lipovetsky x bauman

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Lipovetsky vs. Bauman Viemos em um contexto em que as raízes dos problemas morais pós-modernos são de caráter fragmentário. Assumindo uma postura otimista diante desse novo cenário, Lipovetsky apresenta a ética do pós-dever que, por sua vez, é criticada por Bauman Por Daniel Nery da Cruz* O presente estudo intenciona verificar os impactos da sociedade do prazer e do bem-estar sobre a ética, uma vez que tal sociedade, ao dissolver os valores deixados pela modernidade, ocasiona um universo sem referências, sem sentido e sem objetivo, esvaziando não só a noção moderna de sujeito como também a da ética fundada sobre a noção do dever e da obrigação. É verdade que Lipovetsky, ao tratar da pós- modernidade, interessa-se mais por seus aspectos epistemológicos e sociológicos, sem deixar de avaliar o problema das raízes conceituais da ética pós-moderna (Martins, 2007), dedicando ao assunto uma obra inteira: Crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos(Lipovetsky, 1994). Nessa obra, o pensador francês não apenas descreve o éthos contemporâneo, mas envereda por uma reflexão filosófica na qual propõe uma "ética indolor", suave, destituída da noção de dever e de imperativos categóricos, ancorada em valores narcisistas e hedonistas. A ética do pós-dever não implica a ausência de ética, uma vez que o tema da ética continua com toda vitalidade, na sociedade contemporânea. Porém agora o indivíduo já não mais se sacrifica em obediência a um imperativo transcendente que vem de fora, mas se empenha e se compromete segundo "um processo de reorganização da ética o qual se estabelece desde normas individualistas em si mesmas" (Lipovetsky, 1994, p. 15). A ética lipovetskyana do pós-dever é consciente de seus limites, pois sabe que não vai transformar o mundo, uma vez que os valores emanam do individualismo hedonista e narcisista para o qual o que conta é o momento presente e a imediatidade dos próprios desejos em que o sujeito cuida de si mesmo dentro do horizonte de um individualismo responsável. Zygmunt Bauman Teórico da "modernidade líquida", o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman tem sua vasta obra editada pela Zahar, dentre os quais destacam-se Modernidade líquida, Amor líquido, Vida em fragmentos e Sobre educação e juventude.

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Viemos em um contexto em que as raízes dos problemas morais pós-modernos são de caráter fragmentário. Assumindo uma postura otimista diante desse novo cenário, Lipovetsky apresenta a ética do pós-dever que, por sua vez, é criticada por Bauman

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Lipovetsky vs. BaumanViemos em um contexto em que as razes dos problemas morais ps-modernos so de carter fragmentrio. Assumindo uma postura otimista diante desse novo cenrio, Lipovetsky apresenta a tica do ps-dever que, por sua vez, criticada por Bauman

Por Daniel Nery da Cruz*

O presente estudo intenciona verificar os impactos da sociedade do prazer e do bem-estar sobre a tica, uma vez que tal sociedade, ao dissolver os valores deixados pela modernidade, ocasiona um universo sem referncias, sem sentido e sem objetivo, esvaziando no s a noo moderna de sujeito como tambm a da tica fundada sobre a noo do dever e da obrigao.Zygmunt BaumanTerico da "modernidade lquida", o filsofo e socilogo polons Zygmunt Bauman tem sua vasta obra editada pela Zahar, dentre os quais destacam-seModernidade lquida, Amor lquido, Vida em fragmentos e Sobre educao e juventude.

verdade que Lipovetsky, ao tratar da ps-modernidade, interessa-se mais por seus aspectos epistemolgicos e sociolgicos, sem deixar de avaliar o problema das razes conceituais da tica ps-moderna (Martins, 2007), dedicando ao assunto uma obra inteira:Crepsculo do dever: a tica indolor dos novos tempos democrticos(Lipovetsky, 1994). Nessa obra, o pensador francs no apenas descreve o thos contemporneo, mas envereda por uma reflexo filosfica na qual prope uma "tica indolor", suave, destituda da noo de dever e de imperativos categricos, ancorada em valores narcisistas e hedonistas. A tica do ps-dever no implica a ausncia de tica, uma vez que o tema da tica continua com toda vitalidade, na sociedade contempornea. Porm agora o indivduo j no mais se sacrifica em obedincia a um imperativo transcendente que vem de fora, mas se empenha e se compromete segundo "um processo de reorganizao da tica o qual se estabelece desde normas individualistas em si mesmas" (Lipovetsky, 1994, p. 15). A tica lipovetskyana do ps-dever consciente de seus limites, pois sabe que no vai transformar o mundo, uma vez que os valores emanam do individualismo hedonista e narcisista para o qual o que conta o momento presente e a imediatidade dos prprios desejos em que o sujeito cuida de si mesmo dentro do horizonte de um individualismo responsvel.A posio de Lipovetsky sobre a tica do ps-dever criticada por alguns pensadores, entre os quais sobressai-se Bauman, que reage ao individualismo responsvel proposto por Lipovetsky, apresentando como alternativa a noo de responsabilidade para com o outro. Bauman tambm critica Lipovetsky por confundir a prpria descrio que ele faz dothosdas sociedades avanadas da atualidade com a normatividade tica que deveria reger a conduta dos indivduos. Em resumo, a proposta deste trabalho apresentar a posio tica de Lipovetsky tendo como contraponto a posio de Bauman, avaliando, a pertinncia de sua crtica. Para tanto, tomar-se- como ponto de partida as concepes ticas de Bauman e, em seguida, estabeleceremos um confronto entre essas duas posies, seguindo os esclarecimentos de Lipovetksy.No ato da escolha no existe um catlogo explicando clara e detalhadamente o que o bem ou o mal. Tambm no existe uma receita que se possa seguir, uma poro mgica que se possa usar. Entre as alternativas das escolhas, no h solues acabadas, prontas, s quais possvel recorrer para se dar o conselho que oriente uma boa escolha. Por mais que a tentativa de agir seja boa, o resultado sempre deixar dvida.A PROPOSTA DE BAUMAN SOBRE A TICA PS-MODERNAEm sua obraVidas em fragmentos. Sobre a tica ps-moderna (2011),Zygmunt Baumansustenta que, antes de qualquer classificao do que seja bom ou mal, a condio humana moral. De acordo com seu pensamento, o homem, desde o primeiro contato com o outro, o que inevitvel, confronta-se com a escolha entre o bem e o mal.Segundo sua argumentao, muito antes de nos atribuirmos ou de assumirmos a condio de escolhas entre o bem e o mal, por meio de contratos, de clculos ou por uma causa, somos portadores de responsabilidades. Esse tipo de responsabilidade, derivada dos contratos, no substitui a responsabilidade moral original. O mximo que poderia acontecer seria uma ocultao da responsabilidade original que, ainda assim, no se diluiria, pois a condio da existncia no mundo, por ter de fazer escolhas, pe o indivduo em uma situao moral marcada pela ambivalncia.Tal ambivalncia no desaparece, pois, se tal ocorresse tambm desapareceria, o que moral. Esse fato torna a condio da existncia no mundo extremamente complexa, dificultando o acesso a uma vida despreocupada, uma vez que o indivduo no ser dispensado do dever de escolher entre uma posio e outra ou de no escolher nenhuma delas. No ato da escolha, no existe um catlogo explicando clara e detalhadamente o que o bem ou o mal. Tambm no existe uma receita que se possa seguir, uma poro mgica que se possa usar. Entre as alternativas das escolhas, no h solues acabadas, prontas, s quais possvel recorrer para se dar o conselho que oriente uma boa escolha. Por mais que a tentativa de agir seja boa, o resultado sempre deixar dvida. Implica, ento, que no se tem exatido de como cada uma das etapas da escolha vai-se revelar. As consequncias so imprevisveis, pois no h como calcular de antemo. Entretanto, o indivduo ter de escolher, envolvendo decises que comportam responsabilidades. Essa condio de ter de escolher, sem um catlogo orientador, coloca o indivduo em uma ambivalncia e em uma condio moral a que Bauman (2011, p. 15) denomina de "ser-para".A vida moral de uma incerteza interminvel (Bauman, 2011, p. 15). Essa incerteza da responsabilidade moral traz consigo uma condio de insatisfao, diante da qual, ao longo da histria, os homens sempre procuraram aliviar o peso da conscincia recorrendo, por exemplo, religio. Essa, ao promover as ideias de arrependimento e de redeno dos pecados, mostra que o mal nunca ser expurgado, mas aliviado, suavizando, dessa forma, o fardo da existncia e o peso da conscincia.Com o surgimento do projeto moderno, aparece a ideia de responder pela razo, o que, anteriormente, a religio oferecia, uma vez que a tentativa moderna de refazer o mundo, em um plano racional, contm a promessa de uma vida sem pecado, sem culpabilidade, enfim, um mundo livre da ambivalncia moral (Bauman, 2011). Tal proeza seria levada a termo pela lei que, finalmente, assumiria o papel de reconstruir a moralidade, libertando o ser humano da ideia do pecado, liberando-o, ainda, do fardo de fazer escolhas erradas.Dessa forma, o projeto moderno procurou livrar o indivduo da ambivalncia moral, destituindo as escolhas humanas de sua dimenso moral, substituindo a escolha moral autnoma pela lei tica produzida pela razo prtica. Assim, a culpa eliminada da escolha simplificada, na forma de obedincia regra. A incumbncia de decidir sobre quais medidas prticas a responsabilidade exige foi transferida do sujeito moral para as agncias especializadas e dotadas de autoridade tica. A responsabilidade do indivduo, transformada em uma lista definida de deveres e de obrigaes, trouxe, em certa medida, alvio, diminuindo nele a ambivalncia e a angstia no momento da escolha. A passagem moderna da responsabilidade moral para as decises ticas, segundo as argumentaes de Bauman (2011), fez com que a modernidade oferecesse uma liberdade com formas patenteadas de fugir dela, j que os indivduos tendem frequentemente a eximir-se de decises morais, transferindo-as para o mercado e para as instncias jurdicas. Tal projeto encontra-se em pleno desenvolvimento, j que decises morais complexas so cada vez mais resolvidas em plano jurdico. A ambivalncia em torno de questes morais, reinante entre filsofos, educadores e profetas, facilmente resolvida pelo Judicirio. L, esses autores falham ou no se entendem, o Judicirio chamado a dirimir e a regular as questes por meio de normas jurdicas.Bauman (2011) reconhece que nos tempos ps-modernos ainda persiste a moderna doena da autonomia. Porm, o medicamento no est mais disponvel nas receitas prescritas pelo sistema nico de tica, como acontecia na modernidade. Atualmente, a frmula e o remdio para sanarem a angstia da escolha encontra-se no mercado. O indivduo busca alvio da angstia e da ambivalncia de decidir no consumo orientado, segundo as regras ditadas pelo livre mercado. Isso , no mercado livre, com as guerras de publicidade entre as empresas, o indivduo encontra o fornecimento das regras ticas, outrora monopolizadas pelo Estado. Dessa forma, o fornecimento das regras ticas foi privatizado e deixado aos cuidados do mercado.Com essa mudana, a tirania da escolha, confinada na forma da eficincia de comprar, volta ao sujeito, que se torna responsvel medida que escolhe no mais frente s alternativas oferecidas pelos sistemas nicos da tica, mas tendo diante de si a possibilidade de escolher um cdigo dentre os vrios ofertados com a aprovao dos especialistas.Na argumentao de Bauman, a responsabilidade no est mais atrelada ao poder central, ela foi novamente transferida para o sujeito a quem ele denomina de ator, cujo papel aposta em um padro tico suscetvel de vitria na guerra em que esto envolvidos os especialistas e suas promessas. As consequncias das escolhas sobrevivem, de certa forma, sob a custdia da autoridade dos especialistas, por cujas recomendaes a escolha feita. Como no cenrio ps-moderno h uma tendncia de essas autoridades aparecerem e desaparecerem imediatamente, sem dar aviso prvio, bastante reduzido o peso das consequncias, em uma vida que se torna uma sucesso de episdios; ou como ele mesmo diz: "uma vida vivida com uma sucesso de episdios uma vida no preocupada com as consequncias. Assim, menos assustadora fica a perspectiva de viver com os resultados de suas aes" (Bauman, 2011, p. 15). E ainda, como ele declara ironicamente: "celebremos ento o mundo livre das obrigaes imaginrias e dos falsos deveres" (Bauman, 2011, p. 15), uma vez que o modo de vida ps-moderna dissipou e descartou os princpios universais do mundo da moda.Frente ao cenrio movedio da ps-modernidade, de incerteza e de relativismo moral, Bauman assume certo saudosismo, ao retomar aspectos do ideal moderno de moral, ao propor uma moral baseada na responsabilidade, na qual a tica pode alar voo pleno. Ainda assim, as escolhas entre o bem e o mal no desapareceram, pois elas ainda podem ser realizadas dentro de um sistema em que a legislao centralizada e, ao mesmo tempo, dispersa, deixando a escolha disposio do indivduo.Outro aspecto do saudosismo de Bauman sua crtica s posies que destinam tica uma funo meramente descritiva do comportamento das pessoas uma vez que, para ele, a tica mais que descrio do que as pessoas fazem, pois ela tem um carter prescritivo e absoluto. "A tica no pode se resumir numa descrio do que as pessoas acreditam que deveriam estar fazendo para serem justas e dignas. As declaraes ticas adequadas no dependem de sua veracidade com base no que as pessoas fazem ou creem que devem fazer. Cabe apenas tica o poder de dizer o que deveria ser ou no feito para o bem de todos. O cdigo de lei tica (que prescreve o comportamento universalmente correto) traduzido por enunciados de determinaes ticas realizadas pelas autoridades dos especialistas em tica (filsofos, educadores e pregadores)" (Bauman, 2011, p. 22).Tais peritos, por estarem acima do senso comum, podem dizer ao outro o que certo ou errado. Sem suas instrues, a sociedade no poderia sobreviver ou, pelo menos, no poderia seguir de maneira correta, verdadeiramente moral e decente. Segundo Bauman, cedo ou tarde iremos procurar de modo intenso e por conta prpria uma orientao confivel de "pessoas do saber", pois quando paramos de ter confiana em nosso prprio julgamento, o sentimento de medo de estarmos errados tornar-se- muito intenso. Assim, a necessidade desses especialistas no depende tanto do cumprimento da promessa e, sim, muito mais porque no d para agir sem o cumprimento dela.Embora parea saudosismo, vale ressaltar que Bauman no aceita um retrocesso em termos ticos e morais, pois o processo ps-moderno no implica uma extino da tica, mas uma mudana de paradigma, como o fato da impossibilidade da fundamentao das normas morais, uma vez que, como ele mesmo afirma, "nenhum fundamento foi encontrado ou suscetvel de ser encontrado para o ser" (Bauman, 2001, p. 31). Essa concepo traz como consequncia, na era ps-moderna, a necessidade de ser moral, cujo significado no pode ser mostrado nem logicamente nem deduzido. Assim, a moral to contingente quanto o resto do ser e se apresenta sem fundamentos ticos.Torna-se, ento, claro, considerando a tese defendida por Bauman, que no mais possvel oferecer orientao tica e legislar sobre a moralidade. Na opinio desse autor, pode ser que estejamos em uma moral eticamente infundada, frente ao quadro de uma sociedade que se encontra sem cho e sem propsitos, patinando sobre um abismo revestido por uma frgil prancha de convenes. Resulta desse quadro social um amontoado de ligaes e de desligamentos, no qual as pessoas se renem e se afastam, integram-se e desintegram-se, ordenam-se e desordenam-se, constroem-se e desmancham-se.Uma sociedade que se autoconstitui de forma explcita sabe que as significaes pelas quais ela vive so obras suas, assim, a tica e a moralidade vo crescendo em um solo sedimentado e, tal como uma obra de arte contempornea, devem fornecer sua legenda interpretativa. Com isso, os "selves" morais no descobrem seus fundamentos. Os fundamentos ticos da moralidade humana foram esvaziados, assim como o monstro de Hobbes ou de Durkheim que, em certa poca, tiveram sua utilidade ou funcionalidade para a organizao da sociedade.Os argumentos expostos deixam clara a posio de Bauman de que a tica, cuja estrutura prescreve novos modos de agir, suprime o "dever-ser", tornando-se ou formando-se sem fundamentos demonstrveis, clculos ou previses. A reflexo baumiana mostra que estamos enfrentando o inimaginvel, pois no apenas pe em questo um conjunto de princpios em favor de outro conjunto, mas o questionamento do prprio legislar de princpios. Melhor dizendo, sua tese defende a ideia de que a ps-modernidade vive uma "moralidade sem tica". Tal hiptese conduz a uma reflexo radical, pois se h um mundo sem tica, ento deve haver um mundo sem moralidade. Entretanto, hipoteticamente, o autor convida a imaginar que, com o falecimento da legislao tica efetiva, a moralidade no desaparece, mas se aproxima de sua prpria moralidade. " bem possvel que a lei tica administrada pelo poder, longe de ser a estrutura slida que impede a carne trmula dos padres morais de desmoronar, fosse uma rgida gaiola que impediu aqueles padres de se esticarem at suas dimenses verdadeiras e passarem pelo teste supremo tanto da tica quanto da moralidade - o de orientar e de sustentar a integrao humana." (Bauman, 2011, p. 57).Torna-se, ento, claro, considerando a tese defendida por Bauman, que no mais possvel oferecer orientao tica e legislar sobre a moralidade. Na opinio desse autor, pode ser que estejamos em uma moral eticamente infundada, frente ao quadro de uma sociedade que se encontra sem cho e sem propsitos, patinando sobre um abismo revestido por uma frgil prancha de convenes.Apostando nisso, os contedos da moralidade podem no se dissiparem, mas se tornarem mais slidos, contando apenas com sua fora interior. Desse modo, sem as preocupaes com as legislaes ticas, os homens, afirma Bauman (2011), tornam-se livres para enfrentar a realidade de sua prpria autonomia moral que, por sua vez, significa tambm a realidade de sua prpria responsabilidade moral inalienvel. Assim como a modernidade ficou conhecida na histria como a era da tica, a ps-modernidade, segundo Bauman, pode ser registrada como a era da moralidade. A posio assumida por Bauman baseia-se em uma postura inspirada em Lvinas, que considera o outro ou o "ser para" como base primordial de suas argumentaes na construo do processo de integrao.BAUMAN E O SEU PROJETO DE INTEGRAOBauman faz uma anlise das diversas formas de integrao da sociedade contempornea. A integrao mvel caracteriza-se pela proximidade momentnea e pela separao instantnea. Esse tipo de integrao encontra-se em locais comoshoppingse no movimento das ruas onde vrios desconhecidos circulam. "Na rua no se pode fugir de estar um ao lado do outro. Mas tenta-se fortemente no se estar - com o outro" (Bauman, 2011, p. 68).Evitar o outro, segundo Bauman, tambm tentado na integrao estacionria (vago do trem, avio, sala de espera). A caracterstica principal dessa forma de integrao est no ajuntamento de estranhos que sabem que, em breve, iro embora, cada um seguindo seu caminho e que nunca mais se encontraro de novo.A integrao moderada, comedida, acontece nos escritrios, nos prdios ou nas fbricas. A integrao manifesta (manifesto, torcida, boate), segundo Bauman, um tipo de integrao fantasiosa, existindo apenas como pretexto. "Com a identidade, pelo menos enquanto ela dure, no como uma propriedade individual, a integrao manifesta mata o encontro ainda no bero" (Bauman, 2001, p. 70).Existe tambm a integrao postulada (irmandades entre as naes, raas, classes, gneros), cuja caracterstica est na imaginao impelida pela saudade de casa. Bauman revela sua face pessimista quando diz que "cada integrao procura destruir o que a outra busca estabelecer" (Bauman, 2001, p. 72). Ainda h a metaintegrao (que pode ocorrer em um bar, em uma praia, em um salo de baile).Os encontros fragmentados caracterizam-se por no ter consequncia, ou melhor, caracteriza- se pela falta de consequncias. "Os encontros tendem a ser inconsequentes no sentido de no deixarem um legado durvel de direitos e/ ou obrigaes mtuos em seu rastro" (Bauman, 2011, p. 75).O estar ao lado, segundo esse filsofo, fornece o espao para as pessoas se moverem, porm elas aparecem e desaparecem, sem um tempo suficiente para merecerem ateno. Em meio aos encontros, Bauman destaca que existe o "estar com", uma reunio de seres incompletos, de "selves" deficientes. A integrao e os encontros so fragmentados e episdicos. Bauman afirma que, de uma posio ao lado, os outros so selecionados para mover-se para a modalidade "estar-com". "Eles agora so objeto de ateno" (Bauman, 2011, p. 75).Surge nessa situao uma pergunta: se os "selves" so deficientes, qual aquela reunio no deficiente em relao qual a deficincia da desreunio medida naquela reunio de "selves" completos, que serve como horizonte imaginrio a partir do qual se podem traar todas as outras reunies e que redefinem todas as outras como ds-reunies?Para encontrar esse tipo de reunio preciso fazer uma avaliao e analisar a possibilidade de outro tipo de integrao que traga esperana e comprove ser hospitaleira e que contribua para encontros diferentes dos do tipo "estar-com".O autor deixa claro estar procura de uma integrao que seja ou tende a ser plena e continua. "Deve-se supor que tal integrao para durar para sempre, embora, na maior parte das vezes, ela seja confractualmente determinada" (Bauman, 2011, p. 76-77). Evidentemente ele tambm elucida que uma plenitude s ser realizvel em um plano infinito e, dessa forma, pretende no entrar em reflexo desse nvel, prefere no dar uma resposta conclusiva ao assunto. "O que conta, entretanto, que se deve supor que ela assim (permanente e abrangente), e que os participantes devem se relacionar como se a suposio fosse verdadeira, e verdadeira de uma forma definitiva [...]" (Bauman, 2011, p. 77).A essa outra maneira de relacionar Bauman chama de "ser-para". Ela rompe, segundo ele, decisivamente com aquela separao endmica que, sob a condio de "estar-com", permanece como linha de base a partir da qual o encontro no passa de um desvio provisrio e para o qual os participantes retornam, aps cada episdio de encontro. O ser-para salta o isolamento para dar unidade, "ingressa-se no ser-para pelo bem da salvaguarda e da defesa da unicidade do outro". Desse modo, segundo o autor, o eu no pode fugir da responsabilidade para com o outro. "O ser-para no um produto, um resultado, uma consequncia, uma entrega ou um fruto do estar com - uma vez que a fragmentao espacial e temporal da qual o estar-com depende e que ele reafirma em cada sucessivo episdio no pode ser reparada, no com os recursos e as estratgias disponveis ao estar-com. Ela somente pode ser posta de lado, dispensada, contornada, ignorada. O ser-para somente pode chegar, por assim dizer, por trs do estar-com" (Bauman, 2011, p. 78)."No (o compromisso) produto da intencionalidade do sujeito. Ele no procurado, simplesmente se impe como uma propriedade que pertence prpria estrutura dessa dade de proximidade"Arne Johan VetlesenNascido em 1960, o filsofo, socilogo e antroplogo noruegus Arne Johan Vetlesen professor na Universidade de Oslo e especialista em tica.

Bauman diz que oselfno pode planejar, tramar, projetar, calcular a passagem do estar-com para o ser-para. Segundo ele, o ser-para no tem origem em um julgamento, nem mesmo pode ser uma questo de escolha. O conhecimento que poderia lidar com a questo da escolha fragmentado e, assim, pressupe um conhecimento fragmentado do ser. Ento temos que o ser-para no pode se guiar em termos de razo. ParafraseandoArne Johan Vetlesensobre o compromisso como forma de integrao e de proximidade "no (o compromisso) produto da intencionalidade do sujeito. Ele no procurado, simplesmente se impe como uma propriedade que pertence prpria estrutura dessa dade de proximidade" (Vetlensen, 1993, p. 202).Tal a natureza do ser-para, baseada no sentimento, na emoo: "Seu ruidoso e ameaador antagonista, aquele 'atirar e ser alvo de tiros', aquela repentina abertura para o outro, a exploso no programada de no indiferena, a abrupta reduo da distncia - a razo os nomeia de sentimento, emoo, sensibilidade, paixo" (Bauman, 2011, p. 80).De acordo com Bauman, a razo tenta, por inmeras vezes, descrever e encontrar uma definio para aqueles "outros de si", em seus prprios termos. Mas isso no acontece com muito proveito, pois, quando tenta encontrar uma explicao racional, o "nico significado confirmado de sentimento/ emoo/sensibilidade/paixo desafio, desdm e desprezo razo" (Bauman, 2011, p. 80). Porm, cada termo (razo e sensibilidade) define-se mutuamente, no carrega significado, isoladamente, independente de seu oposto. "Para que a razo seja lcita, seu oposto, o ilcito, deve ser o irracional, o sentimental" (Bauman, 2011, p. 80). Se a razo conseguisse realizar por completo seu objetivo de colocar tudo em suas normas e regras (se essas regras retivessem a integrao humana por completo e inapta) a ideia de paixo, por exemplo, no teria sentido de ser concebida.A modernidade, desde seu incio, com o objetivo de unificar a esfera pblica tentou domesticar e dominar as emoes, o irracional, para dar espao civilidade governada pela razo. A esfera pblica , assim, o lugar da integrao: "as regras proibiam tudo que no governavam e no puderam governar" (Bauman, 2011, p. 82).Eemmanuel lvinasFilsofo de origem francesa nascido na Litunia, Emmanuel Lvinas (1906-1995) exerceu, como ainda exerce, forte influncia nos campos do existencialismo, da fenomenologia, da ontologia e da tica.

O argumento do Bauman, ento, baseia-se na seguinte reflexo: O encontro com o outro foi pautado como regras de um jogo de xadrez, em que o peo movido obedecendo a regras, no tabuleiro, de direitos e de deveres. A regra uma conveno, sendo assim, no pode ser estabelecida tendo como base o emocional. A regra deve estar acima de toda ao emotiva. A conveno assumiu o lugar do encontro com o outro, a preocupao era evitar de toda forma que a regra fosse quebrada, por isso esse tipo de ao deve ser monitorada, para no sair das regras estabelecidas.Por essa razo, o autor traz para complementar sua argumentao a reflexo do filsofo da alteridade, do outro,Emmanuel Lvinas. Segundo ele, "A maravilhosa alteridade do ou outro foi banalizada e enturvecida numa simples troca de cortesias estabelecida como um comrcio interpessoal de alfndegas" (Lvinas, 2005). Para Lvinas, o princpio da moralidade "uma preocupao com o outro que chega at o sacrifcio, at a possibilidade de morrer pelo outro" (Bauman, 2011, p. 87). Parece, nesse aspecto, que o domnio do ser-para encerrado no quadro da simpatia, entendida como a disposio e o servio para fazer o bem, se autossacrificar pelo outro."A maravilhosa alteridade do outro foi banalizada e enturvecida em uma simples troca de cortesias estabelecida como um comrcio interpessoal de alfndegas"Emmanuel Lvinas, em sua tica da alteridade, relata a existncia do "ser no mundo", que consiste em entender, por um lado, que h um "eu" recolhido em sua morada, vivendo de gozo e, por outro lado, um "eu" em movimento que constitui o mundo onde ele vive, onde localiza sua morada. Isso , a sua morada est situada no mundo, porm em se tratando da ordem da constituio, o mundo produzido a partir da originalidade da morada. O mover-se no mundo ter posse dele como "meu mundo", assim, o possuir um mundo o ato concreto originrio do modo de ser do "viver bem de... com gozo".Ao referir-se posse do objeto por esse "ser no mundo", Lvinas argumenta que esse objeto possudo perde seu ser. Possuir significa neutralizar o ser do ente possudo. "A posse neutraliza esse ser: a coisa, enquanto ter, um ente que perdeu seu ser [...]. A ontologia que aprende o ser do ente - a ontologia, relao com as coisas que manifestam as coisas - uma obra espontnea e pr-terica de todo habitante da terra" (Lvinas, 1961, p. 170).Esse eu a quem Lvinas est se referindo o ser humano, que, segundo ele, um ser separado e liberto da condio de animal e de vegetal. Esse ser que "vive de... com gozo", domina os entes, a fim de satisfazer suas necessidades de "ser separado".Nessa condio, um "ser separado e necessitado" tem um problema: o risco da pobreza. Lvinas est se referindo, neste caso, ao fato de que esse ser pode no conseguir obter o suficiente para manter sua vida e posteridade. "A pobreza um dos perigos que a libertao do homem corre, ao romper com a condio animal e vegetal" (Lvinas, 1961, p. 120). E essa condio de satisfao das necessidades que fez o ser humano "viver de... com gozo". Essa operao de conhecimento, ou constituio de mundo, de posse, de objetivao, chama-se ontologia.Nessa esteira, tem-se uma constituio ou construo de mundo de fartura, por parte de um ente humano, que pode significar a pobreza de outro ente humano. Essa uma chave de leitura tica de Lvinas: as relaes, as situaes de vida prximas originalidade constitutiva do mundo e das relaes dos eus no mundo.A relao entre os entes humanos no ontolgica (constituio, posse, objetivao, explorao), mas sim tica: "A relao entre os seres humanos no ontolgica (constituio, posse, objetivao, explorao, etc.), mas tica. A tica, mais que relao, experincia: experimentar na transcendncia a vergonha e a culpabilidade de uma ingnua liberdade individual e egosta que tudo pretende agarrar, objetivar e fazer seu, para explorar; experimentar 'em mim a ideia do infinito que o outro' como limite do 'eu posso poder' e como primeira aproximao" (Costa, 2000, p. 139).A tica vai alm da relao, ela experincia: experincia na transcendncia. Sendo a tica experincia, preciso experimentar a ideia de infinito, que o outro. Isso traz uma limitao "eu posso poder" e uma maior aproximao com o outro. Experimentar o encontro sem mediaes com o rosto do outro estando face-a-face com ele.O outro e a linguagem configuram a relao tica que faz surgir o face-a-face. o comunicar-me, compartilhar o "meu mundo" com o outro. A palavra traz uma estrutura de um mundo comum. interessante notar que, para Lvinas, essa transcendncia no uma viso do outro, mas uma doao, em que a linguagem no est exteriorizando uma representao minha, mas compartilhando "meu mundo". A linguagem, no caso, o prprio rosto que se mostra.A linguagem a relao (e possibilita-a) entre separados; ela o "prprio poder de quebrar a continuidade do ser" (Lvinas,Totalidade e Infinito, p. 174). A palavra, dirigida a outrem, tem-no no como tema e sim como significao, falar com o outro falar a ele.Com o tema do primado da tica, Lvinas confirma que o cerne de sua obra tem a inteno de propor uma procedncia do tico sobre o ontolgico. A relao homem a homem , com certeza, uma das principais argumentaes desse filsofo.EmTotalidade e infinito, Lvinas fala longamente do rosto. um dos seus temas mais frequentes, que consiste em analisar o que se passa frente a frente quando se contempla o outro. O acesso ao rosto o primeiro momento tico.Sendo o primeiro gesto tico, a transcendncia conduz ao rosto do outro, que recorda as obrigaes do ser. O rosto coloca em questo a liberdade e desperta para a vergonha, para a culpabilidade. [...] porque o rosto me recorda minhas obrigaes e me julga. [...] Minha liberdade arbitrria l sua vergonha nos olhos que me olham (Lvinas, 1961, p. 238, 229).A filosofia do outro compreendida dentro da relao, o corpo humano posto em relao. Nenhuma pessoa vive por si e para si, a existncia pressupe a manifestao, a interao com o outro. "Mas, dentre todas as partes do corpo, o rosto o mais exposto, tanto ao perigo quanto carcia, nu e transparente, o rosto completa exterioridade, inteira relao e comunicao, sinceridade e abertura" (Melo, 2003, p. 89). "Se o transcendente decide entre a sensibilidade, se abertura por excelncia, se a sua viso a viso da prpria abertura do ser - ela decide sobre a viso das formas e no pode exprimir-se nem em termos de contemplao, nem em termos de prtica. Ela rosto; a sua revelao palavra. A relao com outrem a nica que introduz uma dimenso da transcendncia e nos conduz para uma relao totalmente diferente da experincia no sentido sensvel do termo, relativa e egosta" (Lvinas, 1980, p. 171).Segundo Lvinas, o ser no uma unidade geral, o ser exterioridade. A face que apresentada na ontologia violenta. A exterioridade, a alteridade, o outro fazem resistncia totalizao. A ontologia no estrutura primordial: "o ser exterioridade" (Costa, 2000, p. 141). O discurso do face-a-face leva Lvinas a recusar uma filosofia ontolgica que se apoie no global e na sntese. A noo de totalidade deve ser substituda pela da separao.No rosto h a percepo dos valores, ali o comeo da moralidade, nele o homem encontra sua verdadeira realidade. Na compreenso do outro ou no desprezo e na violncia, tudo depende do encontro com o rosto.A promessa de um saber absoluto, pela filosofia, segundo Lvinas, um pensamento do igual. O ser alcanadado em sua verdade, e mesmo que a verdade no seja buscada na sua verso definitiva, h a promessa de uma verdade mais adequada. Lvinas considera que, sendo finitos, os seres humanos no podem levar a tarefa do saber a um nvel inalcanvel. Porm, dentro dos limites em que ela cumprida, consiste em fazer que o outro se torne o "mesmo", isto , se torne ele mesmo.A ideia do infinto, pelo contrrio, traz uma desigualdade no pensamento, esse conceito ele defende citando como exemplo o pensamento cartesiano: "sem dvida, o ser finito que somos no pode, no fim de contas, levar a bom termo a tarefa do saber mas, dentro dos limites em que esta tarefa fica cumprida, ela consiste em fazer que o Outro se torne o Mesmo. Inversamente, a ideia do infinito implica um pensamento do Desigual. Parto da ideia cartesiana do infinito, onde o ideatum desta ideia, isto , o que esta ideia visa, infinitamente maior do que o prprio acto pelo qual eu penso" (Lvinas, 2007, p. 74).A expresso "no matars" exprime uma face do outro, sua abertura para o transcendental. Ningum tem o direito de tirar a vida do outro por apropriao, negando-o. Segundo Lvinas, a negao total do outro s tem um destino: o assassinato. "Matar no dominar, mas aniquilar, renunciar em absoluto compreenso." (Levinas, 1980, p. 177). O matar no um mecanismo de dominao do ouro, apenas elimina, de forma radical, a vida.Segundo Lvinas, o erro da ontologia tradicional est na inteno de abarcar a compreenso do ente como ser, esse enquadramento acaba destruindo a alteridade. Assim,"a relao com o ser, que atua como ontologia, consiste em neutralizar o ente para o compreender ou captar" (Lvinas, 2008, p. 33). O espao para se pensar o outro aniquilado pela globalizao ou totalizao.Mas essa inteno de abarcar o todo que a ontologia prope fracassa, ao deparar-se com o outro. Segundo ele, a no manifestao do ser como fenmeno produz esse efeito singular em cada pessoa. "O encontro com outrem consiste no fato de que, apesar da extenso da minha dominao sobre ele e de sua submisso, no o possuo. Ele no entra inteiramente na abertura do ser em que j me encontro como campo de minha liberdade. No a partir do ser em geral que ele vem ao meu encontro. Tudo que dele me vem a partir do ser em geral se oferece por certo minha compreenso e posse. Compreendo-o a partir de sua histria, do seu meio, de seus hbitos. O que nele escapa minha compreenso ele" (Lvinas, 1997, p. 31).Com a proposta de contrapor a ontologia, Lvinas pe em seu lugar a tica como filosofia primeira. Isso porque o outro no pode ser capturado ou compreendido como um fenmeno, ele apresentado como absolutamente outro.Como observa Lvinas, a tica manifestada sempre com grande importncia. Em tempos em que a violncia e todas as formas de tortura e morte se tornam banalizadas, o outro se desvela e, com ele, os seus direitos. Um desvelar para o eu que exige postura tica do outro. Assim, a tica de Lvinas, que inspirou Bauman, uma alternativa para uma sociedade que tem a tcnica em evidncia e muitas vezes esquece que, no meio de tudo, existe o humano, e esse precisa ser valorizado e reconhecido com respeito e igualdade. Essa foi a inspirao de Bauman para sair da categoria de sujeito objetivado, apresentado no decorrer desse estudo. Bauman buscou apoio para sustentar seu projeto de integrao para uma convivncia mais humana.AS POSTURAS TICAS DE GILLES LIPOVETSKYSob a tica pessimista, h uma tendncia de considerar o cenrio atual como sem moral ou amoral, como se no houvesse mais valores. Obviamente essa no a realidade, o mundo moral no some, a ps-modernidade apenas alterou os valores. Do bem passou-se para a ideia de bem-estar, esse valor (bem-estar) torna-se essencial na cultura contempornea. As fortes estruturas sociais, as instituies, a figura de um Deus que castiga, a ideia de leis eternas e imutveis enfraqueceram extremamente para dar espao ao homem ps-moderno. O que caracteriza o momento atual , propriamente e acima de tudo, o esgotamento dos ideais e o declnio da moral (Lipovetsky, 2005, p. 105).David Harvey(p. 293, 1992) descreve bem esse cenrio: "A experincia do tempo e do espao se transformou, a confiana na associao entre juzos cientficos e morais ruiu, a esttica triunfou sobre a tica como foco primrio de preo cupao intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentao assumiram precedncia sobre verdades eternas e sobre a poltica unificada, e as explicaes deixaram o mbito dos fundamentos materiais e poltico-econmicos e passaram para a considerao de prticas polticas e culturais autnomas".Regras e normas morais no so aceitas, a no ser as que so importantes e necessrias para a realizao pessoal. Assim, a verdade de um nico sistema que estabelea um conjunto de verdades cede lugar a uma variedade de verdades e de sistemas abertos. Isso explica, tambm, a crise e o desajuste geral. Vrios estilos de vida e comportamentos aparecem e so tolerados. A verdade passa a ser pessoal e a experincia do indivduo um voltar-se o melhor para si.David HarveyGraduado e Doutor por Cambridge, o gegrafo de orientao marxista David Harvey professor na City University of New York e autor de livros comoA condio ps-moderna(Loyola, 1993) eO enigma do capital(Boitempo, 2011).

No pensamento de Lipovetsky, o dever escrito com letras minsculas e a lei exaltada e assumida pelo sujeito oself interest. Nessa esteira, esclarece o autor, a onda de gritos pelo retorno da tica no passa de gritos e isso no significa que h uma renncia a si prprio, ou o desejo de cumprir obrigaes em favor dos outros. Na sociedade do ps-dever os direitos subjetivos ofuscam os imperativos. "Queremos o respeito da tica sem mutilao de ns mesmos e sem obrigaes difceis; o esprito da responsabilidade, no o dever incondicional. Por trs das liturgias do dever demirgico, chegamos ao minimalismo tico" (Lipovetsky, 2005, p. 101).Diferentemente de Bauman, Lipovetsky apresenta uma hiptese que ele denomina de fase ps-moralista. Assim, enquanto Bauman afirma que estamos na era da moralidade, Lipovetsky afirma que estamos frente dela. A fase ps-moralista, para Lipovetsky, cria uma ruptura e, ao mesmo tempo, complementa o chamado processo de secularizao, iniciado entre os sculos 17 e 18.As duas teses so claramente diferentes. A poca atual, de acordo com Bauman, baseada na moralidade sem tica, uma moralidade "desnuda", como foi apresentado nas consideraes anteriores. Lipovetsky, ao contrrio, afirma que estamos em uma sociedade psa-moralista, mas que isso no significa uma sociedade "ps-moral". Ocorre apenas que essa era no est disposta a sacrificar a exaltao dos desejos, do bem-estar individual, do ego, da felicidade por um ideal de abnegaes, como acontecia na moral moderna do dever. Na perspectiva lipovetskiana, o que acontece na era do "ps-dever" a espetacularizao, em que at mesmo o mal transformado em espetculo atrativo e o ideal subestimado. evidente que os vcios ainda inspiram censura, mas o herosmo do bem perdeu muito vigor. Assim, os valores que so admitidos hoje so de cunho negativo (no faa isso) e no positivo (voc obrigado a fazer). O autor admite existir uma tica indolor, a qual ele chama de ltima fase da cultura individualista democrtica."A experincia do tempo e do espao se transformou, a confiana na associao entre juzos cientficos e morais ruiu, a esttica triunfou sobre a tica como foco primrio de preocupao intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentao assumiram precedncia sobre verdades eternas e sobre a poltica unificada, e as explicaes deixaram o mbito dos fundamentos materiais e poltico-econmicos e passaram para a considerao de prticas polticas e culturais autnomas."Bauman questiona se realmente a ps-modernidade vai entrar para a histria como o crepsculo do dever (viso de Lipovetsky) ou como o renascimento da moralidade (viso de Bauman). Para entender essa crtica contra Lipovetsky, convm repassar algumas ideias expostas por Bauman, em suatica ps-moderna(1997), na qual ele acusa Lipovetsky de cometer erros de investigao, principalmente em seu livroO crepsculo do dever: "Se se precisar de exemplo dessa interpretao da "revoluo tica ps-moderna", no se pode fazer pior do que consultar o estudo recentemente publicado por Gilles Lipovetsky, Le Crpuscule Du devoir ("O crepsculo do dever", Gallimard, 1992). Lipovetsky, proeminente bardo da "libertao ps-moderna", autor de "A era do vazio" e "Imprio do efmero", sugere que entramos finalmente na era del`aprs-devoir, uma poca ps-deontolgica, em que se libertou nossa conduta dos ltimos vestgios de opressivos "deveres infinitos", "mandamentos" e obrigaes absolutos. Em nossos tempos, deslegitimou-se a ideia de autossacrifcio; as pessoas no so estimuladas ou desejosas de se lanar na busca de ideais morais e cultivar valores morais; os polticos depuseram as utopias; e os idealistas de ontem tornam-se pragmticos (Bauman, 1997, p. 06-07).Bauman questiona se realmente a psmodernidade vai entrar para a histria como o crepsculo do dever (viso de Lipovetsky) ou como o renascimento da moralidade (viso de Bauman).Bauman acusa Lipovetsky de aplaudir uma moral em declnio. "A moral que vem 'depois do dever' s pode admitir uma moralidade muito 'minimalista' e em declnio" (Bauman, 1997, p. 7). Entretanto, para Lipovetsky, um equvoco comparar o ocaso do dever e da moral com o declnio dos valores. Pelo contrrio, nessa era de ocaso do dever e da moral, a tolerncia, a honestidade e os direitos humanos so cada vez mais exaltados. A tendncia, portanto, como conclui Lipovetsky, no do abandono completo da moralidade e, sim, de sua reelaborao de acordo com uma base compartilhada de valores renovados. Costuma-se dizer que "Deus est morto", mas nem por isso os critrios de avaliao entre o bem e o mal foram cancelados na alma humana individualista (Lipovetsky, 2005a): " preciso abandonar a ideia fictcia de um mundo em que todos os critrios foram por gua abaixo, em que os homens no se deixariam mais guiar por nenhuma crena ou dispositivo de natureza moral" (Lipovetsky, 2005b, p. 125).Bauman (1997) ainda considera que Lipovetsky no faz uma afirmao moral e erra ao fazer meramente uma descrio dos comportamentos existentes, que ele aplaude e toma-a como norma que deve ser seguida nessa poca ps-deontolgica. Na crtica de Bauman, Lipovetsky um mero descritor das realidades, aceitando e aplaudindo um cenrio s porque ele est na moda ou por apenas existir. A acusao sria, pois, realmente, Lipovetsky descreve e aplaudea sociedade ps-moralista. A sua descrio aponta que a ps-modernidade apresenta uma inclinao para questes morais imediatas e menos tericas, bem como apresenta uma inclinao para uma moral pronta para o consumo miditico. No obstante, sua inteno no tanto construir uma teoria da moral, mas fazer "um levantamento do novo individualismo na era do consumo de massa" (Goergen, 2001, p. 48). Esse novo tempo, segundo a reflexo de Lipovetsky, afasta-se da ideia de finalidade e dirigido pela lgica da personalizao no fluxo da supervalorizao individual ou pessoal. "O rosto do futuro ser, em parte, feito imagem desta luta a que se entregam estas duas lgicas antagnicas; uma, afastando-se da obsesso da finalidade, tendo em conta a complexidade tanto do social como das situaes individuais, inventando dispositivos plurais, experimentais, personalizados; a outra, desviando-se das realidades sociais e individuais em nome de um novo dogmatismo tico e jurdico" (Lipovetsky, 1994, p. 19).Diante das crticas tecidas por Bauman, convm analisar a viso de Lipovetsky sobre a tica ps-moderna e verificar se os argumentos contra ele so razoveis e sensatos. Na citao abaixo, mesmo pondo em questo o uso crtico da razo proposto por Habermas, Lipovetsky explica que o mundo miditico no sepulta a razo nem a formao da opinio crtica. "O universo da informao conduz maciamente a sacudir as ideias aceitas, a fazer ler, a desenvolver o uso crtico da razo; mquina de tornar complexas as coordenadas do pensamento, de despertar exigncia de argumentaes, ainda que em um quadro simples, direto, pouco sistemtico. preciso operar uma reviso de fundo: o consumo miditico no o coveiro da razo, o espetacular no abole a formao da opinio crtica, o show da informao prossegue a trajetria das luzes" (Lipovetsky, 2008, p. 225).Com sua posio, Bauman parece colocar-se como um conselheiro angustiado com o cenrio ps-moderno, que se assemelha a uma coleo de fragmentos de episdios que formam uma imagem e imediatamente a substitui por outra. Nesse universo fragmentado, Bauman invoca a moral da responsabilidade para com o outro. O problema para ele est posto em um dilema: a contradio da inevitabilidade das escolhas e a responsabilidade e a transitoriedade da realidade. Como, ento, assumir a posio moral que leve em considerao o outro em um universo transitrio?Para Lipovetsky, o carter fragmentrio do contexto social e o pular de episdios em episdios no parecem ser as razes dos problemas morais ps-modernos. Frente a essa caracterstica da ps-modernidade, Lipovetsky defende uma tica de traos individualistas.Ser que diante desse cenrio de indivduos atomizados, voltados para si mesmos, as sociedades liberais estariam condenadas a serem comunidades sem projetos nem moral? O ser humano estaria realmente diante de uma sociedade sem referenciais e valores? Presencia-se, realmente, a fragmentao ou a decomposio da esfera moral em favor de uma exaltao do instantneo, do efmero, do consumismo exacerbado? A resposta, sendo positiva, ensejaria, ainda, outra pergunta: qual seria a explicao, ento, para o retorno do moralismo?Segundo Lipovetsky, o fenmeno do individualismo contemporneo coexiste na ps-modernidade, com o retorno de uma autntica exigncia tica que rompe com o discurso libertrio dos anos 1960 e 1970, assumindo posies ticas frente s novas ameaas tecnolgicas ao meio ambiente e ao estatuto biolgico do ser humano, ao novo contexto econmico, ideolgico e poltico, em desenvolvimento a partir da metade dos anos 1980 (Lipovetsky, 2004b). Com essas ameaas vindas de diferentes campos, segundo esse terico, adentra-se em uma nova fase da normatizao tica, diferente da que existia no passado, caracterizada por uma moral austera e por um dever incondicional. A nova moral tem como perfil uma escolha autnoma, influenciada frequentemente por dispositivos externos, como a mdia e as empresas: "estamos longe do engajamento moral dos tempos passados, em que o sacrifcio, em nome de uma religio ou de uma nao, era a norma" (Lipovetsky, 2004, p. 12).A moralidade, como analisa Lipovetsky, ocorre em um novo terreno, em que os valores morais no exigem mais o sacrifcio do indivduo, mas uma adeso voluntria e de durao limitada. Essa aspirao tica deve ser considerada, uma vez que, mesmo vivendo em um universo atomizado e de exageros, perdura certo fundamento de virtude representado pela liberdade de expresso, de respeito pelo outro, de tolerncia etc.Nesses termos, Lipovetsky fala de uma sociedade ps-moralista, assim denominada pelo fato de ter chegado ao fim a fase heroica e austera do dever e da obrigao. A partir da segunda metade sculo XX, presencia-se uma mudana quanto ao culto ao dever e ao respeito autoridade. Exemplo disso so as manifestaes antiautoritrias dos anos 1960, que representam a manifestao externa do desejo de libertao, da soberania da lei e da reconciliao com o prazer. Assim, o espao vazio deixado pelo dever cedeu lugar ao desejo, busca do bem-estar e da felicidade, e estimulao dos sentidos.Na viso de Lipovetsky, no h nada de novo debaixo do sol. Com maior ou menor influncia, h pelo menos dois sculos cada gerao proclamou estar em face da dissoluo dos valores e dos costumes. Hoje, praticamente, os termos catastrficos, na anlise desse terico, so os mesmos. A poca ps-moralista uma fase na qual a exigncia moral cai em descrdito. Isso no significa, porm, o fim da moralidade, mas, apenas, que alguns princpios antes nobres no so observados mais, como outrora. Em uma avaliao realizada, dentre 17 valores pesquisados, o socorro ao prximo, por exemplo, ficou em 14 lugar (Lipovetsky, 2005, p. 107). O indivduo contemporneo no mais o egosta que foi em eras passadas. A mudana est, necessariamente, na seguinte constatao: "pensar s em si no mais tido como algo imoral" (Lipovetsky, 2005), o eu conquista o direito de cidadania, no entanto, sem deixar de lado os eflvios de bondade. De um lado, tem-se uma moral que se deseja ver incorporada sociedade, ou, noutras palavras, a sociedade aplaude a honestidade, a polidez, o respeito etc; por outro lado, a obrigao de se abnegar ou de imolar-se, no est no cerne das preocupaes. "A nova era individualista conseguiu a faanha de atrofiar nas conscincias a alta considerao que desfrutava o ideal altrusta, redimiu o egocentrismo e legitimou o direito de viver s para si" (Lipovetsky, 2005, p. 107). So desacreditados o esprito de sacrifcio e o ideal altrusta. No vazio deixado, a cultura ps-moralista supervaloriza os direitos subjetivos. Na concepo de Lipovetsky, a frmula do individualismo consumado manifestada na no obrigao de se dedicar aos outros.Ao defender que o ideal perdeu sua base de sustentao, esse filsofo no pretende, contudo, dizer que reina, agora, o "estado de selvageria" e de completa indiferena pelos outros. Como Lipovetsky analisa tambm a sociedade francesa, em especial, afirma que, no seu pas, a maioria das pessoas considera um grave delito no conceder ajuda a algum que esteja enfrentando dificuldades. O individualismo contemporneo no antagnico s obras de beneficncia. Assim, ele assevera haver um desejo de ajudar os outros, mas sem se comprometer em excesso, doando-se a si mesmo em demasia.O "crepsculo do dever", para Lipovetsky, no remonta a um cenrio apocalptico. "tica um equvoco equiparar o crepsculo do dever ao niilismo e ao vazio dos valores". Para esse terico, a sociedade atual vai reconstruindo um ncleo slido de valores compartilhados os quais se apoiam em um consenso de valores ticos de base. Essa base de valores, como foi dito anteriormente, pautada na honestidade, na tolerncia, na recusa da violncia etc. Esses valores geralmente so bem acolhidos pela sociedade. As ideologias perderam sua credibilidade, mas no as exigncias morais mnimas como critrios indispensveis para a vida social e democrtica. Hoje, mais do que nunca, os crimes de sangue, a escravido, a crueldade, o estupro, dentre outros delitos, so repudiados e provocam indignao coletiva. Pode-se afirmar, diante desse contexto, que, por mais que o fim do ciclo do dever tenha abalado a sociedade, o senso de indignao moral no morreu.A sociedade do ps-dever enfraquece a obrigao de se consagrar aos demais, mas cristaliza aquilo que Rousseau chamava de compaixo. Em suma, ao mesmo tempo em que o dever declina, paradoxalmente, testemunha-se uma preocupao tica. "As grandes ordens moralistas caem em desuso, mas a tica volta ordem do dia, a religio da responsabilidade est mais vazia do que nunca, mas o suplemento da alma est na ordem do dia" (Lipovetsky, 2005, p. 185).As acusaes de Bauman de que Lipovetsky aplaude uma vida liberada de morais, ou que no se guia mais por um "deve" desvestido de obrigao moral e de direito (Bauman, 1997), no parecem ser totalmente verdadeiras. bom entender que o autor de A Sociedade Ps-moralista usa essa expresso (ps-moralista) no sentido de que existe uma volta da moral, porm esse retorno j no mais tem nada a ver com a retomada da moral tradicional, baseada no "dever" e na obrigao. As regulaes morais tm, hoje, um novo fundamento no comportamento responsvel e solidrio e no mais nas regras derivadas do princpio do dever, que se sobrepem a todos os desejos individuais (Goergen, 2001, p. 54).Entretanto, uma questo pode ser levantada: se no possvel, na era contempornea, recorrer- se aos princpios metafsicos teolgicos, aos imperativos categricos do dever, quais podem ser os princpios que devem orientar o comportamento humano?Em resposta, Lipovetsky assume uma tica individualista. No entanto, permanece problemtico encontrar garantias que ofeream uma nova regulamentao moral para reger os comportamentos humanos, uma vez que esses esto em permanente transformao em uma sociedade que abriu mo dos princpios fundantes transcendentais. Lipovetsky adverte que no possvel nem aconselhvel reformular qualquer projeto empenhado no ressurgimento do culto ao dever, por intermdio da pedagogia altrusta de virtudes cidads, pois j passou a poca da educao com base em princpios altrustas por meio de ameaas.Observa-se, ento, que o problema posto em termos ticos reside na fundamentao dos cdigos morais em uma era em que entram em crise a filosofia do sujeito e as narrativas sociais.Bauman discorda dessa posio e assume uma postura, inspirada em Lvinas, que considera o outro ou o "ser-para" como base primordial de suas argumentaes na construo do processo de integrao. " pela solido que almejamos integrao. por conta dessa solido que nos abrimos ao outro e permitimos que ele se abra para ns. graas a essa mesma solido (que somente desmentida, nunca superada, pelo tumulto do estar-com) que nos transformamos em "selves" morais. E justamente por permitir integrao alcanar suas possibilidades que apenas o futuro pode revelar que temos uma oportunidade de agir moralmente, e por vezes mesmo de ser bons no presente" (Bauman, 2011, p. 100).Lipovetsky, no obstante, acredita que h um forte predomnio dos direitos subjetivos, entre a massa. Uma tica pluralista, sem o fardo do dever, no precisa recomendar desordem. A sociedade tem desejo de ordem, de moderao. A nova fundamentao da moralidade no tem onde se apoiar, a no ser na prpria sociedade aberta e democrtica. Ao defender essa concepo, Lipovetsky coerente em seu otimismo, pois incontestvel o vazio ou o vacilar das referncias, mas no se pode omitir que tambm existe um consenso em torno de alguns valores morais de base, tais como: os direitos da humanidade, a tolerncia, a no violncia, a honestidade. incontestvel que h grandes violaes desses valores, mas isso no implica que eles estejam sendo questionados. Ao contrrio, h um alto grau de consenso em torno deles.Tambm no se pode deixar de falar em valores que antes eram precrios e que hoje so mais respeitados, exemplos disso so: respeitar o meio ambiente, o respeito com a diferena, os direitos e estatutos da criana, os direitos ou estatutos do idoso, os direitos da mulher, dentre outros. A esse respeito, complementa Lipovetsky: " preciso desfazer esta imagem caricatural da sociedade na qual todos os valores teriam sido precarizados. Uma tolerncia maior no significa a derrocada completa dos valores, no significa logo a total incapacidade de sim ou de no em nome de princpios nos quais se acredita. Esta uma necessidade individual, uma urgncia da vida e, portanto, no se 'desfaz no ar' to facilmente" (Lipovetsky, 1994, p. 168-169).Observa-se, ento, que o problema posto em termos ticos reside na fundamentao dos cdigos morais em uma era em que entram em crise a filosofia do sujeito e as narrativas sociais. Bauman, mesmo no sendo fundacionista, tenta recuperar essa dimenso da fundamentao na chamada responsabilidade para com o outro; Lipovetsky, por sua vez, parte do individualismo que ele denomina de individualismo responsvel, com regras, organizado, ao contrrio do individualismo autossuficiente, sem regras, desorganizador, irresponsvel.Gilles Lipovetsky (1994) apresenta a proposta de uma ticaindolor, sem se basear no dever. Desaparece a retrica do dever austero, cedendo lugar a essa tica mais leve, indolor que no tem como funo predicar a imolao do homem no "altar dos valores superiores" (Lipovetsky, 1994, p. 209). O individualismo no elimina a preocupao tica e nasce nas mentalidades um altrusmo indolor. importante esclarecer que Lipovetsky no diz que o altrusmo foi dissolvido, mas, apenas, que foi modificado, isto , sua nova verso agora tem uma caracterstica mais flexvel, sem obrigao, sem peso ou sacrifcios exagerados. "Dans nos socits, l'altruisme erige em prncipe permanent de vie est une valeurdisqualifie, assimilequ'elle est une vainemutilation de soi: lenouvel age individualiste a russil'exploit d'atrophierdans ls consciencesellesmmesl'autorit de l'idalaltruiste. Il a dscupabilis l' gocentrismes et legitime ledroit de vivrepoursoimme" (Lipovetsky, 2005, p. 135).Bauman efetivamente se afasta do individualismo como valor tico da sociedade contempornea e, com isso, distancia-se tambm da tica proposta por Lipovetsky, propondo, como j apresentado, uma tica de estilo levinasiano, da responsabilidade para com o outro de forma inteiramente desinteressada, sem esperar que o outro se responsabilize por mim, ou oferea algo em troca, em uma relao inteiramente assimtrica entre eu e o outro.Desse modo, "o momento do imperativo categrico cedeu lugar a uma tica minimalista e intermitente a uma forma de solidariedade compatvel com o primado do ego" (Lipovetsky, 2005). Observou-se que Bauman, em sua obraVida em fragmentos: Sobre a tica ps-moderna, defende que a era atual se caracteriza como o momento da moralidade sem tica. Contrariamente, Lipovetsky (2005, p. 185) diz: "Ou o sculo 21 ser tico ou no ser nada". Lipovetsky, com a ideia de um altrusmo indolor ou em uma viso contrria de Bauman, valoriza um individualismo chamado por ele de individualismo responsvel. S que para Bauman no pode haver responsabilidade em um projeto dessa espcie. O individualismo forjado pelo consumismo, aplaudido por Lipovetsky, gera concentrao extrema de irresponsabilidade por prevalecer o interesse do mais forte. Alm do mais, tambm o sujeito objetivado, como foi mostrado na reflexo de Lvinas, perdendo o contato com o humano, desfigurando o rosto do outro, que deveria ser preservado, com o cuidado do estar-com. Portanto, para Bauman, esse tipo de individualismo destri, sim, as pontes de proximidade e de alteridade to caras para a convivncia humana.Lipovetsky, por seu turno, no acredita que o individualismo reinante destrua a tica. Ele (o individualismo responsvel) est aberto s regras morais. Essa nova forma de pensar mostra que o individualismo tambm no pode existir sem um regulador. Ilustra, tambm, que as ideologias deixaram de responder s exigncias atuais. Da se justifica a concluso de Lipovetsky de que o sculo 21 ser tico ou no ser nada.O retorno da tica assinala que o senso moral constitui um elemento estrutural do humano. Na tica de Lipovetsky, o sujeito contemporneo tem como conciliar tica com individualismo, desde que seja um individualismo responsvel, em que cada um respeita o mnimo de valores essenciais e as regras bsicas para a boa convivncia que garanta seus direitos. Bauman, no aprova esse individualismo porque considera a existncia de uma necessidade de personalizar a moral, tirando-a da mscara rgida colocada pelo cdigo tico, isso significa, em outras palavras, trazer a moral ao comeo do caminho tico e no promover apenas sua finalidade, cujo carter ganha contornos utilitaristas (Aquino, 2011). Em sua concepo, no existe responsabilidade sem alteridade, pois na relao com a incerteza chamada outro que vai sendo tecida a compreenso sobre o "ser moral".LIPOVETSKY E SUA PROPOSTA DAS TICAS INTELIGENTESLipovetsky considera importante dar razo no s pregaes moralizadoras, mas defender a causa das ticas inteligentes. Essas ticas inteligentes caracterizam-se mais por um voltar para o atendimento das necessidades concretas do homem do que para a realizao de desgnios abstratos. "Mais inovadoras do que meramente tericas; mais abertas s mudanas realistas do que a concepes dogmticas; mais atentas responsabilizao pessoal e menos ao indiciamento compulsrio" (Lipovetsky, 2005, p. 34). Isso significa que o argumento do autor defende, sim, o aproveitamento das iniciativas interesseiras, mas com a ressalva de que possa haver melhoras na condio humana. Essa postura melhor do que boas intenes desprovidas de meios apropriados. "Se, com toda evidncia constitui critrio moral de maior alcance o anseio generoso ou altrusta, tal no pode ser tido como elemento nico e exclusivo" (Lipovetsky, 2005, p. 34).Lipovetsky refora, assim, sua postura de no aceitar esse altrusmo tradicional e ultrapassado. "Caso contrrio, equivaleria a admitir como verdadeira a tese (a nosso ver, inaceitvel) que no estabelece distino entre procedimento moral, de um lado, e atitudes individuais inteiramente desinteressadas, de outro" (Lipovetsky, 2005, p. 34-35). Com essa concepo, o autor ressalta que criaria no plano tico uma confuso entre as medidas polticas, econmicas ou gerenciais mais antagnicas e as motivaes nelas contidas. Assim, para resolver essa situao proposta uma "inteligncia na tica". Nessa situao, a inteligncia na tica ou a tica inteligente no impe que os interesses pessoais sejam coibidos completamente, eles so apenas refreados. Tambm no se exige o herosmo da abnegao, mas apenas procura-se um meio termo que se possa aceitar. Ele prope, na realidade, medidas que sejam adequadas de acordo com as circunstncias concretas. Nessa perspectiva "defendemos, sim, a causa da tica inteligente, porque o culto ao dever j no tem credibilidade social, porque a justia social requer eficcia (ao menos na era neo-individualista), no pode ser concebida sem respeito ao homem, sem uma dimenso humana" (Lipovetsky, 2005, p. 35).CONSIDERAESA tica do ps-dever paradoxal, tendo como centro o individualismo hedonista e narcisista, de deveres subjetivos, de satisfao dos desejos, de felicidade e de autonomia. Como afirma Martins (2007), Lipovetsky tem conscincia de que se trata de uma tica com limitaes e que no pode salvar o mundo, por isso prefere assumir umatica inteligente e aplicada, preocupada mais com os benefcios do que com as intenes puras. Trata-se, portanto, de uma tica mais reformadora, adepta s mudanas e menos apoiada em princpios absolutos e universais.A tica do ps-dever uma tica indolor, ancorada em um individualismo responsvel, entretanto ele no cai, como observa Martins (2007), no clssico individualismo de estilo hobbesiano, de "cada um por si e depois de mim o dilvio". Vale ressaltar, portanto, que esse individualismo no implica uma postura irresponsvel em que cada um deve apenas cuidar de si prprio, sem preocupaes com o que acontea com o outro. "D'um ct um individualismeresponsable et organisateur, de l'autre um individualisme autosuffisant, sansrgle, dsorganisateur: ditbrutalement, irresponsable" (Lipovetsky, 1992, p. 197).Bauman efetivamente se afasta do individualismo como valor tico da sociedade contempornea e, com isso, distancia-se tambm da tica proposta por Lipovetsky, propondo, como j apresentado, uma tica de estilo levinasiano, daresponsabilidade para com o outrode forma inteiramente desinteressada, sem esperar que o outro se responsabilize por mim, ou oferea algo em troca, em uma relao inteiramente assimtrica entre eu e o outro. Sua postura tica tem valor no desinteresse, o que no acontece, segundo a crtica de Bauman, no individualismo proposto por Lipovetsky. Em resumo, a tica do ps-dever mais realista, uma tica possvel para os novos tempos democrticos e no recai em certo idealismo tico, como ocorre com a tica de inspirao levinasiana, proposta por Bauman.DANIEL NERY DA CRUZ mestre em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da Faculdade Juvncio Terra/Mauricio de Nassau, membro do corpo editorial da "American Journal of Educational Research" (EUA) e pesquisador do Ncleo Avanado de Estudos da Contemporaneidade. NUVIP/UESB. E-mail:[email protected]