sociedade pos moderna sidekum[1]

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    Sociedade Ps-Moderna:luzes e sombras

    Andr Roberto Cremonezi

    Rogrio Baptistella(Organizadores)

    2011

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    Editora Nova Harmonia Ltda. 2011

    Caixa Postal 6093150-000 Nova Petrpolis/ RSwww.novaharmonia.com.br

    Conselho Editorial:Alejandro Serrano Caldera UAM, Nicargualvaro B. Mrquez-Fernndez Maracaibo, VenezuelaAmarildo Luiz Trevisan UFSMAntonio Sidekum PresidenteChristian Muleka Mwewa UNISUL/ SCGiovani Meinhardt IEI IvotiJohannes Schelkshorn Uni-Wien, ustriaLuiz Carlos Bombassoro UFRGSNadja Hermann PUCRSRal Fornet-Betancourt Aachen, Alemanha

    Editorao: Oikos

    Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

    Impresso: Evangraf

    Sociedade Ps-Moderna: luzes e sombras. / Organizadopor Andr Roberto Cremonezi e Rogrio Baptistella Nova Petrpolis: Nova Harmonia, 2011.

    168 p.; 14 x 21 cm.

    ISBN 978-85-89379-??-?

    1. I. Cremonezi, Andr Roberto. II. Ttulo.

    CD U

    S

    Catalogao na publicao:

    Leandro Augusto dos Santos Lima CRB 10/ 1273

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    Sumrio

    Apresentao ..................................................................... 7

    Husserl, Levinas e a crise do projeto transcendentalda modernidade ............................................................... 13

    Marcelo FabriNotas sobre a formao do conceito de experinciade Walter Benjamin .......................................................... 30

    Paulo Rudi Schneider

    Niilismo: origens e desdobramentos .................................. 49Valdemar Antonio Munaro

    Ps-Modernidade: um olhar sociolgico ........................... 70

    Ricardo RossatoPs-Estruturalismo sem estruturalismo: Para almdo temor da escrita, uma leitura de Deleuze ...................... 87

    Humberto GuidoLcia Estevinho-Guido

    O gnio criativo em Giambattista Vico ................................ 98Andr Roberto Cremonezi

    Por um sujeito intramundano da histria, segundoIncio Ellacuria .............................................................. 106

    Rogrio Baptistella

    Pensar Ricoeur: uma introduo a filosofia ricoeuriana ... 128Elsio Jos Cor

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    tica como racionalidade aberta alteridade em Levinas .. 137

    Marcos Alexandre AlvesGomercindo Ghiggi

    Notas sobre a transcendncia e a integralidade emEmmanuel Levinas ......................................................... 153

    Ricardo Antonio Rodrigues

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    Apresentao

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    Husserl, Levinas e a crise do projetotranscendental da modernidade

    Marcelo Fabri1

    Husserl e Levinas, sob muitos aspectos, podem ser lidosa partir da reflexo crtica que realizaram sobre a modernida-de. Mais especificamente, pode-se dizer que os dois filsofosprocuraram oferecer sadas para um mundo s voltas com umacrise de sentido sem precedentes. No caso de Husserl, a moder-nidade se descobre ameaada por uma deriva objetivista e po-sitivista, deriva esta que comprometeu o sentido autntico doprojeto transcendental que marcou o incio da nova humani-dade. Na perspectiva husserliana, a objetivao realizada pe-las cincias naturais, que emerge como consequncia inevit-vel da matematizao da natureza proposta por Galileu, nopode responder acerca do sentido que orienta a existncia hu-mana no tempo. A objetivao do mundo, levada a cabo pelacincia e corroborado pela filosofia moderna, no permite co-locar a questo do sentido e da orientao. Para Husserl, suma retomada do sentido transcendental da histria e da sub-

    jetividade poderia resistir a essa deriva positivista da razo

    moderna, bem como auspiciar um novo comeo para a filoso-fia. O sentido da histria deve ser retomado pela subjetividadeque o acolhe e leva adiante, sob a forma de vida responsvel,vale dizer, vida para a razo e pela razo.

    1 UFSM.

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    FABRI, F. Husserl, Levinas e a crise do projeto transcendental da modernidade

    Mas, e se a crise for mais do que um erro de percurso? E

    se o advento da modernidade, simbolizado pelo cogito cartesia-no, fosse tambm constatao da possibilidade de um no-sen-tido que obstrui o suposto sentido teleolgico da histria? Se oedifcio do conhecimento tem de comear a partir de um sujei-to transcendental ou ego humano que medita, porque nadade seguro se encontra em nossas mos. a prova de fogo, apassagem pelo inferno, dir Husserl comentando a dvida car-tesiana. o sujeito pensante s voltas com o abismo do no-sentido e da negao, dir Levinas.

    Como quer que seja, o sujeito moderno se caracterizapela separao. Esta um destacamento ou desvinculao dosujeito em relao ordem do mundo. Como consequnciadesta ruptura, dois caminhos se apresentam: a) domnio danatureza pelo qual tudo o que outro assimilado aos projetosdo homem (opo que trouxe ao mundo contemporneo, pa-radoxalmente, a alienao do prprio eu dominador que ora sedescobre aprisionado no prprio saber) ou b) compreender a se-

    parao como possibilidade de transcendncia, isto , como rup-tura da totalidade e acolhimento do outro. Se o ponto de par-tida de Husserl o eu sensvel, concreto, corporalmente presenteno mundo da vida, Levinas dir que no menos importante opoder de falar deste sujeito. O falar, entendido como orientaoao interlocutor ou exposio ao outro, permite repensar o con-ceito de transcendental a partir do sentido tico do inter-huma-no. O transcendental levinasiano ser, assim, no a proposta de

    retomar a ideia-fim (univocidade) inerente ao mundo ocidental,mas o espao em que a multiplicidade do sentido garantidapela irredutibilidade da relao inter-humana.

    1. Husserl e a crise do transcendentalismo moderno

    Em sua obra de maturidade, Husserl mostrou que a criseda humanidade europeia no est na cientificidade que as ci-

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    ncias tornam possvel, mas sim na cegueira no que diz respei-

    to viso global da vida. As cincias positivas nada dizem so-bre ns mesmos, sobre a vida e sobre o sentido da histria. Nadado que subjetivo tem importncia para a viso cientfica demundo. Tambm as cincias do homem, ao atentarem para oser humano de fato, devem suspender todo posicionamentoaxiolgico que caracteriza a existncia humana no tempo (Cf.HUSSERL, 1976, p. 11). Para Husserl, preciso colocar ques-tes sobre as normas e os ideais, vale dizer, sobre aquilo quepara o ser humano incontornvel em termos de orientaono mundo. Nenhuma cincia de fatos pode pr ou resolver es-sas questes. Mais do que uma crtica objetividade das cinci-as, o tema da realidade finita e factual que se encontra em

    jogo. Husserl inquieta-se diante da possibilidade de que as re-gras de vida, os ideais e as normas sejam interpretados comosendo apenas ondas passageiras, ou fatos histricos.

    Da sua preocupao com o ideal da modernidade, parao qual a razo seria um ttulo para as ideias e os ideais absolu-

    tos, eternos, vlidos incondicionalmente (Cf. HUSSERL, 1976,p. 14). Que entender por ideal? Husserl responde com outra ques-to: qual o sentido da histria? Somente se soubermos o queso o sentido do humano e o sentido do mundo que podere-mos respond-lo. Como se v, a questo do sentido que secoloca, de modo enftico, pelo homem moderno (Cf. HUSSERL,1976, p. 14). Pois a nova humanidade est s voltas com apossibilidade de uma renovao, e isto significa, para Husserl,

    que ela est em busca de sua verdade (Cf. HUSSERL, 1976, p.20). O gesto filosfico cumpre, aqui, um papel decisivo, pois, naperspectiva husserliana, desde o seu nascimento entre os gregosantigos, tal gesto o sentido de nossa histria.

    Nossa histria tem, pois, um sentido, um Telos, um eidos:a filosofia, entendida como forma ideal de cultura. A histriaeuropeia traz em seu ncleo esta ideia de uma cultura autnti-ca, a forma espiritual que aponta para a teleologia histrica de

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    fins racionais infinitos (Cf. CRISTIN, 1999, p. 20 e ss.). A filo-

    sofia cincia universal. Ela implica um movimento de liber-dade. Mais ainda: ela exige uma conscincia de responsabili-dade que se traduz em reflexo histrica (Cf. GHIGI, 2004, p.22 e ss.). Ns somos responsveis pela deciso inerente vidafilosfica, no podemos nos esquivar diante da tarefa de res-ponder pelo sentido e pela renovao de nossa prpria cultura.Na ideia de filosofia j se encontra a ideia de justificao lti-ma, de tomada de conscincia radical, isto , de prxis racio-nal. Infelizmente, esta ideia ficou comprometida no decorrerda prpria histria moderna, que, para Husserl, seria a maiorinteressada e responsvel por sua reativao ou renovao. Elequer, assim, realizar este sentido, esta ideia, fazendo a passa-gem de uma razo apenas latente para uma autntica vida demtodo (Cf. HUSSERL, 1999).

    Mas eis que chegamos ao drama mesmo da fenomenolo-gia transcendental e da interpretao que tal fenomenologiafaz da crise da Europa moderna. H usserl quer pensar a huma-

    nidade ideal em contraposio humanidade contingente, en-tendida como aquela que se encontra perdida em meio a ou-tras, sendo apenas mais uma entre as historicidades existentes(Cf. HUSSERL, 1976, p. 22). De nossa parte, perguntamos:como conciliar esta posio com o lamento da perda do mun-do da intuio e do corpo, o chamado mundo da vida, mundoeste que o mais concreto possvel, do ponto de vista da exis-tncia sensvel e histrica do ser humano? Ao que parece, no

    a ideia como sentido abstrato ou desencarnado que interessa aHusserl, mas sim o retorno ao mundo concreto, que foi perdi-do com a objetivao metdica do mundo da intuio (Cf.HU SSERL, 1976, p. 48). O mundo moderno, em termos cien-tficos, isto: o resultado da substituio da natureza pr-cien-tfica dada na intuio por uma natureza idealizada. Para com-preendermos as doaes de sentido que tornam possvel o mun-do das vestimentas ideais preciso retornar, reflexivamente, ao

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    mundo em que vivermos corporalmente e pessoalmente. A ra-

    zo cientfica, que abstrai deste mundo, uma razo oculta, umavez que no conhece a si mesma (Cf. HUSSERL, 1976, p. 61).Na nossa perspectiva, o paradoxo da concepo fenome-

    nologia de histria este: ao propor que toda idealidade supeo mundo concreto, em que sujeitos doam sentido constituindotudo o que significativo e objetivamente vlido, entende-se,ao mesmo tempo, que o sentido uma forma espiritual quese evidencia graas a um retorno ao conceito transcendental desubjetividade. Em outros termos, o sentido da histria no estna prpria histria, nem na vida concreta, mas na ideia, noTelos que a histria e a vida tentam realizar. Ricoeur assim serefere ao paradoxo da noo husserliana de histria:

    Por um lado, ela se torna incompreensvel se no for umanica histria, unificada por um sentido, mas, pelo outro,perde sua prpria historicidade se no for uma aventura im-previsvel (...). Ora, se a unidade da histria concebida vi-gorosamente por Husserl, em compensao, nele a prpriahistoricidade da histria constitui uma dificuldade (RI-COEUR, 2009, p. 54).

    A reflexo histrica husserliana visa a uma compreen-so de ns mesmos, busca a clareza sobre o que significa o esp-rito moderno. Toda histria da filosofia, desde o surgimentoda teoria do conhecimento, no outra seno a luta entre obje-tivismo e transcendentalismo. Para Husserl, s este ltimo per-mitiria erradicar o naturalismo que ameaa a modernidade. Porque o sentido irredutvel objetivao? Porque a subjetivida-

    de aquela que, mesmo de maneira prvia e ingnua, doa osentido pelo qual o mundo se torna possvel. O mundo nopode prescindir da conscincia que doa sentido. essa mesmasubjetividade que, num segundo momento, realiza a objetiva-o do mundo (racionalizao). Sem o primeiro momento, aracionalizao (objetivao) no seria possvel.

    O pai fundador desse, digamos, esprito transcendentalda filosofia moderna Descartes. Husserl compreende que a

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    fenomenologia deve realizar aquilo que Descartes descobriu,

    mas que o seu dualismo deixou escapar: a subjetividade trans-cendental em sua riqueza inesgotvel. Mesmo assim, o filsofofrancs realizou uma epochsem precedentes. Diferentementedo ctico antigo que, para buscar a serenidade ou sabedoria,punha em questo o conhecimento humano que pretendesseultrapassar as aparncias subjetivas e relativas, Descartes, paradar origem a uma autntica filosofia racional, atravessa o inferno(Cf. HUSSERL, 1976, p. 89. Grifo nosso). Ou seja, segundoHusserl, Descartes coloca em suspenso o inteiro conhecimentodo mundo. Sem isso, ele no chegaria ao princpio fundamen-tal que sustenta toda a sua filosofia. De nossa parte, pergunta-mos: por que Husserl fala em passagem pelo inferno? Pensa-mos que no se trata da questo da possibilidade ou no doconhecer, mas sim da possibilidade ou no do sentido. Eis oque Husserl deixa entrever em sua afirmao. Para fundar umafilosofia universal, deve-se ir s ltimas consequncias da an-gstia trazida pela dvida: a possibilidade de que o sentido possa

    perder-se. Como assim? que a subjetividade moderna o resultado de uma se-

    parao, vale dizer, de uma vida que, para conhecer, precisadestacar-se do ser que ser conhecido. O existente separado te-ria, ento, uma origem a partir de si mesmo, pois uma interi-oridade que no pode ter acesso a outro que si mesmo. A cons-cincia que conhece substncia isolada, aquilo pelo que elaexiste a partir de si mesma, ou seja, de modo separado (Cf.

    LEVINAS, 1974, p. 24). a subjetividade para a qual nada exterior, uma vez que as vrias modalidades de seu existir estona dependncia de uma vida caracterizada pelo pensamento.

    Por que no explorar a riqueza do mundo subjetivo des-coberto? Descartes um filsofo que permaneceu marcado pelainfluncia de Galileu, insistindo em distinguir entre naturezafsica (mundo dos corpos separado) e mundo psquico (esferada subjetividade). Com isso, ele ficou marcado pelo objetivis-

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    mo, pois o ego descoberto pela epochno um eu que possa

    ter outros fora de si ou co-presentes (HUSSERL, 1976, p. 95).O que escapou a Descartes? Que as distines entre eu e tu,entre interior e exterior, so distines constitudas no ego. Este,em sua vida psquica, que poderia ser interrogada e exploradasistematicamente, fica relegado ao mbito de uma psicologiapor vir (Cf. HUSSERL, 1976, p. 95). Com este gesto, Descar-tes comprometeu o sentido do transcendental que ele legou,paradoxalmente, filosofia moderna, a saber: a historicidadetranscendental subjetiva, que a nica autenticamente origin-ria (HUSSERL, 2004, p. 110).

    2. Cogito, contingncia e assimilao

    Para Husserl, o retorno ao projeto transcendental no-realizado da modernidade implica a redescoberta do mundoda vida, mundo este sem o qual nenhuma formao de sentidoou de conhecimento vlido seria possvel. Mas o sentido, ele

    mesmo, algo evidente? O sentido pode ser identificado a umaideia, a uma forma ideal, a um Telos? O otimismo de Husserlno esconderia uma sombra, um lado obscuro que tambmdescoberta da modernidade? No representa a modernidadeum possvel experimentar uma total perda do sentido? No apassagem pelo inferno (epochcartesiana) que merece elucida-o? Seria o transcendental uma garantia contra o no-sentidoda histria?

    Para responder a isso, preciso reconhecer que um exer-ccio fenomenolgico da dvida cartesiana revela um abismovertiginoso, resultado da prpria negao operada pelo sujeitoque realiza a epoch. A dvida sobre as evidncias da conscin-cia desemboca na prpria evidncia da negao. isso queensina Levinas, em uma das pginas mais surpreendentes deTotalidade e Infinito. Trata-se de uma nova negao. Seu nvel outro e mais profundo que o da primeira. Uma descida, uma

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    queda no abismo caracteriza o cogito cartesiano. O cogito, en-

    quanto tal, no nem raciocnio nem intuio. O que ele ?Descartes se aventura numa obra de negao infinita, que certamente obra de um sujeito ateu que rompeu com a parti-cipao, o qual (ainda que apto, pela sensibilidade, ao assen-timento) permanece incapaz de uma afirmao; em um mo-vimento em direo ao abismo que arrasta vertiginosamenteo sujeito, incapaz de se deter (LEVINAS, p 1974, p. 66).

    A separao, o poder de comear, a ruptura de toda par-ticipao na ordem do ser indicam uma negao que o cogito

    por si mesmo no pode pr fim. Descartes busca uma certeza,mas logo que a mudana de nvel ocorre (a evidncia da pr-pria negao), v-se numa descida vertiginosa. N o fosse umaexterioridade ou orientao para algo que est fora do prpriocogito, a vertigem no teria fim. Eis por que, para Levinas, oGnio Maligno no simples possibilidade da mentira, mas deperda de todo sentido, isto , impossibilidade de afirmar e denegar, numa palavra, mistificao sempre possvel do mbito do

    aparecer (Cf. LEVINAS, 1974, p. 66). A liberdade do sujeitopensante tem como consequncia inevitvel o risco sempre imi-nente de uma mistificao, isto , de que o aparecer se transfor-me em aparncia ou iluso. A modernidade, neste caso, no agarantia de que a razo pode lanar luz sobre o real, mas sim deque a teoria no pode proteger-nos da sombra e da mistificao.

    De nossa parte, pensamos que outra face desta possvelmistificao se encontra na fratura que a emergncia do eu pen-sante provoca no mundo natural e social. A modernidade, emsua origem, j nasce de uma fratura. Eis o que ensina Walden-fels, filsofo que, ao partir de Husserl, coloca em questo a pre-tenso egolgica da fenomenologia, sobretudo atravs de refe-rncias que vo de Nietzsche a Foucault, de Merleau-Ponty aLevinas. Na perspectiva de Waldenfels, o projeto da modernida-de se caracteriza pela crtica da ideia tradicional de um cosmosfechado, de uma ordem pronta, de uma estrutura hierrquica dealteridades relativas. O cogito, afirma o filsofo, o emblema deste

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    A perda da Totalidade permite interpretar e isso que

    faz Levinas a modernidade como nostalgia da unidade. Ohumano investe a natureza, eis a diferena em relao ao cos-mos tradicional. Tudo se torna humano, isto , nada pode retor-nar ao fundo natural de onde emerge: animais e plantas fossili-zados se tornam objeto de curiosidade (museus, por exemplo),de pesquisa, de saber. Que a modernidade, neste caso, senoum aperfeioamento da tortura, uma tentativa reiterada e sofis-ticada para transpor o humano no reduto da prpria natureza?Na perspectiva levinasiana, trabalho, talento e gosto so aquiloque permite avaliar e pesar coisas e obras de arte. Estas se refe-rem, na modernidade, aos meios tcnicos de produo. Da aimportncia da teoria, das instituies cientficas e artsticas. Daa importncia de homens reunidos, agindo e falando, ordenan-do e obedecendo. Para Levinas, as condies transcendentaisso uma componente decisiva da modernidade.

    Na modernidade, as regras e as normas da pesquisa, do dis-curso e da criao, os imperativos e as proibies, bem como

    os costumes e os hbitos so os conceitos elaborados e fixa-dos por uma razo humana que os filsofos denominam con-dies transcendentais (LEVINAS, 1989, p. 63).

    Da a importncia da abstrao, da cultura literria, doslivros. No h retorno possvel natureza seno por abstrao,pensamento ou poesia. A civilizao toma conta de tudo. Acivilizao, afirma Levinas, uma segunda natureza graas qual tudo o que outro apropriado, tornado meu.

    Por todos os lugares o outro da natureza envolvido no desg-nio ou no projeto ou aspirao doMesmo (Cf. LEVINAS, 1989,p. 63). Os atos humanos so sensatos enquanto negatividadeou recusa da permanncia natural do ser em si mesmo. Dianteda brutalidade natural, cabe ao homem converter essa barbrieem sentido. Como se d esse acordo, essa converso? Esta ques-to , segundo Levinas, decisiva para compreendermos a mo-dernidade ou cultura moderna. Ora, se no cosmos tradicionala totalidade estava dada e o sentido, realizado, a modernidade

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    se interpreta como movimento de assimilao. O eu se torna,

    ento, totalizante. A natureza, por sua vez, ter sua alteridadeeliminada, pois ela golpeia e agride a unidade do Mesmo, en-tendido como eu humano (Cf. LEVINAS, 1989, p. 65). Nestecaso, todo o projeto transcendental, cartesiano ou kantiano,interpreta-se como cultura do saber e da auto-reflexo, ou ain-da, como cultura da unidade do idntico e do no-idntico.Em que desembocar este projeto?

    3. Por um transcendental ps-modernoO grande paradoxo da modernidade talvez seja o mundo

    contemporneo. O que posto em questo nesse mundo? Exa-tamente a pretenso de uma aproximao cada vez maior en-tre o sujeito e o mundo. Como assim? que possvel pergun-tar se a tomada de conscincia de si, no saber, que o cogito car-tesiano representa, no terminara gerando, paradoxalmente, adiferena entre o eu e o mundo, entre o eu e o si-mesmo. Osujeito moderno buscou destacar-se do ser para se afirmar comorazo pensante, dominadora da natureza. Buscou igualmentepensar-se a partir de valores ticos e em termos de humanida-de. Mas tal projeto colocou no saber as condies da racionali-dade. O mundo contemporneo talvez o resultado paradoxaldeste esforo de afirmao da subjetividade transcendental. assim que, segundo Levinas, o sujeito desaparece ou se perdena trama do prprio saber. Ora se as condies da racionalida-

    de esto no saber, preciso notar queUma espcie de neocientismo e de neopositivismo domina opensamento ocidental. Ele se estende aos saberes que tm ohomem como objeto, se estende s prprias ideologias, dasquais se desmontam os mecanismos e se mostram as estrutu-ras. A formalizao m atemtica praticada pelo estruturalis-mo constitui o objetivismo do novo mtodo, conseqente aoextremo. Na nova cincia do homem, o valor jamais servirde princpio de inteligibilidade (LEVINAS, 20002, p. 23).

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    Levinas fenomenlogo quando prope uma reduo

    deste drama. No mundo contemporneo, o ser humano seriadesvelado objetivamente a partir de um fenmeno mecnico (pul-so ou instinto). O valor no mais suscita desejo, pois o contr-rio que parece imperar, ou seja, o desejvel que, hoje, assume acondio de valor (Cf. LEVINAS, 2002, p. 23). O valor, afirmaLevinas, no est no seu fim ou racionalidade, como pensavamEspinosa e Husserl, mas no prprio movimento que o anima.Comea, a, a morte de Deus. Compreende-se, a igualmente,que a axiologia se subordina no a um fim ou valor, mas aosdesejos e pulses de mquinas desejantes que somos ns (Cf.LEVINAS, 2002, p. 24). Diante deste estado de coisas, anuncia-se a crise do projeto transcendental da modernidade:

    A nova teoria do conhecimento no confere mais nenhumafuno transcendental subjetividade humana. A atividadecientfica do sujeito interpreta-se como desvio pelo qual searrimam em sistema e se mostram as diversas estruturas squais a realidade se reduz. (LEVINAS, 2002, p. 24).

    Trata-se, portanto, de um acontecimento puramente ob-jetivo do inteligvel, ou seja, de uma racionalidade entendidacomo encadeamento puramente lgico, sem sujeito autnomo,sem presena humana. Uma razo sem interesse, sem traoshumanos, sem exterioridade autntica. A ps-modernidadetalvez seja isto: um mundo sem sada, pura imanncia, nenhumtrao de transcendncia. Embora dirija muitas crticas ao inte-lectualismo de Husserl, Levinas parece, aqui, aproximar-se do

    mestre quando denuncia esta alienao do Mesmo em seu pr-prio projeto. Em que medida se d esta aproximao?Husserl procurou pensar o sujeito em sua mobilidade, em

    sua vida corporal e sensvel. O eu, segundo Husserl, um egomovente, que parte de um estar em casa e se dirige, contandoseus passos, para uma realidade que se toma por objeto. O cor-po, afirma Husserl, um ponto inicial imprescindvel, uma indi-viduao inestimvel. O sujeito no o espectador imparcial domundo, pois o sentido de direo espacial comea em mim e por

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    mim, isto , ele parte sempre de um aqui corporal, carnal,

    concreto. O eu tomado como egoidade o eu cinestsico, valedizer, o sujeito movente. Sua condio de encarnado funda asensibilidade enquanto ponto de partida de qualquer constitui-o objetiva do mundo (Cf. HUSSERL, 1989, p. 35 e ss.).

    Comentando e confirmando Husserl, Levinas explica queas kinesteses so sensaes do movimento do corpo. A per-cepo do mundo externo remonta s assim chamadas sensa-es cinestsicas. No vamos fazer, aqui, uma descrio porme-norizada da teoria fenomenolgica do sensvel. Queremos, ape-nas, destacar o seguinte. J em Husserl o sujeito no um sujeitoabstrato, mas corpo prprio transcendendo o poder representa-cional de um sujeito do saber. assim que a fenomenologia pre-serva o ser humano, a pessoa, aquele que pensa em detrimentodo pensamento, da histria e da estrutura de signos em que vive-mos. Interpretando Husserl, Levinas afirma que o sujeito

    No se dissolve na obra constituda ou pensada por ele, maspermanece sempre transcendente, aqum (...). Aquele que

    pensa no se dissolve na eternidade do discurso. A sensibili-dade faz que a eternidade das idias esteja referida a umacabea que pensa e a um sujeito que se encontra presente tem-poralmente (LEVINAS, 1994, p. 120. G rifo do au tor).

    Mas isso significa dizer que devemos retomar o centro ego-lgico de toda obra de constituio, que devemos voltar ao eu pen-sante da modernidade impondo-se sobre o outro da natureza?

    Na terminologia de Levinas, o sujeito fenomenolgico,entendido em sua condio sensvel, um sujeito que se des-vincula da totalidade, que se preserva da inteligibilidade teri-ca ou histrica, ou ainda, um eu que pode falar. Emerge, en-to, em meio crise de sentido do mundo contemporneo, isto, em meio ausncia de linguagem ou de transcendncia, umarelao que no dissolve os interlocutores na universalidadeconstituda. O que falar? Em sentido fenomenolgico, falar um ato conferir sentido. assim que se pode colocar o objetopercebido em relao ao conjunto do mundo. Um utenslio

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    inserido no contexto do mundo a partir de sua finalidade prti-

    ca. Um objeto pode ser explicado pelas leis fsicas de sua cons-tituio material, ou ainda, quando um socilogo lana mode leis sociais para abord-lo (Cf. LEVINAS, 2009, p. 297-298)A linguagem, neste caso, serve ao pensamento. Pelo menos, isso que aprendemos desde Plato.

    Pode-se, no entanto, perguntar: como o sentido poss-vel enquanto contedo de pensamento? Mais ainda: como po-deria o sentido continuar sendo contedo de pensamento se aexistncia humana

    ser no mundo? Haveria uma atitude livre

    que elevaria o ser pensante acima do mundo? Essa busca deum transcendental, no caso de Levinas, no implica uma ul-trapassagem idealista ou abstrata do mundo e da histria, massim uma liberdade que nos faz apreender o mundo, sem quepara tal precisemos estar engajados nele. Como assim? queem vez de um domnio sobre o mundo ou assimilao, pode-sefalar no conhecer como condio de aprendiz. Conhecer tal-vez seja isto: colocar-se na condio de aluno, de estudante, de

    discpulo (lve). Pois todo conhecer implica, necessariamente,o mestre, o outro, o ensinamento. Mais do que exprimir opensamento ou comunicar algo a algum atravs de signos, fa-lar, na perspectiva de Levinas, intencionalidade dirigida aOutrem como aquele que ensina (Cf. LEVINAS, 2009, p. 298).

    O ensino possvel? Como a palavra se torna concreta,viva, capaz de ensinar? Para responder a estas questes, pre-ciso reconhecer aquilo que ns mesmos fazemos e realizamos,

    ou ainda, preciso compreender a relao da palavra viva coma palavra escrita. Esta ltima, com efeito, tornar possvel res-gatar o humano para alm do momento em que ele se exprime.Na palavra escrita, o ser humano existe a partir de uma insti-tuio, ele existe como relao a esta instituio. Tudo o que presente estar, ento, subordinado no ao eu, mas a outro cen-tro: nossa prpria histria. A escrita nos conduz a um passadoque no foi jamais nosso presente. No somos ns que domi-

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    namos a histria. ela que faz de ns seus objetos. No entanto,

    preciso insistir nisto: no somos prisioneiros da histria. Porqu? Porque podemos falar, comear, responder. O escrito dei-xa-nos livres em relao ao passado histrico.

    Os textos literrios, obras de arte, podem tomar esta estrutu-ra legal: eles se tornam clssicos, fazem parte das institui-es, entram nos programas eles so aquilo que a ningum permitido ignorar (LEVINAS, 2009, p. 300).

    H, portanto, uma instituio que a garantia de nossa

    liberdade real. Um princpio ou referncia que est acima daespontaneidade de nossa liberdade. Uma instituio que se fun-da na escrita, ponto arquimdico de onde o prprio mundo podeser tomado como objeto (Cf. LEVINAS, 2009, p. 314). Pela es-crita, afirma Levinas, abre-se um plano em relao ao qual oprprio mundo da memria se situa. Este plano aberto pelainstituio da escola. Que entende Levinas por escola? Uma ins-tituio que coloca a prpria histria suspensa no logos, ou ain-da, que permite realizar a condio transcendental da histria

    (Cf. LEVINAS, 2009, p. 316). A escola ser, ento, a condiode possibilidade do ensino, isto , da relao ao mestre, graas qual ns aprendemos a ler. na escola que a relao que ja-mais se resolve em totalidade, e que nunca faz abstrao dos in-terlocutores em sua assimetria fundamental e fundadora, emer-ge como funo transcendental que condiciona o prprio saber.

    Finalizando, a escola a instituio sem a qual nenhumpensamento poderia explicitar-se. Ela condiciona a cincia.

    Levinas se separa, aqui, de Husserl. No Cincia, tomadaidealmente, que funda a possibilidade da histria como tentati-va de realizar um sentido ideal. A essncia da escola no aCincia e seu culto, pois a escola est ligada, desde o incio, presena do mestre. Neste ponto, Levinas enftico: no seexplicita um pensamento solitariamente. A escola manifesta apresena daquele que ensina (enseigant), daquele a partir do qualhaver sentido e orientao (Cf. LEVINAS, 1974, p. 73). A es-

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    Roma: Citt N uova, 2004 (pp. 11-55).

    HUSSERL, E.-La crise des sciences europennes et la phnomnologie trans-cendentale. Trad. Grard Granel, Paris: Gallimard, 1976.

    HUSSERL, E. La terre ne se meut pas. Trad. D. Franck, D. Pradelle eJ.-F. Lavigne, Paris: Minuit, 1989.

    HUSSERL, E.- Crisi e rinascita della cultura europea. Trad. Renato Cris-tin,Venezia: Marsilio Editori, 1999.

    HUSSERL, E.- La storia della filosofia e la sua finalit. Trad. NicolettaGhigi, Roma: Citt Nuova, 2004.

    LEVINAS, E.- Totalit et Infini, La Haye : Martinus Nijhoff, 1974.LEVINAS, E/ PEPERZAK, A.- Etica come filosofia prima. Trad. FabioCiaramelli, Milano: Guerini e Associati, 1989.

    LEVINAS, E.- En dcouvrant lexistence avec Husserl et Heidegger, Paris:Vrin, 1994.

    LEVINAS, E.-De Deus que vem idia. Trad. Pergentino S. Pivatto(coord), Petrpolis: Vozes, 2002.

    LEVINAS, E.- Carnets de captivit et autres indits (Ouevres 1), Paris :Grasset&Fasquelle, IMEC, 2009.

    RICOEUR, P.- Na escola da fenomenologia. Trad. Ephraim FerreiraAlves, Petrpolis: Vozes, 2009.

    WALDENFELS, B.- Estraniazione della modernit. Percorsi fenomenolo-gici di confine. Trad.Ferdinando G. Menga, Troina: Citt Aperta, 2005.

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    Notas sobre a formao do conceito de experincia de Walter Benjamin

    Paulo Rudi Schneider1

    A compreenso do que seja experincia questo cen-tral na filosofia de Walter Benjamin desde a sua juventude. J ojovem Benjamin rebela-se contra a concepo de uma experi-ncia que se mostra como instncia de legitimao do estabele-cido, isto , como discurso dos adultos em geral na inteno deemascular as foras rebeldes da juventude. Essa experincia alar-deada pelos adultos proclama como gesto geral a inutilidadeda rebelio, pois esse adulto j vivenciou tudo: a juventude,ideais, esperanas, a mulher. Tudo era iluso (II/ 1, 54) Emseu artigo Experincia ataca os conceitos to apreciados do dis-curso dominante, tais como fidelidade, valores, verdade, esp-rito e, especificamente, o conceito de experincia tornadosimples chavo na boca do burgus que assim expressa a suamisria intelectual numa vida mascarada sem sentido, sem es-perana, sem ideias, sem mpeto, banal, com propenso me-diocridade e cultuando o eterno ontem.

    diferena disso Benjamin reclama por outra compre-

    enso de experincia, cujo contedo no depende da vida ba-nal e inferior. Ele afirma: Ns conhecemos...algo outro, queno nos dado ou retirado a partir da experincia, ou seja, queh verdade, mesmo que tudo o que tenha sido pensado at ago-ra tenha sido erro (II,1,54 ss).

    1 UNIJU.

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    objeto, tpico da modernidade. Esse movimento possibilita a

    compreenso lgica da linguagem e da religio como experin-cia, e liberta o conhecimento e a experincia da sua relao coma conscincia em sua pretenso de autonomia modernista.

    3. A concepo de experincia de Kant de valor inferi-or, pois se atm ao que se pensava na poca como sendo a ni-ca possvel, ou seja, uma experincia direta, imediata, autom-tica e pura, sem as devidas mediaes histricas. No h, po-rm, o grau zero da experincia no transcurso histrico da vidahumana intimamente relacionada com contnuos aspectos re-ligiosos e participao na linguagem.

    4. A tpica ou a matriz filosfica de Kant pode ser preser-vada, desde que o a priori de Kant se torne metafsica com aincluso dos aspectos teolgicos e lingusticos em seus percursoshistricos. Dessa forma uma experincia superior pode tornar-se o ponto lgico e a possibilidade lgica da metafsica (II, 1,163).

    O conceito de experincia e mbito de experincia ataqui elaborado sofre uma toro fundamental algum tempo

    depois. Benjamin identifica uma experincia geral social quese expressa na normatividade desnaturada das grandes massascivilizadas. Os tericos da poca referem-se a esse fenmenosocial invocando as motivaes e as determinaes inevitveisda poesia, da natureza, ou das pocas mitolgicas, o que emseu desenvolvimento vem a desembocar no fascismo. A crticade Benjamin a de que os pensadores desde Dilthey at Jungse esqueceram de promover as suas anlises a partir do ser-a,

    da existncia das pessoas na sociedade.Assim, a perspectiva de anlise de Benjamin mudou. Ele

    abandona a procura das perspectivas da experincia no incon-dicionado para se ater a uma conceituao mais histrica econcretamente materialista. H agora uma acentuao da de-terminao histrico-social da experincia em que se perguntapela sua existncia na sociedade humana. Continua, porm,ainda a haver uma experincia essencial e outra inessencial,

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    pois experincia sempre h. A experincia essencial no sentido

    estrito agora fundada na anlise histrica de acordo com umaperspectiva crtico-social.Nesses termos experincia um conceito denotando uma

    articulao. A ar ticulao, por sua vez entendida como liga-o e ao mesmo tempo como expresso, pois uma dimensoda prxis humana. Nessa prxis articulam-se a auto-relao doser humano e a sua relao com o mundo inseparavelmente: arelao com o mundo articulada como a auto-relao, e aauto-relao, por sua vez, articulvel como relao com omundo. O resultado disso que os indivduos angariam umaimagem histrico-social de si mesmos, que sempre precria eprovisria, tendo que ser continuamente elaborada. As condi-es para a elaborao da sua auto-imagem dependem de di-versas perspectivas, da relao de diversos aspectos scio-his-tricos e psicolgicos, principalmente das relaes do traba-lho, da comunicao e da memria. Para a estrutura filosficada experincia a memria decisiva, para a qual, por sua vez, a

    questo do trabalho determinante. A recordao que res-ponsvel pela formao da experincia est direta e estrutural-mente relacionada com o trabalho auto-determinado.

    Trata-se de apropriar-se do mundo como apropriao desi mesmo no trabalho material. Esse processo corresponde naprtica da recordao conjuno de rememorao histrica ede presena de esprito no que se refere a contedos recordadostanto no aspecto coletivo como no individual. O conceito, por-

    tanto, relaciona trs teses:1. A experincia o resultado do trabalho (V/ , 962),2. Ela uma questo da tradio (I, 2, 608)3. Ela est relacionada com a sua participao, transmis-

    sibilidade. (II/ 1, 214).O contraponto da experincia a vivncia, pois, uma vez,

    ela o material bruto, isto , o objeto do trabalho da experin-cia, e outra, ela a forma psicolgico-social da auto-alienao

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    do ser humano (I, 2, 681). Nessa condio o si mesmo do ho-

    mem ao mesmo tempo objeto e sujeito, pelo que, ento, aalienao de si mesmo vivida ativamente, pois fracassou aarticulao de si mesmo em sua relao com o mundo. A tesede Benjamin a de que houve uma mudana na estrutura dotrabalho humano, ou seja, o modo de produo da manufaturatransformou-se em modo de produo industrial; essa mudanafoi acompanhada da separao em termos de pblico e privado;alm disso, a sociabilidade acontece pela mediao da mercado-ria em geral; e tudo isso faz com que fracasse a articulao darelao de mundo e indivduo. Esse fracasso vivido e, ao mes-mo tempo, compensado na vivncia. A vivncia , assim, uma

    juno do fracasso da relao indivduo e mundo e da compen-sao continuada desse impasse. Por isso que se pode dizer, deacordo com Benjamin, que a experincia uma condio depossibilidade de uma ao auto-consciente e, ao mesmo tempo,a sua impossibilidade. A aporia se d, porque as experinciasfeitas podem impedir novas experincias. A possibilidade de se

    entender tal estado de coisas a compreenso de que a experin-cia , por um lado, elaborao e apropriao de vivncias emmeio ao social, e, por outro, ela elaborao da transformaode si mesmo e, ao mesmo tempo, transformao do mundo.

    No que tangem experincia e memria Walter Benjaminestuda Brgson, Proust, Baudelaire e Freud.

    O filsofo francs Henri Brgson havia relacionado ex-perincia e memria com a afirmao de que a estrutura da

    memria decisiva para a experincia filosfica. Ele distinguedois tipos de memria. A primeira a memria pura e contem-plativa e a segunda a memria motora, mecnica, memriaarmazenada por costume e exerccio corporal e somatizadacomo formas de ao e reao. A experincia em Brgson refe-re-se primeira que se d como presentao contemplativa dofluxo da vida. Essa primeira memria contemplativa a medi-ao pela qual cada indivduo consegue elaborar uma imagem

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    de si mesmo e se apossar da sua experincia. A recordao tem

    a funo de transformar as experincias feitas em experinciasque se tem cognitivamente mo.Marcel Proust, por sua vez, critica Brgson quanto ao

    seu voluntarismo. Ele pensa que aquilo que foi vivenciado narecordao e que ento se torna experincia no uma questode deciso livre, mas que um processo involuntrio. Assim, amemria pura de Brgson torna-se para Proust memria invo-luntria. Proust observa que as informaes voluntrias sobrea prpria infncia no conseguem fazer surgir o que na verda-de ocorreu no passado. Por isso, o passado registrado que noaflora no presente daquele que recorda uma recordao quepermanece exterior, diferentemente daquela que involuntaria-mente ocorre como, por exemplo, no gosto de um quitute sa-boreado na infncia. A memria voluntria submetida inteli-gncia capaz de armazenar dados sempre ao dispor da cons-cincia, mas tais dados registrados nada dizem para o si mes-mo do indivduo. De acordo com Proust, desse modo preci-

    samente a conscincia que impede a autoconscincia.Freud refora o estado de coisas com suas diferenciaes

    iniciadas com Proust e ao mesmo tempo determina melhor oque vem a ser a memria voluntria, at certo ponto despreza-da pelo romancista. A tese de Freud a de que o estar consci-ente e a permanncia de um rastro de memria so incompat-veis num mesmo sistema. Restos de recordao so muitas ve-zes mais fortes e permanentes precisamente quando o processo

    abandonado no passado nunca chegou a aflorar na conscincia.A conscincia tem para Freud a funo de defesa das excitaesnos limites do organismo humano, excitaes essas que so efei-tos de enormes influncias destrutivas produzidas por energiasexternas ao mesmo organismo. Tais excitaes so registradaspela conscincia e ela, ento, justamente o sinal de que os efei-tos traumticos foram superados, aliviados e domesticados. Adefesa do choque das excitaes por parte do aparecimento da

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    conscincia proporciona ao episdio que o suscitou o carter de

    vivncia. O episdio incorporado e registrado na recordaoconsciente e , assim, domesticado. O episdio com as suas im-presses assim domesticadas pela conscincia no deixam maisoutros rastros na memria e, por isso, j no mais se transfor-mam em experincia: o esgotamento aconteceu.

    A memria involuntria e a memria voluntria tratamde inaugurar relaes de tempo diferenciadas. Na memria vo-luntria o que rememorado torna-se passado, e na memriainvoluntria o que rememorado presente no instante. No se-gundo caso o acontecido tem um grau de realidade maior doque quando aconteceu, pois se torna precisamente atual. Namemria voluntria, pelo contrrio, h a memria da vivnciaindicando o que passou simplesmente. Nesta memria volunt-ria encontra-se ento a semente da auto-alienao em que o serhumano faz constantemente o inventrio dos episdios do seupassado como se fossem bens j definidos e mortos, em suma,passados. A vivncia recordada j no prprio ato do vivenciar

    recordando um passamento e esquecimento fundamental.Quanto aos elementos de uma experincia histrica ge-

    nuna, porm, Benjamin primeiramente considera que, no fi-nal das contas, as concepes sobre vivncia e experincia ela-boradas so insuficientes para um conceito de experincia emtermos histrico-materialistas. Tanto Brgson como Proust temem vista a pessoa isolada e fazem um inventrio do indivduoprivado e de muitos modos isolado. Para esse indivduo assim

    descrito a dimenso pblica tornou-se o totalmente outro. Pre-cisamente a riqueza descritiva de Proust, na qual ele faz a sepa-rao entre recordao individual e coletiva, vem a ser um tes-temunho radical do sintoma de uma atrofia da experincia his-trico-social. Benjamin cita o romancista: A libertao mi-nha organizao provada. (I, 2, 646).

    Conforme Benjamin, na experincia em sentido estrito,determinados contedos da memria do passado individual

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    entram em conjuno com contedos coletivos. Exemplos para

    isso so os cultos com o seu cerimonial e as suas festas. Poresses cultos a rememorao provocada em determinadas po-cas, sem que se mencione algo sobre o contedo da recordaoe da experincia, ou mesmo da forma do coletivo. Um dos re-sultados desses cultos e festas que a rememorao voluntriae involuntria perdem a sua exclusividade uma em relao aoutra. A conjuno de ambas se transforma em condio depossibilidade de uma genuna experincia histrica, pois de al-gum modo a participao ao modo individual e coletivo passa-se como se fosse a-histrica. O modelo de conjuno dos doismodos de conscincia o calendrio.

    Elementos genunos da experincia histrica, conformeBenjamin so spleen e ideal nomeados diversas vezes pelo poe-ta Baudelaire. Benjamin sentencia: O idal doa a fora da re-memorao; o spleen, em contrapartida, oferece o enxame dossegundos. (I,2, 641). Dos dias de culto como comemoraoh o seu contedo, o idal, que por seu recado arranca as pesso-

    as da sua imerso no cotidiano banal e esse fenmeno Baude-laire expressa em suas correspondances. Tais dias, por seu con-tedo, idal, e promovendo correspondances, no so dias no sen-tido histrico, mas so datas da pr-histria, fora da histriaoficial, e os quais proporcionam o encontro com uma vida an-terior (I,2,639) com uma caracterstica de identificao ime-diata, como se tempo no houvesse.

    No spleen, na melancolia, por sua vez, a percepo do

    tempo acentuada sobremaneira. A conscincia est comple-tamente a postos e alerta captando e domesticando energiascom os seus choques em plena presena de esprito e percepodo acontecer. Ambas as percepes de tempo so a-histricasem seus processos. A imposio do idal, o contedo reverbe-rando correspondncias um salto at a origem na pr-hist-ria, e o spleen, a melancolia, o mergulho consciente na atuali-dade.

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    A mediao, porm, entre idal e spleen em Baudelaire

    tambm fracassa e o fracasso novamente um sintoma de umaprofunda mudana estrutural da recordao/ experincia quese processa na poca da grande indstria. Proust e Baudelairetematizam tudo isso movidos por uma vontade de restauraodaquilo que se est a perder na poca em temos de experincia,mas fracassam e, assim, se tornam eles mesmos sintomas daatrofia da experincia. Baudelaire tem conscincia da perda daexperincia no sentido tematizado, porque a sua perspectivapotica constantemente social, ao contrrio de Proust.

    Enfim, Benjamin analisa um processo histrico em que asquestes externas das pessoas tm cada vez menos oportunidadede serem assimiladas como experincias do indivduo. Trata-se deum processo de abstrao em que, em relao aos indivduos, asquestes da sociedade so suspensas, o que, por sua vez, acarretauma transformao da auto-compreenso do homem, isto , asquestes internas dos indivduos revestem-se completamente docarter privado. Benjamin se decide tarefa de descrever critica-

    mente as determinaes desse processo de alienao para garim-par os elementos analticos desse renovado conceito de experin-cia. A descrio deve ser elaborada ao nvel desse mesmo proces-so medida que aquilo que se perdeu irreparavelmente possa darcondies de entendimento do que possvel conquistar.

    Considerando a relao entre experincia e trabalho, Ben-jamin relaciona o conceito de experincia primeiramente com omodo de produo da manufatura, como Karl Marx j o fizera.

    O trabalho manual multifacetado, muito mais complicado edeterminado pelo fato de que o trabalhador autnomo e se-nhor dos seus meios de trabalho e das suas condies. A expe-rincia nesse caso se mostra como exerccio e como repasse datradio de habilidades especiais. Cada ramo de produo en-contra na experincia uma figura de habilitao tcnica e ele arealiza devagar, aprimorando-se pelo exerccio. A experincia ,ento, o resultado do que foi traditado e apropriado.

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    O produto que resultado da manufatura algo nico

    feito de conhecimento experienciado provindo da tradio.Desse modo, a experincia justamente a fora produtiva prin-cipal e nela a tradio sempre se confirma por continuidade epor renovao. Ela se configura um fenmeno original em quedialeticamente se conjugam unicidade e repetio. Nos termosutilizados na obra sobre oDrama barroco alemo, a experincianesse sentido vem a ser um fenmeno original, pois em suaessncia condicionam-se mutuamente unicidade e repetio(I, 1,226), ou seja, acontece a dialtica da singularidade emrepetio, o que parece um contra-senso, pois o singular nuncapoderia repetir-se. Essa dialtica, porm constitui o fio verme-lho para Benjamin na sua procura pelas condies de possibili-dade da genuna experincia histrica (I, 2, 643), isto , pri-meiro h que promover a anlise da mudana estrutural daexperincia que acontece a partir da transformao do modode produo e modo diferenciado de vida.

    Quando se compara a relao entre trabalho e experin-

    cia no modo de produo manual, ento at j a manufaturaconstitui um processo de atrofia da experincia, pois em cadaprofisso especfica ela j produz uma classe de trabalhadoresdesinformados. No mundo da indstria capitalista esse proces-so de atrofia da experincia dominante, pois nele os trabalha-dores so subsumidos sob o capital no processo de produo.Essa subsuno a j tem uma base tecnolgica na maquinariaem geral. Na maquinaria j se encontra materializada a grande

    inverso, tpica de toda a produo capitalista, ou seja, nas pa-lavras de Benjamin: no o trabalhador que comanda utili-zando a condio de trabalho, mas inversamente, condiode trabalho que comanda utilizando o trabalhador. (I, 2, 446).O modo de produo da manufatura pressupunha um traba-lhador autnomo, mas a maquinaria industrial necessita de umtrabalhador no autnomo e apropriadamente cativo. A cor-reia contnua da fbrica em seu conjunto de momentos de traba-

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    lho aparece ao trabalhador como algo autnomo e absolutamente

    objetivado, portanto, muito alm da sua prpria autonomia.Ento, ao invs do exerccio anterior para a apropriao de co-nhecimentos e habilidades agora necessrio o adestramentomecnico organizado pela prpria mquina. A aprendizagemdo trabalhador agora consiste no adestramento para coordenarcontnua e uniformemente os movimentos do seu corpo comose fosse autmato. justamente essa inverso de sujeito e objetoque significa o mais profundo aviltamento e degradao do tra-balhador desinformado e sujeito ao adestramento de adaptao prpria mquina. O seu trabalho no propicia experincia al-guma, pois o verdadeiro exerccio da tradio a se perdeu. Oprocesso de trabalho se torna um dispositivo que dispe da vidado trabalhador. Com essa mudana estrutural do trabalho pelotrabalho em correia desloca-se de modo correspondente a expe-rincia para a vivncia. Enquanto que na manufatura se tinha asituao em que de vivncias se pudesse chegar a experincias, aindstria agora se constitui na prpria forma da mera vivncia.

    Benjamin procura descrever de modo mais acurado ascaractersticas das novas condies de trabalho pela semelhan-a estrutural entre o trabalho em corrente com o jogo de azar,isto , entre o trabalhador comandado pela mquina com a ati-vidade mnima do ocioso num jogo de azar. Ambos so ativa-dos por um mecanismo reflexo em que as caractersticas dassuas atividades so a frustrao por inutilidade, o vazio, a proi-bio da realizao, bem como a completa falta de relao en-

    tre os diversos momentos e gestos de destreza corporal, poisapenas repetem o mesmo at a exausto. Desse modo a escra-vido do trabalhador empregado pode ser comparada com aescravido do jogador em seu vcio compulsivamente repetiti-vo. Em ambas atividades no h contedo algum. medidaque o jogo de azar suspende a possibilidade da experincia, elese constitui em espelho do alienado trabalho assalariado maqui-nal, bem como o contraste especfico da experincia genuna.

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    A anlise do jogo de azar ainda possibilita a comparao

    com a transformao estrutural da experincia que vai alm doprprio trabalho. A mudana quanto experincia ocorrida notrabalho reverbera imediatamente na vida das pessoas em ge-ral. O mecanismo do jogo de azar no representa a alienaodo homem apenas na vida pblica, mas igualmente aquilo quelhe acontece em corpo e alma na vida privada. Tambm nadimenso da vida privada a alienao conquista os seus efeitospor todo tipo de domesticao posterior. Ao contrrio disso,como j sabemos, a experincia genuna constitui-se numa for-ma de apropriao social e individual em que a relao consi-go mesmo est profundamente articulada pela relao com omundo, de modo que tanto o mundo como o indivduo se trans-formam simultaneamente. O mundo no um absolutamenteoutro, mas a relao entre aquele que se apropria e aquilo que apropriado. A ordem da experincia que ento engloba a di-menso do indivduo e do mundo uma ordem dinmica emque um dos seus principais elementos o desejo (IV/ 2, 759)

    no sentido de que o desejo precede o tempo e a experinciaestrutura. No fim das contas, a experincia o passado presen-te, e o desejo pode ser definido como o futuro presente em for-ma de energia pulsional. No processo de vida pode haver umamediao constante entre a satisfao da experincia e o aindano realizado e anunciado pelo desejo. Na ordem da vivncia,pelo contrrio, essa mediao no acontece, pois o desejo nes-sa dimenso reprimido para dar lugar cobia, a cupidez e

    voracidade, as quais so incentivadas e acompanhadas, por se-melhana, pela avidez do lucro estruturalmente instalada nasociedade de consumo.

    Benjamin chega assim condio compreensiva em quepode tematizar a fantasmagoria da mercadoria como dispositi-vo da auto-alienao humana.

    Benjamin considera a experincia como resultado do traba-lho no sentido j descrito, de modo que a vivncia sem experin-

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    cia aparece como a fantasmagoria do ocioso, ou seja, o trabalha-

    dor cooptado pela mquina a exemplo do vcio do jogador perdi-do e esquecido de si no jogo de azar. O ocioso a figura tpicacapaz de descrever o sujeito na sociedade da mercadoria enquan-to sujeito na sociedade da vivncia. Essa sociedade da vivnciase caracteriza pelo fato de que todos produtos do trabalho to-mam a forma de mercadoria. Essa forma de tudo em termos demercadoria apaga qualquer relao com o processo de trabalhoe faz surgir a percepo vital de uma vivncia que se expressa aomodo da fantasmagoria. O termo fantasmagoria denota o dis-positivo da sociedade mercadolgica quanto aos efeitos que elasuscita e evoca no sujeito individualizado. Ela o correlato davivncia provocada pela mercadoria, a qual aparece transfigura-da como completamente abstrada das suas relaes com o mun-do do trabalho. Ela se torna um bem de consumo como se nuncativesse tido origem no trabalho alienado do trabalhador. Almdisso, ela aparece de modo fantasmagrico e mgico, de modoque o trabalho nela armazenado se expressa no mesmo instante

    como supra-natural e sagrado, pois o trabalho efetivo no maisreconhecido em sua aparncia luminosa. Na mercadoria se es-camoteia o seu valor de uso, esconde-se a abstrao feita do tra-balho que produziu tal valor, bem como no se mencionam ascondies de domnio e de tcnica de toda a sua produo.

    Todo esse efeito no resultado apenas da ideologia es-pecificamente para tanto elaborada, mas se deve principalmente aparncia esttica da prpria mercadoria presente nas salas de

    exposies, s passagens, s casas de comrcio e exposies mun-diais. Uma das intenes da obra inacabada das Passagens deWalter Benjamin era mostrar como todas as criaes mercado-lgicas concretas no devem a sua transfigurao fantasmagri-ca a uma elaborao terica especfica, mas sua presena ime-diata e sensvel em qualquer lugar. Como fantasmagoria a mer-cadoria em geral no representa indiretamente nenhuma ideolo-gia, mas ela mesma diretamente ideologia material presente.

    SCHNEIDER, P. R. Notas sobre a formao do conceito de experincia de Walter Benjamin

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    H, por outro lado, uma relao ntima e orgnica entre

    exposies mundiais, indstria de entretenimento, prazer e pro-paganda. Tal relao analisada em termos de arranjo geralpara a auto-alienao humana. As exposies mundiais repre-sentam o paradigma da entronizao da mercadoria e a suaadorao a forma do fetiche. Para que ta is caractersticas te-nham o seu efeito so necessrios os elementos secundrios ecomplementares da auto-alienao humana, ou seja, a Ein-fuehlung, que uma espcie de identificao por simpatia, e adisperso distrada. As exposies mundiais so uma fantas-magoria para as quais as massas acorrem a fim de se distrair, oque por sua vez acentuado pela indstria da distrao e doentretenimento, ou indstria cultural, pela qual o prpria serhumano sente-se elevado categoria de mercadoria especial,pois o objeto visado pelas promoes. O ser humano ento sedeixa levar pelas manipulaes da mercadoria degradando-se(elevando-se?) condio de objeto e curtindo a sua a lienaoem relao a si e aos outros. Ele sintonizado, trabalhado e

    manipulado em seu comportamento total sem experincia pelaindstria de entretenimento e cultural e pela elaborao com-petente da propaganda.

    Benjamin menciona nesse contexto o conceito de feticheque procura descrever a situao. As coisas em seu valor tomampura forma de valor de troca quando arrancadas da sua relaode produo e de valor de uso, e assim desvalorizadas em suarelao mais elementar da experincia humana. Essa desvalori-

    zao especfica do mundo das coisas imanente mercadoriaproduz um correspondente animismo que d alma s coisas as-sim desvalorizadas. Trata-se da identificao por simpatia (Ein-fuehlung) pela mercadoria, pela identificao simptica com ovalor de troca. Esse sentimento o fundamento da vivncia alie-nada. D-se, ento, o fato de que a mercadoria se torna objeto deuma vivncia e esta, por sua vez, transforma o sujeito num obje-to tambm mercadolgico motivado passionalmente.

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    A forma da mercadoria consegue, portanto, apagar os

    rastros da sua provenincia, resultando em perda de experin-cia, em invisibilidade das condies sociais e tcnicas da pro-duo de mercadorias, e todo esse processo escamoteado domundo perceptivo das pessoas. A perda da experincia na alie-nao pela forma da mercadoria vivida e, ao mesmo tempo, compensada na acumulao de vivncias, cujo reverso inevita-velmente a crise econmica e a guerra. (II/ 1, 219).

    A vivncia total a guerra. Quanto mais breve o tempode formao do trabalhador na indstria, tanto mais longa setorna a formao do militar (I,2,632), A identificao simp-tica com a mercadoria antes de tudo capacita as pessoas para a>vivncia total

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    mal da informao nasce sob os auspcios do capitalismo re-

    cente e coopera sobremaneira no sentido de emascular os acon-tecimentos para que no tenham relao com o mbito quepoderia favorecer a experincia do leitor. Certas determinaesformais so as responsveis pelo favorecimento da desmonta-gem da experincia possvel. Essas determinaes formais sonovidade, abreviao, compreensibilidade e, antes de tudo,desconexo das notcias singulares entre si (I, 2, 610). Issoquer dizer que a informao abstrata por no ter conexocom a prtica de vida; ela de qualquer maneira ou sem inte-resse articulado; e ainda, ela desconexa e sem memria: pro-cura ser atual a todo o custo cultuando a novidade s pela no-vidade. A informao, por isso, representa o aspecto da vivn-cia no mbito das transmisses e cultua o seu crescimento naforma do sensacionalismo.

    A informao procura transmitir o puro e desvinculadoem-si do acontecido. A narrativa, pelo contrrio, incorpora-se vida do narrador a fim de ser oferecida como experincia ao

    ouvinte (I, 2, 61). A narrativa origina-se na experincia que setransmite de boca a boca e uma prtica da linguagem que fo-menta a recordao e promove a cadeia da tradio. O em-si nomediado e abstrado da prxis na informao da imprensa noconsegue tornar-se imanente tradio. A falta de atualidade danarrativa, por sua vez, o que precisamente possibilita a suaatualizao na linha histrica da tradio. Ela se reconstri con-tinuamente cada vez mais quanto menos ela procura explicar. A

    informao, pelo contrrio, permanece tanto mais externa es-trutura da experincia quanto mais ela procura acentuar a suaforma explicativa de um contedo objetivo em si. Desse modo ainformao desencadeia efeitos passivos e a narrativa efeitos ati-vos, pois a atualidade dela consiste na possibilidade de atualiza-o do seu contedo e o acontecimento que transmite visa ao,a reao ativa do ouvinte. A novidade da notcia se d por satis-feita com a sua mera veiculao, sem, portanto, o interesse pelo

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    vis ativo que pudesse instaurar a atividade apropriadora da ex-

    perincia. Por sua natureza a narrativa se abstem das explica-es a fim de que a atividade imaginativa e construtiva do recep-tor possa ocorrer. Uma participao em forma de narrativa, por-tanto, torna-se experincia quando pela recepo de um conte-do de experincia pode elaborar uma experincia prpria.

    Na informao a referncia ao mundo e a referncia a simesmo sempre sem mediao e procura ser em-si objetiva,sem o aspecto da sabedoria da tradio falada que consagra olado pico da verdade, isto , a verdade em ocorrncia. O ladopico da verdade significa uma objetividade no coisificada,no alheia e desvinculada da ocorrncia imediata, pois a nar-rativa algo compartilhado. O narrador consegue desse modoproduzir conselhos para muitos, porque lhe dado externar-sesobre as suas prprias e mais importantes questes de modoexemplar. Ele consegue fazer a ligao da sabedoria do mundocom o conhecimento das circunstncias imediatas dos recepto-res do seu recado.

    Conselho, porm, est fora de moda, e, para Benjamin,esse fato , de novo, outro sintoma da dificuldade de participa-o da experincia genuna alm da alienao. Por isso temosdificuldade quanto a aconselhamento em relao a ns e aosoutros. A informao produz uma perplexidade sem rumo. Oseu carter de vivncia se expressa adequadamente e comple-mentarmente no modo de informao das multides de indiv-duos isolados nas grandes cidades. A informao no propor-

    ciona o espanto, o qual condio vital para um pensamentoativo que se interessa por sua origem. A informao na formada imprensa a prpria organizao da disperso e, por isso,da vivncia.

    A fantasmagoria objetivada da mercadoria no cotidianorelaciona-se com a histria da cultura elaborada discursiva eideologicamente: esta a mxima elaborao da fantasmago-ria (V/ 2, 1250). Nela os fenmenos histricos so percebidos

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    como totalmente coisificados: ...as criaes do esprito huma-

    no so inventariados pea por pea (V/ 22, 1250). Os fenme-nos so catalogados, isolados e distanciados da experincia,perdendo-se a conscincia de que eles devem a sua existnciana tradio por um constante trabalho social, o qual, alm dis-so, tambm sempre responsvel pela modificao dos mes-mos. Essa fantasmagoria objetivista e a ideologia do progressoso as figuras da aparncia histrica alienada.

    Uma verdadeira reapropriao em nvel coletivo e indi-vidual da experincia exige, portanto, a atividade da descons-truo, do carter de destruio da tradio alienada em formade catalogao. Do sbio e do carter destrutivo em geral de-pende essa destruio construtiva, cujo movimento significa asolidariedade com a tradio dos oprimidos (I/ 2, 697). Osbio narrador elabora e verbaliza exemplarmente as experin-cias de um grupo, de uma classe e as suas prprias como umarteso produz seu artefato de modo slido, til e nico, a par-tir da matria bruta. G enuna experincia histrica ativar a

    experincia com a historia, de modo que seja original para cadapresente (II/ 2, 468): a histria torna-se presena histricanuma dialtica de continuidade e descontinuidade. A quebracom a tradio objetivada necessria para elaborao de ver-dadeira experincia histrica. Mesmo a pretensa ideia marxis-ta de conservar os bons elementos da histria um contrasensosob o ponto de vista do materialismo histrico (II/ 2, 477),pois abstrai e coisifica o seu objeto do processo vital econmi-

    co: a cultura apresentada meramente como bens, como so-mente objeto de posse da humanidade. A histria da culturadesconhece o necessrio momento destrutivo; ela de certomultiplica a carga dos tesouros que se acumulam nas costas dahumanidade. No lhe d, porm, a fora de sacudi-los para t-los mo (II/ 2, 478). O carter destrutivo conservador aoseu modo, mas contra a construo alienante que se viabilizacomo histria de domnio e carga para os dominados.

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    A elaborao da compreenso do que seja experincia

    est diretamente relacionada com a compreenso da contradi-o da linguagem. Na linguagem humana expressamos de modoimediato a nossa participao e compartilhamento daquilo quemesmos somos na relao conosco e na relao com a socieda-de, a histria e a natureza.

    Referncias

    BENJAMIN, W. Gesammelte Schriften. Suhrkamp Verlag, Frankfurt amMain, 1989.

    ______. Gesammelte Briefe. Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1996.

    OPITZ, M. e WIZILA, E., Hg.Benjamins Begriffe. Suhrkamp Verlag,Frankfurt am M ain, 2000.

    SCHN EIDER, P. A Contradio da linguagem. Editora Unijui, Iju,2008.

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    Niilismo: origens e desdobramentos

    Valdemar Antonio Munaro1

    Introduo

    O niilismo (do latim nihil nada) se caracterizou, sobre-tudo nestes ltimos sculos, como uma orientao doutrinalque traz no seu bojo a negao da objetividade substancial no edo ser. Em outras palavras, um consequente portador da posi-o niilista se apresentar revestido da convico intelectualapoiada na afirmao de que o mundo e as coisas existentesnele so marcadas estruturalmente pela por uma inconsistn-cia essencial, isto , pela negao de realidade nas realidades, de

    mundo no mundo e de serno ser. De tal premissa patente e la-tente sempre espreita no interior do trabalho gnosiolgicohumano, o niilismo adquiriu desdobramentos que se estende-ram e se estendem por canais de vida prtica, restos e sobras deatividades racionais que terminaram e terminam por alimentarradical e simultaneamente planos metafsicos e morais, polti-cos e lgico-epistemolgicos relacionados estreitamente ao pen-sar, ao agir e ao viver humanos. Sua configurao histrica,portanto, sempre esteve habitando, sob forma germinal ou evo-luda, as correntes intelectuais e filosficas sedimentadas nospensamentos de fenomenistas, relativistas e cpticos de varia-das ordens, como tambm as expresses pragmticas de vidatica e poltica da sociedade humana.

    1 Professor de Filosofia Fapas.

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    Contudo, sob o ponto de vista histrico, o niilismo se

    apresentou mais abertamente difuso tanto na literatura russado sculo XVIII quanto na fisionomia de movimentos intelec-tuais e polticos que visavam uma reforma da estrutura socialvigente (sempre a partir de um individualismo pessimista enaturalista) em boa parte do continente europeu. Na Europaele se revelou mais aberta e claramente nos tempos modernos eiluministas. O uso desse conceito, niilismo, est registrado, porexemplo, na obra Lies de Metafsica (1859) de W. Hamil-ton na qual o autor designou niilistas, no homens indiviuais,mas doutrinas advindas da sofstica grega (especialmente deGrgias), e do fenomenismo moderno (identificado no pensa-mento filosfico do ingls, David Hume). Mais recentemente,porm, o niilismo adquiriu difuso e protagonismo na poesia eno pensamento do escritor alemo, F. Nietzsche (1900), queem quase sua obra inteira deu explicitamente salincia e aten-o ao tema indicando com o mesmo a superao e o ultrapas-samento do homem ocidental de todos os valores tradicionais

    at ento vigentes.Se houver, pois, um niilismo negativo, este seria, no pen-

    sar de Nietzsche, um fenmeno especfico da decadncia dohomem ocidental, fato mais especificamente caracterizado eidentificado como o homem cristo, um ser, segundo ele,culturalmente pobre e fracassado, submetido fora do reba-nhismo, ao medo, massificao, resignao e renncia.Sob esse niilismo negativo e destruidor (tanto sob o plano pr-

    tico quanto sob o plano terico) de todos os valores tradicio-nais (edificados sobre o cristianismo, o socialismo, a filosofiagrega, o judasmo, a moral e a ordem socrtica), construiu-se,segundo Nietzsche, escombros, decadncias, niilismos sobos quais, porm, nasce uma energia capaz de nova genealo-gia construda justamente sobre o crepsculo do homem atual,mas que advm do aparecimento do super-homem, o nicoverdadeiro indivduo situado acima do bem e do mal, dotado

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    de faculdade criadora, no apenas de seus valores, mas inclusi-

    ve dos prprios princpios que o fazem autocriador. Tal n iilis-mo, concretamente, se projetar numa filosofia da manh,isto , numa filosofia errtica, tenra, germinal, imprevisvele desprovida de princpios, continuamente principiante e se-melhante aurora de um novo dia, sempre nova, sempre origi-nal, sempre nascente, sempre irrepetivelmente fresca e surpre-endente.

    Ao se referir ao niilismo nietzschiano, Martin Heidegger,por sua vez, o caracterizou como fase culminante e conclusivada metafsica ocidental e o ligou essencialmente ao problemado esquecimento do ser (to caro ao filsofo alemo) e aoimprio vigente do tecnicismo resultante do aprimoramentocientficopositivo voltado nica e intimamente ao utilizvel epragmatizvel. As filosofias de Husserl e Heidegger conver-gem, neste ponto, para a mesma crtica que, no fundo, dirigi-da s causas do malogro cultural ocidental. O niilismo seriaento, nesse caso, essa atmosfera, esse contexto, esse ar ou

    ambiente semelhante ltima hora da noite, ao desfechopresumvel do pensamento cientfico e filosfico do mundoocidental carregado de vazio e sem sentido.

    Como dissemos, tanto na Rssia quanto na parte oci-dental da Europa o niilismo expressou-se atravs de movimen-tos filosficos e literrios que, adquirindo dimenses prticas epolticas, se indisps especialmente contra toda forma de des-potismo poltico, moral, intelectual ou religioso que tocasse e

    coibisse o foro ntimo dos indivduos e grupos sociais cercean-do suas liberdades e conscincias. No seu desdobramento con-creto, o niilismo tomou formas prticas de ao e vida e tor-nou-se, em muitas situaes, fautor de individualismos absolu-tos, inimigos de quaisquer obrigaes ou culturas impostas ousugeridas pela sociedade, pela famlia, pelo estado ou pela Igreja.Sua luta orientou-se contra toda religio, contra qualquer idea-lismo, contra toda arte (porque, dizia-se, um sapateiro vale mais

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    que um Rafael j que o primeiro faz coisas teis enquanto o

    segundo faz coisas que no servem a nada) e contra toda mo-ral. Por isso, no percurso histrico e poltico do niilismo, mui-tos dos seus defensores refugiaram-se, enfim, no anarquismorevolucionrio com o objetivo consciente ou no de buscar eencontrar a alternativas consequenciais para as suas posturasintelectuais e ticas.

    1. Origens

    Segundo o autor mencionado, William Hamilton, a fisi-onomia intelectual do niilismo moderno e contemporneo jestaria presente de forma velada e simultaneamente clara, nadoutrina do filsofo ingls David Hume cuja filosofia nega noapenas o princpio de causalidade entre coisas e fatos, mas tam-bm a substancialidadederealidade nas realidades2. Portanto, see enquanto uma doutrina negar que, em realidades, possamhaver efetiva e verdadeiramente substancialidades, o resultadoseria uma espcie defenomenismo, isto , um simples manifes-tar-se inconsistente de seres inconsistentes, uma mostragemepidrmica meramente epifnica das coisas, um aparecerinsubstancial e sombrio dos seres sem serreal, porquanto a cor-relativa capacidade humana de conhecer se faz intil j que asubstancialidade dos objetos a serem conhecidos no existe.Num sentido mais amplo, portanto, pode-se concluir que nii-lismo e fenomenismo se nutrem e se identificam pelo fato do

    prprio niilismo ser um resultado lgico do puro e simplesmanifestar-se destitudo ou desvestido de fundamentos.

    Se o niilismo assim caracterizado ganhou contornos, ter-minologias e conceituaes bem claras e definidas, dilatando-seposteriormente sob configuraes epistemolgicas (relativas ne-

    2 Cf., Volpi, Franco, Il nichilismo, Ed. Laterza, Roma-Bari, 2004, pp. 16s.

    MUNARO, V. A. Niilismo: origens e desdobramentos

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    gao de qualquer verdade), morais (relativas negao de prin-

    cpios morais) e metafsicas (relativas pura e simples negao darealidade), no preciso percorrer um exame genealgico de-masiadamente profundo para compreender que as razes do nii-lismo podem estar tanto no relativismo quanto no ceticismo epis-temolgicos, ticos e metafsicos j conexos e congnitos ao pr-prio exerccio da inteligncia humana. Filho e herdeiro do relati-vismo e do ceticismo, o cinismo, porm, surgiu como ltima eta-pa daquela postura e decadncia racionais. J encontramos umniilismo epistemolgico e metafsico antecipado, como dissemos,na figura de Grgias, o maior e mais renomado dos sofistas; en-contramos tambm um niilismo moral no ceticismo de Pirro eno cinismo de Digenes, o co. Com efeito, relativismo, ceti-cismo, niilismo e cinismo se encontram posicionados de modoto prximo e estreito que atingem o ponto em que chegam a senutrirem e a se sustentarem mutuamente.3

    De fato, o relativismo tornou-se uma arma prioritria dohomem cptico e, por isso, no quase impossvel negar que o

    mesmo redunde numa espcie de negacionismo universal, es-pcie de nadismo universal. No fundo, o ceticismo se construiue se constri sobre a dvida constante e efetiva acerca de tudo oque parece ou se apresenta aos olhos da inteligncia huma-na, como algo permanente e duradouro. Movimento e/ ou mu-dana tornaram-se o cerne e o princpio de todo o relativismoporquanto no puro devir ou nopurovir-a-serdo ser no h prin-cpio sobre o qual apoiar o prprio movimento exceto o princ-

    pio mesmo da pura mutabilidade ou permanente mudana. Acontradio, nesse caso, seria clamorosamente ignorada dadoque no seria possvel afirmar o eterno retorno onde tudo

    3 Serve como ilustrao o sugestivo estudo de Richard H. Popkin cuja obra LahistoriadelescepticismodesdeErasmohastaSpinoza, Trad. esp. De Juan Jos Utrilla,Fondo de Cultura Econmica, Mxico, 1983, indica os resultados daquelaspremissas preliminarmente assumidas.

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    absolutamente retorna. Se o relativismo a negao de todo e

    qualquer princpio imutvel, o cinismo, por sua vez, o efeitoque emerge como bagao sequencial daquela trade condu-zida at suas ltimas consequncias. O cinismo, assim, se trans-formou na sobra do niilismo, no efeito da decadncia instau-rada, no resultado de premissas claramente delineadas das quaisinferimos j conhecidas e inevitveis consequncias. Entre ostextos de Nietzsche podemos percorrer alguns que expressamaquela atmosfera intelectual e psicolgica que atingiu e atingeo homem contemporneo:

    O niilismo como estadopsicolgico ter de ocorrer, primeira-mente, quando tivermos procurado em todo acontecer por umsentido que no est nele: de modo que afinal aquele queprocura perde o nimo. N iilismo ento o tomar conscinciado longo desperdciode fora, o tormento do em vo, a inse-gurana, a falta de ocasio para se recrear de algum modo, deainda repousar sobre algo a vergonha de si mesmo, comoquem se tivesse enganado por demasiado tempo... To logo(...) o homem descobre como somente por necessidades psi-

    colgicas esse mundo foi montado e como no tem a bsoluta-mente nenhum direito a ele, surge a ltima forma do niilis-mo, que encerra em si a descrenaemummundometafsico, quese probe a crena em um mundo verdadeiro. Desse ponto devista admite-se a realidade do vir-a-ser como nica realidade,probe-se a si toda espcie de via dissimulada que leve a ultra-mundos e falsas divindades mas no se suportaessemundo,que j nosepodenegar...Pensemos esse pensamento em sua forma mais terrvel: a exis-tncia, assim como , sem sentido e alvo, mas inevitavelmen-te retornando, sem um final no nada: o eternoretorno.

    Essa a mais extrema forma do niilismo: o nada (o semsentido) eterno!.4

    O niilismo se configura, como se v, numa espcie devisodemundo, num fruto advindo daquela atitude intelectual

    MUNARO, V. A. Niilismo: origens e desdobramentos

    4 Nietzsche, Friedrich, Obrasincompletas, Trad. de Rubens R. Torres Filho, Col.Os Pensadores, Ed. Abril Cultural, So Paulo, 1974, pp. 380-381 e 383.

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    aniquiladora cujo princpio a afirmao da no existncia

    de princpios, a ausncia radical e total de qualquer fundamen-to nas realidades. Tal viso antecipa os resultados de uma in-vestigao intil e faz da busca e da atividade intelectuais umesforo sem sentido e sem nexo. O cruel e vo empenho filos-fico e/ ou cientfico direcionado a um significado e objetivopossveis deve, segundo Nietzsche, ser observado com realis-mo, isto , friamente, pois o niilismo , antes, uma premissa,no uma consequncia. Tal tambm a tarefa do filsofo:

    Filosofia, como at agora entendi e vivi, a voluntria procu-ra tambm dos lados execrados e infames da existncia. Dalonga experincia, que me deu uma tal andana atravs degelo e deserto, aprendi a encarar de outro modo tudo o que sefilosofou at agora : a histria escondida da filosofia, a psico-logia de seus grandes nomes, veio luz para mim. Quantode verdade suporta, quanto de verdade ousa um esprito? isso se tornou para mim o autntico medidor de valor. O erro uma covardia... cada conquista do conhecimento decorre donimo, da dureza contra si, do asseio para consigo... Umafilosofiaexperimental, tal como eu a vivo, antecipa experimen-talmente at mesmo as possibilidades do niilismo radical.5

    Se h, pois, um lugar para o niilismo, seu comeo e suasobrevivncia residem, antes de tudo, numa atitude intelectualque poderamos chamar de demolidora, redutora de valores, de-significadora de significados.

    O niilismo, escreve Jean-Luc Marion, comea com a desva-lorizao dos valores mais altos; esta desvalorizao, por suavez, descende da descoberta que todo valor, mesmo positivo,

    perde a prpria dignidade pelo simples fato que a recebe deuma valorizao que lhe estranha, a da vontade (de poder);deste modo, o niilismo, seja o passivo que o ativo, d a cadaente um novo modo de ser: a valorizao por obra da vontadedepoder... O niilismo delineia a vontade de poder como a es-sncia (fundamentadora sem fundamento) do ente.6

    5 Ibid., p. 393.6Diosenzaessere, Trad. ital. D e Adriano D ellAsta, Ed. Jaca Book, Milano, 1987,

    p. 145.

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    Nas origens do niilismo, portanto, podem estar configu-

    rados fatores existenciais, racionais ou morais, sempre intima-mente relacionados entre si. Assim, exemplarmente, podem secondensar uma viso de mundo e simultaneamente uma expe-rincia singular de cada indivduo. O poema de Goethe postona boca de Mefistfeles expressa esse sentimento existencial:Sou o esprito do sempre negar! E com razo; pois tudo o que vem a seplasmar. Serve somente para um dia acabar. Logo, melhor seria nadavir a se formar. Tambm Caldern com Sigismundo no textoLa vida es sueo o reafirma:

    Pues el delito mayor del hombre eshaber nacido...7

    Aqui em Caldern como em G oethe v-se ilustrada e sin-tetizada aquela experincia que se denomina niilismo existen-cial. A origem do niilismo , pois, em primeiro lugar um pro-blema vital que pode se transfigurar posteriormente em doutri-na intelectual e moral. A incubadora niilista, porm, localiza-se, antes de tudo, no interior da prpria existncia humana eemerge no instante em que o homem abre seus olhos para o

    mundo. No ato da viso, embora no saiba, v duas coisas: vque v e simultaneamente v que no v. Sim, porque essa radical e fundamentalmente a nossa prpria condio existen-cial. O fato de o que vemos no ser a viso de tudo, nos faz vere sentir que embora no possamos tudo ver, isso no impedeque vejamos necessariamente alguma coisa, o suficiente paraaguar, atiar e seduzir nossa sede de tudo ver e compreender.Plato, pela voz de Scrates, afirmava que nenhum homem

    perguntaria se soubesse tudo nem se nada soubesse.8 Essa pos-sibilidade impossvel e essa impossibilidade possvel nossodestino, nosso tormento intelectual, nossa sina. Nosso olhar

    7 Ferrater Mora, Jos,DicionriodeFilosofia. So Paulo: Loyola, 2001, v. 4. Trad.de Maria Stela Gonalves, Adail U Sobral, Marcos Bagno e Nicolas NyimiCampanrio.

    8 Cf., Meno, 80d.

    MUNARO, V. A. Niilismo: origens e desdobramentos

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    no apenas se curva e se extasia grandeza, beleza e clari-

    dade do mundo e das coisas, mas tambm se turva, mesclados sombras congnitas da prpria viso, nebulosidade do tem-po e do espao no qual se encontra, numa espcie de alimentonegativo que ofusca o globo ocular, numa redoma de incu-bao e criao de dolos. A idolatria se constitui, antes detudo, num drama intelectual, no religioso, j que o saber hu-mano pelo fato de tudo querer saber pode gerar e efetivamentegera saberes que no o so.

    Nossa viso, portanto, no v tudo, e s vezes nem mes-mo o essencial, porque no consegue ver o prprio ato que v.Entretanto aquele que no v que tudo no v, escapa ao deta-lhe nuclear da sua percepo visiva: no v o essencial de simesmo, j que ver que se v e ver que no tudo se v, partenecessria saudvel e humana viso. A inteligncia que com-preende que tudo no compreende, compreende reflexivamen-te a sua heterofundao, escapa ao delrio e loucura racional,pois sabe-se no criadora de si, tem o reconhecimento do ato

    que a possibilita. Reside aqui a diferena essencial entre o cogi-to agostiniano e o cogito cartesiano. No primeiro, a investiga-o racional no emerge como ltimo estgio da prpria ativi-dade racional, mas seu objetivo o seu fundamento no racio-nal. N o segundo, a razo se inebria de si mesma, edifica-se so-lipsisticamente transformando a subjetividade em fundamentode si mesmo. Entretanto, janela para o delrio intelectual des-conhecer que a capacidade de inteligir no obra do prprio

    inteligir. A inteligncia feita essencialmente para inteligir, v eintelige tudo o que v, mas no intelige fluente e diretamente omais radical e o mais prximo dos seus princpi