e incentivo em todos estes anos de estudo, e pelo apoio dado nos momentos de dificuldade. Dona Florisbella, pela leitura e reviso cuidadosa que fez do trabalho. Leda, pela ajuda na traduo dos textos. todos os meus amigos de Cascavel e aos companheiros(as) Beto, Francis, Luiz Fernando e Solange, por tudo que j partilhamos sobre como andar na vida, aprendendo com a histria e tentando constru-la de jeito diferente. Aos colegas do NUPPES - Ncleo de Pesquisa em Polticas de Educao e Sade, pelas oportunidades de interlocuo e discusses, as quais contriburam para enriquecer a minha compreenso sobre o Estado brasileiro e as polticas sociais. Aos colegas do Curso de Enfermagem da UNIOESTE, pela oportunidade que proporcionaram para que eu fizesse o doutorado em condies ideais e cumprisse com os prazos definidos. CAPEs pela contribuio financeira, que possibilitou condies materiais para desenvolver este trabalho de pesquisa, e crescer academicamente.ix

x

A principal tarefa do historiador no julgar, mas compreender ...... De toda forma, no provvel que uma pessoa que tenha vivido este sculo extraordinrio se abstenha de julgar. O difcil compreender.

Eric Hobsbawn

xi

xii

SUMRIO

PG. RESUMO............................................................................................................ INTRODUO..................................................................................................1. Os objetivos e o objeto de investigao.......................................................

xxi 23 25 29 53 53 62 71 80 94 99 106 110 115 115 126 137

2. Pressupostos tericos................................................................................... CAPTULO 1: O Banco Mundial e a ideologia do desenvolvimento: meio sculo de histria................................................................... 1.1. O contexto histrico em que emerge o Banco Mundial....................... 1.2. A trajetria poltica e institucional do Banco Mundial ....................... 1.3. A noo de desenvolvimento econmico: referncia para as aes do Banco Mundial................................................................................ 1.4. A gesto de McNamara: o ponto de partida do Banco Mundial no trato de problemas sociais.................................................................... 1.5. A retomada do discurso do combate pobreza: argumento ideolgico para uma interveno poltica nas reas sociais................. 1.6. O revigoramento do liberalismo e a crtica s polticas sociais........... 1.7. O como o Banco Mundial opera: modalidades de financiamento....... 1.8. As normas operativas do Banco Mundial............................................ CAPTULO 2: O Banco Mundial e a sade.................................................... 2.1. A trajetria da sade no interior do Banco Mundial............................ 2.2. As propostas do Banco Mundial para as reformas do setor de sade nos pases perifricos........................................................................... 2.3. A concretude dos conceitos.................................................................

xiii

CAPTULO 3: O Banco Mundial, o Brasil e a sade: uma agenda de reformas ............................................................................. 3.1. Um pouco de histria........................................................................... 3.2. As propostas do Banco Mundial para o setor de sade no Brasil: a contra-reforma no anunciada............................................................. 3.3. As estratgias de ao na rea da sade: o que era parece no ser mais...................................................................................................... CAPTULO 4: As polticas de sade no Brasil nos anos 90........................... 4.1. O Estado Brasileiro: pressuposto para uma anlise das polticas de sade nesta dcada.............................................................................. 4.2. A reforma institucional do Estado Brasileiro...................................... 4.3. Os desdobramentos da reforma do Estado no campo da sade........... 4.4. Os projetos e programas do Ministrio da Sade: estratgia de contra-reforma .................................................................................... 4.4.1. O projeto Reforsus..................................................................... 4.4.2. Os projetos para o controle de doenas transmissveis............. 4.5. O financiamento da sade nos anos 90................................................ CONSIDERAES FINAIS............................................................................ SUMMARY......................................................................................................... REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................. 214 221 234 237 241 247 251 179 190 199 169 179 152 145 145

xiv

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABrES AIDS AIF AIH AIS ANS ANVISA AVAI BID BIRD CDF CEME CFI CIADI CNPq CNS DATASUS DST EMS EUA FAS FMI FUNASA HMO INAN IPEA ISI MARE

Associao Brasileira de Economia da Sade Sndrome de Imunodeficincia Adquirida Associao Internacional de Fomento Autorizao de Internao Hospitalar Aes Integradas de Sade Agncia Nacional de Sade Suplementar Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria Anos de Vida Ajustados por Incapacidade Banco Interamericano de Desenvolvimento Banco Internacional de Desenvolvimento Moldura Abrangente de Desenvolvimento Central de Medicamentos Corporao Financeira Internacional Centro Internacional de Arranjo de Diferenas relativas de Investimento Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico Conselho Nacional de Sade Departamento de Informtica do SUS Doena Sexualmente Transmissvel Entidade Mantenedora de Sade Estados Unidos da Amrica Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social Fundo Monetrio Internacional Fundao Nacional de Sade Healt Maintenance Organization Instituto Nacional de Alimentao e Nutrio Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada Industrializao para a Substituio de Importaes Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estadoxv

MS NEPP NOB OMGI OMS ONU PAB PACS PIB PNB PNUD POA PSF RH RNIS SAA SAL SAS SIA/SUS SIH/SUS SOE SPS SUDS SUS SVS UATR VIGISUS

Ministrio da Sade Ncleo de Estudos de Polticas Pblicas Norma Operacional Bsica Organismo Multilateral de Garantia de Inverses Organizao Mundial de Sade Organizao das Naes Unidas Piso de Ateno Bsica Programa dos Agentes Comunitrios de Sade Produto Interno Bruto Produto Nacional Bruto Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento Programao Oramentria Anual Programa Sade da Famlia Recursos Humanos Rede Nacional de Informao em Sade Secretaria de Assuntos Administrativos Structural Adjustment Loans Secretaria de Assistncia Sade Sistema de Informao Ambulatorial do SUS Sistema de Informao Hospitalar do SUS Declarao de Despesas Secretaria de Polticas de Sade Sistema Unificado e Descentralizado de Sade Sistema nico de Sade Sistema de Vigilncia Sanitria Unidade de Assistncia Tcnica do Reforsus Sistema Nacional de Vigilncia em Sade

REFORSUS Reforo Reorganizao do SUS

xvi

LISTA DE TABELAS

PG. Tabela 1: Total de emprstimos do BIRD e AIF no perodo 1947-1970........... Tabela 2: Emprstimos do BIRD e AIF para a Amrica Latina no perodo de 1947 1983........................................................................................ Tabela 3: Total de emprstimos do Banco Mundial (BIRD) para o setor de sade brasileiro at 2000 ................................................................... Tabela 4: Recursos do REFORSUS por fonte e cronograma de desembolso.... Tabela 5: Destinao de recursos do REFORSUS por Componente e rea Programtica....................................................................................... Tabela 6: Categorias e itens a serem financiados com recursos do BIRD ao Projeto REFORSUS .......................................................................... Tabela 7: Itens financiados no Projeto Vigilncia e Controle de Doenas (VIGISUS) e valores correspondentes............................................... Tabela 8: tens financiados nos projetos AIDS/DST com recursos do BIRD e valores correspondentes..................................................................... 236 235 229 228 150 226 93 93

xvii

xviii

LISTA DE QUADROS

PG. Quadro 1: Resumo das propostas de ajuste estrutural......................................... Quadro 2: Sntese das propostas do Banco Mundial para o setor de sade......... Quadro 3: Estratgias de racionamento da assistncia e conteno de custos ... Quadro 4: Recomendaes sobre estratgias chaves para o curto e mdio prazo ................................................................................................. Quadro 5: Relatrio de Desempenho do Componente II do projeto REFORSUS-BIRD............................................................................. 231 160 104 136 157

xix

xx

Neste trabalho discute-se as propostas do Banco Mundial para o setor de sade brasileiro, tentando identificar em que medida as diretrizes deste organismo multilateral tem permeado as polticas nacionais de sade. Circunscrevemos o estudo ao perodo posterior a criao do SUS Sistema nico de Sade, em 1988, dando nfase as polticas dos anos 90. Para o desenvolvimento desta pesquisa, utilizou-se como recurso metodolgico, a pesquisa documental e a anlise de dados obtidos em fontes primrias, fontes oficiais e, em rgos de imprensa de divulgao nacional. A perspectiva histrica foi o referencial utilizado para a realizao da pesquisa e para a exposio do objeto estudado. Defende-se a tese de que as propostas do Banco Mundial, associadas a determinadas polticas de governo, nesta dcada, configuram um projeto de desmonte do SUS; Sistema proposto pelo Movimento da Reforma Sanitria, consagrado na Constituio Federal de 1988 e nas Leis Complementares. Alm de explicitar a convergncia de interesses entre esta instituio internacional e determinados grupos e setores nacionais, procurou-se mostrar as contradies que emergem nos processos de negociaes, envolvendo o Banco Mundial e setores do governo brasileiro, com repercusses importantes no conjunto da sociedade. No se pode afirmar que haja uma aceitao unnime e passiva das propostas de desmonte do SUS, so muitas as resistncias e inmeras as denncias feitas em diferentes instncias e espaos polticos, que tem obrigado o governo, em alguns momentos, a recuar e mudar as estratgias contra-reformistas que tenta colocar em prtica. Mas tambm no se pode negar que o governo tem tido xito na implementao de reformas no campo da sade que contraditam com o projeto original do SUS. Neste sentido, esta pesquisa pretendeu desvelar os interesses poltico/ideolgicos e econmicos que tem permeado determinados processos, aparentemente favorveis consolidao do SUS, mas que em realidade, modificam substancialmente a configurao original deste Sistema. Por fim, o trabalho chama a ateno para a necessidade de uma mobilizao ampla dos diferentes setores da sociedade, para a defesa intransigente do Sistema nico de Sade - o SUS brasileiro, com as caractersticas originalmente pensadas e, constitucionalmente legitimadas.

Resumo xxi

Resumo xxii

INTRODUO

24

introduo

1. OS OBJETIVOS E O OBJETO DE INVESTIGAO A escolha de um determinado objeto de estudo no acontece por acaso, nem desprovida de intencionalidade; freqentemente, a opo precedida de uma aproximao temtica que pode ocorrer por diversos canais e caminhos. A permanncia de indagaes, quer pela inexistncia ou insuficincia do conhecimento existente, quer pela insatisfao ou discordncia dos resultados divulgados, contribui para a escolha. A deciso de analisar as polticas de sade brasileira na dcada de 90, relacionando-as com as orientaes do Banco Mundial, e as conseqncias da assimilao dessas orientaes para o Sistema nico de Sade (SUS), deu-se no s pela atualidade do tema, mas sobretudo, por se perceber a necessidade e uma certa carncia de anlises que buscassem interpretar e explicitar os processos que envolvem a conciliao de interesses entre os organismos internacionais, os diversos nveis de governo e alguns setores da sociedade brasileira, incluindo parte da intelectualidade, que parece ter capitulado aos encantos da retrica ou das benesses proporcionadas por estes organismos, ajoelhando-se resignados diante do que parecia inexorvel. A anlise de um perodo recente, se por um lado implica em dificuldades adicionais quelas prprias s pesquisas desta natureza, no favorecendo o distanciamento do objeto recomendado pelos historiadores, uma vez que os fenmenos podem no estar plenamente desenvolvidos no mundo real; por outro, possibilita o acompanhamento dos processos e a identificao de acontecimentos e de atores significativos, que muitas vezes ficam excludos dos registros histricos. Espero que, neste trabalho, os problemas metodolgicos tenham sido minimizados e os desejos e as paixes imediatas que podem produzir o auto engano no tenham substitudo a anlise objetiva que uma pesquisa requer, mas tambm que este cuidado no tenha levado a abdicar da crtica inerente ao ponto de vista assumido. Um dos pressupostos iniciais deste trabalho, era de que o financiamento de projetos e programas pelo Banco Mundial na rea da sade, acentuado na ltima dcada, diferentemente de outros setores sociais que fazem parte da pauta de financiamento deste iinstituio, no teria como objetivo contribuir para o desenvolvimento econmico e/ou social de pases perifricos como o Brasil, conforme postulam seus discursos, mas sim, atravs destes acordos de emprstimos e das condicionalidades que os acompanham,

introduo

25

influenciar as polticas nacionais desse setor, no sentido de reduzir o papel e a participao do Estado na oferta de servios de sade, implementando projetos e programas que focalizam e direcionam as aes pblicas para as populaes mais pobres, ao mesmo tempo em que promove a ampliao e a participao do setor privado, neste promissor mercado para a expanso do capital. Este pressuposto no s se confirmou no decorrer da pesquisa, como evidenciou-se a tese de que os acordos de emprstimos do Banco Mundial para o setor brasileiro de sade, levados a cabo na ltima dcada, teriam como objetivo contribuir para a concretizao de uma contra-reforma no e do Sistema nico de Sade, no sentido de restringir e/ou anular direitos sociais defendidos pelo Movimento da Reforma Sanitria brasileira nas dcadas de 70 e 80 e consagrados na Constituio Federal de 1988.1 Os direitos constitucionais, no campo da sade, se colocados em prtica, representariam um entrave para os interesse do capital privado, alm de comporem uma proposta que se situava e se situa na contramo do movimento neoliberal, em curso h mais de duas dcadas nos pases centrais, e que aportou entre ns com o governo de Fernando Collor de Mello, tendo continuidade e aprofundamento nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso. O desagrado do Banco Mundial com os avanos dos direitos constitucionais no campo da sade, no Brasil, est expresso em dois documentos produzidos e divulgados por esta instituio, que sero analisados detidamente no 3 captulo deste trabalho, que so: Adult Health in Brazil: Adjusting to new challenges (1989) e The Organization, Delivery and Financing of Health Care in Brazil: Agenda for the 90s (1993). Em mbito geral, as propostas do Banco Mundial para o setor de sade dos pases perifricos, alm de pretenderem ajudar no processo de estabilizao poltica e econmica desses pases e de servirem como instrumento para a humanizao do Banco, articulam-se com questes estratgicas voltadas para a segurana interna e externa dos pases centrais e para a organizao do mundo capitalista. O crescente problema da misria, em nvel mundial, se insere neste contexto; segundo Wolfenshon (1995), presidente do

Segundo Vieira, os direitos sociais significam a consagrao jurdica de reivindicaes de trabalhadores. No significam a consagrao de todas as reivindicaes populares, e sim a consagrao do que resulta das relaes de fora entre os trabalhadores e o grupo dirigente do momento (1992, p.23).26 introduo

1

Banco Mundial, aliviar a pobreza e mant-la em nveis suportveis condio necessria para o futuro crescimento de todos. Uma certa insistncia com a questo da satisfao das necessidades humanas bsicas e uma crtica aos pases com muita disparidade na distribuio de renda e extrema diferenciao social tm, de certa forma, caracterizado o discurso do Banco Mundial, que acena com financiamento para programas e projetos que visam o combate pobreza e a centralidade na educao bsica e na ateno primria em sade. Apesar desse discurso, h quem diga que o Banco, de fato, tem oferecido em abundncia, mais do que recursos, suas prprias idias, com o intuito de traduzi-las em polticas internas nos pases em desenvolvimento. Si lo que el Banco Mundial ofrece son principalmente ideas, y esas ideas ayudarn a dar forma a polticas claves, que preparan nuestras sociedades para un futuro sobre el cual hay solamente conjeturas, cmo se producen y qu validez tienen dichas ideas debe ser analizado com tanto detenimiento como las condiciones y consecuencias de sus crditos2 (Coraggio, 1995, p.1). Esta sugesto de Luiz Coraggio merece ser levada em considerao ao se estudar as atuais polticas de sade, principalmente quando se observa que as propostas defendidas e difundidas pelo Banco, tm encontrado eco em intelectuais e tcnicos locais, que vm trabalhando ativamente em projetos financiados pelo Banco, tornando-se, portanto, co-responsveis pelos resultados. Neste final de sculo, mais do que em qualquer outro momento de sua histria, o Banco Mundial tem mostrado uma capacidade de imponer su visin de la realidad como la que necesariamente deberian compartir todo hombre y mujer sensatos3 (George & Sabelle, 1994, p.10), reivindicando para si o monoplio da verdade e sendo impermeveis a qualquer crtica. Os que sustentam opinies contrrias so tidos como mal informados e na maioria das vezes, desconsiderados. A possibilidade de ser ignorada por quem defende o pensamento nico, e tambm por aqueles que compactuam com as posies do Banco e as defendem e difundem emSe o que o Banco Mundial oferece so principalmente idias, e essas idias ajudaro a dar forma a polticas chaves, que preparam nossas sociedades para um futuro sobre o qual h somente conjecturas, como se produzem e que validade tm estas idias deve ser analisado com tanto rigor assim como as condies e conseqncias de seus crditos. 3 Impor sua viso de realidade como a que necessariamente deveriam compartilhar todo homem e mulher sensatos.introduo 272

nvel nacional, no foi suficiente para tolher a determinao em realizar esse estudo; pelo contrrio, serviu de motivao e de incentivo para a sua realizao. A exposio do trabalho foi realizada em quatro momentos distintos; iniciamos com uma discusso sobre alguns conceitos e pressupostos tericos, os quais foram utilizados como referenciais no processo de investigao. Fizemos isto, no s para definir a filiao terica, na qual pretendemos inserir este estudo, mas sobretudo, para tornar explcitas determinadas questes que se constituram em fio condutor do processo de pesquisa. O segundo momento, circunscrito ao primeiro captulo, apresenta uma breve reconstituio da histria do Banco Mundial, descrevendo o contexto em que o Banco se originou e as mudanas estruturais e conjunturais ocorridas em nvel internacional, que contriburam para a redefinio de seus objetivos iniciais e a expanso de suas aes. Destacamos, neste processo, a questo do crescimento/desenvolvimento econmico, parmetro que se mostrou fundamental para a definio/redefinio de suas diretrizes e polticas gerais. No segundo captulo, buscamos identificar a trajetria do setor de sade no interior do Banco Mundial, relacionando-a com a temtica do desenvolvimento e, apresentando as propostas desta instituio, para este setor social dos pases perifricos. No terceiro captulo, tratamos da relao do Banco Mundial com o Brasil, identificando alguns momentos significativos deste processo, incluindo aspectos relacionados com a legislao brasileira no campo da sade. Por fim, e talvez a parte mais relevante do trabalho, no quarto captulo, tratamos das polticas de sade brasileira, circunscritas ao perodo posterior Constituio Federal de 1988, quando foi definido um Sistema nico de Sade para o pas. Para dar conta deste recorte, realizamos um estudo sistemtico de documentos produzidos e divulgados pelo Ministrio da Sade e pelo governo central, referentes ao perodo estudado, procurando analisar o texto e a sua traduo em termos de polticas de sade, no s a partir do contedo, mas buscando compreender os meios e os processos em que ocorreu a tomada de deciso para a sua formulao e implementao; os poderes internos e externos envolvidos, incluindo a relao com o Banco Mundial, assim como, a lgica e a racionalidade que subjaz a tais formulaes. No mbito do estudo das polticas de sade, foi necessrio analis-las relacionandoas com as reformas por que passa o Estado brasileiro, e mais particularmente a reforma administrativa, cujas diretrizes esto expressas no Plano Diretor de Reforma do Aparelho

28

introduo

do Estado e em outros documentos do governo, alguns especficos da rea da sade. Para dar consistncia a esta parte do trabalho, analisamos alguns projetos do Ministrio da Sade, os quais esto sendo financiados pelo Banco Mundial. Na parte final do trabalho, procuramos explicitar mais livremente as nossas consideraes sobre as atuais polticas de sade para o Brasil, respaldando-nos no que foi apreendido no processo de criao/recriao efetuado, que constitui o trabalho cientfico 2. PRESSUPOSTOS TERICOS Acreditamos que os resultados de uma pesquisa dependem, dentre outros aspectos; do ponto de onde partimos e do referencial terico-metodolgico que nos d suporte. No se pode afirmar que existe uma nica interpretao dos fenmenos, mas vrias possibilidades de interpretao: cada uma com um grau de explicao diferenciado. Isto no significa que existam mltiplas verdades, mas interpretaes que ao serem confrontadas com a realidade, reproduzem de uma maneira mais ou menos fiel o movimento do real. Quanto mais rica de determinaes for a representao que se faz do real, mais prxima da verdade estar. As interpretaes no podem ser atos arbitrrios do pensamento, mas o resultado de um processo coerente e racional que, sustentada em princpios tericos, possibilita reconstruir objetivamente aspectos da realidade. Numa abordagem de inspirao marxista, o ponto de partida para a anlise deve ser o fato histrico ou a manifestao emprica do fenmeno; apreendendo inicialmente a sua origem e desenvolvimento histrico o estudo diacrnico, que localiza o fenmeno em uma totalidade concreta, em uma determinada formao econmico-social. Ao mesmo tempo, considerando que da gnese no derivam automaticamente as significaes internas do fenmeno, necessrio combinar, com o estudo da dimenso gentica, dimenses estruturais que advm de uma anlise sincrnica do objeto, na tentativa de esclarecer as caractersticas internas e contemporneas do fato. Os objetos, do ponto de vista lgico, apresentam dados de imediaticidade, necessrios para o momento de aproximao do sujeito ao objeto; porm, o processo real mais complexo e pleno de determinaes, que s aparecem quando se explicita, pelo processo do conhecimento, as mediaes, os nexos e as relaes que do concretude ao objeto.

introduo

29

Nesta perspectiva parte-se do princpio de que os fatos no se esgotam em si mesmos; constituem-se em expresses empricas, em marcos de um processo que vai alm deles, transcendendo-os. Os fatos servem para mapear, para detectar processos que devem ser confrontados e relacionados com outros fenmenos, num procedimento de abstrao intelectiva que permite extrair deles, os significados no imediatamente dados ou relacionados. Para isto utiliza-se a razo, no apenas como capacidade de pensar, mas principalmente como produto do pensamento j elaborado e sistematizado. Este procedimento que ocorre em nvel mental, como abstrao, e que permite visualizar as mediaes e determinaes, provoca duas mudanas significativas: uma no objeto, que visto em movimento sofre constantes transformaes, e a outra no prprio sujeito, que a cada nova aproximao j no mais o mesmo. Da a necessidade de, constantemente, confrontar-se o produto da abstrao com a realidade, para no cair no subjetivismo ou no idealismo, pois o concreto real no s exterior mas anterior ao pensamento que o apreende. Para realizar uma anlise histrica, h que se procurar distinguir e estabelecer a justa relao entre o que constitui o movimento orgnico e estrutural, de longa permanncia, que caracteriza as leis gerais, as tendncias de uma determinada formao econmica social, constituindo a sua dinmica, e os elementos ocasionais e imediatos que compem a conjuntura em que determinado fenmeno se desenvolve. Com o primeiro movimento, possvel realizar uma crtica histrico-social que ultrapassa os limites da culpabilidade das personalidades que se encontram no poder, sem no entanto deixar de atribuir-lhes as devidas responsabilidades. O segundo - a anlise conjuntural, ajuda a identificar as condies imediatas de imerso e organizao de foras antagnicas, em que umas procuram conservar/administrar as contradies da estrutura societria existente, e outras lutam para transformar/superar a situao em busca de outra formao econmicosocial. Considerando que o estudo das polticas de sade a questo central deste trabalho, pareceu-nos relevante discutir previamente algumas concepes de poltica social existentes e a que adotaremos como referncia, bem como as conexes e inter-relaes que se estabelecem a partir destas concepes. Acreditamos ser necessrio tambm compreender as funes assumidas pelos Estados Nacionais, dada a importncia de sua

30

introduo

participao na implementao de polticas sociais, quer seja no centro ou na periferia do mundo. claro que num e noutro, as condies histricas, as mediaes e as determinaes so distintas e produzem resultados diferenciados. Para nossos objetivos, interessa compreender e apreender as transformaes por que tem passado o Estado brasileiro, neste final de sculo, e a sua capacidade em implementar polticas para a sociedade brasileira, particularmente as de sade. Parto do pressuposto de que as polticas sociais so constructos histricos que resultam de contradies no interior da sociedade, assumindo caractersticas prprias em cada contexto em que se efetivam. Assim, o trato de qualquer poltica social4 deve ser circunscrito a anlises que contemplem as dimenses do econmico, do poltico e do social, em sua especificidade histrica. De acordo com Vieira, a poltica social consiste em estratgia governamental e normalmente se exibe em forma de relaes jurdicas e polticas, no podendo ser compreendida por si mesma. No se definindo a si, nem resultando apenas do desabrochar do esprito humano, a poltica social uma maneira de expressar as relaes sociais, cujas razes se localizam no mundo da produo (1992, p.21/22). Este mesmo autor compreende que no cotidiano das lutas polticas, o governo vai fixando a orientao da poltica econmica e das polticas sociais, as quais expressam as contradies e os conflitos existente na sociedade, podendo revelar mudanas nas relaes entre as classes, ou entre grupos sociais existentes em uma mesma classe. Atravs da anlise das polticas, possvel evidenciar-se a ao do Estado no sentido de incentivar e ampliar o capitalismo em determinado pas. Formando um todo, a poltica econmica e a poltica social apenas formalmente se distinguem e s vezes do a enganosa impresso de que tratam de coisas muito diferentes (Vieira, 1992, p.21). Assim, o estudo de qualquer poltica social, incluindo a de sade, no pode ocorrer a partir de uma anlise intrnseca ela, nem como um ideal a ser alcanado naturalmente pelo desenvolvimento geral da sociedade mas, a partir da compreenso da base material e das relaes objetivas e subjetivas em que ocorreram ou ocorrem. Vieira recomenda tambm

Para Vieira (1992), na composio do termo poltica social poltica no assume o sentido estrito de atividade ou praxis humana ligada ao exerccio de poder, mas relaciona-se a estratgias de governo que se compe de planos, projetos, programas e documentos, onde possvel identificar diretrizes relativas s reas em questo.introduo 31

4

que qualquer exame da poltica econmica e das polticas sociais deve fundamentar-se no desenvolvimento contraditrio da histria. Em nvel lgico, tal exame mostra as vinculaes destas polticas com a acumulao capitalista. Em nvel histrico, verifica se consistem em respostas s necessidades sociais, satisfazendo-as ou no (Vieira, 1992, p.15). Segundo esta vertente de anlise, as polticas sociais, desde as suas origens em algum grau estiveram vinculadas acumulao capitalista. A comear com o processo de urbanizao que ocorreu a partir da 1 Revoluo Industrial, na Inglaterra, onde emergiram problemas de ordem sanitria, educacional, habitacional e de segurana, que obrigaram o governo civil central ingls a mudar sua postura no intervencionista, fundamentada no liberalismo clssico, fazendo com que o Estado passasse a desempenhar determinadas funes, mediando as relaes sociais de produo. A interveno estatal, naquele momento histrico, ocorreu tanto por meio da formulao de medidas legais para regulamentar a economia, como na prestao de servios pblicos, julgados imprescindveis este novo modo urbano-industrial de viver e produzir. Entretanto, h que se dizer que as polticas e os servios sociais surgidos naquele perodo, ou em qualquer outro da histria do capitalismo, no resultaram de princpios humanistas deste sistema, mas sempre foram produto de amplos movimentos reivindicatrios. A poltica social aparece no capitalismo construda a partir das mobilizaes operrias sucedidas ao longo das primeiras revolues industriais. A poltica social, compreendida como estratgia governamental de interveno nas relaes sociais, unicamente pde existir com o surgimento dos movimentos populares do sculo XIX (Vieira, 1992, p.19). A dinmica desta nova ordem societria que emergia e a necessidade de homens, mulheres e crianas que soubessem ler, escrever e tivessem corpos saudveis para o trabalho industrial, associada s reivindicaes dos trabalhadores, foram decisivos para que os adeptos da teoria liberal e defensores do livre mercado assumissem que o sistema de auto-regulao, nele contido, no satisfazia s necessidades mais elementares das pessoas, colocando assim um novo papel para os governos dos Estados capitalistas. Carregando sobre os ombros o peso de seu prprio dogma, o liberalismo precisou construir outra ordem poltica. Deixou de batalhar contra o Estado, tentando impedir sua interveno na

32

introduo

economia. Passou a fabricar teoricamente um Estado muito complexo, com a finalidade de expandir o capitalismo (Vieira, 1992, p.18). Contudo, embora seja possvel comprovar a vinculao orgnica do Estado com o capital e a sua reproduo, a anlise de sua forma de existncia e realizao, que assume concretude nas aes governamentais, no pode ter como pressuposto a submisso absoluta do Estado lgica do capital, constituindo-se em simples instrumento deste; nem ser encarado como uma instituio com independncia, capaz de superar as contradies desse modo de produo, como um substituto do capital. Mandel (1985), afirma que o Estado deve ser considerado como uma forma especial de preservao da existncia social do capital ao lado, mas fora da concorrncia. Nesta mesma direo, Fiori pensa o Estado, como momento do capital em geral, e a valorizao a um s tempo como processo econmico e poltico. Donde inevitavelmente, as leis do capital e sua valorizao s adquirem e readquirem universalidade nos variados processos histrico-concretos, onde as lutas sociais e polticas, mediadas pelo Estado as viabilizam.(...) Estado e economia so vistos por ns como formas da relao capitalista e, portanto, devem ser pensadas em conjunto, na perspectiva da necessidade, dos limites e da forma que assumida pela ao estatal nos vrios momentos e contextos do desenvolvimento capitalista, a includos os seus casos tardios e perifricos (Fiori, 1988, p. 100/101). O Estado constitui-se em um espao contraditrio de ao poltica e de exerccio do poder, onde as relaes de foras nacionais e internacionais se encontram e ajudam a dar conformao a cada situao especfica. Sendo assim, o estudo de um fenmeno como as polticas de sade, que esto imbricadas neste espao e prenhes destas determinaes, implica em uma anlise dos vrios graus das relaes de foras que participam do processo, ... a comear pela relao das foras internacionais (...), passando em seguida s relaes sociais objetivas, ao grau de desenvolvimento das foras produtivas, s relaes de fora poltica e de partido (sistemas hegemnicos dentro do Estado) e s relaes polticas imediatas (Gramsci, 1984, p. 44).

introduo

33

Na anlise de um processo histrico, Gramsci (1984), recomenda que as relaes de foras sejam tomadas como um elemento de pesquisa e interpretao, e no como uma causa histrica. Para isto, deve-se levar em considerao os diferentes momentos, ou graus que as compem, iniciando pela relao de foras sociais, estreitamente ligadas estrutura, ao grau de desenvolvimento das foras materiais de produo, passando pela relao de foras polticas nacionais e internacionais e, por ltimo, a relao de foras militares, que so decisivas em determinados momentos. As relaes internacionais seguem as relaes sociais fundamentais, que se desenvolvem no interior das sociedades centrais e perifricas, embora no tendo o mesmo grau de determinao, nem sendo uma relao causal, acompanham a dinmica que caracteriza a relao centro hegemnico/periferia dependente. Nesta linha de anlise que adotamos, o Estado se constitui em uma importante arena de disputa entre as foras existentes na sociedade, desempenhando um papel decisivo como articulador da vida econmica e social, em todos os momentos da existncia do capitalismo. Embora empiricamente seja possvel identificar transformaes e particularidades na configurao dos Estados, as suas funes clssicas no se alteraram fundamentalmente com o transcorrer da histria. Segundo Mandel, essas funes serviriam para: 1) criar as condies gerais de produo que no podem ser asseguradas pelas atividades privadas dos membros da classe dominante; 2) reprimir qualquer ameaa das classes dominadas ou de fraes particulares das classes dominantes ao modo de produo corrente atravs do exrcito, da polcia, do sistema judicirio e penitencirio; 3) integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante e, em conseqncia, que as classes exploradas aceitem sua prpria explorao sem o exerccio direto da represso contra elas (porque acreditam que isso inevitvel, ou que dos males o menor, ou a vontade suprema, ou porque nem percebem a explorao (Mandel, 1985, p.333/334).

34

introduo

As polticas sociais fariam parte das estratgias do Estado para cumprir com a primeira e a terceira funo, ou seja, proporcionar as condies necessrias produo e ser instrumento de integrao e de consenso. Portanto, as polticas sociais se constituiriam em medidas de carter compensatrio e, em alguns casos, distributivas, tendo como objetivo contribuir para a normalidade social e poltica, necessria manuteno e expanso desta formao societria. As polticas sociais, circunscritas s democracias liberais, mesmo quando aludem ao seu objetivo de diminuir a desigualdade social, contribuem para a sua conservao, pois a igualdade de que tratam a de oportunidades e no a igualdade real de toda a sociedade. No mbito da democracia liberal, a desigualdade social, a dominao de uma classe social sobre outra, pode ser admitida desde que esteja assegurada a igualdade da cidadania. Como conseqncia da ordem burguesa e do capitalismo, a cidadania revela-se indispensvel continuidade da desigualdade social, e no entra em conflito com ela (Vieira, 1992, p. 71/74). Para a ideologia liberal, as diferenas sociais existentes so legtimas e salutares; elas seriam necessrias como estimulo competio entre os indivduos. A partir de condies mnimas iniciais iguais, cada um, de acordo com a sua capacidade, sua competncia, suas qualidades individuais e esforo prprio, teria as mesmas possibilidades de se sobressair, de ser o melhor, de tornar-se um vencedor. Neste aspecto bem verdade que os velhos como os novos liberais nunca se preocuparam muito em discutir mais aprofundadamente a questo de como responder ao problema concreto de que nas sociedades reais, no ponto zero de suas reflexes, j existam imensas diferenas e desigualdades que nunca foram ou sero corrigidas, de forma a igualar as condies de partida para todos (Fiori, 1997, p.203). Ainda que se possa pensar em polticas sociais desvinculadas do Estado, uma anlise que desconsidere a participao deste no processo de formulao e implementao de tais polticas seria limitada. No caso brasileiro, mesmo quando alguma ao compreendida como poltica social, tenha se dado por meio de outras instituies ou organizaes que no o Estado, houve a participao deste, quer atravs do financiamento direto, pelo repasse de verbas pblicas, por incentivos fiscais ou pelo suporte burocrtico-

introduo

35

institucional. Neste sentido, mesmo no sendo adepta do estatismo5 no trato das polticas sociais, no possvel ignorar que a configurao, e as mudanas na estrutura de poder ou nas funes do Estado, tem implicaes decisivas para estas polticas. Da a necessidade de se compreender quais as caractersticas do Estado brasileiro, seu papel na dinmica capitalista, suas funes e a lgica a elas subjacente. Uma lgica que se manifesta nas modalidades de interveno nos problemas que so de interesse dos mais distintos atores sociais; na forma de relacionamento entre os poderes institudos e os diferentes segmentos da sociedade; na identificao das prioridades estabelecidas por ele e de quem efetivamente delas se beneficia e, na racionalidade que conduz tomada de decises, identificando o predomnio do carter tcnico, econmico, legal, social e/ou poltico-ideolgico. Quanto s caractersticas assumidas pelo Estado brasileiro, as quais sero detidamente analisadas no quarto captulo, pode-se antecipar com base em Fiori (1988), que a exemplo dos demais Estados perifricos, embora erodidos em sua soberania nacional, seguem tendo em mos recursos de poder suficientes, do ponto de vista do acondicionamento monetrio e jurdico dos espaos de acumulao, e de submetimento das populaes, que os mantm como locus onde se desdobram e especificam as lutas de classe e a competio capitalista... (p. 109). O estudo das polticas sociais contribui tambm para revelar as modalidades de interveno do Estado em questes que so do interesse dos diferentes segmentos da sociedade, e ao mesmo tempo, ajuda a desvelar certas facetas da ao governamental que, se no de forma explcita, implicitamente expressam as concepes, as intenes e as contradies presentes no modo de gesto do Estado. Dependendo da compreenso das polticas sociais e da atribuio que se d elas no conjunto das aes do Estado, a formulao e o encaminhamento de um projeto de governo adquire caractersticas muito distintas, passveis de serem identificadas atravs da histria. Se essa compreenso estiver fundamentada no entendimento de que as polticas sociais relacionam-se com todos os aspectos da vida social, pode-se concluir que todas as polticas do Estado deveriam ser parte integrante das polticas sociais, inclusive as polticas econmicas.Ponto de vista que analisa as polticas sociais colocando o Estado como o centro do processo, explicando as polticas sociais exclusivamente atravs de seu papel, sem considerar as demandas sociais por tais polticas, as quais requerem e impem um determinado padro de interveno estatal.36 introduo5

Numa sociedade democrtica, a poltica social deveria se sobrepor poltica econmica, os bens pblicos deveriam ganhar projeo e prioridade em relao aos bens privados. Entretanto, dependendo das caractersticas que as polticas sociais assumem e da relao que se estabelece entre o Estado, a economia e a sociedade, estas polticas se reduzem a propostas e programas emergenciais, que tm como nico objetivo dar resposta demandas imediatas de setores mais crticos da populao. Nos pases perifricos, diferentemente do ocorrido nos Estados de Bem Estar Social, cuja ampliao e extenso das polticas sociais se deu no bojo da incorporao do planejamento moderado, de origem keynesiana, aqui elas parecem surgir e ser implementadas unicamente a partir de demandas e presses imediatas, assumindo, ora o carter de compensao, em face de reivindicaes dos trabalhadores, ora com a marca da benevolncia, quando se trata da populao mais carente, que se encontra excluda do processo produtivo ou integrada a ele de forma marginal e sem poder de presso. Alm disto, as polticas sociais, nos pases perifricos, freqentemente no so progressivas e nem acompanham o crescimento econmico; pelo contrrio, a tendncia de que em momentos de grande crescimento econmico, quando os trabalhadores esto relativamente satisfeitos e no mobilizados para reivindicar, as polticas sociais tornam-se desprezveis e, em momentos de pouco crescimento econmico e de crise, quando aumenta a massa de desempregados, diminui o salrio e h ameaa de instabilidade social, apesar de fugazes e transitrias, as polticas sociais apresentam alguns ganhos. Entre ns, so exemplos de perodos de ampliao das polticas sociais os anos 30 e os anos 80, exatamente quando o pas enfrentava srias crises econmicas.6 Por outro lado, nos anos setenta, perodo do milagre econmico, com intenso crescimento da economia nacional, os investimentos em polticas sociais mantiveram-se no mesmo patamar do perodo anterior. O carter compensatrio e restrito das polticas sociais, caracterstico de pases perifricos como o Brasil, so compreensveis a partir da anlise do modo como o capitalismo se desenvolveu e se consolidou nestes pases, ou seja, das bases que sustentaram a fase final da consolidao da ordem capitalista. No Brasil este processo se deu com o incremento da industrializao, ocorrido, sobretudo, no perodo dos anos 30 aosPesquisa feita por Tavares e Monteiro (1994), aponta uma melhoria em vrios indicadores das condies de vida da populao brasileira nos anos 80, apesar da estagnao econmica experimentada pelo pas neste perodo.introduo 376

anos 60 deste sculo, revelando os traos e as tendncias particulares deste modo de desenvolvimento. Segundo os paradigmas econmicos e sociolgicos, a industrializao um processo pelo qual o modo de produo capitalista se constitui plenamente numa determinada formao social, j que o momento em que o capital atinge a rea da produo, revoluciona as foras produtivas e altera globalmente a ordem vigente (Xavier, 1995, p. 15). Contudo, aqui o processo de industrializao no logrou alterar radicalmente a ordem vigente, tanto pelas caractersticas de dependncia que assumiu, como pela forma com que se adaptou s estruturas oriundas das formas primitivas de dominao existentes e, s formas avanadas de dominao capitalista internacional. At porque na configurao da nova diviso internacional do trabalho, bastava aos pases centrais que as economias perifricas deixassem de ser apenas produtoras de gneros agrcolas e consumidoras de produtos manufaturados, para se transformarem em produtoras de bens industriais de consumo e consumidoras de bens de capital. Para Xavier (1995), o processo de industrializao que ocorreu neste perodo, provocado por fatores externos e internos ligados a superao da primeira diviso internacional do trabalho, consolidou aqui um capitalismo dependente, uma vez que este processo se deu em condies artificiais de crescimento, mediado pelo Estado, sem que tivssemos desenvolvido internamente todos os elementos necessrios sua efetivao; como o conhecimento cientfico e tecnolgico, a formao de mo-de-obra qualificada, poupana interna e, um mercado interno capaz de sustentar o crescimento industrial; tornando-nos assim dependentes da importao de tecnologias, da importao de capitais e de mo-de-obra qualificada e, dependentes do mercado externo. Se parte desses elementos foram superados, como por exemplo a formao de mode-obra qualificada, outros permanecem, como a dependncia tecnolgica, a dependncia do capital internacional e do mercado externo, apesar de que neste caso a forte concentrao de renda permitiu a emergncia de um mercado interno restrito, capaz de sustentar certos setores da produo industrial mas, para os demais setores, continua a dependncia da exportao de seus produtos. Esta nova ordem, que se configurou neste processo, produziria a um s tempo crescimento econmico e misria social, com a marginalizao de grandes contingentes populacionais do consumo e da produo de bens,

38

introduo

medida em que, o rpido avano tecnolgico propiciado pela importao tenderia crescentemente a reduzir a incorporao de mo-de-obra, antes que outros mecanismos de absoro estivessem desenvolvidos, gerando o subemprego no setor tercirio e o inchao do servio pblico(Xavier, 1995, p.18). O que contribui para a formao de uma classe trabalhadora frgil e o descaso do Estado com as polticas sociais. No campo poltico, este perodo de consolidao do capitalismo brasileiro foi marcado por alternncia entre regimes autoritrios, principalmente quando a classe trabalhadora se mobilizava para reivindicar, e regimes de democracia formal, nos momentos em que havia uma certa tranqilidade social ou quando a organizao popular ganhava poder de presso e barganha, que aconteceu sobretudo nos perodos de crise econmica e em momentos de ciso no poder. No processo de desenvolvimento do capitalismo, sobretudo nos pases centrais, as polticas sociais foram vistas, em perodos de expanso, como necessrias para a reproduo da classe trabalhadora e como elemento que poderia contribuir para o estabelecimento de um padro de sociabilidade e adeso uma certa norma social de consumo, decisiva para o processo de acumulao.7 Isto, no entanto, no impediu que nos momentos de crise orgnica do capital, elas fossem postas em xeque naqueles pases e abortadas nos pases perifricos, com uma tendncia em privatizar servios sociais, na tentativa de se apropriar do potencial valor de uso que eles contm e ampliar o leque de possibilidades para o investimento do capital. Para Campos (2000) os bens e servios, as prticas ou polticas sociais, so apenas meios com valor de uso potencial, com capacidade potencial de assegurar atendimento de algumas necessidades.8 No estudo das Polticas Sociais, a anlise deve buscar ultrapassar os aspectos tcnico-operacionais envolvidos e contemplar tambm as questes poltico-ideolgicos que as constituem. Muitas vezes, os projetos e programas propostos pelos governos noO Welfare State, por meio da poltica do pleno emprego com o pleno emprego, da seguridade social e, em menor medida, com a reduo das desigualdades, proporcionou, pela primeira vez, um mercado de consumo de massas e bancou um pacto aceitvel entre patres e empregados, estabelecendo em torno de si um territrio de legitimao das relaes de classe e servindo para assegurar, por um longo perodo, o ciclo de amadurecimento e expanso do fordismo (Lopes, 1999, p. 213). 8 Para aprofundamento desta questo ver discusso feita por Gasto Wagner de S. Campos no livro: Um Mtodo para Anlise e Co-gesto de Coletivos, em especial o captulo que trata da Reconstruo Conceitual e prtica do trabalho: O resultado do trabalho: a produo de valor de uso e o atendimento de necessidades sociais. (Campos, 2000, p. 48-65).7

introduo

39

refletem demandas sociais gerais da sociedade, mas demandas de grupos e faces que compem as alianas e do sustentao ao governo; ou ainda, tais propostas podem constituir-se apenas em instrumentos para criar uma base social de apoio, necessria imposio de reformas que a elite dirigente julga necessrio realizar. Parece ser este o caso do sempre recorrente discurso que condiciona a soluo das mazelas da sociedade a implementao de reformas setoriais e/ou administrativas. Este discurso tem como pressuposto um politicismo, ora ingnuo, ora cnico, que coloca a poltica com absoluta autonomia em relao ao econmico, em que bastariam polticas adequadas e um bom desempenho institucional/administrativo para que os diversos problemas da sociedade fossem resolvidos. Esta viso idealista extrai a prtica poltica do mundo real, eliminando seus condicionantes sociais, ideolgicos e econmicos. A crena na reforma administrativa, quase um pensamento secularizado, no s no mbito dos diferentes grupos da tcno-burocracia que compuseram os quadros governamentais anteriores e na vigncia da ditadura militar, mas tambm sempre resgatado pelos intelectuais conservadores que subsidiam os programas de desenvolvimento econmico-social, quando solicitados pelos mais diversos grupos que j foram (e so) governantes neste pas. A reforma administrativa, encarada nos seus mais diversos aspectos, a soluo mgica que sempre orientou as tticas governamentais brasileiras. A concepo idealista de que mudando ou redefinindo o aparelho estatal atinge-se melhores padres de bem-estar social tem sido a mola mestra dos discursos oficiais. Por esse caminho, j teramos alcanado o Nirvana - com e apesar deles (Menezes, 1993, p. 39). Outra forma de encarar as polticas sociais, acreditar que atravs delas seja possvel resolver o problema da desigualdade social, no atual sistema econmico, transformando as polticas sociais em instrumento de redistribuio da riqueza.9 Esta interpretao, denominada de redistributivismo, parece desconsiderar a natureza do

Defensor desta viso, Abranches (1994, p.10), concebe as polticas sociais como parte, precisamente, do processo estatal de alocao e distribuio de valores. Est portanto, no centro do confronto entre interesses de grupos e classes, cujo objeto a reapropriao de recursos, extrados dos diversos segmentos sociais, em proporo distinta, atravs da tributao.40 introduo

9

capitalismo em qualquer de suas fases, que de um constante processo de acumulao e no de redistribuio; de uma crescente desigualdade, entre as naes e no interior delas, e no da soluo deste contraste e; de um aumento progressivo da misria e no da sua reduo. Engana-se quem quer resolver os problemas sociais unicamente a partir da circulao (distribuio e consumo), quando em realidade a origem do problema est na esfera da produo, onde de fato ocorre a apropriao da riqueza. Portanto, um projeto que queira ser radical na distribuio, tem que ir raiz do problema, revolucionando a produo e seus meios. Os projetos redistributivistas, no marco das sociedades capitalistas, esto condicionados dinmica de desenvolvimento destas sociedades. Determinados avanos em termos de conquistas sociais, experimentados em momentos de expanso do capital, como o Welfare State em parte da Europa, o Estado previdencirio nos EUA - Estados Unidos da Amrica, ou mesmo a ampliao da cobertura previdenciria e de assistncia mdica em pases da Amrica latina como o Brasil, so contestados nos perodos de estagnao econmica e de crises que se seguem aos perodos de expanso. O projeto redistributivista claramente limitado. Do contexto de estagnao econmica ensejado a partir de fins da dcada de 60, emergem elementos que infirmam o alcance destas proposies. So eles: a supercapitalizao com sua presso ostensiva em favor da mercantilizao de mais e mais setores da vida social; a tenso sobre a destinao dos recursos estatais aprofundada pela crise fiscal; a tendncia de deteriorao das instituies democrticas; a presena das concepes meritocrticas neoliberais, contrrias ao welfare protetor e defensor dos direitos sociais universais; a dificuldade de organizao do sujeito poltico contrahegemnico. Todas estas caractersticas, impulsionam pelo aprofundamento das antinomias estruturais do modo de produo capitalista na sua fase tardia, somadas a um outro elemento central - a crise do socialismo real -, configuram uma moldura amplamente desfavorvel s polticas redistributivistas, tanto do ponto de vista econmico quanto poltico (Behring, 1998, p. 24).

introduo

41

Compreende-se tambm que as polticas sociais contribuem para a reproduo da fora de trabalho, naquilo que caracteriza as condies gerais de produo e socializao dos custos desta reproduo. Mas, como as polticas sociais so contingenciadas pela lei de acumulao, de se esperar que num momento em que o capitalismo se rearticula em um novo padro de produo e organizao de suas bases produtivas, dispensando uma grande quantidade de braos, msculos e corpos saudveis, as polticas sociais e os projetos redistributivos tendem a ser contestados. Se isto verdadeiro para os pases centrais, no se pode dizer o mesmo sobre a realidade nacional, sendo um trao histrico do capitalismo dependente que aqui se desenvolveu, pois este nunca precisou incorporar produo grandes contingentes populacionais, ao contrrio, sempre teve disponvel um enorme exrcito de reserva e no precisou criar um grande mercado consumidor interno. Isto se refletiu nas polticas sociais, permitindo ao Estado brasileiro negligenciar a distribuio de renda e a melhoria das condies de vida da populao, fatores fundamentais para a reproduo da mo-de-obra e para o consumo. Se considerarmos que as polticas sociais historicamente originaram-se do acirramento da relao entre capital e trabalho, manifestada, de um lado pela busca desenfreada de obteno de lucro, atravs da explorao do trabalho assalariado nas fbricas e indstrias no sculo XIX, na Inglaterra, e de outro, pelo reconhecimento dos trabalhadores da impossibilidade de produzir e reproduzir a sua vida material nas condies em que se encontravam, podemos compreender por que a formulao e a implementao de qualquer poltica social depende, em muito, do poder dos grupos que exercem presso sobre os governantes. Na histria nacional, salvo em conjunturas especficas, sempre foi tpico do Estado brasileiro o descaso com as polticas sociais, em face das fragilidades da nossa classe trabalhadora, da forma de insero dependente na dinmica internacional e do papel que o Estado assumiu no processo de desenvolvimento econmico. Se esta uma caracterstica histrica do processo de desenvolvimento que aqui ocorreu, agrava-se muito frente a conjugao de uma forte crise econmica, poltica e social, que ora vivenciamos, debilitando ainda mais a organizao e a mobilizao popular com capacidade de reivindicar e exigir uma interveno governamental mais favorvel ao conjunto dos trabalhadores. Segundo Fiori (1988), este quadro agravado quando se constata que as

42

introduo

crises das ltimas duas dcadas, provocadas pelo processo de endividamento externo e seus desdobramentos, mudou a face do Estado brasileiro, condenando-o impossibilidade de cumprir com as responsabilidades tradicionais de qualquer governo como os servios urbanos, a educao, a sade, etc.. Contudo, as contradies da sociedade brasileira tem feito com que emirjam tenses em vrios setores sociais, exercendo presso sobre o governo e questionado determinadas relaes, particularmente as que se estabelecem com alguns organismos internacionais como o Banco Mundial10 e o FMI. Apesar das contestaes e da presso que sofre, o governo brasileiro parece que segue definindo suas polticas a partir de propostas que no emergem do debate interno da sociedade, mas que so advindas de um poder supranacional, vinculado ao capital internacional. Tais propostas tm encontrado eco em boa parte da burocracia do Estado, em certos intelectuais e na elite poltica e econmica deste pas. Sobre a questo do poder supranacional, Hobsbawn afirmaria que, no final deste sculo, no se podia prever o ritmo no qual avanariam as tomadas de decises supranacionais. Apesar disto, certamente avanariam, e era possvel ver como operariam. J operavam, atravs dos gerentes de banco globais das grandes agncias internacionais de emprstimos, representando os recursos conjuntos da oligarquia dos pases mais ricos, que tambm por acaso incluam os mais poderosos. medida que aumentava o fosso entre ricos e pobres, parecia que aumentava o espao para o exerccio desse poder global (Hobsbawn, 1995, p. 556).

10

O Banco Mundial, como conhecido atualmente, compem-se de um conjunto de instituies criadas em momentos distintos e com funes especficas, sendo o BIRD - Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento, o primeiro a ser criado, em 1945 logo aps a Segunda Guerra Mundial, tendo como objetivo inicial ajudar na reconstruo dos pases europeus assolados pela guerra. A CFI - Corporao Financeira Internacional (1956), criada para apoiar o fluxo internacional de capital privado para os pases em desenvolvimento e para participar do setor privado desses pases; a AIF - Associao Internacional de Fomento (1960), possui as mesmas funes e utiliza a mesma estrutura administrativa do BIRD, mas seus emprstimos so outorgados em condies altamente concessionrias para os pases mais pobres; CIADI Centro Internacional de Arranjo de Diferenas relativas de Investimento, criado em 1966, fomenta o fluxo de investimentos oferecendo mecanismos de conciliao e arbitragem de diferenas entre governos e os investidores estrangeiros; OMGI - Organismo Multilateral de Garantia de Inverses (1988), criado com o propsito de ajudar os pases em desenvolvimento a atrair capital estrangeiro, oferecendo proteo aos investidores frente aos riscos polticos como moratria, guerra, perturbaes polticas, descumprimento de contratos ou mudanas de moeda. Neste trabalho utilizarei o termo Banco Mundial de forma genrica,

introduo

43

A institucionalidade deste poder supranacional se materializa, fundamentalmente, em organismos como o Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional - FMI. Estes Organismos, com funes distintas, mas complementares, tm procurado estender seu alcance e seu poder de influncia a diversos setores e campos de atuao. Apesar de o Banco Mundial ser la mano visible del programa del capitalismo de livre mercado sin limites 11(George & Sabelli, 1994, p. 326), est longe de incorporar as leis do laissez faire como princpio para si, muito pelo contrrio, tem assumido uma postura intervencionista e normativa nos pases que pretende desenvolver, constituindo-se em formulador de polticas econmicas e sociais para estes pases. Contudo, este poder global no tem se revelado com a mesma intensidade em todo o mundo capitalista. Nos pases centrais, cuja histria consolidou um Estado Democrtico, a aceitao das orientaes dos organismos que representam este poder, se subordina s diretrizes das polticas governamentais daqueles pases ou se colocam a servio deles. J nos pases perifricos e dependentes, a implementao de polticas que emanam de instituies internacionais como o FMI, Banco Mundial, BID- Banco Interamericano de Desenvolvimento, etc. muito mais evidente e direta. Isto no significa que as propostas, hoje defendidas por estes Organismos, foram formuladas em primeira instncia e idealmente nestas instituies para serem posteriormente aplicadas linear e mecanicamente pelos governos dos pases perifricos. Muitas das diretrizes e conceitos que compem o conjunto das orientaes destas instituies foram extrados de processos histricos concretos e de discusses que atravessaram dcadas, promovidas e alavancadas por movimentos sociais dos mais diversos matizes ideolgicos e em diferentes pases e regies. Contudo, cabe atribuir o mrito estes Organismos, atravs de seu staff e de seus consultores espalhados pelo mundo, pelo processo de reconceituao realizado e pela readequao metodolgica e ideolgica de certos conceitos aos novos tempos de rearticulao capitalista. A interveno externa, que se verifica atualmente nos mais diversos nveis e setores da ao estatal brasileira, possibilitada pelo aceite negociado e como parte integrante das condicionalidades para a obteno de emprstimos externos, mostra o grauindependente do perodo a que estiver me referindo. Quando surgirem questes especficas relacionadas a emprstimos, designarei a instituio responsvel no interior do Banco. 11 a mo visvel do programa de capitalismo de livre mercado sem limites.44 introduo

de dependncia do pas em relao ao capital internacional, enraizado nos pases centrais, ao mesmo tempo em que revela a faceta imperialista com que estes pases tm procurado manter sua hegemonia e influncia em determinadas regies do mundo. A possibilidade de uma insero mais equilibrada de pases perifricos como o Brasil, na dinmica capitalista internacional, aparentemente em processo durante as dcadas de bom desempenho da economia nacional, parece ter sucumbido frente realidade deste final de sculo. Segundo Goldenstein, o que foi se revelando aos nossos olhos e mentes nas ltimas dcadas que os processos internacionais tm uma autonomia no seu impacto sobre as regies perifricas maior do que supnhamos. Assim como as regies perifricas tm menos autonomia em suas decises do que supnhamos. As velhas discusses dos anos 50 sobre dependncia, imperialismo, importncia dos fatores externos, as possibilidades de autonomia do crescimento, que haviam sido desqualificadas, voltam ordem do dia; so mais do que nunca, pertinentes(...) [o que] nos obriga a retomar a reflexo sobre os determinantes do desenvolvimento do capitalismo nos pases perifricos, cuja dependncia, principalmente tecnolgica e financeira, salta aos olhos neste momento de inflexo no mbito internacional (Goldenstein, 1994, p. 55). O imperialismo, em suas mais diversas manifestaes, tem se revelado uma necessidade histrica do capitalismo, decorrente de suas prprias contradies e necessidade de expanso, especialmente no que se refere tendncia de reduo das taxas de lucro, resultado da crescente concorrncia intercapitalistas, e dos problemas para a obteno de mais - valia, decorrentes da substituio cada vez mais ampliada da fora de trabalho, pelas diferentes formas de tecnologia. Da que O imperialismo no uma questo de escolha para uma sociedade capitalista: seu modo de vida (Magdoff, 1978, p. 22). No entanto, do ponto de vista das sociedades dominadas, cabe destacar a importncia da anlise a partir da noo de dependncia estrutural, um processo que se verifica nos pases perifricos, resultante do imperialismo exercido pelas sociedades dominadoras.

introduo

45

No capitalismo tardio12 observa-se o fenmeno do neocolonialismo, onde a explorao dos pases perifricos no se carateriza mais pelo domnio poltico exclusivo da metrpole sobre a colnia e pela pilhagem direta, mas pela troca desigual, caracterizada pelo domnio do mercado capitalista internacional, sobre pases exportadores de matriasprimas e de produtos com baixo valor agregado, dependentes financeira e tecnologicamente, e governados por classes polticas profundamente condicionadas pela estrutura da dependncia econmica. Concernente a isto, tem especial importncia a poltica neocolonialista praticada aps a Segunda Guerra Mundial, de forma mais intensa e direta pelos EUA. Sua atuao deu-se inicialmente atravs de relaes bilaterais, deslocando a partir da dcada de 70 para as relaes multilaterais, estabelecidas entre organismos internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, com os pases perifricos. O problema era que, desde a dcada de 70, o Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional, politicamente apoiados pelos EUA, vinham seguindo uma poltica sistematicamente favorecedora da economia de livre mercado, empresa privada e livre comrcio global, que servia economia americana de fins de sculo XX to bem quanto servira britnica de meados do sculo XIX, mas no necessariamente ao mundo (Hobsbawm, 1995, p. 556). Estes organismos, em seus mais de 50 anos de atuao, e em especial nas trs ltimas dcadas deste sculo, tm exercido papel fundamental no processo de expanso capitalista, atravs da internacionalizao do sistema financeiro e por meio das condicionalidades impostas aos pases que solicitam seus emprstimos. Contudo, o desenvolvimento e a atuao destes organismos, em particular o Banco Mundial, no foi homogneo durante todo o perodo de sua existncia. Houve inflexes significativas nos seus objetivos e na sua atuao, decorrentes das mudanas na relao que se estabelece entre os pases centrais e perifricos; da dinmica assumida pelo capitalismo aps a12

Conceito cunhado por Ernest Mandel (1982) para caracterizar o capitalismo internacional aps a Segunda Guerra Mundial. Segundo este autor, o capitalismo passou por trs fases: a livre-concorrncia, o imperialismo clssico e o capitalismo tardio. Nesta fase, alm da incorporao de elementos das fases anteriores

46

introduo

segunda guerra mundial e, em face das crises cclicas que este modo de produo enfrenta, impondo srias restries reproduo da vida material e espiritual dos povos. Nos 55 anos de existncia do Banco Mundial, em determinados momentos histricos, as suas estratgias de ao foram redirecionadas em funo de conjunturas econmicas, polticas e/ou sociais. O objetivo inicial desta instituio era de contribuir para a reconstruo fsica e econmica dos pases europeus, no imediato ps-guerra. Aps cumprir parcialmente com esta funo, dedicou-se, a partir da dcada de 50, ao crescimento econmico dos pases subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, financiando inicialmente projetos de infra-estrutura e, mais tarde, tambm em reas produtivas. Sua preocupao, a partir de finais da dcada de 60, sobretudo no plano retrico, esteve centrada na satisfao das necessidades humanas bsicas e no combate pobreza, muito embora concretamente a prioridade de investimentos permanecesse sendo a infra-estrutura. A nfase na satisfao das necessidades bsicas e no combate pobreza, questo que se relaciona diretamente a aspectos de sade, aparece como uma questo central para o Banco, associada questo do desenvolvimento econmico e da segurana externa. H indicativos de que isto ocorreu a partir da constatao de que o crescimento econmico ocorrido nos pases perifricos desde os anos 50 e nos anos 60, no tinha sido acompanhado de uma melhoria na qualidade de vida das pessoas; ao contrrio, houve um aumento da pobreza e das desigualdades sociais em todo o mundo. O prprio presidente do Banco Mundial, em 1972, reconhecia que En la mayoria de los paises en desarrollo estos incrementos no han llegado a los pobres en grado significativo asta ahora, a pesar de que durante los anos sesenta se alcanzaran tasas medias de crecimiento sin precedentes13 (McNamara, 1972, p.1067). Avaliava-se que esta situao poderia conduzir instabilidade social, preocupao manifestada em diversos momentos pelo ento presidente do Banco Mundial Robert Strang McNamara. Como por exemplo, em 1968, na Argentina, ao falar para a Sociedade Internacional de Imprensa alguns meses aps a sua posse: Me preocupa la rigidez de algunos sistemas sociales, en los que la masa de los habitantes es pobre y pocos son ricos,(explorao das colnias e semicolnias), em decorrncia dos monoplios e da revoluo tecnolgica, ocorre uma justaposio industrial global de setores dinmicos e setores subdesenvolvidos num mesmo ramo.

introduo

47

com escasas posibilidades para los ms de salir de esse estado de pobreza14 (McNamara, 1968, p.2); na Reunio Anual de Governadores do Banco Mundial e do FMI, em Washington em 1972, No se trata de un 1os pocos descontentos y resentidos. Se trata de cientos de millones de personas desesperadamente pobres dispersas por todo el mundo en desarrollo. Se trata del 40% de poblaciones enteras, al que el desarrollo sencillamente no alcanza de una manera efectiva. Sus pases estn creciendo en trminos econmicos brutos, pero en trminos humanos sus vidas continan estancadas15 (McNamara, 1972, p.1068), ou em discurso na XXXII Assemblia Anual de Governadores em Washington em 1977: certamente, o que uma pssima economia permitir que o cultivo da pobreza cresa e se difunda no seio de uma nao, a tal ponto que comece a infectar e erodir todo o tecido social. A pobreza na sua pior forma, como um vrus que contagia a amargura, o cinismo, a frustrao e o desespero. Nos anos 80, em funo da crise da dvida externa sofrida pelos pases perifricos, o foco de ao do Banco Mundial foi dirigido para os programas de ajuste estrutural e setoriais. Finalmente, na dcada de 90, retoma-se com grande nfase o discurso do combate pobreza e da necessidade de promover no s o crescimento econmico dos pases em desenvolvimento, mas tambm o desenvolvimento social, que integrao de todos os pases ao mundo globalizado. O discurso atual, manifestando preocupao com a questo da pobreza e do desenvolvimento social parece ser, de um lado a tentativa de responder s acusaes e constataes de que os emprstimos para programas de ajuste estrutural, fornecidos pelo Banco Mundial aos pases em desenvolvimento, desde o incio da dcada de 80, contribuiu para piorar o quadro social dessas sociedades, e de outro, o envolvimento com questes sociais possibilitaria esta instituio ampliar seu leque de ao para outros setores, justificando a sua prpria existncia e aumentando o seu poder e campo de interveno, conforme os seus prprios dirigentes admitem: Su excelente solvencia13

se daria mediante

Na maioria dos pases em desenvolvimento, estes ganhos no tm chegado aos pobres em grau significativo at agora, apesar de que durante os anos sessenta alcanaram-se taxas mdias de crescimento sem precedentes. 14 Preocupa-me a rigidez de alguns sistemas sociais, nos quais a grande maioria dos habitantes pobre e poucos so ricos, com escassas possibilidades para a maioria sair deste estado de pobreza. 15 No se trata de alguns descontentes e ressentidos. Trata-se de centenas de milhes de pessoas extremamente pobres dispersas por todo o mundo em desenvolvimento. Trata-se de 40% de populaes

48

introduo

financiera y su acceso a los mercados mundiales de capital permiten al Banco invertir ampliamente en las diversas comunidades, en sectores que van de la salud, la educacin y medio ambiente a la infraestrutura y la reforma de polticas 16 (Banco Mundial, 1995a, p.1). As pretenes de atuao/interveno explicitadas ou no em documentos do Banco Mundial no ocorrem mecanicamente, sem contrapontos e de igual forma em todos os pases e setores, mas que esta instituio exerce uma influncia e muita presso na definio das polticas nacionais isto inegvel. Cabe, ento, investigar o nvel e o grau dessa atuao/interveno, que nem sempre so explicitados e denunciadas por quem efetivamnete participa do processo decisrio.

inteiras, que o desenvolvimento no alcana de uma maneira efetiva. Esses pases esto crescendo em termos econmicos brutos; porm, em termos humanos as suas vidas continuam estancadas. 16 Sua excelente solvncia financeira e seu acesso aos mercados mundiais de capital permitem ao Banco investir amplamente em diversas comunidades, em setores que vo da sade, a educao e o meio ambiente infra-estrutura e a reforma de polticas.introduo 49

50

introduo

CAPTULO 1

52

captulo 1

O BANCO MUNDIAL E A IDEOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO: MEIO SCULO DE HISTRIA

1.1 O CONTEXTO HISTRICO EM QUE EMERGE O BANCO MUNDIAL Embora a sade s aparea como objeto de interesse poltico-ideolgico e de investimento do Banco Mundial no final da dcada de sessenta, necessrio resgatar a histria desta instituio, anteriormente a este perodo. Isso tanto para localizar historicamente esta instituio, como para compreender as disputas e os poderes envolvidos na sua prpria constituio, definio de polticas e estratgias de ao; poderes estes, que com raras mudanas, permanecem os mesmos. O Banco Mundial surgiu no bojo do esforo empreendido pelos futuros vencedores da Segunda Guerra Mundial, para estabelecer um arcabouo institucional multilateral, que assegurasse a estabilidade social e econmico-financeira no ps-guerra e garantisse um comrcio internacional sem fronteiras. O desejo dos lderes de um mundo destroado pela guerra era de no volver a caer nunca ms en las depreciaciones competitivas de moneda, imposicin de restricciones al cambio, cuotas de importacin y otros instrumentos que slo haban ahogado el comercio y hundido al planeta de cabeza en el conflicto ms devastador de todos los tiempos1 (George & Sabelli, 1994, p. 30). Os EUA capitaneavam as discusses, tendo particular interesse em criar condies para uma porta aberta2 expanso de sua economia. Este pas havia se beneficiado nas duas contendas mundiais pelo fato de estar distante e no ter sido destrudo fisicamente pelas Guerras, o que possibilitou o desenvolvimento de uma economia com capacidade de organizao e de expanso da produo como nenhum outro, tornando-se o maior fornecedor de arsenal blico e de produtos essenciais, que abasteceriam os exrcitos dos aliados. Este pas saiu da Segunda Guerra como a maior economia mundial, convicto deno voltar a cair nunca mais nas depreciaes competitivas de moedas, imposio de restries ao cmbio, cotas de importaes e outros instrumentos que s haviam asfixiado o comrcio e conduzido o planeta ao conflito mais devastador de todos os tempos. 2 Termo que expressa a poltica externa do governo americano a partir do final dos anos 40 e nos anos 50, que compreendia uma srie de atos e prticas polticas e diplomticas, visando a sua segurana externa e a ampliao de espaos para a difuso de seus excedentes econmico-financeiros.captulo 1 531

que era fundamental a recuperao das economias europias destroadas pela guerra, tanto para a sua prpria consolidao enquanto imprio econmico, como para evitar o avano do comunismo. A dinmica que se estabeleceu no ps-guerra, contribuiu para expandir e disseminar os princpios da produo fordista para os pases europeus e outras regies, o qual era muito mais do que uma nova base tcnica de produo, mas constitua-se em um novo padro civilizatrio (Lopes, 1999, p.208). A partir disso, pode-se pensar que a mobilizao empreendida por meio de polticas e planos para a reconstruo material dos pases europeus, no decorria de uma ao humanitria dos EUA e aliados, mas sobretudo, da compreenso que se tinha de que os povos no suportariam outro perodo de calamidade, semelhante ao vivido entre 1914 e 1945, cujo resultado foi o surgimento do fascismo, que teve vrias mscaras, mas inegvel que em sua essncia ele representou o drama da vingana do poltico contra as pretenses de autonomia do econmico (Beluzzo, 1995, p. 11). O perodo compreendido entre as duas Grandes Guerras mundiais foi caracterizado por Eric Hobsbawm (1995), como uma era de catstrofes. Neste espao de tempo, alm destas Guerras, ocorreu uma onda de revoluo global e uma crise econmica mundial, seguida de uma depresso que abalou todas as economias capitalistas. O impacto desta era de contendas se estendeu totalidade das dimenses da vida, envolvendo todos os cidados e mobilizando a maioria, impondo enormes tenses fora de trabalho, com momentos de extensa mobilizao de mo-de-obra e outros de dispensa macia de trabalhadores. nesta era, revolucionou-se a administrao e promoveu-se o desenvolvimento tecnolgico, sem contar o impacto humano deste perodo. Neste campo, houve um retorno e um aumento da brutalizao, com a execuo das maiores atrocidades, democratizou-se a guerra, tornando alvos tanto militares como civis, promoveu-se as maiores crueldades impessoais, j que matar e estropiar se tornou a conseqncia de uma deciso remota de apertar um boto ou girar uma alavanca, gerando com isto, milhes de refugiados e aptridas, sem contar com a morte de outros milhes em campos de concentrao, em batalhas diretas ou em decises operacionais a distncia (Hobsbawm, 1995, p. 57). Se a experincia da Primeira Guerra Mundial e das dcadas que se seguiram havia sido dramtica, como explicar, ento, a segunda guerra nas propores em que se deu. De fato, os resultados da Primeira Guerra Mundial no impediram a segunda, pelo contrrio, a54 captulo 1

gestaram. A paz punitiva, culpa de guerra imposta Alemanha, no final da Primeira Grande Guerra, atravs do Tratado de Versalhes, debilitou ainda mais as poucas possibilidades de restaurar a Europa estvel do incio do sculo. A tentativa de instituir um consrcio das grandes potncias, na Liga das Naes, para dirimir diplomaticamente as divergncias entre os Estados Nacionais, estava fadada ao fracasso com a recusa de participao dos EUA, que naquele momento j se constituam em uma grande potncia mundial. O ressentimento dos derrotados, em especial a Alemanha, que caracterizava como injusto e inaceitvel o tratado estabelecido,3 associado insatisfao do Japo e da Itlia, na partilha que se deu aps a Primeira Guerra, alimentado por um contexto de crise dramtica da economia mundial, possibilitou a subida ao poder, na Alemanha e no Japo, de foras polticas de extrema direita, decididas a romper de qualquer forma e com quaisquer armas a situao estabelecida. Dentre outras razes, a insatisfao poltica interna destes trs pases e a sua disposio agresso, foram fatores decisivos para desencadear a Segunda Guerra Mundial; entretanto, no foi somente o brio ferido que motivou esta guerra, mas fundamentalmente a conjuntura econmica internacional, vivida nos anos 20 e 30 deste sculo, que estava marcada por um capitalismo, ... cada vez mais poderoso em sua capacidade de criar e destruir, de transformar a concorrncia em monoplios, de praticar o protecionismo, de arrasar as moedas nacionais, de causar o desemprego de homens e a paralisao de mquinas. Revelaram tambm estes anos loucos e trgicos que as sociedades podem reagir violncia cega e desagregadora das leis econmicas com as armas da brutalidade, do voluntarismo poltico e da impiedosa centralizao das decises (Belluzzo, 1995, p. 11).

O Tratado de Versalhes impunha reparaes fantasiosas Alemanha, pagamentos dos custos de guerra, estipulado, em 1921, em 33 bilhes de dlares, que a obrigava a realizar altos emprstimos junto aos EUA. O referido tratado privava a Alemanha de ter uma marinha e uma fora area efetivas, limitava seu exrcito a 100 mil homens, impunha a ocupao militar de parte da Alemanha e a privava de todas as suas antigas colnias no ultramar (Hobsbawm, 1995, p. 41).captulo 1 55

3

Neste sentido, as foras que haviam combatido o fascismo na Segunda Guerra, sabiam que era fundamental estabelecer mecanismos de controle para o capitalismo da grande empresa e para o capital financeiro, limitando os megapoderes privados oriundos do liberalismo reinante, que havia conduzido o mundo capitalista ao colapso econmico, Grande Depresso do final dos anos 20 e incio dos anos 30 e Segunda Guerra Mundial. Se a Grande Depresso, foi tributada aplicao da ortodoxia do livre mercado, cujos princpios ficaram desacreditados na poca, s a incrvel memria curta dos economistas tericos e prticos do conta de explicar o seu ressurgimento, com tanta energia, nas ltimas dcadas deste sculo (Hobsbawm, 1995, p.107). As conseqncias polticas imediatas da Grande Depresso4 e da Segunda Guerra foi a destruio temporria ou o refluxo imposto ao liberalismo econmico por meio sculo, alm da obrigao impingida aos governos ocidentais em priorizar as questes sociais em relao as econmicas, quando do estabelecimento de suas Polticas de Estado. Os perigos em no proceder desta forma era uma radicalizao esquerda ou direita (Hobsbawm, 1995). Estava claro que para a manuteno da paz, os acordos e estratgias que deveriam ser estabelecidos no segundo ps-guerra, no poderiam cometer os mesmos erros do primeiro. A paz no seria duradoura se permanecessem os mesmos ressentimentos, ou outros de carter poltico, econmico ou social. Esta certeza impunha a realizao de aes concretas para a recuperao e reinsero, na economia mundial, dos pases destroados pela Guerra. As foras sociais e os homens de poder incumbidos de reconstruir as instituies capitalistas do ps-guerra estavam prenhes desta convico. Para evitar a repetio do desastre era necessrio, antes de tudo, construir uma ordem econmica internacional capaz de alentar o desenvolvimento, sem obstculos, do comrcio entre as naes, dentro de regras monetrias que garantissem a confiana na moedareserva, o ajustamento no deflacionrio do balano de pagamentos e oO drama da Grande Depresso foi potencializado pela forma com que a Unio Sovitica se comportou diante da crise. Enquanto os pases capitalistas ocidentais viam sua economia se estagnar ou retroceder, a URSS vivia um processo de industrializao fabuloso com a aplicao dos Planos Qinqenais, estratgia4

56

captulo 1

abastecimento de liquidez requerido pelas transaes em expanso. Tratava-se, portanto, de erigir um ambiente econmico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as polticas nacionais de desenvolvimento, industrializao e progresso social (Belluzzo, 1995, p. 11/12). As negociaes para criar instituies capazes de gerar uma nova ordem econmica internacional, que culminaria com a Conferncia Monetria e Financeira das Naes Unidas, conhecida como Conferncia de Bretton Woods,5 comearam em dezembro de 1941. Harry Dexter White, auxiliar do Secretrio de Fazenda americano Henry Morgenthau, homem de confiana do Presidente Roosevelt, e Jonh Maynard Keynes, representante do governo britnico, foram os homens escolhidos para esta tarefa. Logo aps a assinatura da carta de Atlanta6 pelo presidente americano e pelo primeiro ministro britnico, em agosto de 1941, Keynes e White foram incumbidos de esboarem uma planificao para a poltica econmica internacional do ps-guerra. Roosevelt, antes de assinar a referida carta e entrar definitivamente na guerra, disse a Churchill, que para construir e manter a paz era necessrio acabar com os acordos especiais entre a GrBretanha e suas colnias e promover a igualdade entre os povos, o que, segundo ele, implicaria no livre comrcio entre todos. A resposta que obteve de Churchill foi de que embora isto acabasse com o imprio Britnico no tinha outra alternativa. Aps este dilogo foi assinada a carta, onde um dos pontos principais era de que depois da guerra todos los pases, grandes o pequeos, victoriosos o vencidos, debern tener acceso en igualdad de condiciones a los mercados y a las materias primas del mundo que requieran para su prosperidad econmica7. A disputa entre EUA e Gr Bretanha pelo predomnio na economia mundial, que j vinha acontecendo desde o primeiro ps-guerra,8 manifestou-se tambm no debate acirradoque foi posteriormente plagiada e adotada por quase todos os pases liberais ou nacionalistas do ocidente e mesmo do oriente. 5 Este encontro, ficou conhecido por este nome, porque foi realizado em Bretton Woods, uma pequena cidade americana do Estado de New Hampshire, em julho de 1944. 6 Acordo que selou a entrada dos EUA no Bloco dos Aliados na Segunda Guerra mundial. 7 todos os pases, grandes ou pequenos, vitoriosos ou vencidos, deveriam ter acesso em igualdade de condies aos mercados e s matrias primas que necessitassem para a sua prosperidade econmica. 8 O momento inicial em que a Gr Bretanha mostrou uma certa debilidade em sua hegemonia econmica em nvel mundial, ocorreu com a queda do padro ouro, adotado pela legislao bancria inglesa em 1821 e irradiado para muitos pases, tendo especial importncia entre 1870 e 1913, perodo em que a Gr Bretanhacaptulo 1 57

entre os seus representantes, e no encaminhamento das propostas na Conferncia de Bretton Woods. Este evento serviu para deixar claro o propsito compartilhado de propugnar por um desenvolvimento econmico mais equilibrado e multilateral, mas tambm demonstrou as divergncias que j separavam as concepes norte-americana e inglesa, as quais voltariam a emergir com maior fora em plena discusso dos planos Keynes e White. Estes documentos se situaram em uma mesma linha de princpios baseados na necessidade do equilbrio e da multilateralidade das relaes econmicas internacionais. No obstante, diferem no seu contedo e na sua instrumentao (Lichtensztejn & Baer, 1987, p. 27). O Plano Keynes (ingls) e o Plano White (americano), apresentavam divergncias fundamentais em duas questes. A primeira era quanto ao padro monetrio internacional, ou seja, o meio de pagamento internacional e a estratgia de regulao de sua quantidade, e a segunda, relacionava-se forma de realizar os ajustes nas balanas de pagamentos dos pases associados. No que se refere primeira questo, as opes colocadas era a da criao de outra forma de dinheiro o bancor, proposta por Keynes, ou restabelecer o padroouro,9 defendido por White. Quanto segunda questo-chave em disputa, apesar das duas propostas preverem a eliminao das restries e prticas cambiais discriminatrias no comrcio internacional, os mecanismos de ajuste nas balanas de pagamentos, segundo a proposta americana, s seriam aplicados aos pases deficitrios, dessa forma, os EUA, pastinha hegemonia econmica e imperava no mundo do ponto de vista da indstria, do comrcio e poltico militar. Com a Primeira Grande Guerra, ocorreu uma redefinio na estrutura econmica mundial, pois a economia americana e a alem, fundadas em novas bases de produo, ganharam competitividade e impuseram perdas na posio da Gr Bretanha. Na esfera financeira, a suspenso da convertibilidade em ouro de quase todas as moedas durante o conflito blico, a inflao generalizada e a existncia de novas prticas creditcias atuaram em detrimento do padro ouro - esterlina (Lichtensztejn & Baer, 1987, p. 22). A Gr Bretanha acabou abandonando este padro em 1931. 9 O padro ouro - referencial das relaes e das polticas financeiras internacionais, representava um conjunto de regras relativas a criao e a circulao do dinheiro em dois nveis, no mbito nacional e internacional sintetizados nos seguintes princpios: Em nvel nacional, 1) emisso do dinheiro baseado no ouro, que admitia a utilizao de moedas desse metal ou notas cobertas por uma garantia proporcional e 2) reconhecimento da livre converso das notas ao ouro que as garantia, fossem os seus portadores nacionais ou estrangeiros. E em nvel internacional, 1) o pagamento das transaes seria por intermdio do ouro, o qual podia ser livremente exportado e importado e 2) as relaes de cmbio entre moedas nacionais seriam

58

captulo 1

superavitrio, no precisaria submeter suas polticas econmicas s regras do ajuste. O que Keynes defendia era a existncia de mecanismos corretores globais para todos os pases membros, independente de sua situao quanto s suas receitas e despesas. Nas duas questes, os participantes da Conferncia de Bretton Woods, definiram-se pela proposta americana, j confirmando a hegemonia deste pas na referida conferncia, e tambm no cenrio internacional. A aprovao da proposta americana, no que se refere ao equilbrio nas balanas de pagamentos, trouxe resultados danosos para os pases perifricos com srias repercusses at os dias atuais, pois impe o peso dos ajustes econmicos depressivos, somente aos pases deficitrios que recorrem ao FMI para sanar sua balana de pagamentos, ao passo que pases como os EUA, que tm enormes dficit em sua balana de pagamentos, no esto submetidos s mesmas regras. Este mecanismo tem contribudo para aumentar o fosso entre os pases ricos e os pases pobres (Lichtensztejn & Baer, 1987). Durante a Conferncia de Bretton Woods, atravs do Plano White, os EUA recuperaram o ouro como instrumento de reserva internacional, encobrindo um privilgio americano, uma vez que