a religião pos moderna bauman

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A RELIGIÃO PÓS-MODERNA EM ZYGMUNT BAUMAN Marcelo do Nascimento Melchior 1 marcelomelchior @yahoo.com.br 1- INTRODUÇÃO A Liquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos “forasteiros indesejáveis”, e portanto o alívio é momentâneo, e as esperanças investidas nas “medidas duras e decisivas” se desvanecem tão logo se apresentam.”(BAUMAN, 2004,p.129) Zygmunt Bauman apresenta a modernidade com algumas particularidades referentes ao processo de vida na qual as pessoas perpassam o seu cotidiano. Principalmente no que remete-se aos conceitos que temos “pré-estabelecidos”, construindo cognitivamente “verdades” absolutas. A proposta de modernidade líquida é apresentada a partir da estrutura de cada índividuo. As pessoas não estão dispostas a abrir mão dos projetos individuais em nome dos projetos coletivos. Nesse processo os interesses individuais sobrepõem aos do grupo, cada um vivendo para sim não havendo mais a coletividade a união entre as pessoas. A modernidade criou um conjunto de padrões bem como condutas que determinam os sujeitos e suas possibilidades. Essas determinações provocam mudanças no sujeito, pois, a imposição de padrões de vida traz conseqüências de exclusão para o indíviduo, que não consegue ser aquilo que ele é, mas sim o que a modernidade o impõe. “ A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem defeituosa não está hoje na agenda – pelo menos não na agenda daquele domínio em que se supõe que a ação política resida. O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política”(BAUMAN,2000,p.12) Na modernidade líquida os padrões não estão dados, nem são impostos, eles são vistos como características individuais. “Os fluidos se movem facilmente(...), diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho”(BAUMAN,2000,p.8) Nesse contexto existem vários empecilhos, “pois os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem”(BAUMAN,2000,p.22). Mesmo tendo algumas barreiras o líquido consegue imergir o sólido, “des-construindo” e permeando o sólido com características diferenciadas, possibilitando um re-significado as coisas. Papel fundamental, é a libertação dos padrões que a sociedade autoritária impõe as pessoas, “uma sociedade que desenvolve em grande medida as necessidades materiais e mesmo culturais do homem”(BAUMAN,2000,p.12). Seguindo esse pensamento, temos como características fundamentais a ‘fluidez’ que o homem pós-moderno possui. Fazendo com que todas as relações sociais que são 1 Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestre em Educação pela mesma instituição. Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás – UFG.

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A Religião Pos Moderna Bauman

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  • A RELIGIO PS-MODERNA EM ZYGMUNT BAUMAN

    Marcelo do Nascimento Melchior1

    marcelomelchior @yahoo.com.br

    1- INTRODUO

    A Liquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos forasteiros indesejveis, e portanto o alvio momentneo, e as esperanas investidas nas medidas duras e decisivas se desvanecem to logo se apresentam.(BAUMAN, 2004,p.129)

    Zygmunt Bauman apresenta a modernidade com algumas particularidades referentes ao processo de vida na qual as pessoas perpassam o seu cotidiano. Principalmente no que remete-se aos conceitos que temos pr-estabelecidos, construindo cognitivamente verdades absolutas.

    A proposta de modernidade lquida apresentada a partir da estrutura de cada ndividuo. As pessoas no esto dispostas a abrir mo dos projetos individuais em nome dos projetos coletivos. Nesse processo os interesses individuais sobrepem aos do grupo, cada um vivendo para sim no havendo mais a coletividade a unio entre as pessoas. A modernidade criou um conjunto de padres bem como condutas que determinam os sujeitos e suas possibilidades.

    Essas determinaes provocam mudanas no sujeito, pois, a imposio de padres de vida traz conseqncias de excluso para o indviduo, que no consegue ser aquilo que ele , mas sim o que a modernidade o impe. A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem defeituosa no est hoje na agenda pelo menos no na agenda daquele domnio em que se supe que a ao poltica resida. O derretimento dos slidos, trao permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissoluo das foras que poderiam ter mantido a questo da ordem e do sistema na agenda poltica(BAUMAN,2000,p.12)

    Na modernidade lquida os padres no esto dados, nem so impostos, eles so vistos como caractersticas individuais. Os fluidos se movem facilmente(...), diferentemente dos slidos, no so facilmente contidos contornam certos obstculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho(BAUMAN,2000,p.8)

    Nesse contexto existem vrios empecilhos, pois os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contnua e crescente fluidez, principal fonte de sua fora e garantia de sua invencibilidade. E so esse derrocar, a fragilidade, o quebradio, o imediato dos laos e redes humanos que permitem que esses poderes operem(BAUMAN,2000,p.22).

    Mesmo tendo algumas barreiras o lquido consegue imergir o slido, des-construindo e permeando o slido com caractersticas diferenciadas, possibilitando um re-significado as coisas. Papel fundamental, a libertao dos padres que a sociedade autoritria impe as pessoas, uma sociedade que desenvolve em grande medida as necessidades materiais e mesmo culturais do homem(BAUMAN,2000,p.12). Seguindo esse pensamento, temos como caractersticas fundamentais a fluidez que o homem ps-moderno possui. Fazendo com que todas as relaes sociais que so

    1 Licenciado em Filosofia pela Universidade Catlica Dom Bosco. Mestre em Educao pela mesma instituio.

    Mestrando em Comunicao pela Universidade Federal de Gois UFG.

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    estabelecidas, no possuem mais, o carter de concretude, pois nada eterno, neste sentido a religio, os relacionamentos amorosos, a vida profissional e familiar...enfim, as relaes de um modo geral, na viso de Bauman so influenciadas por essa liquidez.

    2- CARACTERSTICAS QUE ESTO PRESENTE NO HOMEM PS-MODERNO

    a) Pluralidade: No existe um padro, uma forma, uma uniformidade, uma antropologia, mas projetos antropolgicos, uma variedade de projetos, resultando em contradies e fragmentos. A tolerncia, ao lado do pluralismo, outro valor bsico.

    b) Novidade: O homem ps-moderno aberto, criativo, no preso a formas e tradies, identificadas como velhas e ultrapassadas. A novidade no est somente em dar forma nova ao tradicional, mas criar algo genuinamente autntico e com tom moderno.

    c) Secularizao: O homem moderno no procura acabar com Deus e as formas religiosas. Simplesmente desloca para o universo amplo de realidades que o circunda. No Deus, no o universo, mas ele o centro. Tudo passa a existir e ter valor enquanto serve de resposta s necessidades e desejos.

    d)Racionalidade: Uma racionalidade pragmtica, onde vale a experincia e se busca compreender sempre melhor a realidade das coisas, a partir dos ditames da razo. Somente existe aquilo que foi decifrado e decodificado pelo microscpio. A tcnica aperfeioa a natureza e a molda para os fins e interesses humanos. Conseqentemente, no existem mitos e os esquemas lgicos e cientficos so os que dominam.

    e) Imerso no universo: O homem moderno se descobre imerso num universo maior que o circunda. Sente-se parte dele e tem a tendncia a deixar-se levar pelos ventos. Suas fraquezas encontram nas foras da natureza justificativa plausvel e desfruta os prazeres como partes do seu instinto.

    Vivemos numa era em que esperar se transformou num palavro. Gradualmente erradicamos (tanto possvel) a necessidade de esperar por qualquer coisa, e o adjetivo do momento instantneo. No podemos mais gastar meros 12 minutos fervendo uma panela de arroz, de modo que foi criada uma verso de dois minutos para microondas. No podemos ficar esperando que a pessoa certa chegue, de modo que aceleramos o encontro...Em nossa vidas pressionadas pelo tempo, parece que o cidado (...) do sculo XXI no tem mais tempo para coisa alguma. (BAUMAN, p.13, 2009)

    O individuo que percebe e projeta uma infinidade de possibilidades. Um homem auto-confiante, rodeado de abundncia e que consegue facilmente resolver seus problemas econmicos. O que outrora a sorte reservava para poucos, hoje considerado um direito de todos.

    Agraciado pela inovao tcnica, cientfica e pela mudana social, marcada pela liberdade, a democracia e a produo industrial. A ps-modernidade resgata o valor da subjetividade, do emocional acima do racional e do sujeito mergulhado na imensido do universo.

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    Esse sentimento s pode vir de um sentimento do tempo, do tempo preenchido com seus cuidados sendo estes o fio precioso com que se tecem as telas resplandecentes da ligao e do convvio. A receita ideal de Friedrich Nietzsche para uma vida feliz, plenamente humana um ideal que ganha popularidade em nossos tempos ps-modernos ou lquidos modernos , a imagem do Super homem, o grande mestre da arte da auto afirmao, capaz de evadir ou escapar de todos os grilhes que restringem a maioria dos mortais comuns. O Super-Homem um verdadeiro aristocrata os poderosos, os bem situados, os altivos, que pensavam que eles mesmos eram bons, e que suas aes eram boas quer dizer, at se renderam reao e chantagem do ressentimento vingativo de todos os vis, os pobres de esprito, os vulgares os plebeus, recuaram e perderam sua auto-confiana e determinao. (BAUMAN, p. 28, 2009)

    A pessoa rodeada de direitos e que dispe de um aparato social fortemente voltado para ele. A conscincia progressiva dos direitos individuais e sociais fizeram os homens todos iguais, realidade nunca experimentada antes. Mergulhado na liberdade e cercado de direitos que lhe garantem essa liberdade. Um homem projetado para o futuro. Tudo calculado em vista do futuro. Vive para o futuro e em vista do futuro. Percebe que tem responsabilidades com o futuro.

    O ser humano que faz a experincia de ser parte do cosmos, liberto de todo controle, aberto para novas experincias. Um homem que se nega a sujeitar-se a uma ideologia, seja capitalista ou socialista, que resgata a subjetividade e exige sua expresso, em todos os sentidos.

    3- VIDA SEM DEUS SECULARIZAO

    A religio, na verdade, a conscincia da insuficincia humana, vivida na admisso da fraqueza... A mensagem invarivel do culto religioso : do finito ao infinito, a distncia sempre infinita... (...) ns deparamos com dois caminhos inconciliveis de aceitar o mundo e a nossa posio nele, nenhum dos quais pode ufanar-se de ser mais racional do que o outro...Uma vez feita, qualquer escolha impe critrios de julgamento que, infalivelmente, a apiam numa lgica circular: se no h nenhum Deus, s critrios empricos devem guiar-nos o pensamento, e critrios empricos no conduzem a Deus, se Deus existe ele nos d pistas sobre como perceber Sua mo no curso dos acontecimentos, e com a ajuda dessas pistas reconhecemos a razo divina do que quer que acontea. (BAUMAN, p.209, 1998)

    O termo secularizao engloba vrios componentes. Geralmente se compreende como a vida sem Deus e sem religio. Isto porque no passado eram esses componentes a ditar a viso de mundo, a auto-compreenso e definio humana e a orientao do agir. A tentativa de estabelecer um binmio ou oposio como Deus-mundo, f-razo, cincia-crena, no so verdadeiros deste perodo. Na verdade, a secularizao no quer eliminar Deus e a religio, mas simplesmente fazer que ocupem o seu novo espao dentro do novo horizonte de compreenso. Na viso e compreenso do homem moderno, o centro do universo passa a ser ele mesmo. Deus e o mundo passam para um segundo ou terceiro plano.

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    Alguns fatos so responsveis por esse fenmeno, mas surtiram efeitos no prprio homem, na sua viso de mundo e de si mesmo. Colaboraram para isso: Coprnico e a confirmao de que o sol o centro do universo; Galileu Galilei e a descoberta de que a terra gira ao redor do sol; Charles Darwin e a sua teoria de que o homem descende do macaco; Sigmund Freud e a intuio de que o homem um conjunto de emoes no muito diferentes dos outros animais. A moderna gentica tambm exerce uma forte e atual presena: reduz o indivduo e suas manifestaes a fatores de genes e DNA.

    (...) o humanismo no estava to pronto para poder tornar-se tudo o quanto pudesse querer, como pronto para querer tornar-se o que realmente se podia (dada a ampla, embora no necessariamente infinita, riqueza do potencial humano): querendo apenas essas coisas por que se pode fazer algo prtico e concreto para tornar-se verdadeiras. A vida aps a morte claramente no pertence a essa categorias de coisas. A idia de auto-suficincia humana minou o domnio da religio institucionalizada no prometendo um caminho alternativo para a vida eterna, mas chamando a ateno humana para longe desse ponto; concentrando-se em vez disso, em tarefas que o ser humano pode executar e cuja as conseqncias eles podem experimentar enquanto ainda so seres que experimentam e isto significa aqui nessa vida. (BAUMAN, p.209, 1998)

    O homem passa a ocupar a primazia no conjunto da realidade global, tudo orientado em sua direo e desbanca a Deus. No entanto, ele se descobre pouco consistente e frgil. A certeza e organizao e explicao do universo cedem espao para a incerteza e tudo aquilo que provisrio.

    Porm, o termo secular engloba alguns outros elementos os quais merecem ateno, como, por exemplo, a valorizao da experincia como forma de conhecer o universo e a si mesmo. As pessoas querem cada vez mais experincias e no aceitam no poder realiza-las. Para isto no basta somente a comprovao cientfica. Cada pessoa se torna um cientista, querendo experimentar tudo e de tudo!, como direito que lhe cabe. No basta mais aquilo que nossos pais nos contaram, seno aquilo que cada um mesmo experimenta. O fator de avaliao dessas experincias no objetivo, mas subjetivo, a partir dos efeitos, resultados e do papel que a mesma experincia joga no universo de sensaes pessoais. Nesse caso, a mesma experincia pode ser vista como positiva ou como negativa, dependendo dos sujeitos implicados na mesma.

    Nessa tentativa no existem fronteiras. A vida passa a ser medida a partir das experincias realizadas. O limite a ser alcanado nico: a globalidade. Assim, muitos se colocam a caminho, literalmente montados em suas bicicletas, embarcaes, bales, carros, etc., afinal, no existem limites. Aventurar-se em busca do novo, do diferente, ir alm-fronteiras. No fundo, o fato revela o interior insacivel desse homem moderno. Ele quer conhecer a Deus, a si mesmo e o mundo, estabelecer novos paradigmas de compreenso do universo. No fundo, descobre-se o antigo desejo humano de conhecer-se a si mesmo.

    Num mundo em que todos os meios de vida so permitidos mas nenhum seguro, elas mostram coragem suficiente para dizer, aos que esto vidos de escutar, o que decidir de maneira que a deciso continue segura e se justifique em todos os julgamentos a que interesse. A esse respeito o

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    fundamentalismo religioso pertence a uma famlia mais ampla de solues totalitrias ou protototalitrias, oferecidas a todos os que deparam a carga da liberdade individual excessiva e insuportvel. (BAUMAN, p.229, 1998)

    Somente a partir da experincia que comea a elaborar uma resposta e ao pessoal. Porm, tudo muito frgil e provisrio, afinal, a experincia no se esgota. O amanh poder ser diferente e, nesse caso, as determinaes de hoje podero no ser as mesmas de amanh.

    O importante no ter amarras, no se aprisionar a nada. Se, no passado, o estabelecimento de Deus e seu senhorio no universo resultavam no estabelecimento de verdades absolutas e um papel perifrico ao homem, agora no existem absolutos. Tudo muito provisrio, relativo, em vir-a-ser. Tudo projeto, no existe nada acabado.

    Esse processo colabora para que o homem moderno passe a uma fase de auto-assuno, comparado maioridade, onde se reconhece como responsvel por si e por sua prpria histria, responsvel pelo universo e pelos demais.

    O retorno ao sagrado, ao esotrico, ao demonaco e o culto ao mal so fenmenos da ps-modernidade. Formas religiosas e crendices consideradas ultrapassadas e infantis retornaram com novas foras e novos ares. Pelas avenidas, bairros, nas cidades e mesmo em pequenas cidades do interior, se vem smbolos, ritos, imagens, pessoas e igrejas de credos diferentes. H situaes, algumas engraadas e outras conflitivas, nas quais numa mesma famlia se encontram vrios credos e tendncias religiosas. Em pouco tempo possvel ver diversos templos e formas religiosas, tanto in loco quanto via satlite.

    Muitas pessoas esto totalmente mergulhados na f, organizam a vida a partir dela e no abrem mo da participao ativa. So xiitas, ortodoxos, crentes e se reconhecem pertencentes ao mundo dos j salvos e com a misso de salvar os perdidos, os infelizes; outros so totalmente indiferentes a uma nica instituio religiosa, dando preferncia s solues rpidas e preenchimento de um vazio de sentido. Muitos simplesmente se limitam a afirmar crer numa energia universal, no ser superior, mas que to distante quanto eles prprios o so dele. Ao lado disso tudo, cresce o nmero daqueles que se denominam sem religio, o que no significa que sejam ateus.

    Este fenmeno no se restringe a uma camada social. So ricos e pobres, doentes e sos, professores universitrios e serventes de pedreiro. Todos professam sua crena e a manifestam na medida de suas necessidades. Empresrios participam de culto evanglico, militares participando de missa, populares fazendo oferta Iemanj, motoqueiros carregando a imagem de N. Sra. Aparecida. Chegamos ao tempo em que a religio de alguma tribo: surfistas, eskaitistas, homossexuais, empresrios liberais, etc.

    Ser que Deus venceu a batalha? Ser que o Deus morto dos filsofos passados acordou e resolveu retomar seus poderes e as rdeas da histria?

    Na verdade, o que existe a formao do coquetel religioso. O homem ps-moderno vive a religio la carte, de tipo self-service, numa mistura de vrios aspectos que mais interessam e satisfazem as exigncias e necessidades momentneas. Na busca do sentido da vida, cria-se o deus e a religio pessoal: Jesus Cristo sim, Igreja no. O boom religioso revela isto: seitas, cultos, esoterismos, filosofias orientais, yoga, etc., num verdadeiro misticismo difuso e ecltico, onde se vive a preferncia religiosa e o suave consumismo religioso. A razo disso se encontra tambm no fato de o sagrado ter-se libertado do domnio da religio, isso , qualquer pessoa pode atribuir-se o ttulo de bispo, missionrio e oferecer o servio religioso como qualquer servio de tele-entrega rpida e solues milagrosas.

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    O homem moderno no serve a Deus, mas se faz servir dele. Culto e Igreja, na medida do necessrio e quando sobra um tempinho, afinal, tudo o que demais, faz mal. A fidelidade a uma nica Igreja e a uma nica viso de Deus so prejudiciais, pois, segundo o homem moderno, h outras facetas e aspectos que devem ser privilegiados e que uma nica religio no completa. Assim, da missa de domingo se passa para o centro esprita de tera-feira, para a leitura e meditao da palavra de Deus no culto evanglico de quarta noite, para a terreiro de umbanda de sexta-feira e para a fazenda budista de sbado.

    O resultado disto o que se v: ofertas religiosas as mais variadas possveis. Igrejas, academias, farmcias e motis o que mais se v nas ruas. So as instituies que mais proliferam e, no fundo, cada uma responde na medida exata ao que o homem moderno busca. O comrcio religioso, em muitos casos, assume as mesmas caractersticas de qualquer oferta de produto, em nada diferente da venda de celulares, eletrodomsticos, carros, programas erticos, etc. So ofertas religiosas em anncios de jornais, rdios, outdoors, panfletos em esquinas movimentadas, liquidao de bnos e orao de cura pela metade do preo. O missionrio que faz milagres, o professor que l o futuro, a irm que d conselhos, o padre que faz show missa, o mestre que faz curso de meditao. Em tudo aparece a fuga do vazio, do anonimato e da vida sem sentido. O importante no o que se cr e nem a medida desta crena, mas como forma de identificao com alguns outros e de autonomia, como demonstrao da autonomia pessoal que se demonstra at mesmo na capacidade de comandar o prprio Deus.

    REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS

    BAUMAN, Zygmunt. Tempos Lquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

    _____,Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

    _____,Medo Liquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

    _____,O Mal Estar da ps modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

    _____,Vida para Consumo: a transformao das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

    _____,Amor Lquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

    _____,Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

    _____,TICA PS MODERNA. So Paulo: Paulus, 1997.

    TEOLOGIA DA MORTE DE DEUS: INTRODUO AO PENSAMENTO DE DIETRICH BONHOEFFER

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    E SEU ATESMO CRISTO2

    Consideraes iniciais

    Dietrich Bonhoeffer conhecido fora do meio teolgico como um opositor de Adolf Hitler, que, assim como Karl Barth e Paul Tillich se opuseram a apropriao feita pelo Regime Nazista de smbolos cristos, produzindo uma resposta veemente a esse. Nessa poca Bonhoeffer assim como os outros dois j eram telogos muito respeitados na Alemanha e na Europa, tendo Bonhoeffer uma posio de destaque entre esses, com uma produo teolgica de altssimo valor. Por isso, destacamos Bonhoeffer pelo seu pensamento e no meramente por ter sido opositor de Hitler ou considerado um mrtir da f crist protestante.

    Bonhoeffer e o Nazismo

    Apesar de ser a inteno desse trabalho uma anlise do pensamento bonhofferiano ser destacado brevemente o seu envolvimento com a j citada oposio ao governo de Hitler.

    Entre os telogos anteriormente citados Dietrich Bonhoeffer foi quem teve o fim mais trgico, sendo que aps o Conclio de Barmen3 o telogo assumiu uma posio poltica mais radical, ingressando na resistncia militar ao regime, na qual em conjunto com o general Beck e o almirante Canrer, participaram de um plano para assassinar Hitler. O plano fora descoberto e o telogo preso em 5 de abril de 1943, ficando detido em uma seo militar em Tegel nas proximidades de Berlim durante dezoito meses. No princpio de 1945 Bonhoeffer foi transferido para o campo de concentrao de Bunchenwald, onde fora enforcado em 8 de abril, pouco antes da queda do Terceiro Reich. Aconteceu o que ele e Barth diziam desde o princpio de sua resistncia ao nazismo A nica coisa que o nazismo pode fazer contra ns nos matar. (MONDIN, 2003, p. 204).

    Sua obra

    Fora enforcado pelo nazismo aos 39 anos. Mesmo com sua morte precoce, podem ser destacadas algumas obras de elevada importncia que o coloca entre os grandes telogos do sculo XX. Diferentemente do que alguns possam pensar que Bonhoeffer s respeitado por ser um mrtir cristo, afinal j era um telogo altamente importante quando vivo. Dentre suas principais obras podem ser destacadas: Sanctorum Comunio4 (1930), Ark und Sein: Transzendentalphilosophie und Ontologie in der Sistematichen Theologie (1931), Nachfolge (1937), (Imitao), Etik (1939), (tica) e um livro pstumo que uma coletnea de cartas enviadas pelo telogo a amigos e famlia quando estava na priso em Berlim, Widerstand und Ergebung: Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft (1951), (Resistncia e Submisso), esse ltimo um livro magnfico, que mostra uma f incrivelmente inabalvel, quando o autor passava por um momento de turbulncia extrema, com certeza um livro que merece ser lido, no apenas por telogos e cristos, mas por todos aqueles que se sensibilizam com os sentimentos humanos.

    2 Makchwell Coimbra Narcizo

    Universidade Federal de Gois Graduando em Histria [email protected] 3 Conclio que se postou contra o Governo Social-Nacionalista. Contando com grandes lideranas do

    protestantismo alemo. Nesse conclio fora redigida a Confisso de Barmen, um dos documentos cristos mais importantes do sculo XX. 4 As obras com referncia em portugus entre parnteses so as que existem traduo para o portugus e edio

    brasileira.

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    Suas influncias

    Dentre seus principais influenciadores podem ser destacadas: Lutero (o qual o autor tentou atualizar para a modernidade), Kant (trabalhando com a concepo de limites da razo), Harnack (mesmo indo contra seu antigo mestre, que era adepto da teologia liberal, to criticada por Bonhoeffer), Thomas de Kemps (adotando seu conceito de imitao), Karl Holl e Renhold Seeberg (promotores do chamado renascimento luterano) e Karl Barth e Emil Brunner (apesar de ter rompido com esses posteriormente).

    Pensamento (A Teologia da Morte de Deus)

    Bonhoeffer o principal precursor do que ficou conhecido como: Teologia da Morte de Deus ou Atesmo Cristo ou ainda Cristocentrismo a-religioso. No qual o telogo ao ver a ineficcia da pregao crist ao homem moderno, sendo que o autor no identifica o atesmo como uma heresia ou meramente uma averso igreja, pois, nada mais do que um trao essencial do homem moderno, que imerso nas conquistas da modernidade, no consegue mais ser um homem religioso; sendo assim, prope a libertao da mensagem bblica, fazendo isso em termos a-religiosos que o nico que o homem moderno compreende e pode compreender.

    A questo est centrada justamente na natureza da teologia na interpretao de Bonhoeffer, na medida em que para esse para uma melhor interpretao da mensagem crist necessrio que se faa antes uma secularizao dessa mensagem. O problema que, existe uma linguagem cujo qual a mensagem crist est posta, sendo essa uma linguagem idealista que na verdade a linguagem clssica. Assim, para uma correta compreenso da mensagem crist, que o principal fundamento do telogo de Wroclaw necessrio que essa seja feita uma substituio dessa linguagem para uma linguagem mais moderna. Assim, sua interpretao mais radical que a de Rudolf Bultmann, que prope rever as vestes mitolgicas da mensagem crist assim como suas bases filosficas, para Bonhoeffer necessrio ir alm, necessrio mudar a linguagem religiosa que fora expresso originalmente. (MONDIN, 2003, 211).

    Para Bonhoeffer a questo no separar Deus e os milagres como prope Bultmann (BULTMANN et. Al., 1999; 2003a; 2003b), mas sim os interpretar abertamente em um sentido no-religioso, j que para o autor essa uma exigncia do homem moderno.

    Segundo Bonhoeffer houve uma crescente secularizao da igreja, que para ele independendo do pas ser catlico ou protestante, houve no perodo da Reforma uma emancipao do homem perante Deus. Esta celebrada como a emancipao do homem na conscincia, na razo e na cultura, e como a justificao do secular enquanto tal. A f bblica dos Reformadores em Deus afastou-os do mundo, acontecendo com o mundo da seguinte maneira:

    Preparou-se de tal forma para o florescimento das cincias matemticas e experimentais que, ao passo que os cientistas dos sculos XVI e XVII ainda eram crentes, quando a f em Deus decaiu, restou apenas um mundo racionalizado e mecanizado. (BULTMAN, 1939, Apud: MONDIN, 2003, p. 221).

    Assim, a razo emancipada conquistara o mundo, levando a um triunfo da cincia tcnica, o que relegou a igreja de um lugar de domnio a um no lugar frente s necessidades do mundo. Levando no apenas a uma negao terica da existncia de Deus, mas segundo Mondin (2003, 222) a uma hostilidade a Deus. At por isso como argumenta Mondin (2003, 222): A est a caracterstica do atesmo ocidental. Ele no pode desfazer-se de seu passado. No pode ser essencialmente seno

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    uma religio, essa no renegao de seu passado faz com que esse atesmo seja diferente de outros atesmos como de alguns gregos, indianos ou chineses.

    Assim, conclui Bonhoeffer:

    Seria um erro grosseiro identificar o atesmo com a averso igreja: o atesmo um trao essencial do homem moderno, que, depois das conquistas da cincia e da tcnica, no pode mais ser um homem religioso (...) O homem moderno aprendeu a enfrentar qualquer problema, mesmo os importantes, sem recorrer a hiptese da existncia e da interveno de Deus. (BULTMAN, 1939, Apud: MONDIN, 2003, p. 222).

    Bonhoeffer prope o abandono das tcnicas tradicionais tanto da teologia quanto das pregaes, que podem ser encaradas como uma ofensa a modernidade no religiosa, fazendo uma atualizao teolgica e hermenutica da mensagem crist, que tem como essncia o prprio Cristo, devendo ser apenas cristocntrica. Assim, a pregao deve ser baseada no na vivencia de cada homem como era () feito at ento, mas de um Deus que possa explicar o mundo.

    Como fazer isso ento, j que o homem moderno aprendeu a resolver seus problemas sem recorrer hiptese da existncia de Deus? A questo para Bonhoeffer que o que designamos chamar Deus est confinado fora das coisas da vida, alm do mais as respostas que antes deveriam ser dadas por Deus, saram da alada de da igreja e da teologia, sendo respondidas (ou tentativas de respostas) pela psicanlise, sociologias ou pela medicina. Assim, para Bonhoeffer a nica chance de a igreja se fazer valer levando sua mensagem para uma maior parte do mundo ter coragem de rever os fundamentos de sua mensagem: O nico modo de sermos honestos reconhecer que devemos viver no mundo etsi deus non deuretur, como se Deus no existisse. (BONHOEFFER, 2003, 241).

    Como ento deve ser a relao da igreja com esse mundo des-religiozizado, j que o cristo tem o dever de passar a frente as boas novas do evangelho? A resposta de Bonhoeffer simples, pelo exemplo, pois assim, talvez, com o exemplo cristo, possa se fazer com que os outros intuam o contedo da f desses. Nas palavras de Bonhoeffer:

    Que o cristo permanea no mundo, mas no pela bondade da criao ou por sua responsabilidade em relao ao curso do mundo, mas por amor ao Corpo de Cristo encarnado e por amor a igreja. Que permanea no mundo para empenhar-se no ataque contra ele e que viva a vida de sua vocao secular para mostrar-se ainda mais como um estrangeiro nesse mundo. (BULTMAN, 1937, Apud: MONDIN, 2003, p. 224).

    A inteno de Bonhoeffer no como muitos podem interpretar e tm intepretado alguns, de fazer a linguagem crist adotar uma linguagem seular, mas sim, de faze-la perder a eficcia frente ao testemuno.

    Como expresso anteriormente esse telogo morrera jovem, no auge de sua produo, assim, no pode concluir alguns de seus pensamentos e tampouco responder a algumas indagaes a esse. Como a questo de como funciona ento essa circularidade entre o cristo que testemunha o mundo a religioso? Na medida em que, as pessoas que porventura aceitem a mensagem cristo esto nesse mundo a-religioso. Alm de no ter visto a falncia da religio da cincia aps a destruio da Europa, que muito se deu por ideais cientificistas ou se apoiando nessas.

    No concordamos com quem liga diretamente o pensamento de Bonhoeffer e sua Teologia da Morte de Deus com o que ficou conhecida em especial na dcada de 1960 como Teologia Radial. Esse pensamento tratava que uma vez que Deus no era empiricamente verificvel, a viso do mundo

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    bblico foi tida por mitolgica e inaceitvel para a mente moderna. A verdade que essa ala teolgica se apropriou no tanto do pensamento bonhoefferiano, afinal a questo da morte de Deus est presente no Ocidente desde muito tempo, passado desde Nietzsche a Dostoievski, o que esses telogos apropriaram de fato de Bonhoeffer foi mais um vocabulrio do que o pensamento propriamente dito.

    No Brasil Bonhoeffer nunca foi muito conhecido nem mesmo nos crculos acadmico-teolgicos, entretanto isso comea a mudar, nos ltimos anos h uma campanha de divulgao do pensamento do telogo, feita especialmente pala Escola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evanglica Luterana no Brasil (IECLB). Em 1995 na ocasio do cinqentenrio do assassinato de Bonhoeffer, a EST promoveu o dia de Bonhoeffer, no qual estudantes e telogos tiveram como pauta a vida e a teologia do telogo alemo. Desde ento obras do autor passaram a ser publicadas e republicadas.

    No caso de Bonhoeffer no se pode falar de uma influncia posterior Segunda Guerra Mundial, afinal esse no sobreviveu a ela, sendo silenciado um dos telogos mais brilhantes que o protestantismo j produziu, entretanto, importante ressaltar que no perodo em que esteve prezo sua teologia ressaltava ainda mais a necessidade da mensagem crist atingir o homem moderno, mas infelizmente no pode desenvolver seu pensamento. A teologia bonhoeffiana veio denunciar que o homem moderno no aceitava a pregao crist e que algo deveria ser feito para que atingisse esse objetivo, talvez seja essa a grande contribuio desse autor teologia do sculo XX. Na crise em que a modernidade vive, sendo criticada por algumas correntes, o pensamento bonhoefferiano se faz ainda mais necessrio para os cristos.

    Bibliografia

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    Ttulo: A doena do atesmo entre os gregos

    Autor: Hermisten Maia Pereira da Costa

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    Vinculao Institucional: Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

    Titulao Acadmica: Doutor

    E-mail: [email protected]

    Grupo de Pesquisa: Atesmo e Crtica Religiosa

    Resumo:

    Partindo da compreenso de Plato de que o atesmo uma doena (Plato, Leis, 908c), examino preferencialmente as obras primrias, investigando de forma introdutria alguns autores da Grcia antiga, especialmente, Xenfanes, Herclito, Empdocles e Scrates, analisando as suas crticas religio prevalecente, avaliando se tais crticas eram sinais de atesmo ou resultado de uma perspectiva da inconsistncia da religio dominante.

    A doena do atesmo entre os Gregos

    Hermisten Maia Pereira da Costa

    Introduo

    A Religio um fenmeno universal. A Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Arqueologia e a Histria, entre outras cincias, tm demonstrado de forma convincente que a religio est presente em todas as culturas antigas e modernas. Por isso, podemos falar do homem como sendo um ser religioso. O homem procura desesperadamente um significado para a sua vida, tentando encontrar um equilbrio entre os seus extremos existenciais: a vida e a morte, o ser e o nada, a ordem e o caos. Dentro desta perspectiva, o caminho religioso , quase que invariavelmente seguido pelo homem na busca de significado para o seu existir. A experincia religiosa universal, assumindo caractersticas pessoais e, ao mesmo tempo universais. Do mesmo modo que minha experincia particular e pessoal, ela tem em si os mesmos ingredientes da experincia do outro: todos desejam o mesmo equilbrio, ainda que no pelos mesmos caminhos e com nomes diferentes. A religio um apangio do ser humano.

    O grande etnlogo Bronislaw Malinowski (1884-1942), inicia o seu livro Magia, Cincia e Religio, com esta afirmao: No existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religio nem magia (MALINOWSKI, [s.d], p. 19).

    Na Antigidade, Ccero (106-43 a.C.), Plutarco (50-125 AD) e outros, constataram este fato. Ccero observou que no h povo to brbaro, no h gente to brutal e selvagem, que no tenha em si a convico de que h Deus (Ver: CICERO, 1972, I.17; II.4).

    Mas, o que significa religio? Ainda que no possamos responder a questo apenas pela simples explicao da palavra, acreditamos que esta pode fornecer-nos algumas pistas. A palavra religio de origem incerta. Ccero (106-43 a.C.), associa a palavra ao verbo latino relegere (reler, ler com cuidado) (CICERO, 1972, II.72-74). Ccero, assim explicou: Aqueles que cumpriam cuidadosamente com todos os atos do culto divino e por assim dizer os reliam atentamente foram

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    chamados de religiosos de relegere, como elegantes de eligere, diligentes de diligere, e inteligentes de intellegere; de fato, nota-se em todas estas palavras o mesmo valor de legere que est presente em religio (CICERO, 1972, II.28). Deste modo, a religio seria o estudo diligente acompanhado da observncia das coisas que pertencem aos deuses (MULLER, 1985, p. 262).

    No entanto, a explicao mais famosa, relaciona a origem da palavra religio e religare (religar) trazendo a idia embutida de religar-se com Deus. Essa explicao encontra-se em Lactncio (c. 240-c. 320) Divinae Institutiones, (c. 304-313) e Agostinho (354-430) De Civitate Dei (1990, Vol. I, X.3, p. 373 e X.32, p. 410-414) e De Vera Religione.

    Lactncio que discorda da explicao de Ccero, diz: Ns dissemos que o nome religio (religionis) derivado do vnculo de devoo, porque Deus ligou o homem a Ele, e o prende por devoo; porque ns O temos que servir como um mestre, e ser-Lhe obediente como a um pai (LACTANTIUS, 1994, IV.28, p. 131).

    Agostinho, aps falar do que no devemos adorar, afirma: Que a nossa religio nos ligue, pois, ao Deus nico e onipotente (AGOSTINHO, 1987, 55, p. 145).

    Thomas Hobbes (1588-1679) em 1651, vai um pouco alm, concluindo que a religio exclusividade do ser humano: Verificando que s no homem encontramos sinais, ou frutos da religio, no h motivo para duvidar que a semente da religio se encontra tambm apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que no se encontra em outras criaturas vivas (1974, p. 69).

    1. A Antigidade Pag: Os deuses, nossos companheiros:

    Na Antigidade no era raro ou anormal, um homem ser chamado de filho de deus. O mundo estava cheio de homens considerados divinos, semideuses e heris nascidos de casamentos dos deuses com os mortais. Tais homens se diziam filhos de deus e, por isso, eram em alguns casos, at mesmo adorados, como manifestaes da divindade. Mesmo o Novo Testamento apresenta alguns indcios deste costume entre os pagos (Atos dos Apstolos 8.9-11; 12.21,22; 14.11,12; 28.6).

    O episdio narrado por Lucas em Atos 14.8-18 ilustra bem a crena do povo. E, neste caso, h algo curioso: Jpiter e Mercrio, os quais foram identificados pelo povo como sendo Barnab e Paulo, respectivamente (At 14.12), eram associados regio pela literatura latina. Ovdio (42 a.C.-18 d.C.), em sua obra principal, Metamorfoses, narra que o pobre casal, Filemon e Bucis, hospedou em sua humilde casa, Jpiter e Hermes (= Mercrio), que vieram sua cidade disfarados de mortais procura de uma hospedagem, e que no conseguiram pousada em nenhuma das mil casas da regio, exceto na do casal. Filemon e Bucis, por este ato de hospitalidade, conta-nos Ovdio, foram recompensados sendo poupados do dilvio que destruiu as casas de seus vizinhos no hospitaleiros, tendo, inclusive, num ato simultneo a sua pequena casa transformada num templo e, a pedido receberam a incumbncia de serem sacerdotes e guardies do santurio de Jpiter e, conforme solicitaram, Filemon e Bucis, morreram juntos (OVDIO, 1983, VIII, p. 214-216).

    Esta lenda que j era bem conhecida nos tempos de Paulo e Barnab, esclarece porque to prontamente o povo os identificou com tais divindades aps o milagre realizado por Deus atravs deles. Alm disso, a idia de que as divindades assumissem temporariamente uma forma humana, j fazia parte da religiosidade do povo. Homero, o grande poeta grego, em sua Odissia, escrita por volta do sc. IX a.C., registrou: Os deuses tomam s vezes a figura de estrangeiros, vindos de longes terras e, sob aspectos diversos, vo de cidade em cidade, a fim de ficarem conhecendo quais os homens soberbos e quais os justos (1979, XVII, p. 162).

    Em outra passagem, na mesma obra, Homero narra como a deusa Palas Atena, filha de Zeus (= Jpiter), se aproximou em determinado momento, do seu protegido, Ulisses. Dele se abeirou Atena, sob o aspecto de um adolescente pastor de ovelhas, gentil como so os filhos dos prncipes, os ombros

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    recobertos de dupla e fina capa, trazendo nos ps reluzentes sandlias e na mo um cajado (1979, XIII, p. 123).

    Ulisses, no dilogo que se sucede aps a identificao da deusa, diz: Deusa, quando te aproximas de um mortal, muito dificilmente este te reconhecer, por hbil que seja, porque tomas todos os aspectos (1979, XIII, p. 125).

    O fato que na Antigidade a histria estava repleta de intervenes divinas e, de certa forma o povo era governado pela divindade, visto que, especialmente no Oriente, o rei era tido como filho de algum deus. No Egito, o monarca reinante era considerado divino, sendo concebido como uma gerao fsica do deus supremo, chamado R; o rei era uma espcie de epifania (manifestao) do prprio deus. Na Arbia, o rei era adorado como se fosse deus. Para os sumerianos, babilnios e rabes, o rei era visto como filho adotivo de um ou de vrios deuses.

    Os colonizadores gregos em suas conquistas chefiados por Filipe da Macednia (c. 382-336 a.C.) e posteriormente por seu filho, Alexandre o Grande (356-324 a.C.), assimilaram tais idias mesclando-as com a sua mitologia tradicional, que por si s j era bastante complexa. Dentro deste sincretismo religioso, encontramos o imperador romano, sendo chamado de Divi Filius; os gregos criam que muitos homens descendiam fisicamente dos deuses; a ascendncia divina que determinava a existncia dos reis, filsofos, sacerdotes e justos.

    Tais crenas proliferavam, assumindo particularidades em cada cidade e at mesmo em cada famlia, crescendo ainda mais o nmero de divindades, sendo somado a isto, um processo intenso de canonizao dos homens. O historiador Fustel de Coulanges (1975, p. 117-118), escreveu sobre este processo:

    Todo homem, tendo prestado algum grande servio cidade, desde aquele que fundara at outro que lhe conseguira alguma vitria ou aperfeioara suas leis, tornava-se um deus para essa cidade. Nem sequer se torna necessrio ter sido grande homem ou benfeitor; bastava haver impressionado vivamente a imaginao de seus contemporneos e ter-se tornado alvo de tradio popular, para qualquer pessoa se tornar heri, isto , um morto poderoso cuja proteo fosse desejada e cuja clera temida (...). Os mortos, fossem quais fossem, eram os guardas do pas, sob condio de se lhes prestar culto.

    Por isso que, por mais que recuemos na histria, sempre acharemos no Oriente, povos, tribos e famlias, que alegam serem provenientes de um ancestral divino.

    Havia tambm, homens que eram considerados como que possuidores de habilidades divinas para realizarem milagres, sendo chamados de homens divinos. Existiam os crculos dos espirituais que entendiam que uma pessoa podia tornar-se divina mediante o desenvolvimento do conhecimento de Deus. Em sntese, a idia de filho de deus, refletia uma confuso existente no conceito de divindade e humanidade, acarretando, via de regra, uma diminuio da idia de deus e, tambm, por outro lado, uma elevao do homem.

    2. A Crtica Grega Religiosidade Predominante:

    Na Grcia antiga, atesmo era a acusao comum feita queles que fizessem crtica religio predominante. Se a pessoa fosse pblica ou influente, essa acusao poderia servir como forma de vingana ou, para desacredit-lo diante da opinio pblica. O caso mais conhecido o do filsofo

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    Scrates (469-399 a.C.), que entre outras acusaes teve a de .... no crer nos deuses em que o povo cr e sim em outras divindades novas (PLATO, 1972, 24b-c, p. 17).5

    Mas, na realidade apesar de listas antigas de ateus gregos (GUTHRIE, 1995, p. 220-221), cuja crena denominada por Plato (427-347 a.C.) de doena (PLATO, 1999, IX, p. 357-358, 402) tem sido extremamente difcil provar alm de qualquer contestao, que algum pensador grego tivesse sido ateu puro. No entanto, o que acontecia era coisa diferente: apesar do paganismo grego da Antigidade ser cheio de lendas e supersties, de quando em quando alguns pensadores se levantavam contra as crenas e costumes populares, declarando algo de relevo. Muitas das crticas estavam relacionadas ainda que no solitariamente , fragilidade moral dos deuses to candidamente descrita nas obras de cunho histrico-religioso e que dominavam a mente dos povos. Encontramos, por exemplo, a percepo de que os homens tendiam a fazer seus deuses sua imagem e semelhana. Alis, esta uma caracterstica do ser humano, projetando o seu mundo a partir de si mesmo, dando uma espcie de troco a Deus.

    Entre os filsofos da Antigidade que souberam criticar com discernimento as prticas religiosas do seu tempo, destacamos Xenfanes (c. 570-c.460 a.C.), Herclito (c. 540-480 a.C.) e Empdocles (c. 495-455 a.C.).

    Xenfanes faz uma crtica mordaz a Homero e Hesodo, dizendo:

    "Homero e Hesodo atriburam aos deuses tudo o que para os homens oprbrio e vergonha: roubo, adultrio e fraudes recprocas.

    "Como contavam dos deuses muitssimas aes contrrias s leis: roubo, adultrio, e fraudes recprocas.

    "Mas os mortais imaginam que os deuses so engendrados, tm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles.

    "Tivessem os bois, os cavalos e os lees mos, e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espcie animal) reproduzindo a sua prpria forma.

    "Os etopes dizem que os seus deuses so negros e de nariz chato, os trcios dizem que tm olhos azuis e cabelos vermelhos" (1977, Fragmentos 11-16).

    Xenfanes propunha uma viso prxima ao monotesmo ou pelo menos, um politesmo no antropomrfico (GUTHRIE, 1995, p. 211), mas, ainda assim, cosmolgico, identificando, conforme pontua Aristteles, o uno, ou seja, o universo, como sendo Deus (ARISTTELES, 1973, p. 223). Xenfanes (1977, Fragmento 23) escreve: Um nico deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais. Na realidade, Xenfanes destaca um deus supremo acima dos demais deuses e dos homens (GILSON, 2006, p. 55).

    Reale e Antiseri acentuam que depois das crticas de Xenfanes, o homem ocidental poder nunca mais conceber o divino segundo formas e medidas humanas. (REALE; ANTISERI, 1990, Vol. 1, p. 48).

    Herclito a quem, juntamente com Scrates, Justino considera cristo antes de Cristo (JUSTINO DE ROMA, 1995, p. 61-62) , ridiculariza o

    5Evidentemente, h inmeros outros casos. Um outro bem conhecido o de Digoras de Melos alis, em todas as menes feitas ao seu nome, aparece o apelido de o atesta , discpulo de Demcrito, que foi acusado de impiedade quando ensinava em Atenas (411 a.C.) devido ao seu suposto atesmo (Vejam-se: CICERO, 1972, I.1. p. 69; III.88-90, p. 232; GUTHRIE, 1995, p. 220-221).

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    antropomorfismo e a idolatria da religio contempornea, dirigindo a sua crtica prtica do sacrifcio como meio de purificao, e s oraes feitas s imagens: Em vo procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vtimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se algum o descobrisse agindo assim. Dirigem tambm suas oraes a esttuas, como se fosse possvel conversar com edifcios, ignorando o que so os deuses e os heris (HERCLITO, 1977, Fragmento 5). Talvez isto revele o que Herclito expressa no Fragmento 79: "O homem infantil frente divindade, assim como a criana frente ao homem." Todavia devemos ressaltar que ele no era irreligioso, apenas discordava da prtica religiosa que via. (HERCLITO, 1977, Fragmentos 14 e 67).

    Herclito, fugindo da idia de fatalismo, entendia que o homem responsvel pelos seus atos, portanto, afirma: "O carter para o homem um demnio" (dai/mwn). (1977, Frag., 119).

    Empdocles fala do privilgio de se conhecer a Deus, que um ser espiritual:

    "Bem aventurado o homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina; desgraado o que guarda uma opinio obscura sobre os deuses.

    "No nos possvel colocar (a divindade) ao alcance de nossos olhos ou de apanh-la com as mos, principais caminhos pelos quais a persuaso penetra o corao do homem.

    "Pois o seu corpo (da divindade) no provido de cabea humana; dois braos no se erguem de seus ombros, nem tem ps, nem geis joelhos, nem partes cobertas de cabelos; apenas um esprito; move-se, santo e sobre-humano, e atravessa todo o cosmos com rpidos pensamentos". (1977, Fragmentos, 132-134).

    Na Histria Grega, o sculo V a.C., costuma ser denominado, "Sculo de Ouro" ou "Sculo de Pricles". D-se neste perodo o grande desenvolvimento democrtico de Atenas. As assemblias e tribunais dependiam da habilidade retrica dos seus participantes. O discurso era o meio mais eficaz de adquirir influncia, poder e honrarias ou de se defender dos inimigos. A Retrica adquiriu um "status" de inigualvel arma poltica, assegurando a vitria a quem soubesse us-la melhor. Escrever Jaeger (1989, p. 236):

    "A faculdade oratria situa-se em plano idntico ao da inspirao das musas aos poetas. Reside antes de mais nada na judiciosa aptido para proferir palavras decisivas e bem fundamentadas. (...) A idade clssica chama de orador o poltico meramente retrico. (...) Neste ponto, devia basear-se na eloqncia toda a educao poltica dos chefes, a qual se converteu necessariamente na formao do orador".

    Este sculo marcado por profundas modificaes; a vitria nas guerras mdicas, quando foram expulsos os invasores persas das terras helnicas [Maratona (490); Salamina (480) e Platia (479)], trouxe prosperidade no comrcio, aumento de sua riqueza e, sobretudo, desenvolvimento e esplendor da sua cultura. Pricles (499-429 a.C.) deu uma Constituio democrtica Atenas, e a vida poltica e civil da cidade, tomou novos aspectos, despertando um novo interesse intelectual. A preocupao pelo mundo que foi caracterstica das pocas anteriores, cede lugar agora, preocupao com o homem. Neste contexto surgiram os sofistas, facundos oradores, retricos e fundamentalmente pedagogos que tinham como meta a educao dos nobres, especialmente na Gramtica, na Literatura, na Filosofia, na Religio e, principalmente na Retrica.

    Os sofistas foram mestres que tiveram grande influncia no 5 e 4 sculos antes de Cristo. Deles partiram crticas severas religio praticada. Protgoras (c. 480-410 a.C.), por exemplo, partindo do princpio de que o homem o senhor e padro de toda realidade, conduziu seu pensamento pelo

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    pleno subjetivismo, dizendo: "O homem a medida de todas as coisas, das que so enquanto so, e das que no so enquanto no so" (Apud PLATO, 1988, 152a; 160c). Deste conceito, ele deduz o seu agnosticismo teolgico que, segundo nos parece, era o nico caminho possvel para ser coerente com o seu pensamento relativista: Quanto aos deuses, no posso saber se existem nem se no existem nem qual possa ser a sua forma; pois muitos so os impedimentos para sab-lo: a obscuridade do problema e a brevidade da vida do homem" (DIGENES LAERCIO, 1947, X, p. 581-582).

    Um seu contemporneo, ainda que no sofista, Melisso de Samos, tambm partilhava do mesmo agnosticismo, conforme testemunho de Digenes Larcio: Dos deuses, dizia que no se deve dar explicao definitiva. Pois no se os pode conhecer (MELISSO DE SAMOS, 1977, Doxografia 3).

    Trasmaco de Calcednia, entendendo que a justia sempre a do mais forte (PLATO, 1993, 338e-339a; 343c-344c), sustentava que os deuses foram inventados pelos governantes com o objetivo de assustarem os homens. No entanto, caso eles existam, no tm providncia nem se preocupam com os assuntos humanos (PLATO, 1993. 336b; 338c; 1999, 889e). Alis, o conceito de um deus indiferente aos problemas humanos, no era estranho no V/IV sculos a.C. conforme indica Plato (427-347 a.C.), ainda que combatendo esta acepo (XENOFONTE, 1972, I.4.10ss.; PLATO, 1999, 885B; 888c. Livro X, p. 402; 1993, 365d-e).

    Outro sofista, Prdico de Cos (c. 470-?), entendia que a origem da religio estava associada gratido dos homens, que denominaram de deuses as coisas teis vida, tais como o sol, a lua, os rios, os lagos, o alimento e o vinho (CICERO, 1972, I.118; GUTHRIE, 1995, p. 221-224).

    Plato (427-347 a.C.), com discernimento correto, entendia que um dos males de sua poca era a corroso da religio praticada por supostos sacerdotes e profetas que ele chama de mendigos e adivinhos , os quais exploravam a credulidade das pessoas, especialmente das ricas. Dentro do quadro descrito, uma das frmulas usadas por esses lderes religiosos, era fazer as pessoas crerem que poderiam mudar a vontade dos deuses mediante a oferta de sacrifcios ou, atravs de determinados encantamentos; os deuses seriam, portanto, limitados e aticos, sem padro de moral, sendo guiados pelas sedues humanas:

    Mendigos e adivinhos vo s portas dos ricos tentar persuadi-los de que tm o poder, outorgado pelos deuses devido a sacrifcios e encantamentos, de curar por meio de prazeres e festas, com sacrifcios, qualquer crime cometido pelo prprio ou pelos seus antepassados, e, por outro lado, se se quiser fazer mal a um inimigo, mediante pequena despesa, prejudicaro com igual facilidade justo e injusto, persuadindo os deuses a serem seus servidores dizem eles graas a tais ou quais inovaes e feitiarias. Para todas estas pretenses, invocam os deuses como testemunhas, uns sobre o vcio, garantindo facilidades (...). Outros, para mostrar como os deuses so influenciados pelos homens, invocam o testemunho de Homero, pois tambm ele disse: Flexveis at os deuses o so. Com as suas preces, por meio de sacrifcios, votos aprazveis, libaes, gordura de vtimas, os homens tornam-nos propcios, quando algum saiu do seu caminho e errou (Ilada IX.497-501) (1993, 364c-e).

    Plato faz crticas severas, especialmente a Homero e Hesodo por terem forjado conceitos de Deus que, segundo ele, no correspondiam realidade (1993, 377d; 382a-383a; 388b-d); por isso, tais lendas que eram mescladas de elementos verdadeiros e falsos (1993, 377a) no deveriam ser contadas s crianas e aos jovens, visto que elas corromperiam a formao dos mesmos. As primeiras histrias a serem contadas, deveriam ser as mais nobres, que orientassem no sentido da virtude (1993, 378e). Para ele, Deus estava acima de nossa capacidade racional e, mesmo que fosse percebido, seria incomunicvel: ..., descobrir o autor e o pai deste universo um grande feito, e quando se o descobriu, impossvel divulg-lo a todos ([s.d], 28).

    Plato, com acuidade acentua que o Criador que formou o universo um ser pessoal e bom:

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    Ele era bom, e naquele que bom nunca se lhe nasce a inveja. Isento de inveja, desejou que tudo nascesse o mais possvel semelhante a ele. (...) Deus quis que tudo fosse bom: excluiu, pelo seu poder, toda imperfeio, e assim, tomou toda essa massa visvel, desprovida de todo repouso, mudando sem medida e sem ordem, e levou-a da desordem ordem, pois estimou que a ordem vale infinitamente mais que a desordem ([s.d], 29-30).

    H tambm um aspecto interessante: ainda que a questo do monotesmo no seja discutida entre os filsofos gregos; da: deus e deuses serem expresses intercambiveis; h um fragmento muito citado entre os antigos , escrito por Antstenes de Atenas (c. 450-360 a.C.), primeiramente sofista e depois discpulo de Scrates (469-399 a.C.), no qual diz, conforme menciona Ccero (106-43 a.C.): Antstenes (...) em seu livro A Filosofia Natural, destri o poder e a personalidade dos deuses ao dizer que embora a religio popular reconhea muitos deuses, h somente um Deus na natureza (CICERO, 1995, I.32).

    Consideraes Finais:

    Ao que parece, no existiu de fato atesmo entre os gregos. A crtica feita religiosidade oficial era, na realidade, uma crtica no aos deuses, mas, aos equvocos das concepes que ameaavam genuna compreenso teolgica. Posteriormente, apologistas cristos, inspirados nessas crticas e de outros filsofos gregos e romanos impacientes com as divindades inteis , usariam mtodos semelhantes para criticarem a religio grega e a de outros povos (GREEN, 1984, p. 16).

    Nos sculos posteriores ao Novo Testamento, a questo da adoo de concepes filosficas gregas no foi pacfica; havia quem concordasse (Justino e Clemente de Alenxandria) e outros que entendiam que o Cristianismo nada tinha a ver com o pensamento pago (Taciano e Tertuliano). No entanto, o que acabou por prevalecer foi a conscincia de que todas as coisas provm de Deus e, que as concepes verdadeiras da realidade ainda que nos lbios de mpios (Cf. At 17.28;Tt 1.12) , podem ser instrumentos teis para a elaborao e transmisso da verdade divina. Isto porque qualquer tipo de conhecimento parte de Deus, que a sua fonte inesgotvel; portanto, toda verdade proveniente de Deus, havendo inclusive pontes entre o que pensadores pagos disseram e a plenitude da verdade conforme revelada nas Escrituras. Essas pontes evidenciam-se de modo transparente no comentrio feito no segundo sculo, por Justino (c. 100-165 AD):

    .... se h coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filsofos que estimais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os nicos que apresentamos demonstrao, por que nos odeiam injustamente mais do que a todos os outros? Assim, quando dizemos que tudo foi ordenado por Deus, parecer apenas que enunciamos um dogma de Plato; ao falar sobre conflagrao, outro dogma dos esticos; ao dizer que so castigadas as almas dos inquos que, ainda depois da morte, conservaro a conscincia, e que as dos bons, livres de todo castigo, sero felizes, parecer que falamos como vossos poetas e filsofos; que no se devem adorar obras de mos humanas, no seno repetir o que disseram Menandro, o poeta cmico, e outros com ele, que afirmaram que o artfice maior do que aquele que o fabrica (1995, p. 37-38).

    Agostinho (354-430) valoriza a Filosofia; contudo, para ele nem todos os chamados filsofos o so de fato, visto que o filsofo aquele que ama a sabedoria. "Pois bem argumenta Agostinho , se a sabedoria Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filsofo aquele que ama a Deus" (1990, Vol. I, VIII.1).

  • 19

    As palavras de Justino Mrtir (c. 100-165 AD) permanecem como princpio regulador: ... Tudo o que de bom foi dito por eles (filsofos), pertence a ns, cristos, porque ns adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingnito e inefvel. (JUSTINO DE ROMA, 1995b, XIII.4, p. 104).

    Referncias Bibliogrficas

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    OVDIO, As Metamorfoses. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, 1983.

  • 20

    PLATO, A Repblica. 7 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, (1993).

    PLATO, As Leis. Bauru, SP.: EDIPRO, 1999.

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    A Providncia nas Reflexes sobre a Vaidade dos Homens, de Matias Aires

    Mannuella Luz de Oliveira Valinhas,Doutoranda PUC-Rio

    [email protected]

    Apresentao

    Matias Aires Ramos da Silva de Ea nasceu em So Paulo a 27 de maro de 1705 e l viveu at os 11 anos de idade, quando se mudou para Portugal desde ento, no mais retornou ao Brasil. Seu pai, Jos Ramos da Silva gozava de uma situao abastada na colnia, situao essa que se tornou ainda melhor no Reino.6 A fortuna paterna possibilitou a Matias Aires o estudo nos melhores colgios portugueses. Em 1722, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, licenciando-se em artes em 1723, abandonando-a em seguida. Em 1728, retirou-se de Coimbra, seguindo para Madri e, depois, Paris, onde se graduou em Direito pela Sorbonne, no perodo de 1728/1733. Alm disso, freqentara cursos de cincias positivas e naturais, principalmente qumica, fsica e matemtica, com os mais importantes professores do seu tempo. De volta a Portugal, Matias Aires preferiu viver a maior parte do seu tempo no campo, mas a morte de seu pai, em 1744, o obrigou a ir para Lisboa assumir o cargo de Provedor da Casa da Moeda, que exerceria at 1761, quando foi, ento, afastado por motivos misteriosos. Nesta ocasio, a escolha de viver retirado do convvio com o mundo social, que j tinha sido uma opo, passa ento, a ser praticamente uma necessidade. Matias Aires faleceu a 10 de dezembro de 1763 e deixou dois filhos naturais.

    Publicadas pela primeira vez em 1752, as Reflexes sobre a Vaidade dos Homens, junto com o Problema da Arquitetura Civil Demonstrada (1777), so as obras mais importantes de Matias Aires. As Reflexes... tiveram ainda mais uma edio em vida do autor (1761) e outras duas pstumas, ainda no sculo XVIII: em 1778 e 1786 (todas de Lisboa). Durante todo o sculo seguinte a obra no tornou a ser reeditada, o que veio a ocorrer j no sculo XX, depois que Solidnio Leite chamou a ateno para

    6 Ele era Familiar do Santo Ofcio, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda. Para o

    conhecimento da vida de Jos Ramos da Silva e de seu filho, Matias Aires, ver: ENNES, Ernesto. Dois Paulistas Insignes: Jos Ramos da Silva e Matias Aires Ramos da Silva e Ea. So Paulo, Cia Editora Nacional, 1944.

  • 21

    o autor no seu Clssicos Esquecidos.7 A partir de ento, seria relativamente comentado, apesar da carncia de estudos que o tomassem como objeto principal.8

    O texto composto por 163 reflexes irregulares quanto ao tamanho, todas elas voltadas explorao da vaidade e seus efeitos sobre o homem e a sociedade. A vaidade encarada de uma maneira pretensamente neutra por Matias Aires, que, apesar de consider-la um vcio, v tambm muitas qualidades e atitudes louvveis provindo dela, com seu modo analtico de observar que a natureza de cada coisa tambm se compe de seu defeito.9 Assim, a vaidade pode ser negativa quando se trata de engendrar vcios humanos; como tambm, num certo sentido, pode ser construtiva: quando se trata de fundamentar a representao (porque a vida um teatro, e dificilmente encontra-se atitudes que no sejam representaes) das virtudes.10 Assim, a vaidade pode ser dividida em: vaidades negativas (destrutivas) ou positivas (no so virtudes, mas podem ger-las, atravs do desejo de parecer virtuoso aos demais, o que obriga o homem a agir de maneira efetivamente virtuosa, se o sentimento propulsor no foi nobre, e o resultado da ao for virtuoso, importa mais o resultado).

    Anlise da crtica s Reflexes...

    Duas polmicas bsicas giram em torno da obra de Matias Aires: 1) como ele nasceu no Brasil mas se mudou para Portugal aos 11 anos de idade, um dos problemas se coloca em torno de qual a tradio da qual ele faz parte: se da brasileira ou da portuguesa. Assim, alguns autores brasileiros nem sequer o mencionam como parte da nossa inteligncia, como o caso de Antnio Cndido na sua Formao da Literatura Brasileira.11 Posies parecidas com essa so as de Jos Verssimo e de Wilson Martins. Ambos os autores, alm de colocar Aires dentre a tradio portuguesa,12 tornando, portanto, quase que irrelevante o fato de ele ter nascido no Brasil, ainda o colocam como um escritor e pensador menor13, cujas idias no se desenvolvem de forma brilhante ou que apresentam grandes novidades. Opondo-se completamente a essa viso, Ernesto Ennes situa a obra de Matias Aires como a primeira produo genuinamente brasileira e a maior contribuio do Brasil para a cultura portuguesa.14

    7 LEITE, Solidnio. Clssicos Esquecidos. S/D

    8 O estudo mais respeitado sobre Matias Aires o de Tristo de Atade, publicado como prefcio s Reflexes...

    em 1942. No encontrei registro de um estudo exaustivo sobre a sua obra. AMOROSO LIMA, Alceu (Thristo de Atayde). Introduo. In: AIRES, Matias. Reflexes Sobre a Vaidade dos Homens ou Discursos Moraes Sobre os Effeitos da Vaidade offerecidos a El-Rei Nosso Senhor D. Josepho I. So Paulo, Livraria Martins, 1952. 1. Edio: 1752. 9 AIRES, Matias. Op. Cit. 1952. Nmero 125.

    10 CSAR, Constana Marcondes. As "Reflexes" de Matias Aires. Revista Brasileira de Filosofia, vol. XIX,

    fascculo 73, janeiro-maro,1969. 11

    CNDIDO, Antnio. Formao da Literatura Brasileira. Belo Horizonte; Itatiaia, 1979. (Vol. 1). 12

    Seria, pois, um esprito de pura formao portuguesa, apenas melhorando, ou somente modificado, quanto cultura, pela estadia em Frana... VERSSIMO, Jos. Histria da Literatura Brasileira:Bento Teixeira 1601 a Machado de Assis. Rio de Janeiro, Jos Olympio Editora, 1969. Pg. 93. No livro que pertena literatura brasileira ou a nossa inteligncia... MARTINS, Wilson. Histria da Inteligncia Brasileira. So Paulo; Cultrix, 1978. (vol. 1)Pg. 142. 13

    (...) um daqueles clssicos menores que fazem a honra das literaturas, se verdade que s grandes clssicos compem a Literatura... VERSSIMO, Jos. Op. Cit. Pg. 94. 14

    (...) esse brasileiro ilustre, que pensou e escreveu a obra magnfica que decerto das mais valiosas contribuies do Brasil Colonial para o cabedal literrio da metrpole. ENNES, Ernesto. A casa onde o Doutor Matias Aires pensou e escreveu as Reflexes sobre a Vaidade dos Homens. In: Estudos Sobre Histria do Brasil. So Paulo, Cia Editora Nacional, 1947. pg. 209. Ver tambm: ENNES, Ernesto. Op. Cit. 1944.

  • 22

    Alm disso, a vontade de firmar valores genunamente nacionais, brasileiros, gera alguns preconceitos em relao literatura produzida no perodo colonial, j que complicado estabelecer definitivamente a nacionalidade de um escritor ou obra colonial, o que gera polmicas do tipo: se um escritor nasceu no Brasil e estudou em Portugal, sua obra estaria inserida na tradio literria brasileira ou portuguesa?15 Tal indefinio pode contribuir para a falta de interesse em relao a autores cuja produo acaba por ser pouco considerada, justamente por no fornecer o ndice esperado de natividade.16 Entretanto, mais significativo que apontar tais polmicas como demonstrativas da inadequao da busca de uma nacionalidade genuna o anacronismo da prpria idia de nacionalidade quando referida s prticas textuais do perodo colonial.

    A outra polmica que envolve Matias Aires a da sua filiao intelectual: ele viveu em plena poca do Iluminismo, viveu a maior parte do tempo em Portugal17, mas estudou na Frana durante alguns anos e admirava os progressos do conhecimento cientfico das cincias positivas e naturais. A polmica bsica gira em torno de classific-lo ou como um remanescente do sculo XVII ou como um expoente do Iluminismo francs em Portugal. Alis, a prpria crtica Sua admirao pelas cincias positivas e a crena no progresso desse mesmo conhecimento torna-se mais visvel no seu livro Problema da Arquitetura Civil Demonstrada, publicado em 1777 e elaborado por causa do terremoto de Lisboa, ocorrido no ano de 1755. Assim, costuma-se dizer que sua ligao com o sculo XVII estaria expressa de forma explcita nas Reflexes... por ter um carter misantropo e pessimista; e seu esprito progressista se demonstraria no Problema da Arquitetura...

    Essa posio que coloca o autor como que dividido e/ou tendo em si elementos de duas pocas diferentes, expressa por Alceu Amoroso Lima. Este apresenta Matias Aires como um elo que ligaria duas culturas: Matias Aires no foi um homem do seu tempo, ele foi empirista como o sculo XVIII; e providencialista como o sculo XVII (...).18 Interpretadas dessa forma, As Reflexes... tornam-se, somente, um elo de transio entre duas pocas, o que as fazem perder muito de sua complexidade e valor. Matias Aires passa a ser, somente, um anunciador das novas idias e mtodos de conhecimento. A obra perde seu sentido de coeso e unidade ao ser tratada dessa forma. As principais razes usadas para filiar Matias Aires ao sculo XVII so: uma viso depreciativa do homem,

    15 VERNEY (1713-1792), considerado o primeiro verdadeiro iluminista portugus, tem seu interesse voltado

    para os conhecimentos exatos para a educao pela razo, ele fez a crtica do ensino de filosofia em Portugal luz do iderio iluminista, mas sem nunca por em dvida a superioridade da Revelao e da Graa divinas sobre o mecanismo da natureza e da razo humana. A presena desse princpio escolstico no bojo do modernismo portugus uma prova de que no se pode, impunemente, ver no momento das reformas pombalinas da instruo pblica uma atitude filosfica absolutamente contrria tradio espiritualista portuguesa. Infelizmente, no foi essa a interpretao que prevaleceu na historiografia filosfica brasileira. O simples fato de o pensamento filosfico portugus ter-se voltado, no sculo XIX, sobre questes de origem, isto , questes pertinentes origem escolstica do seu tradicional aristotelismo, foi suficiente para rotular de tradicionalismo essa atitude, com toda a carga semntica negativa do termo. Inversamente, o simples fato de a intelectualidade brasileira, no mesmo perodo, ter-se socorrido da lngua francesa para modernizar-se, assimilando as questes e os temas da filosofia moderna por intermdio de autores franceses, foi suficiente para se constatar, falsamente, uma diversidade original de interesses entre as filosofias brasileira e portuguesa. In: CERQUEIRA, Luiz Alberto A modernizao no Brasil como problema filosfico. In: Impulso - Revista de Cincias Sociais e Humanas, vol. 12, n 29, 125-136. Piracicaba/SP: Unimep, 2001. 16

    A busca de uma literatura genuinamente nacional vai valorizar de maneira hierrquica a produo intelectual brasileira, como se gradativamente se fortalecesse um pensamento tipicamente nacional. Mais uma vez citando um comentrio de Jos Verssimo sobre Matias Aires: Ele seria o melhor dos nossos moralistas se de fato a sua obra no valesse principalmente ou quase somente como uma curiosidade literria daqueles tempos, sem tal superioridade de pensamento ou de expresso que lhe determine a integrao nas nossas letras, e menos qualquer repercusso ou influxo nelas.VERSSIMO, Jos. Op. Cit. Pg. 94. 17

    Caberia, ainda uma discusso sobre a especificidade da Ilustrao portuguesa. Sobre isso, ver: MORSE, Richard M. O espelho de Prpero: cultura e idias nas Amricas. So Paulo; Cia. das Letras, 1995. 18

    AMOROSO LIMA, Alceu. Introduo. In: AIRES, Matias. Op. Cit. 1952. Pg. 10.

  • 23

    a certeza da corrupo completa e irremedivel da natureza humana, a sua impotncia diante do poder implacvel da providncia e de sua manifestao temporal; a outra principal caracterstica que leva a classific-lo como um remanescente do sculo XVII sua crtica ao poder da razo como fora capaz de guiar as aes humanas. Matias Aires coloca a razo como, ao mesmo tempo, efeito e causa da vaidade, mas certo de que seu desenvolvimento gerado pela vaidade do reconhecimento.19 Nesse sentido, ele no compartilha da f iluminista na razo pura. Antnio Paim20 afirma que o pessimismo de Matias Aires muito mais o aproxima dos homens do sculo XVII do que dos iluministas, alm do fato de ele no ter conseguido se libertar da escolstica e dos ensinamentos jesutas. Assim tambm se exprime Ernesto Ennes, afirmando que apesar de a obra ter sido escrita no sculo XVIII, ela deve ser analisada como a de um autor do sculo XVII.21

    Numa anlise que valoriza o contrrio exato dentro da obra de Matias Aires, est a interpretao de Jacinto Prado Coelho. Este autor afirma que o ceticismo de Aires em relao ao homem totalmente compensado pela confiana na razo pragmtica. Matias Aires seria, ento, um lcido e fervoroso representante do Iluminismo em Portugal.22 Retirar elementos que coloquem o autor como obscurantista ou iluminista significa no valorizar a obra como um todo, j que Matias Aires tinha idias que poderiam tanto ser creditadas ao iluminismo quanto a uma descrena na razo como guia da humanidade em direo ao progresso. Tais idias, por vezes contraditrias fazem parte de um tempo quando as novas idias ainda no estavam definidas ou pelo menos cristalizadas em sua forma final (se que idias cristalizam-se), como usualmente as conhecemos.

    Por fim, a anlise de Constana Marcondes Csar23 parece-se com a de Alceu Amoroso Lima, apesar de ela no colocar o autor entre dois mundos distintos. De acordo com Constana, Matias Aires elabora uma filosofia cujo contedo moral pode ser encarado como contrrio ao sculo das luzes, mas isso no a faz descolada do seu tempo. Apesar de as respostas dadas por Matias Aires no traduzirem de maneira absolutamente clara o esprito iluminista, as questes levantadas e abordadas pelo autor esto diretamente ligadas problemtica em voga durante aquele perodo. O autor to somente discorda do uso desenfreado da razo como explicao mais correta para tudo o que existe, e sua aceitao sem problematizar que a razo tambm uma faculdade humana, e, portanto, imperfeita.

    Tais crticas partem da idia de uma certa coeso doutrinria do sculo XVIII (e de outras pocas), e procuram encaixar as idias de um autor s idias que posteriormente foram destacadas e escolhidas ara representar um dado perodo, considerando todo o resto como obsoleto e desprovido de sentido ou de pertinncia. Aqui pretende-se tentar fazer uma leitura das Reflexes... como uma produo do seu prprio tempo, sem procurar definir os pontos onde se encaixam a este ou aquele modelo terico, mas como algo que faz sentido em si mesmo.

    Aps a breve exposio feita acima sobre as principais modelos de interpretao das idias de Matias Aires, vamos ressaltar aquelas das quais nos ocuparemos neste texto: a idia de natureza, de

    19 So raros os que nas letras buscam a cincia; o que buscam, utilidade e aplauso (...) AIRES, Matias. Op.

    Cit. Nmero 118. 20

    PAIM, Antnio. As idias filosficas difundidas na colnia at a expulso dos Jesutas. In: Histria das Idias Filosficas no Brasil. So Paulo; Editorial Grijalbo, 1967. 21

    Embora pertenam ao sculo XVIII pelo momento em que foram escritas e pela data que apresentam na folha de rosto, a verdade que a obra de Matias Aires tem de ser analisada como a de um autor do sculo XVII, (...). E -o pelo carcter que apresenta, pelas concepes que formula, pelos temas que desenvolve, pela maneira de se exprimir, pelos conceitos que tira, pelas imagens que cria, pelos pensamentos que revela, pelas influncias que manifesta. ENNES, Ernesto. Op. Cit. 1947. Pg. 38. 22

    COELHO, Jacinto do Prado. O Humanismo de Matias Aires: Entre o Cepticismo e a Confiana. Revista Brasileira de Filosofia, no. 57, janeiro-maro, 1965. Pg. 06. 23

    CSAR, Constana Marcondes. As Reflexes de Matias Aires In: Revista Brasileira de Filosofia, vol. XIX, fascculo 73, janeiro-maro,1969.

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    Providncia e de nobreza, sempre esclarecendo que o teor dessa abordagem no se propes a atrelar o pensamento de Matias Aires idias de seus estudiosos, antes, trata-se de tentar compreender como tais idias so mostradas em sua obra, e como a essas noes se articulam idia de nobiliarquia como entendida pelo autor.

    A Natureza e a Providncia

    A partir do fim do sculo XVII at incio do sculo XVIII o paradigma mecanicista atinge a inteligncia europia em diversas reas, embora a arquetipologia mecanicista no seja uma inveno iluminista. A partir de ento, a explicao da totalidade fsica torna-se mecanicista, o que no equivale a materialista ou atesta. Longe de questionar a f, tal mecanismo seria capaz de ilustrar a onipotncia divina e de sua Criao, a partir da equivalncia entre desgnios de Deus e Leis Naturais.24 Assim, o corpo, como explorado por Matias Aires, tem, na sua criao, o movimento inicial, que dado por Deus, e continua em movimento atravs da alma, mas sua existncia fsica est sujeita s leis da natureza, leis de perptuo movimento, como as outras criaes divinas. O sopro divino que anima o corpo humano est na alma, e o que anima a natureza est nos fenmenos naturais. O corpo humano passa, ento, a fazer parte dessa mesma natureza, criada por Deus (a origem Divina do Homem e da Natureza no questionada), mas com uma existncia profana. Deus o criador do movimento e sua quantidade constante; ele no continua sendo a causa particular dos fenmenos, que, a partir do primeiro movimento, desdobram-se regularmente: A vida consiste no movimento: quem primeiro o causa que se diz ser o princpio dele; mas no se segue daqui, que a causa que depois se move fique com alguma poro do princpio que a moveu.25

    H dois sentidos para o uso do termo natureza no texto de Matias Aires: quando se refere ao mundo natural, do qual os homens fazem parte, e que uma criao divina; e outro, quando trata da essncia das coisas, dos fenmenos naturais e do prprio homem.

    No sentido de criao divina, a natureza compe o mundo e suas partes, um retrato da Onipotncia,26 e sua grandeza indica a majestade da causa. A perfeio da natureza se mostra na fora dos seus elementos e na admirao que ela nos causa, mesmo quando seu efeito destrutivo: A mesma desordem e confuso das coisas nos recreia; o furor dos elementos causa um espetculo perfeito: o ar com seus bramidos, a terra com seus tremores, a gua com seus combates, o fogo com seus incndios.27 A providncia, para a conservao do mundo, suscitou em toda a natureza o amor; a conservao do mundo depende, pois, do amor, mesmo entre seres que nos parecem insensveis. A natureza uma metamorfose constante, que a tudo vai alterando para se perpetuar em movimento. Tudo o que compe a natureza passvel dessa mudana, e destruio, inclusive o homem.28

    Aquilo que compe o homem, e que no se resume a seu corpo, ou seja, a parte moral do homem, sua essncia, tambm chamada por Matias Aires de natureza humana. A natureza humana propende para o mal, quanto maior sua imerso na sociedade. Para Matias Aires, o homem no

    24 O newtonianismo generaliza o paradigma mecanicista para o mundo orgnico e humano. Newton afirma que

    Deus a Causa Primeira de todos os fenmenos naturais, e tambm o responsvel pela harmonia da natureza.Ver: CUNHA, Norberto Ferreira da. A Fsica do Corpo Humano em Lus Antnio Verney In: CUNHA, Norberto Ferreira da. Elites e Acadmicos na Cultura Portuguesa Setecentista. Lisboa; Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2001. pp. 219 a 246. 25

    AIRES, Matias. Op. Cit. Nmero 160. 26

    Ibidem. Nmero 94. 27

    Ibidem. Nmero 94. 28

    Quanto menos corpo, mais durveis podem ser as coisas: aquilo que existe na imaginao dura mais porque no est submetido ao tempo da natureza. A imaginao no cousa to sem corpo quanto nos parece; talvez que no tenha de menos que o ser mais sutil, e desta qualidade o que pode resultar o ser mais durvel. Ibidem. Nmero 125.

  • 25

    nasce bom, nem mal, nasce como uma infinita possibilidade. A vaidade que vai esculpindo seu carter, numa relao entre a resistncia dos homens vaidade e sua aceitao. medida que aumenta a capacidade de racionalizao do homem, aumenta sua vaidade, porque a vaidade comunicada, atravs do discurso. Quando se nasce, apenas se pode distinguir as coisas por instinto, pela natureza pura. Apenas sente-se dor ou prazer em termos sensoriais, mas, com o tempo, a vaidade vai se comunicando, pelo contato social, e o bem ou o mal, no dependem de si mesmos ou de ns, mas da opinio.29 A partir de ento, com a vaidade, a natureza do homem propende para o mal, no exerccio do mal achamos uma doura e de naturalidade.30 Quanto mais instruda, mais vaidosa fica a natureza humana, e mais dependente da aprovao dos outros para se alcanar a felicidade. Ao contrrio dos partidrios do racionalismo como possibilidade de libertao do homem, e essa libertao como condio de felicidade,31 Matias Aires afirma o verdadeiro contrrio: no s que a razo no tem essa capacidade emancipadora radical como tambm que pode gerar mais insatisfao, uma vez que a razo quer e precisa do constante reconhecimento e aprovao de uma comunidade.

    So raros os que nas letras buscam a cincia; o que buscam utilidade e aplauso; este objeto da vaidade, aqule da ambio; outros h que quando buscam as cincias, nelas buscam tudo, no s interesse, louvor e aprovao dos homens, mas tambm um quase domnio deles; as letras so armas com que querem adquirir sobre os mais homens um direito de conquista.32

    A idia de distino nobilirquica

    De acordo com Matias Aires, os homens so criados iguais por Deus, com um mesmo princpio que anima, conserva, debilita e acaba.33 A vaidade que cria e comunica a diferena entre os homens ao longo da vida, atravs do contato social, da comunicao, como contgio contrado no trato e conversao dos homens34 e de acordo com o papel a ser representado no teatro do mundo.

    A vaidade e a fortuna so as que governam essa farsa da vida; cada um se pe no teatro com a pompa com que a fortuna e a vaidade o pem; ningum escolhe o papel; cada um recebe o que lhe do. Aqule que sai sem fausto, nem cortejo, e que logo no rosto indica que sujeito dor, aflio e misria, sse o que representa o papel de homem. A morte est de sentinela, em uma mo tem o relgio do tempo, na outra tem a foice fatal, e com esta, de um golpe certo e inevitvel, d fim tragdia, corre a cortina e desaparece (...) Assim acaba o homem, assim acabam as suas glria, e s assim acaba sua vaidade.35

    29 Ibidem. Nmero 83.

    30 Ibidem. Nmero 75.

    31 Ver: HAZARD, Paul. A Felicidade. In: HAZARD, Paul. O Pensamento Europeu no Sculo XVIII de

    Montesquieu a Lessing. Lisboa; Editorial Presena, 1989. 32

    AIRES, Matias. Op. Cit. Nmero 128. 33

    Ibidem. Nmero 79. 34

    Ibidem. Nmero 38. 35

    Ibidem. Nmero 79.

  • 26

    Ao morrer, os homens se tornam mais uma vez iguais, apesar de tentarem, at o fim, at a hora da morte, ou mesmo depois dela, se distinguir atravs da vaidade: nessa hora em que estamos para deixar o mundo, ou em que o mundo est para nos deixar (...) com vanglria antecipada nos pomos a antever aquela cerimnia, a que chamam as naes as ltimas honras, devendo antes, cham-la vaidades ltimas.36

    As diferenas entre os homens encontram-se no exterior, h corpos mais dbeis e mais robustos; no interior, ou seja, na essncia, no h nenhuma, j que os homens so compostos do mesmo modo, e organizados da mesma forma, e por isso mesmo, sujeitos s mesmas vaidades e paixes. A prpria natureza no fez os homens maus ou bons, e os homens no so, pois, virtuosos ou viciosos por natureza, mas por ocasio. O desejo de reconhecimento por parte dos outros homens leva ao encontro do vcio ou da virtude, dependendo de qual garantir maior admirao social. Essa mesma igualdade algo insuportvel para os homens, que por isso buscaram artifcios para se distinguir, e o principal deles, foi a instituio da nobreza. A nobreza foi formada pela composio de muitas vaidades especulativas e sutis,37 para fazer a sociedade crer que se pode comunicar caractersticas morais atravs do sangue.

    Segundo Matias Aires, h trs tipos de nobreza: a antiga, que se baseava na mitologia e na descendncia de heris para ser nobre; a moderna nobreza, que tambm de origem, mas tem seu fundamento no sangue, na sucesso familiar; e a nobreza fundamentada nas aes nobres, no reconhecimento Real dessas aes.

    Apesar de a nobreza europia moderna fundamentar sua distino num elemento natural o sangue a fortuna, e o costume (o costume tudo, as coisas no so nada; o de que fazemos tanto caso no mais do que os homens significam ou explicam o respeito)38 que dotam o sangue dessas caractersticas, e no a natureza. A natureza faz o sangue das espcies igual,

    o mesmo modo, a mesma arte, os mesmos ingredientes de que a natureza serve para fazer o sangue de um leo , de um elefante ou de uma guia, so os mesmos de que se serve tambm para formar o sangue de uma pomba rstica, ou de um cordeiro manso; as produes so diversas, a fbrica a mesma; no h diferena nos princpios, nas figuras sim.39

    Mas, enquanto as espcies animais se distinguem umas das outras por suas caractersticas particulares,40 os homens, querem se distinguir em relao aos mesmos homens, ento encontraram no sangue um depositrio de caractersticas morais, supostamente perpetuadas pela famlia, atravs da descendncia.41 As caractersticas poderiam existir no sangue de modo intelectivo, imaterial e

    36 Ibidem. Nmero 2.

    37 Ibidem. Nmero 139.

    38 Ibidem. Nmero 87.

    39 Ibidem. Nmero 138.

    40Se o elefante fsse presumido, seria por ter corpulncia, no por ter o sangue de elefante: e ainda no que toca

    a corpulncia, a presuno seria a respeito de outros animais de menos estatura, e no a respeito de outros elefantes. Ibidem. Nmero 139. 41

    Talvez por entenderem que as sucesses se continuam pelo sangue, e que ste, derivado de uns a outros, sucessivamente continua em uma mesma descendncia, conservando nela um carter particular, distinto e determinado. Ibidem. Nmero 141.

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    etreo, mas parece que nem assim podia ser, porque aquilo que vo, de nenhuma sorte existe.42 Os inconvenientes desse tipo de nobreza, alm da sua prpria fragilidade por ser algo criado arbitrariamente pelo homem, que no suporta a prova da experincia: como as rvores, que parecem que de um mesmo tronco saem mais galhos, e que esses participam da mesma seiva vital, sendo, portanto uma mesma rvore, mas, isso s aparente, porque muda a terra, e o alimento, e por isso o sangue das rvores. Assim acontece com os homens: o sangue est em movimento e em mudana, da que sua constante renovao o que garante a vida, porque a falta de movimento e de transformao significa morte. De modo que o sangue, no pode ser o depositrio da nobreza, j que mutvel e incerto. A vaidade, apoiada na histria que d o fundamento essa nobreza que se diz de sangue.

    Deixemos finalmente o sangue em paz; le no descansa, e todo o seu trabalho para ser sangue, e no para ser ste ou aqule sangue: de que serve a arte de introduzir naquele lquido admirvel, qualidades arbitrrias e civis, se a verdade que le s tem as qualidades naturais? Para que fazer do sangue autor daquilo que s autor a vaidade.43

    A nobreza moderna uma espcie de corrupo da nobreza antiga, que, segundo o autor, tinha mais corpo, isso porque iam buscar nos deuses os seus ascendentes, ficando, assim, humanos, mas participando de certas diferenciaes extra-humanas, o que possibilitava, ento, uma diferenciao mais real, uma vez que no se reconheciam como inteiramente homens, justificando, pois, uma diferena real em relao aos outros homens. Com o fim da crena nos deuses, a nobreza, que poderia se extinguir, encontrou outra forma de existncia: humanizou-se por completo, a mitologia converteu-se em genealogia.

    H um terceiro tipo de nobreza, que diferencia os homens por sua ao, por suas obras, por atos hericos e particulares e no por uma suposta natureza distinta. Assim essa nobreza s pode ser dada pela Providncia que capaz de diversificar o que igual. A principal diversidade da Providncia o monarca, que tem a origem do seu poder em Deus, que o colocou na posio de rbitro do mundo44 e, que, portanto, participa, de certa forma, da substncia divina, podendo, pois, reconhecer nobreza nos atos de alguns homens, e oferecer ttulos de nobreza a esses indivduos por suas aes. Assim, a nobreza s existe por vontade real, e no por diferenas inatas dos homens. Esse tipo de graa pessoal, e no pode ser passada atravs de sucesso familiar ou de outro tipo:

    Os Reis so os que glorificam os homens, isto , os que os enobrecem, e desta sorte, recebem a nobreza por graa, e no por sucesso; por favor, e no por herana; permanecem nobres enquanto permanece a graa que os ilustra; persiste aquela prerrogativa enquanto o favor existe; se ste se retira, logo a nobreza acaba.45

    42 Ibidem. Nmero 140.

    43 Ibidem. Nmero 143.

    44 Ibidem. Nmero 163.

    45 Ibidem. Nmero 163. Duas consideraes merecem ser feitas a partir desse trecho: Matias Aires mais uma vez

    refora que a origem do poder Soberano encontra-se em Deus, e dada pessoalmente ao Rei; e, o fato de admitir a nobreza herica, por feitos e obras, mas ofertada por graa somente pelo Soberano, indica que o autor inclina-se centralizao monstica que ser colocada em prtica por Pombal (sem querer aqui colocar Matias Ai