sociedade e estado na filosofia política moderna (noberto bobbio)

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Norberto Bobble. um dos mais respeitados cientistas pollticos do atualidade, e Michelangelo B over o, interlocutor que 0acompanhou em seus principais estudos, apresentam, de uma forma clara e slntetico. os resultados de um longo e primoroso estudo sobre os principais pensadores politicos do rnocerntoode. o roteiro desses estudos, reconstituido atraves de cursos e publlcocoes dos autores nos Oltimasduos decodes. percorre 0 pensamento de Hobbes, Espinosa,Locke, Rousseau, Kant, Hegel e Marx, Sem exagero algum, Sociedade e Estado na Filosofia Politica Moderna se estabelece como uma reterencio indispensdvel para todos osque pensam a politico, Areos de interesse: Filosofio, Politico Soc ie da de e estado n a f il os of ia p ol it ic a moderna " II" "" "I 00000015160 ISBN 85-11-12036-X 788511 120363 . Z OJ QJ 1:32 B'6G:~ ~G: 15 NORBERTO BOBBIO MICHELANGELO BOVERO Sociedade e lado a Filosofia litica Moderna editora brasiliense

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Norberto Bobble. um dos mais

respeitados cientistas pollticos doatualidade, e Michelangelo Bovero,interlocutor que 0acompanhou em seusprincipais estudos, apresentam, de umaforma clara e slntetico. os resultados deum longo e primoroso estudo sobre osprincipais pensadores politicos dornocerntoode.o roteiro desses estudos, reconstituido

atraves de cursos e publlcocoes dosautores nos Oltimasduos decodes.

percorre 0pensamento de Hobbes,Espinosa, Locke, Rousseau, Kant, Hegel eMarx, Sem exagero algum, Sociedade e

Estado na Filosofia Politica Moderna seestabelece como uma reterencioindispensdvel para todos os que pensama politico,

Areos de interesse: Filosofio, Politico

Sociedade e estado na f ilosof ia pol it icamoderna

" I I " " " " I 00000015160

ISBN 85-11-12036-X

788511 120363

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OJQJ

1:32

B'6G:~~G: 15

NORBERTO BOBB IO

M ICHELANG ELO BOVERO

S o c i e d a d e e

l a d o a

F i l o s o f i a

l i t i c a

M o d e r n a

ed ito ra b ra s ilie n s e

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SOCIEDADE E ESTADO

NA F ILOSOF IA POL iT IC A

MODERNA

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NORBER TO BOBBIO

M ICHE LA NG EL O BOV ER O

SOCIEDADE E ESTADO

NA FILOSOFIA POLiTICA

MODERNA

tradu¢o:

Ca rl os N e ls on Cou ti nho

e d i t o r a b r a s i l i e n s e

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Copyright © b y i l S ag g ia to re , M i la o, 1 9 79T it ul o o ri g in a l: So ci ei a e S t at o n e ll a F i lo so fi a

Po l it ica ModernaCo py ri gh t d a t ra du cu » E d it or a B ra si li en se SA

N en hu ma p ar te d esta p ub lic a(: ao p od e s er g ra va da ,a rmazenada em s is t emas e le tr6n ico s , f o tocop iada ,

r ep r od u zi da pa r me i os med in ic o s a u o u tr os q u ai sq u ers em aut or iz a di o p r ev ia d a edi to ra .

I SBN: 85 -1 1 -1 2 036 -XPr ime ir a ed ic d o, 1 9 864~ edidio, 1994

1~re impress i io , 1996Indice

lndicadio ed ito ria l: Fernando L imongiR eo is do : O lg a L omb ar d e M a ri a S . C. Correa

Ca pa : l oa o Bap ti st a d a Co st a A g ui arPremissa - Norberto Bobbio . 7

PRIMEIRA PARTE

o modelo jusnaturali~a

Norberto Bobbio

o carater do jusnaturalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13Razaoe historia : ~. . . . . . . . . . . . . . . . 24

o modelo hobbesiano 34

o modelo aristotelico 40o estado de natureza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

o contrato social 61A sociedade civil 7S

o Estado segundo a razao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8S

o fim do jusnaturalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

EDITORA BRASILlENSE S.A.R. Bariio de Itapetininga, 93- 11? a.

01042-908 - Siio Paulo - SP

Fone (011) 258-7344 - Fax 258-7923Filiada it ABDR

SEGUNDA PARTE

o modelo hegelo-marxiano

Michelangelo Bovero

Dois modelos dicotornicos , 103

o "modelo hegelo-marxiano" 107Hegel, Marx e 0ponto de partida no abstrato , 117

 

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Qual Marx e qual Hegel? 125Duas antiteses fundamentais 132Para a distincao entre sociedade eEstado . . . . . . . . . . . .. 139Uma comparacao entre os modelos 151Da genese a estrutura da sociedade modema -160

Bibliografia 165

P rem iss a

Destes dois ensaios, 0 segundo, de Michelangelo Bo-

vero, "0modelo hegelo-marxiano", pode ser considerado sob

varios aspectos como a continuaciio do primeiro, escrito. por

mim, "0modelo [usnaturalista", As razoes pelas quais acre-

ditamos oportuno publica-los em conjunto siio sobretudo

duas.

A primeira diz respeito ao metoda com 0 qual a filosofia

polltica dos jusnaturalistas e afilosofia poll tica de Marx com

relaciio a de Hegel foram examinadas e reconstruldas. Trata-

se do metoda de analise conceitual, para cuja de/iniciio niio

encontro nada melhor que repetir 0que escrevi ha dez anos no

preft icio ao volume Da Hobbes a Marx, que compreende en-

saios tanto sobre alguns jusnaturalistas, como Hobbes, Pufen-dorf, Locke e Kant, quanto sobre Hegel e Marx: "No estudo

dos autores do passado, jamais fui particularmente atraldo

pela miragem do chamado enquadramento historico, que ele-va as fontes a precedentes, as ocasioes a condiciies, detem-se

por vezes nos detalhes ate perder de vista 0 todo: dediquei-me,

ao contrario, com particular interesse, ao delineamento de te-

mas fundamentals, ao esclarecimento dos conceitos, a analisedos argumentos, a reconstruciio do sistema". I

(J) Da Hobbes a Marx. Saggi di storia della filosofia. Napoles. Morano. 19!B..p.7.

 

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8 NORBERTO BOBBIO PREMISSA 9

Niio e descabido acrescentar que, se esse modo de apro-

ximaciio aos autores classicos se diferencia do metodo histo-

rico outrora dominante na tradiciio cultural italian a, dis-

tingue-se ao mesmo tempo, e com maior raziio, daquela espe-

cie do genero "historicismo" que e a interpretaciio ideologic a,

hoje em voga. Depois de julgar autores complexos e diversosem sua complexidade tematica e conceitual sobretudo se-

gundo a perspectiva das aspiraciies e interesses de classe que

uma determinada teoria ref/ete e ao mesmo tempo defende,

essa interpretaciio niio parece ter levado a resultados muito

significativos alem do que consiste em definir os autores ate

agora estudados, de Hobbes a Max Weber e a Kelsen, pas-

sando por Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Bentham, Mill,

Spencer, etc., como ideologos da burguesia, como autores

que, apesar das teses contrapostas que freqiientemente uns

sustentam contra os outros, siio sempre declarados - com

uma horrivel expressiio - como "funcionais" a um unico inte-resse de classe.

Precisamente enquanto especie do genero, niio e de sur-

preender que esse modo de tratar afilosofia polltica tenha tido

tanto sucesso em nosso pais, onde 0 historicismo teve sua pa-

tria de adociio e, segundo alguns, de origem. Falo de "especiedo genero "porque a interpretaciio ideologica parte do mesmo

pressuposto da analise historica, ou seja, da ideia de que

- para compreender uma teoria politica, social, economica- e preciso antes de mais nada situd-la em seu tempo e rela-

ciona-la com as condiciies objetivas de onde surgiu. A dife-

renca esta no fato de que a analise historica levava principal-mente em conta os eventos politicos, a formacao do Estado

moderno, a grandeza e a decaden cia da monarquia absoluta,

as duas gran des revoluciies, 0 nascimento dos Estados consti-

tucionais e representativos, 0 advento da democracia, etc.,

enquanto a interpretaciio ideologica toma em consideraciio

sobretudo as relaciies economicas, a forma de produciio, a

estrutura de classe de uma determinada sociedade. Essa dife-

renca pode tambem explicar por que a primeira deu resulta-

dos mais variados que a segunda, ou por que a segunda deu

resultados tiio monotones. Com efeito, segundo a filosofia da

historia em que se inspiram os fautores da interpretaciio ideo-

logica, que dela extraem freqiientemente conclusiies muito ri-,

gidas, a base econiimica de uma sociedade e mais constante

que suas form aspoliticas.Decerto, a reconstruciio conceitual ndo exclui nem a ana-

lise historica nem a interpretaciio ideologica: no universo do

saber, ha lugar para as mais diversas perspectivas, as quais,

alias, deveriam completar-se reciprocamente tendo em vistaum conhecimento mais completo ou menos parcial do objeto.

Por um lado, ela niio exclui as duas divers as perspectivas e,

por outro, pode servir - pelo menos e essa minha opiniiio -

para tornar mais problemtuica a primeira e menos generica a

segunda.A segunda raziio da publicaciio simultiinea dos dois en-

saios niio e de metoda, mas de su bstiin cia. Tambem dessa

raziio pode-se encontrar uma antecipaciio no prefacio ja ci-

tado, quando afirmo que jusnaturalismo e historicismo diale-

tico (entendia com essa expressiio as filosofias de Hegel e de

Marx) podem ser interpretados, niio so como filosofias poli-ticas, mas tambem como filosofias da historia, que tem em

comum a contraposiciio entre uma fase pre-estatal e a fase do

Estado, e que concebem esses dois esttigios ou momentos

como categorias fundamentais para compreender a historic da

civilizaciio. "Enquanto filosofias da historic - escrevia -,

ainda que uma inconsciente e outra inteiramente explicitada,

niio siio tiio distantes uma da outra quanto a insistencia uni-

lateral no aspecto ideologico e no resultado politico sempre

induziu a supor", 2

De resto, somente alguns anos mais tarde busquei fixar

os elementos essenciais do sistema conceitual no qual os jus-naturalistas tinham colocado a materia de suas reflexiies sobre

a origem e a justificaciio do Estado, contrapondo-os aos ele-

mentos do sistema conceitual classico, que - partindo de

Aristoteles - chegara ate 0 l imiar da era moderna. Chamei 0

primeiro de "modelo [usnaturalista"; 0 segundo, de "modelo

aristotelico ". 3Em 1973, meu primeiro ano de docencia de Fi-

(2) Ibid., p. 7.(3) "II modello giusnaturalistico ", in Rivista Internazionale di Filosofia d~1

Diritto, 1973, pp. 603-22; e tambem in La formazione storica del diritto mode~n~l.n

Europa (Atas do terceiro congresso internacional da Sociedade Italiana de HistoricdoDireito), Florenca, Olschki, 1977, pp. 73-93.

 

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10 NORBERTO BOBBIO

losofia da Politica na Faculdade de Ciencias Politicos de Tu-rim, dediquei 0curso ao tema dogrande dualismo entre socie-dade civil e Estado, e. juntamente com Bovero, publiquei umvolume de apostilas intitulado Societa e Stato de Hobbes aMarx, no qual inclul, a guisa de introduciio, as pdginas doartigo sobre 0 modelo jusnaturalista, publicado no mesmoano. Dos autores apresentados nesse curso, escrevi os capl-tulos sobre Hobbes, Locke e Marx; Bovero, os sobre Rousseaue Hegel. Esse curso e a continua discussiio que a elese seguiuentre nos sobre 0 tema constituem 0precedente mais diretodos dois ensaios publicados nopresente volume.

Meu ensaio reproduz, com exceciio do primeiro para-grato mas com 0 acrescimo das notas de rodape, 0 capitulosobre jusnaturalismo redigido para a Storia delle idee politi-che economiche e sociali, dirigida por Luigi Firpo para a Edi-tora Utet, a qual agradeco a gentil concessiio de republica-lo

aqui. 0ensaio de Bovero, que comeca onde 0meu termina econstitui quase um seu contraponto, e completamente novo.

PRIMElRA PARTE

o modelo jusnaturalista

Norberto Bobbio

Norberto Bobbio

 

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o carater do jusnaturali smo

Embora a ideia do direito natural remonte a epoca clas-sica, e nao tenha cessado de viver durante a Idade Media, averdade e que quando se fala de "doutrina" ou de "escola" dodireito natural, sem outra qualificacao, ou, mais brevemente,com urn termo mais recente e nao ainda acolhido em todas aslinguas europeias, de "jusnaturalismo", a intencao e referir-sea revivescencia, ao desenvolvimento e a difusao que a antiga erecorrente ideia do direito natural teve durante a idade mo-derna, no periodo que intercorre entre 0 inicio do seculo XVIIeo fim do XVIII. Segundo uma tradicao ja consolidada nasegunda metade do seculo XVII - mas que ha algum tempo,

com fundamento, tern sido posta em discussao -, a escola dodireito natural teria tido uma precisa data de inicio com aobra de Hugo Grocio (1588-1625), De iure belli acpacis, pu-blicada em 1625, doze anos antes do Discours de la methodede Descartes. Mas nao tern uma data de encerramento igual-mente clara, ainda que nao haja diividas sobre os eventos queassinalaram 0 seu fim: a criacao das grandes codificacoes, es-pecialmente a napoleonica, que puseram as bases para 0 re-nascimento de uma atitude de maior reverencia em face dasleis estabelecidas e, por conseguinte, daquele modo de conce-ber 0 trabalho do jurista e a funcao da ciencia juridica quetoma 0 nome de positivismo juridico. Por outro lado, e bernconhecida tam bern a corrente de pensamento que decretousua morte: 0 historicismo, especialmente 0 historicismo juri-

 

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14 NORBERTO BOBBIOSOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA pOLlnCA MODERNA

lha intransponivel, nao ha . diivida de que uns pertencem prin-cipalmente a historia das doutrinas juridicas, enquanto os ou-tros pertencem aquela das doutrinas politicas.

Contudo, apesar da disparidade dos autores compreen-didos sob as insignias da mesma escola, ou, 0 que e sinonimo,domesmo "ismo" , e nao obstante 0que de artificial, e por suavez de "escolastico", existe em proceder por escolas ou por"ismos", nao se pode dizer que tenha sido urn capricho falarde uma escola do direito natural. Dela se falou, e verdade,com duas perspectivas diversas: pelos proprios fundadores eseus seguidores, com a finalidade de construir uma arvoregenealogica frondosa e, alem domais, com urn ilustre anteces-sor, de quem eles pudessem tirar vantagem eargumento parase considerarem como inovadores que deixaram para tras urnpassado de erros e de barbarie; pelos adversaries, para osquais uma vezesgotado 0 impulso criador da escola, 0 fato de

por t~dos os seus componentes, indistintamente, num ~nic~alinhamento tornava mais facil acertar no alvo, com a finali-dade de desembaracar-se de uma vez para sempre de urn errofunesto. Enquanto a primeira perspectiva permite-nos captaraquilo contra 0que os criadores e os fieis seguidores da escolase opuseram, a segunda nos permite compreender 0que a elesfoi contraposto por seus criticos: como se sabe, nao ha modomelhor para compreender as linhas essenciais de urn movi-mento de pensamento que considera-lo do ponto de vista dasteses alheias que ele negou e do ponto de vista das proprias

teses que foram negadas pelos outros.

Pois bern: tanto uma quanto outra perspectiva convergempara trazer a luz urn principio de unificacao daquilo que a?I-bas as partes convieram chamar de uma "escola". Esse pnn-cipio nao reside nesse ou naquele conteudo, mas consiste cer-tamente num modo de seaproximar do estudo do direito e, emgeral, da etica e da filosofia pratica: numa palavra, no "me-todo". Entre urn e outro, a diferenca esta no juizo de valor:o que para osdefensores constitui urn titulo de merito, para osdetratores representa urn item de acusaeao. 0m~todo queune autores tao diversos e 0metodo racional, ou seja, aquelemetodo que deve permitir a reducao do dire~to,~ da moral(bern como da politica), pela primeira vez na historia da re.f1e-xao sobre a conduta humana, a uma ciencia demonstrattva.

15

dico, que se manifesta muito em particular na Alemanha(onde, deresto, a escola do direito natural encontrara sua pa-tria de adocao), com a Escola historica do direito. Ademais, sequisessernos indicar precisamente uma data emblematica

desse ponto de chegada, poderiamos escolher 0 ana da publi-cacao do ensaio juvenil de Hegel, Ueber die wissenschaftli-chen Behandlungsarten des Naturrechts (Sobre os diversosmodos de tratar cientificamente 0 direito natural), publicadoem 1802. Nessa obra, 0 filosofo - cujo pensamento repre-senta a dissolucao definitiva do jusnaturalismo, e nao 'so domoderno, como veremos no final - submete a uma critica ra-dical as filosofias do direito que 0 precederam, de Grocio aKant e Fichte.

Sob a velha etiqueta de "escola do direito natural", es-condem-se autores e correntes muito diversos: grandes filoso-fos como Hobbes, Leibniz, Locke, Kant, que se ocuparamtambem, mas nao precipuamente, de problemas juridicos epoliticos, pertencentes a orientacoes diversas e por vezes opos-tas de pensamento, como Locke e Leibniz, como Hobbes eKant; juristas-filosofos, como Pufendorf, Thomasius e Wolfftambem divididos quanta a pontos essenciais da doutrina(Wolff, para darmos apenas urn exemplo, e considerado comoo antiPufendorf); professores universitarios, autores de tra-tados escolasticos que, depois de seus discipulos, talvez nin-guem mais tenha lido; e finalmente, urn dos maiores escri-tores politicos de todos os tempos, 0 autor de 0 ContratoSocial.

Por outro lado, enquanto para osjuristas-filosofos a ma-teria do direito natural compreende tanto 0 direito privadoquanto 0 direito publico (e muito mais 0 primeiro que 0 se-gundo), para os outros, em especial para os tres grandes, porcuja obra se mede hoje a importancia dojusnaturalismo, e emfuncao dos quais talvez valha ainda a pena falar de urn "di-reito natural moderno" contraposto ao medieval e ao antigo- estou me referindo a Hobbes, Locke e Rousseau -, 0temade suas obras e quase exclusivamente 0 direito publico, 0pro-blema do fundamento e da natureza do Estado. Embora adivisao entre uma e outra historiografia particular seia uma

convencao, que pode tambem ser deixada de lado e que, dequalquer modo, e preciso evitar considerar como uma mura-

 

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16 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 17

Em outras palavras: tanto os seguidores quanto os adversariesconsideram-se autorizados a falar de "escola" enquanto estaconstitui uma unidade nao ontologica, nao metafisica nemideologica, mas sim metodologica. A melhor prova disso, deresto, e 0fato de ter prevalecido 0uso (pelo menos a partir dacritica da escola hist6rica) de chamar 0 direito natural mo-derno de "direito racional": 1 temos aqui urn indicador do fatode que aquilo que caracteriza 0movimento em seu conjuntonao e tanto 0 objeto (a natureza), mas 0 modo de aborda-lo(a razao), nao urn principio ontologico (que pressuporia umametafisica comum que, de fato, jamais existiu), mas urn prin-cipio metodologico.

Nao que inexistam divergencias entre os jusnaturalistas(podemos doravante chama-los assim), tambem no que se re-fere ao objetivo comum. No opusculo juvenil sobre 0 direitonatural, Hegel se propusera examinar (e criticar) as "diversas

maneiras de tratar cientificamente 0 direito natural", distin-guindo entre osempiristas, como Hobbes, que partem de umaanalise psicologica da natureza humana, e os formalistas,como Kant e Fichte, que deduzem 0 direito de uma ideiatranscendental do homem. Tanto e assim que penetrou na tra-tadistica corrente no fim do seculo, nao saberia dizer se porinfluencia direta de Hegel, 0 uso de reservar 0 nome de "di-reito racional" somente para a doutrina kantiana. No iniciodo seu monumental tratado, Wolff critica seu mais direto ri-val, Pufendorf, nao como 0 havia feito Leibniz, por razoesmetafisicas e implicitamente de politica cultural, mas unica-

mente por razoes metodologicas: Pufendorf, diz ele, passa porurn escritor que tratou cientificamente 0 direito natural, masesta efetivamente tao longe do verdadeiro metodo cientificocomo "0 ceu da terra". 2Contudo, essas divergencias - e ou-

tras que se poderiam arrolar - nao cancel am 0 intento co-mum, ainda que esse tenha sido realizado de modos diversos,urn intento que permite considerar unitariamente os variesautores: a construcao de uma etica racional, separada defini-tivamente da teologia e capaz por si mesma, precisamente

porque fundada finalmente numa analise e numa critica ra-cional dos fundamentos, de garantir - bern mais do que ateologia, envolvida em contrastes de opinioes insohiveis - auniversalidade dos principios da conduta humana. Historica-mente, 0direito natural e uma tentativa de dar uma respsotatranqiiilizadora as consequencias corrosivas que os libertinostinham retirado da crise do universalismo religioso. Nao haautor da escola que nao tome posicao diante do pirronismo emmoral, do que hoje chamariamos de relativismo etico. Na am-pla introducao a traducao francesa da principal obra de Pu-fendorf - introducao que pode ser considerada como urn ver-

dadeiro manifesto da escola -, Barbeyrac, depois de ter ci-tado, entre outras, uma celebre passagem de Montaigne,? quepoe em diivida 0direito natural pelo fato de nao haver supostalei da natureza que nao tenha sido desautorizada por urn oumais povos, responde com uma citacao de Fontenelle: "Sobretudo 0 que diz respeito a conduta dos homens, a razao terndecisoes muito seguras: 0mal e que ela nao e consult ada" .4 0

(1) Urn dos textos mais recentes e autorizados da historiografia juridica, F.Wiaecker, Privotrechtsgeschichte derNeuzeit unter besonderer Beriicksichtigung derdeutschen Entwicklung ; Gottinger, Vandenhoe u. Ruprecht, 1967, dedica urn capi-

tulo a "epoca dodireito racional", pp. 249-347.(2) A passagem merece ser citada na integra: Vulgo Puffendorfius ius naturae

demonstrasse dicitur: enimvero qui sic sentiunt, methodi demonstrativae satis igna-ros sese probani, et qui vel in mathesi, vel in operibus nostris philosophicis fuerit

versatus, quantum a veritate distet iudicium abunde intelliget. Legat ea. quae demethodo philosophica. eadem omnimo cum scientifica, seu demonstrativa (... ) co-

mentati sumus (...) et inquirat, num Puffendorfius regulis eiusdem satisfecerit: nisi

enim in re manifesta caecutire velit , eundem a methodo scientifica tantum abessedeprehendet, quantum distat a terra coelum (Christian Wolff, Jus naturae methodo

scientifica pertractatum, que cito da edicao de Frankfurt e Leipzig. de 1764, vol. I ,§2, p. 2). .

(3) "De resto, sao verdadeiramente curiosos quando, para dar alguma certezaasleis, afirmam que, entre elas, ha algumas estaveis, perpetuas e imutaveis, que eles

chamam de naturais e que sao impressas no genero humano pela cond icao de suapropria existencia, E, dessas, ha quem conte tres, quem quatro, quem mais, quemmenos: prova que isso e urn signa tao incerto quanto 0 resto. Ora, eles sao tao desa-fortunados (. . . ) que, dessas trss ou quatro leis escolhidas, nao ha nenhuma que nao

seja contraditada e desmentida, nao por urn so povo, mas por muitos" (Montaigne,Essais, que cito da trad. italiana de F. Garavini, Milao, Adelphi, 1966, vol. I.p.770).

(4) Fontenelle, Dialogues des morts anciens avec des modernes, Dialogo V,Sur lesprejuges (os interlocutores sao Estratao e Rafael) , que cito de Entretiens surlespluralizes des mondes, nova edi~ao aumentada do Dialogues des morts, Paris,

chezla veuve Brunet, 1762, p. 367. Essa passagem e citada por Barbeyrac noinicio do

§ 5 do seu importante Preface du traducteur ao De iure naturae-et gentium de Pu-fendorf. Depois, elecomenta: Il faut l'avouer, a l 'honte du U!#:Juunail!. c , e . ~ t e ,scien-

 

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18 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E EST ADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 19

que era preciso, justamente, era aprender a consulta-la, Anova ciencia da moral, que nascia com 0proposito de aplicarao estudo da moral as mais refinadas tecnicas da razao, cujosresultados foram tao surpreendentes no estudo da natureza,devia servir para essa finalidade.

Seha urn fio vermelho que mantem unidos os jusnatura-listas e permite captar uma certa unidade de inspiracao emautores diferentes sob muitos aspectos, e precisamente a ideiade que e possivel uma "verdadeira" ciencia da moral, enten-dendo-se por ciencias verdadeiras as que haviam comecado aaplicar com sucesso 0metodo matematico. Creio que hoje nin-guem esta mais disposto a conceder a obra de Grocio, comrelacao a fundacao do jusnaturalismo moderno, 0 posto dehonra que the foi atribuido por seu discipulo Pufendorf, porobra de quem nasceu e setransmitiu a lenda de urn Grocio paido direito natural. 5 Mesmo prescindindo das influencias que

ele sofreu, e que foram repetidamente postas em evidenciacom comparacoes dificilmente refutaveis, da neo-escolasticaespanhola que 0 precedeu imediatamente, 6 0 estilo de suaobra, especialmente quando comparado a urn Hobbes, urnSpinoza ou urn Locke, e ainda 0 estilo do jurista tradicional,

que abre caminho e se move atraves das opinioes dos juristasanteriores e nao da urn passo sem se apoiar na autoridade dosclassicos. Para 0pai do jusnaturalismo moderno, 0 fato de tersido urn dos quatro autores preferidos de Giambattista Vico- 0 primeiro grande adversario do racionalismo juridico eetico - seria urn estranho destino, caso 0 atributo the cou-besse de pleno direito. Todavia, nao se pode negar, tambemGrocio prestou uma homenagem, embora discreta e sem efei-tos visiveisno desenvolvimento do seu trabalho de [urista, aomodo de proceder dos matematicos, quando - nos Prolego-menos ao De iure belli ac pacis - afirma sua intencao de

comportar-se como os matematicos que, examinando as figu-ras, fazem abstracao dos corpos reais (§ 60). Na realidade, secabe a alguem 0 discutivel titulo de Galileu das ciencias mo-rais (discutivel, porque da aplicabilidade do metodo moral asciencias matematicas se discute ainda hoie e a discussao naoesta demodo algum esgotada), esse alguem nao e Grocio, massim 0admirador de Galileu: Thomas Hobbes.

Convencido de que a desordem da vida social, desde asedicao ao tiranicidio, desde 0 surgimento das Iaccoes ate aguerra civil, dependia das doutrinas errfmeas, de que tinhamsido autores os escritores antigos e modernos sobre questoes

politicaa.bem como do espirito de seita alimentado por mausteologos, e comparando a concordia que reinava no campo

ce (alude a ciencia mora l ou "science des moeurs", como ele a chama) qui devoit etrelagrande affaire des hommes, et l'objet de toutes leurs recherches, se trouve de toustemps extremement negligee. Nessas poucas l inhas, esta contido 0 tema fundamental

da escola do direito natural e 0programa que a caract er izou po r doi s seculos .

(5) Ja em sua primeira obra, Elementorum iurisprudentiae universalis libriduo, de 1660 , a qual e le con fi ara a pr imei ra temerari a mas impos tergavel tenta tiva de

expor a ciencia do direito como ciencia demonstrativa, Pufendorf - depois de ter

dec1arado que , a te entao, a ciencia do direi to "nao for a cult ivada na medida exigida

pe la sua necessidade e pela sua dignidade" - expressa a sua pr6pria divida de reco-

nhecimento a apenas dois autore s, Groc io e Hobbes. Numa obra publicada muitos

anos depois, Eris scandica, que adversos libros de iure naturali et gentium obiecta

diluuntur (1686 ), escrita para esc1arecer os seus eri ti cos , Pu fendo rf r eafi rma a con-

viccao de que 0 dir eit o natu ra l " soment e nesse s e cu lo c om ee o u a ser elaborado deforma apropriada ", tendo sido, nos se culos passados, primeiro de sconhecido pelos

anti gos f il6 sofos , especi almen te por Ar is t6te les, cuj o campo de inves tigacao rest ri n-

gia-se a vida e aos costumes das cidades gregas, depois mesclado, ora aos preceitos

re ligi osos nas obras dos teologos , o ra as regras de u rn d ir eito h is t6 ri co t ransmi tido

numa compila cao arbitraria e lacunosa, como era 0 direito romano, a obra dos ju-

r is tas. Mais uma vez , por sobre a turba dos pedantes e litigiosos comentadores dos

textos sagrados ou de leis de urn povo remoto, elevam-se os dois autores aos quais se

deve a pr imeir a t ent ati va de fazer do d ir eit o uma ciencia ri go rosa : Grec io e Hobbes.

De Gr6c io, Pufendorf diz que, antes dele, "nao houve ninguem que distinguisse exa-

tamente os d ir eito s natu ra is dos di re ito s pos it ivos e tentasse dispo- los num sis tema

unitario e completo (in pleni systematis rotunditatem)", Essa passagem se encon tr a

num esboco de h is t6 ri a do d ir eito natur al, ao qual Pufendor f dedi ca 0 primeiro capi-

tulo do escri to Specimen controversiarum circa ius naturae ipsi nuper motarum, quefaz parte da supsacitada Eris scandica, 0 capitulo, intitulado De origine et progressu

disciplinae iuris naturalis, foi por mim traduz ido pela primeira vez em italiano numpequeno volume para usa didati co, Samuele Pufendor f, Principi di diritto naturale,

"P iccola B ibl io teca de Filo sof ia e Pedagog ia", Tur im, Paravi a, 1943 (2~ ed. , 1961) ,

pp . 1 -18. Af irmei que Hobbes, e nao Grocio, deve ser considerado 0 verdadeiro ini -

ciador do j usna turalismo moderno, em meu artigo "Hobbe s e i1 giusnatural ismo", in

Rivista Critica di storia della filosofia, 1962, pp. 471-86, agora r ecolhido no volume

DaHobbes a Marx, Napoles, Morano, 1965, pp. 51-74.

(6) Cf. tanto a contribuicao fundamental de G. Ambrose tti, Ipresuppostiteologici e speculativi della concezione giuridica di Grozio, Bolonha, Zanichell i, 1955,

quanto a s observacoes criticas de A. Droe tto, "L'altemativa teologica nella conee-

z ione giur idi ca di Grozio" , in Rivista lntemazionale di Filosofia delDiritto, 1956, pp.351-63, posteriormente republicadas em A. Droet to , Studi groziani, "Pubblicazioni

de ll' Is ti tut o di Scienze Po lit iche dell 'Univer si ta d i Tor ino", Tur im, Giapp ichell i,1968, pp. 240-254.

 

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20 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 21

das disciplinas matematicas com 0 reino da discordia sem tre-

gua em que se agitavam as opinioes dos teologos, dos juristas e

dos escritores politicos, Hobbes afirma que os piores malefi-

cios de que sofre a humanidade seriam eliminados "se se co-

nhecessem com igual certeza as regras das acoes humanas, tal

como se conhecem aquelas das grandezas das figuras". 7

"0 que cham amos de leis da natureza - precisa ele, depois

de as ter enumerado - nao sao mais do que uma especie de

conclusao extraida pela razao sobre 0 que se deve fazer ou

deixar de fazer". 8 E, no Leviatii, especifica: conclusoes ou

teoremas. 9 Se e verdade que a geometria e "a iinica ciencia

com que ate agora Deus resolveu presentear 0 genero hu-

mane", a unica ciencia "cujas conclusoes tornaram-se agora

indiscutiveis", ao filosofo moral cumpre imita-la: mas, preci-

samente devido a falta de urn metodo rigoroso, a ciencia mo-

ral foi ate entao a mais maltratada. Vma renovacao dos estu-

dos sobre a conduta humana so pode ter lugar atraves de umarenovacao do metodo,

No campo das ciencias morais, dominara por longo tem-

po, incontrastadamente, a opiniao de Aristoteles, segundo a

qual - no conhecimento do justo e do injusto - nao e pos-

sivel atingir a mesma certeza a que chega 0 raciocinio mate-

matico, e que e preciso nos contentarmos com urn conheci-

mento provavel: "Seria tao inconveniente - ele afirmara -

exigir demonstracoes de urn orador quanto contentar-se com a

probabilidade nos raciocinios de urn matematico" .10 E conhe-

cido 0peso dessa opiniao no estudo do direito. Durante secu-

los, a educacao do jurista se dera atraves do ensinamento datopica, isto e, dos lugares de onde se podem extrair argumen-

tos pro ou contra uma opiniao, atraves da dialetica ou arte de

q~e~el~r e da retorica ou arte de convencer, ou seja, atraves dedisciplinas que restam na esfera da logic a do provavel e nao

devem ser confundidas com a logica propriamente dita, que

analisa e prescreve as regras dos raciocinios demonstrativos.

Estudos recentes exploraram mais do que se fizera no passado

a historia da logic a juridica e puseram em destaque a relacao

entre humanismo juridico e disputa sobre 0metodo, ligada a

renovacao dos estudos dialeticos (de Rodolfo Agricola a Pie-trus Ramus): 0 florescimento de tratados de dialetica legal

chega nao casualmente ate 0 limiar da nova methodus, ins-taurada pela escola do direito natural." Ate 0 momenta em

que 0 jurista e considerado, nao diferentemente do teologo,

como urn comentador de textos, ele tern de aprender as varias

regras que devem servir a compreensao icomprehensio) e aeventual complementacao do texto iextensio), bern como a so-lucao das antinomias entre uma passagem e outra, ou, numa

palavra, as regras da interpretatio. Para a nova methodus, aocontrario, a tarefa do jurista nao e mais a interpretatio, e sim

a demonstratio. Se a interpretacao foi 0metoda tradicional dajurisprudencia, 0metodo da nova ciencia do direito sera - aimitacao das ciencias mais evoluidas - a demonstracao. 0

grande debate entre humanistas e "bartolistas", entre mosgallicus e mos italicus, que por mais de urn seculo tinha con-

traposto os inovadores aos tradicionalistas, era uma contro-

versia que dizia respeito, sempre e apenas, a diversos modos

de entender a interpretatio: 0objeto sobre 0 qual trabalhava 0

jurista, Fosse esse urn seguidor do metodo exegetico ou do

metoda historico, era sempre urn direito escrito, urn direito

positivo que, embora excelente ou considerado como tal, espe-

, (?) Essa passagem se encontra na Epistola dedicatoria do De cive, que jacontem integralmente 0 program a da politica "geometrico more demonstrata"; Verem Th. Hobbes, Opere politiche, ed. de N. Bobbio, "Classici politici", colecao diri-gida por L.Firpo, Turim, Utet, 1959, p. 60.

(8) Decive, III , 33; trad. it. cit ., p. 121.(9 ) "( ..~ conclusions or theorems"; cf. ed. M. Oakeshott, Oxford, Blackwell

1951,p. 104;trad. it. de~. Micheli, Florenca, LaNuova I talia, 1976, p. 154. '(10) Arist6teles, Etica a Nic6maco, 1094b.

(11) Refire-me, em particular, aos estudos de D. Maffei, Gli inizi dell'uma-nesimo giuridico, Milao, Giuffre, 1956; V. Piano Mortari, Dialettica e giurispru-denza. Studio sui trattati di dialettica legale del sec. XVI, Milao, Giuffre, 1955;

"Considerazioni sugli scritti programmatici dei giuristi del sec. XVI", in Studia etdocumenta historiae et iuris, 1955, pp. 276-302; "La sistematica come ideale urna-nistico nell'opera di Francesco Connano", in Studi in onore de Gaetano Zingali, Mi-lao, Giuffre, 1965, vol. III , pp. 559-71; A. Mazzacane, Science, logica e ideologicnellagiurisproduzenza tedesca del sec. XVI, Milao, Giuffre, 1971. E, alem do mais,C. Vasoli, La dialletica e la retorica dell'umanesimo. "Inventio" e "metodo" nella

cultura del XV e XVI secolo, Milao, Feitrinelli, 1968. - Entre os estudos estrangei-ros, gostaria de recordar 0 de G. Kirsh, Gestalten und Probleme aus Humanismusund Jurisprudenz, Neue Studien und Texte, Beriim, de Gruyter, 1969, e a excelentemonografia sobre urn dos maiores juristas e dialeticos da epoca, Claudius Cantiun-cula. Ein Basler Jurist und Humanist des 16. Jahrhunderts, Basileia, Verlag von

Helbing & Lichtenhanh, 1970.

 

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22 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 23

cialmente seliberado dos estragos que nele introduzira a com-pilacao justiniana, como afirmavam os humanistas, era nadamais e nada menos que urn conjunto de textos a serem inter-pretados corretamente.o passo dado pela jurisprudencia culta alem da mera in-

terpretacao e complementacao dotexto foi aquele que a orien-tou para a ideia do "sistema": dai nasceram, com frequenciacada vez mais rapida a comecar da primeira metade do seculoXVI, as varias tentativas de redigire in artem 0 direito, ouseja, de propor criterios para a ordenacao da imensa materiadas leisromanas, em vez de cementa-las segundo a ordem emque haviam sido transmitidas. Mas tambem a sistematicausava, para suas proprias construcoes, materiais ja dados, queeram sempre aqueles fornecidos pelo direito romano, ou seja,por urn direito historico: mostrava, quando muito, a propriapreferencia pelas Instituiciies, isto e, por urn texto mais siste-

matico, e nlio pelo Digesto. Seria interessante, mas nao e esteo local, mostrar que urn processo identico ocorrera no campoda teologia, onde a disputa sobre os textos e 0modo de inter-preta-los cederia paulatinamente 0 terreno it teologia racional,ao racionalismo teista, it ideia de uma religiao natural, queesta para a religiao positiva e para a exegese dos textos, atra-yes dos quais uma religiao positiva e anunciada e transmitida,domesmo modo como 0 direito natural esta para 0 direito ro-mano e a compilacao justiniana.

So se compreende a novidade do direito natural se estefor comparado com a situacao do estudo do direito antes da

virada, ou seia, se nao for dado urn minimo de atencao, comodiziamos ha pouco, a tudo isso de que ele e a negacao. Pro-pondo a reducao da ciencia do direito it ciencia demonstrativa,osjusnaturalistas defendem, pela primeira vez com tal impetona hist6ria dajurisprudencia, a ideia de que a tarefa dojuristanao e a de interpretar regras ja dadas, que enquanto tais naopodem deixar de se ressentir das condicoes hist6ricas na qualforam emitidas, mas e aquela - bern mais nobre - de des-cobrir as regras universais da conduta, atraves do estudo danatureza do homem, nao diversamente do que faz 0 cientistada natureza, que finalmente deixou de ler Arist6teles e seposa perscrutar 0 ceu. Para 0 jusnaturalista, a fonte do direitonao e 0Corpus iuris, mas a "natureza das coisas". "A razao

- diz Pufendorf -, mesmo no estado natural, possui urn cri-terio de avaliacao comum, seguro e constante, ou seja, a natu-reza das coisas, que se apresenta do modo mais facil e acessi-vel na indicacao dos preceitos gerais da vida e da lei natu-ral" . 12 Em suma: 0 que os jusnaturalistas eliminam do seu

horizonte e a interpretatio: mesmo que os juristas continuema comentar as leis, 0 jusnaturalista nso e urn interprete, masurn.descobridor. Jamais foi notado como mereceria se-Io0fatode que 0problema da interpretacao e de suas varias formas deargumenta e de loci, sobre as quais os juristas de todos ostempos versaram rios de tinta, e urn problema que desaparecequase inteiramente nos tratados de direito natural. Com 0

avanco da "escola", as topicas e as dialeticas, todas as regulaedocendi e discendi, que dizem respeito it logica do provavelvao desaparecendo. A recente redescoberta da ret6rica, en-quanto tecnica do discurso persuasivo, contraposta it logica

tecnica do discurso demonstrative." bern como 0 reconheci-mento de que as operacoes intelectuais realizadas pelos juris-tas em sua funcao de interpretes pertencem it primeira, podeservir para ilustrar 0 carater especifico do jusnaturalismo,com uma nitidez da qual, em geral, nao ha traco nas historiasda escola. Embora com certa simplificacao, e licito afirmarque 0jusnaturalismo foi a primeira (e tambem a ultima) ten-tativa de romper 0 nexo entre 0 estudo do direito e a ret6ricacomo teoria da argumentacao, abrindo tal estudo para as re-gras da demonstracao.

(12) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. II, cap. II, § 9; t rad. ci t.,p. 79. Cf. tambem L. II, cap. III , §8: "Sem diivida, os preceitos da reta razao saoprincipios verdadeiros, que concordam com a natureza das coisas, observada e exa-

minada atentamente" (trad. cit., p. 107).(13) Refiro-me, como 0 leitor ja compreendeu, a obra de Ch, Perelman, tao

vasta que nao pode ser apresentada exaustivamente numa nota, e de resto bastante

conhedda para nao carecer de muitas citacees. Limito-me a assinalar para osjuristasa coletanea de ensaios Diritto, morale e filosofia, Napoles, Guida, 1973, bern como a

ultima coletanea, Lrempire rhetorique. Rhetorique et argumentation, Paris, Vrin,1977. Mas nao se deve esquecer, na mesma direeao, 0 livro de Th, Viehweg, Topikund Jurisprudenz; Munique, C. H. Becksche Verlagsbuchhandlung, 1953(trad. it.,Milao, Giuffre, 1962, que, mesmo partindo de pressupostos diversos, chega a resul-tados analogos).

 

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 25

Razao e h is t6ria

as condicoes objetivas de sua existencia, as finalidades para as

quais tende. Pufendorf nao chega ate a aceitacao da tese de

Hobbes, depois acolhida por Vieo, segundo a qual a certeza

das coisas morais depende do fato de serem criacao nossa, tal

como as figuras geometricas; mas rechaca tambem a tese

oposta, segundo a qual existem coisas boas ou mas em si mes-

mas: bon dade e maldade sao nocoes sempre relativas as leis

estabelecidas (as leis naturais sao indiretamente estabelecidas

por Deus) que, enquanto tais, impoem ou proibem ou perm i-

tern fazer algo.

Mais ou menos nos mesmos anos em que Pufendorf es-

crevia suas obras, Spinoza trabalhava naEthica, no Tractatustheologico-politicus e no Tractatus politicus. Basta recordar

que, nesse ultimo, retomando 0motivo hobbesiano da poli tic a

racional, ele escreve: "Ao dedicar-me a politica, portanto, nao

me propus nada de novo e de impensado, mas apenas de-

monstrar, com argumentos certos e irrefutaveis, ou deduzir dapropria condicao da natureza humana, aqueles principios que

concordam perfeitamente com a pratica: e, para proceder

nessa investigacao cientifica com a mesma liberdade de espi-

rito com que costumamos nos aplicar a matematica, fiz urn

estudo sobre as acoes humanas sem rir nem chorar" . 1

Tambem Locke, embora muito diferente de Spinoza, a

ponto de ser considerado como a antitese do autor da Ethica,pelo menos do ponto de vista metafisico e gnosiologico, perse-

guiu durante toda a vida, embora sem sucesso, 0 ideal de uma

etica demonstrativa; e isso nao escapou a Barbeyrac, 0 qual,

para defender a mesma tese, apela para a autoridade do En-saio sobre 0 intelecto humano, citando algumas de suas pagi-

nas.? Ele nao tern nenhuma diivida sobre 0 fato de que, se a

. qprimeiro a ter plena consciencia da importancia dessa

movacao, a ponto de buscar just ifica-la cr itieamente e funda-

m~nta-Ia teo~icament~, . foi Pufendorf. ~le compreendeu per-feitamente s~r. necessano, antes de mars nada, limpar 0 ter-

reno da permciosa autoridade de Aristoteles, a quem se deve a

opiniao, repetida acri. tic~mente durante seculos, de que no es-

tudo das coisas morais so se pode alcancar urn conhecimento

provavel, Naturalmente, para se conseguir na ciencia moral a

~~~ma certeza qU,e se t~m nas ciencias naturais, e preciso ter

ideias sobre qual e 0 obieto da primeira. A teoria que ele de-

fende a esse respeito e tao engenhosa que teve uma influencia

d}re~a sobre Locke: ao lado dos entes fisicos, sobre cuja exis-

tencia estao todos de acordo, existem tam bern os entes mo-rais, erradamente negligenciados ate entao pela maioria dos

autores. Os entes morais sao modalidades das acoes humanas

que sao atribuidas a estas pelas regras postas por quem detem

a autoridade legitima de impor leis aos homens. Enquanto os

ent~s fisicos derivam diretamente da criacao, os entes morais

denv.am de uma imposicao e pressupoern, enquanto tais, de-

terminadas regras. 0 que a ciencia moral deve estudar e a

conformidade ou desconformidade das acoes humanas as re-

gras estabelecidas. Quanto as regras, elas podem ser conheci-

das com certeza quando se abandona 0 terreno pouco confia-

vel das leis positivas, que mudam de pais para pais, e se consi-dera a natureza do homem, suas paixoes, seus carecimentos,

(1) Spinoza, Tratactus politicus, cap. I,§4.(2) Cf. 0§2 doPreface du traducteur, ja citado, onde 8arbeyrac desenvolve 0

tema da demonstrabilidade da ciencia moral mediante 0 topos classico segundo 0

qual nao e verossimil que 0Criador tenha dotado oshomens de faculdades suficientespara descobrir e demonstrar com certeza uma quanti dade de coisas especulativas,esp:cialmente urn grande numero de verdades matematicas, e nao nos tenha feitocapazes deconhecer e deestabelecer com a mesma evidencia as maximas da moral. 0argumento principal queele aduz em favor da demonstrabilidade da ciencia moral e 0argumento pufendorfiano, retomado por Locke: nao se trata, na ciencia moral, deconhecer a essencia das coisas, mas deexaminar e comparar as relacoes entre as ar;Oeshuman as e as regras estabelecidas. A esse ponto, refere-se grande parte do § 18 do

 

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26 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLtTICA MODERNA 27

ideia de urn ser supremo e a ideia do homem como ser racional

fossem devidamente consideradas, a moral poderia ser colo-

cada entre "as ciencias suscetiveis de demonstracao", ou seja,

que, "de proposicoes evidentes por si mesmas, mediante con-

sequencias necessarias, nao menos incontestaveis que as da

matematica, poder-se-iam extrair as medidas do justo e do

injusto, se alguem quisesse se dedicar a essa ciencia com a

mesma indiferenca e atencao que poe na outra" . 3 Para dar urn

exemplo (nao muito convincente, na verdade), acrescenta ime-

diatamente depois que uma proposicao como "onde nao ha

propriedade, nao ha injustica" e "tao certa quanto qualquer

demonstracao encontrada em Euc1ides". Em outro local,

chega mesmo a afirmar que 0homem e mais apto ao conheci-

mento moral que ao conhecimento dos corpos fisicos, e anun-

cia vitoriosamente: "a moral e a ciencia apropriada e a grande

tarefa da humanidade em geral, a qual tern enorme interesse

na pesquisa de seu summum bonum e e tambem apta a talpesquisa" . 4

Precisamente em virtu de da sua autoridade de grande 10-

gico e de grande jurista, 0 que Leibniz escreveu sobre 0 me-

todo da jurisprudencia da a plena medida do significado e da

novidade da concepcao matematizante na ciencia do direito:

"A teoria do direito inc1ui-se entre aquelas - escreve ele -

que nao dependem de experimentos, mas de definicoes": e,

logo apos, como confirmacao, aduz ser possivel compreender

que algo e j usto mesmo quando nao haja ninguem que possa

faze-lo vigorar, nao diversamente do que ocorre em materna-

tica, onde "as relacoes aritmeticas sao verdadeiras, mesmo

que nao haja quem numere nem existam coisas a numerar". 5

Explicando em outro local quais sao as caracteristicas das

"ciencias necessarias e demonstrativas, que nao dependem

dos fatos, mas unicamente da razao", inc1ui entre essas, alem

da logica, da matematica, da geometria e da ciencia do movi-

mento, tambem "a ciencia do direito". 6 Iniciando sua obra de

ius naturale, methodo scientifica pertractatum, Wolff nao he-

sita em afirmar que tudo 0 que forma objeto da mesma "deve

ser demonstrado", ja que - Sf) e verdade que a ciencia con-

siste no habitus demonstrandi, 0 direito natural ou se vale do

methodus demonstrativa ou nao e ciencia. 7

Nao ha melhor comprovacao desse ideal comum a todos

os jusnaturalistas, 0de uma ciencie demonstrativa do direito,

que a recusa unanime do argumento do "consenso", ou seja,

da tese - mais uma vez aristotelica - de que as leis naturais

sao as leis comuns a todos os povos ou, mais limitadamente, atodos os povos civilizados, e que, portanto, sao inferiveis nao

de consideracoes gerais sobre a natureza humana, nao da

"natureza das coisas" , mas, indutivamente, atraves de urn es-

tudo comparado das diversas legislacoes. Aristoteles dissera:

"Justo natural e 0que tern por toda parte a mesma eficacia";"

e Cicero sentenciara: "Em qualquer coisa, 0 consenso de to-

dos os povos deve ser considerado lei de natureza. 0consenso

de todos e a voz da natureza" .9 Mas ja Grocio afirmara haver

(5) Leibniz, Elementa iuris naturalis, que cito da edicao de V. Mathieu dos

Scrittipolitici deLeibniz, Turim, Utet, 1951, p. 86.(6) Leibniz, Meditations sur la notion commune dejustice, ed. c it ., p. 219.

(7) Wolff, Jus naturalis methodo scientifica pertractatum, ed. cit., Prolego-

mena, §2.(8) Aristoteles, Etica a Niciimaco, 1134b. Trata-se da celebre passagem na

qual Arist6teles distingue 0 justo natural dojusto legal. Afirmando que por justonatural se entende 0 que tern ern toda parte a mesma eficacia, pode deixar entenderque e possivel concluir que 'sepodem inferir as prescricoes observando 0 que e prati-

cado entre os diversos povos, precisamente "em toda parte".(9) Cicero, Tusculanae , I, 13-4. Essa e a principal passagem invocada pelos

defensores do fundamento consensual da lei natural. 0consenso de todos os povos,enquanto vozda natureza, e a prova - a unica prova - de que existem leisnaturais.Tanto e verdade que 0 argumento principal dos ceticos e mostrar que nao ha ne-nhuma lei que sejaacolhida por todos ospovos, ouseja, que tenha "em toda parte" amesma eficacia, Napassagem ja citada, Montaigne comenta a doutrina dos que afir-

mam a existencia de leis naturais a partir da "universalidade do consenso" corn asseguintes palavras: "Nao ha nada ern que 0mundo seja tao diverso como no que se

cap. I II do LivroIV, os §§ 16e 17do cap. XIdo Livro I II, os §§8 , 9 e 10do cap. IVdo Livro IV do Ensaio lockeano, ou seja, as passagens mais conhecidas onde Lockeexpressa sua propria conviccao e enuncia seus proprios argumentos ern favor da tesede que a ciencia mora l e "suscetivel de demonstracao" (que e a mesma expressaousada por Barbeyrac). Depois, ele comenta: "E assim que raciocina esse grande filo-sofo. Aduzimos que as demonstracoes das verdades especulativas sao bern mais com-plexas e dependem de urn mimero de principios maior do que as demonstracoes dasregras da moral. Para convencer-se disso, basta comparar os Elementos de geome-

tria corn urn pequeno sistema metodico dos deveres que a lei natural prescreve aos

homens (a referenda e ao De officio hominis et civis de Pufendorf); ao mesmo tempoque secomprovara a verdade do que digo, reconhecer-se-a tambem, ern minha opi-niao, que e incomparavelmente mais facil compreender os principios e os raciociniosdesse livro do qpe os teoremas, problemas e demonstraeoes daquele".

(3) Locke, An Essay concerning Human Understanding, L. IV, cap. III, §18.(4) Ibid., L. IV, cap. XII, §11.

 

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28 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 29

dois modos para provar que uma instituicao e direito natural,urn a priori, que se funda na consideracao da natureza dascoisas, e outro a posteriori, que sefunda no estudo dos costu-mes e das leis dos varios povos; mesmo nao tendo tornadoposicao em favor de urn ou de outro, ele precisara que 0 pri-

meiro era mais rigoroso, enquanto 0 segundo estava mais aoalcance de todos, porem levava a conclusoes apenas pro-vaveis.10

Quem desatou 0 no, mais uma vez, foi Hobbes, que ne-gou todo valor ao argumento a posteriori, afirmando, com re-Iacao ao consenso dos povos mais civilizados, nao ser claro aquem caberia estabelecer quais seriam os povos civilizados equais nao: e, com relacao ao consenso de todo 0 genero hu-mano, argumentou entre outras coisas que, assim como quemviola uma lei geralmente 0 faz com 0 proprio consenso, doconsenso de todos oshomens pode-se inferir tudo e 0contrario

de tudo. 11 Em De iure naturae et gentium, Pufendorf - mos-trando, tambem sobre esse ponto tao importante de ser Hob-bes e nao Grocio 0verdadeiro inspirador da nova methodus -

acolhera 0ponto de vista hobbesiano, comentando as teses deAristoteles e de Cicero com 0 seguinte juizo: "Mas esse modode fundar 0 direito natural, alem de ser a posteriori e nadadeixar entender sobre a razao pela qual 0 direito natural dis-pos desse modo e nao daquele outro, e tambem inseguro (lu-

bricus) e repleto de infinitas dificuldades". 12 Depois de ter

exposto a origem contratualista do Estado, enfrenta a obiecaodos que se perguntam como e possivel que os Estados tenhamtido tal origem, respondendo do seguinte modo: "Nada im-pede que se possa indagar sobre a origem de uma ins~itu~ca.oraciocinando sobre ela (ratiocinando), quando dessa institui-cao nao mais restou nenhum documento historico". 13

A critica dos argumentos retirados do consenso, Lockededicou urn dos ensaios juvenis sobre a lei natural, que ate hapouco restou inedito, 0 quinto, intitulado significativamenteA lei de natureza niio pode ser conhecida com base no con-

senso universal dos hom ens : 14 nele, Locke distingue 0 con-senso dos costumes do consenso das opinioes, e afirma que,enquanto 0 primeiro nao prova nada, ja que nao existe acaomalvada com a qual os homens nao tenham consentido, 0 se-gundo pode servir apenas para revelar a lei natural, mas naopara demonstra-la, porque, embora podendo fazer crer maisfortemente que aquela e uma lei de natureza, nao conseguenos dar da mesma urn conhecimento mais seguro: mais umavez, a demonstracao sopode serobtida por meio da deducao apartir dos principios, nao da analise das crencas alheias. "0que existe, de fato, de tao celerado, de tao atroz e contrario a

Gr6cio c itado em nota ant erio r. a firmando a prop6si to do metodo a posteriori: "Essamaneira de provar 0 dir eito na tu ra l nao e de grande utilidade, porque apenas as rna-

ximas mais gerais do direito natural foram acolhidas pela maior parte das na~~s.

Houve tambem maximas muito evident es, cujo contr ari o foi cons iderado por muit o

tempo como coisa indiferente mesmo nos paises mais civil izados. E 0 que parece ter

ocorrido com 0 hor rivel cos tume de expor os r ecem-nasc idos" ( cito segundo a edi~aofrancesa da obra grociana, Le droit de laguerre et de lapaix, na traducao de Jean

Barbeyrac, da qual existem muitas edicoes: a que tenhoem meu poder e a de Basi-leia, editada por Emanuel Tourneisen, 1768. e a passagem citada se encontra no vol.

I. pp. 53-4). Barbeyrac compara a evidencia com a experiencia, e mostra como nem

sempre 0que e evidente e tambem confi rmado pela experienc ia . Esse cont ras~e ent~e

o que e evidente ( a razao) e 0que e de fato praticado pelos diversos povos deve induzir

o fil6sofo moral a nao confiar na prova que pode ser deduzida do consenso de todos os

povos, ainda que se trate dos mais c ivilizados. .

(13) Pufendorf, De iure naturae et gentium. L. VII. cap. II. § 8. trad. Cit .•

p . 168. Essa afi rmaeao e fe ita por Pufendorf a p rop6s ito da teor ia dos dois contr atos

que sepoem como fundamento ao Estado (sobre os quais vo lta remos adian. te ). e de~e

servir para demonstra r que fundar 0Estado em uma ou mais conveneoes e uma eXI-

gencia racional antes de ser uma conclusao retirada da hist6ria. .. .

(14) Locke. "An lex naturae cognosci potest ex hominum consensu? • in Es-

sayson the Law of Nature. ed. por W. von Leyden. Oxford. Clarendon Press. 1954.pp, 160-89.

refere aos cos tumes e as le is . Uma coi sa aqui e abominavel e alhures e honrada, como a

habilidade de roubar em Esparta. Os casamentos entre parentes sao proibidos entre

nos sob pen a de morte, e alhures sao honrados. ( ... ) 0 infanticidio, 0 parricidio,

a comunidade das mulheres, 0 tr afico de obje tos roubados, a licenca di ante de qual-

quer voluptuosidade, em suma. nao ha nada de tao excessivo que nao seja admitido

nos usos de algum povo" (ed. cit . • vol. I. p. 771).

(10) Grocio, De iure belli acpacis, L. I. cap. I, § 12. Ha nesse texto uma

distincao entre 0consenso de todos os povos e consenso dos povos mais c ivi lizados . A

distincao e acolhida por Hobbes. que critica a legitimidade de ambos como funda-

mento do d ir eito na tura l. Como autores da pr imeir a t ese, Gr6cio c ita Heracli to, Ar is -

tot eles, Cicero. Seneca e Quin til iano; como defensores da segunda , Por fi rio , Andro-

nico de Rodes, Plutarco e ainda Arist6teles.

(11) Hobbes, De cive, II, I, ed. cit., pp. 94-7. Tambem em sua primeira obra

politica, Elements of Law Natural and Politic, Parte I, cap. XV, § 1.(12) PuJendorf, Die iure naturae et gentium, L. II, cap. III, § 7 (na antologia

de Pufendorf por mim traduzida e ja citada, 0texto se encontra nas pp. 98-9). Essa

passagem de Pufendorf e invocada por Barbeyrac em seu comentario ao trecho de

 

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30 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 31

todo direito e justica que nao tenha conseguido alguma vezobtero consenso, ou melhor, a conjura de uma multidao en-louquecida?";" 0 citado ensaio de Locke, que comeca comessas palavras, e dedicado em grande parte a uma escandali-zada demincia de todas as torpezas de todos os atos celerados,de todas as loucuras que enchem as narracoes dos historia-dores. "Quase nao existe vicio, nem violacao da lei de natu-reza, nao existe aberracao moral que, para quem conhece ahist6ria universal e para quem observa as acoes humanas, naodemonstre facilmente ter sido, em alguma parte do mundo,nao s6 admitida privadamente, mas tambem aprovada pelaautoridade publica e pelo costume". 16 0 fato de que se estejadiante de urn retrato maneirista, precisamente da literaturainspirada no pirronismo moral, nao anula que urn desabafodesse genero nao deixe dtividas sobre a atitude do raciona-lismo etico diante da hist6ria considerada como uma confusao

da qual e imitil buscar uma explicacao.Nada pode fazer compreender melhor a importancia da

recusa do argumento do consenso, a qual e comum a todos osjusnaturalistas, do que a obra do primeiro grande antagonistado jusnaturalismo, que se baseia principalmente na redesco-berta e no confiante emprego desse argumento. A ScienzaNuova Prima (1975) comeca, nao casualmente, com as seguin-tes palavras: "0 direito natural das nacoes nasceu certamentecom os costumes comuns das mesmas". 17 E, ainda mais expli-citamente, na Scienza Nuova Seconda, Vico enuncia 0princi-pio de "0 que e sentido como justo por todos ou pela maior

parte dos homens deve ser a regra da vida em sociedade", aoque se segue 0conselho, dado a quem "quiser escapar" desseslimites que 'devem ser os confins da humana razao", de que"ele secuide para nao escapar detoda a humanidade" . 18

o nexo que une os autores habitualmente inc1uidos naescola do direito natural pode ser determinado, como disse-mos, nao apenas com base no que e1esconcordantemente ne-garam, mas tambem com base no que neles e em suas teoriasfoi igualmente negado concordemente. Sem duvida, para fa-

zer desses autores urn grupo unitario, contribuiram tambemos seus adversaries, entre os quais Vico pode ser consideradocomo 0primeiro. Se0jusnaturalismo acreditara poder desco-brir leis universais da conduta para alem da hist6ria, remon-tando-se a natureza do homem abstraida das condicoes quedeterminam as leismutaveis de povopara povo, de epoca paraepoca, e, ao fazer isso, combatera uma memoravel batalhacontra 0principio de autoridade, dominante no estudo do di-reito, 0 historicismo - em suas varias formas - repfis emposicao de honra, contra a critica racionalista, a autoridadeda historia, condenando em bloco, indiscriminadamente, to-

dos os que, mesmo pertencendo a orientacoes metafisicas di-versas, mesmo chegando a conclusoes politicas opostas, masigualmente fascinados pelo sucesso das ciencias fisicas e atrai-dos pela ideia de encontrar uma ordem racional nomundo hu-mano, tal como os grandes cientistas, de Descartes a Newton,haviam encontrado uma ordem racional no cosmo, tinham seempenhado no sentido de construir urn sistema universal dodireito, ou seja, urn sistema valido para qualquer tempo e paraqualquer lugar.

Em As origens do historicismo, Meinecke escreve: "Toda

(15) Ibid., p. 161.(16) Ibid., p. 166.

(17) G. B.Vico, La scienza nuova prima, ed. por F. Nicolini, Bari, Laterza,1931, p. 9.

(18) G. B. Vice, La scienza nuova ( segundo a edicao de 1744), ed. por F.Nicolini, Bari, Laterza, 1928, vol. I, p. 131,par. 360. Dessediverso modo de fundar 0

direito natural, segue-se tambern urn diferente modo de entender as duas caracteris-

ticas da imutabilidade e da universalidade. Para Vico, 0 direito natural nao e urn di-reito estaticamente eterno, mas e urn direito que "corre no tempo", 0 que significa

que sua eternidade consiste em seu eterno processo de reproducao e de realizacao nahistoria, por toda parte onde se acenda uma centelha de humanidade. De resto, euniversal nao no sentido de que seja igual "em toda parte", como dissera Arist6teles,mas no sent ido de que e igual 0 seu processo de realizacao atraves do estado dasfamilias, das repiiblicas heroicas, das republicas populares, dos principados, e em

seu retorno ao principio depois da decadencia da ultima fase. Portanto, segundoVico, erraram ostres grandesjusnaturalistas (Grocio, Selden e Pufendorf), "os quaistodos ostres querem que, por cima de seus sistemas do direito natural de fil6solos,

tenha transcorrido desde 0principio do mundo 0direito natural das gentes com cons-tante uniformidade de costumes" (La scienza nuova prima, cit., p. 116). Em suma,para quem, como Vico, considera 0 direito natural como algo mutavel segundo asepocas e ospovos, a variedade dos costumes - que e 0 argumento classico, por urnlado, dos pirronistas contra os racionalistas, e, por outro, dos racionalistas contra os

consensualistas - nao prova nada: nao e urn argumento para dar razao aos pirronis-tas, nem uma boa razao para refutar 0argumento do consenso.

 

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32 NORBERTO BOBBIOSOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLITICA MODERNA 33

a tarefa do historicismo consistiu em enfraquecer e tornar mo-vel 0rigido pensamento jusnatural ista, com sua fe na invaria-bilidade dos supremos ideais humanos e na igualdade abso-

luta e eterna da natureza humana. 19 Quando Meinecke fala

do jusnaturalismo, nao se refere apenas ao moderno, mas

tambem, pelo menos abstratamente, ao jusnaturalismo pe-

rene, que por dois milenios constituiu para 0homem ocidental

"a estrela polar em meio a todas as tempestades da historia": 20

mas, de fato, os jusnaturalistas com os quais e obrigado a

acertar contas sao os jusnaturalistas dos seculos XVII e XVIII.

A Rousseau - considerado segundo urn juizo transmitido

atraves da filosofia politic a da Restauracao, que tern em Rous-

seau 0 seu grande inimigo, como 0 extremo florescimento do

racionalismo etico e do abstratismo politico -. refere-se Cro-

ce, quando condena as "construcoes geometric as e mecani-

cas" de toda a escola do direito natural, criadas quando "se

desenvolvia e crescia a ciencia matematica da natureza, e 0

habito mental, que nela se formava, era transferido para toda

parte, para a filosofia, a historia, a politic a" . 21

Contudo, e verdade que 0historicismo, em todas as suas

form as , nao se limitou a fazer uma critica metodologica do

jusnaturalismo, porque - muito freqiientemente - a critica

metodologica nao foi mais do que pretexto para uma criticapolitica. Desse modo, a critica politic a teve pelo menos duas

faces opostas (e muitas outras intermediarias): a conserva-

dora, que viu no abstratismo do direito de razao 0principio da

subversao da ordem constituida: e a revolucionaria, que viu

no mesmo abstratismo a ilusao, mas apenas a ilusao, senaomesmo 0 enganoso pretexto de uma nova ordem fundada na

liberdade-e na igualdade, enquanto a liberdade e a igualdade

efetivamente reivindicadas eram limitadas e parciais, nao urn

bern de todos, mas urn bern da classe hegemonica. A critica

metodologica, ao contrario, teve sempre uma iinica face: 0

jusnaturalismo, desse ponto de vista, e acusado de ter querido

estudar 0 mundo da historia com os mesmos instrumentosconceituais com os quais os fisicos estudaram 0 mundo da

natureza, e, ao fazer isso, terminaram - 0 que nao deve pa-

recer urn trocadilho - por "desnatura-lo".

(19) F. Meinecke, Le origini della storicismo, trad. it. , Florenca, Sansoni,1954, p. 4.

(20) Ibid., p. XI.

(21) Esse juizo pode ser lido nos Elementi di politica (1925), que cito de B.Croce, Etica e politica, Sari, Laterza, 3~ed., 1945, p. 257. A passagem citada con-tinua, surpreendentemente, do seguinte modo: "E caracteristico que a nova cienciaque entao surgiu, concernente a atividade humana, fosse precisamente a cienciamatematizante da utilidade, a Aritmetica politica (como inicialmente foichamada)ouEconomia, como a chamamos nos. 0livro de Rousseau e uma forma extrema, ouuma das formas extremas, e certamente a mais Iamosa, da escola jusnaturalista"(p. 257). Sobre essas teses de Croce, ct. 0cornentario de G. Cotroneo, Croce e l'illu-minismo, Napoles, Giannini, 1970, pp. 178-83.

 

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 3S

o modelo hobbesiano

constituisse urn fundamento confiavel para a solucao de al-guns problemas capitais tambem do direito publico: bastapensar na importancia que, desde a epoca dos glosadores, tevea lex de imperio (sobre a qual falaremos adiante), com a fina-lidade de estabelecer 0 fundamento e os limites da soberania,

para dar corpo a uma teoria da legitimidade. Mas direito pri-vado e direiro publico permaneciam habitualmente separados.Enquarito 0 direito privado se fora desenvolvendo sem apa-rente solucao de continuidade atraves da interpretatio dos ju-ristas - chamados a resolver controversias que, mesmo nas-cendo de uma sociedade diversa da sociedade romana, conti-nuavam a envolver de qualquer modo institutos tipicos de di-reito privado, como propriedade, contratos, testamentos -,o direito publico modemo nascera de conflitos de poder desco-nhecidos na sociedade antiga: antes de mais nada, 0 conflitoentre poder espiritual e poder temporal, que constituiu poralguns seculos 0principal argumento da tratadistica politica,e, por conseguinte, 0 conflito entre regna e imperium, ouaquele entre regna e civitates.

Indubitavelmente, 0direito publico - ou, para dizer me-lhor, aquele embriao de direito publico que sefora elaborandodurante a Idade Media - aproveitara-se grandemente dasprincipais categorias do direito privado: basta pensar na equi-paracao entre imperium e dominium, que permitia analisar 0

poder soberano atraves das refinadas categorias empregadaspara a decomposicao e reconstrucao dos direitos do proprie-tario e dos direitos reais em geral; e, sobretudo, a teoria dopactum ou dos diversospacta, que deviam servir para explicaras relacoes entre soberano e suditos, e permitira tratar juridi-camente, ou seja, como uma questao a ser resolvida recor-rendo-se a logica do discurso juridico, 0problema fundamen-tal da obrigacao, ou melhor, doslimites da obrigacao, da obe-diencia as leis por parte dos siiditos (0 problema, como depoissera chamado, da obrigacao politica), Mas, a uma sistematicageral do direito, que compreendesse ao mesmo tempo e comigual dignidade tanto 0 direito privado quanta 0 direito pu-blico"jamais se chegara antes da tratadistica do direito natu-ral. Se se deve reconhecer a escola do direito natural 0meritodeter feito a maior tentativajamais realizada ate entao de dar

uma sistematizacao geral a materia juridica, de racionalizar 0

A critica antijusnaturalista do historicismo atingia so-bretudo a teoria politic a que a doutrina do direito natural cria-ra e divulgara. Como ja dissemos, no ambito da escola dodireito natural foram compreendidos alguns dos maiores es-critores politicos dos seculos XVII e XVIII, de Hobbes a Rous-seau. A hist6ria da filosofia politica daqueles dois seculoscoincide em grande parte com a hist6ria do jusnaturalismo:ninguem pode escrever a hist6ria das ideias politicas da epocaque intercorre entre 0Renascimento e 0 Romantismo sem le-var em conta, alem dos escritos politicos estritamente enten-didos, tambem os grandes tratados de direito natural, de Pu-fendorf a Burlamaqui. Com relacao a tradicao juridica ante-rior, a tratadistica do direito natural representa uma inovacaopara a qual e preciso chamar mais uma vez a atencao: nasistematizacao geral do direito, ela compreende, ao lido dodireito privado, para 0 qual eram orientadas de modo exclu-sivoas tentativas de redigere ius in artem dos juristas do Re-nascimento (cuja materia era 0 Digesto), tambem 0 direitopublico. Asgrandes disputas metodologicas, que tinham divi-dido entre si os tradicionalistas e os humanistas, manifesta-ram-se predominantemente no terreno do direito privado. Aideia de que 0 direito romano fosse ratio scripta, e, enquantotal, desfrutasse do privilegio de uma validade que se perpetuae se renova no tempo, era uma doutrina que se referia ao ius

privatum, nao ao iuspublicum. ~.~.~51V'2ilig;ito romano nao

 

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36 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FlLOSOFIA POLlTICA MODERNA 37

direito, esse merito the deve ser reconhecido mais ainda noambito do direito publico que no do direito privado.

Comparemos a primeira grande obra politica, que assi-nala 0inicio dojusnaturalismo politico e do tratamento racio-nal do problema do Estado, 0 De cive de Hobbes, 1 com amaior obra politica e de direito publico que a precede: 0De larepublique (1576) de Jean Bodin: (A comparacao e licita por-que, numa concepcao essencialmente legalista do Estado,como a que acompanha 0 nascimento do Estado moderno ecompreende toda a escola do direito natural, nao e possiveldistinguir nitidamente entre a filosofia politic a e 0direito pu-blico.) A diferenca quanta ao modo de tratar os problemasnas duas obras - mais uma vez, a diferenca em relacao aometoda - e enorme. E a diferenca queintercorre entre 0me-todo tradicional do jurista, que extrai suas proprias solucoesda analise dos precedentes autorlzados e das sugestoes ofere-cidas pelo estudo da hist6ria, e 0 metoda "geometrico", 0

qual, prescindindo de tudo 0 que podem ter dito os autoresprecedentes e nao levando em consideracao 0 ensinamento dahist6ria, busca 0 caminho de uma reconstrucao meramenteracional da origem e do fundamento do Estado. Os tratadosde filosofia politica anteriores a Hobbes se apoiavam monoto-namente sobre dois pilares, a ponto de aparecerem freqiiente-

mente como nada mais que uma repeticao do ja dito: a Poll-

tica de Arist6teles e 0direito romano, ou, mais precisamente,aquelas passagens doCodex referentes a fonte do poder impe-rial e que, a partir dos glosadores, haviam sido interpretadasde variados modos. Dessa interpretacao derivara uma densarede de opinioes da qual nenhum escritor politico consideravapoder prescindir. Ainda recentemente, foi observada e docu-mentada a estreita analogia de estrutura entre 0 tratado deBodin e 0 de Arist6teles, bern como "0 panorama medieva-lista, em seu conjunto", que se manifesta a quem anotar as

citacoes juridicas da Republique. 2 Juntamente coni a autori-dade da hist6ria, como ha pouco observamos, Hobbes varretambem a autoridade de Arist6teles, contra quem toma posi-cao desde as primeiras paginas do De cive, contrapondo ithipotese do homem naturaliter social, acolhida mediocre-mente ate Gr6cio (inclusive), a hipotese do homo homini lu-

pus; e nao parece levar em conta a existencia de urn direitopublico que faz apelo ao direito romano, embora utilize al-guns de s~us conceitos fundamentais, como 0 do pacto queserve de fundamento ao poder estatal e 0do Estado como pes-soa moral. Hobbes faz tabula rasa de todas as opinioes ante-riores e constr6i sua teoria sobre as bases s6lidas, indestru-tiveis, do estudo da natureza humana e dos carecimentos queessa natureza expressa, bern como do modo - do unico modopossivel, dados aqueles pressupostos - de satisfazer tais care-cimentos.

No tocante ao problema crucial do fundamento e da natu-

reza do Estado, pode-se com justeza falar - a comecar porHobbes - de urn modelo jusnaturalista, 3 adotado, emboracom notaveis variacoes, pelo menos ate Hegel incluido-exclui-do, por alguns dos maiores fi16sofospoliticos da epoca mo-derna. Se, na teoria geral do direito, 0 que aproxima os escri-tores do direito natural, permitindo falar de uma escola do di-reito natural, e - como ja dissemos - 0metodo, sobretudoquando comparado com 0 das grandes escolas juridicas que aprecederam e a sucederam, no que se refere ao direito publicoe it doutrina do Estado as obras jusnaturalistas, aquelas queseus criadores e seus adversaries consideram como tais, sao

caracterizadas nno s6 pelo procedimento racionalizante, ouseja, por urn metodo, como tambem por urn modelo te6rico(tao geral que pode ser preenchido com os mais diversos con-teiidos), que remonta a Hobbes e do qual sao devedores, maisou menos conscientemente, tanto Spinoza quanta Pufendorf,tanto Locke quanta Rousseau (e cito propositalmente autoresdiferentissimos com relacao ao conteudo ideologico dos seus

(1) A primeira edi~ao e de 1642; a segunda, des ti nada a divulgacao pub li ca , ede 1647.0titulo exato eElementaphilosophica de cive. Ja em 1640, Hobbes compu-

sera uma primeira redacao de seu sistema filos6fico, com referencia particular a filo-sofia politica, ::rheElements of Law Natural and Politic, publicado em sua forma ori-

gi na l soment e em 1889 por F. Tiinnies; trad. it., por A. Pacchi, Florenca, La Nuova

Italia~1968.

(2) M. Isnardi Parente, Introduzione a J. Bodin, I sei libri della stato, na co-

lecao dos "Class ic i po lit ic i" , di rig ida por L. Firpo, Turim, Utet, 1964, vol. I, p. 23.(3) Retorno e desenvolvo 0 tema tra tado no ensaio "Il modello giusnaturalis-

ti co", in Rivista Internazionale di Filosofia delDiritto, 1973, pp. 603-22.

 

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38 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 39

escritos). Falando de "modelo", quero fazer entender imedia-tamente que, na realidade historica, urn processo de formacaoda sociedade civil, tal como 0idealizado pelos jusnaturalistas,jamais tevelugar: na evolucao das instituicoes de onde nasceuo Estado moderno, ocorreu a passagem do Estado feudal parao Estado de estamentos, do Estado de estamentos para a mo-

narquia absoluta, da monarquia absoluta para 0 Estado re-presentativo; mas 0 Estado como produto da vontade racio-nal, como e 0 caso daquele a que se referem Hobbes e seusseguidores, e pura ideia do intelecto.

o modelo e constituido com base em dois elementos fun-damentais: 0estado (ou sociedade) de natureza eo estado (ousociedade) civil. Trata-se de urn modelo c1aramente dicoto-mico, no sentido de que tertium non datur: 0 homem ou viveno estado de natureza ou vive no estado civil. Nao pode viverao mesmo tempo em urn e outro. Da dicotomia principal, es-tado de natureza/ estado civil, os jusnaturalistas fazem em

cada oportunidade, como ocorre com toda dicotomia, ora urnuso sistematico, na medida em que osdois termos servemparacompreender toda a vida social do homem; ora urn uso histo-riografico, quando 0 curso da historia e explicado como pas-sagem do estado de natureza para 0 estado civil e, eventual-mente, como uma recaida do estado civil no estado de natu-reza; ora urn uso axiologico, na medida em que a cada urn dostermos e atribuido urn valor antitetico com relacao ao outro(para quem atribui urn valor negativo ao estado de natureza, 0

estado civil tern urn valor positivo, e vice-versa)." Entre os doisestados, ha uma relacao de contraposicao: 0estado natural e 0

estado nao politico, e 0 estado politico e 0 estado nao natural.Em outras palavras, 0estado politico surge como antitese doestado natural, do qual tern a funcao deeliminar os defeitos, e

o estado natural ressurge como antitese do estado politico,quando esse deixa de cumprir a finalidade para a qual foi ins-tituido. A contraposicao entre os dois estados consiste no fatode serem os elementos constitutivos do primeiro individuossingulares, isolados, nao associados, embora associaveis, queatuam de fato seguindo nao a razao (que permanece oculta ou

[mpotente), mas as paixoes, os instintos ou os interesses; 0

elemento constitutivo do segundo e a uniao dos individuos iso-lados e dispersos numa sociedade perpetua e exc1usiva, que e

a unica a permitir a realizacao de uma vida conforme a razao.Precisamente porque estado de. natureza e estado civil saoconcebidos como dois momentos antiteticos, a passagem deurn para outro nao ocorre necessariamente pela propria Iorcadas coisas, mas por meio deuma ou mais convencoes, ou seja,por meio de urn ou mais atos voluntaries dos proprios indi-viduos interessados em sair do estado de natureza, ou seja, emviverem conforme a razao. Na medida em que e antitetico ao

estado de natureza, 0 estado civil e urn estado "artificial",produto, como se diria hoje, de cultura e nao de natureza (daia ambiguidade do termo "civil", que significa ao mesmo tem-po "politico", de civitas, e civilizado, de civilitas). Diferente-mente do que ocorre com qualquer outra forma de sociedadenatural, em que 0 homem pode viver independentemente desua vontade -, como e 0 caso, segundo a tradicao, da socie-dade familiar e da sociedade senhorial - 0principio de legiti-

macae da sociedade politic a e 0consenso.

(4) Sobre esses tres usos dossistemas conceituais, detive-me pela primeira vezno artigo "La grande dicotomia", em Studi in memoria de Carlo Esposito, Padua,Cedam, 1974, pp. 2187-2200 (e. depois, no volume Dalla struttura alia funzione,Nuovi studi di teoria del diritto, Milito, Comunita, 1977, pp. 145-63). A "grande di-cotomia" de que falo e a distincao entre direito privado e direito publico. - Vall-me~a~deiatambe~ na analise da teoria classica das formas degoverno, tanto no artigoVICO e la teona delle forme di governo", in Bolettino del Centro di Studi Yichiani,1978, pp. 5-1.7, quanta no verbete "Democrazia/Dittatura" da Enciclopedia Ei-

naudi, vol. IV, pp. 535-58 (publicado em 1978). '

 

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 41

nidade perfeita de mais de uma aldeia constitui agora a ci-dade, que alcancou 0 que se chama de nivel de auto-suficien-cia, e que surge para tornar possivel a vida e subsiste paraproduzir as condicoes de uma boa existencia" . 1

Sao surpreendentes a duracao, a continuidade, a estabi-lidade, a vitalidade de que deu prova esse modo de descrever a

origem do Estado. A medida que apresenta a evolucao da so-ciedade humana como uma passagem gradual de uma socie-dade menor para uma mais ampla, resultante da uniao devarias sociedades imediatamente inferiores, pode facil e docil-mente ser estendido a outras situacoes, a medida que as di-mensoes do Estado, ou seja, da sociedade auto-suficiente ecomo tal perfeita, cresciam, passando da cidade a provincia,da provincia ao reino, do reino ao imperio. Na logica dessetipo de reconstrucao do Estado, e exemplar a longa sequenciaenunciada por Tommaso Campanella no inicio dos seusAfo-rismos politicos (escritos nos primeiros anos do seculo XVII):

"A primeira uniao ou comunidade e a do macho e da femea.A segunda, ados geradores e dos filhos. A terceira, ados se-nhores e servidores. A quarta e de uma familia. A quinta, demais de uma familia numa vila. A sexta e a de mais de umavila em uma cidade. A setima, a de mais de uma cidade numaprovincia. A oitava, a de varias provincias num reino. A nonae a mais de urn reino sob urn imperio. A decima e a de muitosimperios sob mais de urn clima e meridianos ou sob 0mesmo.A decima-primeira e a de todos os homens sob a especie hu-mana". 2

Essa passagem permite ver, entre outras coisas, como 0

modelo aristotelico chegou inalterado ate 0 limitar da novaera. Ainda em De la republique, Bodin da inicio ao trata-mento da materia com a seguinte definicao de Estado: "PorEstado, entende-se 0 governo justo que se exerce com podersoberano sobre diversas familias e sobre tudo 0 que elas ternem comum entre si". 3Mais adiante, tendo de comentar a par-te da definicao que serefere a "diversas familias", explica que

o modelo aristotelico

Iduz-me a falar de modelo tambem a consideracao deque, na filosofia politica anterior a do direito natural, tivera

lugar durante seculos uma reconstrucao da origem e do fun-damento do Estado completamente diversa e, sob todos os as-pectos, oposta, na qual e possivel (e util) perceber urn modeloalternativo. Trata-se do modelo que pode ser chamado comjusteza, em funcao do seu autor, de "aristotelico", assim comoo oposto pode com igual direito ser chamado de "hobbe-siano", mesmo levando em conta que nao foi certamente Hob-bes quem 0 inventou, dado que a ideia da origem convencio-nal do Estado ja era conhecida na Antiguidade e teve cursoespecialmente na Idade Media ate a redescoberta de Arist6-teles; mas foi a Hobbes que se referiram todos os escritores

subseqiientes. Desde as primeiras paginas da Politica, Arist6-teles explica a origem do Estado enquanto polis QU cidade,valendo-se nao de uma construcao racional, mas de uma re-construcao hist6rica das etapas atraves das quais a humani-dade teria passado das formas primitivas as formas mais evo-luidas de sociedade, ate chegar a sociedade perfeita que e 0

Estado. As etapas principais sao a familia (que e a forma pri-mitiva de sociedade) e a aldeia. Com suas proprias palavras:"A comunidade que se constitui para a vida de todos os dias epor natureza a familia ( .. .) . A primeira comunidade que de-riva da uniao de mais de uma familia, voltada para satisfazer

uma necessidade nao mais cotidiana, e a aldeia (... ). A comu-

(1) Aristoteles, Polltica, 1252 a.(2) T. Campanella, Aforismi po/itici, ed. por L. Firpo, Turim, Giappichelli,

1941, af. 3, p. 89.

(3) I. Bodin, I seilibri della repubblica, ed. cit., p. 159.

 

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42 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 43

a familia "e a verdadeira origem do Estado e constitui suaparte fundamental". 4 0 autor da maior obra politica antes deGr6cio, Johannes Althusius, define a civitas, ou seja, a conso-ciatio politica, como uma sociedade de segundo grau (maspode tambem ser de terceiro ou quarto, segundo as passagensintermediarias, sem que a logica do modelo deva ser modifi-

cada), ou seja, como uma sociedade que resulta da agregacaode sociedades menores, das quais as familias sao as primeirasna ordem do tempo: Universitas haec est plurium coniugum,

familiarum et collegiorum, in eodem loco habitantium, certis

legibus facta consociatio. Vocatur alias civitas. 5

Ap6s ter iniciado a exposicao falando da consociatio do-

mestica, isto e, da familia (cap. II), Althusius passa para aconsociatio propinquorum, ou seja, a aldeia (cap. 111),depoispara as especies inferiores da societas civiles, os colegios, quesao associacoes nao mais naturais porem artificiais (cap. IV),para chegar a graus sucessivos, mediante circulos que se am-

pliam cada vez mais, a civitas (na qual distingue uma "nis-tica" e uma "urbana"), e, finalmente, passa das civitates,atraves das provinciae, ate 0regnum (que corresponde ao Es-tado propriamente dito, na acepcao moderna da palavra),definido como universalis maior consociatio (cap. X). 0 fatode que, independentemente da quantidade e da qualidade dosgraus, variaveis de autor para autor, a teoria politica althu-siana ainda se desenvolva inteiramente no interior do esquemareconstrutivo gradualista proposto por Arist6teles, e algo ates-tado do modo mais claro possivelpelo proprio autor, quandoafirma - no principio do capitulo V - que a sociedade hu-

mana passa das sociedades privadas para as sociedades pti-blicas certis gradibus ac progressionibus.

A reconstrucao racional proposta pelos jusnaturalistas, 0

modelo tradicional contrapoe uma reconstrucao hist6rica(ainda que uma hist6ria imaginaria). 0 ponto de partida naoe urn abstrato estado de natureza, no qual os homens se en-contrariam antes da constituicao do Estado, e que 0precede

logica e nao cronologicamente, mas a sociedade natural origi-naria, a familia, e uma forma especifica, concreta, historica-mente determinada, da sociedade humana. Enquanto 0 mo-delo hobbesiano e dicotomico e fechado (ou 0estado de natu-reza ou 0 estado civil), 0modelo aristotelico e plural e aberto(do primeiro ao ultimo grau, os graus intermediaries podem

variar de mimero). Enquanto no primeiro modelo, precisa-mente enquanto dicotomico, urn dos dois termos e a antitesedo outro - e, portanto, estado de natureza e estado civil saocolocados urn diante do outro numa relacao de antagonismo-, no segundo modelo, entre a sociedade primitiva e origi-naria e a sociedade ultima e perfeita que e 0Estado, ha umarelacao de continuidade ou de evolucao ou de progressdo, nosentido de que, do estado de familia ao estado civil, 0homempassou atraves de fases intermediarias que fazem do Estado,nao a antitese do estado pre-politico, mas 0desaguadouro na-tural, 0 ponto de chegada necessario, a conclusao de certo

modo quase predeterminada de uma serie mais ou menoslonga de etapas obrigat6rias. See verdade que a antitese entreas duas figuras da dicotomia no modelo jusnaturalista de-pende do fato de que a primeira figura representa 0 individuono momento do seu isolamento, ou, para usar uma celebreexpressao de Hegel, 0 "sistema da atomistic a" , e a segunda 0

representa unido em socidade com outros individuos, e igual-mente verdade que 0 gradualismo do segundo modelo de-pende do fato de que, desde a origem, os individuos sao apre-sentados como reunidos em sociedade. Dai resulta que a pas-sagem de uma fase para outra, enquanto passagem de uma

forma de sociedade para uma outra maior (sem por isso sermais evoluida), e uma transformacao nao qualitativa, maspredominantemente quantitativa. Finalmente, a passagem deuma fase para outra, do estado pre-politico para 0estado poli-tico, precisamente na medida em que ocorre por urn processonatural de extensao das sociedades menores a sociedademaior, nao se deve a uma convencao - ou seja, a urn ato devontade racional -, mas ocorre atraves do efeito de causasnaturais, atraves da acao de condicoes objetivas, rebus ipsisdictantibus, como diria Vico, tais como a ampliacao do terri-t6rio, 0aumento da populacao, a necessidade de defesa, a ca-

rencia de obter os meios necessaries a subsistencia, a divisao

(4) Ibid., p. 172.(5) J.Althusius, Politica metodice digesta, cap. V, 8, que cito da edieao de C.

J. Friedrich, na co1~ao "Harvard Political Classics", Cambridge University Press,

1932, p. 21.

 

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44 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLtTICA MODERNA 45

do trabalho, etc., com a consequencia de que 0 Estado, emvez de ser concebido como homo artificialis, nao e menos na-tural que a familia. Nesse quadro, 0 principio de legitimacaoda sociedade politica nao e mais 0consenso, porem 0estadode necessidade, ou, mais simplesmente, a propria naturezasocial do homem.

Comparando entre si as caracteristicas diferenciadorasdos dois modelos, emergem com nitidez algumas das grandesalternativas que caracterizam 0 longo caminho da reflexaopolitica ate Hegel: a) concepcao racionalista ou historico-sociologica da origem doEstado; b) 0Estado como antitese ou

como complemento do homem natural; c) concepcao indivi-dualista e atomizante e concepcao social e organica doEstado;d) teoria contratualista ou naturalista do fundamento do po-der estatal; e) teoria da legitimacao atraves do consenso ouatraves da forca das coisas. Essas alternativas referem-se aosproblemas da origem (a), da natureza (b), da estrutura (c), do

fundamento (d), da legitimidade (e) daquele sumo poder queeo poder politico em relacao a todas as outras formas de po-der do homem sobre 0homem.. De todas as diferencas entre os dois modelos, a mais rele-vante para uma interpretacao historica e (com todas as caute-las do caso) ideologica de ambos e a que se refere a relacaoindividuo/sociedade. No modelo aristotelico, esta no inicio asociedade (a sociedade familiar como micleo de todas as for-mas sociais posteriores); no modelo hobbesiano, esta no prin-cipio 0 individuo, No primeiro caso, 0 estado pre-politico porexcelencia, ou seja, a sociedade familiar entendida no sentido

amplo de organizacao da casa (olkos) - 0 primeiro livro daPolitica de Aristoteles e dedicado ao governo da casa ou eco-nomia -, onde por "casa" se entende tanto a sociedade do-mestica quanta a sociedade senhorial, e urn estado no qual asrelacoes fundamentais sao relacoes entre superior e inferior e,portanto, sao relacoes de desigualdade, como e 0 caso, preci-samente, das relacoes entre pai e filhos e senhor e servos. Nosegundo caso, 0estado pre-politico, ou seja, 0estado de natu-reza, sendo urn estado de individuos isolados, que vivem forade qualquer organizacao social, e urn estado de liberdade e deigualdade, ou de independencia reciproca; e e precisamente

esse estado que constitui a condicao preliminar necessaria da

hipotese contratualista, ja que 0 contrato pressupoe em seusurgimento sujeitos livres e iguais. Do mesmo modo como, noestado de natureza, sao naturais a liberdade e a igualdade, noestado social do modelo aristotelico sao naturais a dependen-cia e a desigualdade. Enquanto estado de individuos livres eiguais, 0estado de natureza e 0 local dos direitos individuais

naturais, a partir dos quais e constituida de varies modos ecom diferentes resultados politicos - a sociedade civil.

A particular importancia desse contraste serevela no fatode ser a ele que se refere principalmente a interpretacao cor-rente que faz do modelo jusnaturalista 0 reflexo teorico e, aomesmo tempo, 0 projeto politico da sociedade burguesa emformacao. Dessa interpretacao, os tracos mais destacados saoos seguintes: a) 0 estado de natureza e 0 local das relacoesmais elementares entre os homens, idest das relacoes econd-micas: enquanto tal, ele representa a descoberta da esfera eco-nomica como distinta da esfera politica: da esfera privada

como distinta da esfera publica, descoberta que e propria deuma sociedade na qual desaparece a confusao entre poder eco-nornico e poder politico que e caracteristica da sociedade feu-dal; b) essa esfera das relacoes economicas e regida por leisproprias de existencia e de desenvolvimento, que sao as leisnaturais: enquanto tal, ela representa 0momenta da emanci-pa~ao da c1asse que se prepara para tornar-se economica-mente dominante com relacao a situacao existente; c) en-quanto estado no qual os sujeitos sao individuos singulares,abstratamente independentes uns dos outros e, portanto, emcontato ou em conflito entresi exclusivamente por meio da

posse e da troca reciproca de bens, 0 estado de natureza re-flete a visao individualista da sociedade e da historia, comu-mente considerada como urn traco distintivo da concepcao domundo e da etica burguesas; d) a teoria contratualista, ouseia, a ideia de urn Estado fundado sobre 0consenso dos indi-viduos destinados a dele fazer parte, representa a tendenciada c1asse, que se move no sentido da emancipacao politica enao so economica e social, no sentido de por sob 0 propriocontrole 0maior instrumento de dominacao de que se serveurn grupo de homens para obter obediencia: em outras pala-vras, reflete a ideia de que uma c1asse que se encaminha no

sentido de se tornar economica e ideologicamente dominante

 

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46 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLITICA MODERNA 47

deve conquistar tambem 0poder politico, ou seja, deve criar 0Estado a sua imagem e semelhanca: e) a tese de que 0poder e

legitimo so na medida em que e fundado sobre 0 consenso epropria de quem luta para conquistar urn poder que aindanao possui, e depois, uma vez conquistado 0 poder, passa adefender a tese contraria; f) finalmente, os ideais de liberdade

e de igualdade, que encontram seu lugar de realizacao no es-tado de natureza, ainda que urn lugar imaginario, indicam eprescrevem urn modo de conceber a vida em sociedade anti-tetico ao tradicional, segundo 0 qual a sociedade humana e

construida com base numa ordem hierarquica tendencial-mente estavel, ja que conforme a natureza das coisas, e carac-terizam aquela concepcao libertaria e igualitaria que animapor toda parte os movimentos burgueses contra os vinculossociais, ideologicos, economicos e politicos que obstaculizamsua ascensao,

Urna prova a contrario da ruptura que 0modelo jusnatu-

ralista introduz na concepcao classica, bern como do signifi-cado ideologico-politico que essa ruptura assume no desenvol-vimento das reflexoes sobre a formacao do Estado modemo,pode ser extraida da seguinte observacao: a partir do dominioquase incontrastado do rnodelo jusnaturalista, sempre que e

reexumado 0modelo classico, particularmente atraves de umaretomada da reavaliacao da familia como origem da sociedadepolitica e como local privilegiado da vida economica, e que 0Estado e figurado como uma familia em tamanho ampliado(concepcao patemalista do poder politico), com a conseqiientenegacao de urn estado originario constituido por individuos

livres e iguais: sempre que e feita urna critica acerba contra 0

contrato social, com a conseqiiente afirmacao da naturalidadedo Estado; sempre que e refutada a antitese entre estado denatureza e estado civil, com a conseqtiente concepcao do Es-tado como continuacao necessaria da sociedade familiar, issoocorre por obra de escritores reacionarios (entendendo por"reacionarios" os que sao hostis as grandes mudancas econo-micas e politicas de que foi protagonista a burguesia). Saoexemplos tipicos Robert Filmer, urn dos ultimos defensores darestauracao monarquica depois da Revolucao Inglesa, e CarlLudwig von Haller, urn dos mais conhecidos escritores politi-

cos da Restauracao depois da Revolueao Francesa.

o alvo politico de Filmer e a teoria da liberdade naturaldos homens, da qual decorre a afirmaeao (por ele julgada in-fundada e blasfema) de que os homens tern 0 direito de esco-Iher a forma de govemo que preferem. Para Filmer, a unicaforma de govemo legitima e a monarquia, porque 0 funda-mento de todo poder e 0direito que tern 0 pai de comandar osfilhos; e os reis sao ou originariamente osproprios pais, ou, nodecorrer do tempo, os descendentes dos pais ou os seus dele-gados. A concepcao ascendente do poder, propria das teoriascontratualistas, Filmer contrapoe uma concepcao rigidamentedescendente: 0poder jamais se transrnite, segundo Filmer, debaixo para cima, mas sempre de cima para baixo. A partir domomento em que 0 paradigma de toda forma de poder dohomem sobre 0 homem e 0poder do pai sobre os filhos, entrea sociedade politica e a sociedade familiar nao existe, paraFilmer, uma diferenca essencial: ha apenas uma diferenca degrau. Vejamos como ele se expressa: "Se se comparam os di-reitos naturais. de urn pai com os de urn rei, nao perceberemosoutra diferenca alem da amplitude e da extensao: como 0paide uma familia, assim 0 rei estende sobre muitas familias asua preocupacao para conservar, nutrir, vestir, instruir e de-fender toda a comunidade". 6

Nao diversamente se manifesta Haller, 0 qual, mesmonao conhecendo a obra de Filmer, declara que 0titulo "pareceindicar uma exata ideia fundamental" 7(embora, como ele ad-verte logo apos, excessivamente restrita). Urn dos propositosmais insistentemente repetidos em sua obra fundamental,Restauration der Staats- Wissenschaft iRestauracdo da ciencia

polltica), de 1816-1820, eo de mostrar que "os agrupamentoshumanos.denominados de Estados nao diferem por natureza,

mas somente em grau, das outras relacoes sociais". 8 Essa ten-tativa e perseguida atraves de urn ataque continuo contra as

(6) R. Filmer. Patriarcha or the Natural Power of Kings (1680). que cito da

edi~ao de L. Pareyson. publicada como avendice aos Due trattati del governo civile.de Locke. Turim, Utet, 2~ed. revista, 1960. cap. 1.§10. p. 462.

(7) C. L. von Haller. Restauration der Staats-Wissenschaft (1816-1820). quecito da edi~ao de M. Sancipriano, na coleeao dos "Classici politici", Turim, Utet,1963.vol. I. p. 154.

(8) Ibid .• p. 130.0grifo e nosso.

 

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48 NORBERTO BOBBIO

varias formas assumidas pela teoria contratualista, conside-rada uma "quimera", e por meio da tese segundo a qual 0

Estado nao e menos natural que as formas mais naturais davida social. Assim, nao e possivel tracar nenhuma diferencaentre as sociedades naturais e aquelas falsamente chamadasde "civis": "A Antiguidade ignorava, como ainda hoje 0

mundo inteiro ignora (com excecao das escolas filos6ficas),toda a terminologia que sefaz passar por cientifica e que esta-belece uma essencial diferenca entre 0 estado de natureza e 0estado civil". 9 Portanto, dado que os Estados nao sao criadosmediante urn ato da razao humana, mas se formaram atravesde urn processo natural, "a diferenca entre os Estados e asdemais relacoes sociais consiste apenas na independencia, ouseja, num mais alto grau de poder e de liberdade". 10 Nao sepoderia dizer de modo mais claro que, entre sociedades pre-

estatais e Estado, ha uma diferenca de grau e nao uma anti-tese. Na cadeia finita de varias sociedades, uma sobre a outra,

e inevitavel que se chegue a uma sociedade da qual as outrasdependam e que, por sua vez, nao depende de nenhuma outra.Essa sociedade ultima e 0 Estado. Mas a propria sociedadepode se tornar Estado e pode perder a qualidade de Estadosem mudar sua propria natureza.

o estado de natureza

(9) Ibid.• p. 472.

(10) Ibid., p. 476.

Como dissemos, 0modelo hobbesiano sofreu muitas va-riacoes na literatura dos seculos XVII e XVIII, que podem ser

agrupadas em torno de tres temas fundamentais: 0 ponto departida (0 estado de natureza), 0 ponto de chegada (0 estadocivil)e 0meio atraves do qual ocorre a passagem de urn paraoutro (0 contrato social).

As variacoes referentes ao carater do estado de naturezaconcentram-se principalmente em torno destes tres proble-mas: a) se 0 estado de natureza e urn estado historico ou so-mente imaginado (uma hipotese racional, urn estado ideal,etc.); b) se e pacifico ou belicoso; c) se e urn estado de isola-mento (no sentido de que cada individuo vive por sua conta,sem ter necessidade dos outros) ou social (ainda que se trate

de uma sociedade primitiva).a) 0 problema do carater hipotetico ou historico do es-

tado de natureza foi colocado corretamente ja por Hobbes,embora sua solucao nao tenha sido frequentemente enten-dida. 0 que em Hobbes e uma pura hipotese da razao e 0

estado'de natureza universal, ou seja, aquela condicao na qualos homens teriam vivido ou seriam destinados a viver todosjuntos e ao mesmo tempo em estado de natureza, e da qualderivaria como conseqtiencia (uma conseqtiencia logica e naohistorica) 0bellum omnium contra omnes, 0 estado de natu-reza universal jamais existiu e nao existira jamais (sua exis-

tencia prolongada no tempo teria levado ou levaria a extincao

 

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50 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 51

da humanidade). 0 que existiu e continua a existir de fato eurn estado de natureza nao universal mas parcial, circunscritoa certas relacoes entre homens ou entre grupos em certas cir-cunstancias de tempo e de lugar. Hobbes tampouco cre, comoao contrario crera Rousseau, que 0 estado de natureza univer-sal tenha existido pelo menos uma vez no tempo, no inicio da

hist6ria da humanidade, ou seja, nao considera ser possivelidentificar 0estado de natureza com 0estado originario. Alias,considera verossimil que, "desde a criacao ate hoje, 0 generohumano jamais esteve numa situacao inteiramente sem socie-dade";'

Os casos de estado de natureza parcial, ou seja, hist6ricoou historicamente possivel, sao sobretudo tres: 1)0 estado darelacao entre grupos sociais independentes, em particular, notempo de Hobbes, entre Estados soberanos (tambem Hegel,embora ironize a hipotese do estado de natureza, reconheceque os Estados soberanos vivem reciprocamente em estado de

natureza); 2) 0 estado em que se encontram os individuos du-rante uma guerra civil, ou seja, quando se dissolve a sociedadepolitica e se entra em estado de anarquia; 3) 0estado em queencontram certas sociedades primitivas, tanto as dos povosselvagens da epoca, como alguns grupos de indios da Ame-rica, quanto as dos povos barbaros da Antiguidade agora civi-lizados. Na figuracao hobbesiana do estado de natureza, con-fluem tres inspiracoes diversas: a representacao do estado fe-rino da sociedade humana, segundo a concepcao epicurianatransmitida por Lucrecio no quinto livro doDe rerum natura; 2

as descricoes de viajantes ao NovoMundo, como foi documen-

tado recentemente, de modo amplo e admiravel, por Lan-ducci; 3 e as vivas impressoes da guerra civil inglesa. 4

A distincao implicita na teoria hobbesiana entre estadode natureza universal (apenas hipotetico) e estado de naturezaparcial (historicamente possivel), Pufendorf deu uma formaexplicita, ao distinguir 0estado de natureza puro ou absolutodaquele limitado: "Com efeito, pode-se considerar 0 generohumano de dois modos: ou seconcebem todos os homens em

seu conjunto e singularmente considerados, vivendo em es-tado de liberdade natural; ou entao seconsideram alguns de-les ligados entre si numa sociedade civil e unidos com os ou-tros apenas pelo vinculo da comum humanidade" . 5

Tambem Locke, depois de ter descrito 0 estado de natu-reza como mera abstracao, ou seja, como 0estado no qual oshomens vivem ou poderiam viver se fossem tao razoaveis aponto de respeitarem as leis naturais, pergunta se jamaishouve homens em estado de natureza e onde estariam eles; eresponde aduzindo alguns casos, 0dos soberanos de governos

(1) Hobbes. Questions concerning liberty, necessity and chance (1656). que

cito dasEnglish Works. ed. Moleshott, vol. V. p.183.(2) Multaque per coelum solis volventia lustra / vulgivago vitam tractabant

more ferrarum, versos 931-32. [Na traducao portuguesa de Agostinho da Silva (Da

Natureza, Sao Paulo. Abri l Cultural . col . "Os Pensadores", vol . V. 1973. p. 116) ,

temos: "E. enquanto muitos lustros se desenrolavam pelo ceu marcados pelo Sol.levavam eles uma vida errante a maneira dosanimais bravios".J

(3) S. Landucci, Lfilosofi e Iemacchine (1580-1780). Bari, Laterza. 1972. emparticular. no que serefere a Hobbes. pp. 114-42.

(4) Nao sem uma reminiscencia literaria de Tucidides, que descrevera comcores obscuras a guerra civil. desencadeada emCorcira em 427 a.C.: "A tal ponto de

ferocidade chegou aquela guerra civil, e pareceu ainda mais tremenda, porque foi aprimeira:mais tarde. tambern toda a Grecia, pode-se dizer, foi por ela abalada etc."(III. 82).Naoe preciso esquecer que Hobbes traduzira, na primeira parte desua vida. ahist6ria da guerra no Peloponeso, publicada emLondres em 1629, interpreted - como

se Ie no frontispicio - with fai th and dil igence immediately out of the Greek byThomas Hobbes. Sobre a centralidade do tema da guerra civil em Hobbes. chameiparticularmente a atencao no ensaio dedicado ao autor doLeviatii novol. III da Storiadelle idee politiche economiche e sociali, dirigida por L. Firpo, Turim, Utet, 1979.

Gostaria, porem, decitar pelomenos urn trecho que nao seencontra nas obras politicase que. precisamente por isso, e ainda mais decisivo. Noprimeiro capitulo doDe cor-pore. tratando da utilidade da filosofia, Hobbes escreve: "Mas [autilidade da filosofiamoral e civil]deve ser mensurada nao tanto pelas vantagens que derivam do conhe-cimento dela quanto pelas calamidades em que incorremos por ignorancia da mesma.Alemdomais, todas ascalamidades que podem serevitadas com a intervencao ativa dohomem nascem da guerra. em particular daguerra civil: dessa, com efeito, derivam

massacres, desolaciio,falta de todas as coisas" (I. 7). De todas as interpretacoes do

estado de natureza, a que tern menor credibilidade e aquela que. nestes ultimos anos,incrivelmente, teve maior sucesso. Refire-me a obra de C. B. Macpherson. The Poli-tical Theory of Possessive Individualism. Oxford. Clarendon Press. 1962. na qual seafirma - com fracas provas - que, descrevendo 0 estado de natureza. Hobbes des-crevena realidade, ainda que inconscientemente, a sociedade demercado. Do mesmoautor, cf. tambem a introducao a edi,.ao doLeviathan , Penguin Books, 1968, na qual atese e reafirmada. Hobbes teria usado "urn modelo mental que. estivesse ele ou naoconsciente disso, corresponde apenas a sociedade demercado burguesa" (p. 38), com aconseqnsncia de que "os modelos por ele construidos foram modelos burgueses" e.portanto, 0micleo principal de sua ciencia e "uma ciencia da sociedade burguesa"!(p.12).

(5) Pufendorf, De iure naturae et gentium. L. II. cap. II. § I, trad. it . cit . •

p.63.

 

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S2 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E EST ADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA S3

independentes, 0de dois homens numa ilha deserta, 0 de "urnsuico e urn indiano nas florestas da America", 6 e 0 do sobe-rano de urn Estado em face de urn estrangeiro em seu terri-torio." De resto, tal como Hobbes, tambem Locke considera adissolucao do Estado como urn retorno ao estado de natureza:numa passagem, identifica explicitamente 0 estado de natu-

reza com a anarquia. 8

o estado de natureza, ao contrario, e representado comourn estado hist6rico por Rousseau, que na primeira parte doDiscours sur l'origine de l'inegalite (Discurso sobre a origemda desigualdade), de 1753, identifica 0 estado de naturezacom 0estado primitivo da humanidade, inspirando-se, comose sabe, na literatura sobre 0 "born selvagem". Mas trata-sede uma hist6ria imaginaria que tern uma funcao exemplar, namedida em que deve servir para demonstrar a : decadencia dahumanidade a partir do momenta em que esse saiu desse es-tado para entrar na "sociedade civil", bern como a necessi-

dade de uma renovacao das instituicoes que nao pode andarseparada de uma renovacao moral. Enquanto os autores ante-riores distinguem nitidamente entre a hipotese racional e 0

dado historico, Rousseau eleva 0dado historico (0que ele crepoder ser considerado como urn dado hist6rico) a uma ideiada razao. 0 que para os autores precedentes e somente urndoscasos de estado de natureza real, e considerado por Rous-seau como 0 caso exemplar, como 0 estado de natureza porexcelencia. Mas tambem em Rousseau, nao diferentementedos outros, 0 estado de natureza e ao mesmo tempo urn fatohist6rico e uma ideia reguladora, ainda que nele - bern mais

do que em seus predecessores - fato historico e ideia regula-dora sejam fundidos conjuntamente.

b) A questao sobre a qual se detiveram freqiientementeos criticos do direito natural - se 0estado de natureza e urnestado de guerra ou de paz - e tambem ela, em grande parte,uma questao irrelevante e que leva a equivocos quando se quercompreender a peculiaridade do modelo jusnaturalista. Comefeito, se se acredita poder contrapor uma visao. otimista a

uma pessimista do estado de natureza, nao se conseguira ja-mais compreender por que uma das caracteristicas comuns atodos osjusnaturalistas e a tese de que e preciso sair do estadode natureza e por que e iitil (Hobbes e Locke) ou necessario(Spinoza) ou algo imposto pelo dever (Kant) instituir 0estadocivil: se, por estado pacifico, entende-se urn estado born en-

quanta contrap osto ao estado de guerra considerado comomau.,e 0 estado de natureza e urn estado pacifico, 0 estadocivilnao teria jamais nascido, ou, pelo menos, deveria ser con-siderado nao como 0 estado da razao, mas como 0 estado daestultice humana.

A ideia de que 0 estado de natureza e urn estado de guer-ra aparece como 0 fundamento da construcao hobbesi~na: 0

primeiro capitulo doDe cive e dedicado a expor todos os argu-mentos em favor da tese de que 0 estado de natureza e urnestado de guerra. Hobbes foi seguido por Spinoza, 0 qual- com uma expressao hobbesiana - afirmou que os ho-

mens, sendo sujeitos a paixoes, "sao entre si naturalmenteinimigos" . 9

Com uma refutacao direta, mas na verdade forcada, dealguns argumentos de Hobbes, Pufendorf afirmou que - porpoder ohomem no estado de natureza escutar nao s6 a pai-xao, mas tambem a razao, "que nao the sugere certamenteadequar-se somente aos pr6prios interesses" - esse estado e

urn estado de paz. 10 Uma afirmacao desse tipo, por outrolado, nao tern nenhum efeito sobre a sequencia do raciocinioque leva Pufendorf, como Hobbes eSpinoza, a fazer com queoshomens saiam do estado de isolamento e busquem viver em

sociedade. Se 0estado de natureza e por urn lado, urn estadode paz, ele e, por outro, urn estado de infelicidade e, portanto,urn estado negativo, por causa de duas caracteristicas naturaise contraditorias do homem, que silo 0 amor de si (precisa-mente aquele amor de si que Rousseau julgara como positivo edistinguira do amor propriol), que 0 impele a preocupar-seexclusivamente com a propria conservacao, e a fraqueza (in-

firmitas), ou seja, a insuficiencia das proprias forcas, que 0

(6) J. .Locke, Two Treatises of Government ( l960), Segundo Tratado, § 14.

(7) Ibid.,§9.

(8) Ibid., §225.

(9) Spinoza, Tractatus politicus, cap. II , §14.(IO) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. II, cap. II, § 9, t rad. it. cit.,

p.79.

 

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54 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 55

obriga a unir seus proprios esforcos aos dos outros. Desde Pla-tao, a razao fundamental pela qual os homens se reunem emsociedade foi sempre a necessidade da divisao do trabalho. 0tema fora reexumado tambem por Spinoza no Tratado teolo-

gico-polltico (1670), publicado dois anos antes do tratado dePufendorf: "(... ) Seos homens nao se prestassem socorro rrni-

tuo, faltariam tanto 0 tempo quanta a capacidade de fazeremo que lhes e possivel em vista do proprio sustento e da propriaconservacao, Com efeito, nem todos sao igualmente habeis emtudo; nem cada urn seria por si so capaz de obter aquilo deque individualmente tern mais necessidade". 11 Pufendorf re-toma essa ideia quase com as mesmas palavras: "( ... ) para teruma vida comoda, ha sempre necessidade de recorrer a ajudade coisas e de homens, ja que cada urn nao dispoe de energia ede tempo para produzir, sem a colaboracao alheia, 0 que emais util e sumamente necessario" .12

Como se ve, 0 problema relevante para explicar a origem

da vida social nao e tanto se 0estado de natureza e pacifico oubelicoso, mas see urn estado positive ou negativo. Para Pufen-dorf, esse estado - mesmo sendo urn estado de paz - con-tinua a ser urn estado negativo, ainda que por uma razao(a miseria, a indigencia, a pobreza) diferente da principal ra-zao adotada por Hobbes (digo "principal", porque 0 estadode natureza hobbesiano e, alem de violento, tambem misera-vel). Mas precisamente 0 que importa nao e que ele nao sejaurn estado de guerra, mas que seja de tal ordem - mesmo naosendo urn estado de guerra - que nao permite a sobrevivenciaeo desenvolvimento civil da humanidade.

Tambem Locke descreve 0 estado de natureza como urnestado de paz e, para afastar ate mesmo a menor suspeita deser hobbesiano, declara-o expressamente: "Temos aqui clara-mente a diferenca entre 0 estado de natureza e 0 estado deguerra, os quais, embora alguns os tenham confundido, saotao distintos entre si como 0 sao urn estado de paz, bene-volencia, assistencia e conservacao reciproca, e urn estadode hostilidade, malvadeza, violencia e destruicao recipro-

ca"." Mas, enquanto estado de paz universal, e tao hipoteticoquanto 0estado universal de guerra de que fala Hobbes. Hipo-tetico no sentido de que seria urn estado de paz se os homensfossemtodos e sempre racionais: so0homem racional obedeceas leisnaturais sem necessidade de ser a isso coagido. Mas, jaque oshomens nao sao todos racionais, as leis naturais podemser violadas; e, visto que de uma violacao nasce outra, pela au-sencia no estado de natureza de urn juiz super partes, 0estadodenatureza apresenta continuamente 0risco de degenerar numestado de guerra, ou melhor, "0estado de guerra, uma veziniciado, prossegue". 14 Assim, 0estado de natureza e hipote-tieamente urn estado de paz, mas se torna de fato urn estadode guerra: e superfluo acrescentar que nao do estado hipote-tieo, mas do estado de fato e que nasce a exigencia da socie-dade civil. Nao muito diversa e a posicao kantiana: na reali-dade, Kant nao se coloca expressamente 0 problema de saberse 0 estado de natureza e belicoso ou pacifico, mas - cha-

mando-o de "provisorio", em contraste com 0 estado civil,que chama de "peremptorio" - mostra c1aramente que 0 es-tado de natureza e urn estado incerto, instavel, inseguro,desagradavel, no qual "0homem nao pode continuar a viverindefinidamente" . 15

A posicao de Rousseau e urn pouco mais complexa, por-que sua concepcao do desenvolvimento historico da humani-dade nao e diadica - estado de natureza ou estado civil -,como no caso dos escritores precedentes, onde 0 primeiro mo-mento e negativo e 0 segundo positivo, mas triadica - estadode natureza, sociedade civil, republica (fundada no contrato

social) -, onde 0momenta negativo, que e 0 segundo, apa-rece colocado entre dois momentos positivos. 0 estado ori-

(11) Spineza, Tractatus theologico-politicus, cap. V.

(12) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. II, cap. III , § 9, t rad. i t. c it .,

p. 111.

(13) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, § 19.

(14) Ibid., §20.

(15) Acorrespondencia da distincao entre estado denatureza e estado civilcom

a distincao entre estado de direito provisorio e estado de direito peremptorio e funda-mental para compreender a relacao entre estado denatureza e sociedade civilem Kant.Na Rechtslehre (que e a primeira parte daMetaphysik derSitten, 1797), ele retoma aquestao varias vezes: no § 9 , a proposi to do "rneu" e do "teu" exteriores; no § IS,a proposito dotitulo deaquisicao: no§44, a proposito da constituicao do Estado. Paraurn comentario desses trechos, remeto ao meu curso sobre Direito e Estado no pensa-mento deEmanuel Kant, ed. brasileira, Brasilia, Editora da Universidade de Brasilia,

1984. pp. 94ess.

 

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56 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA pOLlrICA MODERNA 57

ginario do homem era urn estado feliz e pacifico, ja que 0 ho-mem - nao tendo outros carecimentos alem daqueles quepodia satisfazer em contato com a natureza - nao se via nodever nem de se unir nem de combater os proprios semelhan-tes. Mas era urn estado que nao podia durar; por uma serie deinovacoes, a principal das quais foi a instituicao da proprie-

dade privada, ele degenerou na sociedade civil (entenda-se:civilizada), onde ocorre 0 que Hobbes imaginara ocorrer noestado de natureza, ou seja, a conflagracao de conflitos conti-nuos e destrutivos pela posse dos bens que 0progresso tecnicoe a divisao do trabalho haviam aumentado .enormemente.Quando Rousseau escreve que "as usurpacoes dos rieos, 0

banditismo dos pobres, as paixoes desenfreadas de todos" ge-ram "urn estado de guerra permanente", faz eco a Hobbes: 16na realidade, 0 que Rousseau critica em Hobbes nao e terformulado aideia de urn estado de guerra total, mas de te-loatribuido ao homem de natureza e nao ao homem civil. Tam-

bern para Rousseau, portanto, e perfeitamente irrelevante aquestao de saber se 0 estado de natureza e urn estado de pazou de guerra. 0 que importa e que, tambem para ele, comopara todos osjusnaturalistas, 0estado que precede 0estado derazao e urn estado negativo e que, portanto, 0estado de razao,o estado no qual a humanidade devera encontrar a solucao deseus proprios problemas mundanos, surge como antitese aoestado precedente: a diferenca entre Rousseau e os outros eque, para esses, 0estado precedente e 0 estado de natureza -seja esse estado de guerra efetiva (Hobbes e Spinoza) ou deguerra potencial (Locke e Kant), seja urn estado de miseria

(Pufendorf) -, enquanto para Rousseau e a "societe civile".c) Se 0ponto de partida de uma teoria racional da socie-

dade e do Estado deva ser 0 individuo isolado ou associado, 0individuo enquanto tal ou alguma forma de sociedade, foi algorepetidamente discutido no interior da propria escola do di-

reito natural. Mais ainda do que a solucao dada as duas alter-nativas anteriormente examinadas, a solucao do problema desaber se0estado de natureza era urn estado associal, ou seja,composto de individuos sem uma necessaria relacao entre si,ou social, serviu como criterio de discriminacao das varias ten-dencias de filosofia politica durante 0 seculo XVIII. Em con-

traste com os defensores do direito natural individual, quehoje poderiamos chamar de individualistas, os outros - osdefensores do direito natural social - foram chamados, ja noseculo XVIII, de "socialistas";" Na historia do direito natu-ral, 0 kantiano Hufeland chama Pufendorf e seus seguidoresde Socialisten, porque "fundam 0 direito natural na socie-dade" . 18Essa denominacao durou muito tempo e e ainda hojeempregada por Stahl, na historia da filosofia do direito, antesmencionada, quando ja agora 0 termo "socialista" assumiuurn significado diverso. 19

Mas tambern essa distincao devehoje ser considerada cri-

ticamente, ou seja, fora das preocupacoes de ortodoxia reli-giosa que levaram a encarar osescritores nao "socialistas", ouseja, os que haviam feito remontar as origens da humanidadea urn estado de "selvageria" (basta recordar as acusacoes diri-gidas contra Vieo por causa do seu "estado ferino"), como re-probos. Se por "socialistas" se entendem os que continuarama transmitir a concepcao aristotelica do homem como animalnaturalmente social - ou movido, como afirmara Grocio,pelo appetitus societatis -, nenhum dos escritores que contri-buiram para formar e desenvolver 0 modelo jusnaturalista

(16) I.-I. Rousseau, Discours sur Torigine de l'inegalite parmi les hommes(1754), que cito de Rousseau, Scritti politici, ed. de P. Alatri, Turim, Utet, 1970,p. 333. "Entre 0 direito do mais forte e 0 direito do primeiro ocupante, surgia urneonflito permanente, queterminava somente com0furor deeombates e assassinatos. Asociedade naseente eedia lugar aomais horrendo estado de guerra" (p. 333). Mais umavez, 0 estado de guerra e a passagem obrigatoria para 0 nascimento do Estado: maisuma vez,0Estado e a antitese doestado deguerra.

(17) F. Venturi, "Socialisti e socialismo neU'Italia del Setteeento", in Rivista

Storica Italiana, 1963,pp. 129-40.(18) G. Hufeland, Lehrsiitze des Naturrechts, que cito da 2:' ed. , lena, C_H.

Cuno's Erben, 1795(1:'ed., 1790).A denominacao de"socialistas" dada a Pufendorf e

seusseguidores eneontra -seno §59, no inicio de uma breve historia do direito natural,na qual e proposta uma periodizacao, diseutida tambem pelo nosso Rosmini, em Vor-zeit (epoca dospreeursores), Unbestimmete Zeit (epoca deformacao), que eompreende

ostres grandes, Grocio, Pufendorf e Thomasius, e Bestimmte Zeit (epoca da eseolaformada), de Thomasius para a frente. De Thomasius, Hufeland diz: "Inicialmente

amigo dos socialistas, tornou-se depois seu primeiro mais importante adversario"

(§60).

(19) F. Stahl, DiePhilosophie des Rechts nach geschichtlicher Ansicht: p~bli-eada em dois volumes, respeetivamente em 1830 e 1837. Na p. 170 da ed. italiana

(Turim, 1855),fala-se deThomasius "socialista".

 

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58NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E EST ADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 59

pode ser caracterizado com essa denominacao. Ne.m s~querPufendorf. A necessidade que tern 0 homem de viver Juntocom outros nao deriva, em Pufendorf, como em Grocio, deuma tendencia natural para a sociedade, mas - como vimos_ de duas concepcoes objetivas, 0 amor de si e a fraqueza,que fazem com que a vida social apareca como desejavel pa~ao homem. Assim explicada, a vida em sociedade aparece matscomo 0produto de urn calculo racional, de urn interesse, doque de urn instinto ou de urn appetitus; tambem por isso, Pu-fendorf deve ser considerado, mais uma vez, como seguidor deHobbes e nao deGrocio. De resto, para todos os escritores ateagora examinados, 0estado de natureza e 0estado cujo prota-gonista e 0 individuo singular, com direitos e deveres, cominstintos e interesses; ou seja, em relacao diretamente com anatureza, da qual retira osmeios para sua propria sobreviven-cia, e so indiretamente, esporadicamente, com os outros ho-mens. 0 dado originario, urn dado diante do qual nao se pode

imaginar nada demais adequado a uma concepcao individua-lista da sociedade, nao e 0appetitus societatis, mas 0 instintode conservacao, 0conatus sese conservandi de Spinoza. 0 ins-tinto de conservacao move tanto 0 homem de Hobbes e deSpinoza quanto 0 de Pufendorf e de Locke. Num feliz isola-mento em face dos outros homens transcorre a vida do homemnatural de Rousseau, movido exclusivamente pelo amor de sique e, como seIenoEmilio, "sempre born", e e 0meio atravesdo qual 0 homem satisfaz 0 carecimento fundamental da pro-pria conservacao. Fato individual e 0 ius in omnia, do qualpartem tanto Hobbes quanto Spinoza. E fruto do esforco inte-

ligente ou capcioso do individuo e 0 instinto fundamental doestado de natureza segundo Locke, e da sociedade civil se-gundo Rousseau, que substitui 0est~do de natureza co~o ~~-mento antitetico do Estado: a propnedade. Kant faz coincidiro direito natural (contraposto ao direito civil) com 0 direitoprivado (contraposto ao publico);" 0 direito natural-privado

e essencialmente, se nao exc1usivamente, 0 direito que regulaas relacoes entre os individuos: nao exc1usivamente, ja queregula tambem aquela forma primitiva e natural de socie-dade que e a familia, bern como as associacoes privadas.

o principio individualista em que se inspiram as teoriasjusnaturalistas nao exclui que exista urn direito natural social,ou seja, urn direito das sociedades naturais, como a familia, e,por conseguinte, que existam sociedades diversas da sociedadecivilou politica. 0 que seexc1uie que a sociedade politica sejaconcebida como urn prolongarnento da sociedade natural: asociedade politic a e uma criacao dos individuos, e 0 produtoda conjuncao de vontades individuais. A familia faz parte doestado de natureza, mas nao 0 substitui. A sociedade politicasubstitui 0 estado de natureza, nao 0 continua, nem 0 pro-longa, nem 0 aperfeicoa. Os dois termos da construcao per-manecem 0 individuo, cujo reino e 0 estado de natureza, e 0Estado, que nao e uma sociedade natural. As sociedades natu-

rais, ou seja, nao-politicas, existem; e ninguem pode cancela-las da historia: mas, no contraste principal entre individuo eEstado, elas desempenham urn papel secundario, ao contrariodo que ocorre no modelo tradicional, onde tern urn papel pri-mario. E verdade, Hobbes admite que, numa sociedade pri-mitiva, a familia - a "pequena familia" - assuma 0posto doEstado;" e que, de fato, na evolucao da sociedade do pequenogrupo familiar para 0grande Estado, existam Estados, comoas monarquias patrimoniais, que assumem 0 aspecto de fami-lias ampliadas; 22 e e igualmente verdade que Locke admiteque "os pais de familia, por uma mudanca insensivel, torna-

ram-se tambem os monarcas politicos", 23 e que, na origemdos tempos, os primeiros governos eram estados monarquicos

(20) Sobre esse pon to fundamenta l, lemos na Metaphysik der Sitten a seguinte

passagem: "A divisao do dire ito natural ~ao. reside ( . .. ) ~a ~isti~~ao en~re ~ireito

natural e di re ito scc ief, mas naquela entr e d ir eit o na tu ra l e d ir ei to c iv il , 0pnmeiro dos

quais e chamado de direito privado e 0 segun~o, de direito pub!i~o. E: com efei!?

ooposto do estado de natureza nao e 0estado SOCial,mas 0est ado civi l, po is pode mUJ,0

bern exi stir soc iedade no estado denatu reza , mas nao uma sociedade civil, que garanteo meu e 0 teu pormeio de leis piiblicas" (ed. cit., p. 422). Dessa passagem, na qual

Kant espec ifica que a contraposicao fundamenta l nao e entre direito individual e

direi to social, mas ent re direi to natural (aqui incluido 0direito das sociedades naturais,

como a famil ia e as associacoes contratuais) e direi to civil (ou direi to da sociedade civil ,

que nao deve ser con fundida com as sociedades natu ra is ), r esuIt a c1arament e por que

o di re ito na tu ra l coincide com 0 d ir ei to pr ivado , e 0 di re it o pos iti vo nasce com 0 di-

reito publico.

(21) Hobbes, Leviathan, cap. XVII.(22) Hobbes, De cive, IX, 10; Leviathan, cap. XX.

(23) Locke, Two Treatises on/Government, Segundo Tratado, §76.

 

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60 NORBERTO BOBB10

na medida em que 0 proprio pai era reconhecido como rei. 24

Mas e igualmente claro que, na argumentacao de Hobbes e deLocke, e preciso distinguir entre a descricao do que ocorreu defato em certas circunstancias e a proposta de uma nova formade legitimacao politica. Desse ponto de vista, ou seja, dopontode vista do fundamento de urn novo principio de legitimidade,

nem a sociedade domestic a nem a sociedade senhorial ofere-cernurn modelo valido para a sociedade politica,

o contrato soc ia l

o principio de legitimacao das sociedades politicas e

exclusivamente 0 consenso. 0 tema foi colocado com a ma-xima precisao por Locke. A melhor chave de leitura da segun-

da parte dos ja citados Two Treatises of Government (Doistratados sobre 0governo), que tern como subtitulo, e e conhe-cida como, An Essay concerning the true Original, Extent andEnd of Civil Government (Ensaio sobre a verdadeira origem,extensiio e finalidade do governo civil), e a que nos permiteinterpreta-lo como urn longo e denso raciocinio dirigido nosentido de refutar todos os que confundiram a sociedade poli-tica com a sociedade domestics e corn a sociedade senhorial,bern como de dernonstrar que 0que distingue as tres formasde sociedade e 0 diferente fundarnento da autoridade e, por-tanto, da obrigacao de obediencia, ou seja, 0 diverso principio

de legitirnidade. Desde as prirneiras paginas, Locke deixa cla-ro 0seu proposito, quando escreve que "0poder de urn rnagis-trado sobre urn sudito pode se distinguir daquele de urn paisobre os filhos, de urn senhor sobre 0 servo, de urn rnaridosobre a rnulher, e deurn dono sobre0seu escravo"; por isso, eprecise rnostrar "a diferenca entre 0governante de urna socie-dade politica, 0 pai de urna familia e 0 capitao de urna ga-lera" .1Tres sao os tipos classicos de fundarnento das obriga-coes, como bern 0 sabern os juristas: ex generatione, ex de-licto, ex contratu. A obrigacao do filho de obedecer ao pai e a

(24) Ibid., §107.(1) Ibid.,§2.

 

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6 2 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 63

mae depende do fato de que foi por eles gerado, ou da natu-reza; a obrigacao do escravo de obedecer ao dono depende deurn delito cometido, ou e 0castigo por uma culpa grave (comoa deter travado uma guerra injusta e te-la perdido); a obriga-r;aodo siidito de obedecer ao soberano nasce do contrato. Issosignifica dizer que 0governante, ao contrario do pai e do dono

de escravos, necessita que sua propria autoridade obtenhaconsentimento para que seja considerada como legitima. Emprincipio, urn soberano que governa como urn pai, segundo 0

modelo do Estado paternalista, ou, pior ainda, como urn se-nhor de escravos segundo 0modelo do Estado despotico, nao eurn governo legitimo e os siiditos nao sao obrigados a lhe

obedecer.Embora a teoria do contrato social fosse antiga e ampla-

mente utilizada pelos legisladores da Idade Media, somentecom osjusnaturalistas ela se torna uma passagem obrigatoriada teoria politica; tanto que sera comum a todos os criticos do

direito natural, de Hume a Bentham, de Hegel a Haller, deSaint-Simon a Comte, a refutacao desse estranho e irnitil ex-pediente (que dois autores tao diferentes, como Bentham eHaller, urn independentemente do outro, chamam de "qui-mera"). Entre os escritores antigos, haviam se referido a urnpossivel e, em alguns casos, efetivamente ocorrido fundamentocontratualista do Estado tanto Platao 2 quanto Cicero, 0 qualcolocara na boca de Philus, porta-voz das ideias ceticas sobrea justica, a seguinte afirmacao que hoje diriamos de saborhobbesiano: Sed cum alium met, et homo moninem e ordoordinem, tum quia nemo sibi confidit, quase pactio lit inter

populum etpotentes, ex quo existit id quod Scipio laudabat,coniunctum civitatis genus". 3 0 acordo ao qual tanto Plataoquanto Cicero se referem e aquela especie de pacto que os es-critores medievais iriam chamar de pactum subiectionis (so-

(2) "Portanto, acontece 0 seguinte: os reis e ospovos de tres reinos (Esparta,

Argos, Messina), com base nas leis estabelecidas em comum para regular as relacoes

entre governantes e governados, juraram-se reciprocamente, uns nao tornarem maisgravoso 0 seu poder com 0 passar dos tempos e com a ampliacao de suas familias, os

outros jamais derrubarem 0poder regioe naopermitirem queoutros tentassem faze-lo,enquanto osreis observassem essas condicoes" (Platao, Leis, 684a).

(3) Cicero, De republica, III, 13.

bre 0qual falaremos adiante). Mas, na tradicao sofistica, quesublinhara de modo particular e polemico 0 carater conven-cional das leis e dos governos e, portanto, do justo e do in-justo, e depois na tradicao epicuriana, 0 acordo do qual nascea vida social fazia pensar no que iria ser chamado entao depactum societatis, como sepode ler nesta celebre passagem de

Epicuro: "A justica nao e algo que existe em si, mas somentenas relacoes reciprocas e sempre de conformidade com os 10 -

cais onde se estabelece urn acordo para nao provocar nem re-ceber dano". 4. Essa diferente interpretacao do acordo origi-nario demonstra como era pouco elaborado 0 chamado con-tratualismo antigo em comparacao com 0 moderno. Para 0

contratualismo medieval, mais importante fora a famosa pas-sagem de Ulpiano sobre a lex de imperio (ou seja, sobre a leida qual 0 imperador derivava a autoridade de fazer leis), se-gundo a qual 0 que 0 principe delibera tern forca de lei, por-que 0populus conferiu-lhe 0 poder de que originariamente

somente ele, 0 povo, era titular.5

Mais uma vez, se a declara-r;aocontida nessa passagem podia ser interpretada como urndocumento da origem contratualista da autoridade, 0pacto aque ela se refere e 0pacto de submissao, cuja condicao neces-saria e objetiva e a existencia dopopulus como universitas jaconstituida e independentemente do modo como foi consti-tuida. Do reconhecimento preliminar de uma relacao entrepopulus e princeps, de resto, resultavam duas interpretacoescontrapostas do conteiido dessa relacao, conforme a atribui-cao da autoridade ao principe fosse entendida como uma alie-nacao total e, portanto, nao somente do exercicio mas tam-

bern da titularidade do poder (0 translatio imperii), ou comouma concessao limitada ora no tempo ora tambem no objeto,segundo a qual 0 principe recebia do povo, de quando emquando, 0 exercicio mas nao tambem a titularidade do poder(ou concessio imperii).

Tambem 0 tema do contrato social e apresentado pelosdiversos autores com algumas variacoes, das quais as duas

(4) Epicuro, Ratae sententiae, XXXIII.(5) "Quod principi placuit legishabet vigoremutpote cum populus eiet in eum

suum imperium et potestatem conferat" (D. 1,4, I).

 

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64 NORBERTO BOBBIO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITIC A MODERNA 65

mais importantes referem-se a modalidade de realizacao (suba) e 0conteiido (sub b).

E menos importante do que para 0 estado de natureza a

questao relativa a historicidade ou nao do ato. Somente Lockebusca provar que nada obsta a que se possa considerar 0 con-

trato originario como urn fato historico." Mas Locke tern de

refutar urn adversario, Filmer, que defendeu a legitimidadeda monarquia absoluta recorrendo a his tori a (ainda que a

uma historia sagrada, que nada tern a ver com a historia pro-

fana). De resto, tambem para Locke 0 contrato serve princi-

palmente como instrumento necessario a finalidade de permi-

tir a afirmacao de urn certo principio de legitimacao (a legiti-

macae baseada no consenso) contra outros principios, Se a

unica forma de legitimacao do poder politico e 0 consenso da-

queles sobre quem esse poder se exerce, na origem da socie-

dade civil deve ter existido urn pacto, se nao expresso, pelo

menos tacite, entre os que deram vida a tal sociedade. Mais

do que urn fato hist6rico, 0contrato e concebido como umaverdade de razao, na medida em que e urn elo necessario da

cadeia de raciocinios que corneca com a hipotese de individuos

livres e iguais. Se individuos originariamente livres e iguais se

submeteram a urn poder comum, isso nao pode ter ocorrido a

nao ser por meio de urn acordo reciproco. Nesse sentido, 0

contrato - alem de urn fundamento da legitimacao - e tam-bern urn principio explicativo. A diferenca entre 0 contrato

como fato historico e 0 contrato como fundamento de legiti-

macae e clara em Rousseau, onde 0 pacto entre ricos e pobres

que deu historicamente origem ao Estado, tal como e descrito

na segunda parte do Discurso sobre a desigualdade, e urnpacta urdido com 0 engano (e portanto, a rigor, ilicito) , 1en-

quanta 0 "contrato social" atraves do qual 0 homem corrom-

pido da sociedade civil deveria reencontrar a felicidade, ou

pelo menos a pureza originaria, e pura ideia reguladora da

razao, Como ideia reguladora da razao, finalmente, 0 con-

trato originario e dec1aradamente acolhido por Kant, que nao

se preocupa absolutamente em saber se 0 Estado teve ou naocomo fundamento proprio urn acordo entre os siiditos. Ao

contrario, ele considera que a origem do poder supremo e para° povo que esta submetido a .!le algo "imperscrutavel" e, por-

tanto, nao pode se tornar objeto de investigacao e de contro-

versia, a nao ser com grave perigo para a salvacao do Estado. 8

o que importa e 0 soberano dirigir 0Estado como se seu poderest ivesse fundado num contrato originario e ele devesse pres-

tar contas do modo como 0 exerce aos seus siiditos. No ensaio

Ueber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtigsein, taugt aber nicht fur die Praxis (Sobre 0 ditado comum:Isso pode ser justo em teoria, mas niio vale na pratica), de

1793, Kant - depois de ter reconhecido a existencia de urncontrato originario, "que e 0 unico no qual se pode fundar

uma constituicao civil universalmente juridica entre os ho-

mens e se pode constituir uma comunidade" - nega que seia

necessario pressupo-Io como urn fato historico, dado que, en-

quanta tal, como ele especifica, tal contrato nao seria sequer

possivel: e afirma, ao contrario, que ele tern sua realidade

"como simples ideia da razao", no sentido de que a ideia do

contrato obriga "todo legislador a fazer leis como se essas de-

vessem derivar da vontade comum de todo urn povo e a consi-

derar todo siidito, enquanto ele se quer cidadao, como se ti-

vesse dado 0 seu consenso a uma tal vontade". 9 Nesse sentido,

(6) Locke. Two Treatises. Segundo Tratado, §100 e ss. Para afirmar a reali-dade hist6rica do contrato originario, Locke se serve de dois argumentos: a) dessescontratos nao se tern geralmente noticia porque os povos nilo conservaram noticias desuas origens; b) para alguns Estados, como Roma e Veneza, de cuja origem se tern

noticia, a origem contratual e certa.(7) Trata-se da celebre passagem na qual Rousseau explica a origemdo Estado,

ou melhor, da relacao de sujeicao politica, nolongo periodo hist6rico que esta entre 0

fimdo estado de natureza e 0 inicio da nova comunidade fundada sobre 0 contratosocial. imaginando que osricos conseguiram convencer ospobres a se submeterem aopoder dosprimeiros, mostrando osperigos da desuniilo(ed, cit., p. 334). E nesse pontoque Rousseau escreve: "Todos correram ao encontro de suas cadeias, acreditando

garantirem a liberdade". Essa afirmacao constitui 0 ponto de par tida do ContratoSocial. que comeca com a nao menos celebre frase: "0 homem nasceu livre; e emtoda

parte seencontra em cadeias".(8) "A origem dopoder superior e para 0povo, que esta submetido a ele, do

ponto de vista politico. algo imperscrutavel; ou seja, 0sudito nao deve especular sutil-

mente sobre essa origem, como se se tratasse deuma correta duvida com relacao aobediencia que sedevea talpoder (ius controversum)" (Metaphysik derSitten, Rechts-lehre, §49). A partir do momento em que a origem do sumo poder e imperscrutavel,a busca dasorigens deurn eventual contrato originario por parte do siidito, que nilo ternodireito defaze-Io, nao s6 e perfeitamente inutil, mas tambem criminosa, sefeita coma intencao de "mudar depois pela forca a constituicao atualmente existente" (§ 52).

(9) Kant, Scrittipolitici, ed. cit., p. 262.

 

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66 NORBERTO BOBBIOSOCIEDADE E ESTADO NA FlLOSOFIA pOLITICA MODERNA 67

o contrato originario desempenha sua real funcao, que e a deconstituir urn principio de legitimacao do poder que, comotodos os principios de legitimacao (basta pensar no principioda origem divina do poder), nao tern necessidade de ter deri-vado de um fato realmente ocorrido para ser valido.

a) Segundo uma opiniao comum dos escritores de direito

publico, sao necessarias duas convencoes sucessivas para darorigem a urn Estado: 0pactum societatis, com base no qualurn certo .numerc de individuos decidem de comum acordoviver em sociedade; e 0pactum subiectionis, com base no qualos individuos assim reunidos se submetem a urn poder co-

mum. 0 primeiro pacto transforma uma multitudo em urnpopulus; 0segundo, umpopulus numacivitas.

Pufendorf e a tratadistica de escola seguem a opiniao co-mum (acolhida ainda em final do seculo XVIII por AnselmFeuerbach no pequeno tratado juvenil Anti-Hobbes, que e de1798).10 Segundo Pufendorf, quando uma multidao de indivi-

duos quer proceder a instituicao de urn Estado, deve antes demais nada estipular entre siurn pacto, "com 0qual manifestea vontade de se unir em associacao perpetua", e depois, numsegundo momento, apos ter deliberado qual devers ser a for-ma de governo, se monarquica ou aristocratic a ou democra-tica, deve chegar a "urn novo pacto para designar aquela pes-soa ou aquelas pessoas as quais deveser confiado 0governo daassociacao"."

Urna das inovacoes de Hobbes foi a de eliminar urn dosdois pactos: 0pactum unionis, idealizado por Hobbes, com

base no qual cada um dos individuos que compoem uma mul-

tidao cede 0direito de autogovernar-se, que possui no estadode natureza, a urn terceiro (seia uma pessoa ou uma assem-bleia), contanto que todos os outros facam 0mesmo. Tal pactoe ao mesmo tempo urn pacto de sociedade e urn pacto de sub-

(10) P. J. A. Feuerbach, Anti-Hobbes oder Ueber die Grenzen der hoschtenGewalt und das Zwangsrecht der Burger gegen den Oberherm, Erfurt, Henning,

1798 ; ed. italiana, Milio, Giuffre, 1972, pp. 26 e 29 . Para um comentArio mais pro-fundo, cf.M. A. Cattaneo, Anselm Feuerbacb filosofo e giurista, Millo, Comunita,1970 .

(11) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L.VII, cap. 2, §§ 7e 8, trad. cit.,

pp.164-65.

missao, ja que os contratantes sao os individuos singularesentre si e nao 0populus, por urn lado, e 0 futuro princeps,por outro, urn pacto de submissao na medida em que aquiloque os individuos acordam entre si e a instituicao de urn podercomum ao qual decidem se submeter. Por outro lado, ja emHobbes se anuncia a diferenca, que sera gravida de conse-

qiiencias, entre 0 pacto originario da forma democratica degoverno e 0das demais formas de governo (aristocratica e mo-narquica). Num trecho doDe cive, ele diz: "Urn Estado demo-cratico nao se constitui em virtude de pactos efetuados entreos individuos singulares, por urn lado, e 0 povo, por outro,mas emvirtu de de pactos reciprocos de cada urn com todos osoutros"." Essa ideia e confirmada quando ele diz que 0 Es-tado aristocratico "tern sua origem na democracia" 13 e na mo-narquia, que "deriva da autoridade do povo, na medida emque esse transfere 0proprio direito, ou seja, 0poder soberano,a urn individuo", 14 Essas passagens deixam claramente en-

tender que, enquanto para as formas aristocratic a e monar-quica sao necessaries os dois pactos (nao so 0 de sociedade,mas tambem 0 de submissao), ou urn pacto complexo, cons-tituido por urn contrato social seguido por uma doacao (assimHobbes interpreta, noDe cive, 0pacto de uniao), para a for-ma democratic a basta um unico pacto, ou 0 pacto de socie-dade, ja que - uma vez constituido 0 povo atraves do con-trato social - nao e mais necessario urn segundo pacto desubmissao, pois esse seria urn pacto entre 0 povo e 0 povo e,como tal, perfeitamente imitil, Dessa diferenca e da dificul-dade que dela deriva, Pufendorf tivera plena consciencia: ele

observou que, com relacao a forma de governo democratico,"nao resulta muito-c1aramente a estrutura do segundo pacto,ja que se trata das mesmas pessoas que, sob dois diversos as-pectos, comandam e obedecem". Mas ele resolvera a dificul-dade observando que, "embora nos Estados democraticos naopareca talvez tao necessario quanto nos outros tipos de Estadoesse segundo pacto, em virtu de do qual 0soberano e os siiditos

(12) Hobbes,Decive, VII, 7.

(13) Ibid., VII, 8. Textualmente: "Aristocratia sive curia optimatum cumsummo imperio, originem habet a Democratia, quae jus suum in illam trasfert".

(14) Ibid., VII, 11.

 

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trocam expressamente uma promessa sobre os respectivos de-veres a cumprir, deve-se imaginar, contudo, que ele ocorreupelo menos tacitamente" .15

A reducao dos dois pactos a urn so foi completada, em-bora de forma menos explicita, em Spinoza: de forma menosexplicita porque, a diferenca de Hobbes (e tambem, como logo

veremos, de Rousseau), Spinoza nao enuncia a formula dopacto, e, alias, no Tratado politico, sua ultima obra, que res-tou inacabada, passa por alto dotema do contrato social (masnao 0exelui, como pareceu a alguns, pois a eIe se refere pelomenos uma vez, no § 13 do Livro II, quando diz: "se doisentram em acordo e conjugam suas forcas, aumentam 0 seupoder"). Mas agora a forma de governo que ele tern vista eexelusivamente a democratica, No celebre capitulo XVI doTratado teologico-polltico, onde expoe pela primeira vez suateoria politica, limita-se a dizer, quando os homens percebe-ram que nao mais podiam viver no estado de natureza: "tive-

ram firmissimamente de estabelecer e acordar entre si regulartodas as coisas segundo 0 ditame da razao". 16 No estado denatureza, todo homem (como, de resto, toda criatura) terntanto direito quanto poder; em outras palavras, cada urn terno direito de fazer 0 que esta em seu poder fazer. Se Hobbesdissera que, no estado de natureza, todo homem tern urn di-reito sobre todas as coisas (ius in omnia), Spinoza especificacorretamente ao dizer que 0homem, no estado de natureza,tern urn direito sobre todas as coisas que estao em seu poder(ius in omnia quae potest), (Somente de Deus, entao, pode-sedizer que tern urn direito sobre todas as coisas, a partir do

momento em que, sendo onipotente, 0 direito sobre tudo 0

que esta em seu poder coincide com 0 direito sobre tudo.) Asconsequencias que derivam dessa condicao natural do homemnao sao diferentes das previstas por Hobbes. Para sair desseestado, a razao sugere a cada homem entrar em acordo comtodos os outros, de modo que "cada qual transfira todo seuproprio poder a sociedade, a qual sera assim a unica a deter 0

sumo direito natural sobre tudo, ou seja, 0 supremo poder, ao

qual cada urn, ou livremente ou por temor dos castigos, de-vera obedecer" . 17

Portanto, tambem para Spinoza, como para Hobbes, em-bora com uma motivacao diversa, que examinaremos melhoradiante, 0pacto social consiste num acordo para a constitui-l;aOde urn poder comum. 0 que, quando muito, distingue

Spinoza de Hobbes e que, enquanto para Hobbes 0 pacto deuniao pode ser configurado como urn contrato em favor de urnterceiro (como diria urn jurista), para Spinoza - que nissoantecipa elaramente Rousseau e 0 conceito tipicamente rous-seauniano da liberdade politica como autonomia - 0propriopacto de uniao preve a transferencia do poder natural de.cadaurn para a coletividade da qual cada urn e parte. Disso resultaque'essa sociedade, "que se define como a uniao de todos oshomens, que tern coletivamente pleno direito a tudo 0que esaem seu poder" pode ser chamada propriamente de "democra-cia". 18 Falando mais adiante da natureza do governo demo-

cratico, que the parece "0 mais natural e 0mais conforme aliberdade que a natureza permite a cada urn" (nao se podeesquecer que, para Hobbes, ao contrario, a melhor forma degoverno e a monarquica), Spinoza define tal governo comoaquele no qual "ninguem transfere a outros seu proprio di-reito natural de modo tao definitivo que depois nao seja maisconsuItado; mas 0 defere a maior parte da sociedade inteira,da qual ele e membro", 19 coneluindo com uma frase, que

enuncia 0micleo do pensamento igualitario, que depois sera 0de Rousseau: "Por esse motivo, todos continuam a ser taoiguais quanto 0 eram no anterior estado de natureza". 20 Rous-

seau elaborara a formula com base na qual "cada urn, unin-do-se a todos, obedece apenas a si mesmo, e permanece naomenos livre do que antes" .21

No fundo, Rousseau nao fez mais do que extrair as extre-mas conseqtiencias da doutrina, ja anunciada por Hobbes,sublinhada por Pufendorf, formulada por Spinoza, segundo a

(15) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. VII, cap. 2, § 8, t rad. c it .,

pp.16S-66.(16) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, ed. italiana, p, 380.

(17) Ibid., p. 382.

(18) Ibid., p. 382.(19) Ibid., p. 384.(20) Ibid., L. I ,cap. 8,p. 735.

(21) Rousseau, Du contrat social, L. I ,cap. 6.

 

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(22) Ibid., L. III, cap. 16.

b) 0 objeto do contrato ou dos contratos e a transferen-cia detodos ou de alguns direitos que 0homem tern no estadode natureza para 0Estado, de modo que 0 homem natural setorna homem civil ou cidadao, As varias teorias contratualis-tas se distinguem com base na quantidade e na qualidade dosdireitos naturais a que 0homem renuncia para transferi-los ao

Estado, ou seja, conforme a remincia e a subseqiiente aliena-cao sejam mais ou menos tais. De todos os jusnaturalistas, 0

que concebeu a alienacao mais totalizante foi Rousseau (doque result a a acusacao que the foi movida de ser defensor deuma "democracia totalitaria"), precisamente 0Rousseau queinicia 0 Contrato Social polemizando com autores como Gro-cio, que consideravam legitimo 0ato pelo qual urn povo alienasua propria liberdade. Mas 0micleo do pensamento de Rous-seau e a distincao entre a alienacao a outros e a alienacao a simesmo. 0 homem e livre somente quando obedece a lei queele mesmo se deu. No estado de natureza, 0homem nao e livre

(embora seja feliz), porque obedece nao a lei, mas aos pro-prios instintos; na sociedade civil, fundada sobre a desigual-dade entre ricos e pobres, entre opressores e oprimidos, 0 ho-mem nao e livre porque certamente obedece a leis, mas a leispost as nao por ele e sim por outros que estao acima dele. 0unico modo para tornar 0homem livre e que ele atue segundoas leis e que essas leis sejam postas por ele mesmo. A transfe-rencia total dos direitos naturais para 0 corpo politico consti-tuido pela totalidade dos contratantes deveservir a essa finali-dade, ou seja, a de dar a todos os membros desse corpo leis

nas quais 0homem natural que setornou cidadao reconheca a

lei que ele mesmo se teria imposto no estado de natureza, senesse estado tivessepodido exercer livremente a propria razao,No momento em que nasce 0 cidadao, cessa inteiramente 0

homem natural. Nao se compreende Rousseau se nao se en-tende que, ao contrario de todos os demais jusnaturalistas,para os quais 0 Estado tern como finalidade proteger 0 indi-viduo, para Rousseau 0 corpo politico que nasce do contratosocial tern a finalidade de transforma-lo. 0 cidadao de Lockee pura e simplesmente 0homem natural protegido; 0cidadaode Rousseau e urn outro homem. "A passagem do estado denatureza para 0 estado civil - afirma ele - produz no ho-mem uma mudanca muito importante, substituindo em sua

qual, na constituicao do governo, quando esse governo e 0

governo dernocratico, ou seja, 0governo do povo sobre 0 povo,basta urn unico contrato, 0 contrato social. A instituicao docorpo politico, na qual Rousseau vea transformacao dos mui-tos "eu" no unico "eu comum", ocorre instantaneamente, jaque a associacao de cada urn com todos os outros e a submis-

sao de cada urn a todos sao urn unico e mesmo ato. 0 podersocial personificado na vontade geral e 0 resultado da modali-dade particular na qual ocorre a associacao, que e ao mesmotempo uniao de todos e submissao de todos ao todo. Ao con-trario de Pufendorf, e de seu predecessor imediato, 0 gene-brino Burlamaqui, cujas ideias ele tern presente, Rousseaunega explicitamente que, para instituir 0governo, seja neces-sario urn novo pacto. No cap. VII da parte II I de 0 ContratoSocial, intitulado significativamente "A instituicao do governonao e urn contrato", explica que a instituicao do governo, oudo poder executivo, nao ocorre mediante contrato pelo menos

por tres razoes: a) porque a autoridade suprema nao podenem ser alienada, nem ser modificada com a criacao de urnpoder ainda que superior; b) porque urn contrato do povo comessa ou aquela pessoa seria urn ato particular e a vontade geralpode se expressar tao-sornente atraves de atos gerais ou leis;c)porque os contratantes estariam entre si em estado de natu-reza, 0 que repugna 0 estado civiluma vez constituido. Dai aconclusao peremptoria: "Nao ha senao urn contrato no Es-tado, 0 da associacao: e este, por si so, exc1ui qualquer ou-tro" .22 Mediante 0 contrato social, nasce - com a vontadegeral- a soberania, perfeita em simesma. Ja que a prerroga-

tiva da vontade geral e fazer as leis, ela estabelece com urn atode soberania, com uma lei - que e urn ato unilateral-, quemdevera governar, ou seja, quem tera 0 titulo para 0exercicio dopoder executivo. Todos podem ver a afinidade entre 0pensa-mento de Rousseau e de Spinoza; mas ninguem deveperder devista, enquanto Spinoza fala hobbesianamente em "poder co-mum", Rousseau fala de "eu comum". Spinoza poe 0 acentono resultado do pacto, em seu aspecto objetivo. Rousseau 0fazno novo sujeito que dele deriva, em seu aspecto subjetivo.

 

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conduta 0 instinto pela justica e emprestando as suas acoes amoralidade de que anteriormente eram privadas". 23

Embora tradicionalmente considerado como teorico doabsolutismo, Hobbes nao defende a tese da rernincia total.Para ingressar na sociedade civil, 0homem - segundo Hob-bes - renuncia a tudo 0que torna indesejavel 0estado de na-

tureza; mais precisamente, renuncia a igualdade de fato quetorna precaria a existencia ate mesmo dos mais fortes; ao di-reito a liberdade natural, ou seja, ao direito de agir seguindonao a razao mas as paixoes; ao direito de impor a razao por si,so, istoe, ao uso da forca individual; ao direito sobre todas ascoisas, isto e, a posse efetiva detodos osbens de que tern forcapara se apropriar. A finalidade em funcao do qual 0 homemconsidera util renunciar a todos esses bens e a salvaguarda dobern mais precioso, a vida, que no estado de natureza tornou-se insegura por causa da ausencia de urn poder comum. En-tende-se que 0 iinico direito ao qual 0 homem nao renuncia,

ao instituir0

estado civil, e0

direito a vida. No momento emque 0Estado nao e capaz de assegurar a vida de seus cidadaospor inepcia, ou em que ele mesmo a ameaca por excesso decrueldade, 0pacto e violado e 0 individuo retoma sua proprialiberdade de se defender como acreditar melhor.

Quando Spinoza, depois de ter explicado as razoes pelasquais os individuos resolveram transferir seu proprio direitosobre tudo ao Estado, afirma que "a suma podestade" que

disso deriva "nao e submetida a nenhuma lei, mas todos de-vern obedecer-lhe em tudo", e tambem que "se nao queremser inimigos do poder constituido e agir contra a razao quesugere defende-lo com todas as proprias forcas, sao obrigados

a executar absolutamente todas as ordens da suprema autori-dade, mesmo no caso de que ela imponha absurdos", 24 eleparece repetir 0 tema tipicamente hobbesiano da obedienciaabsoluta. Mas, apesar das semelhancas literais, a logica emque se inspira 0raciocinio spinoziano e diversa da hobbesiana:os homens saem do estado de natureza, segundo Hobbes, porrazoes de seguranca (a busca da paz); segundo Spinoza, porrazoes de potencia (ja que 0 direito se estende tanto quanto a

potencia: "quanto maior for 0mimero dos que se constituemem unidade, tanto maior sera 0direito que todos juntos ad-quirem")." 0 estado de natureza e urn estado de reciprocasimpotencias e, portanto, de inseguranca, Mas a potencia naoe fim em si mesma; e, quando se toma fim em si mesma, 0Estado se torna despotico. A verdadeira finalidade ultima do

Estado nao e a potencia, mas a liberdade. Finis republicaelibertas est. 26Se, para Hobbes, 0 fim do Estado e tornar os homens

seguros, para Spinoza esse fim e torna-los livres, ou seja, fazerde tal modo que cada homem possa explicitar ao maximo suapropria razao. A primeira condicao para que 0 fim do Estadose realize e que 0 homem, ingressando no Estado, nao' abdi-que do direito de raciocinar: "Ninguem pode obrigar nem serobrigado a transferir para outros (. .. ) sua propria faculdadede raciocinar livremente e de expressar seu proprio juizo sobrequalquer coisa" .i7 Tambern para Spinoza, portanto, a remin-

cia aos direitos naturais nao e total. Enquanto para Hobbes,que considera que a paz e 0 fim do Estado, 0 direito irrenun-ciavel e 0 direito a vida, para Spinoza, que considera a liber-dade como 0 fim do Estado, 0 direito irrenunciavel e 0direitode pensar com a propria cabeca,

Na concepcao de Locke, a transferencia dos direitos natu-

rais e parcialissima. 0 que falta ao estado de natureza paraser urn estado perfeito e, sobretudo, a presenca de urn juiz

imparcial, ou seja, de uma pessoa que possa julgar sobre arazao e 0erro sem ser parte envolvida. Ingressando no estadocivil, os individuos renunciam substancialmente a urn iinicodireito, ao direito de fazer [ustica por si mesmos, e conservamtodos os outros, in primis 0 direito de propriedade, que janasce perfeito no estado de natureza, pois nao depende doreconhecimento de outros mas unicamente de urn ato pessoale natural, como e 0 caso do trabalho. Alias, a finalidade emfuncao da qual os individuos instituem 0 estado civil e princi-palmente a tutela da propriedade (que, entre outras coisas, e agarantia da tutela de urn outro sumo bern que e a liberdade

(23) Ibid., I". III , cap. 8.(24) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, ed. cit., pp. 382-83.

(25) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. I,§15.(26) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, ed. cit., p. 482.

(27) Ibid., p, 480.

 

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pessoal). Se essa e a finalidade, disso resulta que nao somenteo direito a vida, como em Hobbes, nao apenas 0direito a liber-dade de opiniao, como em Spinoza, mas tambem e sobretudoo direito de propriedade e urn direito irrenunciavel: "Por po-der politico - diz Locke, precisamente no inicio do Segundotratado -, entendo 0 direito de fazer leis com penalidade de

morte e, por conseguinte, com toda penalidade menor, para 0

fim de regulamentar e conservar a propriedade"." Pode-sedizer, em sintese, ainda que com certa simplificacao: enquan-to osindividuos de Hobbes e de Spinoza renunciarn a todos osdireitos, exceto urn, os individuos de Locke renunciam a urnso direito, ou seja, conservam todos menos um."

A so cied ad e civil

(28) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §3. Sobre 0significado de "pro-

priedade" em Locke, que ora designa a propriedade em sentido estrito, ora a soma detodos os direitos naturais do individuo (como 0 proprio Locke diz expressamente,§123),detive-me mais amplamente em meu curso universitario sobreLocke e il dirittonaturale, Giappichelli, 1963,pp. 217-18.

(29) Porque hI i pouco citamos Burlamaqui a proposito de Rousseau, considerodecerto interesse recorder a sua conclusao deque, "visto que a Iiberdade civil (isto e ,a Iiberdade que 0homem adquire apenas na sociedade civil) e bern mais importantedo que a I iberdade natu ra l, estamos no dire ito de conclui r que 0 estado civil queproporciona ao homem uma tal Iiberdade e , de todos os estados do homem, 0maisracional e, por conseqasncia, 0verdadeiro estado de natureza" (cf. Principes du droit

delanatureet des gens, Yverdon, 1768, vol. VI, p. SO). Essa conclusao e a inversao datese hobbesiana segundo a qual 0 estado civil e antitetico ao estado de natureza.

Aqui, ao contrario, 0 estado civil termina por se tornar 0 verdadeiro estado natural.A posicao de Locke e intermediaria entre as duas: 0 estado civil nao anula 0 estadonatural nem0dissolveem simesmo.

As divergencias com relacao as modalidades e ao con-teiido do contrato social, e sobretudo essas ultimas, repercu-

tern nas variacoes sobre 0 tema da sociedade civil. Essas va-riacoes podem ser agrupadas em torno dos seguintes proble-mas: a) se 0 poder soberano e absoluto ou limitado; b) se eindivisivel ou divisivel; c) se se pode resistir a ele ou nao. Assolucoes dadas aos tres problemas sao estreitamente ligadas:quem pensa na contraposicao classica entre Hobbes e Lockenao tardara a perceber que, enquanto para Hobbes 0poder e

absoluto, indivisivel e irresistivel, para Locke, ao contrario,e limitado, divisivele resistivel.

a) Se por poder absoluto se entende urn poder sern limi-

tes, nenhum dos escritores de que estou me ocupando defen-

deu, na verdade, 0carater absoluto do poder. Poder absoluto,nesse sentido, e sornente 0de Deus. Ao contrario, a argumen-tacao e outra se se entende por poder absoluto, como se devefazer, legibus solutus. 0 fato de que 0 soberano seja livre dasleis, significa que ele e livre das leis civis, ou seja, das leis queele mesmo tern 0 poder de criar. Nesse sentido, declararn-seexplicitamente em favor do poder absoluto tanto Hobbesquanta Spinoza. E tambem Rousseau: "Assim como a natu-reza da a todo homem urn poder absoluto sobre todos os seusproprios membros, domesmo modo 0pacto social da ao corpopolitico urn poder absoluto sobre todos os seus proprios mem-bros; e e esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral,

 

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toma (... ) 0nome de soberania".' Tambem para Kant, 0 po-der do soberano e, nessa acepcao do termo, absoluto. Quandoele afirma que "0soberano no Estado tern em face dos suditosapenas direitos e nenhum dever (coativo)" ,2 quer dizer que 0

soberano, nao importa 0que Iaca, nao importa a lei que viole,nao pode ser submetido a julgamento. Nao pode ser subme-

tido a julgamento precisamente porque nao e obrigado juridi-camente a respeitar as leis civis. 0 fato de que 0 poder sobe-rano esteja acima das leis civis nao quer dizer que seja urnpoder sem limites: quer dizer que os limites do seu poder saolimites nao juridicos (de direito positivo), mas de fato, ou,pelo menos, sao limites derivados daquele direito imperfeito,ou seja, incoercivel, que e 0 direito natural. (Para quem con-sidera que nao ha outro direito alem do direito positivo, namedida em que atribui ao direito 0 traco caracteristico dacoercibilidade, os limites derivados do direito natural sao,propriamente falando, tambem e1eslimites de fato, ou, pelo

menos, nao se diferenciam, com relacao ao poder de resisten-cia dos suditos, dos limites de fato.)Ninguern melhor do que Spinoza esc1areceu os termos da

questao. "Se por lei se entende 0 direito civil (. .. ) , ou seja, seessas palavras sao entendidas literalmente, nao se pode dizerque 0 Estado seja submetido a leis ou que possa delinqiiir.Com efeito, as regras e os motivos de submissao e de obedien-cia que 0Estado deveconservar para sua propria garantia naosao de direito civil, mas de direito natural ( ... ) ; eo Estado eobrigado a issoapenas pela mesma razao por que 0homem noestado natural e obrigado (. . . ) a evitar se matar: dever esse

que nao implica submissao, mas denota a liberdade da natu-reza humana" .3 Desses limites naturais, alguns dependem dapropria natureza dos siiditos que 0 Estado comanda e, en-quanto externos ao Estado, trazem a luz uma impossibilidadematerial: assim como ninguem pode fazer com que uma mesacoma grama, tam bern 0Estado nao pode obrigar urn homema voar. Outros, bern mais importantes, dependem da naturezamesma do Estado, ou seja, poem em acao uma impossibili-

dade racional (ou moral), 0 Estado, enquanto ente racional,nao pode deixar de seguir os ditames da razao, a nao ser quepretenda decretar sua propria perdicao. A teoria do Estado deSpinoza nao e tanto uma teoria do Estado absoluto quanto doEstado-potencia: e urn Estado e tanto mais potente quantomais sua potencia for razoavel, ou seja, obedecer aos ditames

da razao, quanto mais os governantes nao abusarem do seupoder, ja que somente enquanto governarem nos limites darazao poderao contar com 0 consenso dos suditos, "Se 0 Es-tado nao fosse submetido a nenhuma das leis ou regras gracasas quais e 0que e, nao seria uma realidade natural e sim umaquimera"," Para conservar a propria autoridade, ou seja, paracontinuar a manter sua propria natureza, 0Estado nao poderealizar nenhuma ac;ao que faca desaparecer 0 respeito dossuditos e provoque a revolta: "Quando 0 soberano mata e ex-polia os siiditos, sequestra as mocas, etc., a sujeicao se trans-forma em indignacao e, por conseguinte, 0estado civil se con-

verte em estado de hostilidade".5

A sancao pela violacao deuma lei natural ou da razao e, por sua vez, urn fato natural,a dissolucao do Estado, da qual nasce urn novo direito quenao e mais 0 direito civil e sim 0 direito de guerra, 0 unicodireito que vigora no estado de natureza. Como vimos a res-peito da irrenunciabilidade ao direito de raciocinar e julgar,

urn outro limite do Estado deriva do fato de que ele deve re-gular, seguindo sua natureza, as acoes externas e nao as inter-nas: uma das razoes adotadas por Spinoza e a liberdade depensamento ser incoercivel, ou seia, ser de tal ordem que 0

Estado, por mais que faca, nao pode impedir urn individuo de

pensar0

que pensa (pode apenas impedi-lo de dizer0

quepensa); e, de qualquer modo, nao ha sancao de que disponhaque sejacapaz de convencer urn filosofoa nao crer naquilo emque cre (pode apenas transforma-lo num hipocrita ou nummartir). "Nao fazem parte do direito civil - diz Spinoza -todas aquelas acoes as quais nao se possa ser induzido pelaesperanca de prernios ou pelo temor de ameacas" .6

Alem desses limites que podem ser chamados de necessa-

(1) Rousseau, Du contrat social, L. II, cap. 4.(2) Kant, Metaphysik derSitten, Rechtslehre, §49A.(3) Spinoza, Tractatus politicus, cap. IV, §5.

(4) Ibid., cap. IV, §4.(5) Ibid.(6) Ibid., cap. III, §8.

 

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rios, na medida em que derivam da propria natureza do Es-

tado ou de razoes objetivas, nao ha escritor que nao reconheca

limites que derivam de consideracoes de conveniencia ou de

oportunidade. Entre esses, os principais sao os que se referem

a esfera dos interesses privados. Diz Hobbes: "As leis nao fo-

ram inventadas para reprimir a iniciat iva individual, mas para

disciplina-la, do mesmo modo como a natureza dispfis as mar-gens dos rios nao para estancar 0 seu curso, mas para dirigi-

10".7 E Rousseau: "Todos os services que urn cidadao pode

prestar ao Estado sao por ele devidos tao logo 0Estado os re-

dame; mas 0corpo soberano, por sua parte, nao pode gravar

os siiditos com nenhuma cadeia que seja inutila comuni-

dade"."b) Embora os defensores da indivisibilidade do poder so-

berano, como Hobbes e Rousseau, e os defensores da divisao

de poderes, como Locke, Montesquieu e Kant, sejam ha?i-

tualmente contrapostos como representantes de duas teorias

opostas, a contraposicao - se olhamos as coisas com a aten-~ao que a complexidade da materia exige - nao e tao evidente

como parece e como se supoe. A verdade e que a "divisao"

que os defensores da indivisibilidade cond en am nada tern a

ver com a "divisao" que os adversaries defendem; e, vice-ver-

sa a concentracao que estes combatem nao corresponde a

u~idade que os outros defendem. Quando Hobbes afirma q~e

o poder soberano deve ser indivisivel e condena como teoria

sediciosa a tese contraria, 0 que ele rechaca e a teoria do go-

verno misto, ou seja, a teoria que afirma como governo otimo

aquele em que 0poder soberano esta distribuido entre orgaos

diversos em colaboracao entre si, representados cada urn por

tres diversos principios de qualquer regime (0 monarca, os

melhores, 0povo). Quando Locke defende a teoria da divisao

dos poderes, 0 que ele acolhe nao e absolutamente a t:oria do

governo misto, mas sim a teoria segundo a qual os tres pode-

res atraves dos quais se explicita 0poder soberano - 0poder

legislativo, 0 poder executivo e 0 poder judiciario (mas, ~a

realidade, os poderes que Locke leva sobretudo em conta sao

apenas dois, 0 legislativo eo executivo) -, devem ser exerci-

dos por organismos diversos. Do ponto de vista da unidade

que preocupa Hobbes, 0Estado que Locke tern em mente nao

e menos unitario do que 0Estado hobbesiano: e verdade, de-

certo, que 0poder executivo e 0 poder legislativo sao atribui-

dos a dois orgaos diversos, respectivamente 0 rei e 0 parla-

mento, mas e igualmente verdade que 0poder supremo e urnso, 0poder legislativo, e que 0poder executivo deve permane-

cer subordinado ao primeiro: "De qualquer modo, desde que

o governo subsiste, 0poder supremo e 0 legislativo, pois 0 que

pode dar leis a outros deve necessariamente Ihe ser superior";"

e, por outro lado, "0poder executivo, quando nao e colocado

numa pessoa que tambem faca parte do legislativo, e eviden-

temente subordinado e responsavel perante esse ultimo, e

pode ser mudado e transferido a bel-prazer"."

Somente quando se leva em conta essa nao-correspon-

dencia entre os dois conceitos de divisao e, respectivamente,

de indivisibi lidade do poder soberano, urn dos quais se referea divisao dos orgaos (rei, camara dos lordes e camara dos co-

muns), enquanto 0outro refere-se a divisao das funcoes (legis-

lativa, executiva, judiciaria), e que se pode compreender 0

aparente paradoxo de 0 Contrato Social, no qual Rousseau

afirma ao mesmo tempo a tese da indivisibilidade da sobera-

nia, como Hobbes, e a tese da divisao do poder legislativo e do

poder executivo, bern como a subordinacao do segundo ao pri-

meiro, como Locke." A indivisibi lidade do poder soberano,

pela qual se entende que aquele ou aqueles que detem 0poder

soberano nao podem dividi-lo em partes distintas e indepen-

dentes, e a divisao entre poder legislativo e poder executivo,

pela qual se considera desejavel que as duas funcoes sejam

exercidas em modos e por orgaos diversos, nao sao absoluta-

mente incompativeis, A contradicao aparece ainda menos evi-

dente se se leva em conta que, dos dois males extremos que

todo filosofo politico encara com preocupacao, a anarquia e 0

(7) HobbeS,Decive, XIlI,1S.(8) Rousseau, Du contrat social, L. II, cap. 4.

(9) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §150.(10) Ibid., §1S2.(11) No que se refere a indivisibilidade da soberania, cf. Du contrat social,

L. II, cap. 2. Quanto a separacao entre poder legislativo e poder executivo e a subor-dinacao dosegundoaoprimeiro, cf. ibid., L. III , cap. 1.

 

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despotismo, a teoria hobbesiana da indivisibilidade visa a re-mediar 0primeiro, enquanto a teoria lockeana da divisao visaa evitar 0segundo. Como ja foi varias vezes observado e 0 queha pouco dissemos confirma, 0paradoxo de Rousseau consisteno fato de que, com sua teoria do contrato social, ele imagi-nou uma formula com a qual visa salvar ao mesmo tempo a

unidade do Estado (pelo que ele se professa admirador deHobbes) e a liberdade dos individuos (no que ele e certamenteurn seguidor de Locke).

A tese de que a separacao dos poderes e urn remedio con-tra 0 despotismo e ratificada por Kant, 0 qual distingue, comrelacao aomodo de governar, duas formas de Estado, arepii-blica e 0 despotismo: a republica e caracterizada pela sepa-racao entre poder executivo e poder legislativo, como ele afir-rna a proposito do primeiro artigo definitivo para a paz perpe-tua, 0qual- com a finalidade derealizar as condicoes deumapaz estabelecida entre os Estados - exige que todo Estado

tenha uma constituicao republicana. Mas tam bern Kant, su-blinhando a importancia da separacao dos poderes, nao pre-tende absolutamente ameacar aquela unidade do poder sobe-rano que Hobbes desejava. Numa perfeita racionalizacao (taoperfeita que parece artificiosa) da teoria dos tres poderes,Kant os considera ao mesmo tempo como coordenados, nosentido de que se completam urn ao outro, como subordina-dos, no sentido de que sao dependentes urn do outro, e comounidos, no sentido de que a unidade deles permite ao Estadoatingir sua finalidade precipua, que e fazer justica salvaguar-dando a liberdade." Numa outra passagem, que pode parecer

nao perfeitamente conforme a precedente, Kant equipara ostres poderes as tres proposicoes de urn silogismo pratico, ondea premissa maior e a lei, a menor e 0 coman do do executivo,enquanto a conclusao e a sentenca dojuiz: nada mais unitariodo que urn raciocinio silogistico." Qualquer que seja 0 seuvalor, tal analogia e uma comprovacao de que a teoria da se-paracao dos poderes jamais poe em questao a unidade do po-der soberano, como, ao contrario, poderia ocorrer na teoriado governo misto, que fora 0principal alvo de Hobbes.

c) A predominancia dada a urn dos dois males extremosanarquia ou despotismo, repercute tambem na solucao que osautores singulares dao ao problema da obediencia e, respecti-vamente, do contrario da obediencia, ou seja, a resistencia,Quem, como Hobbes, considera como mal extremo a anar-quia, urn mal que provem da conduta irrefreada dos indivi-

duos, tende a secolocar do lado doprincipe, cujo poder consi-dera irresistivel, ou seja, de tal natureza que diante dele 0

sudito tern unicamente 0dever de obedecer. Q~em, ao cont;a-rio, como Locke, considera 0despotismo como mal extremourn mal que provem da conduta irrefreada do soberano, tende

a se por ? O .lado do !,o~o: ao qual atribui em determipadoscasos 0 direito de resistir as ordens do soberano, ou seja, denao obedecer. A teoria dos dois males e expressamente invo-cada por Locke: "Se e a opressao ou a desobediencia queconstitui a origem primeira da desordem - diz ele - e umaquestao cuja decisao deixo a imparcialidade da historia", 14

Mas ele reconheceu que a historia da razao aos que conside-ram como a causa mais freqiiente dos tumultos nao as rebe-Hoesdos povos (os quais sao mais inclinados a suportar que apromover sedicoes), mas a prepotencia dos soberanos. Razaopela qual e preciso prevenir-se nao tanto contra as primeiras,como 0fazem os defensores de uma ferrea obediencia, quantocontra as segundas, e estabelecer quais sao os casos em quedesaparece a obrigacao da obediencia. A mesma teoria dosdo~smales e invocada, mas com urn juizo de valor oposto, porSpinoza. Defensor como Hobbes da obediencia incondicional,ou seja, da obediencia as leis mesmo quando aqueles a quem

sao dirigidas as consideram como iniquas, assim argumenta:"Se 0 homem razoavel deve por vezes fazer, por ordem doEsta~o, algo que reconhece como repugnante a razao, essemal e amplamente compensado pelo bern que retira do pro-prio estado civil: com efeito, e tambem uma lei da razao que,entre dois males, deve-seescolher 0menor". 15

Todavia, quando se passa das declaracoes de principiopara a analise dos casos concretos, a alternativa - tambemnesse caso, como no caso do problema dos limites do poder

(12) Kant, Metaphysik derSitten, §48.(13) Ibid., §45.

(14) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §230.(15) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. III, §6.

 

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soberano - aparece menos rigida: a situacao e mais com-plexa, Urn intransigente teorico da obediencia como e Spi-noza, reconhece, como Locke, que "os abalos, as guerras e 0desprezo ou violacao das leis nao sao imputaveis tanto a mal-dade dos stiditos quanta a rna constituicao do governo" .16

Antes de mais nada, e preciso considerar que a divergen-

cia entre defensores da obediencia e defensores da resistsnciarefere-se ao caso do tirano e nao ao do usurpador (e ao caso,a esse assimilavel, da conquista): no caso do usurpador, Hob-bes nao hesita em reconhecer 0desaparecimento da obrigacaode obedecer, ja que quem se apossa do poder sem ter titulospara isso deve ser consideradocomo urn inimigo (urn inimigointerne a diferenca do conquistador, que e urn inimigo ex-terno); ~, diante do inimigo, nao ha outro direito ~lem do di-reito de guerra (que vigora no estado de natureza).

No que se refere ao caso do mau governo (no qual se en-quadra 0 do tirano), a diferenca nao e tanto entre quem ad-

mite e quem recusa 0 direito de resistencia, mas sim ao dife-rente modo de estabelecer em que consiste urn mau governo,ou seja, 0 governo contra 0 qual a desobediencia se torna li-cita. Nessa ordem de ideias, reaparece 0 contraste acerca dapredominancia dada a urn ou a outro dos males extremos, Se,para Locke, e em geral para os que combatem 0 despotismo,mau governo e 0 que abusa do proprio poder e trata os seussuditos nao como homens racionais, mas como escravos oucriancas (e 0 caso classico da tirania), para Hobbes e paraSpinoza mau governo e 0 que peca nao por excesso, mas pordefeito, e que, nao garantindo satisfatoriamente a segurancados proprios siiditos, nao cumpre sua propria tarefa funda-mental de fazer cessar do modo mais absoluto possivel 0 es-tado de natureza. Para Hobbes, "a obrigacao dos suditos emface do soberano dura enquanto dura 0poder com 0 qual ele e

A I ,,18capaz de protege- os .

Spinoza, partindo do principio de que 0direito e poder ~que, portanto, 0direito do Estado de comandar se estende ate

o momento em que se estende seu poder, deplora 0 Estadoque, "nao tendo assegurado demodo adequado a concordia",demonstra "nao ter assumido plenamente as redeas do gover-no". Urn Estado desse tipo, na medida em que nao conseguiueliminar as causas das desordens, "nao difere em muito doestado de natureza, no qual cada urn vive a seu talante e em

ti . d ida"19

Don muo pengo e Vl a. e resto, as duas form as de maugoverno tern urn carater essencial em comum: sao 0 reino domedo, e 0 reino do medo e 0 contrario da sociedade civil, quenasce para instaurar 0 reino da paz e da seguranca. Nao poracaso Locke considera 0 Estado despotico como 0 prolonga-mento do estado da natureza; e Spinoza afirma que "urn povolivre serege mais pela esperanca do que pelo medo, enquantourn povo subjugado, ao contrario, vivemais no temor do quena esperanca". 20 (A relacao entre despotismo e medo seracelebrizada pela teoria do despotismo deMontesquieu.)o problema mais dificilpara uma teoria racional (ou que

pretende ser racional) do Estado e 0 de conciliar dois bens aque ninguem esta disposto a renunciar e que sao (como todosos bens ultimos) incompativeis: a obediencia e a liberdade.Spinoza propoe uma solucao que sera acolhida tambem porKant: dever de obediencia absoluta com relacao asacoes, di-reito de liberdade com relacao aos pensamentos. Entrando noestado civil, cada urn renuncia ao direito de agir segundo seuproprio arbitrio, nao aquele de raciocinar e de julgar: "En-quanto ninguern pode agir contra 0decreto das soberanas po-destades, e licito a cada urn, sem lesar 0 direito, pensar e jul-gar e, portanto, tambem falar contra 0decreto por elas ema-nado, contanto que simplesmente fale ou ensine, e defendendoo que diz baseando-se apenas na razao", 21

Kant e muito firme em afirmar a obrigacao absoluta deobedecer a lei e em negar todo e qualquer direito de resisten-cia; e ele se expressa sobre isso com uma aspereza que the foifreqiientemente criticada. Se uma lei publica, diz ele, e irre-preensivel, ou seja, conforme 0 direito, e tam bern irresistivel,

(16) Ibid .• cap. V. §2.(17) Hobbes. De cive, VII. 3.(18) Hobbes. Leviathan. cap. XXI.

(19) Spinoza, Tractatus politicus, cap. V. §2.(20) Ibid .• cap. V. §6.(21) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, cap. XX. ed. cit.•p. 483.

 

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ja que a resistencia a ela teria lugar segundo uma maximaque, universalizada, destruiria qualquer constituicao civil:"Contra 0 supremo legislador do Estado, nao pode haver ne-nhuma oposicao legitima por parte do povo, ja que somentegracas a submissao de todos a sua vontade universalmente le-gisladora e possivel urn Estado juridico; portanto, nao pode

ser emitido nenhum direito de insurreiciio (seditio), menosainda de rebeliiio irebellio), e menos do que qualquer outro deatentados contra ele como individuo (como monarca) sob pre-texto de abuso do poder, em sua pessoa ou em sua vida (mo-narchomachismus sub specie tyrannicidii)" .22 Mas a obedien-cia nao exc1uia critica: e, portanto, 0 que e seu pressuposto,a liberdade de opiniao e de expressao. No ensaio Was ist Auf-kliirung (0 que e 0 iluminismo), de 1784, depois de ter afir-mado que 0iluminismo "nao precisa senao da liberdade, e damais inofensiva de todas as liberdades, ou seja, a de fazer usopublico da propria razao em todos os campos", elogia 0prin-cipe que erigiu como maxima de seu proprio governo 0 se-guinte: "Raciocinem enquanto quiserem e sobre 0 que quise-rem, mas obedecam". 23

Alem dessa solucao, que representa a quintessencia dopensamento liberal, existem apenas outras duas solucoes: asolucao lockeana da obediencia nao mais absoluta e sim rela-tiva, ou seja, condicionada ao respeito pelo soberano de limi-tes preestabelecidos ao seu poder supremo; e a solucao rous-seauniana, que reafirma 0dever da obediencia absoluta, masaomesmo tempo afirma que somente na obediencia absoluta,quando se entende por obediencia a submissao a lei que cadaurn prescreveu para si mesmo, consiste a liberdade (que seratambern a solucao de Hegel, embora ele seja anti-rousseau-

niano sob varies aspectos).

o Estado segundo a razao

(22) Kant,-Metaphysik derSitten, §49 A.

(23) Kant, Scrittipolitici, cit., p.143.

o fato de que todas asvariacoes domodelo por nos con-sideradas (e que nao esgotam 0mimero das que poderiam serindicadas) sejam 0 reflexo de diferentes posicoes ideologicas etenham, como consequencia, relevantes implicacoes politicas,revelou-se com muita c1areza e nao necessita de ulteriorescomentarios, Deve ser ainda esc1arecidoque, entre a estruturade urn modelo e sua funcao ideologica, nao subsiste aqueleparalelismo perfeito que seriamos tentados a imaginar: 0mes-momodelo pode servir para apoiar teses politic as opostas, e amesma tese politica pode ser apresentada com modelos diver-sos. Trata-se, de resto, do bern conhecido problema da com-plexa relacao, de modo algum simples e simplificavel, entre aconstrucao de uma teoria e seu uso ideologico: relacao quedesencoraja ou deveria desencorajar os que buscam corres-pondencias univocas (dada tal teoria, tem-se determinadaideologia).

Se se escolhe como criterio para distinguir as atitudespoliticas dos diversos autores a resposta que deram a velha esempre recorrente disputa sobre a melhor forma de governo,podem-se distinguir, grosso modo, tres posicoes, conforme apreferencia tenha sido dada ao governomonarquico (Hobbes),ao democratico (Spinoza, Rousseau) ou ao constitucional re-presentativo (Locke, Kant). A derivacao da construcao spino-ziana a partir da hobbesiana e evidente e nao e de modo al-gum atenuavel (como tentam fazer os que consideram dever

 

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evitar, para 0 autor que apreciam, a vergonha da reductio adHobbesium). Mas, quando ambos se empenham em dar umaresposta motivada a pergunta sobre a melhor forma de go-verno (Hobbes no cap. X do De cive, Spinoza nos capitulosVI-IX do Tratado politico), chegam a conclusoes opostas:para Hobbes, a melhor forma de governo e a monarquia, en-

quanto para Spinoza e a democracia. E bastante conhecido 0quanto influiu sobre Rousseau 0modelo hobbesiano; mas, domodelo escolhido como guia, Rousseau extrai nao as conse-qiiencias politicas de Hobbes, mas as de Spinoza: a definicaodada por Spinoza da democracia antecipa surpreendente-mente a formula de Rousseau: "[A democracia1 define-secomo a uniao de todos os homens que tern coletivamente plenodireito a tudo 0 que esta em seu poder". 1 Contudo, a constru-~aorousseauniana nao e nem a de Hobbes nem a de Spinoza:o modo pelo qual ele Iigura a distincao entre poder legislativoe poder executivo, como distincao entre a vontade que deli-bera e dirige e a mao que atua, e denitida derivacao lockeana.Mas Rousseau e defensor da democracia direta, enquanto Lo-cke defende e racionaliza 0 regime da monarquia constitucio-nal e representativa. Sobre a relacao Locke-Kant no que serefere a forma de governo, nao ha necessidade de gastar mui-tas palavras: quando contrapoe a republica nao a monarquia,mas ao despotismo, Kant tern em mente 0 ideal da monarquiaconstitucional, e nao certamente 0 ideal spinoziano e menosainda 0 rousseauniano da democracia; alias, ele execra a de-mocracia como a pior forma de governo. Contudo, se exami-narmos os elementos singulares da construcao, nao ha dtividade que alguns deles, em minha opiniao os mais significativos- a teoria da obediencia absoluta acompanhada da liberdadede opiniao - aproximam-no de Spinoza. Kant e muito maisestatista que Locke, apesar da divisao dos poderes, mas e aomesmo tempo menos democratico que Spinoza e, natural-mente, que Rousseau, de quem, contudo, e mais proximo peloseu estatismo e de quem derivou a ideia do contrato originariocomo fundamento de legitimidade do poder e a propria for-mula desse contrato, segundo 0qual todos depoem sua liber-

dade externa para retoma-la na condicao de membro de urncorpo comum.?

Nao e diversa a conclusao a que podemos chegar quandoexaminamos nao a solucao dada ao problema da melhor for-ma degoverno, mas a ideologia politica expressa em cada au-tor: conservadora (Hobbes), liberal (Spinoza, Locke e Kant),

revolucionaria (Rousseau). 0 significado ideologico de umateoria depende nao de sua estrutura, mas do valor primario aoqual ela serve: a ordem, a paz social, a seguranca, a liberdadeindividual estreitamente ligada a propriedade, a igualdade so-cial que se realiza nao na liberdade individual mas na liber-dade coletiva, e assim por diante. A formula hobbesiana dopacto de uniao desempenha uma funcao conservadora emHobbes, radical-revolucionaria em Rousseau, enquanto aideologia liberal acolhe e utiliza para a mesma finalidade, res-pectivamente em Spinoza-Kant e em Locke, duas solucoes

opostas com relacao ao problema da obrigacao politica (deverde obediencia ou direito de resistencia),

Todavia, para alem das variacoes estruturais, ate mesmonos limites de urn unico modelo, e para alem das divergenciasideologicas, todas as filosofias politicas que se enquadram noambito do jusnaturalismo tern - com relacao as que as pre-cedem e as que as sucedem - uma caracteristica distintivacomum: a tentativa de construir uma teoria racional do Es-tado. Nas primeiras paginas, insistimos no ambicioso projetoda chamada escola do direito natural, a comecar por Hobbes,de elaborar uma etica, uma ciencia do direito, uma politica(ao que se acrescentara, no final, uma economia), ou, emsuma, uma filosofia pratica demonstrativa, isto e, apoiada em

principios evidentes e deduzida desses principios de modo 10 -

gicamente rigoroso, Esse projeto culmina na teoria do Estado,

nao soporque 0Estado, e emgeral0direito publico, constitui aparte final da teoria do direito e era ate entao a parte teorica-mente menos desenvolvida, mas tambem porque e aquela a queosproprios iusnaturalistas deram maior destaque, e que deixouatras de si maiores marcas, tanto que 0[usnaturalismo foi ge-ralmente considerado como uma corrente de filosofia politica.

(1) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, cap. XVI, ed. cit., p. 382. (2) Kant, Metaphysik derSitten, §47.

 

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A expressao "teoria racional do Estado" tern, antes demais nada, urn significado metodol6gico, sobre 0 qual, depoisdo que dissemos nas paginas anteriores, nao e 0caso de insis-tiro Quando muito, sera necessario acrescentar que, precisa-mente na teoria do Estado, manifesta-se mais clara e maisconcretamente do que em qualquer outro terreno 0 proposito

pufendorfiano de separar a jurisprudencia da teologia. Cons-truir racionalmente uma teoria do Estado significa prescindirtotalmente de qualquer argumento (e, portanto, de qualquersubsidio) de carater teologico, ao qual sempre recorrera adoutrina tradicional, na tentativa de explicar a origem da so-ciedade humana em suas varias formas; ou seja, em outraspalavras, significa busca explicar e justificar urn fato pura-mente humano com 0Estado partindo do estudo da naturezahumana, das paixoes, dos instintos, dos apetites, dos interes-ses que Iazem do homem urn ser sociavel/Insociavel, ou, emsuma, partindo dos individuos - como dira Vico, em tom decondenacao, referindo-se a Pufendorf - "lancados nestemundo sem cuidado e ajuda divinos". 3 A . teoria do Estadocomo remedium peccati, Hobbes - e, em suas pegadas, Spi-noza - contrapoe a teoria do Estado como remedio para urnfato humanissimo, as paixoes humanas, consideradas "naocomo vicios, mas como propriedades da natureza humana,pertinentes a ela do mesmo modo que a natureza da atmosferasao pertinentes 0 calor, 0 frio, a tempestade, 0 trovao e asse-melhados" . 4

Com Locke, com oseconomistas, com Kant, os interessesassumiram 0lugar das paixoes como mola da vida social: masa antitese interesse individual/interesse social, utilidade ime-

diata/utilidade mediata, jamais eliminara inteiramente a anti-tese, da qual partiu a teoria racional do Estado, entre paixoes(afetos) e razao. Alias, as duas antiteses procedem mescladasuma a outra, mal distinguiveis uma da outra, de modo que 0Estado aparece em cada oportunidade e ao mesmo tempocomo 0ente racional por excelencia e como 0garante do inte-resse coletivo, do util mediato, que e 0"verdadeiro" titil, pre-cisamente 0 iitil tal como e sugerido pela reta razao, A hip6-

(3) G. B.Vli:o,La scienza nuova prima, ed. cit., §18.

(4) Spinoza,Tractatus politicus, cap. I,§4.

tese do estado de natureza e do conseqiiente contrato socialfaz desaparecer definitivamente a doutrina do nulla potestasnisi a Deo, da qual Kant dara uma justificacao puramenteracional: a maxima - diz ele - nao tern finalidade que a defazer compreender que a origem do poder e imperscrutavel(mas, se e assim, entao a doutrina da origem divina do poder

podera ser tranqiiilamente substituida pela doutrina que fun-da a legitimidade do poder unicamente na tradicao, como adefendida por Edmund Burke, contemporaneo de Kant, jaque a tradicao e tao imperscrutavel quanto a vontade deDeus). A construcao racional do Estado avanca pari passucom 0processo de secularizacao da autoridade politica e, emgeral, da vida civil: nao pode ser dissociada, embora seja difi-cil dizer se setrata de urn estimulo ou de urn reflexo (provavel-mente e ambas as coisas), daquela profunda transformacaodas relacoes entre Estado e Igreja, pela qual 0Estado se tornacada vez mais independente da Igreja, enquanto a Igreja (apartir do momento em que entra em colapso 0 universalismoreligioso e nascem as Igrejas nacionais) se torna cada vez maisdependente do Estado.

Por outro lado, quando se fala em teoria racional do Es-tado, a proposito dojusnaturalismo, e preciso saber captar -alem do significado metodol6gico - tambem urn significadoteoricamente bern mais rico e historicamente bern mais rele-vante, que se refere a natureza e ao resultado da construcao eque revelara toda a sua importancia quando 0modelo se foresgotando nas varias correntes antijusnaturalistas. Com urnpequeno mimero de palavras, pode-se expressar a ideia nosseguintes termos: a doutrina jusnaturalista do Estado nao e

apenas uma teoria racional do Estado, mas tambem e umateoria do Estado racional. Isso quer dizer que ela desembocanuma teoria da racionalidade do Estado, na medida em queconstr6i 0Estado como ente de razao por excelencia, unico noqual 0homem realiza plenamente sua propria natureza de serracional. Se e verdade que, para 0 homem enquanto criaturadivina, extra ecclesiam nulla salus, e igualmente verdade que,para 0homem enquanto ser natural e racional, nao ha salva-cao extra rempublicam .

Com a sua costumeira e peremptoria lucidez, Hobbes ex-pressa esse conceito numa celebre passagem que pode ser as-

 

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sumida quase como emblema da elevacao do Estado a sede davida racional: "Fora do Estado, tem-se 0dominio das paixoes,a guerra, 0medo. A pobreza, a inciiria, 0 isolamento, a bar-barie, a ignorancia, a bestialidade. NoEstado, tem-se 0domi-nio da razao, a paz, a seguranca, a riqueza, a decencia, asociabilidade, 0 refinamento, a ciencia, a benevolencia".

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maior teorico do Estado racional e Spinoza: no homem, aspaixoes sao tao naturais quanto a razao; mas, no estado denatureza, as paixoes triunfam sobre a razao; contra as pai-xoes, a religiao pode pouco ou nada, ja que ela vale "no mo-mento da morte, quando as paixoes ja foram vencidas peladoenca e 0 homem esta debilitado ao extremo, ou nos tem-plos, onde os homens nao exercem relacoes de interesse'Y'so-mente a uniao de todos num poder comum, que refreie, com aesperanca de premios ou com 0 temor de castigos, os indivi-duos que tendem naturalmente a seguir mais a cega cupidezdo que a razao, pode permitir ao homem alcancar do melhor

modo possivel a meta da propria conservacao queea finali-dade precipua prescrita pela razao: na medida, de resto, em

que 0Estado, e somente 0Estado, permite ao homem realizara suprema lei da razao, que e a lei da propria conservacao (da"verdadeira utilidade"), ele deve se comportar, se quer sobre-viver, racionalmente, de modo diverso do que ocorre com oshomens no estado de natureza; ou seja, 0homem deve se com-portar seguindo apenas os ditames da sa razao; 0 individuonao delinque se, no estado de natureza, nao segue a razao; 0Estado, sim, porque somente 0Estado racional consegue con-servar a potencia que e constitutiva da sua natureza; urn Es-tado nao racional e impotente; e urn Estado impotente nao e

mais urn Estado. 0 individuo pode encontrar refugio no Es-tado. Mas 0Estado? 0 estado ou e potente (e, portanto, auto-nomo) ou nao e nada: mas, para ser potente e autonomo, deveseguir os ditames da razao. 0 Estado-potencia e tambem, aomesmo tempo, 0Estado-rezao. Spinoza aprendeu bern a li!;aodo "agudissimo", do "sabio" Maquiavel, de quem e urn ad-mirador, e transformou-a num fragmento de uma das maiscoerentes (e impiedosas) concepcoes do homem jamais imagi-

nada. As razoes do Estado sao, no final das contas, as razoesda razao: a racionalizacao do Estado se converte na estatiza-!;ao da razao, e a teoria da razao de Estado se toma a outraface da teoria do Estado racional.

Para Locke, asleisnaturais sao as proprias leis da razao,Mas, para observar as leis da razao, sao necessaries seres ra-

cioanis, ou, melhor dizendo, sao necessarias condicoes taisque permitam a urn ser racional viver racionalmente, ou seja,seguir os ditames da razao, Essas condicoes nao existem noestado de natureza: existem somente na sociedade civil, aqual, portanto, configura-se tambem em Locke como 0 iinicolocal em que os homens podem ter a esperanca de viver se-gundo as leis da razao. As leis civis, com efeito, nao sao - naodeveriam ser - nada mais do que as proprias leis naturaismunidas daquele tanto de poder coercitivo capaz de obrigartambem os recalcitrantes a respeita-las. Por conseguinte, se oshomens querem viver 0 mais possivel racionalmente, devemingressar naquela unica sociedade onde as leis naturais podemse transformar em verdadeiras leis, ou seja, em normas deconduta que nao sao apenas formalmente validas, mas tam-bern eficazes de fato. Essa sociedade e 0Estado. Para Kant,a saida do estado de natureza e 0 ingresso no estado civil naosao apenas consequencia de urn calculo utilitario, como e 0

caso certamente em Hobbes, Spinoza e Locke, mas urn devermoral; nao sao urn imperative hipotetico, nao sao mera regrade prudencia ("se queres a paz, entra no estado civil"), masurn imperativo categorico, urn comando da razao pratica, urndever moral: "Do direito privado no estado natural, decorreagora 0postulado do direito publico: tu deves, gracas a rela-

!;aode coexistencia que se estabelece inevitavelmente entre ti eosoutros homens, sair do estado de natureza para entrar numestado juridico" .7 Isso quer dizer que, pelo menos no tocantea vida de relacao, as condicoes de existencia da liberdade ex-tema, 0Estado tern urn valor intrinseco absoluto (dai 0 cara-ter absoluto do poder soberano e, conseqiientemente, da obe-diencia que the e devida); nao e urn expediente, urn remedio,cujo valor dependa do valor da finalidade, mas e urn ente mo-

(5) Hobbe;,De cive, X,I.

(6) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. I, §5. (7) Kant, Metaphysik derSitten, §42.

 

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(8) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §134.

toda forma de direito a direito estatal, com a consequente eli-minacao de todos os ordenamentos juridicos inferiores ou su-periores ao Estado, tanto que se chega pouco a pouco a estardiante de apenas dois sujeitos de direito, os individuos, cujodireito e 0direito natural (que, de resto, e urn direito imper-feito), e 0Estado cujo direito e 0direito positivo (que e 0 iinicodireito perfeito); em segundo lugar, e a reducao de toda possi-vel forma de direito estatal a direito legislativo, do qual nas-cera aquela (suposta) positivizacao do direito natural que e

constituida pelas gran des codificacoes, em especial pela napo-Ieonica, e que pretende, atraves da eliminacao da pluralidadedas fontes de direito, assegurar a certeza do direito contra 0

arbitrio, a igualdade (ainda que formal) contra 0 privilegio,ou, em suma, 0Estado de direito contra toda forma de despo-tismo.

Tomando como ponto de referencia as duas formas tipi-cas de poder legitimo descritas por Max Weber, 0poder tradi-cional e 0 legal-racional (a terceira, 0 poder carismatico, e

uma forma excepcional e, por sua propria natureza, proviso-ria), nao se pode deixar de observar a contribuicao que a filo-sofia politica do jusnaturalismo deu a critica do poder tradi-cional e a elaboracao da teoria do poder legal-racional. A me-dida que 0jusnaturalismo desemboca no leito da filosofia dasluzes, da qual se torna 0 aspecto juridico-politico, a antitesepaixao/razao e substituida (ou melhor, complementada) pelaantitese costume-lei, onde 0 primeiro termo representa 0 de-posito cada vez melhor documentado e nao ulteriormente am-pliavel de tudo 0 que 0 homem produziu na historia sem 0

subsidio da razao. 0 poder tradicional e caracterizado pela

crenca na sacralidade do chefe e, portanto, pela atribuicao aomesmo de urn poder arbitrario, nao regulado por normas ge-rais, que decide caso por caso (a justica dos kadi); por urnordenamento juridico composto em grande parte por normasconsuetudinarias, herdadas, emendadas e atualizadas pelosjuizes; por relacoes pessoais ou de clientela entre 0principe eseus funcionarios; por uma concepcao paternalista do poderque, partindo da concepcao da familia como Estado em mi-niatura, chega a concepcao do Estado como familia ampliada.De todas as paginas anteriores, resultou de modo bastanteclaro que a filosofia politica do jusnaturalismo expressa uma

ral (moral, observe-se, nao eticol). 0 individuo nao e livre (noque se refere a liberdade externa) se nao ingressa no reino dodireito; mas 0 reino do direito perfeito e aquele no qual 0 di-reito privado-natural e submetido ao direito publico-positivo,ou, em suma, e a sociedade civil. Numa historia ideal da hu-manidade,como aquela que vai da liberdade selvagem do es-

tado de natureza a liberdade refreada da sociedade civil, ainstituicao do Estado e urn momento decisivo, a ponto deconstituir uma ideia reguladora para 0projeto daquela futurasociedade juridica universal para a qual tende 0 homem emsua gradual aproximacao a uma forma de existencia cada vezmais conforme a razao,o ato especifico atraves do qual se explicita a raciona-

lidade do Estado e a lei, entendida como norma geral e abs-trata, produzida por uma vontade racional, tal como 0 e , pre-cisamente, a do Estado-razao. Enquanto geral e abstrata, a leise distingue do decreto do principe, atraves do qual se ex-pressa 0 arbitrio do soberano e se institui uma Iegislacao deprivilegio, criadora de desigualdade. Enquanto produto deuma vontade racional, a lei se distingue dos costumes, doshabitos, dosusos herdados, das normas a que deu vida a meraforca da tradicao. 0 que caracteriza 0Estado e precisamenteo poder exclusivo de fazer leis: Hobbes e contrario a commonlaw e nao admite outro direito alem daquele que decorre davontade do soberano. 0 "governo civil" de Locke sefunda noprimado do poder legislativo, 0 qual " e nao apenas 0 podersupremo da sociedade politica, mas permanece sagrado e imu-tavel nas maos em que a humanidade 0 colocou" . 81 Rousseauve na vontade geral 0orgao de criacao das leis, e nas leis -distintas dos decretos do poder executivo, enquanto aquelassao sempre voltadas para a generalidade dos cidadaos, semdiscriminacoes - a destruicao de todo privilegio e a garantiada igualdade civil.

Como foi varias vezes observado, urn dos aspectos doprocesso de racionalizacao do Estado, considerado (basta pen-sar em Max Weber) como caracteristica fundamental da for-macae do Estado moderno, e antes de mais nada a reducao de

 

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teoria do poder que esta nos antipodas da teoria do podertradicional e que contern todos os principais elementos da for-ma de poder que Weber chamou de legal-racional: laicizacaodoEstado e subordinacao do principe as leis naturais que saoas leis da razao; primado da lei sobre 0 costume e sobre asnormas criadas em cada oportunidade pelos juizes; relacoesimpessoais, ou seia, atraves das leis, entre principe e ,~ncio-narios de onde nasce 0Estado com estrutura burocratica, eentre funcionarios e siiditos, de onde nasce 0Estado de di-reito; e, finalmente, concepcao antipaternalista do poder es-tatal, que identifica Locke, adversario de Robert Filmer, comKant, 0 qual ve realizado 0principio do iluminismo, definidocomo a era na qual 0homem finalmente se tornou adulto, noEstado que tern como meta nao fazer os siiditos felizes, mastoma-les livres.

Ao contrario do modelo aristotelico, que procede do cir-culo menor para 0circulo maior por meio de uma pluralidadede graus intermediaries, 0modelo jusnaturalista e - co~o

dissemos - dicotomico: ou 0estado de natureza, ou a SOCle-dade civil.0 que significa: ou tantos soberanos quantos sao osindividuos, ou urn unico soberano, feito de todos os individuosunidos em urn so corpo.

o Estado nao e como uma familia ampliada, mas comourn grande individuo, do qual sao partes indissociaveis os pe-quenos individuos que the dao vida: basta pensar na figuraposta no frontispicio do Leviatii, na qual se ve urn homemgigantesco (com a coroa na cabeca e, nas duas maos, a espadaeo baculo, simbolo dos dois poderes), cujo corpo e compostode varies homens pequenos. Rousseau expressa 0mesmo con-

ceito ao definir 0Estado como 0 "eu comum", imagem muitodiversa da de "pai comum". Na base desse modelo, portanto,esta uma concepcao individualista do Estado, por urn lado, e,por outro, uma concepcao estatista (que significa racionali-zada) da sociedade. Ou os individuos sem Estado, ou0Estadocomposto apenas de individuos. Entre os individuos e 0Es-tado, nao ha lugar para entes intermediaries. E tambem essae uma extrema simplificacao dos termos do problema, a qualconduz inevitavelmente uma constituicao que quer ser racio-nal e, enquarrto tal, sacrifica em nome da unidade as varias ediferentes instituicoes produzidas pela irracionalidade da his-

toria: mas e tambem, ao mesmo tempo, 0 reflexo do processode concentraeao do poder que marca 0 desenvolvimento doEstado moderno. Uma vez constituido 0 Estado, toda outraforma de associacao, incluida a Igreja, para nao falar das cor-poracoes ou dos partidos ou da propria familia, das socieda-des parciais, deixa de ter qualquer valor de ordenamento juri-

dico autonomo. Dos partidos, Hobbes diz que devem ser con-denados, porque terminam por ser "urn Estado no Estado,,:9o Estado ou e tinicc e unitario ou nao e urn Estado. Condena 0

grande mimero de corporacoes, que "sao como varies Estadosmenores nas entranhas de urn maior, semelhantes a vermes nointestino de urn homem natural"." ,

Com a arida linguagem do discurso racional, Spinoza for-mula com rigor logico a mesma ideia: "Dado que 0 direitosoberano e definido pela potencia comum da multidao asso-ciada, e obvio que a potencia e 0direito do Estado diminuemem razao do motivo que ele mesmo oferece ao constituir-se de

associacoes"." Segundo Rousseau, "para se ter a verdadeiraexpressao da vontade geral, e necessario que nao existam noEstado sociedades parciais, e que cada cidadao raciocine ape-

,. b ,,12nas com a p ropna ca eca .

(9) Hobbes, De cive, XIII,13. .(10) Hobbes, Leviathan, cap. XXIX.

(11) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. III, §9.(12) Rousseau, Du contrat social, L.II, cap. 3.

 

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o fim do jusnaturalismo

mas de organizacao social, como a administracao da justica(na qual se deteve Locke) e como a administracao publica (na

qual se detiveram os teoricos do Estado do bem-estar), a uni-dade substancial e nao apenas formal, organica e nao apenasmecanica, etica e nao apenas juridica, do Estado. Para serumEstado propriamente dito, um Estado real e nao imaginario,

um Estado tal como e e nao como deveria ser, falta a socie-dade civil dos jusnaturalistas - segundo Hegel - 0 carateressencial da "totalidade organica". Os jusnaturalistas imagi-naram a sociedade civil como uma associacao voluntaria deindividuos, enquanto 0 Estado e a unidade organica de urnpovo. Colocaram como fundamento dessa associacao, confun-dindo-a erroneamente com 0 Estado, um contrato, ou seia,um instinto de direito privado, que pode dar vida.a formas desociedade parcial no estado de natureza, mas certamente naoserve para explicar e justificar 0 salto da natureza it historia,do momento inicial do direito abstrato, onde existem apenasindividuos em luta entre si pelo reciproco conhecimento, aomomento final do Estado, que deve sua constituicao nao aoarbitrio meta-historico de individuos singulares, mas it for-macae historica concreta do "espirito do povo". Seum Estadofosse verdadeiramente nada mais do que uma associacao fun-dada com base num acordo entre individuos, guiados pela ra-

zao calculadora (que, para Hegel, e intelecto e nao razao),todo individuo deveria se considerar livre para romper a asso-ciacao quando sua conveniencia desaparecesse e, portanto, dearruinar 0Estado com sua propria a~ao; e, desse modo, naoseexplicaria jamais como urn Estado assim, amerce dos seuscidadaos, pudesse pretender, como de fato pretende, 0 sacri-

ficio da vida desses mesmos cidadaos quando esta em jogo asua propria sobrevivencia. 2

Com Hegel, 0modelo jusnaturalista chegou a sua con-clusao. Mas a filosofia de Hegel e nao apenas uma antitese,mas tambem uma sintese. Tudo 0que a filosofia politica do

jusnaturalismo criou nao e expulso do seu sistema, mas in-c1uidoe superado (0mesmo ocorre com 0coniunto dos concei-tos herdados atraves do modelo aristotelico), No que se refere

A ideia do Estado-razao chega ate Hegel, que define 0

Estado como "0racional em-si e para-si". Mas Hegel e tam-bern 0 critico mais impiedoso do [usnaturalismo;' a razao de

que ele fala quando, desde 0 inicio da Filosofia do direito,

anuncia querer compreender 0Estado como.uma coisa racio-

nal ern si nao tern nadaa ver com a razao dos jusnaturalistas,os quais se deixaram seduzir mais pela ideia de delinear 0

Estado tal como deveria ser do que pela tarefa de compreende-10 tal como e . E, corn efeito, segundo Hegel, nao 0compreen-deram. A "sociedade civil", que eles representaram partindodo estado de natureza, nao e 0Estado em sua realidade pro-

funda: e apenas urn momento no desenvolvimento do espiritoobjetivo, que nso comeca no estado da natureza para terminarna sociedade civil, mas tern inicio na familia (Hegel retoma 0

modelo aristotelico) para chegar ao Estado, passando atravesda sociedade civil; essa e 0momento que se situa entre a fami-lia e 0Estado, e representa, na categoria da eticidade, a mo-mento negativo, ou seja, a fase do desenvolvimento historicoem que ocorre, par um lado, a desagregacao da unidade fami-liar, a cornecar pelo "sistema dos carecimentos", e, por outro,nao e ainda reconstituida, mesmo atraves das primeiras for-

(1) Desenvclvi essetema nomeu artigo "Hegel e iIgiusnaturalismo", in RivistadiFilosofia , 1966, pp. 379-407.

(2) Sobre esse ponto, remeto aomeu artigo "Diritto privato e diritto pubblico in

Hegel", inRivista di Filosofia, outubro de 1977, PP. 3-29.

 

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(3) F. Engels, Anti-Dilhring ; in Werke, Dietz Verlag; vol. XX,p. 23.

conseguinte, a solucao dos problemas da vida associada deveser buscada nao no sistema politico, mas no sistema social.C.o~ relacao a filosofia da hist6ria que interpreta 0 progressoh!stonco como passagem da sociedade natural para 0Estado eve no Estado a culminacao, nao superavel, desse processo,Hegel pertence ao mesmo movimento de ideias dos escritoresprecedentes. Tambem 0seu Estado surge como antitese e anti-doto (e, portanto, como solucao, como a unica solucao possi-vel) para os conflitos que nascem por causa dos interessesegoistas em luta entre si. Mas, precisamente na epoca de He-gel, abre caminho uma filosofia da hist6ria invertida, que ve0programa hist6rico no movimento contrario, num movimentoque p~ocede do Estado para a sociedade sem Estado, ou seja,que ve no Estado nao 0 grande mediador acima das partesmas 0 instrumento de dominio de uma parte sobre a outra,como Rousseau ja 0havia visto. Mas Rousseau se iludira pen-sando encontrar uma nova solucao politica, e apenas politicaou sej.a,imaginando uma forma original de Estado, no qual a

autoridade absoluta do todo fosse a garantia da liberdade detodos, nao 0 fim, mas a peroetuacao do estado de natureza.o bellum omnium contra omnes, que para Hobbes era a ima-gem de urn estado originario ou de alguns momentos excep-cionais, nos quais a unidade doEstado se dissolvena anarquiada guerra civil, ou urn dado permanente, mas limitado as re-lacoes entre Estados soberanos, toma-se para Marx a imagemdo estado permanente da sociedade capitalista, caracterizadapela concorrencia economica. Segundo essa nova filosofia dahis.t6ria, nenhum Estado - e menos ainda 0Estado da socie-dade burguesa=- suprimiu 0 estado de natureza, ja que 0Es-

tado, em vez de ser 0 triunfo da razao na Terra, como acre-ditou, toda a filosofia politica de Hobbes a Hegel, e 0meioatraves do qual a c1asseeconomicamente dominante mantems~uproprio dominic. Tambem para Locke, urn Estado despo-tico nao era uma sociedade civil, mas sim a recaida no estadode natureza. Se todo Estado, pela sua propria essencia comoEstado, e urn Estado despotico, e uma ditadura de uma c1assesobre outra, ele e uma forma de convivencia na qual 0 estadode natureza, em vez de ser suprimido, e conservado e poten-ciado. Por conseguinte, para sair do estado de natureza, epreciso nao instituir 0 Estado, mas sim destrui-lo. Desse

a concepcao do Estado como momento positivo do desenvol-vimento hist6rico, como solucao permanente e necessaria dosconflitos que envolvem os homens na luta cotidiana pela pro-pria conservacao, como saida do homem do ventre da natu-reza (para usar a celebre expressao kantiana) a fim de entrarnuma sociedade guiada pela razao - em suma, como aquelaesfera na qual a razao humana pode finalmente explicitar suapropria autoridade contra a prepotencia dos instintos -, afilosofia do direito de Hegel e nao uma negacao, mas umasublimacao. Nao sepode ler a passagem em que Hegel fala doEstado como Deus terreno sem pensar no Deus mortal deHobbes. A critica que Hegel dirige aosjusnaturalistas nao e ade nao terem dado urn juizo positivo sobre 0Estado, mas a denao terem sabido fundar tal juizo depois de te-Io dado; nao denao terem posto 0Estado acima dos individuos, mas nao dete-Io posto 0suficiente e, por conseguinte, de terem feito deleurn todo composto departes e nao uma totalidade que cria elamesma, em seu proprio seio, as partes de que e composta; nao

denao terem compreendido a funcao racional do Estado, masde se terem detido no meio do caminho, tomando 0 intelectoabstrato como se fosse a razao. No fundo, Hegel e urn inter-prete domesmo processo hist6rico, a formacao do Estado mo-demo, do qual os jusnaturalistas tentaram dar uma recons-trucao racional, idealizando-o e, portanto, segundo Hegel,deformando-o. 0 Estado da Restauracao que ele tern diantede si, urn Estado que serecompos ap6s a dilaceracao da Revo-lucao Francesa, e a continuacao e a recomposicao daquelemesmo Estado que, no inicio da era moderna, impas sua pro-pria unidade a urn mundo dilacerado pelas guerras religiosas.

A antitese do modelo [usnaturalista nao e a teoria do Es-tado hegeliano, mas a teoria da sociedade que nasce no iniciodo mesmo seculo, quando abre caminho a ideia, a comecarpor Saint-Simon - que Engels exaltara como "0 espirito maisuniversal de sua epoca,,3 -, de que a verdadeira revolucao doperiodo era nao uma revolucao politica como a RevolucaoFrancesa, mas uma revolucao economica, ou seja, aquela re-volucao que fez nascer a "sociedade industrial", e que, por

 

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modo, 0modelo jusnaturalista e completamente invertido. In-

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vertido, ja que a grande dicotomia sociedade-Estado perma-nece, mas 0 uso axiologico que dela fazem, respectivamente,os te6ricos do Estado e os te6ricos do anti-Estado e oposto.

A questao de saber qual das duas filosofias da hist6ria -a que vai de Hobbes a Hegel e ve no Estado 0momento cul-minante da vida coletiva, ou a que, comecando com Saint-

Simon, passando atraves do socialismo utopico e do socialismocientifico, expressando-se plenamente nas varias formas deanarquismo, preve e projeta como fim ultimo da hist6ria adestruicao do Estado - qual delas interpretou melhor 0cursohist6rico do ultimo seculo, essa e uma questao a que e dificildar uma resposta; e que, de qualquer modo, transcende 0

nossotema.

SEGUNDA PARTE

o modelo hegelo-marxiano

Michelangelo Bovero

 

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Do is mode lo s dicotbmicos

Ao se estudar a hist6ria da filosofia politica moderna,apontou-se a predominfincia de urn certo modelo te6rico, cha-mado de modelo hobbesiano, do nome de seu fundador, ou

tambem demodelo jusnaturalista - ja que, de Hobbes a Kante ao primeiro Fichte, foi utilizado pelos representantes maisautorizados da escola do direito natural, que, de resto, saotodos ou quase todos os maiores escritores politicos dos secu-los XVII e XVIII -, modelo que consiste num sistema deconceitos relativamente simples, redutivel a grande dicotomiaestado de natureza/ estado civil, e cuja estrutura formal, jun-tamente com os elementos fundamentais, permanece cons-tante para aquem das profundas variacoes de conteiido intro-duzidas por cada fil6sofo singular. 1Domesmo modo, acreditoser possivel indicar na dicotomia sociedade civil/ sociedade po-

litica 0micleo de urn modelo te6rico formalmente unitario,que continua ate hoje a ser utilizado de modo predominantepara interpretar a estrutura das formacoes sociais contempo-raneas, e que chamarei de modelo hegelo-marxiano.

(1) Refiro-me, alem do ensaio contido no presente volume, tambem a urnensaio anterior de N. Bobbie, tambem ele intitulado "Il modelo giusnaturalistico" eapresentado comocomunicacao ao III Congresso Intemacional de Hist6ria doDireito,em 26 de abril de 1973. Foi publicado pela primeira vez na Rivista Intemazionale diFilosofia del Diritto, 1973, pp. 603-22; e uma segunda nas Atas daquele Congresso:La formazione storica del diritto moderno in Europa, Florenea, L. Olschki, 1977,vol. I, pp. 73-93.

 

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Nao falo simplesmente de "modelo hegeliano" porqueaquela dicotomia esta longe de esgotar 0conjunto de conceitosfundamentais empregados por Hegel paradelinear a arquite-tura do "Espirito objetivo'tr- e tambern porque aquele parconceitual nao seapresenta propriamente na forma de dicoto-

mia em urn pensamento que, como 0hegeliano, sempre pro-

cede por triades. E nao falo simplesmente de "modelo mar-xiano" porque Marx, decerto, pos aquela dicotomia enquantotal, mas precisamente recolhendo-a, por extrapolacao, da F i-

losofia do direito de Hegel; e tambem porque, para alem dosprimeiros escritos juvenis, nao se encontram na obra de Marxsenao esparsas e fragment arias referencias ao problema indi-cado por aquela grande antitese: referencias das quais dificil-mente se poderia extrair uma construcao que tenha valor demodelo, a nao ser procedendo atraves de comparacoes e men-coes aqueles primeiros escritos e, com eles, necessariamente, aobra hegeliana.

Trata-se, portanto, de urn modelo re-construido em gab i-nete e a posteriori; mas, creio, nao sem fundamento. Em pri-meiro lugar, porque - se nos limitarmos a examinar com

atencao a insistencia de Hegel em distinguir e contrapor a es-fera da sociedade civil a do Estado _3ja poderemos perceberque esse par de conceitos, parcial com relacao ao sistema doEspirito objetivo, adquire urn valor de modelo, no qual se con-densa, por assim dizer, 0 problema especifico da sociedademoderna. Em segundo lugar, porque esse modelo, emergentedo sistema hegeliano, constitui como tal 0ponto de partida da

reflexao de Marx antes do seu encontro com a economia poli-tica, e constitui tam bern 0seu ponto de referencia constante,toda vez que, na obra madura, a critic a da economia ou ainvestigacao historic a referem-se a construcao de uma teoriada politica.

Se se quer captar, numa primeira aproximacao, a ideiamais geral, e por enquanto generica, contida em tal modelehegelo-marxiano, pode-se dizer que ele interpreta a realidadedas formacoes sociais modernas com base na contraposicao

fundamental entre uma esfera social contraditoria e uma es-fera politica na qual as contradicoes sao mediatizadas; ou,

com uma formula ainda mais esquematica, pode-se dizer queele expressa a cisao social rnoderna entre cisao social e recom-posicao politica. No nivel dessa ideia generica, 0modelo he-gelo-rnarxiano mostra imediatamente uma analogia surpreen-dente e nao extrlnseca com 0 modelo hobbesiano: nesse, auma condicao inicial de contrastes e conflitualidades poten-ciais ou efetivas, indicada pela nocao de status naturae, e con-traposta uma condicao na qual os contrastes sao superadosem virtude da unificacao politica, que deriva da instituicao dopoder cornum e, com ele, da societas civilis. Tern sentido essahornologia na estrutura formal dos dois modelos, 0 primeiro

dos quais apresenta a instancia da cisao social, enquanto0

segundo mostra a instancia da unidade politica?Com todas as cautelas devidas ao alto grau de abstracao,

creio que a resposta pode ser afirmativa. Cada urn dos doismodelos dicotomicos tern certamente termos proprios, quenao sao identificaveis imediatamente com os do outro, e apre-senta, atraves do tecido de relacoes conceituais instituidasentre os seus termos, urn principio especifico de interpretacaoda realidade; ou seja, coloca-se como urn modo determinado eirredutivel de formular 0problema social real que assume comoobieto proprio. Mas 0 fato de que ambas obedecam a uma16gicadicotomica, e que as instancias dos mernbros de uma e

de outra dicotornia sejam homelogas, pode ser entendidocomo indicio de uma problematica comum e, em ultima ins-tancia, do fato de pertencerem a uma rnesma epoca. Em ou-tras palavras, entre os dois modelos, a comparacao e possivel eo contraste e significative, precisamente porque essas diferen-tes (e, sob certos aspectos, opostas) teorias do politico nascemno terreno de uma mesma realidade problematica, ainda queem diversos graus de desenvolvimento e maturacao. Trata-sedo problema que se abre com 0 declinio da sociedade tradi-cional (para usar os termos de Weber), com a dissolucso dosvinculos orgftnicos (para usar os termos de Tonnies) e das re-

(2) A outra dicotomia - estado de natureza/sociedade civil- compreende as

categorias essenciais daquela s~ao do sistema hobbesiano intitulada De cive (que eprecedida, como s e s a b e, pelas seeoes intituladas Decorpore eDe homine), que corres-

ponde idealmente a secao do sistema hegeliano dedicada ao Espirito objetivo,(3) Indico, sem pretensoes exaustivas, a pe na s n as Grundlinien der Philosophie

des Rechts, osparagrafos 181, 257, 258, 260, 263, 265, 288, 289. 303, 320, com asnumerosas anotacoes e relativos adendos. Esse livro sera a seguir citado como FD,

seguido domimero duparagrafo e, quando for0caso, deApara a anotacao e deZ parao aden do.

 

1 0 6 MICHELANGELO BOVERO

lacoes de dependencia pessoal que faziam com que as forma-

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coes pre-modernas se constituissem como unidades. Urn pro-blema que tern seu principio no dado irredutivel da "liberdadesubjetiva", ou independencia pessoal, entendida por Hegel

como 0 traco que assinala a diferenca entre 0mundo antigo eo mundo moderno:" em funcao disso, a epoca modema apa-

rece imediatamente como a epoca do individuo, bern como docontraste entre 0individuo e a coletividade; ou, para recordaros momentos essenciais em que Hobbes subdividiu 0De cive,do contraste entre Libertas e Potestas» 0 problema de umaepoca na qual a instancia de liberdade se traduz na criacaodeurn poder de certo modo instituido por sujeitos que the saopressupostos; na qual a autonomia se transforma incessante-mente em heteronomia, e sempre se volta a buscar de novo,por diferentes caminhos, 0modo de re-converter essa naquela.

Em seus termos genericos - termos que precisamente sereferem a toda uma epoca -, trata-se do problema de umaera que ainda e a nossa: pelo menos ate 0momenta em que,

no ocaso da divisao social por estamentos e da dependenciapessoal, depois do que se tomou formalmente possivel 0 dis-curso sobre os direitos do homem, nao venha a se suceder aabolicao do govemo sobre os homens, qualquer que seja 0

significado positivo dessa abolicao,

o "modelo hegelo-marxiano"

(4 ) Cf., por exemplo, FD 262 Z e 273 Z. Tambem para Marx , a afi rmacao

e a universalizacao da independencia pessoal assinala, em geral, a passagem para 0

tipo moderno de organizacao social. NosGrundrisse der Kritik der politischen Oeko-

nomie, Berlim, Dietz Verlag, 1953,citados doravante como Grundrisse, le-se na p. 75:..Asrelacoes de dependencia pessoal (de inicio sobre uma base inteiramente natural)

saoas primeiras formas sociais (...). A independencia pessoal fundada na dependencia

material e a segunda forma importante na qual chega a se constituir urn sistema deintercambio socialgeral, urnsistema derelacoes universais".

(5) Na vt;.rdade,as secoes fundamentais do De cive sao trss: mas na ultima,Religio, e indicado 0 problema da comunidade religiosa, que - segundo 0 projetohobbesiano - deveconfluir sob a Potestas civil.

o objeto do presente trabalho eo modelo hegelo-mar-xiano enquanto tal, ou seja, eo esquema conceitual sociedadecivil/Estado politico na identidade formal que ele apresenta

quando da leitura dos textos hegelianos e dos textos marxia-nos. Sua finalidade, ou pretensao, e oferecer uma oportuni-dade para a redescoberta e para a reflexao de alguns signifi-cados de base do nexo sociedade/Estado, 0 qual, por ter hamuito passado para a linguagem comum e por ser freqiiente-mente considerado como algo obvio, e de modo igualmentefreqiiente - para usar as palavras de Hegel-, "precisamenteporque notorio, nao conhecido". 10 metodo escolhido parapenetrar no objeto e aproximar-se de nosso objetivo sera umacomparacao articulada em varies niveis entre 0modelo hegelo-marxiano e 0modelo hobbesiano, na conviccao de que, dado

como hipotese 0genus proximum - ou seja, 0terreno comumno qual se enraizam ambos os modelos, 0 problema da cisaosocial na epoca modema -, os significados de base a que nos

referimos possam resultar dessa comparacao por differentiaspecifica,

Mas a consideracao de Hegel e Marx numa unica species,e 0 proprio uso da formula "modelo hegelo-marxiano", po-

(1) EocasonaPhilnomen%gie des Geistes, trad. it. deE. deNegri, Florenca,LaNuovaltalia,1967, vol.I, p. 25.

 

SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 109

1 0 8 MICHELANGELO BOVERO

Grundrisse para convencer-se disso.' Mas essa continuidade

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dem fazer pensar que a analise parta de uma leitura na qualseja esmaecida, ou mesmo anulada, qualquer distancia entreHegel e Marx. Por isso, e oportuno ?izer desde logo queo fat.ode sublinhar nas concepcoes hegehana e marxiana, a identi-dade formal 'do esquema sociedade civil/Estado nao significade modo algum pressupor uma identidade substancial entre 0

modo hegeliano e 0modo marxiano de entender a estruturada formacao social modema. Se assim fosse, poderiamos comrazao ser acusado de "marxistizar" Hegel e "hegelianizar"Marx.' 0que nao seria estranho, ja que as duas operacoes saomuito difundidas. Elas apresentam, alias, urn grande mimerode variantes, cujos tipos por assim dizer classicos - tao co-nhecidos que nao e necessario ilustra-los com exemplos - le-yam a ver em Marx 0 simples herdeiro ou continuador de He-gel, a cuja "dialetica do humano" ele teria apenas acrescen-tado uma maior atencao ao concreto, uma certa bagagem deconhecimentos em materia economica e uma boa dose de pro-

fetismo revolucionario: ou a ver em Hegel 0 simples precursorde Marx irnpedido de tomar-se ele mesmo urn Marx pela m-, - .feliz condicao do "atraso alemao" e/ou por opcoes pessoaisconservadoras. Os dois tipos de identificacao - 0que faz comque Marx ja esteja em substancia inteirametnte em Hegel, eoque faz com que Hegel ja seja substancialmente urn marxismocomplete - sao porem contrabalancados, no panor~ma dacritica , pela atitude igual e contraria dos que se dedlcam. ademonstrar que 0que Marx disse e 0completo oposto daquiloque disse Hegel, e vice-versa, ou dos que se limitam simples-mente a afirmar uma absoluta estranheza entre as duas con-

cepcoes, quase como se se tratasse de mundos e linguagensdiferentes.Parece-me incontestavel que existe urn vinculo, e mesmo

uma continuidade, entre Hegel e Marx: Marx nao apenas co-meca pensando, mas continua a pensar no interior de catego-rias hegelianas, ainda que as oriente para significados diferen-tes e desenvolva uma concepcao certamente inovadora dasmesmas; e e suficiente uma leitura, mesmo apressada, dos

nao se resolve numa identidade ou numa semelhanca subs-tancial, mas sim numa distancia que, sob alguns aspectos,nao poderia ser maior. E, todavia, essa distancia entre Hegel eMarx nao e incomensuravel com a que divide, por exemplo,urn Hobbes de urn Locke, ou urn Spinoza de urn Kant. E,assim como para Hobbes e Locke, Spinoza e Kant e muitos

outros e possivel reconstruir urn esquema conceitual unitario,que nao anula as diferencas que separam as concepcoes singu-lares da sociedade e do Estado, as quais, alias, emergem emtoda sua significacao precisamente contra 0pano de fundo domodelo comum, domesmo modo, para Hegel e Marx, e possi-vel reconstruir urn modelo categorial formalmente i<ientico,que nao diminui, mas, ao contrario, creio, amplia a possibili-dade de analisar em sua justa luz as grandes diferencas entreas duas concepcoes.

Por outro lado, e preciso acrescentar que a analogia coma relacao indicada entre as teorias dos autores jusnaturalistas,

uma relacao de continuidade e distancia, de identidade for-mal e de variacoes no conteiido, pode esclarecer apenas urnprimeiro aspecto da relacao entre as concepcoes hegelian a emarxiana do nexo sociedade/Estado: deter-se nela implicaefetivamente 0 risco de cair numa atitude aprioristicamenteredutiva. No que se refere aos jusnaturalistas, de fato, ao ca-rater unitario do modelo sociedade natural/ sociedade civilcorresponde tambem uma filosofia politica unitaria - pelomenos em seus fundamentos essenciais -, para cujo leito po-dem sempre ser reconduzidas as variantes conceituais singu-lares; ao contrario, as variantes que especificam a versao mar-

xiana do modelo sociedade civiliEstado politico em relacao aversao hegeliana, se nao quebram a identidade formal de tal

(2) Uso propositadamente expressoes similares ~s adotadas por"N: Bob,bio,noconhecido ensaio polemico "Existe uma doutrina rnarxista do Estado? ,mclUido emQual socialismo?, ed. brasileira, Rio deJaneiro, Paz eTerra, 1983.

(3) Nao me refiro aqui as categorias mais propriamente "16gicas", cuja deri-

vacaoda logica hegeliana e evidente (para dar somente um exemplo, um pouco extrin-secoporem clamoroso, basta ver 0 esquema posto na p. 186 dos Grundrisse, onde amateria do assunto "Capital", certamente nao hegeliano, e ordenada com base nosmomentos hegelianos doconceito); refire-me aspr6prias categorias queMarx emprega

para interpretar aspectos relevantes da estrutura eccnomico-social, da politica e dahist6ria: 0 concentrado de estudos e reflexOescontido nas "Formas anteriores a pro-ducao capitalista" (Grundrisse, pp. 375-413) esta articulado segundo esquemas con-ceituais hegelianos.

 

110 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 111

modelo, compoem-se porem numa concepcao incompativel xiana da estrutura social moderna: uma concepcao que mos-

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com os fundamentos da filosofia politica que Hegel expressava

atraves daquele modelo.

Foijustamente observado" que, diante da tradicao jusna-

turalista, a filosofia politic a hegeliana coloca-se ao mesmo

tempo como dissolucao e culminacao: dissolucaoenquanto ele

critica e rechaca 0modelo de que serviam os jusnaturalistas

como instrumento conceitual , substituindo-o por urn diversosistema de categorias; mas culminacao na medida em que,

com 0 novo modelo, Hegel persegue a mesma meta de uma

justificacao racional do Estado; de modo que a filosofia hege-

liana continua a ser uma filosofia do Estado-razao, tal como a

jusnaturalista, ainda que seja uma filosofia di~e~sa, pois He-

gel atribui a racionalidade ao Est~do. A proposito de Marx,

talvez se pudesse dizer, de modo igual e contrano, que sua

concepcao da relacao sociedade/Estado se coloca em fac~ da

concepcao hegeliana como culminacao e dissolucao: culmma-

~ao enquanto leva as extremas consequencias a distincao en~re

o social e 0politico teorizada por Hegel como traco caractens-tico da sociedade moderna; e dissolucao na medida em que 0

resultado interpretativo a que leva 0 modelo modificado e

radicalizado e oposto, concluindo-se nao na justificacao, mas

na desmistificacao racional do Estado; de modo que a concep-

~ao marxiana se apresenta como a antifilosofia politica, ou

melhor como uma teoria negativa da politica. Por isso, corre-

riamos 0 risco de fornecer uma imagem hegelianizada de

Marx se a distancia entre as duas concepcoes fosse indicada

apenas na figura das chamadas "variantes", e nao tambem na

figura da "inversao".' Nao me refiro tanto a famosa "inversao

da dialetica": quero aqui dizer que, invertida e~ ~arx comrelacao a Hegel, e a perspectiva na qual 0modelo e hdo; e essa

perspectiva institui uma tal relacao entre os termos do modelo

que dela resulta 0sentido mais geral de toda a concepcao mar-

(4) Cf. N. Bobbio, "Hegel e iIgiusnaturalismo", in Rivista di Filosofia, 1966,

pp.379-407. "". ~ "h' rna estreita relacao:(5) Naturalmente, entre "variantes e mvers..o au. .,." .

alias, a inversao, a meu ver, resulta necessariamente da ?atureza .das vanantes, sequisermos chama-las assirn, que Marx introduziu nosconceitos hegehanos. Mas, neste

local, podemos apenas mencionar 0problema.

tra a verdade profana do Estado enquanto "Deus terreno" de

Hegel no Estado como prosseguimento do direito do mais for-

te, e que abre a possibilidade de pensar como futura condicao

racional da humanidade uma sociedade sem Estado "poli-tico" .

Nesse ponto, cabe ver se - na tentativa de evitar que a

afirmacao da identidade formal do modelo e, portanto, da

origem hegeliana das categorias marxianas pudesse levar a

uma "hegelianizacao" de Marx - nao se caiu inconsciente-

mente no erro oposto, 0de "marxistizar" Hegel.

E teremos de reconhecer que htl pelo menos urn aspecto- jfl mencionado acima - pelo qual a designacao como "he-

gelo-marxiano" de urn modelo que se resolve na dicotomia

sociedade civil/Estado politico representa uma reducao da

teoria hegelian a a termos marxistas. Nao hfl dtivida de que 0

interesse da critica pelo tratamento hegeliano da sociedade

civil foi em certa medida nao apenas suscitado, mas tambem

orienta do no tipo de enfoque, e condicionado nos resultadosinterpretativos, pelas referencias ao mesmo presentes na obra

de Marx, em particular naquela - citadissima - do "Prefa-

cio" de 1859 Contribuicao a critica da economia politico, E,mais ainda, que 0estudo dos escri tos juvenis de Marx, onde 0

problema da formacao social moderna e tratado explicita-

mente nos termos da dicotomia sociedade civil/Estado politico

(mas a dicotomia volta tambem nos escritos da maturidade),

levou a focalizar a atencao na relacao correspondente que

existe na obra de Hegel. Essa especie de mediacao marxiana

funcionou, no mais das vezes, como lente deformante: por

meio dela, a sociedade civil hegeliana foi identificada com 0

"sistema dos carecimentos", que e apenas 0 seu momento ini-

cial, perdendo-se assim de vista que ela e jfl uma estrutura

[uridico-administrativa;s e a relacao geral instituida por Hegel

entre sociedade e Estado e mesclada e confundida com a liga-

~ao particular entre tecido das relacoes economicas e regula-

(6) Hegel fala mesmo de "constituicao juridica" e de "constitui~~o ~o parti-cular" (FD 157 e 265), de modo que sepoderia confundi-Ia com a Constituicao pro-priamente dita, a "Constituieao politica" ou eonstituicao doEstado. .

 

112 MICHELANGELO BOVEROSOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLITICA MODERNA 113

mentacao politico-juridica dessas relacoes, que em Hegel e 0

curso de sentido completo; 2) que tal micleo ou sistema con-

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vinculo situado inteiramente no interior da sociedade civil.Mas 0 ponto e 0 seguinte: mesmo quando nao se incorra emtais erros de reducao, ja nao sera por si mesmo arbitraria-mente redutivo limitar a analise da filosofia pratica hegelianaa relacao entre sociedade civil e Estado?

Com efeito, nos Lineamentos de filosofia do direito, que

contern a mais desenvolvida teoria hegelian a da pratica, ou doEspirito objetivo,? essas categorias representam apenas doisdos tres momentos da ultima secao, intitulada "Eticidade" ededicada a analise da convivencia social: isolar tais momentossignifica afastar do tratamento das estruturas coletivas, ouseja, da dimensao da eticidade, a familia, e, do tratamento doEspirito objetivo em seu conjunto, toda a dimensao individual,que Hegel considera nas duas secoes iniciais, intituladas res-pectivamente "Direito abstrato" e "Moralidade". Nao sepodenegar, de nenhum modo, que se trate de uma reducao, tam-pouco que essa se apresente como uma "marxistizacao". Mas

pode-se aduzir alguns argumentos em sua defesa, tentandoapresenta-la como marxistizacao "justificada", pelo menosnos limites dos objetivos a que se propoe 0 presente trabalho:que nao pretende uma reconstrucao detalhada do pensamentohegeliano em simesmo, nem do marxiano, nem muito menosda diferenca entre eles, mas se detem no limiar de urn es-quema conceitual comum e de sua logica interna.

Dentro desses limites, sou de opiniao que a reducao ejustificavel nas seguintes condicoes: 1) que nao constitua urndesnaturamento do pensamento politico de Hegel, ou seja,que a armadura conceitual hegeliana permita isolar a dicoto-

mia sociedade civil/Estado, sem que isso apareca como umaamputacao mortifera, ou, platonicamente, como urn decalque

malfeito, e permita ainda elaborar sobre esse micleo urn dis-

ceitual parcial permita uma comparacao nao desequilibradacom 0 homologo sistema conceitual de Marx, embora emMarx ele assuma urn carater global (quando se entende 0 con-ceito marxiano de Estado em sentido amplo, como superes-trutura tambem juridica e ideological, ou seja, que 0 fato de

proceder a urn cotejo Hegel-Marx sem tomar diretamente emconsideracao grande parte das categorias do sistema hegelianode filosofia praticanao implique uma sub-repticia atribuicaode significados marxianos ao modelo hegeliano que construi-mos; 3) que 0 modelo construido (agora devemos defini-locomo "marxiano-hegeliano") permita uma comparacao naodesequilibrada com 0modelo jusnaturalista, ou seja, n.aopri-vilegia a perspectiva da ligacao Hegel-Marx em detrirnentodaquela entre Hegel e 0 jusnaturalismo, embora a relacaomais direta com 0 jusnaturalismo seja a primeira vista per-ceptivel pelo lado das categorias hegelianas excluidas do mo-delo.

Para justificar, nas condicoes enunciadas, 0 isolamentoda dicotomia sociedade civil/Estado, e necessario enfrentardoisproblemas gerais de interpretacao da filosofia pratica he-geliana, que aqui so podem ser consideradas de ~odo esque-matico. Em primeiro lugar, 0 problema da familia e de suainsercao como termo inicial do desenvolvimento da eticidade,desenvolvimento que constitui para Hegel a "demonstracaocientifica do conceito de Estado'':" nessa figura, a familia pa-rece retomar 0valor que tinha no modelo aristotelico, e queesta ausente tanto no modelo jusnaturalista como na concep-~aomarxiana. Emsegundo lugar, 0problema da relacao entre

as primeiras duas secoes da Filosofia do direito, referentes emconjunto a dimensao individual da vida pratica, e a ultima,referente a dimensao cole~iva: as primeiras parecem p~o.ss_e.guir a tradicao jusnaturalista, da qual reproduzem a dl~l,S~Ofundamental entre direito e moral, segundo 0mesmo criteriode distincao entre exterioridade e interioridade, sendo que detudo isso nao resta nenhum traco na concepcao marxiana; e aultima parece se colocar no mesmo plano da concepcao mar-

(7) M. Riedel mostrou (Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, Frankfurt,

Suhrkamp, 1969, cap. I, "Espirito objetivo e fiIosofia pratica") ~omo,~egel sup.e~a,

com 0 conceito de Espirito objetivo, "os principios e as form~s slstematl~~s tra~lc.lO'nais da filosofia pratica" (p. 12).Se indico aqui a teoria hegehana doEspirito objetivoainda com0nome de filosofia pratica, e porque sob0novo termo Hegel volta a s~ste.matizar conceitos,e conteudos compreendidos ja sob0velho termo por toda a tradicao- com a qual, precisamente, buseo eomparar a teoria hegeliana.

(8) FD 256A.

 

114 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLiTICA MODERNA 115

xiana, na medida em que considera as divers as formas de cole- era representado como uma unidade composta de muitas fa-

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tividade como totalidade, enquanto se mostra estranha e apa-

rentemente incomparavel a t radicao jusnaturalista. Disso re-

sulta claramente que, se da filosofia pratica hegelian a se con-

serva apenas 0esquema parcial sociedade civil/Estado, corre-

se 0 risco, por urn lado, de indicar uma afinidade de mao

tinica com Marx, e, por outro, de ignorar, mediante a exclu-

sao da familia, a heranca da tradicao classic a aristotelica, e,mediante a exclusao do direito abstrato e da moralidade, a

heranca da tradicao moderna jusnaturalista.

Essas herancas tern grande peso na construcao hegeliana,

que se propoe - ao acolhe-las e transfigura-las - como urn

grandioso compendio sistematico de "direito natural e ciencia

do Estado".9 E, por outro lado, pode-se dizer que a novidade

do sistema hegeliano emerge e se concentra precisamente na

elaboracao da dicotomia sociedade civil/Estado, desconhe-

cida pela tradicao antiga e moderna de filosofia politica, Uma

dicotomia que nao e certamente, enquanto tal, "0"modelo de

Hegel, mas que de qualquer modo ressalta da arquitetura daobra como aquela por meio da qual e enfrentado 0 problema

especifico e unitario da contradicao da sociabilidade moderna.

o fato de que aquele par abarque tal problema unitario -

ainda que, para Hegel, parcial - e algo que se pode ver bre-

vemente atraves da relacao que se da entre tal par e os demais

momentos do Espirito objetivo.

No que se refere ao conceito hegeliano de familia, embora

ele conserve urn valor de posicao equivalente ao que possuia 0

correspondente conceito classico no modelo aristotelico, perde

aquelas caracteristicas especificas de celula social que se auto-

reproduz, as quais, no interior da logica daquele modelo, fa-ziam da familia em sentido antigo 0primeiro elemento essen-

cial do processo de formacao do Estado; desse modo, 0Estado

milias. 0 problema politico moderno, para Hegel, nao e 0 da

agregacao das familias, mas 0 da resolucao numa totalidade

orgfinica dos individuos como individuos autonomos, que

constituem 0primeiro principio da sociedade civil . Em Hegel,

a familia - perdendo 0 seu carater de local da reproducao

economica e, em parte, tambem 0de local da formacao cultu-

ral do individuo - aparece sobretudo como uma ilha do cora-

cao no dominio da razao:10 se sua qualidade de comunidade

organica coloca-a necessariamente no dominio do etico, suas

reduzidas funcoes sociais a fazem assumir urn papel subordi-

nado no terreno do problema especifico da sociedade mo-

derna. Hegel e explicito sobre esse ponto: "Mas a sociedade

civil subtrai 0 individuo a esse vinculo [familiar], afasta urn do

outro os componentes desse vinculo e os reconhece como pes-

soas autonomas: de resto, ela coloca no lugar da natureza

inorganic a extern a e do terreno paterno, de onde 0 individuo

obtinha sua subsistencia, seu proprio terreno, e submete a

existencia de toda a familia a dependencia dela Ida sociedade

civil]"; "a familia deve certamente prover a alimentacao dos

seus membros individuais; mas, na sociedade civil , ela e algosubordinado e fornece apenas a base; ela nao tern mais uma

atividade tao abrangente. Ao contrario, a sociedade civil e a

forca extraordinaria que arrasta consigo 0homem, exige dele

que trabalhe para ela, e que seja inteiramente atraves dela e

tudo faca por seu intermedio", 11 Sob esse aspecto, portanto,

nao e de considerar urn decal que malfeito 0 isolamento da

dicotomia sociedade civil/Estado como micleo conceitual em

cujo interior se coloca para Hegel 0problema da sociabilidade

na epoca moderna.Quanto a relacao entre direito abstrato e moralidade, por

urn lado, e eticidade por outro, limito-me aqui a recordar que,

na concepcao hegeliana do mundo da pratica, dimensao indi-

(9) Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse e precisamente 0 subti-tulo dado por Hegel a Filosofia do direito. 0 cruzamento de motivos recolhidos das

duas grandes tradieoes na estrutura sistematica dessa obra e ilustrado, a meu ver domodo rnais claro, por N. Bobbio ern sua resenha sobre "La filosofia giuridica di Hegel

nell'ultimo decennio", in Rivista Critica di Storia della Filosofia, 1972, pp. 293'319,especificamente pp. 309-13. Sabre 0 tema, sao importantes os trabalhos de M. Rie-del, K.-H. Ilting, J. Ritter, citados e discutidos naquela resenha.

(10) Cornefeito, a familia "tern como sua determinacao a sua unidade que sesente a simesma, 0amor" (FD 158); quanto a tarefa educativa, Hegel sublinha que asociedade civil"tern 0dever e0direito, diante do arbitrio e da acidentalidade dos ge-nitores, deexercer vigilancia e influencia sobre a educacao, na medida ern que essa serefira a aptidao para tomar-se componente da sociedade" (FD 239).

(11) FD 238eZ.

 

116 MICHELANGELO BOVERO

vidual e dimensao coletiva nao somente se colocam em planos

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nitidamente distintos, mas se desenvolvem segundo moduleslogicos independentes. Para Hegel, assim como 0 todo nao re-sulta da soma de suas partes, do mesmo modo a dimensaocoletiva nao e derivavel da dimensao individual. Portanto,nem sequer sob esse aspecto pode-se considerar como arbitra-ria uma consideracao separada da categoria do etico, Desse

modo, parece-rne satisfeita a primeira condicao: e 0 sistemaglobal hegeliano, em sua peculiar articulacao, que permite 0

isolamento domicleo conceitual aqui considerado. De resto -e chegamos ao segundo ponto -, e na perspectiva do etico, ouseja, das estruturas coletivas e de sua logica especifica, quedeve ser buscado 0 sentido global da filosofia politica hege-liana. Por conseguinte, a adocao dessa perspectiva nao im-plica por si so a superposicao de urn sentido "marxiano"aquela filosofia, mas obedece a urn principio que the e interno,o qual pode ser sintetizado na formula do primado do coletivoou da totalidade. Com efeito - terceiro ponto -, a dimensao

coletiva e nao so independente da individual, mas tern urn ca-rater fundante com relacao a ela: e sobre fundamento da di-mensae coletiva que adquirem efetividade e verdade os aspec-tos e as determinacoes conceituais referentes a vida exterior einterior do individuo, Mais uma vez, Hegel e explicito: "Amoralidade e 0momenta precedente, 0 do direito formal, saoduas abstracoes cuja verdade e somente a eticidade"; 12 eainda: na medida em que "as formas abstratas se revelam naocomo subsistentes por si, mas como nao verdadeiras" ,13 dissoresulta que "os elementos juridico e moral nao podem existirpor si, e devem ter como apoio e fundamento 0 elemento eti-

co" .14 A despeito das aparencias, portanto, nao poderia sermais nitida a oposicao entre Hegel e 0 jusnaturalismo no ter-reno da relacao geral entre individuo e coletividade.

A questao, muito complexa e decisiva para 0nosso tema,merece algumas consideracoes menos esquematicas.

Hegel, Marx

e 0 ponto de partida no abstrato

Contra a perspectiva individualista que se expressa atra-yes do modelo jusnaturalista, a concepcao hegeliana em seuconjunto, de modo analogo a de Marx, funda-se numa reafir-

I"?a~aoda superioridade da dimensao coletiva no dominio pra-tico. Do ponto de vista da teoria do direito natural, 0 indivi-duo aparece como sujeito social somente no interior do Es-tado produto da vontade dos individuos, mas - antes do indi-viduo como sujeito social (ou civil) - tem-se 0 individuo sim-plesmente, separado e definido por si, e esse ultimo esta nabase e se transform a naquele; ao contrario, na perspectiva he-geliana, a figura em que 0 individuo aparece imediatamentecomo pessoa singular, por assim dizer "purificada" de suasdeterminacoes sociais, e desde 0 inicio definida como "abs-trata"; 1 e nao e precise recordar que, em Marx, a abstracao

(12) F033Z.(13) FO 32Z.

(14) FO 141Z.

(1) A relacao abstrato/concreto tern em Hegel mil facetas. Para nossa argu-

mentacao, parece-me bastante adequada a seguinte observacao de Th. W. Adornoem Philosophie Terminologie, trad. it. , Turim, Einaudi, 1975, vol. I , p. 27: "Concre-tum, de eoncrescere, eo qU6cresceujuntamente; eo crescimento junto em antitese aoseparado. Em Hegel, portanto, 0concreto e 0todo(. . .) .Abstratos, por seu turno sao

pre~is~~ente ? individ~o, 0 que e isolado, 0 momento singu lar - por exempio, asubJetlVlda?e Is~lada e independente dos objetos de que se ocupa, ou, do outro lado,

asP?ras coisas, independentemente dos momentos da mediacao pelo pensamento, osquais estao sempre contidos nelas", A especifica diferenca entre pessoa concreta e

pessoa abstrata e explicada com clareza por N. Bobbio no ensaio "Diritto privato ediritto pubblico in Hegel", in Rivista di Filosofia, mimero especial dedicado a Hegel e10 Stato, 1977, pp. 3-29, em particularp. 16.

 

118 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLITICA MODERNA 119

do individuo isolado posta como origem e fundamento da re-lacao social e ironicamente definida como "robinsonada" .

modema da formacao social: "a luta pelo reconhecimento,conduzida naquela forma ate os extremos, pode ter lugar tao-

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Portanto, as perspectivas hegeliana e marxista convergemna tentativa de fundar em ultima instancia a dimensao indi-vidual na dimensao coletiva. Porem, enquanto em Marx isso eimediatamente evidente, na medida em que as categorias dodireito privado e da moral (a superestrutura juridica e ideolo-

gica) recebem uma explicacao a partir da analise das relacoesfundamentais que ligam os homens na sociedade civil(a base),em Hegel nao tern lugar uma igual evidencia, ja que a consi-deracao do individuo na dupla figura da pessoa juridica e dosujeito moral precede a consideracao das estruturas coletivasna eticidade. Tern algum significado essa analogia com a pers-pectiva jusnaturalista em relacao ao ponto de partida no abs-trato?

Decerto, pode-se perceber na versao hegeliana uma pre-cisa continuidade com a colocacao modem a dada pelo jusna-turalismo ao problema politico: no Ocidente europeu, que

"sabe que todos sao livres", 0 trace caracteristico da dimen-sao pratica - e, por isso, tambem 0 dado elementar do pro-blema politico -, e apontado no direito da pessoa (direitoabstrato) e na autonomia do sujeito (moralidade). Mas 0pro-blema e que a liberdade individual intema e extema nao epara Hegel a do homem do estado de natureza jusnaturalista.Na verdade, Hegel nao recusa a nocao de estado de natureza:critica a sua visao idilica dada por Rousseau, mas louva Hob-bes, precisamente 0 fundador do modelo, por ter entendido"em seu reto sentido" tal conceito,? E, tambem para Hegel,a condicao natural e a antitese e 0 longinquo antecedente his-

torico da condicao civil. Isso e claramente afirmado na "gran-de" Enciclopedia, onde 0Naturzustand e definido como 0es-tado em que ocorre a "luta pelo reconhecimento", 3 e, comotal, e contraposto a biirgerliche Gesellschaft e ao Staat, signi-ficativamente acoplados para indicar a estrutura tipicamente

somente no estado de natureza, onde os homens existem so-mente como individuos singulares, enquanto desaparece nasociedade civil e no Estado, ja que nesses esta ja presente 0

que constitui 0 resultado daquela luta, ou seia, 0 ser-reconhe-cido"," 0 motivo hobbesiano do estado de natureza como es-

t~do de guerra entre os individuos e bern evidente; e a analo-gra aparece de modo talvez ainda mais preciso num local ime-diatamente precedente, que pode ser tornado como exemplodo modo pelo qual urn tema tradicional e ao mesmo tempoassumido e transfigurado por Hegel: "ambos os sujeitos auto-conscientes que se relacionam urn com 0outro, na medida emque tern urn existir imediato, sao naturais, corporeos, peloque existem no modo de uma coisa sujeita a violencia extema[ou inimiga: fremder Gewaltl; (... ) mas, apesar disso, saoapenas livres e nao podem ser tratados urn pelo outro comourn simples existir imediato, como algo meramente natural" .5

Para superar essa contradicao, e necessario precisamente queos sujeitos cheguem a se reconhecer tais como sao "segundo 0

seu conceito, ou seja, como essencias nao puramente naturais,mas sim livres". Mas, acrescenta Hegel, "isso nao pode ocor-rer enquanto eles estiverem envolvidos em sua imediaticidade,em sua naturalidade. 13 . que essa e exatamente 0que os exc1uiurn do outro e osimpede de ser livres urn para 0outro, a liber-dade exige que 0 sujeito autoconsciente nem deixe subsistirsua propria naturalidade, nem tolere a naturalidade alheia,mas ao contrario, indiferente em face do existir, ponha emjogo em acoes imediatas singulares a sua propria vida e a vidaalheia com 0 objetivo de conquistar a liberdade. Portanto, 80-mente mediante a luta a liberdade pode ser conquistada: naobasta para tanto a certeza de ser livre. Somente atraves disso,de que 0homem ponha a si mesmo e aos outros em perigo demorte, ele prova desse ponto de vista sua aptidao a liber-

(2) Eo que se diz nas Lezioni sullafilosofia della storia, trad. it., Florenea, La

Nuova Italia, 1967, vol. III, 2, p. 174.(3) 0local, defato, e aquele onde e retomado nosistema, no interior da ~io

sobre 0 Espirito- objetivo, 0 celebre capitulo da Fenomenologia sobre a "Indepen-

dencia e dependencia da autoconsciencia: senhoria e servidio" .

(4) Enzykloptidie der philosophischen Wissenschaften, § 432 Zus. Sirvo-meda.edi~io incluida nas Werke in zwanzig Banden, ed. por E. Moldenhauer e K. M.Michel, Frankfurt, Suhrkamp, 1969-1975 (0 local cit. esta no vol. 10, p. 221). Dora-vante, a Enciclopedia sera citada como E seguida domimero doparagrafo,

(5) E431Z.

 

120 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLiTICA MODERNA 121

dade"." Mas a luta nao termina imediatamente no reconheci-mento e, portanto, numa relacao entre livres, mas sim na sub-

samente porque, para Hegel, 0verdadeiro direito de natureza,aquele que se determina segundo a natureza, ou seja, segundo

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missao de urn sujeito ao outro e, portanto, numa relacao desenhoria e servidao: a qual, como diz Hegel, e "0Ienfimeno deonde surge a convivencia dos homens como comeco dos Es-tados"."

Em suma, precisamente porque 0 estado de natureza e ,

como dissera Hobbes, 0reino da violencia e do arbitrio," ele eantes de mais nada incompativel com 0 estado de direito (ouseja, condicao juridica: Rechtszustand), no qual "todos saolivres"; e tampouco pode ser assumido como 0 local no qualsao perceptiveis os verdadeiros principios desse ultimo. Entre.estado de natureza e estado de direito, para Hegel, nao existeaquela relacao de identidade que permitia aos jusnaturalistasreconhecer no estado de natureza 0 local em que se manifestaimediatamente 0 "direito natural"; mas tampouco existe umarelacao de derivacao ou de comunicacao direta, como aquelaque permitia aos jusnaturalistas fundar sobre 0 direito natu-

ral, atraves do pacto social, a sociedade politica e 0 direitopositivo e, portanto, a condicao civil. Para Hegel, entre estadode natureza e estado de direito (0 estado que, para esc1areceras coisas, constitui 0ponto de partida da Filosofia do direito),ha urn processo de transformacao tao radical que, se0estadode natureza pode ser visto como 0 lugar do qual decorre "0

comeco externo e Ienomenico dos Estados", tal comeco nao eporem "0seu principio substancial": consistindo, de fato, na"submissao a urn senhor" ,9 ele exc1uiprecisamente aquele es-tado de direito - ou situacao na qual "todos sao livres", jaque para Hegel direito e existencia da liberdade - que e pres-

suposto indispensavel do Estado em sua "verdade" e, ao mes-mo tempo, que somente serealiza no Estado. Em outras pala-vras: com Hegel, 0problema da origem do Estado nao coin-cide mais, e, ao contrario, diferencia-se nitidamente do pro-blema de seu fundamento "segundo 0conceito". E isso preci-

o conceito, do homem, nao seencontra no estado de natureza,o qual, ao contrario, representa a sua negacao; e, do estado denatureza, "nada pode ser dito de mais verdadeiro do que 0

seguinte: e preciso sair dele" .10Portanto, a liberdade individual como direito nao emerge

no nivel do estado de natureza, que nao conhece direito, enem mesmo no nivel do estado que 0 segue, 0 Estado despo-tico, ou da relacao entre senhoria e servidao," na medida emque ela representa urn mundo anterior a "condicao verdadei-ramente etica" da epoca modema, "no qual 0 torto e aindadireito": e isso e algo que ele tern em comum com todosaque-les "mundos" que admitem uma forma qualquer de escravi-dao, ja que neles a liberdade nao e ainda considerada comoatributo do homem enquanto homem, masapenas como qua-lidade que alguns obtem do nascimento, e que, por isso, ternainda uma determinacao natural. Mas Hegel especifica de

modo inequivoco que "0 ponto de vista ( ... ) com 0 qual seinicia 0 direito e a ciencia do direito ja se situa para alem dofalso ponto de vista no qual 0 homem e enquanto e ser natu-ral" Y Na distancia entre estado de natureza e estado de di-reito, pode-se mensurar a diferenca radical que separa 0pontode partida hegeliano do ponto de partida jusnaturalista.

Essa diferenca permite tambem redimensionar 0 alcanceda analogia geral entre 0modelo jusnaturalista e a estruturaglobal do sistema hegeliano de filosofia pratica: analogia queaflora quando se reflete que urn e outro partem da considera-I;ao do individuo (num caso, estado de natureza; no outro,

direito abstrato e moralidade) para chegar a consideracao dacoletividade (num caso, sociedade civil; no outro, eticidade,

(6) Ibidem.

(7) E433A.

(8) E a definicao que aparece emE 502A. Tambem em FD 93, Hegel escreve:"( . .. ) e i n Naturzussand, Zustand der Gewal t iiberhaupt " .

(9) E433 A.

(10) E 502 A; e cf. ibid.: "Na realidade, 0 direito e todas as suas determi-

nacoes fundam-se apenas na personalidade livre: numa autodeterminacao, que e 0

-. contrario da determinacao natural" .(11) E assim corretamente interpretada a celebre figura da Fenomenologia

por S. Landucci, Hegel: la conscienza e la storia, Florenca, La Nuova Italia, 1976,

p. 100 e ss. , onde 0 autor desenvolve algumas consideracoes, que partilho, sobre 0

ensaio de V. Goldschmidt , "Etat de nature e t pac te de soumission chez Hegel" , in

Revue Phi lo sophique de laFrance et de l 'E tranger , 1964.

(12) Cf. FD57A eZ .

 

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que compreende, alem da sociedade civil, a familia e 0 Es-tado). Com efeito, a condicao de direito em cujo interior emer-

ria nem provisoria: c) e condicao apenas abstrata, que naopode constituir 0fundamento do concreto. A capacidade juri-

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ge, para Hegel, a instancia da liberdade do individuo nao euma condicao associal ou imperfeitamente social, como era 0caso na. representacao jusnaturalista do estado de natureza,porque "a sociedade e a unica condicao na qual 0direito tern.sua realidade" .13 Nao somente 0 individuo com 0 qual se ini-

cia 0 tratamento hegeliano do Espirito objetivo nao esta emestado de natureza e sim em estado de direito, e, por isso,pode sepor 0problema de sua liberdade e de seu direito, mastambem 0 estado de direito enquanto tal e necessariamenteestado de sociedade, e, por isso, o direito do individuo nao e"direito natural" no sentido jusnaturalista, ou seja, no sentidode urn estado anterior ao estado de sociedade e fundante comrelacao ao Estado: Hegel fala explicitamente de "direito abs-trato dos Estados modern os" .14 A personalidade de que seocupa 0 direito abstrato (expressao que, em Hegel, significasubstancialmente direito privado) e, do ponto de vista da Filo-

sofia do direito, simplesmente a categoria mais elementar quepode ser predicada de qualquer sujeito humano que viva nointerior da organizaeao global da formacao social modema.

Finalmente, se 0 problema propriamente politico jusna-turalista e 0 de fazer confluir as livres vontades individuais nocorpo social, superando a contradicao de fundo entre a auto-nomia do individuo e a vida coletiva, em Hegel 0 problemaanalogo da relacao entre vida dos individuos como indepen-dentes e organismo social-politico nao se coloca no nivel darelacao entre 0 direito abstrato (ou entre esse e a moralidade,em conjunto) e a eticidade, mas e problema intemo as estru-

turas do etico. A condicao de liberdade individual e certa-mente 0 ponto de partida da consideracao hegeliana da pra-tica, tal como no modelo jusnaturalista, mas essa condicaoinicial nao tern as caracteristicas e nem mesmo a fun~ao logicaque tinha 0 estado de natureza no modelo jusnaturalista.E isso porque ela: a) e condicao de direito nao anterior a or-dem civil;b) e condicao vigente numa ordem social nao preca-

dica que define a pessoa considerada abstratamente resume-se a uma pura e simples faculdade ou possibilidade (todospodem possuir livremente, todos podem trocar, ou seja, esti-pular contratos), da qual e indedutlvel a relacao necessariaque liga os individuos em urn todo, a nao ser que considere-

mos 0 corpo coletivo com os parametros de uma associacaoprivada: mas esse e 0 caso pam 0 jusnaturalismo, nao paraHegel." Portanto, enquanto 0 estado de natureza em Hegelconserva 0 carater hobbesiano de estado da violencia e daopressao, oposto a condicao civil em sentido amplo, perde po-rem 0carater de estado puro da liberdade do individuo'e, porconseguinte, perde tambem a funcao que 0estado de naturezajusnaturalista tinha enquanto momenta do direito natural quefunda 0 estado civil; 0 direito abstrato adquire certamente 0

carater de momento no qual se manifesta a mais imediata li-berdade do individuo, mas nem por isso adquire tambem a

funcao que desempenhava 0momento correspondente no mo-delo jusnaturalista. Com efeito, assim como nao e possivelbuscar 0 fundamento da vida coletiva ou etica no estado denatureza, tambem nao e possivel busca-lo no direito privado.Do ponto de vista hegeliano, nao e mais concebivel a constru-~ao da dimensao coletiva a partir dos individuos consideradosenquanto pessoas: so e possivel compreender aquela dimensaoquando se determina 0 espaco da coletividade como espacoautonomo e, em ultima instancia, como 0 verdadeiro princi-pio. 0 individuo cuja relacao com a organizacao da vida cole-tiva se poe como problema nao e a pessoa abstrata, sujeito derelacoes formais acidentais, mas e a pessoa concreta que, aoperseguir seu proprio interesse privado, ou seja, ao afirmarsua propria individualidade, esta essencialmente em relacaocom as outras individualidades: eo cidadao privado ou 0civil,ja necessariamente inserido, ainda que em sua autonomia -

(13) E502A.

(14) Lezioni sulla storia della filosofia, cit., I, p. 372.

(15) Urn dos temas recor rentes em Hegel e a critica A s teorias contratualistas,

com base nas qua is 0Estado assume 0f also aspect o de uma associaeao que "deri va

do arbitrio dos associados" (cf. FD 75 A). Sobre 0 assun to , cf. N. Bobbio, "Dir it to

pr ivato e di ri tt o pubbl ico in Hegel" , c it.

 

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e, por isso, de modo contraditorio -, num todo ou dimensaocoletiva. Essa dimensao coletiva contraditoria, a partir da

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qual se poe 0 problema da relacao entre individuo e Estado,entre autonomia dos privados e poder do organismo politicosuperior, e a sociedade civil.

Portanto, 0 confronto com 0 jusnaturalismo no terrenodo problema politico da sociedade moderna nao deve ser efe-

tuado nem examinando as secoes iniciais da Filosofia do di-reito - embora essas retomem a divisao jusnaturalista entredireito e moral -, ja que nesse nivel nao surge em Hegel 0problema do Estado; nem examinando a estrutura global dosistema, embora essa pareca repetir a biparticao jusnatura-lista entre individuo e coletividade, ja que os termos e a figurada rela~ao sao na realidade diversos; tal confronto deve serfeito examinando a secao conc1usiva, e, mais precisamente,a dicotomia entre sociedade civil e Estado, em cujo interior serecoloca para Hegel 0 problema da fundacao unitaria da so-ciabilidade moderna. 0 confronto, alias, se impoe nesses ter-

mos, nao somente por causa da presenca ambiguamente co-mum, nos dois modelos, da categoria da sociedade civil, massobretudo porque Hegel diz que a sociedade civil conserva emsi - de modo surpreendente - precisamente "0 residuo doestado de natureza" .16

As analises ate aqui realizadas exigemuma comprovacao:e essa sopode provir da propria comparacao entre a dicotomiajusnaturalista estado de natureza/sociedade civil e a dicoto-mia hegeliana sociedade civil/Estado. Atraves dessa compara-cao, tentaremos reconstruir a identidade do modelo hegelo-marxiano; e, na medida em que se consiga determinar urn

significado unitario do esquema conceitual em simesmo, paraaquem das diferencas que especificam a versao hegeliana e aversao marxiana do modelo, poderemos tambern considerarjustificada, de modo mais persuasivo, a reducao aos limitesdas fronteiras marxianas do mais amplo e complexo sistemaconceitual hegeliano.

Qual Marx e qual Hegel?

(16) FD 200 A; e cf. tambem FD 289 A, onde se afirma que a sociedade civil"e 0 campo de batalha do interesse privado individual de todos contra todos" comoevidente referencia ao bellum omnium contra omnes do estado natural na tradi . .aohobbesiana.

Mas e necessario ainda considerar uma objecao, de si-nal contrario com relacao a anterior, que poderia ser dirigidaa consideracao da dicotomia sociedade civil/Estado como mo-

delo "hegelo-marxiano". Falamos ate agora dessa dicotomiacomo de urn esquema conceitual que Marx recolheu de Hegele transformou com variacoes, Mas transforma-la no modelopor meio do qual seexpressa a teoria marxiana do politico naosignifica talvez atribuir uma excessiva importancia ao papelque essas categorias desempenham na obra de Marx? Nao secorrera 0risco de sobrepor ao pensamento marxiano concretourn esquema hegeliano que the e substancialmente estranho?Mais precisamente: nao se corre 0 risco de privilegiar a obrajuvenil deMarx, na qual essa dicotomia e especificamente ob-jeto de reflexao, semlevar em conta a famosa "ruptura" entre

osescritos juvenis e as obras maiores, nas quais tal dicotomia,ainda que reapareca algumas vezes, nao mais assinalaria 0

horizonte conceitual da reflexao marxiana sobre 0 problemapolitico da sociedade moderna e, alem do mais, seria enten-dida num sentido inteiramente diverso daquele dos escritosjuvenis? Em suma, mais uma vez, tudo isso nao constituiriauma "hegelianizacao" deMarx?

Dessa objecao, e sem duvida aceitavel 0 dado inicial:qualquer tratamento referente a embrionaria teoria politica:"marxiana nao pode ignorar 0problema das varias fases que 0pensamento deMarx atravessou e, por isso, deve dec1arar pre-

 

126 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 127

viamente a "qual" Marx pretende se referir - e por que.

Acrescentemos, de resto, que a mesma coisa vale para Hegel.mente com as caracteristicas "conciliadas" de uma verdadeirauniversalidade. A cisao tern para Hegel sua principal raiz na

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Nossa escolha dos Lineamentos de filosofia do direito comotermo privilegiado de referencia para 0 estudo do seu pensa-mento pode suscitar perplexidades naqueles que julgam essaobra mais comprometida do que outras com as diretivas e osdesejos do poder vigente. Entre os interpretes, com efeito, vern

se difundindo a tendencia, nao diria de eludir a analise dosLineamentos, mas pelo menos de buscar em outros locais,como corretivo, expressoes mais genuinas do pensamento he-geliano: nos escritos do periodo de Jena, especialmente noschamados cursos de Realphilosophie de 1803-1804 e de 1805-1806, onde haveria uma ambiguidade menor; ou nos cielos deLicoes berlinenses sobre a filosofia do direito, que permane-ceram ineditas ate ha POUCO,l nas quais Hegel mostra, comrelacao aos Lineamentos, maior preocupacao com a raciona-lidade que com a efetividade.? Ninguem pode diminuir a im-portancia do estudo dos escritos de Jena para reconstruir me-

lhor 0 sentido do hegelianismo; mas insisto no fato de que 0

sistema conceitual em cujo interior adquire seu pleno sentido

a interpretacao hegeliana da estrutura social e politica mo-derna esta muito distante de sua elaboracao definitiva naque-les escritos. 0desenvolvimento do pensamento politico hege-liano e marcado por continuas tentativas de resolver 0 pro-blema da cisao na vida social moderna: tal vida, embora seiade qualquer modo vida coletiva, nao se apresenta imediata-

existencia "para si" do homem-consciencia cristae, que se re-encarna no individuo isolado dos jusnaturalistas e, posterior-mente, no sujeito economico dos economistas classicos. Antesde 1818-1819, os anos iniciais do periodo berlinense, que pre-cedem a redacao dos Lineamentos, concluidos em 1820 e pu-

blicados no ana seguinte, Hegel nao consegue encontrar urnfundamento unitario para a socialidade moderna e, portan-to, tampouco consegue conceber uma verdadeira eticidademoderna: a dissolucao da ligacao entre 0 individuo e a comu-nidade, a perda da ingenuidade do etico e a impossibilidadede urn retorno a bela eticidade antiga parecem coincidir comuma desagregacao objetiva, 0 que falta nos esbocos de sis-tema anteriores ao periodo berlinense e 0 conceito de socie-dade civile, por conseguinte, aquele conceito de Estado que sedefine em relacao a sociedade civil:" ou seja, falta precisa-mente aquele modelo que e 0 unico a permitir a Hegel a com-

preensao, em sua racionalidade, como urn todo organico, daestrutura social moderna. Quanto asLi~oes berlinenses de fi-

losofia do direito, sem diivida elas mostram uma atitude aquie ali mais flexivel e aberta e contem adendos bastante signi-ficativos ao tratamento da materia tal como Hegel 0efetua naobra destinada ao publico; mas nem aquela atitude nem essesadendos alteram substancialmente 0 arcabouco categorial dosistema, nem 0 significado interno daquele micleo conceitualque, comomodelo, eo unicoque aqui nos interessa. 0recursoaos adendos que aparecem nas Licoes resulta quase sempredecisivo para 0 esc1arecimento do texto publicado: mas isso

nao naquilo em que as Liciies possam diferir do texto, masprecisamente no que constitui a sua unidade de fundo, isto e,

a estrutura arquitetonica.'

(1) Publicados em 4 volumes por K.-H. IIting com 0 titulo Yorlesungen i iber

Rechtsphi/osophie 1818-1831, Stuttgart-Bad Cannsttat, Frommann-Holzboog Ver-lag, 1973-1974. Foi precisamente Ilting, nas "Introducoes" a esses volumes (agora

recolhidas, juntamente com outros escritos de Ilting, e parcialmente revistas pelo

autor, no volume editado por E. Tota, Hegel diverso, Bari, Laterza, 1977), quem sefaz fautor e interprete, com base nas referidas Licoes, de uma nova imagem do Hegel

pol it ico, "diversa" e mais progressista do que a imagem que aparece a part ir dos

Grundlinien .

(2) Mas sobre a relacao que Hegel institui programaticamente entre real (efe-

tua l) e rac ional, c f. agora as luc idas observacoes de R. Bodei em apendice ao seu"Dialettica e controllo dei mutamenti sociali in Hegel" (incluido no opiisculo Hegel e

Weber, Bari , De Donato, 1977 , jun tamente com urn ensaio de F. Cassano e comvarias intervencoes de B. deGiovanni, G. Cantillo, R. Racinaro et al.), especialmentenaspp. 113-22. Nessetexto, Bodei desenvolvee esclarece ainda mais algumas teses con-

tidas em seu excelente Iivro Sistema ed epoca in Hegel, Bolonha, II Mulino, 1975.

(3) R. Bodei, na resenha "Studi suI pensiero politico ed economico di Hegel

nell'ultimo trentennio" (in Rivista Cri tica di Storia del la Fi/osof ia , 1972, pp. 435-66,

p. 465), afirma que "a fonte mais imediata da posterior contraposicao entre socie-

dade civil e Estado" deveser buscada na antitese entre biirgerliche Ordnung e staat-li che Ordnung ; da qual Hegel fala em seu escrito de 1817sobre a Dieta de Wiirttem-

berg(cf. trad. it., inG. W. F. Hegel, Scrittipolitici, Turim, Einaudi, 1972).(4) 0 propr io I It ing reconhece que 0 valor primeiro da Fi/osof ia do direi to

consiste em sua arquitetura, que permanece substancialmente inalterada tambern

 

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Mas esse modelo - voltamos a objecao principal - podeser considerado como tal tambern para a teoria politica de

matica politic a do jovem Marx a luz dos conceitos fundamen-tais de analise social elaborados por Marx nas obras maiores,

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Marx? Segundo alguns interpretes, a dicotomia sociedade ci-vil/Estado politico tern valor de esquema te6rico fundamentalsomente para osescritosjuvenis e nao para os da maturidade.Nesses, os referidos termos seriam usados num sentido bas-tante diferente e, sobretudo, nao formariam mais, em sua re-

lacao, aquela figura oposicional que surge nas obras anterio-res: e isso na medida em que os modelos logicos do Marx jo-vem-hegeliano ou feuerbachiano, com base nos quais a figurae construida, seriam incompativeis com a chamada "episte-mologia do modo de producao" que caracteriza asobras maio-res. Direi, de imediato, que nao pretendo de nenhum modoprivilegiar 0jovem Marx, mas, ao contrario, considerar 0 pen-samento marxiano no nivel de suas expressoes mais maduras,dando particular atencao aos Grundrisse. Mas, como se sabee ja foi bastante repetido, no legado literario de Marx nao hanada de analogo aos Grundlinien hegelianos, ou seja, nao

existe uma teoria do politico madura e desenvolvida, nem umateoria da formacao social moderna que abranja as instanciaspoliticas. E. como ja disse, qualquer tentativa de extrair urnmodelo te6rico completo a partir das dispersas e fragments-rias indicacoes em materia politica das obras da maturidadecorre 0 risco de resultar algo generico e, portanto, banal, ouentao fantasioso e, portanto, discutivel.

De onde provem, portanto, 0 afirmado "modelo" mar-xiano? Em minha opiniao, e possivel repensar toda a proble-

e, com base em tais conceitos, avaliar a permanencia dos as-pectos singulares da concepcao juvenil. Esquematicamente(mas 0esquema e 0fornecido pelas indicaeoes autobiograficasde Marx), pode-se dizer que a producao marxiana mais pro-priamente te6rica desenvolveu-se ao longo de urn itinerario

que vai da analise da relacao sociedade civil/Estado ao estudoda anatomia da sociedade civil moderna ou sociedade bur-guesa. Para 0 objeto do presente trabalho, 0 termo chave emais uma vez, e com toda evidencia, 0 de sociedade civil. Nodesenvolvimento da investigacao de Marx, a virada decisivacoincide certamente com a introducao do conceito de'capitalcomo relacao social (e, portanto, em geral, dos conceitos de"modo de producao", "relacoes de producao", etc.), a qualpermite identificar a moderne biirgerliche Gesellschaft , combase em sua estrutura interna, como sociedade capitalista.Pois bern: nos locais da obra madura onde reemerge 0 pro-

blema do Estado dentro da perspectiva instituida pela nova ourenovada nocao de sociedade civil, ele continua a se apresen-tar nos termos das primeiras investigacoes: e nao apenas noplano lexical 0problema e ainda formulado por meio da dico-tomia juvenil biirgerliche Gesellsehaft/politischer Staat, mase ilustrado com argumentos retomados quase literalmente do

primeiros escritos.'Tais indicacoes textuais ja seriam suficientes para confir-

mar a tese de continuidade na colocacao do problema, em-

(5) Entre os escritos que poderiam ser indicados, gostaria de recordar apenas

o primeiro ensaio deredacao de A guerra civil na Franca, escrito por Marx em inglesem 1871,onde reaparecem freqiientemente as argumentacoes e ate mesmo as formu-lasIingiiisticas ja empregadas na Kritik de 1843e na contemporanea Judenfrage _Por

exemplo, falando da Comuna, ele afirma: "Tratou-se da reapropriacao pelo povo e

para 0 povo da sua propr ia v ida social"; e , pouco depois: "A Comuna e a formapolitica da sua [das massas populares J emancipacao social, substituindo a forma arti-ficial (.__da sociedade" (cito da trad, it., K_Marx, Scritti sulla Comune di Parigi,

Roma, Sarnona e Savelli, 1971, pp. 120e ss.). Compare-st essa colocacao, niioso doponto de vista lexical, com numerosas passagens quase identicas da Kri;i~ de 1843,mas tambem do ponto de vista conceitual, com a famosa conclusiio da i£den/rage:"Somente quando 0 homem reconhece e organiza ss forces propres como forcas so-ciais e,portanto, niiomantem separada de simesmo a forca social na forma de forcapolitica, somente entiio se completa a emancipacao humana" (d. Scritti.politici gio-

vanili, ed. L. Firpo, Turim, Einaudi, 1950, p. 385). '

nas Lir;6ese que e depois repetida nas duas edicoes berlinenses da Enciclopedia (1827e 1830), ambas posteriores ao ultimo curso completo de filosofia do direito (1824-1825) (d. Ilting, Hegel diverso, ci t. , p. 140 ,n . 11) .De resto , precisamente Il ting e

autor de urn importante estudo sobre "La struttura dena Filosofia del diritto di He-

gel", de 1971(agora inclido na op. cit., pp. 5-32). De qualquer modo, 0 recurso amonumental edicao de Ilting e agora obrigatorio para os estudiosos da filosofia poli-tica ejuridica hegeliana. Contudo, mesmo levando-a sempre em conta e fazendo as

devidas comparacoes, preferimos neste local utilizar osadendos de Gans, aos quais sereferiu uma longa tradicao de interpretes; e 0 memos tanto por causa dos Iimites

deste trabalho, que nao tern como objetivo uma reconstrucao filologica exaustiva dopensamento hegeliano como tal, tanto porque os adendos de Gans se baseiam preci-samente nas Lir;6es hegeli anas, e Gans - como afirma 0 proprio Ilting (op. cit.,

pp. 135e ss.) - desempenhou comoeditor urn trabalho filol6gicorigoroso.

 

130 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLiTICA MODERNA 131

bora tal continuidade se realize numa obra de aprofunda-mento e de correcao ate mesmo radical; e, de qualquer modo,autorizariam, no plano filologico, 0cotejo em positivo entre as

simplesmente como 0 aspecto geral formalmente comum aelas. Em outras palavras: 0 que sera exposto nas paginas se-

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primeiras e as iiltimas paginas politicas de Marx." E verdadeque cotejos, analises e exegeses desse tipo a proposito do cor-pus da obra de Marx ja foram repetidos infinitas vezes, e,naturalmente, nao aplainaram as divergencias entre os inter-

pretes. Mas 0 ponto que aqui importa sublinhar ainda e 0 se-guinte: qualquer que seja a distancia entre 0 primeiro e 0 ul-timo Marx que uma ou outra analise consiga mensurar, per-manece 0 fato de que 0 problema politico moderno emergetambern nas obras maduras dentro do horizonte da cisao entresociedade civil e Estado politico, urn horizonte geral que su-bordina a compreensao da teoria politica marxiana em suaespecificidade a compreensao dos significados mais gerais doesquema conceitual comum, em sua forma, a Hegel e a Marx.

Com isso, voltamos ao ponto de partida: 0que se impoe eurn esforco cognoscitivo no sentido do "modelo hegelo-mar-

xiano" (precisamente a dicotomia sociedade civillEstado) emsua estrutura formal, que nao pode ser apenas urn pressupostodas investigacoes sobre 0 concreto, mas deve ser em simesmoreconhecido, tal qual e, como problema. E e esse problemaque pretendemos esc1arecer aqui atraves de urn confronto como modelo jusnaturalista.

Quase nao tenho necessidade de reafirmar que a cisao/contraposicao entre sociedade e Estado, constituindo 0 es-quema conceitual compreensivo e resolutor em cujo seio seconcretizam, na especificidade de suas articulacoes, as con-cepcoes divergentes de Hegel e de Marx, e considerada aqui

guintes nao quer, nem poderia, ser considerado como umatentativa de interpretacao global da filosofia politic a de Hegelou de Marx, ainda que so em suas linhas mais essenciais. Nomaximo, podera ser utilizada emposteriores elaboracoes ~omourn inicio, quase como uma introducao geral a uma leitura

que devera dar uma atencao inteiramente diversa aos muitospontos problematicos em que se articulam - diferenciando-se- as constelacoes de uma e de outra teoria.

(6) De qualquer modo, e somente atraves de urn cotejo analitico que se poderesponder a questao de saber se e de que maneira a perspectiva marxiana madurasobre 0 problema politico e diversa da concepcao juvenil. A deducao de uma impos-sibilidade de comparaeao entre a teoria politica juvenil e a madura, fundada a priorinuma suposta incompatibilidade de modelos epistemol6gicos, peca por abstrativi-dade e teoricismo. Urn tal raciocinio, como D. Zolo observou em polemica com AI-

thusser, Poulantzas e Guastini (cf. Stato socialista e liberta borghesi, Bari, Laterza,1976, especialmente pp. 115-21), leva a enrijecer a problematica politica marxiana

nos termos de uma generica sociologia das classes: desse modo, ela nao sO resultaempobrecida, mas-tambem se aproxima de esquemas mecanicistas vulgares, apesarda sofisticacao conceitual e lingiiistica com a qual e freqiientemente apresentada.

 

SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODER:"I..-\ lJJ

mente uma serie de transformacoes de significado atraves dasquais essa nocao termina por substituir a de estado de nat~-

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reza, pelo menos no sentido de que 0estado de natureza prefi-gurava, na perspectiva jusnaturalista originaria, aquela SO~l~-dade economica que setoma paulatinamente a sociedade civildistinta do Estado.

Essa substituicao pela biirgerliche Gesellschaft do status

naturae, e nao do seu correspondente Iinguistico societas civi-lis e encontravel - e tern urn significado proprio - somentenum nivel muito elevado de abstracao: 0 que permite com-preender tanto a embrionaria sociedade economica emergentedo estado de natureza, quanto a sociedade civil do uso pos-jusnaturalista, na generica determinacao negativa de momen-tos nao politicos. Nesse nivel, 0processo de transformacao domodelo jusnaturalista para 0modelo hegelo-marxiano parecepoder ser resumido em duas operacoes simples: remocao doestado de natureza enquanto instrumento conceitual inade-quado a representar 0 lugar "aquem do politico", 0 espaco

nao politico em antitese ao qual se define 0momento politico; 2e degradacao da sociedade civil de momento politico e su-perior a momento nao politico e inferior. Mas e de observarque, sob essa luz, nao aparece mais nenhuma cesur~ radic~lentre os dois modelos. Com efeito, os termos da dicotomiapermacem substancialmente os mesmos: Estado e nao-Es-tado: e a transformacao do primeiro no segundo momento

, , 1parece quase seresumir a uma troca de nomes, marca sensiveda historicizacao da situacao compreendida no primeiro mo-delo sob a categoria de estado de natureza. Mas Rousseau janao havia explicitamente criticado os iniciadores do jusnatu-

Duas antiteses fundamentais

T al como 0modelo jusnaturalista status naturae/socie-

tas civilis, tambem 0 modelo hegelo-marxiano biirgerliche

Gesellschaft/politischer Staat apresenta-se na figura de uma

oposicao. Se examinarmos os atributos de cada elemento,atraves dos quais se delineia, numa primeira aproximacao, aface de uma e de outra antinomia, tais atributos parecem in-dicar uma correspondencia de termo a termo entre os doismodelos, no sentido de que ao status naturae do primeiro pa-rece corresponder no segundo a biirgerliche Gesellschaft; e asocietas civilis, 0politischer Staat. Com efeito, se societas civi-

lis no lexicojusnaturalista tern 0significado de sociedade poli-tica, esse significado e assumido no lexico hegeliano e mar-xiano pelo Staat; e, se a funcao do status naturae no primeiromodelo e a de indicar a condicao nao politica contraria, amesma funcao no segundo modelo e assumida pela biirgerli-che Gesellschaft . E issoocorre apesar do fato de que a expres-~ao biirgerliche Gesellschaft traduz literalmente a expressao

latina societas civilis e parece indicar, ao contrario, urn nexocruzado entre 0 segundo termo do primeiro modelo e 0 pri-meiro termo do segundo modelo. Mas a historia da nocao desociedade civil na filosofia politica modema I. mostra precisa-

(1) Cf.-N. Bobbio, "IIconcetto di societa civile inGramsci", in Virios auto-

res, Gramsci e la cultura eontemporanea, Roma, Editori Riuniti, 1969, vol. I, pp.

75 -100 (ago ra , com out ro s escrit os do mesmo autor , no opi iscu lo sob 0~i~lo Gramscie la concezione della societe civile, Milao, Fel tr inelli , 1976 [ed. brasileira: 0 con-ceito de sociedade civil, Rio de Janeiro, Graal, 1982]); id. , "Sulla nozione di societa

civile ", in De Homine, 1968, n. 24-5; id. , Socie ta civile", no Dizionario di po/itica,

ed. por N. Bobbio e N. Mateucci, Turim, Utet, 1976.

(2) Digo " remocao", e nao "sup res~~o" , po. rq~e v im?s que .em. He~~1a nocao

de estado de natureza e r ecuperada no Espi ri to sub je tivo, a f im de ind icar 0 com~o

externo e fenomenico dos Estados" (d. supra). E a mesma nocao, de resto, e tambemrein troduzida no Esp ir ito obje tivo, para a lem do Estado, a f im de ind i~ar.~ natu rez~

das r ela . .i ies i nternac ionais (d . FD 333) ; sob re 0 assunto, d. N. Bobbio, Hegel e iI

giusnatural ismo", cit ., pp. 400-1.

 

134 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLiTICA MODERNA 135

ralismo moderno por terem confundido 0homem de naturezacom 0 homem da societe civile, produto historico da civili-

de estuda-la com base na identidade formal entre 0 esquemaconceitual hegeliano e 0marxiano. Para quem escreve, e in-

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za~ao?3A propria atribuicao do nome biirgerliche Gesellschaft

ao estado de natureza historicizado, portanto, nao parece as-sumir urn significado excessivamente revolucionario, mas con-figurar-se como a resultante de duas linhas de pensamento

anteriores: a de Locke-Kant, na qual 0 estado natural e jauma especie desocietas; e a de Rousseau-Ferguson, na qual asociedade civil e organizacao coletiva que compreende 0 agireconomico dos individuos." E isso para nao falar de autoresmenores, comoA. L. Schlozer eA. Feuerbach, em cujas obras-aparece de modo explicito, ainda que mesc1ada com esquemasconceituais extraidos da escola do direito natural, a distincaoque sera hegeliana, e depois marxiana, entre biirgerliche

Gesellschaft e Staat. Assim, a diferente interpretacao do mo-mento nao politico, e da relacao desse com 0 momento poll-tico, que se expressa atraves do esquema sociedade civil/

Estado com relacao ao esquema estado naturallsociedadecivil, poderia tambern ser considerada como a ultima dasgrandes variantes que podem ser reconhecidas no desenvolvi-mento da teoria politica moderna inaugurada pelo jusnatura-lismo. Numa tal perspectiva, assumiria destaque nao tanto aligacao Hegel-Marx, indicada pela forma do esquema concei-tual sociedade/Estado, mas sim aquela mudanca de direcaopela qual se pode dizer que 0 modelo marxiano e a imagemespecularmente invertida do modelo hegeliano, e que, porisso, ele inaugura uma nova filosofia da historia - do Estadoa sociedade sem Estado -, enquanto em Hegel se conc1ui a

precedente - alias, as duas precedentes, a aristotelica e ahobbesiana, ambas pondo 0 Estado como meta final, mas aprimeira partindo da familia, e a segunda, da sociedade dosconflitos interindividuais. Ja disse que nao pretendoatenuar arelevancia daquela inversao, mas sim sugerir a possibilidade

dubitavel que uma virada decisiva na evolucao da filosofia po-litica moderna deve ser buscada na fundacao do modelo so-ciedade civil/Estado em si mesmo, na medida em que elereconstroi de modo novo, e absolutamente diverso com relacaoaos modos permitidos pelo modelo teorico dominante nos dois

seculos anteriores, a estrutura complexa e contraditoria daformacao social modema. Se isso e verdade, subsiste entre 0

modelo jusnaturalista e 0modelo hegelo-marxiano, para alemdetoda continuidade generica - ou, sequisermos, no interiordo campo de continuidade que pode ser reconstruido, e naosem significacao, numa visao de amplo a1cance-, uma espe-

cifica e nitida fratura.Essa fratura comeca a se delinear quando se retoma,

num nivel de menor abstracao, 0 exame da nocao de burger-liche Gesellscha/t em relacao aos elementos do outro modelo.Se e verdade, segundo as consideracoes precedentes, que a

biirgerliche Gesellschaft assume uma funcao correspondentea que tinha 0 status naturae, 0 argumento da pura e simplespassagem de funcao revela-se insuficiente quando se consi-dera que, em sua fisionomia de conjunto, a biirgerliche Ge-

sellschaft aproxima-se nao pouco da societas civilis: com isso,revela-se que a correspondencia linguistica nao e absoluta-mente urn residuo privado de significacao. 0 tratamento he-geliano da sociedade civil tern, sob muitos aspectos, uma li-gacao evidente com 0 tratamento jusnaturalista do mesmoconceito: e, de resto, Hegel se refere tambem a essa ultima nomesmo lugar onde afirma que "a criacao da sociedade civil

pertence ao mundo moderno"." No que se refere a Marx, naoe por acaso que ele, invocando explicitamente a nocao hege-liana de biirgerliche Gesellschaft, indica a sua matriz no con-ceito analogo "dos ingleses e dos franceses do seculoXVIII". 7

A biirgerliche Gesellschaft, portanto, remete nao a apenasurn, mas a ambos os elementos do modelo precedente; e, ao

(3) Cf. J.-J. Rousseau, Discurso sabre a desigualdade (ed. italiana, in Scrittipolitici, ed. por P. Alatri, Turim, Utet, 1970,p. 288).

(4) Cf. N. Bobbio, Gramsci e la concezione della societe civile, cit., pp. 17-27.(5) Respeetivamente, Allgemeines Staatsrecht , 1793, e Antihobbes, 1798. Cf.

N. Bobbio, "Societa civile", noDizionario dipolitica, cit., §III.

(6) FD 182Z.(7) "Prefacio" de 1859a Para a crltica da economia polltica, ed. brasileira, in

"Os Pensadores", Sao Paulo, Abril Cultural, vol.XXXV, 1974, p. 135.

 

136 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLITICA MODERNA 137

mesmo tempo, nao e redutivel a nenhum dos dois, nem e pos-sivelindicar urn vinculo privilegiado mais com urn do que comoutro. Com efeito, os conceitos referidos antes como seus ante-

modo, reduzidos a unidade, os dois elementos do primeiromodelo; do mesmo modo que, como segundo elemento do pri-

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cedentes "ilustres" - na linha do pensamento Locke-Kant, enaquela Rousseau-Ferguson - sao forrnulacoes particularesnao de urn mesmo elemento, mas dos dois elementos opostosdo modelo jusnaturalista; e, por outro lado, 0 novo conceito

de biirgerliche Gesellschaft pode apresentar-se como sintesede ambos a medida que, de cada urn deles, e retirado 0 quefazia do mesmo, na perspectiva do modelo jusnaturalista, aantitese do outro, ou seja, a determinacao originaria, a pro-priedade essencial: a diferenca da sociedade civil de Rous-seau-Ferguson, 0 novo conceito de biirgerliche Gesellschaft

indica uma condicao social tao nao-politica quanta a socie-dade natural de Locke-Kant; e, a diferenca dessa ultima, in-dica uma condicao social nao provis6ria ou anterior a condi-<;aocivil, do mesmo modo como a sociedade civil de Rousseau-Ferguson. Em outras palavras: na logica do segundo modelo,

a sociedade civil, por um lado, e nao-Estado e nao e sociedadepolitica , de modo que a matriz da nocao de biirgerliche Ge-

sellschaft nao e encontravel unilateralmente no conceito ana-logo "dos ingleses e franceses do seculo XVIII"; por outrolado, 0nao-Estado e sociedade civile nao e sociedade natural,de modo que a matriz da nocao de biirgerliche Gesellschaft

nao e encontravel unilateralmente naquele conceito de statusnaturae que tinha 0 mesmo valor de posicao no interior domodelo jusnaturalista. Um resultado em parte identico e emparte complementar pode ser alcancado setomamos comopri-meiro termo de comparacao a nocao pre-hegeliana de socie-

dade civile a cotejamos com os dois elementos do modelo pos-terior: enquanto aquela indica uma coletividade organizadapoliticamente e, portanto, coincide com 0 momento do Es-tado, na logica desse ultimo a sociedade civil e nao-Estado, enao e sociedade politica, e, reciprocamente, a sociedade poli-tica e Estado, e nao e sociedade civil.

Resumindo de modo esquematico a complexa posicao dasociedade civil, termo-chave para compreender a logica datransformacao do modelo jusnaturalista no modelo hegelo-marxiano, enquanto termo comum, pode-se dizer que: comoprimeiro elemento do segundo modelo, ela contern de certo

meiro modelo, ela contem tambem em unidade os que virao aser osdois elementos do segundo modelo. Para obter uma cor-reta representacao visual da relacao entre os dois modelos, oselementos nao deverao se dispor na seguinte figura:

status naturae

biirgerliche Gesellschaft

societas civilispolitischer Staat,

que sugere a ideia de uma correspondencia termo a termo,mas sim nesta outra figura:

status naturae societas civilis

biirgerlicher Gesellschaft politischer Staat,

a qual, alem de ilustrar a posicao da sociedade civil acimaconsiderada, sugere tambem a ideia: a) de um avanco no pon-

to de partida do segundo modelo, no qual, com efeito, a bur-gerliche Gesellschaft nao indica uma condicao de vida praticaoriginaria ou de qualquer modo anterior, como 0status natu-

rae, mas compreende uma primeira dimensao da condicaopresente, que no outro modelo resume-se inteiramente na ca-tegoria da societas civilis; b) de um geral deslocamento defase, em virtude do qual I) a biirgerliche Gesellschaft afasta-seda sociedade civil na mesma proporcao em que se aproximada societas civilis e 2) aproxima-se dela na mesma proporcaoem que 0politischer Staat se afasta.

Se procedermos a um cotejo global com base nesse es-

quema, encontraremos que esta ausente, em cada um dos doismomentos, 0 elemento que aparece no outro como termoautonomo e distinto da sociedade civil: no primeiro modelo,esta ausente 0Estado; no segundo, 0estado de natureza; masnao de modo que desaparecem tambem a funcao ou as carac-teristicas essenciais dos mesmos. Disso resulta que a diferencaprofunda entre os dois modelos reside no modo e no lugar emque urn e outro indicam a fratura, a cisao fundamental nocampo da pratica, Se ambos representam 0 campo da praticacomo cindido em momentos contrapostos, os termos e a figurada contraposicao sao diversos. E e isso que permite captar,

 

138 MICHELANGELO BOVERO

para cada urn deles, 0 significado mais especifico e essencial:se 0modelo jusnaturalista institui a possibilidade de pensar 0individuo independente fora da politica, rompendo assim 0

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bimilenar dominio da tradicao classica aristotelica, com basena qual 0homem zoon politikon resulta indefinivel fora de suarelacao natural-necessaria com 0 coletivo, tradicao que sobre-vive ainda no individuo grociano definido por urn natural

appetitus societatis, se esse e 0 caso do modelo jusnatura-lista, 0 modelo hegelo-marxiano institui a possibilidade depensar 0politico fora do social e, reciprocamente, 0social forado politico. dissolvendo 0 que sobrevive da forma conceitualclassica na tradicao jusnaturalista, para a qual toda uniao eorganizacao social plena apresenta de modo ainda nao sepa-rado as instancias da socialidade e da politica." Em outras pa-lavras: enquanto 0modelo jusnaturalista coloca como relacaofundamental aquela que se da entre individuo e coletivo, 0

modelo hegelo-marxiano coloca-a entre duas figuras do cole-tivo, e reconhece na reciproca separacao e relativa autonomia

do social e do politico e estrutura fundamental da formacaosocial moderna. Vejamos melhor como isso ocorre.

Para a distincaoentre sociedade e Estado

(8 ) Entendo aqui por "sociabi lidade" uma re lacao que abarca toda a mul-tidao de individuos: e nesse sentido que falamos de organizacao social plena. Essaespecificacao e necessaria, ja que osjusnaturalistas reconheciam a existencia de socie-tates naturales ou grupos humanos menores, como a familia, no interior do estado de

natureza, para as quais, evidentemente, vale a distincao entre socialidade e politici-

dade. Cf. , por exemplo, Kant na Metafisica dos costumes: "0 estado nao-juridico,

ou seja, aquele no qual nao ha nenhuma justica distributiva, chama-se estado naturalistatus naturalis). 0 que the e contraposto, e que poderia ser chamado de estado arti-ficial (status artificialis), nao e ( . .. ) 0 estado social, mas 0 estado civil (status civilis),( . .. ) porque tambem no estado de natureza podem existir sociedades legitimas (porexemplo, sociedade conjugal, paterna, domestica em geral e similares)" (cito de

Scritti politici, Turim, Utet, 1956, pp. 492-93). Quando, no texto, falamos desocietasnaturalis, nao nos referimos a essas societates minores, mas sim aquelas representa-

coes do estado de natureza - sobretudo de Locke e de Kant - que podem fazerpensar numa especie de societas entre todos os sujeitos naturais como individuossingulares, na rnedida em que elas desenvolvem como inerentes a condicao natural osinstintos fundamentais do direito privado, ou do direito que regula as relaciies entreprivados, ou seja, essencialmente propriedade e contrato. Mas que nao se trata deuma sociedade propriamente dita, enquanto tal distinta do Estado, e 0 que pretende-mos mostrar aqui.

A biirgerliche Gesellschaft se apresenta, antes de maisnada, como sociedade cindida em seus membros individuais,entre os quais seprocessam relacoes - contatos e conflitos -ditadas pelo interesse pessoal. Sob esse primeiro aspecto, elamostra uma clara analogia com as formulacoes mais madurasda societas naturalis; mas, como a societas civilis, ela e socie-dade consolidada e necessaria. 0 'que na biirgerliche Gesel-

lschaft aparece acrescentado com relacao ao homologo pri-meiro termo do modelo jusnaturalista e a necessidade da rela-~ao dos individuos na estrutura coletiva e, portanto, a solidezdovinculo social em virtude do qual ela nao se apresenta maiscomo condicao por causa de sua natureza instavel e proviso-ria: que e , precisamente, aquilo que 0 segundo termo do mo-delojusnaturalista acrescenta ao seu correlativo primeiro ter-mo. Porem, a societas naturalis atinge a condicao de sociali-dade completa e perfeita, transformando-se em societas civilissive politica, e somente enquanto sociedade polltica ela euniao ou socialidade garantida e fundada sobre bases solidas;a biirgerliche Gesellschaft; ao contrario, apresenta-se comomomento de sociabilidade completa em sua separacao e con-traposicao com relacao aopoliti scher Staat.

As razoes da diferenca devem ser buscadas, antes de maisnada, no tipo de logica global a que cada modelo obedece.Dentro da logica do modelo jusnaturalista, 0 status naturae,

embora possa ser concebido como uma primeira forma de so-cietas, nao pode, ao contrario, deixar de apresentar as carac-

 

140 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 141

teristicas de uma condicao instavel e precaria, na medida em

que 0tecido das relacoes sociais "naturais" e fundado inteira-

mente no arbitrio dos individuos, Os individuos, por natureza

velmente ao vinculo do individuo com 0estamento ou com as

associacoes civis de natureza corporativa, e possivel estender 0

significado da afirmacao a relacao do individuo com a estru-

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l ivre e iguais urn em face do outro, nenhum dos dois reconhece

no outro urn superior natural, aparecem em condicoes de - e,

pela propria natureza de seus impulsos e interesses exc1usivos,

parecem ter a tendencia a - romper ou subverter a cada mo-

mento a tram a social, anulando as condicoes de uma coexis-tencia possivel com base apenas nos ditames da reta razao, ou

da lei natural, e transformando assim 0 estado de natureza

num estado de guerra. Desse modo, pode-se compreender a

razao pela qual, dentro da perspectiva instituida pelo modelo

jusnaturalista, a sociedade nao tern outra figura real alem da

figura politic a, fora da qual nao se da propriamente vinculo

social; e a sociedade civil e, ao mesmo tempo, sociedade e Es-

tado: dadas essas condicoes iniciais, uma sociedade propria-

mente dita, uma uniao solidaria so pode subsistir onde, e em

virtu de do fato de, os individuos aceitarem subordinar 0 seu

arbitrio natural, de fato ilimitado, a uma precisa norma co-mum (0 direito "igual" na forma da lei positiva) emanada de

urn poder imparcial (0 Estado como arbitro da justica) e su-

perior (0Estado como executor e garante de leis e justica atra-

yes do monopolio da forca). E esse 0 resultado necessario do

ponto de partida jusnaturalista: uma necessidade que leva a

reconhecer 0problema fundamental da vida social na contra-

posicao entre individuo e Estado, nas formas de integracao do

individuo no coletivo e de composicao do conflito entre liber-

dade e poder.

Na perspectiva do modelo hegelo-marxiano, 0 campo das

relacoes e do contraste entre individuo independente e indi-cado na biirgerliche Gesellscha/t, que nesse sentido repre-

senta 0analogo do status naturae. Mas, se a burgerliche Ge-sellschaft se mostra tambem ela como esfera da cisao, do ar-

bitrio e do acaso, nao se resume porem a urn conjunto de voli-

I;oes individuais e de relacoes precarias, Para Hegel, "essa vi-

sao atomista e abstrata desaparece ja ( ... ) na sociedade civil,

onde 0 individuo aparece apenas como componente de uma

universalidade".' Embora nesse contexto Hegel serefira prova-

tura global da sociedade civil: a pessoa concreta, sujeito de

carecimentos e interesses privados, e autor por livre escolha de

sua propria profissao, coloca-se como formalmente indepen-

dente nao fora (e antes), mas sim dentro da sociedade; e a so-

ciedade nao e simplesmente a soma das caprichosas relacoesindividuais, 0 campo da referencia geral reciproca ditada por

impulsos e volicoes subjetivas: ao contrario, a relacao reci-

proca dos individuos, com a porcao de arbitrariedade e aci-

dentalidade que contem, e 0 caminho atraves do qual se rea-

liza necessariamente, e de modo contraditorio, "urn 'sistema

de dependencia onilateral", de tal modo que a subsistencia, 0

bem-estar e a propria liberdade-independencia formal de cada

individuo "somente em tal conexao sao reais e assegurados". 2

Em outras palavras, as relacoes sociais nao sao fundadas ape-

nas no arbitrio dos sujeitos e na particularidade das al;oes in-

dividuais, como nas representacoes da societas naturalis, ondesao apenas relacoes intersubjetivas, tecido de relacoes sempreconstantemente desfeito e refeito, e nao relacoes sociais, te-cido conectivo. A sociedade civil hegeliana nao tern somente

esse principio, mas se funda tambem no principio oposto da

universalidade, na qual todos os individuos, mesmo em sua

independencia formal, sao necessariamente vinculados. Tanto

que essa universalidade, na sociedade civil hegelian a, mostra-

se "como fundamento e forma necessaria da particulari-

dade":" na concepcao jusnaturalista, ao contrario, somente a

sociedade civil-politic a aparece como efetiva universitas e, an-

tes dela, nada mais ha que uma multitudo.Nao diversamente, Marx sublinha que "a mutua e geral

dependencia dos individuos, reciprocamente indiferentes,

constitui 0seu nexo social"." Tal como nas representacoes da

societas naturalis, assim na realidade da sociedade civil mo-

dema ou sociedade burguesa "os individuos parecem entrar

em contato reciproco livre e independente ( ... ) e trocar nessa

(1) FD 303 A.

(2) FD 183.(3 ) FD 184 .

(4) Grundrisse, p. 74.

 

142 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POLiTICA MODERNA 143

liberdade; mas eles parecem tais somente a quem abstrai (... )as condicoes de existencia nas quais esses individuos entramem contraste". 5 E, tal como para Hegel, os membros da so-

acima dos individuos - seja ela representada como forca na-tural, como acaso ou em qualquer outra forma - e um resul-tado necessario do fato de que 0ponto de partida nao e 0 indi-

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ciedade civilpodem atingir seus fins particulares "somente namedida em que eles mesmos determinam de modo universal 0seu saber, querer e fazer, e se constituem como aneis da ca-deia dessa conexao";" assim, para Marx, no processo de troca

generalizada que constitui a primeira dimensao da totalidadesocial, os individuos em sua particularidade e liberdade saoobrigados a se adequar a condicoes objetivas e vinculantes.Embora as relacoes sociais aparecam como bastante fragmen-tarias e dispersas, num movimento que "parte de pontos infi-nitamente diversos e volta a pontos infinitamente diversos" /e "embora os momentos singulares desse movimento prove-nham da vontade consciente e das finalidades particulares dosindividuos, a totalidade do processo se apresenta como umaconexao objetiva que nasce naturalmente, que e certamente 0

resultado da interacao reciproca dos individuos conscientes,

mas nao reside na consciencia deles nem e subsumida elesenquanto totalidade"." De modo absolutamente similar, He-gel sublinhara que 0 processo de formacao da conexao uni-versal e de adequacao dos individuos a universalidade "naoreside na consciencia desses componentes da sociedade civilenquanto tais"." E, assim como Hegel afirmara que a univer-salidade se demonstra, em face da particularidade dos finsindividuais, "enquanto potencia, acima dessa [particulari-dade]"," do mesmo modo Marx reafirma: "a colisao indivi-dual reciproca deles (dos sujeitos conscientes] produz um po-der social estranho que os subordina; a sua acao reciproca e

um processo e uma forca independente deles". 11 De modo in-teiramente conseqiiente, Marx assim conc1ui: "a relacao so-cial dos individuos entre si como poder que se fez autonomo

viduo social livre" .n Sob esse aspecto, portanto, a biirgerlicheGesellschaft resulta oposta a societas naturalis tal como essase apresenta na perspectiva jusnaturalista: a vontade livre, 0arbitrio dosmuitos individuos, quando esses sao considerados

como sujeitos concretos, revela-se ela mesma como algo neces-sario, ainda que se trate de uma necessidade que se constituipor meio dos muitos atos de liberdade formal.

Juntamente com a "visao atomista e abstrata" (Hegel),que nao reconhece a forca da "conexao objetiva" (Marx), talcomo essa se desenvolve naturalmente a partir do entrecruza-mento das relacoes intersubjetivas, desaparece necessaria-mente - na passagem do primeiro para 0 segundo modelo -aquela perspectiva subjetivista e voluntarista em cujo interiora uniao social parece derivar apenas do livre concurso das von-tades individuais. Com base na logica do modelo jusnatura-

lista, a sociedade propriamente dita se configura como frutode um contrato coletivo, por meio do qual cada individuo re-nuncia ao seu isolamento "natural", ao seu self-governmentou poder soberano e exc1usivosobre si, para submeter-se comos outros a um government ou poder comum que, garantindo

a coexistecia dos direitos de cada um com os direitos de todos,assegura a propria forma da sociabilidade. Ve-se aqui mais dede perto, que, no modelo jusnaturalista, sociedade e Estadocoincidem, no sentido de se inc1uirem no mesmo "espaco" oulugar logico, ou seia, do lado do segundo membro da dicoto-mia fundamental: fora do Estado, da uniao politica, na~ hapropriamente sociedade, ou seja, a sociedade do estado na-tural so pode ser considerada sociedade de modo improprio.

Poder-se-ia objetar que a concepcao predominante na es-cola do direito natural considera necessaries a constituicao do

(5) Ibid., p. 81.(6) FD 187.

(7) Grundrisse, p. 101.(8) Ibid., p. 111.

(9) FD 187.

(10) FD 184.(11) Grundrisse, p. 111.

(12) Ibid.; a maidscula do "Livre" e de Marx. De modo nao dessemelhante,Hegel - falando da liberta~ao dohomem civil da rigida necessidade natural do care-cimento - sublinha que "essa libertaeao eformal( ...). A tendencia doestado social amultiplicacao e especificacao indeterminadas dos carecimentos, dos meios e das frui-r;5es(. ..) e urn aumento precisamente infinito Ita dependencia e da necessidade"(FD 195).

 

1 4 4 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 145

Estado nao somente urn, mas dois contratos distintos: 0 pri-meiro, recolhendo os elementos individuais e dispersos damultitudo na universitas de urn povo, da lugar a societas e, por

mente aquela que "antecipa, por assim dizer, os primeiros emais rudimentares elementos de urn Estado", 14 Em suma, 0

objetivo do primeiro contrato continua a ser a criacao da so-

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isso, e chamado depactum societatis; 0 segundo, chamado depactum subiectionis, ja que institui 0 poder comum e, comele, a relacao de subordinacao dos governados aos governan-tes, da lugar ao Estado. Com base nesse esquema, parece que

a sociedade adquire uma figura independente e dotada de al-guma consistencia propria em face do Estado. Pode-se buscaruma confirmacao disso precisamente na teoria que, em pri-meiro lugar ou mais claramente do que as outras, pode fazerpensar em uma societas no estado de natureza - a de Locke.Alias, ele nao se detem explicitamente sobre 0 problema domecanismo contratual pelo qual se chega a civil or politicalsociety, quando afirma que a dissolucao do governo, ou seja,da relacao de subordinacao, nao implica imediatamente a dis-solucao da sociedade. Mas quem quisesse concluir a partirdisso que, numa tal perspectiva, a societas resultante do pri-

meiro pacta nao ainda politico tern urn proprio principio cons-titutivo, solido em si mesmo, distinto e independente do prin-cipio da unidade politica, nao encontraria confirmacao nostextos. A communis opinio do duplo contrato foi consolidadae quase codificada por Pufendorf. Segundo ele, com a pri-meira convencao, a que transforma uma multidao em urnpovo, ou seja, vincula os individuos em sociedade, os "futuroscidadaos" manifestam simplesmente "a vontade de se uniremem associacao perpetua e de proverem com deliberacoes e or-dens comuns sua propria salvacao e seguranca"; 13 e somente

com 0 segundo pacto, 0 que institui 0 governo e, com ele, a

obrigacao de obediencia dos cidadaos, e formada a sociedadepropriamente politica, 0Estado. Mas disso resulta claramenteque 0pactum societatis nao institui uma sociedade apolitica,uma realidade qualitativamente diversa da sociedade politica,mas apenas uma sociedade politica imperfeita e deficiente;tanto e verdade que Pufendorf ve nessa associacao simples-

ciedade politica, a unido das vontades individuais e particula-res na vontade unica do corpo social; so que ela resta umauniao puramente intencional enquanto faltar aquela uniiio

das forcas que deve tornar eficaz a vontade comum.

Portanto, do pactum societatis, enquanto distinto dopactum subiectionis e anterior a esse, decorre uma societas aqual falta 0poder para se tornar efetiva. Mas que se trata deuma sociedade polltica, ainda que incompleta, e algo confir-mado de modo literal precisamente por Locke, no local a queantes nos referimos: "Quem quiser falar com certa clareza dadissolucao do governo deve, em primeiro lugar, distinguir en-tre dissolucao da sociedade e dissolucao do governo. 0 queconstitui a comunidade, e leva os homens do livre estado denatureza para uma so sociedade politica, e 0acordo que cadaurn faz com os outros para se incorporar com eles e deliberar

como um s6 corpo e, desse modo, formar uma tmica sociedadepolit ica distinta. 0 modo habitual, e quase 0unico, pelo qualessa uniao se dissolve e a invasao de uma forca estrangeira( ••• )" .15 Ao contrario, Locke entende que ha muitos modos

pelos quais 0 governo pode se dissolver, sem que isso signifi-que a dissolucao do vinculo social. Mas vamos ler urn poucoadiante: "(... ) quando 0 governo e dissolvido, 0 povo tern aliberdade de prover a si mesmo com a instituiciio de um novo

legislativo (... ) porque a sociedade nao pode jamais, por culpade outros, perder 0 direito originario e natural que tern de se

conservar, 0 que s6 pode fazer com um legislativo e com uma

equiinime e imparcial execuciio das leis fei tas por ele" . 16 Mais

uma vez e do modo mais claro, a sociedade e concebida so-mente sub specie politica; ou se pensa que, fora do Estado, asociedade nao tern eficiencia e se dissolve. E retorna-se ao es-tado de natureza, enquanto urn estado que - nao sendo poli-

(13) S. von Pufendorf, De iure naturae et gentium, VII, 2. Cito da antologiade escritos de Pufendorf, Principi di diritto naturale, ed. por N. Bobbio, Tur im,

Paravia, 1948, p. 164.

(14) Ibid. Conseqiientemente, Pufendorf fala dopactum subiectionis como deuma simples culminaeao do pactum societatis: "Depois desse (segundo] pacto, 0

Estado esta finalmente perfeito" (ibid., p. 165).

(15) J. Locke, Two Treatises of Govemment , II, §211.(16) Ibid., II, §220.

 

1 4 6 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 147

tico - exc1uiurn vinculo social propriamente dito. Por isso,na perspectiva que 0modelo jusnaturalista institui, a partir dapluralidade originaria de sujeitos individuais livres, 0 pro-

turae para se traduzir em societas civilis. A biirgerliche Ge-

sellschaft, em suma, ja e naturalmente uma sociedade civil,

urna conexao efetiva e geral dos individuos singulares, inde-pendentemente do seu querer subjetivo e do seu consenso ma-

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individuos, e imediatamente urn problema politico, resol-vendo-se com a instituicao da vontade soberana, unica a po-der superar 0 arbitrio. Resumindo, naquela perspectiva: 1) 0

sujeito livre e posto como anterior. a sociedade e essa derivadele como uma sua livre criaeao: 2) 0vinculo social e subor-dinado a unidade politica, e essa0torna efetivo.

Na perspectiva que se expressa por meio do modelo he-gelo-marxiano, a liberdade dos sujeitos nao e ela mesma 0

principio e a origem da sociabilidade; uma sociedade iiber-haupt nao e efetivamente tal, nao subsiste como conexao em sinecessaria se depender exclusivamente, como a societas civilis

jusnaturalista, de urn ato ainda que coletivo e concorde devontades e de se apoiar apenas no consenso expresso de seusmembros. Do mesmo modo, 0status naturae nao pode apre-sentar nenhuma forma de sociabilidade capaz de se manter, eissonao tanto por causa do potencial ou efetivo desacordo dossujeitos singulares - pois, ao contrario, oposicoes e contras-tes caracterizam tambem as relacoes intersubjetivas com asquais e tecida a biirgerliche Gesellschaft , e, em geral, a formada cisao torna a face da biirgerliche Gesellscha/t semelhante ado status naturae -, mas antes por causa da ausencia dequalquer vinculo objetivo, no lugar do qual e reconhecidacomo unica forma eficaz 0 arbitrio subjetivo, que e por suanatureza absoluto antes mesmo de ser dissolutor. A biirgerli-

che Gesellschaft , primeira forma da coletividade, nao e por-tanto instituida por urn deliberado ato associativo, que nao atornaria mais "social" do que 0era 0status naturae na pers-pectiva jusnaturalista; do mesmo modo como, do ponto devista do modelo hegelo-marxiano, nao aparece como mais"social" a societatis civilis fruto de urn contrato: urn e outranao conhecem vinculos objetivos. Mas, ao contrario, ela seconstitui como tal independentemente de (e em contraste com)as intencoes conscientes dos seus membros individuais, sem-pre voltadas para finalidades particulares: e, precisamentepor isso, nao-deve esperar urna ilusoria e ineficaz fundacao noconcurso de vontades individuais livres, tal como 0 status na-

nifesto - urn consenso que, reduzindo as muitas vontadesparticulares a uma unica vontade universal, transform aria asociedade civil em sociedade politica, Em outras palavras, a

sociedade civil do modelo hegelo-marxiano cobre a area deuma primeira e fundamental dimensao da sociedade moder-na, em cujo interior os sujeitos singulares, tornados livrescomo individuos autonomos graeas a dissolucao dos antigosvinculos de dependencia pessoal, ligam-se necessariamenteentre si, para aquem da dimensao politica , com base em seusproprios carecimentos, interesses e finalidades privadas. Nessesentido, a biirgerliche Gesellschaft e "por natureza", e nao"por convencao" como a societas civilis, a qual, por isso, apa-recia como uma instituicao artificial. Bern entendido, a estru-tura da relacao social necessaria, a sua "anatomia", sera in-terpretada por Hegel e por Marx demodos diferentes. 17

(17) A analise das difereneas transcende os objetivos a que me propus. Masuma exigencia de c1areza no que se refere a argumentacao desenvolvida ate aqui

sugere que facamos uma mencao a questao - uma men~llo simplificadora em seu

esquemat ismo e, de qualquer modo, bem distante de tocar em todos os pon tos daquestao.

Para Hegel, a relacao social necessaria tem sua raiz material nos carecimentos

sensiveis, "esse ambito natural da existencia humana" (Estetica, trad. it. , Turim,

Einaudi, 1967, p. 114): "carecimentos que ligam, que concatenam" (verknupfende

Bedurfnisse) e como sao chamados em FD 181, na medida em que a necessidadecomo dependencia da natureza se transforma em dependencia e necessidade social.

Pode-se ver aqui uma retomada do tema da infirmitas natural que leva0

homem auniao com osoutros homens. Mas, na idade modema, a necessidade natural atuasobre sujeitos formalmente independentes (as pessoas "privadas"), os quais, na de-pendencia reciproca, ou necessidade de se referirem UDS aos outros para a satisf~llo

dos proprios carecimentos, educam (ou refinam) sua natureza e formam (ou cuIti-yam)a sua propria liberdade formal. e 0 mundo da cultura ou civiliz~ao (Bildung),que impl ica por si a expansao das faculdades e ap tidoes da espeeie , bem como doindividuo singular, e se realiza por meio da multiplicaeao dos carecimentos, da de-composicao do carecimento concreto em muitos carecimentos abstratos, a modemadivisaotecnico-funcional do trabalho. Tudo isso toma "necessidade total" a depen-dencia entre oshomens (FD 198), mas ao mesmo tempo impbe a relacao necessariaentre elesa forma da rel~ao de troca, que sefunda precisamente sobre 0 reconheci-mento da liberdade. 0 processo vital como processo necessariamente social nao podese desenvolver, a altura da civiliza~ao(que e aquela em que se encontra a sociedade

 

148 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 149

Mas, para aquem das diferencas, 0primeiro e fundamen-tal resultado consiste no fato de que a sociabilidade nao apa-rece mais imediatamente na figura da politicidade. Dado que

a base da sociabilidade nao e mais indicada na colusao - naintegracao da livre vontade dos individuos, que constituem avontade coletiva ou geral que converge no poder comum -,

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distinto e separado do plano da coesao propriamente politica;ou seia, a ordem social aparece numa figura propria, em opo-

sicao ao ordenamento politico.

A sociedade civil da concepcao jusnaturalista, ampla-mente dominante na filosofia politica dos seculos XVII eXVIII, pela propria natureza do seu processo constitutivo, naopode deixar de se apresentar indistintamente como societascivium, tecido conectivo geral de relacoes entre os homensreunidos em sociedade - e que se transformam, nessa uniao,de homens simplesmente ou membros de uma ideal societashumani generis, em cidadaos ou membros de uma especifica

comunidade real-, e como societas politica, organizacao pu-blica e coesao dos sujeitos sociais dentro de relacoes de poderestaveis: ao contrario, ela s6 subsiste como societas civilis na

medida em que e societas politica. Ao contrario, com a crisedo modelo jusnaturalista, que amadurece entre 0 fim do se-culo XVIII e 0 inicio do seculo XIX e que se expressa de modopleno no modelo hegelo-marxiano, os atributos "politico" e"civil", originariamente coincidentes, derivando respectiva-

civ il , ou sociedade dos pr ivados), a nso ser por meio do exerc ic io dos dire itos do

homem enquanto privado. Por isso, a tutela dos direitos individuais, 0 direito it pro-priedade-Iiberdade, e 0 direito it vida, e exigencia interna daquele mecanismo social

- proprio da sociedade civil como sistema da vida pr ivada - que se lunda nos mes-

mos e, ao mesmo tempo, em sua acidentalidade e "necessidade inconsciente", osexpoe sob muitos aspectos ao risco de nao serem tratados "enquanto direito" (FD

230). Desse modo, os individuos em sua qualidade de sujeitos privados (entendo por

isso 0Burger als Bourgeois de FD 190 A) sao conectados na sociedade civi l nao

somente atraves do sistema dos carecimentos, mas tambem mediante a administracaodajustica (que tutela a liberdade abstrata) e da adrninistraeao publica (que garante a

seguranca da vida). Assim, a sociedade civil hegeliana e urn sistema nao s6 econd-mico, mas tambem juridico e administrative, e, por isso, e chamada tanto de Gesell-

schaft quanta deStaat. Mas, na medida em que se refere ao dominio do particularousistema da vida privada, e Estado dos privados, cujoprincipio e meta e 0 individuo

privado definido por carecimentos e interesses exclusives e, portanto, privatista eleproprio e, como tal, contraposto ao Estado propriamente dito, ou Estado "propria-

mente politico" (FD 267), enquanto sistema da vida publica, unico de onde procedeuma vontade verdadeiramente universal.

Tambem para Marx, 0vinculo social se lunda na base material do carecimento:oshomens tern necessidade de produzir socialmente a sua existencia, e toda producao

e necessariamente producao social. E, tambem para Marx, a divisao do trabalho e 0

modo mais imediato no qual a re lacao social na epoca moderna se mostra como

necessaria: uma epoca que aparece como a epoca do individuo, mas ao mesmo tempo

e a epoca da expansao das relacoes sociais e, com elas, dos carecimentos. Mas a divi-

sao do trabalho em Marx nao apresenta simplesmente a sua face tecnico-fundamen-tal. E a relacao necessaria que especifica a sociedade moderna como tal e certamente

tambem a relacao de troea, mas nao somente naquela forma da "troca simples" que

situa todos os sujeitos, para alem da divisao em niveis hierarquicos, num unico grau

de dignidade humana (0 grau dos direitos dohomem). Issovale apenas para a "super-f icie" da sociedade civi l, como mais de uma vez se af irma nos Grundrisse, para a

"aparencia real" segundo a qual ela se mostra como sociedade das trocas e da livre

concorrencia (e, como tal, e sociedade "burguesa" nao imediatamente no sentido declasse, mas no sentido em que "burgues", bourgeois, e a figura hist6riea em que

aparece, no interior da formacao social moderna, 0 sujeito comum e, portanto, todo

homem enquanto pessoa privada definida pelos pr6prios direitos individuais). 50-

mente alem dessa superficie e que se pode captar aquela relar;ao de troca que consti-tui, para Marx, a diferenea especifica da sociedade moderna: uma relacao que pres-

supoe nao simplesmente a liberdade do homem como cidadao privado (ou civil-bur-gues), mas a "liberdade" propria da grande maioria dos hornens, a "liberdade" em

relacao it propriedade dos meios deproducao, e que divideos sujeitos em duas classescontrapostas. Desse modo, a sociedade civil moderna se revela como sociedade bur-guesa no sentido do dominio de classe, ou como sociedade capitalista, na medida emque a necessidade especifica da relacao de troca social moderna e a da relaeao detroca entre capital e trabalho. Por isso, a biagerliche Gesellschaft e certamente 0 ter-reno de aplicacao do direito privado, que vigora plenamente enquanto tal na sua

"superficie" (onde ela se mostra propriamente como sociedade "civil" ou dos priva-

dos; 0jovem Marx incluia num conceito ainda apenas "superficial" de sociedade civil

tambem a Polizei, tal como Hegel, e isso nao no comentiirio ao texto hegeliano, masnas observacoes ao art. 8 da Constituicao francesa "progressista" de 1793, referente it

surete: d. Iudenfrage, ed. cit., p. 379). Mas ela seconstitui em sua necessidade espe-

cifica no nivel estrutural da relacao capitalista, e, portanto, define-se como sistemaeconornico, e nao tambem, ao modo de Hegel, como sistema administrativo e juri-dico. Assim, a burgerliche Gesellschaft nao e mais definida tambem como "Estado"

dos privados, contraposto enquanto tal, por Hegel, ao Estado "propriamente poli-tico". E isso porque 0 Estado, que traz it realidade 0 direito (enquanto "condieao

geral da producao": Grundrisse, p. 413) e mediatiza os extremos contrapostos e seusconflitos, nao vale mais, para Marx, realmente como universal. Se ele se apresenta

como tal, essa e sua face ilus6ria (a vontade e a forea gerais sao "comunidade" so-

mente na aparencia): a realidade efetiva do Estado e oposta, e particular, na medidaem que elepOeas condir;Oesgerais de urn sistema social (ou organizacao da producao)

nao somente privatista, mas fundado no dominio de uma c1asseeorganizado demodo

a reproduzir tal dominio. Portanto, a ar;ao do Estado nao esta necessariamente, demodo dire ito, a service da burguesia; mas, de qualquer modo, se pOea service do

sistema no qual e pelo qual a burguesia existe como classe dominante.

 

1 5 0 MICHELANGELO BOVERO

mente da grega polis e da latina civitas, tendem a se distin-guir; 0sujeito social se duplica na figura do cidadao privadoou civil-burgues (Burger) e na do cidadao propriamente dito(para designar 0qual e cunhado 0termo pleonastico de Staats-

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burger); e a sociedade como sociedade civil se separa do Es-tado como Estado politico. 18 Por urn lado, a sociedade civil -ja que nao necessita da instituicao de urn poder comum para

se fundar enquanto coletividade social efetiva - nao indicamais genericamente a estrutura global da vida associada, masindica urn nivel de vida coletiva especificamente "social" ou"civil", enquanto destacado e contraposto ao nivel especifica-mente "politico"; por outro lado, 0Estado politico - ja quenao resulta da subsuncao de individuos que, de outro modo,restariam isolados, privados de vinculos efetivos, a urn podercomum e a urn ordenamento publico - nao coincide maiscom a sociedade civil e, portanto, nao indica mais generica-mente 0 conjunto organizado da vida coletiva no aspecto dasua unidade, mas indica urn nivel ou urn espaco da vida cole-tiva distinto e separado em face da especificamente social: eesse 0 espaco em que se coloca 0 Estado modemo propria-mente "politico", tal como e literalmente designado por Hegelquanta por Marx, ainda que segundo criterios interpretativosopostos.

Uma compar~io entre os modelos

(18) Para t~da essa problematica, cf. M. Riedel, op. cit., sobretudo os capi-tulos "Tradicao e revolu~aona Filosofia do direito de Hegel" e "0 conceito de 'socie-dade civil'e 0problema de sua origem hist6rica".

Nesse ponto, estamos em condicoes de proceder a umacomparacao global melhor articulada entre 0modelo jusnatu-ralista e 0 modelo hegelo-marxiano. Antes de mais nada, eagora possivel ver mais claramente como a dicotomia burger-liche Gesellschaft/politischer Staat constitui 0 desenvolvi-mento, em duas instancias contrapostas, do que permaneciaunido e indiferenciado na nocao jusnaturalista de societas ci-

vilis. Com efeito, enquanto essa representava a coletividadenuma iinica figura, ao mesmo tempo social e politica, em con-traposicao a nao-sociedade ou a sociedade em si imperfeita,tal como era concebida toda condicao privada de organizacaopolitica, aquela dicotomia expressa ou descreve a separacaoefetiva de dois niveis da coletividade, ou a cisao da propria co-letividade em duas formas ou figuras reais e realmente dis-tintas. Em outras palavras, a dicotomia reconhece 0 carater

essencial das formacoes historico-sociais modemas no isola-mento e contraposicao reciprocos deuma estrutura de base dasociabilidade e de uma estrutura superior (em sentido posi-tivo, Hegel) ou superestrutura (em sentido negativo, Marx):a estrutura de base subsiste como conexao efetiva e necessariaentre individuos singulares, os quais permanecem decertopessoalmente livres, subjetivamente independentes em suareferenda reciproca enquanto privados, mas sao ligados atra-yes de uma dependencia objetiva geral; ou seja, subsiste comoestrutura de relacoes necessarias, que sao certamente regula-

 

152 MICHELANGELO BOYERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 153

das coercitivamente pelo Estado, mas nao tern em seu princpio a referencia ao coman dopublico, e nao derivam sua neces

sidade e eficiencia conectivas - seu valor de vinculo social -da unidade politica no querer-poder comum; a estrutura sr

mente e de modo abstrato, 0 lado desagregador do arbitrioindividual, confia a conexao social dos individuos a sua coesaopolitica e encontra a raiz do vinculo coletivo na fictio de umavontade geral e consciente de constituir urn corpo soberano.

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perior ou superestrutura subsiste como recornposicao dos su

jeitos sociais na unidade de urn corpo comum, que se realizacima das particularidades individuais exclusivas e seexpress

na universalidade e obrigatoriedade de comandos gerais imperativos sustentados pela forca coletiva da coacao publica. Pourn lado, a biirgerliche Gesellschaft se constitui como tecidconectivo real das acoes livres dos individuos e, portantocomo estrutura coletiva, mas nao como coletividade politicaseessas acoes singulares sao necessariamente subordinadas almecanismo impessoal do todo e, portanto, socialmente determinadas, continuam porem a semover ease realizar no plandas finalidades e interesses privados; portanto, os membroda biirgerliche Gesellschaft como sujeitos privados, mesmo nlquadro da necessidade da conexao, nao se dissolvem na unidade de urn corpo comum propriamente dito, como aqueh

guiado por uma unica vontade, nem podem enquanto tais davida a urn corpo soberano que se traduza numa organizaca,publica do poder. Por outro lado, 0politi scher Staat se constitui como momento da organizacao e da regulamentacao coletivas, por meio da producao de normas gerais e, portantocomo estrutura coesiva e local de integracao dlcoletividade: contudo, a forca coesiva do politischer Staat na(institui ela mesma 0estado de sociedade, nem dela derivam I

natureza especifica e a dinamica interna das relacoes que estao na base da sociedade; na verdade, a coesao politica se realiza para alem/ acima da conexao propriamente social. 0 mo

mento politico da coesao mediante comando imperativos-coa-tivosse isola do tecido conectivo social, na medida em que a

Iorca ou eficacia conectiva propria de urn vinculo nao coman-dado ou imposto, como 0 que se instaura com 0 desenvolvi-mento da sociedade moderna entre os sujeitos privados, eman-cipa 0 momento social do momento propriamente politico-unificador do Estado. Ao contrario, a concepcao que se ex-pressa na ideia jusnaturalista de societas civilis, nao reconhe-cendo aquela conexao efetiva na dimensao da acao livre dosprivados, e, em vez disso, captando nessa dimensao, unica-

Ou seja: essa concepcao nao distingue ainda entre a sociedadecivil e 0 Estado, e dissolve o Estado na sociedade (comuni-dade) dos homens civis (pessoalmente livres): nao diversa-

mente, quantoaforma, do conceito tradicional de comuni-dade politica, ou seja, daquela civitas ou societas civilis que

indicava propriamente uma uniao de livres, 1 embora essamesma concepcao capte no politico, corretamente, a sua mo-derna funcao coesiva-coativa e 0 seu moderno carater de cen-tro dopoder soberano que se exerce na forma da lei.

Do mesmo modo e reciprocamente, 0modelo hegelo-mar-xiano nao distingue mais a sociedade civil do estado de natu-reza, mas recupera suas caracteristicas e funcoes. 0 novo mo-delo, portanto, separa 0Estado da sociedade civil a . medidaque: a) reinsere na sociedade civil, historicizados, os tracosessenciais da condicao descrita no modelo precedente comoalgo natural; b) atribui a sociedade civil a funcao de momentocontraposto ao politico, reconstituindo desse modo, num pla-no diverso, a forma geral da dicotomia na qual ja 0modeloanterior se configurava. Enquanto no primeiro modelo a con-dic;aona qual individuos como sujeitos autonomos interagem,contrapondo-se aquem de sua composicao politica, apresen-tava-se estado natural, no duplo sentido de estado associal ouincompletamente social e precario, e de momento externo eanterior a sociedade civil, a qual, ao contrario, representava 0

momento da coletividade completa e organizada, enquanto

(1) Repito: quanta a forma. Pois, com rel~ao ao conteudo, a societas ci~ilisdo modelo hobbesiano apresenta uma profunda inovacao, que lhe advem precisa-mente do fato de constituir-se a partir dos sujeitos naturais independentes. Manfred

Riedel em seu ensaio sobre 0conceito de sociedade civil, cit., nao parece dar muitopeso a 'essa diferenca en tre a an tiga e a modema societas civilis, ~ fim de pod~rcontrapor ambas a burgerliche Gesellschaft hegeliana. Contudo, tal diferenca consti-tui a sociedade civil de Hobbes como termo medio ideal entre a de Arist6teles e a deHegel:em sintese, se0fim docivis antigo e a conservaeao dacivitas, e ofim d~Burger

modemo e a conservacao desi mesmo (ea busca deseuspr6prios ~teres~s ~n~ados),ofimdo homo civilis jusnaturalista e 0mesmo do Burger, por meio da instituicao da

civitas.

 

1 5 4 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA ISS

isso ocorre no primeiro modelo, no segundo a mesma compo-sicao aparece como estado social, alias como condicao pro-priamente social e civil, moderna e desenvolvida. 2

No primeiro caso, a correlacao entre sujeitos pessoal-

grupo, e somente com 0 desenvolvimento hist6rico da socie-dade e dentro da sociedade historicamente desenvolvida e queo homem - contrapondo a si "as diversas formas do contextosocial (... ) como urn puro instrumento para as suas metas pri-

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mente livres que agem em vista do interesse privado era consi-derada de forma abstrata e imatura. A absolutizacao dos arbi-trios individuais levava ou a imagem de relacoes imediata-

mente conflitivas e destrutivas, ou a de urn tecido labil, pri-vado de necessidade intrinseca e continuamente arneacado dedissolucao; em suma, produzia a ideia de uma sociedade emultima analise inexistente, cuio valor era sobretudo constru-tivo, ou seja, 0 de urn principio hipotetico a partir do qualtornava-se possivel reconstruir em sua essencia racional a fi-gura deurn estado civil. No segundo caso, a condicao geral deliberdade dos individuos enquanto privados e reconhecida,antes de mais nada, em sua historicidade como caracteristicatipica das formacoes sociais modernas; "por natureza", 0 ho-mem e urn animal gregario, absolutamente dependente do

vadas" ,3 de modo que 0universal "lhes aparece laos privadoslcomomeio":' - consegue efetivamente isolar-se, ou seia, por-se como individuo. Mas a epoca que gera "0modo de ver do

individuo isolado e precisamente a epoca das relacoes sociais(... ) ate agora mais desenvolvidas". s Portanto, a condicao naqual os individuos se apresentam libertos de vinculos naturaispre-constituidos, a ponto do isolamento deles aparecer comoalgo natural, e uma condicao social efetiva, e nao hipotetica,como e 0caso do estado de natureza que se tornava sociedadereal e completa somente com a transformacao em comunidadepolitica. Alias, ela define a dimensao propriamente (em sen-tido estrito) "social" das formacoes hist6ricas modernas, ouseja, indica aquela "sociedade" que e tal fora e contra 0 poli-tico, na medida em que nao se resume imediatamente na uni-

dade integrada do corpo coletivo, nem se reduz simplesmentea pluralidade desagregada e atomizada de arbitrios exc1usi-vistas, mas subsiste na co-presenca dos dois principios opostosda autonomia do particular e da conexao onilateral (Hegel),ou da independencia pessoal e da dependsncia material(Marx). Enquanto no status naturae, mesmo nos casos emque ele era apresentado como societas embrionaria, 0 con-traste entre os sujeitos aparecia imediatamente desagregador,a ponto de transformar uma sociedde em simesmo debil numasociedade impossivel, no interior da biirgerliche Gesellschaftos interesses privados, em sua propria exc1usividade e contra-dicao reciproca, encontram-se necessariamente ligados numadependencia "a todos os lados". Nao tanto porque, perse-guindo cada urn seu proprio interesse, obtenha-se automatica-mente 0 interesse geral- dessa afirmacao, alias, poder-se-iadeduzir "que cada urn obstaculiza reciprocamente a afirma-cao do interesse do outro, de modo que, em vez de uma afir-

(2)0 atr ibuto "civi l" tern na filosofia pol it ica modema urn duplo signi ficado:

por urn lado, indic a a lgo pertinente ao Estado (de civitas); por outro, algo de edu-

cado , prog redido, refinado, "civ il izado" (de civilitas). A dupl a valencia ja esta c la ra-

ment e presente em Hobbes , 0 qual entende a condicao "civil" como aquela caracte-

rizada tanto pela ordem politica quanto pe la decencia e pe lo refmamento. 0 segundo

significado e predominan te no Discours sur l'inegalite de Rousseau e no Essay de

Ferguson, cuja civil society e traduz ida em alemao, em 1768, com a expressao bur-

gerliche Gesel lschaf t . Preci sament e a tr aves dessas ult imas (e de out ras) med iacoes,

o a tri bu to "ci vi l" t ende cada vez mai s a indi car, em var ias li nguas, 0comportamento

educado, emancipado e progredido da camada citadina-burgue sa (da cidade-burgo e

nao mais de cidade-Estado), a camada privada por excelencia : de sse modo, e inver-t ida a primeira acepcao, e "civil" deve ser entendido, na maioria dos casos, como

"privado" contraposto a "publ ico".

Isso vale tambem para Marx, como busquei indicar ac ima (cf. nota 66), em

todos os lugare s onde a burgerlich Gesellschaft e analisada enquanto "sociedade da

livre concorrencia". 0uso ago ra dominan te , e r ecen tement e aprovado por I.Agnol i e

M. Cacciari (cf., respectivamente, Lo Stato del capitale, Mi lao, Fel tr inell i, 1978 , p.

10; e Dialettica e critica del Politico, Milao, Feltrinelli , 1978, p, 8), de t raduzi r sempre

a burgerliche Gesellschaft de Marx por "sociedade burguesa" e excessivamente rigido

com relacao a complexidade , e por vezes ambigilidade, do conceito marxiano, Sem

entrar aqui no merito da questao, de resto antiga e entediante, observo apenas que

seguin do aquele uso perde-se 0 sen tido de mui to s t rechos de Marx, cons tru idos sob re

a ant itese ent re bu!,gerliche Gesellschaft e politischer Staat: que sentido ter ia contra-

por ao Estado "politic o" uma soc iedade "burgue sa" se, em outros contextos, 0 pro-

prio Estado e definido como "burgues"?

(3) Grundrisse, p. 6.(4) FD 187.

(5) Grundrisse, p. 6.

 

156 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NAFILOSOFIA POUTICA MODERNA 157

macae geral (. .. ) , resulta uma negacao geral" 6 -, mas simporque "0 pr6prio interesse privado ja e urn interesse social-mente determinado": 7 "cada urn e fim em si mesmo, tudo 0

mais e para ele nada. Mas, sem relacoes com os outros, ele

dividuos enquanto individuos privados e, portanto, nao e so-mente sociedade ainda "por associar", tal como se mostravana representacao da societas naturalis; mas e , ao mesmo tem-po, dissociacao social na conexao necessaria dos individuos no

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nao pode alcancar 0 ambito de suas finalidades"; por isso,"embora crendo se manter firmemente no particular, 0 uni-versal e a necessidade da conexao continua a ser a coisa pri-

meira e essencial". 8Em outras palavras: 0 arbitrio individual,mesmo persistindo como tal, perde aqui 0 carater abstrato ea-hist6rico que tinha, enquanto prius absoluto, nas constru-I;oes jusnaturalistas: 0 "sistema da atomistica" e , precisa-mente, "sistema", e nao se reduz a "absoluta substanciali-dade dos pontos". 9 .

Mas, desse modo, a sociedade moderna como sociedadecivilpropriamente nao politica, a insociavel sociedade dos ho-mens livres, nao e simplesmente sociedade dissociada nos in-

plano das relacoes privadas. Nesse sentido, a biirgerliche Ge-

sellschaft representa uma primeira e em si completa dimensaoda coletividade, ou seja, apresenta-se como totalidade, em-

bora seja "totalidade relativa", ja que nela "a totalidade e0

terreno da mediacao na qual todas as singularidades, todas asdisposicoes, todas as acidentalidades de nascimento e de for-tuna tornam-se livres"; 10 e, por conseguinte, e coletividade demodo mecanico, ou seja, de urn modo que revela a perma -nencia da cisao na propria conexao, fundando umasobre aoutra. Na medida em que e essa conexao (totalidade relativa,sistema da atomistic a), a biirgerliche Gesellschaft nao deveapelar para urn Estado como sua suprema condicao de socia-bilidade, ou seja, nao tern necessidade de urn Estado que ainstitua como sociedade efetiva: ao contrario, dele tinha ne-cessidade a hipotetica societas naturalis, como Kant 0 haviacompreendido; desenvolvendo coerentemente a logica impli-cita no modelo jusnaturalista, ele definia 0 Estado como "0

que forma lou produz: machtl a sociedade". 11 Mas, na me-dida em que e aquela cisao (totalidade relativa, sistema daatomlstica), a biirgerliche Gesellschaft enquanto tal nao e ca-paz por si s6 de fixar e garantir as condicoes gerais em cujointerior a liberdade-isolamento dos individuos se desenvolvecomo conexao universal, nem de traduzir essas condicoes em

(6) Grundrisse, p. 74. Tambem nesse trecho ha uma clara reminiscencia he-

geliana. Cf. a~Lifoes sobre afilosofia da hist6ria: "A liberdade e concebida s6 nega-tivamente quando e imaginada como se 0 sujeito limitasse com relacao a outros sualiberdade, de modo que essa limitacao coletiva, 0 fato de que todos obstaculizam unsaos outros, deixasse a cada qual 0 pequeno lugar no qual se pode mover" (trad, it.,

Florenca, LaNuova Italia, 1977, vol. I , p. 104). Todavia, nesse local, Hegel se referea concepcao kantiano-fichteana doEstado, e nao a relacao economica entre interesse

privado e interesse coletivo. Sobre isso, parece haver em FD uma inclinacao inicial nosentido da visao otimista tipica da economia politica classica, Mas, para essa como

para outras questoes, deve-se acolher a interpretaeao de R. Bodei: "Hegel, habitual-mente, repete, reproduz e situa no sistema pontos devista alheios (. .. ) . Ou seja: nao

fala por sua propria boca, na perspectiva dofor uns, mas deixa que 'a coisa ' fale eque seja 0desenvolvimento subseqiiente a criticar objetivamente, a redimensionar 0

carater absoluto de cada degrau do desenvolvimento do conjunto". (Cf. "Hegel el'economia politica", in S. Veca, ed., Hegel e l'economia politica, Milao, Mazzotta,

1975, pp. 56-7. 0 volume inclui tambem doisinteressantes ensaios de R. Racinaro eM. Barale.)

(7) Grundrisse, p. 74.(8) FD 182 Z, 181 Z.(9) A primeira expressso e conhecida pela Enciclopedia (cf. 0§523); mas ela

ja seencontra, juntamente com a segunda, naDifferenz des Fichte schen und Schel-ling'schen Systems der Philosophie, t r. i ta l., em Hegel , Primi scritti critici, Milao,Mursia, 1971, p. 70. Nesse escrito juvenil (1801), aparecem tambem outras nocoes,

como a de "Estado de intelecto", que 0Hegel da maturidade ira utilizar para a bur-gerliche Gesellschaft . A analogia e surpreendente; mas, na analise da construcaofichteana (uma daquelas em que, para recordar a expressao de FD iS 8 A, "confun-de-se a sociedade ~ivilcom0Estado"), 0aspecto da desagregacso e fortemente acen-tuado e imediatamente contraposto, sem possibilidade de conciliacao, a qualidadeorganica que a partir deentao Hegel sempre atribuiu ao Estado.

(10) FD 182 Z.

(11) Cf. Kant, op. cit., p. 493. Mas deve-se imediatamente observar que, como mesmo argumento, Kant int roduz uma dist incao entre a sociedade e 0 Estado:"porque entre quem tern 0 comando, ou seja, 0 soberano iimperans), e 0 sudito

tsubditus), nao ha nenhuma comunidade; elesnao sao socios, mas urn e subordinadoaooutro , e nao coordenado, e os que sao coordenados entre si devem se considerarcomoiguais e precisamente na medida em que sao submetidos a leis comuns" (ibid.).

Nessa ideia da diferenca deestrutura entre a relacao social e a relacao politica - que,

de resto, nao e nova, poisja Pufendorf distinguia entre a sociedade nascida do pri-meiro contrato e 0Estado nascido do segundo contrato como uma societas aequalisem contraposicao a uma societas inaequalis -, deve-se ver a figura potencial da dis-tin~ao entre burgerliche Gesellschaft e politi'scher Staat. Mas seria errado toma-lacomo uma distincao em ato: porque, aqui, a relacao privada nao e ja emsi social, mas_ enquanto re lacao social - e precisamente instituida, "produzida" pelo Estado.

 

158 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 159

regras tecnicas adequadas, nem, menos ainda, de perseguirativamente 0 bern comum, a meta da coletividade enquantotal. Em outras palavras: dado que a sociedade civiltern comocoletividade somente uina existencia objetiva (quase "natu-

nentes]", na medida em que se poe como integracao dos inte-resses e das realidades particulares na realidade universal dacoletividade." Do mesmo modo - embora aqui 0 problemaseja mais complexo e muito dificil de ser claramente definido

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ral", extravoluntaria, independente dos sujeitos reais e incon-trolaveis por eles), nao e coletividade propriamente autonoma:alias, enquanto totalidade, ela expressa precisamente a hete-ronomia dos sujeitos sociais. Embora subsistente em si mesma

comoesfera distinta, nao pode propriamente dar leis a si mes-rna; apenas sofre, "no caminho da necessidade inconsciente",suas proprias "leis materiais" (Marx). Disso resulta que devepoder subsistir urn modo e urn lugar onde a pluralidade dossujeitos socialmente determinados, ou a sociedade dos inte-resses isolados e contrapostos, coagule-se num sujeito coletivoenquanto ente singular, 0Estado como forma superior da co-letividade e como momento propriamente politico, capaz deproduzir normas gerais universalmente vinculantes e de obterpela coacao 0 respeito as mesmas. Desse modo, 0 Estado: a)mantem e or~aniza, fixando e garantindo as "regras dojogo" ,

a ordem social dada, ou melhor, produzida pelo desenvolvi-mento hist6rico, tal como se manifesta no nivel da sociedadecivil: m.as, precisamente por isso, nao 0 "forma" ou produz;? ) configura-se .com~ esfera superior da sociedade, em eujointerior os sujeitos singulares, enquanto cidadaos, recebemuma determinacao diversa e oposta aquela que tern como pes-soas privadas dentro da esfera inferior da sociabilidade: e,portanto, como Estado politico, contrapoe-se a sociedade civiltanto quanto a unidade organica se contrapoe a conexao me-canica, a finalidade coletiva ao interesse individual 0 bernpublico ao bem-estar particular ou privado. '

Essas duas faces ou aspectos essenciais do Estado saoapreendidos do modo mais claro possivel por Hegel: contra 0

sistema da vida privada e seus componentes, por urn lado, 0Estado " e uma necessidade externa" - enquanto e nas cha-madas leis materiais da economia que a burgerliche Gesell-

schaft encontra a sua necessidade interna - e " e para eles 0poder (Macht) mais alto", 0que fixa e impoe coativamente ascondicoes juridicas nas quais 0processo social pode explicitar-se na esfera civil; por outro lado, 0 Estado " e a finalidadeimanente deles [do sistema da vida privada e de seus compo-

-, Marx encara 0Estado ora segundo 0 aspecto do dominio,da "violencia concentrada e organizada", ora segundo 0 as-pecto da comunidade, ainda que ilusoria."

Por urn lado, 0 Estado mostra a face do aparelho buro-cratico, de uma maquina que se superpoe a sociedade, demodo que 0 poder aparece como algo que desce do verticepara a base - onde os sujeitos resistem a ele opondo-lhe osproprios direitos civis; por outro lado, 0Estado mostra a facede urn organismo no qual a pluralidade dos sujeitos privadosseagrupa em unidade superior, de modo que 0poder aparececomo algo que ascende da base ao vertice - em virtude doexercicio dos direitos politicos.

(12) FD 261.

(13 ) Cf. acima, 0 f inal da not a 66 . Aqui , parece-me ainda i nteressan te obser-

var apenas que, quando Marx fala de poder ou violencia politica (mas Gewalt e tam-

bern cada um dos poderes constitucionais do Estado em Hegel) , 0 Estado aparece

tendencialmente na figura do governo e, em tal figura, e sempre considerado como

negativo em si mesmo. Com efeito, e ssa pare ce ser para Marx a realidade efetiva do

Estado: "0 direito do mais forte" que, como ele critica nos economistas burgueses,

"continua a viver sob outra forma tambem no seu 'Estado de direito' " (Grundrisse,p . 10) . Ao con tr ari o, quando Marx fa la do querer po lit ico ou da comunidade pol it ica,

o Estado aparece tendencialmente na figura do Parlamento; e, em tal figura, ele econside rado como negativo somente enquanto universalidade ilus6ria (e , por isso,

enquanto remete it sua figura real, 0poder de gove rno), e nao por aquela qualidade

mesma de comunidade, que ele fa lsamente assume . Por isso, se a realidade efetual do

Est ado res ide no governo , e , po rt ant o, na heteronomia que ele exp ressa, sua verdade

eo nao-Estado, ou , se p referirmos , 0 Estado "nao-politico", que pode valer como

universalidade efetual com a reabsorc ao do Estado (as famosas "funcoes socia is ge-

r ais") sob 0 poder da sociedade. 0 carater de comunidade "verdadeira" que 0 Es-

tado, em particular 0 hegeliano, reivindica para si pode pertencer de modo e fetivo

tao-scmente a uma comunidade sem governo, ou seja, autogovernada. Mas - acres-

centa Marx - nao certamente uma comunidade na forma das comunidades primiti-

vas, mas sim na de uma associaciio que , enquanto t al, pr essupoe a li vr e ind iv idua-

lidade.

 

SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 161

propriamente politico, ou seja, nao social: pelo que os m~-mentos resultam co-presentes, pressupoem-se e se deter~l-nam reciprocamente e, quando muito, distinguem-se como 1I~-

ferior e superior. Em outras palavras, os elementos do pn-

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meiro modelo, contrapondo-se, compoem-se na figura de urnprocesso diacronico, no qual 0ponto de partida e 0 pon!o ~echegada assinalam, respectivamente, a antitese e a au~en~l~

do outro; e isso apesar de a contradicao fundamental indivi-duo-sociedade, que informa 0modelo, refletir-se na comple-xidade problematica do elemento conc1usivoe, portanto, po-der ser considerada como estrutural. Por outro lado, os ele-mentos do segundo modelo, contrapondo-se, compoem-se nafigura de uma estrutura sincronica, na qual nivel inferior enivel superior se excluem e se implicam reciprocamente, em-bora possa parecer que repitam abstratamente os ntmos deuma filosofia dialetica da historia: Ulna filosofia que opoe acontraditoriedade das Iormacoes modern as, originada dafragmentacao das antigas formas co~unitarias :- da~ quais afamilia, no presente, repete 0paradigma -, a integridade deuma comunidade renovada. Uma comunidade que Hegel, 0

qual considera 0Estado "propriamente politico" co~o formasuprema da comunidade etica, ve no presente, con~lha~do aomesmo tempo a contradicao sociedade/Estado no interior dapropria estrutura de seu elemento superior; ~ ~ue Mar~, 0

qual considera a pretensao etica do Esta?o politico CO~? ilu-soria, e, portanto, julga como nao resolvida a contradicao ?aformacao social moderna, transfere para 0 futuro aa SOCle-

dade sem Estado.Mas a diferenca entre a figura processual na qual seapre-

senta 0modelo jusnaturalista e a figura sincrfmica em que se

apresenta 0 modelo hegelo-marxiano permanece aquem ~equalquer possivel atenuacao, e mesmo de qualquer apare~claem contrario.! E nao deve nos escapar 0 fato de que precisa-mente a figura diversa, processual ou sincronica, determina 0

Da genese a estrutura

da socied ade m od em a

E dada assim, em sua forma mais geral e essencial, arelacao entre ostermos do modelo emergente no sistema hege-liano de filosofia pratica, posteriormente isolado e fixadocomo tal por Marx; mas, ao mesmo tempo, manifesta-se cla-

ramente a ultima e decisiva diferenca com u modelo jusnatu-ralista. Com efeito, se a dicotomia biirgerliche Gesellschaft/politischer Staat reproduz a forma da oposicao entre urn mo-mento nao politico (ou puramente social) e urn momento poli-tico, tal como ja se delienava na dicotomia societas naturalis/societas civilis, a primeira dicotomia nao apresenta aquelaoposicao no modo da sucessao, caracteristico da segunda. Nomodelo jusnaturalista, 0momento puramente social (nao poli-tico) eo de uma condicao social nao efetiva, que se torna efe-tiva somente no momento subsequente, 0 da sociedade poli-tica, com a abolicao da condicao contraposta: pelo que 0 se-

gundo momento e posterior e substitutivo com relacao ao pri-meiro, no sentido de que a presenca da societas civilis implicaa ausencia, ou melhor, 0desaparecimento da societas natura-lis; e pouco importa, aqui, se a societas civilis e negacao ouracionalizacao da naturalidade. No modelo hegelo-marxiano,o momento propriamente social, ou proriamente nao politico,e 0 de uma condicao social efetiva, que nao e simplesmentesubstituida por urn momento subseqiiente, mas, ao contrario,e conservada como momenta distinto e auto-subsistente pelaconfiguracao -da condicao contraposta enquanto momenta

(1) E sobretudo 0 andamento tipico do discurso hegeliano, com seus "desen-

volvimentos", que se presta a ser entendido se~nd.o uma gradacao !emporal: porisso, nao sera inoportuno recordar ainda que 0propno Hegel, fala?do Justam~nte doEstado preocupou-se em sublinhar a distin.yao entre desenvolvimento logico, ou"demo~stra.yao cientifica", e origens hist6ricas: cf., por exemplo, FD 256, 258 A.

 

162 MICHELANGELO BOVERO SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTiCA MODERNA 163

significado especifico dos conceitos singulares e a visao global

da realidade que e possibilitada por uma e outra dicotomias.

Examinando aquela diferenca, e possivel captar sintetica-

mente toda a distancia que existe entre os dois modelos e, ao

reflete a tendencia historic a efetiva, no sentido da refundacaode uma ordem social global com base na "nova" liberdade in-

dividual, a "liberdade dos modernos", na medida em que a

ordem pre-moderna parecia desagregar-se precisamente por

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mesmo tempo, os term os ideais da passagem de urn para 0

outro, as operacoes que presidem tal passagem e que podem

ser agrupadas numa especie de codigo de transformacao. Com

efeito, 1) com a superacao da instancia jusnaturalista do iso-

lamento natural, e com a recuperacao da figura de seu porta-

dor, 0 individuo independente, como elemento simples da so-

ciedade moderna, desaparecem ao mesmo tempo 0status na-turae - momento da desagregacao origin aria , necessario

antecedente para a construcao da societas civilis - e 0 pac-tumunionis - momento da agregacao, necessario termo me-

dio entre as opostas condicoes natural e civil. Em outras pala-

vras: 0segundo modelo elide os antecedentes da sociabilidade,

nao porque suprima a instancia da individualidade neles con-

tida, mas na medida em que 0 individuo aparece juntamente

com a figura mais imediata da coletividade, como seu ele-

mento simples. E 2), com a distincao das instancias contidasinseparavelmente na categoria de societas civilis - a instancia

da conexao ou vinculo social e a da composicao ou unidade

politic a -, e com 0 reconhecimento de sua explicitacao em

dois niveis contrapostos da coletividade (privado e publico), e

reintegrada a figura da antitese, mas em termos de sistema

sincrfmico, Em outras palavras: no segundo modelo, 0 pro-

blema da formacao social moderna e apresentado como 0pro-

blema de duas instancias contrapostas (do mesmo modo como

no primeiro modelo: num caso, individuo e sociedade politica;

no outro, sociedade civil e sociedade politica), nao porque 0

modelo mais recente copie 0andamento do modelo mais an-

tigo, mas porque transforma sua figura global de processual

em sincronica,

Nao se trata de simples jogos formais: a diferenca conclu-

siva, e por assim dizer sintet ica, nao se refere simplesmente asuperficie dos esquemas conceituais, mas corresponde a dife-renca de significado historico que separa as concepcoes do

problema moderno permitidas por urn e por outro modelo.

Por urn lado; 0modelo jusnaturalista, em seu proprio anda-

mento processual, expressa a aspiracao, e, ao mesmo tempo,

causa do declinio de seu (oposto) fundamento: 0 principio da

dependencia pessoal, multiplicado em todos os niveis por meio

de relacoes de subordinacao. Todas as valencias da relacao

que se da entre status naturae e societas civilis revelam a ade-rencia desse esquema ao projeto dessa nova formacao social:

se e verdade que a ideia de uma sociedade natural precaria

decorre, pelo menos em parte, de uma consideracao abstrata

da afirmacao da liberdade pessoal no mundo moderno, e tam-

bern verdade que a identificacao da liberdade como 'algo ori-

ginario e natural permite uma reivindicacao cada vez mais

radical dos direitos do homem; se e verdade que a exigencia

imprescindivel de sair do status naturae e a ideia de uma so-cietas civilis como algo unificado no poder comum terminam

por subverter a instancia da autonomia individual, e tambem

verdade que 0proprio ponto de partida posta no individuo e a

criacao contratual do Estado permitem 0projeto de uma poli-

tica constitutivamente nova. E a partir de Hobbes que come-

camos a assist ir ao "prodigioso espetaculo de comecar a partir

do inicio e a partir do pensamento" a construcao de urn Es-tado, 2 ainda que se trate de uma construcao puramente teo-

rica.Por outro lado, 0modelo hegelo-marxiano constitui uma

tentativa de interpretacao da estrutura global da formacao so-cial moderna tal como essa foi se reorganizando depois das

revolucoes, reflete a sua contraditoriedade e expressa a exi-

gencia de compreender suas leis proprias. A figura da relacao

instituida entre biirgerliche Gesellschaft e politischer Staatexpressa nao mais a passagem da dissociacao a associacao,

mas sim a ordem-organizacao que c propria da sociedade mo-

derna enquanto constitutivamente dissociada, para alem da

antiga ordem fundada sobre vinculos comunitarios. E, en-

quanta Hegel acredita descobrir como principio interno da

(2) Sao as celebres palavras que Hegel dedica ao movimento revolucionario

frances. e a Rousseau como seu inspirador ideal. em FD 258 A.

 

1 6 4 MICHELANGELO BOVERO

nova ordem uma eticidade renovada, que harmoniza 0 sujeitocom a estrutura objetiva, Marx sondara num grau de ulteriordesenvolvimento e num nivel de maior profundidade as rela-coes de base da sociedade moderna, enxergando em sua estru-tura global uma contradicao que a levaao dec1inio.

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Bibliografia

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possessive individualism, Oxford, 1962 led. brasileira: A teoria polltica do

individualismo possessivo ; Rio deJaneiro, Paz e Terra, 19791;S. Cotta, "11pensiero politico del razionalismo e dell'illuminismo", in Nuove Questioni

di Storia Moderna, vol. II,Miliio, 1964; M. Villey, Cours d'histoire de la

philosophie du droit. La formation de la pensee juridique moderne, Paris,

1968; A. J. Arnaud, Les origines doctr ina les du Code civi l f rancais, Paris,

1969. As principais doutrinas politicas dojusnaturalismo estao expostas por

R. Derathe, Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps,

Paris, 1950(2!' edicao, com acrescimos, 1970).

Noque serefere a literatura especifica sobre a escola do direito naturalna Alemanha, ainda hoje e fundamental, pela riqueza da informacao, R.

Stintzing- E. Landesberg, Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft,

Munique-Leipzig-Berlim, 1880-1910, 6 vols. (sao dedicados a escola do di-reito natural alemao todos os dois tomos, urn de texto e urn de notas, da

ParteIdo vol. III). Riquissimo de informacoes e 0 recente livro de A. Du-four, Le mariage dans l'ecole allemande du droit naturel moderne au XVIII

siecle, Paris, 1972, cuja primeira parte e dedicada a uma exposicao do pen-samento de Grocio, Pufendorf, Thomasius e Wolff. Outras obras: E. Wolf,

Grotius, Pufendorf, Thomasius. Drei Kapitel zur Gestaltgeschichte der

Rechtwissenschaft, Tiibingen, 1927; E. Wolf, Grosse Rechtsdenker der

deutschen Geistesgeschichte, Tiibingen, 1939(4!' ed. , 1963); M. Wundt,

Die deutsche Schulmethaphysik des 17. Jahrhundert, Tiibingen, 1939; M.Wundt, Die deutsche Schulmethaphysik im Zei tal ter der Aufkl ii rung ; Tii-

bingen, 1945; P. Honigsheim, "La doctrine allemande du droit naturel aux

XVII e XVIII siecles", in Archives de Phi losophie du Droi t, 1939; F. Wiea-

cker, Privatsrechtsgeschichte der Neuzeit, Gottlngen, 1967; P. Schiera, II

cameralismo e l'assolutismo tedesco, Milao, 1968 (em particular 0 cap. II

da Parte II, "II caratteri ideologici dell'assolutismo tedesco", pp. 231-61).

Para uma interpretacao global dojusnaturalismo, P. Costa, IIprogetto giu-

ridico. Ricerche sul la giurisprudenza del l iberal ismo classico, vol . I: DaHobbes a Bentham, Milao, 1974, especialmente a sexta s~iio, "La meta-fora giusnaturalistica", pp. 293-310.

Sobre os temas que caracterizam 0jusnaturalismo moderno, cf. parao conceito de natureza, G. Del Vecchio, I l concetto della natura e il princi-

pio del diritto, Turim, 1908(2!' ed., Bolonha, 1922; 3!' ed. no volume Pres-

suposti, concetto e princ ipio del diri tto, Milao, 1959). Para 0 estado denatureza, S. Landucci, Il filosofi e i selvaggi (1580-1780), Bari, 1972, cap.II, "Lo stato di natura", pp. 93-178. Sobre 0 contrato social, G. Del Vec-chio, Sul la teoria del contrat to socia le, Bolonha, 1906; P. Gentile, Sulladotrina del contratto sociale, Bolonha, 1913; G. Richard, "La critique de

losofia politica medieval e modern a, inclusive da ideia do contrato social,

continua fundamental O. von Gierke, Johannes Al thusius und die Entwick-

lung der naturrechtlichen Staatstheorien, Breslau, 1880(Turim, 1943).

No que serefere aoaspecto mais propriamente metodol6gico da teoria

do direito natural, sobre 0 qual chamei atencao no texto, e de capital im-portancia 0 recente livro de W. Rod, Geometrischer Geist und Naturrecht,

Munique, 1970, que examina doponto de vista do metodo as doutrinas de

Hobbes, Pufendorf, Leibniz e Wolff. Sobre 0 tema, cf. tambem G. Tonelli ,

"Der Streit iiber die mathematische Methode in der Philosophie in derersten Halfte des 18. Jahrhunderts", in Arch iv fur Philosophie, 195<),; E.

De Angelis, Il metodo geometrico nella f ilosof ia del Se icen to , Pisa, 1964.Sobre os autores singulares examinados no texto, indico em seguida

bibliografias essenciais, com particular referencia ao tema do direito na-tural.

Hugo Gr6cio (1583-1645) - Texto: De iure belli ac pacis, Parisis,1925; trad. italian a dos Prolegomeni, aos cuidados de S. Catalano e E. DiCarlo, Palermo, 1948; aos cuidados de G. Fasso, Bolonha, 1949. Obras

bibliograficas: J. Ter Meulen, Concise bibl iography o f H. Grotius, Leiden,1925;J. Ter Meulen e P. J. J. Diermanse, Bibliographie des eerits imprimes

de Hugo Grotius, Haia, 1950; Bibl iograph ie des ecrits sur Hugo Grot ius ,

Haia, 1961. A principal literatura sobre 0 pensamento de Grocio e exami-nada na "Introduzione" ao livro de F. De Michelis, Le origini storiche e

culturali del pens iero di Ugo Grozio, Florenca, 1967. Para a bibliografia,

ainda e fundamental W. S. M. Knight, The life and the works of Hugo

Grotius, Londres, 1925. Em grande parte biograficos sao os ensaios conti-dos no volume de Varios Autores, Hugo Grotius. Essays on his life and

works selected for the occasion of the tercentenary of his "De iure belli ac

pacis" Leiden, 1925. Sobre 0 seu pensamento filos6fico-juridico, cf. von

Cathrein, "Ist Hugo Grotius der Begriinder des Naturrechts?", in Archiv

fur R e ch ts - u n d Wirtschaftsphilosophie, 1910-1911;A. Falchi, "Carattere e

intento del De iure belli ac pacis", in Rivista Internazionale di Filosofia del

Diritto, 1925; G. Gurvitch, "La phi losophie du droit de H. Grotius", inRevue de Mhaphysique et de Morale, 1927; G. Solari, "11 ius circa sacranell'eta e nella dottrina di Ugo Grozio", in Studi filosofico-giuridici dedicati

a G. Del Vecchio, Modena, 1931 (agora em Studi storici di filosofia del

diritto, Turim, 1949); Ph. Meylan, "Grotius et l 'ecole du droit naturel", in

Hommage a Grot ius, Lausanne, 1946; A. Corsano, Ugo Grozio. L 'uma-nista, il teologo, il giurista, Bari, 1948; P. Ottenwalder, Zur Naturrechets-

lehre des Hugo Grotius, Tiibingen, 1950; G. Ambrosetti, I pressupposti

teologici e speculativi delle concezioni giuridiche di Grozio, Bolonha, 1955;A. Droetto, Studi groziani, Turim, 1968 (contem escritos varios, predomi-nantemente sobre 0 pensamento juridico grociano, publicados entre,1942

e 1964).

 

168 BIBLIOGRAFIA SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 169

Thomas Hobbes (1588-1679) - Obras: The Elements of Law Naturaland Politic (1640), trad. i t. de A. Pacchi , Florenea, 1968; Elementorumphilosophiae sectio tertia de cive, Parisis, 1942, trad. it. de N. Bobbio, Tu-rim, 1948, 2~ed., 1959; Leviathan, Londres, 1651 led. brasileira: Leviatii,trad. deJ. P. Monteiro e M. B. Nizza da Silva, Sao Paulo, Abril Cultural ,col. "Os Pensadores", vol. XIV, 19741;Behemoth, Londres, 1679 (Bari,

der Phi/osophie, 1969; F. Paladini, Discussioni seicentesche su Samuel Pu-fendorf, Bolonha, 1978.

Baruch Spinosa (1632-1677) - Obras: Tractatus theologico-politicus,Amstelodami, 1670, trad. italiana de E. Giancott Boscherini e A. Droetto,Turim, 1972; Tractatus politicus (1676), trad. it . de A. Droetto, Turim,

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1978). Para 0 problema do jusnaturalismo hobbesiano, fundamental e H.Warrender, The political philosophy of Hobbes. His theory of obligation,Oxford, 1957. Outros escritos sobre 0tema especifico da relacao entre Hob-

bes e 0direito natural, N. Bobbio, "Legge naturale e legge civile nella filo-sofia politica di Hobbes", in Studi in memoria de G. Solari, Turim, 1954;M. A. Cattaneo, IIpositivismo giuridico inglese. Hobbes, Bentham, Austin,Milao, 1962; N. Bobbio, "Hobbes e il giusnaturalismo", in Rivista critica distoria dellafilosofia, 1962; D. D. Raphael, "Obligations and rights in Hob-besd", in Philosophy, 1962; P. C. Mayer Tasch, Thomas Hobbes und dasWiderstandsrecht, Tiibingen, 1965; F. S. Neilly, The anatomy of Leviathan,Londres, 1968; D. F. Gauthier, The logic of Leviathan, Oxford, 1969;Hob-bes-Forschungen, Berlim, 1969; E. Griffin-Collart, "Egalite naturelle et so-ciete civile chez Hobbes, Locke et Hume", inAnnales de l'Institute de Phi-losophie (Bruxelas), 1970; G. M. Chiodi, Legge naturale e legge positivanella filosofia politica di Tommaso Hobbes, Milao, 1970; A. Pacchi, Intro-duzione aHobbes, Bari, 1971; B. Campbell, "Prescription and Description

in Political Thought. The Case for Hobbes", in The American PoliticalScience Review, 1971; fasciculo deAnales de la Ctltedra Francisco Suarez,1974; D. Pasini, "Paura reciproca e paura comune in Hobbes", in Problemidi Filosofia Politica, Milao, 1977; A. Piazzi, "Stato e proprieta nella teoriapolitica di T. Hobbes", in M. Tronti, Stato e rivoluzione in Inghilterra, Mi-lao, 1977; M. Tronti , "Hobbes e Cromwel", ibidem; A. Loche, Diritto eLeggein Hobbes, Sassari, 1978; D. Neri, "La teoria dell'obbligo politico inT. Hobbes. Problemi e interpretazioni", in Quaderni dell'Istituto G. Della

Volpe, Messina, 1978; O. Nicastro, Introduzione a Behemoth, Bari, 1978.

Samuel von Pufendorj(1632-1694) - Obras: Elementorum iurispru-dentiae universalis libri duo, Halae, 1660(2~ ed., Cantabrigiae, 1672, edi-t;aoem reproducao anastatica, com traducao inglesa, Oxford, 1931,2 vols.);De iure naturae etgentium libri octo, Lund, 1672, trad. italiana parcial porN. Bobbio, in S. Pufendorf, Principi di diritto naturale, Turim, 1943. En-saio biografico: P. Meyer, Samuel Pufendorf. Ein Beitrag zur Geschichteseines Lebens, Grimma, 1895. 0 interesse pelo pensamento juridico-filoso-fico de Pufendorf e relativamente recente. Por muitos anos, 0 unico estudoorganico foi0de H. Welzel, Die Naturrechtslehre Samuel Pufendorfs, lena,1930(2~ ed., 1958). Seguiram-se, a breve distancia de tempo, as seguintesmonografias: H. Rabe, Naturrecht und Kirche bei Samuel von Pufendorf,Tiibingen, 1958; L. Krieger, The politics of discretion. Pufendord and theacceptance of natural law, Chicago-Londres, 1965;J. Brufau Prats, La acti-tud metodica de Pufendorf y Laconfiguracion de la Disciplina iuris natura-lis, Madri, 19.!i8;H. Denzer, Moralphi/osophie und Naturrechts bei S. Pu-fendorf; Munique, 1972. Aomestre de Pufendorf, refere-se 0 ensaio de W.Rod, "Ehrard Weigels. Lehre von Entia moralia", in Archiv fur Geschichte

1958led. brasileira: Tratado politico, trad. de Manuel de Castro, Sao Pau-lo, Abril Cultural, col. "Os Pensadores", vol.XVII, 1973, pp. 309-721. Osescritos que elencaremos a seguir referem-se exc1usivamente aos temas defilosofia politica e juridica examinados no texto: A. Menzel, "Der Sozial-

vertrag bei Spinoza", in Zeitschrift fur die Privat- und offentliches Recht,1907; G. Solari, "La dottrina del contratto sociale in Spinoza", in Rivista diFilosofia, 1927(depois em Studi storici difilosofia del diritto, cit.); A. Men-zel, "Spinozas Lehre von der Geistesfreiheit", in Zeitschrift fur offentlichesRecht, 1929; G. Solari, "La politica religiosa di Spinoza e la sua dottrina delius sacrum" , in Rivista di Fi/osofia, 1930(depois em Studi storicidi filosofiadel diritto, cit.); W. Eckstein, "Die rechtsphilosophischen Lehren Spinozasim Zusammenghan mit seiner allgemeinen Philosophie", in Archiv furRecht- und Wirtscha!tsphi/osophie, 1932-1933;M. Ranees, "Les reminis-cences spinozistes dans le contrat social de Rousseau", in Revue Philoso-phique, 1951; L.S. Feuer, Spinoza and the riseof liberalism, Boston, 1958;A. Deregibus, La filosofia etico-politica di Spinoza, Turim, 1963; W. Rod,"Spinozas LehrevonderSocietas", in Fi/osofia, 1967e 1968; R. J. McSchea,

Thepolitical philosophy of Spinosa, Nova lorque, 1968; A. Droetto, "Ge-nesi e storia del Trattato teologico-politico", in Studi Urbinati, 1969; A.Matheron, Individu et communaute chez Spinoza, Paris, 1969; C. Signo-rile, Po/itica e ragione. Spinoza e ilprimato della politica, Padua, 1970; C.Gallicet Calvetti, Spinoza lettore de Machiavelli, Milao, 1972; E. GiacottiBoscherini, "Introduzione" a ed. i taliana do Tratatto teologico-politico,cit.; L.Mugnier-Pollet, La philosophie politique de Spinosa, Paris, 1976;um fasciculo do Giomale Critico della Fi/osofia Italiana, LVII, 1977; M.Corsi, Politica e saggezza in Spinoza, Napoles, 1978.

John Locke (1632-1704) - Obras: Essays on the law of nature( 1660-1664),publicados pela primeira vezpor W. von Leyden, Oxford, 1954, trad.i ta lian a de G. Bedeschi e M. Cristiani , Barl , 1973; Two treatises of Go-vernment, Londres, 1960, ed. critica por P. Laslett, Cambridge, 1960, trad.italian a de L. Pareyson, Turim, 1948 led. brasileira do Segundo tratadosobre 0govemo, trad. de E. Jacy Monteiro, Sao Paulo, Abril Cultural, col."Os Pensadores", vol. XVIII, 1973, pp. 37-1371. 0 interesse pelo jusnatu-ralismo de Locke foi despertado pela publicaeao dos Ensaios sobre a leinatural, citados, ocorrida em 1954. A comecar pelo proprio editor da cole-tinea: W. von Leyden, "John Locke on the law of nature", in The Philo-sophical Review, 1958; R. Pollin, Lapolitique morale de John Locke, Paris,1960; R. H. Cox,Lockeon war and peace , Oxford, 1960; C. A. Viano, JohnLocke. Dal razionalismo all'illuminismo, Turim, 1960 (a primeira parte,"Filosofia e vita civile", e dedicada ao pensamento politico); N. Bobbio,Locke e il diritto naturale, Turim, 1962; M. Seliger, The liberal politics ofJohn Locke, Londres, 1968; H. Aarsleff , "The state of nature and the na-ture of man in Locke", in John Locke. Problems and Perpectives, Oxford,

 

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ohne Misere, Berlim, 1953.

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(1!l ed., 1950); W. von Leyden, "La Ioi, la liberte et la prerogative dans lapensee politique de J. Locke", in Revue Phi/osophique de la France e de

l'Etranger, 1?73; K. Olivecrona, "Locke on the Origin of Property", inJournal of His tory of Ideas, 1974; "Locke Theory of Appropriation", in

P_hilosophical Quarterly, 1974; "The Term 'Property' in Locke's Two Trea-rises of Govern?"Ient", in Archiv fUr Rechts- und Sozialphilosophie, 1975;

M. Restock, Die Lehre von der Gewal tentei lung in der pol it ischen Theorie

von J. Locke, Meisenheim am Glan, 1974; G. Zarone, J. Locke: Scienza eforma della politica, Bari, 1975; R. A. Goldwin, "Locke's State of Nature

in Political Science", in Western Political Quarterly, 1976; J. H. Franklin,J. Locke and the Theory of Sovereignity, Cambridge, 1978.

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Leibnizens ungedruckten Schriften, Leipzig, 1885 (2!l ed. ampliada, Mittei-

I~ngen aus Leibnizens ungedruckten Schriften, Leipzig, 1893); trad. i ta-h~a ~eV. Mathieu, Turim, 1951. Ainda uti l a monografia de E. Ruck, DieLeibnizsche Staatsidee aus den Quellen dargestellt; Tiibingen, 1909. Fun-damentais, pela riqueza da documentaeao, os dois livros de G. Grua, Juris-

prudence univers~lIe .et the?dicee selon Leibniz; Paris, 1953, e La justicehumaine selon Leibniz, Pans, 1956. Sobre pontos singulares do seu pensa-mento juridico: G. Solari, "Metafisica e diritto in Leibniz", in Rivista di

Filosofia, 1947, e N. Bobbie, "Leibniz e Pufendorf", ibid. Tambem G.Aceti, "Sulla Nova Methodus discendae docendaeque iurisprudentiae diGoffredo Guglielmo Leibniz", in Jus, 1957, e "Jakob Thomasius e ilpen-siero filosofico-giuridico di Leibniz", in Jus, 1957. Ademais, as duas maisrecentes monografias sobre 0 tema: K. Hermann, Das Staatsdenken bei

Leibniz ;Bonn, 1958, e H. P. Schneider, Justitia universalis. Quelenstudien

zur Geschich te der crist il ichen Naturrecht be i G. W. Leibniz Frankfurt

1967. ' ,. .C~ristian Thomasius ~1655-1728) - Obras: Institutiones iurispruden-t~ae divinae, Frankfurt ~ Leipzig, 1688, e Fundamenta iuris naturae et gen-~IU~ ex sens~ communi deducta in quibus secernuntur principia honesti,iustt ac decori, Halle, 1705. Escritos bio- e bibliograficos: M. Fleischmann,Christian Thomasius, Leben und Lebenswaerk , Halle, 1931; R. Lieber-

Wirth, Christian Thomasius, sein wissenschaf ts liches Lebenswerk, Eine Bi-

bliographie, Weimar, 1955; G. Simson, Einer gegen Aile. Die Lebensbilder

von Christian Thomasius, Munique, 1960. Sobre 0 pensamento filos6fico-

juridico, a unica monografia completa e a de F. Bat tagl ia, Cristiano To-

masio, filosofo e giurista, Roma, 1936, a qual sesegue a resenha crit ica deG. Solari, "Cristiano Tomasic", in Rivista eli Filosofia, 1939 (depois em

Christian Wolff(1679-1754) - Obra: Jus naturae methodo scientifica

pertractatum, Frankfurt e Leipzig, 1740-1748, 8 vols. Em geral, sobre a fi-losofia de Wolff: M. Campo, Christiaro Wolf f e ;1razional ismo precrit ico ,

Milio, 1939, 2 vols. Sobre 0 seu pensamento etico, politico e juridico, W.Frauendienst, Christian Wolff als Staatsdenker, Berlim, 1927; C. Joesten,

Christian Wolffs Grundlegung der praktischen Philosophie, Leipzig, 1931;M. Thomann, "Christian Wolff et Ie droit subjectif", in Archives de Phi lo-

sophie du Droit, 1964.

Jean-Jacques Burlamaqui (1694-1748) - G. Gagnebin, Burlamaquiet Ie droit naturel, Genebra, 1944. -,

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) - Obras principais: Discours sur

l'orig ine e t les fondements de I 'inega lite (1754) e Du contra t soc ia l (1762) .

Ambas seencontram nas duas mais recentes coletaneas de escritos politicosde Rousseau, uma editada por P. Alatri, Turim, 1970, e outra por E. Garin,Bari, 1971 led, brasileira: Discurso sobre a origem e os fundamentos da

desigualdade e Do contrato social, t rad. de Lourdes S. Machado, Sao Pau-lo, Abril Cultural, col. "Os Pensadores", vol. XXIV, 1973, pp. 207-326 e7-1511. A melhor edicao comentada do Contrato social e a organizada porM. Halbwachs, Paris, 1943. Uma cuidadosissima bibliografia sobre Rous-seau politico seencontra na ed. italian a dos Scritti politici, ed. por P. Alatri,cit. Para 0problema da relar;ao entre Rousseau e 0 jusnaturalismo, funda-mental e 0 livro de R. Derathe, Jean-Jacques Rousseau et la science pol i-

t ique de son temps, jli cit . Mas sio tambem importantes duas monografiasrecentes, embora inspiradas em duas interpretacoes opostas: I. Fetscher,Rousseau politische Philosophie, Neuwied, 1960 (Milio, 1972); e L.G. Cro-cker, Rousseau's social con tract . An interpretat ive essay , Cleveland, 1968(Turim, 1971). Na recente l iteratura italiana, cabe registrar: S. Cot ta,

"Theorie reIigieuse et theorie politique chez Rousseau", in Varios Autores,Rousseau et la philosophique politique, Paris, 1965, e L. Colletti, "Rous-

seau critico della societa civile" , in De Homine, 1968 (depois em Ideologia e

societe, Bari, 1969). Depois da bibliografia de Alatri, foram publicados:R. Polin, La po/itique de la solitude. Essai sur J. -J. Rousseau, Paris, 1971;P. Casini, Introduzione a Rousseau, Bari, 1974, com bibliografia; G. Forni,

Alienazione e storia. Saggio su Rousseau, Bolonha, 1976; P. Pasqualucci,Rousseau e Kant , 2 vols., Milao, 1974 e 1976; J. W. Chapman, Rousseau

totalitario 0 liberale?, Leece, 1974; A. Illuminati, J. -J. Rousseau e la fon-

dazione dei valoriborghesi, Milio, 1977.Immanuel Kant (1724-1804) - Obra principal: Metaphysik der Si t-

ten. I.Rechtslehre, Konigsberg, 1797, trad. italiana, Turim, 1916, novaedi~ao revista, por N. Merker, Bari, 1970. Para os escritos juridicos e poli-ticos menores, cf . Scritti politici e difilosofia della storia del diritto, Turim,1956. Para uma vis io de conjunto do pensamento politico kantiano, G.

 

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tiers, 1971; H. Henry, "De Hegel a Marx. Essai sur la 'Critique de la philo-

sophie de I 'Etat de Hegel ' de Marx", in Varios Autores, Hommage a JeanHyppolite, Paris, 1971; G. Lichteim, From Hegel to Marx, Nova Iorque,1971; J. d'Hondt, De Hegel a Marx, Paris, 1972; M. Riedel, System undGeschichte. Studien zum historischen Standort von Hegels Philosophie,Frankfurt, 1973; H. Lefebvre, Hegel-Marx-Nietzsche, ou Ie royaume desombres, Tournai, 1975; J. Mader, Zwischen Hegel und Marx, Viena-Mu-nique, 1975; J. J. O'Mailley, "Marx's 'Economics' and Hegel's 'Philosophy

of Right': an Essay on Marx's Hegelianism", in Political Studies, 1976; R.Dela Vega, Ideologie als Utopie. Der hegelianische Radikalismus der mar-

xistischen Linken, Marburgo, 1977.Deve-se notar que, recentemente, e sobretudo na ultima decada, a re-la~ao Hegel-Marx foi estudada sobretudo do ponto de vista da filosofia he-geliana, ao contrario do que ocorr ia no passado, quando era a teoria ~a~-xiana que constituia 0ponto de partida e a perspectiva adotada pela maiona

esmagadora dos estudos sobre 0 tema. Por isso, sao agora mais freqiientes

as contribuicoes sobre 0 assunto provindas de especialistas do pensamentohegeliano que de especialistas do pensamento de Marx (e 0caso, por exem-

plo, de O. Poggeler e M. Riedel, citados acima). De resto, a analise da

conexao Hegel-Marx aparece quase sempre como pano de fundo, quando

nao sesitua no primeiro plano, dos estudos sobre a teoria social e politica de

Hegel: e tais estudos se multiplicaram extraordinariamente a par~ir do bi-centenario de nascimento de Hegel (1970). Portanto, deve-se cf. ainda, em

particular, as obras coletivas, coletaneas de ensaios, fasciculos especiais derevistas dedicados ao pensamento hegeliano a partir daquela data, citados

abaixo.Hegel(1770-1831) - Sao numerosas as edicoes das obras hegelianas.

Alem das edicoes classicas maiores (Werke, Berlim, 1832-1845, 18 vols., aos

quais se acrescenta em 1887 0volume Brief von und an Hegel; SamtlicheWerke, Stuttgart, 1927-1939, ed, por H. Glockner, 26 vols.) e das tenta?vasincomple tas de edi~ao cr itica por par te de G. Lasson e J. Hoffmeis ter(Samtliche Werke. Kritische Ausgabe, Leipzig, 1905 e ss.; Samtliche Wer-

ke. Neue Kritische Ausgabe, Hamburgo, 1952 e ss.), ha grande quantidadede edicoes das obras singulares. Uma edi~ao das Werke in zwanzig Banden,ed. por E. Moldenhauer e K. M. Michel, foi public ada por Suhrkamp,Frankfurt, 1969 e ss, Em 1968, pelo editor Meiner de Hamburgo, iniciou-se

Hegel-Marx, A relacao entre Hegel e Marx foi estudada dos mais di-versospontos de vista e em funcao dos mais variados temas. Indicaremos a

seguir, semnenhuma pretensao exaustiva e com maior atencao as.contribui-~oes mais recentes, apenas os trabalhos que, direta ou indiretamente, refe-rem-se aos problemas de filosofia politica tratados no presente volume: P.

Vogel, Hegels Gesellschaftsbegriff und seine geschichtliche Fortbildungdurch Lorenz von Stein, Marx, Engels und Lassalle, Berlim, 1925; S. Hook,From Hegel to Marx, Londres, 1936 (Florenca, 1972); K. Lowith, Von He-

gel zu Nietsche, Zurique, 1941 (Turim, 1949); C. Antoni, Considerazioni su

Hegel e Marx, Napoles, 1946; J. Hyppolite, Etudes sur Marx et Hegel, Pa-

ris, 1955 (Milao, 1965, 2!l ed., 1973); I.Fetscher, "Das Verhaltnis des Mar-xismus zu Hegel", in Marxismusstudien, III, Tubingen, 1960 led. brasi-

leira: "Relacao entre marxismo e Hegel", trad. de Heidrun M. da Silva, in

I.Fetscher, Karl Marx e os marxismos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970,pp. 49-1471; J. Habermas, Strukturwandel der Oeffentlichkeit, Neuwied,1962 led. brasileira: Mudanca estrutural da esfera publica, trad. de FlavioR. Kothe, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 19841; J. Barion, Hegel unddie marxistische Staatslehre, Bonn, 1963, 2!l ed., 1970; R. de Lacharriere,Etudes sur la theorie democratique: Spinoza, Rousseau, Hegel, Marx, Pa-ris, 1963; J. Habermas, Theorie und Praxis, Neuwied-Berlim, 1963, 3!l ed.,1969 (Bolonha, f973); G. Hillmann, Marx und Hegel. Von der Spekulationzur Dialektik, Frankfurt, 1966; S.Avineri, "The Hegelian Origins of Marx's

 

174 BIBLIOGRAFIA SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLtTICA MODERNA 175

a publicacao das Gesammelte Werke, aos cuidados de urn grande mimero

deespecialistas: uma edieao que se propoe finalmente a ser completa e ver-dadeiramente critica. Alem da agil Studienausgabe in 3 Biinden, ed. por K.

Lowith e M. Riedel, Frankfurt, 1968, e agora de fundamental importanciapara a filosofia poli tica hegelian a a edit ;io organizada por K. H. Ilting dasYorlesungen iiber Rechtsphilosophie 1818-1831, Stuttgart-Bad Cannstatt,

wir, ed. por E. Lange, Berlim, 1970; Inc idenza d i Hegel, ed. por F. Tess i-

tore, Napoles, 1970; Enciclopedia '72, Istituto dell'Enciclopedia Italiana,Roma, 1971; Hegel. A Col lect ion o f Cri tica l Essays, ed. por A. Mac Intyre,

Nova Iorque, 1972; L'opera e l 'eredita di Hegel, ed. por V. Verra, Bari,

1972; Zum Hegel- Yerst iindnis mit unserer Zei t, Beitrage marxist isch- len i-

nistischer Hegel-Forschung , ed. por H. Ley, Berlim, 1972; Hegel Bilanz.

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1973-1974, em 4 volumes.

A primeira grande bibliografia e a que aparece como apendice aoensaio de B. Croce, Cid che e vivo e cid che e morto nella f ilosof ia di Hegel,

Bari, ~907. Uma discreta bibliografia sobre os temas da filosofia politica,aos cuidados de K. Grunder, aparece como apendlce a J. Ritter,Hegel und

die franzosische Revolution, Colenia-Opleden, 1957, posteriormente atuali-

zada para a segunda edicso do ensaio, Frankfurt, 1965, e novamente com-pletada, aos cuidados de G. Cantillo, no apendice a trad. i taliana do refe-rido trabalho de Ritter, Napoles, 1970. Uma sumaria bibliografia geral re-digida por R. Schneider conclui 0volume Hegel. Einfiihrung in seine Phi-

losophie, ed. por O. Poggeler, Freiburgo-Munique, 1877; por fim, veja-se a6tima "Bibliografia hegelian a 1966-1976", de L.Marino e G. Villa, no fas-ciculo especial da Rivista di Filosofia dedicado a "Hegel e 10 Stato" em1977. '

Uma extensa resenha de "Studi hegeliani" (1950) constitui 0 cap. VIdo volume de N. Bobbio, Da Hobbes a Marx, Napoles, 1965. Do mesmo

autor, e a resenha "La filosofia giuridica di Hegel nell'ultimo decennio", inRivista Critica di Storia della Filosofia, 1972;na mesma revista, apareceramas uteis e informadas resenhas de R. Bodei, "Studi suI pensiero politico edeconomico di Hegel nell'ultimo trentennio", 1972;C. Cesa, "Hegel e la rivo-luzione francese", 1973;L.Marino, "Recenti studi hegeliani in lingua fran-

cese", 1974. Amplas resenhas foram publicadas em mimeros normais da

Hegel-Studien; mas cf., em italiano, 0recente trabalho de E. Bocca, "Hegelnel bicentenario della nascita ed in alcuni recenti studi italiani", in Annali

de lla Scuola Normale Superiore di Pisa , Classe di Lettere e Filosofia, 1977.

Uma ideia do panorama extraordinariamente rico e complexo da He-

gel-Forschung contemporfinea pode ser formulada a partir da serie de obrascoletivas e coletaneas de ensaios, que se sucedem ininterruptamente a partirdos estudos do bicentenar io a te hoje . Para a teor ia social e politica, d.sobretudo: as duas coletaneas com 0mesmo titulo de Hegel's Political Phi-

losophy, uma organizada por W. A. Kaufmann, Nova Iorque, 1970; a outrapor Z. Pelczynski, Cambridge, 1971; Materialen zu Hegel Rechtsphiloso-

phie, 2 vols. , ed. por M. Riedel, Frankfurt, 1975; Hegel e 1 0 Stato, org. por

L.Marino, mimero especial da Rivista di Filosofia, 1977. Mas cf. tambemas seguintes obras coletivas: Studien zur Hegels Rechtsphilosophie in

U. d. S. S. R., Moscou, 1966; Die Revolution des Geistes. Politisches Den-ken in Deutschland 1770-1830. Goethe, Kant, Fichte, Hegel, Humboldt,

ed. por J. Gebhardt, Munique, 1968;Aktualitiit und Folgen der Philosophie

Hegels, ed. por O. Negt, Frankfurt , 1970;Hegel (1770-1970), Annales de laCatedra Suarez, J969-1970; Hegel et lapensee moderne, ed. por J. d'Hondt,Paris, 1970;Hegel, l 'esprit objectif, l 'unite de l'histoire, Lille, 1970; Hegelund die Folgen, ed. por G. K. Kal tenbrunner, Friburgo, 1970; Hegel und

Zur Aktua li ti it und Inaktual it ii t der Phi losoph ie Hegels, ed. por R. Heede eJ. Ritter, Frankfurt, 1913; Hegel in der Sichit der neueren Forschung , ed.por I. Fetscher, Darmstadt, 1973; The Legacy of Hegel, ed. por J. J.

O'Malley, K. W. Algozin, H. P. Kainz e L. C. Rice, 's-Gravenhage, 1973;Hegel et Iesiecle des lumieres, ed. por J. d 'Hondt , Paris, 1974; Hegel. Ein-fiihrung in seine Philosophie, ed. por O. Poggeler, Friburgo-Munique,1977.

Para a perspectiva da qual parte a leitura hegeliana apresentada nestelivro, cf. sobretudo os ensaios de N. Bobbio, "Hegel e il giusnataralismo",in Rivista de Filosofia, 1966; "Hegel e il diritto", in Varios Autores, Inci-denza di Hegel, cit., "Sulla nozione di Costituzione in Hegel", Anales de la

Catedra Francisco Suarez, 1971; "Diritto privato e diritto pubblico in He-gel", in Varios Autores, Hegel e 1 0 Stato, cit. Mas nio se deve esquecer acontribuicao ainda valida de G. Solari, "Il concetto di societa civilein He-gel" (1931), in Id. , La f ilosof ia pol it ica, ed. por L. Firpo, vol . II, Roma-

Bari,1974.

Entre os imimeros trabalhos que tratam de temas e problemas abor-dados no presente volume, podem aqui ser sumariamente indicados: K.

Rosenkranz, Hegels Leben, Berlim, 1844, reimpressao, Darmstadt, 1963,

t rad. i taliana, Florenca, 1966, 2!l ed. , Mil io, 1974; R. Haym, Hegel und

seine Zeit, Berlim, 1857, reimp., Hildensein, 1962; K. Fischer, Hegels Le-

ben, Werke und Lehre, 2 vols., Heidelberg, 1901; F. Rosenzweig, Hegelund der Staa t, 2 vols., Munique-Berlim, 1920(Bolonha, 1976); H. A. Rey-burn, The Ethica l Theory o f Hegel, Oxford, 1921;A. Passerin d'Entreves, IIfondamento del la f ilosof ia giurid ica di Hegel, Turim, 1924; G. Giese, He-gels Staatsidee, Halle, 1927; H. Glockner, Hegel-Lexikon, 4 vols. , Stutt-gart, 1935-1939; G. Mure, Introduction to Hegel, Oxford, 1940(Milio-Na-poles, 1954); K. Lowith, Von Hegel zu Nietzsche, Zurique, 1941; H. Mar-cuse, Reason and Revolution, Nova Iorque, 1941 led. brasileira: Raziio erevoludio, Rio de Janeiro, Saga, 1968) ; E. De Negri, Interpretazione di

Hegel, Florenca, 1943, 2!led., 1969; J. Hyppolite, Genese et structure de la

Phenomenologie de Hegel, 2 vols., Paris, 1946;A. Kojeve, Introduction ii la

lecture de Hegel, Paris, 1947; G. Lukacs, Der Junge Hegel, tJber die Bezie-

hungen von Dialektik und Oekonomie, Zurique-Viena, 1948 (Turim, 4!led., 1975); E. Weil, Hegel et l 'Etat, Paris, 1950 (Florenea, 1965); J. Ritter,

Hegel und die franzbsische Revolution, Coldnia-Opladen, 1956 (Napoles,1970); J. N. Findlay, Hegel, Londres, 1958(Milio, 1972); F. Gregoire, Etu-

des hegeliennes: les po ints capi taux du systeme, Louvain, 1958; A. T. P.Peperzak, Le jeune Hegel et la vision morale du monde, Haia , 1960; E.Bloch, Subjekt-Objekt. Erlauterungen zu Hegel, Berlim, 1949, 2!1 ed. ,Frankfurt, 1962 (Bolonha, 1975); R. Garaudy, Dieu est mort. Etude sur

Hegel, Paris, 1962; Th. W. Adorno, Drei .Studien zu Hegel, Frankfurt,

 

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Subjek ts (Hobbes. Fichte, Hegel , Marx, Marcuse) , Stuttgart, 1969; B. De

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Morale, 1975; G. Ahrweiler, Hegels Gesellschoftslehre, Darmtad-Neuwied,1976; S. Avineri, "The Dialectics of Civil Society in Hegel's Thought", in

Hegel Jahrbucb 1975, 1976; D. Borso, Hegel politico dell'esperienza, Milao,1976; C. Cesa, Hegel filosofo politico, Napoles, 1976; K. H. Ilting, "ZurDialektik in der 'Rechtsphilosophie' ", in Hegel Jahrbuch 1975, 1976; H.Kimmerle, "Hegels Naturrechet 1802-1805/1806, in Hegel-Studien, 1976;

S. Landucci, Hegel: la conscienza e la storia, Florenca, 1976; G. Marini,"Aspetti sistematici della societa civile hegelian a" , in Filosofia, 1976; R.

Bodei-F. Cassano, Hegel e Weber, Ban, 1977; K. H. Ilt ing, Hegel diverso ,

Bari, 1977 (recolhe trabalhos parcialmente reescritos para a edi~ao i ta-liana); L.Lugarini-M. Riedel-R. Bodei, Filosofia e societd in Hegel, Trento,

1977; M. Cacciari, Dialet tica e critica del politico. Saggio su Hegel, Milao,

1978.Marx (1818-1883) - Sao duas as principais edieoes das obras de

Marx: Marx-Engels, Historiscb-kritische Gesamtausgabe, Berlim-Frank-furt-Moscou, 1927-1935, 12vols., aos cuidados de D. Riazanov e V. Ado-ratski, que restou incompleta; Marx-Engels, Werke, Berlim, 1956-1968,40vols., aos cuidados dos Institutos de Marxismo-Leninismo de Moscou e deBerlim. A partir de 1972, os Editori Riuniti de Roma iniciaram a publicacao

em italiano das Opere complete de Marx e Engels, previstas para 50 tomos.

Para a bibliografia dos escritos, cf . M. Rubel, Bibl iographie des oeuvres de

Karl Marx , avec en appendice un repertoire des oeuvres de F. Engels , Pa~s,1956; eld., Supplement a la bibl iographie des oeuvres de Karl Marx, Pans,1960. Mas cf . 0informado elenco de G. M. Bravo, "Bibliografie e repertorimarx-engelsiani", in Critica marxista, 1976; e, do mesmo autor, para a bi-

bliografia das traducoes italianas, Marx e Engels in l ingua i ta lia na 1 84 8-

1960,Milao, 1962.

Uma bibliografia dos estudos atinentes Ateoria mais especificamentepolitica de Marx aparece como apendice a D. Zolo, La teoria comunista

dell'estinzione dello Stato, Ban, 1974; uma outra, ampliada para os estudosde tema poli tico relat ivos a toda a tradieao do pensamento marxista, podeserencontrada como apendice Aampla antologia organizada pelo mesmo D.Zolo, I marxistie 1 0 Stato, Milao, 1977. Do mesmo autor, veja-se ainda aresenha critica das principals posicoes contemporfineas sobre 0 assunto,

contida no ensaio Stato socialista e liberta borghesi, Roma-Bari, 1976.Tambem da infindavelliteratura sobre 0 pensamento marxista, indi-

camos aqui - sem pretensao exaustiva - somente traba lhos que tenhamliga~ao com temas e problemas de teoria poli tica tratados no presente vo-lume: F. Lenz, Staat und Marxismus, Stuttgart-Berlim, 1921; M. Adler,

 

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Sobre os autores

Norberto Bobbio e urn dos mais respeitados cientistas politicos da atualidade. Professor

de Fi losof ia da Univers idade de Thr im, " int electual desorgani co" segundo sua pr6p ria

definicao, iniciou em 1975 urn duradouro e polemico debate ent re sociali stas e comunis-

tas sobre 0futuro da democracia. Em julho de 1978, com 0afastamento de Giovanni Leoni

da Presidencia da Republica, seu nome chegou a ser cogitado para 0cargo. Era a primeira

vezque uma personalidade nao parlament ar merecia ta l dis tincao , Mili tant e do Partido

Sociali sta I taliano, desde a juventude vern sen-to continuamente reeleito para seu comi-

te cultural. Pela Brasiliense tern publicados Estudos sobre Hegel e Liberalismo e De-mocracia.Michelangelo Bovero e professor na Faculdade de Ciencia Pol it ica da Universidade de

Turim, colaborador e in terlocutor de Bobb io em seus pr inc ipa is estudos .