apostila terapia pos moderna

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BRASÍLIA-DF. TERAPIAS PÓS-MODERNAS

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Curso Terapia Familiar

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Page 1: Apostila Terapia Pos Moderna

Brasília-DF.

Terapias pós-Modernas

Page 2: Apostila Terapia Pos Moderna

Elaboração

Karina Santos da Fonseca

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração

Page 3: Apostila Terapia Pos Moderna

Sumário

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 4

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 5

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 7

UNIDADE ÚNICA

TERAPIAS PÓS-MODERNAS..................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1

TERAPIAS PÓS-MODERNAS ....................................................................................................... 9

CAPÍTULO 2

AS ESCOLAS E AS TERAPIAS PÓS-MODERNAS .......................................................................... 17

CAPÍTULO 3

ABORDAGENS TERAPÊUTICAS PÓS-MODERNAS ....................................................................... 25

CAPÍTULO 4

EQUIPE REFLEXIVA .................................................................................................................. 30

CAPÍTULO 5

CONTRIBUIÇÕES TERAPÊUTICAS .............................................................................................. 46

PARA (NÃO) FINALIZAR ..................................................................................................................... 62

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 64

Page 4: Apostila Terapia Pos Moderna

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Apresentação

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

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Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes

mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor

conteudista.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita

sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante

que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As

reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,

discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Praticando

Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer

o processo de aprendizagem do aluno.

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Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a

síntese/conclusão do assunto abordado.

Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões

sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o

entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Exercício de fixação

Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/

conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não

há registro de menção).

Avaliação Final

Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso,

que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única

atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber

se pode ou não receber a certificação.

Para (não) finalizar

Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem

ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado.

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Introdução

O Assistente Social, no exercício de suas atribuições, possui a necessidade do conhecimento das Terapias Pós-Modernas.

Por isso, torna-se relevante a obtenção de informações sobre a equipe reflexiva, as contribuições terapêuticas e as ferramentas conversacionais. Este Caderno de Estudos, portanto, tem o objetivo de proporcionar informações acerca das Terapias Pós-Modernas, com o compromisso de orientar os profissionais da área de Serviço Social para que possam desempenhar suas atividades com eficiência e eficácia.

Objetivos

» Aprofundar os conhecimentos teóricos sobre Equipe Reflexiva da Terapia Pós-moderna.

» Conhecer os aspectos relevantes sobre as contribuições terapêuticas.

» Levantar informações relevantes sobre ferramentas conversacionais.

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UNIDADE ÚNICATERAPIAS PÓS-MODERNAS

CAPÍTULO 1Terapias Pós-Modernas

Família: grupo de pessoas ligadas entre si por laços de casamento ou de

parentesco, ou conjunto de ancestrais ou descendentes de um indivíduo ou

linhagem. Larousse Cultural, 1992.

No Brasil, podemos destacar como grandes nomes da Terapia Familiar dentre outros: Marilene Grandesso, Maria José Esteves, Terezinha Féres, Rosa Macedo, Sandra Fedulo, Roberto Faustino (Recife), Rosana Rapizzo e Luiz Carlos Prado.

É possível compreendermos que o sistema familiar vive interações que repercutem no seu desempenho, tanto em seu ambiente interno como externo. Desta forma, conseguimos entender um dos principais pilares da Terapia Familiar que é a circularidade que estuda atenciosamente as sequências interacionais dos familiares para um olhar mais aprofundado acerca dos fatores que estão “segurando” o padrão comportamental familiar. Sabe-se que todo sistema faz parte de um sistema maior, por esse motivo, é importante relacionar a família observando-se sua rede de subsistemas mediante a leitura de contextos mais amplos, ou seja: indivíduo, grupo, comunidade, sistema de crenças, cultural, político.

A família é compreendida como um sistema aberto, e, dependendo de como “administra” suas relações, poderá “trabalhar” para diante de um desafio, problema, continuar na sua zona de conforto e não propiciar a mudança, ficando na homeostase. Pode também “trabalhar” no favorecimento da mudança buscando condições de superação e novos significados. É importante ressaltar que a Terapia Familiar dos dias atuais tem seus paradigmas baseados na Ciência Pós-Moderna e se apoia nos seguintes conceitos:

» Complexidade (não existe só uma realidade): base no multiverso; há diferentes olhares, múltiplos significados acerca de um mesmo fato.

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

» Imprevisibilidade: compreender que as imprevisibilidades existem, pois muitos fatos não estão sob o nosso controle.

» Intersubjetividade: influências recíprocas entre o observador e a realidade observada: negação da neutralidade. Ou seja, enquanto participante do processo terapêutico, o terapeuta, também, coloca nesse percurso suas vivências.

A Teoria Sistêmica nos ensina a olhar como a vida das pessoas é moldada pelas interações tanto com seus familiares como pelos contextos nos quais estão inseridos. O contexto familiar é compreendido de forma menos objetiva e mais complexa, na qual se vai em busca dos diversos significados dos membros familiares e da família como um todo. O terapeuta familiar deverá atuar como um facilitador, ajudando nesse processo de curar feridas e também de mobilizar talentos e recursos.

Para tal é preciso que ao trabalhar no processo terapêutico familiar, o terapeuta possa se aprofundar nos seguintes pontos significativos:

» contexto relacional;

» circularidade dos comportamentos: individual e familiar, emocional, afetivo, cognitivo;

» padrão de comportamento familiar-abertura /fechamento à mudança;

» estrutura familiar: subsistemas, fronteiras, triângulos, alianças, colisões, hierarquia, papéis;

» heranças familiares e suas influências: proximidade e diferenciação, sentimento de pertencer à família através dos seus valores e aprendizados, mas também se trabalhar em busca de um sentido de autoria própria: autonomia;

» esse olhar familiar é transgeracional focando a família de origem e a família nuclear. muitas vezes, trabalhamos com a compreensão de três gerações;

» processos de comunicação;

» crenças, valores, significados;

» ciclos de vida familiar;

» função do sintoma na família;

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

O terapeuta familiar sistêmico procura desenvolver uma epistemologia voltada à atenção de como evolui na sua forma de conhecer, atuar, mediante a observação atenta dos seus valores, sua visão de mundo, e a forma através da qual faz a integração desses fatores ao contexto terapêutico. Seu olhar é, continuadamente, voltado ao contextual, ao relacional, sem esquecer também o valor do fator individual em cada sistema familiar, refletindo o terapeuta, que ao mesmo tempo que é parte integrante do sistema.

Contextualizando uma visão pós-moderna sistêmico-si-cibernética, dentro do conceito da Terapia familiar, Maria José Esteves (1980) coloca que é importante reforçar os seguintes pontos:

» entender que a família é um sistema aberto e que o terapeuta não está a serviço de reparar ou consertar a disfunção. Importante o trabalho cooperativo entre família e terapeuta voltando o olhar à família também como recurso e não só dificuldade;

» a intersubjetividade do terapeuta deverá ser compreendida e incluída no contexto do sistema: o terapeuta deverá, ao mesmo tempo que faz parte do sistema, dele tomar distância para refletir conteúdos que são seus e das famílias;

» sabendo que não existe apenas uma realidade, o terapeuta precisa estar consciente das suas ideias que tem acerca das patologias, estruturas disfuncionais, seus preconceitos, das suas demandas, para que colocando tudo isso em parênteses, possa estar aberto para visões alternativas;

» essencial que o terapeuta aja como facilitador da autonomia do cliente, uma vez que ele tem a função de “arquiteto do diálogo” que incentiva condições e facilita a abertura para a criação do espaço dialógico;

» o terapeuta deverá compreender que adotar o pensamento circular não significa anular o pensamento linear que faz parte da sobrevivência de todos nós. Importante é focalizar ideias, sentimentos e ações, compreendendo como esses se entrelaçam e contribuem ao sentido de autoria das famílias, olhando também as condições de interdependência dessas situações;

» fundamental ao terapeuta pós-moderno é investir, continuadamente, no exercício de aprender sobre terapia familiar, aprender como fazer esse tipo de terapia e aprender como ser um terapeuta de família.

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

Vivemos hoje na terapia familiar a uma multiplicidade de abordagens tantas quantos forem os terapeutas em questão. Contudo, a ausência de um purismo de abordagens não significa uma anarquia epistemológica se considerarmos os marcos referenciais da pós-modernidade como seus denominadores comuns. Uma coerência epistemológica une as práticas pós-modernas de terapia em torno de alguns pressupostos teóricos comuns que organizam a ação dos terapeutas:

» a consciência de que o terapeuta coconstrói no sistema terapêutico em ação conjunta com a família a definição do problema e das possibilidades de mudança;

» a crença de que toda mudança só pode se dar a partir da própria pessoa e da sua organização sistêmica autopoiética, sendo responsabilidade e especialidade do terapeuta a organização da conversação terapêutica;

» a mobilização dos recursos da família, da comunidade, das redes de pertencimento, legitimando o saber local de pessoas e contextos;

» uma concepção não essencialista de self compreendido como construído no contexto das relações e práticas discursivas; a visão da pessoa como autora de sua história e existência, competente para a ação, para o agenciamento de escolhas a partir de um posicionamento autorreflexivo, moral e ético, podendo criar e expandir suas possibilidades existenciais;

» a ênfase sobre os significados socialmente construídos na linguagem e nos espaços dialógicos, sendo construídos nos discursos emergentes e, ao mesmo tempo, responsáveis por suas transformações;

» a crença no diálogo, definido como um cruzamento de perspectivas como uma prática social transformadora para todos os envolvidos independente de seu lugar como terapeuta e cliente;

» a ênfase nas práticas de conversação e nos processos de questionamento como recurso para gerar reflexão e mudança, conforme expande os horizontes de terapeutas e clientes;

» a adoção de postura hermenêutica em que a compreensão é coconstruída intersubjetivamente pelos participantes da conversação;

» a ênfase muito mais no processo do que no conteúdo das histórias compreendendo as narrativas como locais e, portanto, idiossincráticas.

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

Refletindo sobre o panorama atual da Terapia Familiar podemos considerar que sua consistência decorre de uma epistemologia unificadora pós-moderna apoiada numa hermenêutica contemporânea construída na intersubjetividade, envolvendo a pessoa do terapeuta como coconstrutor das realidades com as quais trabalha. A prática dessas terapias ditas pós-modernas envolve um trânsito do terapeuta entre teoria e prática de modo epistemologicamente coerente, de acordo com os meios que se lhe apresentem mais úteis e despertem seu entusiasmo e criatividade enquanto interlocutor qualificado.

Enquanto uma prática social transformadora esta terapia se organiza a partir dos contextos locais e das histórias culturais de distintas comunidades linguísticas. O respeito pela diversidade e multiplicidade de contextos com seus saberes locais implica numa terapia construída a partir da aceitação da responsabilidade relacional do terapeuta, legitimando os direitos humanos de bem-estar e de exercício da livre escolha.

Os imensos desafios que se apresentam para o terapeuta vindos do campo da saúde mental, das instituições voltadas para o cuidado e tratamento da pessoa, dentro de uma perspectiva pós-moderna, convidam para a humildade na construção do conhecimento e conduzem, cada vez mais para uma ação transdisciplinar numa instância de trocas colaborativas entre os distintos domínios de saber e no uso de técnicas como recursos a serviço do bem-estar. O caráter autorreferencial e de reflexo presente nas terapias pós-modernas, desafiam o terapeuta a tornar explícitos os seus pré-juízos, os seus valores, suas opções ideológicas, nos limites da sua subjetividade, estabelecendo parâmetros para a clínica que pratica harmonizando de forma estética teoria e prática a serviço do bem-estar das famílias que são atendidas.

O pensamento pós-moderno

Temos encontrado uma pluralidade de entendimentos para o que pode ser chamado de pós-modernismo, desde a sua apresentação à Psicologia na conferência de Aarhus na Dinamarca, em 1989 (HOLZMAN; MORSS, 2000).

Embora nem todos esses entendimentos sejam coerentes entre si, o pós-modernismo pode ser compreendido como uma mudança paradigmática que surge da crise do modelo epistemológico da modernidade, colocando em xeque dentre outras coisas:

» a separação entre um mundo real e um mundo da experiência;

» a segurança das representações claras e distintas como fundamento de um conhecimento válido, ou seja, a existência de verdades imutáveis como base para a construção do conhecimento;

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

» a possibilidade de separação entre um sujeito epistêmico, apto para empreender um conhecimento confiável de origem insuspeita, e o objeto de seu conhecimento, ou seja, a possibilidade de um conhecimento objetivo.

A influência dos “neokantianos” e da nova física de Heisenberg, no início do Século XX, colocou em descrédito os parâmetros para o pensamento que, desde o século XVII, sustentavam a busca do conhecimento válido. A rejeição do sonho Iluminista de avanço seguro através da razão e da ciência (KVALE, 1992), resultou na rejeição dos discursos hegemônicos e monovocálicos que marginalizam vozes minoritárias, dissidentes e desviantes, apontando para as implicações políticas dessa marginalização. É neste lugar que podemos situar trabalhos como os de Foucault, Derrida, Baudrillard e Lyotard.

O conhecimento como um processo ativo, construído e não descoberto, apoia-se na ideia de que a compreensão humana é uma construção negociada entre redes conceituais das pessoas em transações no mundo. Assim, o pensamento pós-moderno questiona as metanarrativas, o discurso privilegiado de sujeitos epistêmicos com acesso também privilegiado a uma realidade independente e a busca de verdades universais. Dentro desta nova perspectiva, ao invés de uma espécie de “tribunal dos fatos” fora da esfera do “simplesmente humano”, conforme Ibañez (1992) refere-se à tradição da modernidade, o modelo de pensamento da pós-modernidade deixando de lado critérios de validade do conhecimento transportados por uma linguagem configurada como uma representação icônica do mundo real propõe a coerência e a viabilidade como valores epistêmicos. Não tem sentido, portanto, dentro desta nova perspectiva a busca de parâmetros para interpretação acurada da realidade na pretensa produção de um conhecimento independente do sujeito cognoscente da cultura e da história.

Enquanto no discurso da modernidade o conhecimento pode ser concebido como um processo sem sujeito, no discurso pós-moderno a existência do objeto do conhecimento implica necessariamente a presença do sujeito cognoscente (IBAÑEZ, 1992), criando uma crise ontológica que resulta no nascimento de uma consciência histórica de uma era em que todos somos protagonistas (MIRÓ, 1994). Assim, o pós-moderno pode ser considerado como um posicionamento crítico, uma postura filosófica que propõe uma nova visão da pessoa humana e do mundo. O conhecimento passa a ser compreendido como uma prática discursiva socialmente construída, cujo caráter local e contextual legitima múltiplas narrativas, resultando no multiperspectivismo de diferentes abordagens dirigidas para a construção de significados úteis para os propósitos humanos. Se sujeito e objeto se interconstituem podemos falar na singularidade e na multiplicidade dos contextos e das culturas, na generatividade da linguagem para a definição do self e do mundo e da aceitação do pressuposto de que conhecer implica em

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

conviver com a incerteza, a imprevisibilidade e o desconhecido. Muitas são as questões que o pensamento pós-moderno evoca, muitas delas de natureza ideológica e política organizadas em torno de possibilidades de poder que o conhecimento pode assumir e, outras tantas, em torno de questões epistemológicas e hermenêuticas as quais pretendo abordar na consideração das terapias que podem ser ditas pós-modernas.

Terapias pós-modernas

Dentro de uma concepção pós-moderna, as abordagens terapêuticas e suas metáforas teóricas estabelecem tipificações do mundo da experiência, sendo, também, histórica e culturalmente contingentes (GRANDESSO, 1997).

Nesse sentido, os conceitos teóricos pelos quais nós terapeutas construímos nossas compreensões das pessoas que nos procuram e dos dilemas que elas vivem, são construções sociais úteis, não devendo ser reificadas como se correspondessem a uma realidade pré-existente, independente do terapeuta em questão.

O terapeuta pode ser considerado como um agente de transformação social para a qual contribui sua experiência pessoal, profissional e posicionamento político, implicando necessariamente uma ética das relações cujos traços mais significativos são a consciência e a autorreflexividade, nos dizeres de Gergen (1989, 1994, 1991 e 1998), e a consciência de que as práticas e métodos terapêuticos não são ideologicamente neutros. Quando atuamos como terapeutas estamos construindo uma certa forma de mundo, legitimando um determinado conjunto de relações sociais e de forma de tratamento e valorização das pessoas.

O pensamento da pós-modernidade configurado como um guarda-chuva paradigmático para a prática da terapia, manifesta-se em um conjunto de princípios e derivações práticas organizadas pelos enfoques construtivistas e construcionista social. Embora haja uma pluralidade de enfoques ditos construtivistas e construcionistas social (construtivismo radical, construtivismo crítico ou psicológico, construtivismo moderado, construtivismo dialético, construtivismo cultural, construtivismo epistemológico, construtivismo hermenêutico, construtivismo terapêutico, construtivismo social, construcionismo social, construcionismo social responsivo retórico, dentre outros), cujo detalhamento foge aos propósitos deste trabalho, todos eles se definem pós-modernos manifestando sua oposição a uma epistemologia objetivista e suas implicações tecnológicas baseadas no poder (GRANDESSO, 1998, 2000).

O pensamento pós-moderno na prática clínica reflete-se na mudança das metáforas teóricas que os terapeutas usam mudando das metáforas organizadas em torno do

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

conceito de homeostase da Cibernética de Primeira Ordem, das metáforas bélicas do grupo de Milão, tão bem descritas num artigo de Cecchin (1992) para as ecológicas em torno do conceito de coevolução, cocriação e coparticipação (FREEDMAN; COMBS, 1996). A história deste mais de meio século de terapia familiar pode ser descrita a partir dos desdobramentos que passaram a configurar o discurso terapêutico pós-moderno em torno de outras metáforas teóricas que, passando pela pessoa do terapeuta e seu engajamento num processo autorreflexivo, abandonando a noção de descoberta, organizaram as narrativas teóricas e as práticas terapêuticas em torno do conceito de coconstrução, tanto dos problemas como de suas soluções.

O pensamento pós-moderno trouxe para a terapia familiar uma mudança dos modelos informados pela Cibernética de Primeira Ordem, com sua ênfase nos padrões de interação e nas organizações familiares baseadas nas noções Parsonianas de estrutura e papel para os modelos condizentes com uma Cibernética de Segunda Ordem, com ênfase na construção de significados, nos modelos dialógicos e nas metáforas narrativas e hermenêuticas. Dentre as palavras-chave comumente empregadas pelos muitos modelos terapêuticos pós-modernos, destacam-se: sistemas linguísticos, narrativa, conversação, diálogo, histórias, significado, cultura. As teorias que os terapeutas adotam são, neste referencial pós-moderno, lentes provisórias (conforme o dizem ANDERSON; GOOLISHIAN, 1988), não derivando seu valor de qualquer pretenso valor verdade, mas sim de sua utilidade como marco gerador e organizador de significados úteis para a compreensão dos dilemas humanos e favorecimento de uma prática terapêutica geradora de mudança. As técnicas, dentro desta concepção, somente podem ser compreendidas como criadoras de contextos propícios para a mudança terapêutica, derivando seu valor de sua generatividade para favorecer transformações criativas. Dessa maneira, uma teoria passa a ser considerada útil conforme ofereça subsídios para a construção de significados que façam sentido para organizar a experiência vivida pela família e a evolução do sistema terapêutico.

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CAPÍTULO 2As escolas e as terapias pós-modernas

A família poderia assim se constituir de uma instituição

normalizada por uma série de regulamentos de afiliação e aliança,

aceitos pelos membros. Alguns desses regulamentos envolvem: a

exogamia, a endogamia, o incesto, a monogamia, a poligamia, e a

poliandria (MINUCHIN, 1990).

Escola estrutural

Na década de 1950 a Teoria Estruturalista tornou visível o conflito entre as teorias Clássica e das Relações Humanas. A primeira considerava a organização formal sob uma visão de que para as empresas serem eficientes, deveria ter o foco na estrutura e na forma. Já a última valorizou a teoria informal, as pessoas e os grupos internos.

A Abordagem Estruturalista criou uma teoria mais abrangente, entendendo a empresa como uma organização aberta, ou seja, tendo grande interação com o ambiente externo direto e indireto. Além do conceito de homem organizacional, dos inevitáveis conflitos e dos incentivos mistos dentro da organização.

A Escola Estruturalista surgiu em decorrência do declínio do movimento das relações humanas no final da década de 1950 com os seguintes aspectos:

» oposição entre os aspectos formais e os defendidos pelos autores da escola clássica informais valorizados pelos autores da Escola de Relações Humanas;

» a necessidade de visualizar a organização como um todo e não de forma compartimentada e isolada. A organização lida com muitas variáveis complexas de ordem interna e externa. Ela tanto influencia como pode ser influenciada pelo ambiente externo direto e indireto;

» a repercussão dos resultados dos estruturalistas na compreensão das organizações como um todo integrado e complexo.

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

Conceito de estruturalismo

O estruturalismo é um método analítico e comparativo que estuda os elementos ou fenômenos em sua totalidade salientando seu valor de posição.

Os estruturalistas preocupam-se com as relações e interconexões das partes na constituição e na compreensão de todos. O estruturalismo esta alicerçado na totalidade e na reciprocidade para facilitar o entendimento de que o todo é o maior que a simples soma das partes.

Fundamentos da escola estruturalista

O homem organizacional: é aquele que desempenha diferentes papéis em organizações diversas. Para cada papel desempenhado, o homem deve adotar posturas/comportamento, como a flexibilidade, tolerância, capacidade de adiar as recompensas e permanente desejo de realização.

A necessidade de o homem relacionar seu comportamento com o de outras pessoas com o fim de atingir um objetivo, gera a organização social. Na organização social, encontramos o elemento comportamento, gerado pelo estímulo, e o elemento estrutura, que é formado por categorias de comportamento ou conjuntos de comportamentos agrupados. Os conflitos inevitáveis: para os estruturalistas, o conflito entre grupos é um processo social fundamental, pois é o grande elemento propulsor do desenvolvimento, embora isso nem sempre ocorra.

O movimento estruturalista não só reconheceu o conflito como inevitável, mas também como muitas vezes desejável para tirar os empregados da zona de conforto. Ele deve estimular a mudança, ou seja, a passagem do estado estável para o estado instável.

A administração de conflitos requer a conservação de um nível adequado de conflitos em um grupo. Pouco conflito gera estagnação. Muito conflito gera rupturas e brigas internas. Ambos os casos são prejudiciais para o grupo. Dessa forma, compete ao gestor manter um nível adequado de conflitos por meio da utilização de técnicas de resolução e estimulação de conflitos.

O conflito nas organizações pode ser decorrente tanto dos atributos estratégicos, estruturais, processuais e ambientais quanto de desempenho.

Fatores como origem, educação, experiência e treinamento moldam cada empregado em uma personalidade única com um conjunto particular de valores. O resultado é que

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

as pessoas podem ser vistas pelas outras como ríspidas, indignas de confiança, difíceis, estranhas de lidar. Essas diferenças pessoais podem estimular o conflito.

As técnicas geralmente utilizadas na resolução de conflito são a abstenção, acomodação, imposição ou coerção, acordo ou conciliação e colaboração.

Os incentivos mistos: os estruturalistas consideram importantes tanto os incentivos e recompensas psicossociais quanto os materiais, bem como as influências mútuas.

Os símbolos e os significados também devem ser prezados e compartilhados pelos outros, como a esposa, os colegas, os amigos, os vizinhos. Embora as recompensas sociais sejam importantes, elas não diminuem a importância das recompensas materiais.

Alguns autores identificaram a corrente que foi denominada corrente estruturalista cujo enfoque foi estabelecer uma crítica sobre o que tinha sido escrito até então dentro desse campo. Com isso foram passados em revista os conceitos da Escola Clássica, de Relações Humanas e da Burocracia, tomando-se novamente a retórica sobre organizações e sua complexidade.

As escolas anteriormente estudadas tinham visão parcial dos elementos que compunham uma organização. E é impróprio considerarmos que o Estruturalismo constitui por si só um corpo teórico com inovações conceituais sobre a administração, mas não o é considerá-lo a forma organizada de analisar os mesmos problemas já abordados de maneira fragmentada.

Ao estudarmos a organização sob a óptica estruturalista estamos necessariamente fazendo uma análise globalizante de todos os fatores que compõem o todo organizacional. Mais que isso, estamos reconhecendo a integração e interdependência desses fatores. Outro aspecto importante do conceito de estruturalismo é a influência que esses fatores exercem uns sobre outros, onde surge a necessidade de reconhecer a existência de um ambiente onde eles se inserem.

A finalidade da organização, em um sentido amplo, depende de alguma combinação dos seguintes fatores: das hipóteses concernentes à natureza do homem, da unidade de análise, ou seja, dos níveis institucionais, individuais e organizacionais e, por último, do ponto de partida da organização.

Minuchin é o principal teórico da Escola Estrutural e para ele a família é um sistema que se define em função dos limites de uma organização hierárquica. O sistema familiar diferencia-se e executa suas funções através de seus subsistemas. As fronteiras de um subsistema são as regras que definem quem participa de cada subsistema e como participa. Para que o funcionamento familiar seja adequado, estas fronteiras devem

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

ser nítidas. Quando as fronteiras são difusas, as famílias são aglutinadas; fronteiras rígidas caracterizam famílias desligadas. Famílias saudáveis emocionalmente possuem fronteiras claras. A estrutura não é, para Minuchin (1974), uma entidade imediatamente acessível ao observador. É no processo de união com a família que o terapeuta obtém os dados, escalonamento do stress e a utilização dos sintomas. A terapia estrutural é uma terapia de ação e o sintoma é visto como um recurso do sistema para manter uma determinada estrutura.

Escola estratégica

A Escola Estratégica (HALEY, 1985; MADANES, 1984) é um modelo pragmático voltado essencialmente para a clínica. Sua preocupação é com a solução do problema e com a identificação dos comportamentos que mantêm o problema. Para cada resolução de problema, são traçadas estratégias específicas. Há um plano geral que inclui a primeira entrevista a qual tem lugar muito importante, pois além de explorar o problema, estabelece as metas e as atribuições que cabem a todos. Progressivamente vão sendo planejadas intervenções que requerem cooperação de todos até o estágio de resolução do problema e uma fase posterior de manutenção dos ganhos obtidos.

O termo estratégico é utilizado para descrever qualquer terapia em que o terapeuta realiza ativamente intervenções para resolver problemas. A visão estratégica define o sintoma como expressão metafórica ou analógica de um problema representando, ao mesmo tempo, uma forma de solução insatisfatória para os membros do sistema em questão.

A abordagem terapêutica é pragmática: trabalham-se as interações e evitam-se os porquês. O principal objetivo é mudar o comportamento manifesto do paciente. São utilizadas instruções paradoxais que consistem em prescrever comportamentos que, aparentemente, estão em oposição aos objetivos estabelecidos, mas que visam a mudanças em direção a eles. A instrução paradoxal é mais frequentemente utilizada sob a forma de prescrição de sintoma, isto é, encorajando- se aparentemente o comportamento sintomático. Para Watzlawick et al. (1967) o uso do paradoxo leva a substituir a ação do duplo vínculo patogênico por um duplo vínculo terapêutico.

Escola de Milão

Refere-se à escola da psicoterapia sistêmica desenvolvida pelos psiquiatras e psicanalistas milaneses Mara Selvini Palazzoli, Luigi Boscolo, Gianfranco Cecchin e Giuliana Prata. Esse grupo de estudiosos afastou-se da psicanálise na década de 1970 e dava ênfase ao tratamento da família como um todo, priorizando a observação do

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“jogo” intrafamiliar, ou seja, das regras internas e implícitas que regem a família – e que, normalmente servem de apoio à sintomática.

Foi então desenvolvido um modelo sistêmico de intervenção familiar, que é utilizado no atendimento de famílias anoréticas e ou com problemas sérios emocionais.

Partindo da hipótese de que a família é um sistema autorregulado que se governa através de regras, Palazzoli et al.( 1978 ) relata suas pesquisas com diferentes grupos de famílias e conclui que as famílias de anoréticos são caracterizadas pela presença de redundâncias comportamentais e por regras particularmente rígidas, enquanto as famílias com um paciente psicótico, embora a rigidez do modelo base, apresentam enorme complexidade nas modalidades transacionais.

Um princípio terapêutico fundamental para o grupo de Milão é a conotação positiva dos comportamentos apresentados pela família. Quando se qualificam como positivos os comportamentos sintomáticos, motivados pela tendência homeostática do sistema e não os comportamentos. Outro tipo de intervenção utilizada pelo grupo de Milão é o ritual familiar, ou seja, uma ação ou uma série de ações das quais todos os membros da família são levados a participar. A prescrição de um ritual visa evitar o comentário verbal sobre as normas que perpetuam o jogo em ação. No ritual familiar novas regras substituem tacitamente as regras precedentes. Para elaborar um ritual o terapeuta deve ser bastante observador e criativo. O ritual é rigorosamente específico a uma determinada família.

A neutralidade é a posição de que o sistema deve ser visto em todas as suas partes, e todas têm a mesma importância na sua expressão. Na prática é fazer aliança com todos os membros da família. Além do valor da equipe como um importante recurso no atendimento, a Escola de Milão trouxe questionamento sobre intervalo entre as sessões, como um outro recurso terapêutico (BOSCOLO, CECCHIN, HOFFMAN; PENN, 1993). Nichols e Schwartz (2006-2007) consideram que a Escola de Milão pode ser vista como estratégica (na origem de seus conceitos e prescrições) e com ênfase na adoção de rituais, que são ações prescritas para dramatização da conotação positiva.

Escola Construtivista

No final da década de 1970, utilizando os conceitos da cibernética de segunda ordem e de sua aplicação aos sistemas sociais, surge a Escola Construtivista. A partir da concepção de retroalimentação evolutiva de Prigogine (1979), considera-se que a evolução de um sistema ocorre através da combinação de acaso e história em que, a cada patamar, surgem novas instabilidades que geram novas ordens, e assim sucessivamente. Nesta

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

perspectiva em que os sistemas vivos são considerados como hipercomplexos e indeterminados, instabilidade e a crise ganham um novo sentido no sistema familiar. A crise não é mais um risco, mas parte do processo de mudanças assim como o sintoma.

Sendo assim, os terapeutas de família da Escola Construtivista passam a considerar a autonomia do sistema familiar partindo do estudo dos sistemas auto-organizados da cibernética de segunda ordem, e dos sistemas autopoéticos postulados por Humberto Maturana (1990). Ocorre, neste enfoque, uma ruptura entre o sistema familiar/observado e o terapeuta/ observador. O sistema surge como construção de seus participantes. O terapeuta estará interessado não mais no comportamento a ser modificado, mas no processo de construção da realidade da família e nos significados gerados no sistema. A ênfase é deslocada do que é introduzido no sistema pelo terapeuta para aquilo que o sistema permite a ele selecionar e compreender. Alguns terapeutas estratégicos podem ser citados como tendo incluído posteriormente na sua prática o modo de pensar construtivista; entre eles, os do grupo de Milão. Palazzoli et al. (1980) estabelecem três princípios indispensáveis ao trabalho terapêutico: a formação de uma hipótese, a circularidade e a neutralidade. A hipótese formulada deve ser testada ao longo da sessão; se rejeitada, o terapeuta procurará outras, baseando-se nos dados obtidos na verificação da primeira hipótese. Todas as hipóteses devem ser sistêmicas, ou seja, devem incluir todos os membros da família e fornecer uma conjetura que explique a função da relação. A circularidade diz respeito à capacidade do terapeuta de conduzir a sessão baseando-se nos feedbacks recebidos da família como resposta à informação que solicitou em termos relacionais.

A neutralidade consiste numa atitude de imparcialidade do terapeuta que se alia a cada membro da família, neutralizando qualquer tentativa de coalizão ou sedução de qualquer componente do grupo familiar.

O enfoque construtivista, proposto a partir de uma ótica sistêmica de segunda ordem, questiona, portanto o poder do terapeuta na terapia familiar e as intervenções terapêuticas diretivas. A ênfase não é colocada na pergunta, mas na construção da interação e a ação do terapeuta pretende explorar as construções onde surgem os problemas.

A Terapia Sistêmica de Família mudou juntamente com o mundo que já não é mais o mesmo. As ideias pós-modernas com contribuições dos aportes filosóficos abordando as questões da linguagem, as teorias sobre a construção conjunta de significado, as questões de gênero, a ética, as contribuições da nova física e os novos conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro e da mente formaram um pano de fundo para o surgimento de novas escolas de Terapia de Família.

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

Sem abandonar completamente os pressupostos anteriores, novas abordagens

terapêuticas passaram a explorar as narrativas dos diversos membros de uma família

em busca de diferentes descrições para os problemas e de mais recursos para o

funcionamento da família, sempre se perguntando sobre o que seria adequado em cada

contexto sociocultural. O terapeuta deixou de ser um observador externo, um especialista

em detectar problemas, para se transformar em um articulador, um mediador de

conversações preocupado em conhecer como determinada família se organiza e opera.

E também os significados construídos e compartilhados por seus membros.

Nesse meio tempo, o desenvolvimento de nossas teorias da terapia tem

caminhado rapidamente em direção a uma posição mais hermenêutica

e interpretativa. Esta posição enfatiza os sentidos à medida que eles

são criados e vivenciados pelos indivíduos nas conversações. Na busca

por esta nova base teórica, desenvolvemos um conjunto de ideias que

conduzem nosso entendimento e explicações à arena dos sistemas em

movimento, que existem somente nos caprichos do discurso, da linguagem

e da conversação. É uma posição firmada nos domínios da semântica e

da narrativa que se apoia principalmente no princípio segundo o qual a

ação humana acontece em uma realidade de entendimento criada pela

construção social e do diálogo. Deste ponto de vista, as pessoas vivem e

compreendem seu viver por meio de realidades narrativas construídas

socialmente que conferem sentidos e organização à sua experiência.

(ANDERSON; GOOLISHIAN, 1998, p.36)

Sem negar importância do conhecimento do especialista, o pós-modernismo põe em

evidência o conhecimento local, o conhecimento trazido pelas histórias e narrativas

pessoais. Geertz (1978), inspirado em Ryle – filósofo inglês representante da geração

influenciada pelas teorias de Wittgentein sobre a linguagem – menciona dois tipos de

narrativas ou descrições: as descrições superficiais, que buscam analisar os significados

culturais a partir do ponto de vista do especialista, determinando o que eles são; e as

descrições ou narrativas densas que analisam os significados a partir do ponto de vista

dos atores interessando-se por quem eles são.

O pós-modernismo trouxe novas metáforas para a questão da comunicação. Chamamos

a atenção para sua etimologia, que mostra a mesma origem das palavras ― comum –,

―comuna–, ―comungar–: todas se originaram da expressão latina commune. Além da

ideia da transmissão de informações, comunicação remete ao processo de construção

de um sentido comum através da relação mediada pela linguagem.

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

O pensamento da pós-modernidade, associado a uma prática clínica sistêmica,

manifesta-se em um conjunto de princípios e derivações práticas em torno dos

enfoques conhecidos como construtivismo e construcionismo social... Posso

dizer que, em linhas bem gerais, a oposição dá-se entre uma visão de construção

do conhecimento centrada no indivíduo, no caso do construtivismo, e uma

centrada na construção social, no caso do construcionismo. (GRANDESSO,

2000, p.56)

Para Benjamim, a experiência é fundamental; não a experiência isolada, mas sim a experiência de uma pessoa em interação com seu contexto pessoal, familiar, social, político, espiritual. E a narrativa que surgirá dessa experiência será sempre uma forma artesanal de comunicação, cujo sentido surge a cada vez que é narrada, a cada encontro entre narrador e ouvinte, que, estando em interação, em comunicação, construirão em conjunto o sentido do que vivem.

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CAPÍTULO 3Abordagens terapêuticas pós-modernas

De acordo com Minuchin (1999), as famílias são como sistemas

sociais e, por essa razão, é necessário prestar atenção nas

características de qualquer sistema, pois uma parte influência

a outra e todo o sistema passa por períodos de estabilidade e

mudança, como também o poder dessas diferentes partes pode

ser desigual como em qualquer estrutura.

O trabalho com as famílias considera as motivações individuais, relacionais e sociais, permitindo uma abordagem contextualizada de sentido sistêmico, ou seja, passar da preocupação com o produto à preocupação com o encontro entre o sujeito e o produto num contexto sociocultural, como defende Sudbrack (2001). O modelo sistêmico postula que os problemas relacionados ao uso de drogas situam-se na interação do indivíduo com seu contexto, existindo uma interação dinâmica entre variáveis individuais, ambientais e a substância química. Parece-nos, então, um modelo abrangente e, portanto, o mais indicado para dar conta da complexidade do fenômeno.

A epistemologia ecossistêmica de Bateson (1976, 1979) propõe a visão de contexto, em oposição à visão dicotomizada de indivíduo e ambiente. O contexto indica um conjunto vivo – o ecossistema – composto de um organismo e de seu ambiente, indissociáveis, e ligados pela constância na relação. O ecossistema inclui o indivíduo em relação com seu ambiente. Seguindo-se a proposta de Bateson da visão de contexto como elemento fundamental de toda comunicação e significação, não se deve isolar o fenômeno de seu contexto, pois cada fenômeno tem sentido e significado dentro do contexto em que se produz.

Esta proposta de trabalho segue, também, os fundamentos da epistemologia da complexidade nas ideias de Morin (1992, 1996, 1996a), quando nos fala do desafio de não separar o objeto de seu meio, de não ser redutor e disjuntivo; que a complexidade é um desafio que o real nos traz, pois a realidade é complexa. Morin (1996) coloca que o objetivo do conhecimento não é descobrir o segredo do mundo, mas dialogar com o mundo. O pensamento complexo luta contra a mutilação, não contra a incompletude, diz este autor (1992). O pensamento complexo tende para o pensamento multidimensional.

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

Com a teoria se reconhece a instabilidade, a indeterminação, a desordem, a ordem a partir das flutuações, a auto-organização, o acaso. Transpondo-se a perspectiva do caos na visão da complexidade, como propõe Ausloos (1995).

A epistemologia construtivista (VON GLASERSFELD, 1988, 1995; VON FOERSTER, 1987,1988; WATZLAWICK, 1988, 1995) nos afasta da pretensão de objetivar e atingir uma realidade (a realidade é uma construção), e toda observação inclui o observador (como observadores, somos sempre parte do que observamos). O construtivismo reinsere o sujeito no processo de conhecimento. O cientista não é mais um observador neutro, mas ao contrário, as teses científicas são concebidas como criadas pelo e para o ser humano, a fim de apreender uma natureza complexa e desordenada (CAILLÉ, 1981 apud SUDBRACK, 1997). A palavra chave no construtivismo é escolher: o terapeuta construtivista tem por objetivo resgatar no grupo as possibilidades deste reinvestir em outros níveis de leitura, de complexificar suas relações com o mundo (SUDBRACK, 1994).

A família, então, é vista como recurso, como um sistema que tem competências. Trabalhar em terapia sobre a competência supõe uma grande confiança na capacidade do sistema familiar em resolver problemas. Ausloos (1995) coloca que todas as famílias têm competências, mas em certas situações elas não sabem as utilizar, não sabem que as têm, estão impedidas de utilizá-las, ou ainda, impedem a si próprias de as utilizar por diferentes razões. O papel do terapeuta ou equipe terapêutica, como ativadora deste processo de competência familiar. Sobre este aspecto Ausloos (1995) refere que o papel do terapeuta é de trabalhar com a família para encontrar ou descobrir o que ela sabe para reinventar soluções e para resolver seus problemas.

A psicologia que tradicionalmente tem seu foco de ação centrado na identificação de problemas/doenças em busca de soluções ‘curas’ é convocada a propor novas formas de intervenção que deem conta das realidades atuais. E para que possamos construir estas perspectivas diferentes de intervenção clínica é preciso que modifiquemos alguns paradigmas tecnicistas. Inclusive compreendendo a intervenção clínica segundo propõe Figueiredo (1996), ou seja, o ethos da clínica psicológica é o de uma escuta diferenciada das aflições pelas quais passam as pessoas, aquilo que não é dito mas que gera tensões e conflitos. O paradigma proposto então é o ético-estético, ou seja, a produção de vida e a construção de cidadania, escutando-se o cotidiano como expressão das práticas humanas num determinado tempo e lugar com diferentes possibilidades de interpretação.

Acreditamos que com esta perspectiva de atendimentos às famílias, estamos ampliando as possibilidades de os psicólogos se aproximarem das demandas atuais da sociedade,

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

já que a identificação dos problemas com o abuso de drogas é tema recorrente e cada vez mais crescente. A sociedade em constante processo de mudança aponta para vivências e sofrimentos da coletividade que se alteram, cabendo a psicologia propor novas estratégias de enfrentamento desta realidade.

De acordo com Minuchin (1999), as famílias são como sistemas sociais

e, por essa razão, é necessário prestar atenção nas características de

qualquer sistema, pois uma parte influência a outra e todo o sistema

passa por períodos de estabilidade e mudança, como também o poder

dessas diferentes partes pode ser desigual como em qualquer estrutura.

A terapia familiar tem como objetivos, na perspectiva de Cordioli (1998), melhorar a comunicação entre os membros, desenvolver a autonomia e a individualização das diferentes pessoas, descentralizar e tornar mais flexíveis os padrões de liderança e de tomada de decisões, reduzir conflitos interpessoais, além de melhorar o desempenho individual.

Do mesmo modo, sua personalidade e comportamento são moldados pelo que a família permite e espera dele. Para Minuchim (1999), o indivíduo é a menor unidade do sistema familiar. O mesmo autor salienta que ele contribui para a formação de padrões familiares. As diferentes temáticas que emergiram dos atendimentos familiares realizados possuem desdobramentos a partir de um conflito central. O conflito que motivou o atendimento familiar num primeiro momento é identificado em um dos membros da família. Entretanto, no decorrer dos encontros realizados, a família começa a identificar como os demais familiares envolvem-se na conflitiva apresentada inicialmente, assim como, começam a perceber novas possibilidades de entendimento daquele conflito e a possibilidade uma mudança nos padrões de funcionamento familiar.

O espectro de possibilidades de terapias que podem ser consideradas pós-modernas é bastante amplo. Podemos enumerar uma farta variedade de abordagens, organizadas de forma razoavelmente consistente, tanto do ponto de vista teórico, como das práticas clínicas derivadas, que podem ser ditas pós-modernas. Este trabalho propõe-se a oferecer um panorama atual do campo das terapias pós-modernas, tendo como referência principal a terapia familiar, embora não seja a intenção inventariar e classificar exaustivamente tal espectro.

Abordagens narrativas

É um pressuposto dessas abordagens que as pessoas vivem suas vidas através de histórias; que as histórias organizam e dão sentido à experiência e que os problemas existem na linguagem, sendo capturados nas histórias dominantes, coautoriadas nas

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

comunidades linguísticas das pessoas, tendo uma dimensão canônica. Entre suas variações, gostaria de destacar:

» A terapia narrativa com ênfase nas micropráticas transformativas e na organização de histórias qualitativamente ‘melhores’ para o sistema, em torno dos “estranhos atratores”, fazendo referência à teoria do caos. Estes atratores caracterizam-se como opções potenciais que surgem nos pontos de bifurcação das histórias desestabilizadas pela conversação terapêutica, conforme o trabalho de Sluzki (1992;1998).

» A terapia narrativa com ênfase nos processos reflexivos e na abertura das palavras para os significados por elas construídos, bem como no processo de questionamento como contexto generativo em relação à mudança. Destaca-se neste enfoque o trabalho de Tom Andersen (ANDERSEN, 1987; 1991; 1992; 1995; 1997) e o de Peggy Penn, o qual enfatiza a importância das diferentes vozes, a que vem da escrita, a que vem dos diálogos internos, além da que decorre das distintas conversações (PENN, 1985; 1998; 2001).

» A terapia narrativa com ênfase na desconstrução das histórias dominantes e das práticas subjugadoras do self. A proposta de externalização, situando a pessoa e o problema como entidades distintas, contribui para desessencializar o self, ao tornar conhecidos os contextos organizadores das narrativas opressoras das quais as pessoas constroem empobrecidas visões de si mesmas e restritas possiblidades existenciais. A reconstrução narrativa, decorrente do trabalho terapêutico, caracteriza este modelo de terapia como sendo de reautoria da autobiografia. Considere-se, neste sentido, o trabalho de Michael White, David Epston, Jill Freedman e Gene Combs (WHITE, 1988; 1991; 1993; WHITE; EPSTON, 1990; FREEDMAN; COMBS, 1996).

Abordagens colaborativas

Estas abordagens terapêuticas são organizadas em torno da definição dos sistemas humanos como sistemas linguísticos, geradores de linguagem e significado, organizadores e dissolvedores de problemas. Este é o caso da terapia de base dialógica, portanto, uma conversação de duas mãos de trocas colaborativas, de Harlene Anderson e do saudoso Goolishian (ANDERSON, 1994 1997; ANDERSON; GOOLISHIAN, 1992; 1988; GOOLISHIAN; ANDERSON, 1994; GOOLISHIAN; WINDERMAN, 1988), em que o expert é o cliente. O processo de terapia é a conversação terapêutica na qual o

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

terapeuta é um participante ativo e “arquiteto do diálogo”, forma de conversação na qual o terapeuta e o cliente participam do codesenvolvimento de novos significados, novas realidades e novas narrativas, a partir de uma postura terapêutica de genuíno não saber.

Abordagens pós-modernas críticas

Podemos incluir aqui as propostas como a Just Therapy do grupo do Family Centre da Nova Zelândia (WALDEGRAVE, 1990; 2000). Charles Waldegrave, Kiwi Tamasese e Wally Campbell, organizam sua abordagem terapêutica em torno de conceitos de equidade e justiça social, considerando que muitos dos problemas e saúde mental e de relacionamentos, decorrem das consequências das diferenças de poder e de injustiças sociais. O grupo propõe que se considerem as influências do macrocontexto socioeconômico, político, cultural, étnico, de gênero e espiritual no microcontexto familiar. Para esses terapeutas há significados preferidos para as narrativas emergentes, edificados em torno de valores promovendo a igualdade de gênero, a autodeterminação cultural, pertencimento e espiritualidade. Tal proposta coloca o terapeuta no lugar de um profissional engajado com a transformação das políticas sociais mais amplas, comprometido com uma ética da igualdade e legitimação da pessoa, encorajando uma metodologia de ação/reflexão que considere não apenas indivíduos, casais e famílias, mas comunidades, sociedades e países.

Abordagens estrutural e estratégica pós-modernas

Redefinidas de acordo com uma epistemologia construtivista, tais abordagens acompanharam a evolução da Cibernética de Primeira para a de Segunda Ordem e podem ser consideradas pós-modernas. Considere-se, neste sentido, a terapia centrada nas soluções de Shazer (MILLER; de SHAZER, 2000) que, partindo das exceções em relação à manifestação de um problema, inicia um jogo de linguagem para a construção de lugares aptos para o encontro de soluções, baseadas na conduta do terapeuta e no seu uso de técnicas. Acima de tudo, tais releituras são feitas dentro de uma nova concepção epistemológica que redefine a abordagem quanto à noção do conhecimento, a prática clínica no que se refere ao uso das técnicas e papel do terapeuta.

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CAPÍTULO 4Equipe reflexiva

“Numa terapia orientada para o crescimento, a questão central é a de focar sobre

a expansão do significado da experiência e a ampliação dos horizontes de vida”.

(WHITAKER,1990, p.59)

Ao pensarmos sobre o processo terapêutico com olhar sobre a transgeracionalidade primeiramente consideraremos a postura do terapeuta no setting. A partir do momento em que se inicia uma terapia, terapeuta e família formam um sistema, no qual o terapeuta sai da postura de mero observador e atua dentro da configuração que se estrutura, relembrando da premissa sistêmica na qual aonde existem elementos em relação, há a um sistema operando.

Enfocaremos um terapeuta que baseia a sua prática, em uma posição narrativa, que considera que os sistemas humanos são geradores de linguagens e sentidos, (incluindo o sistema terapêutico), os quais são construídos socialmente dialogicamente, em uma troca de mão dupla, na qual novos sentidos são criados. O terapeuta passa a ser um observador- participante que exercita a sua “arte” ao fazer perguntas terapêuticas a partir de uma posição de não saber, que objetiva a criação dialógica de uma nova narrativa, que dá um novo sentido para a vida (MCNAMEE; GERGEN, 1998).

A inclusão do observador, a coconstrução, a autorreferência e a significação da experiência na conversação são características da intersubjetividade, que junto à complexidade e instabilidade, fundamenta o pensamento sistêmico (VASCONCELLOS, 2002). Para o terapeuta, é fundamental se auto-observar, percebendo quais são os sentimentos, sensações, imagens que aparecem nas situações durante a sessão terapêutica, pois este conteúdo lhe servirá de guia para a realização do tratamento. Esta autopercepção está relacionada com o conhecimento que o terapeuta tem de sua própria vida, sua história e dinâmica familiar. Para um terapeuta trabalhar com os fenômenos transgeracionais, faz-se fundamental que ele mesmo tenha passado pela experiência de identificar quais os padrões predominantes em sua família, mitos, crenças, tema, conflitos de lealdade para observar sua influência na prática profissional identificando quais possíveis dificuldades e facilidades no desempenho de sua função terapêutica. Além de o terapeuta ter a experiência de fazer sua terapia pessoal, uma forma de o terapeuta entrar em contato com a transgeracionalidade de sua família é durante a formação em terapia familiar confeccionar o Genograma de sua família de origem. O modo como o Genograma é feito, dispõe as informações da família graficamente de

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

forma a oferecer uma visão compreensiva dos complexos padrões familiares. A utilização do Genograma proporciona uma visão do quadro geracional de uma família e de seu movimento através do ciclo de vida: “Os genetogramas são retratos gráficos da história e do padrão familiar, mostrando a estrutura básica, a demografia e os relacionamentos da família” (CARTER; MCGOLDRICK, 1985, p.144). As informações reunidas através do Genograma incluem nomes e idades de todos os membros da família; datas exatas de nascimentos, casamentos, separações, divórcios, mortes, abortos e outros acontecimentos significativos; indicações datadas das atividades, ocupações, doenças, lugares de residência e mudanças no desenvolvimento vital; e as relações entre os membros da família.

Por meio dos Genogramas, ao acessar os principais mitos e crenças que norteiam a vida da família atendida, que a acompanham há gerações e determinam os padrões de relacionamentos é possível criação de hipóteses sobre o problema clínico da família. Com isso, é possível fazer determinadas predições sobre os processos futuros que a família vivenciará baseando-se na utilização do Genograma. De acordo com Bowen (apud WENDT; CREPALDI, 2007), passado e presente são examinados para se obter possíveis informações sobre o futuro.

Ao chegarem para a terapia, as famílias encontram-se focadas no momento presente, paralisadas pelos seus problemas e sentimentos ou ansiosas por um momento futuro, perdendo a consciência do movimento contínuo da vida que inclui passado, presente e futuro, junto às transformações dos relacionamentos familiares. “Quando o senso de movimento é perdido ou distorcido, a terapia pode devolver o senso da vida como um processo e movimento desde e rumo a” (CARTER; MCGOLDRICK, 1985, p.13). Whitaker (1990) recomenda expandir o entendimento familiar dos sintomas através de sua extensão para o passado, para as gerações prévias.

Outro método é impeli-los para frente, em direção às novas gerações. Ao supor que os sintomas têm continuidade através das gerações, é possível acessar ao rico mundo simbólico que percorre a família extensiva. Sequências comportamentais que formam padrões tornam-se organizadas em torno de temas, que frequentemente servem como metáforas para o tipo de sintoma que é escolhido. A palavra tema quer dizer uma questão específica emocionalmente carregada, em torno da qual há um conflito periódico. Visto que há muitos temas em toda a família, o terapeuta procura aquele que é mais relevante para o sintoma. O entendimento destas crenças e temas serve de base para a intervenção terapêutica (PAPP, 1992). A compreensão das crenças e dos temas é deduzida, por meio da escuta da linguagem metafórica, no rastreamento de sequências comportamentais. “O interesse primário do terapeuta é com o uso do comportamento e em como a função de uma parte do comportamento está ligada com a função de uma

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

outra parte do comportamento, a fim de preservar o equilíbrio familiar” (PAPP, Op. cit. p.22).

Os terapeutas do grupo de Milão recomendam a utilização de perguntas sobre o futuro, pois pensam que estas podem revelar muitos temas familiares, e serem transformadoras na medida em que questionam uma premissa. “Se uma família está organizada em torno de uma premissa criadora de um problema, as perguntas relativas ao futuro podem, também, desafiar o poder de tal premissa, evitando que se perpetue”. (BOSCOLO et al. 1993, p.51)

A ação terapêutica pode ser em si pode ser considerada um ritual, que provoca uma estrutura espacial e rítmica aos encontros, e pode prescrever rituais singulares adaptados a cada contexto familiar, os quais permitem que sejam abordadas situações que seriam explosivas se abordadas de frente. A ritualização terapêutica poderá apoiar-se em diversos suportes mediáticos, bem como nas suas hibridações recíprocas (palavras, desenhos, cartas, “objetos metafóricos”, equipamentos técnicos—registros, sala equipada com um espelho unidirecional, pessoas dos terapeutas, jogos relacionais, jogos interinstitucionais etc.) (M. SELVINI apud MIERMONT, 1994).

Em relação às situações de maltrato e abuso, os terapeutas que atuam de forma clássica, enfocam a urgência de proteção no presente perdendo de vista a história transgeracional Tilmans (2000), alerta sobre o risco que o terapeuta tem de que suas ações sejam “antiterapêuticas”, se ele não considera a história das três gerações familiares e sua complexidade, pois os pais que maltratam ou abusam de um filho, foram maltratados em sua infância, ou em outra etapa de sua vida. Portanto, olhar apenas para a situação de violência atual, pode agredir mais uma vez os pais que já foram maltratados.

Culturalmente, na época em que os pais eram crianças, não havia uma proteção social em relação às crianças como existe hoje, acumulando neles então, sofrimentos e experiências destrutivas para a construção de um eu positivo, em meio a muita solidão. É necessário que terapeuta fale sobre este tema para proteger a criança maltratada que existe dentro do adulto. O adulto que comete uma violência é responsável por seus atos e ao mesmo tempo uma vítima que tem urgente necessidade de proteção e respeito. O terapeuta deve saber como proteger a criança, vítima atual, sem maltratar mais uma vez o adulto e sua criança interna.

Para Byng-Hall (1998), o papel do terapeuta então seria propor um modelo de mudança no qual, ele ajudará a família se sentir segura o suficiente para arriscar a improvisar nos relacionamentos inseridos nos scripts familiares. A terapia serve desta forma, como uma base segura que facilita a mudança de um padrão inseguro para um seguro, na qual novos scripts podem ser criados.

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

Equipe Reflexiva

Uma das mais contundentes mudanças que as ideias oriundas do Construcionismo Social acarretaram na clínica pode ser observada na terapia familiar, com o advento da Equipe Reflexiva, que emergiu dos trabalhos de Tom Andersen (1991). Na terapia familiar, por ele conduzida, depois de um longo tempo de germinação, segundo Andersen “a própria ideia forçou seu nascimento” (ibidem p. 33). Após várias situações de hipóteses e incômodos pessoais dos terapeutas com o processo paralisado, aconteceu de em determinado momento, a equipe observadora da sessão terapêutica propor um momento de interação com a família, no mesmo ambiente.

O contexto clínico do surgimento da Equipe Reflexiva foi por uma mudança paradigmática. Neste caso, falamos da inclusão do observador no sistema por ele observado. Uma nova postura do terapeuta passou a ser estimulada com base nesse momento divisor águas.

A partir de então, surge a prática da Equipe Reflexiva que, presente no consultório, num momento em que é solicitada pelo terapeuta de campo, faz uma reflexão sobre o que ouviu até ali. Espera-se que esse momento seja uma diferença facilitadora da mudança. Essa crítica curiosa, proposta a partir do Construcionismo tem como uma das bases a crença de que os significados, as verdades humanas sejam variáveis dependentes do discurso, das conversações, enfim, da linguagem.

Tal posicionamento possibilita ao terapeuta construcionista considerar em sua avaliação e em todo o seu procedimento num caso clínico, as variáveis relacionadas ao ambiente construído a partir das práticas discursivas.

Reflexão, curiosidade e irreverência

Propõe-se neste trabalho, que os Processos Reflexivos devam ser contemplados em alguns elementos importantes, como a própria reflexão, a curiosidade e a irreverência. Para o caso da reflexão, trago uma discussão conceitual, a fim de posicionar o termo conceitualmente.

No que se refere à curiosidade e a irreverência, propõe-se uma visita às ideias de Cecchin e uma discussão sobre características da função e do lugar de terapeuta, principalmente, mas não exclusivamente na Terapia Familiar.

Sobre a reflexão, podemos partir dos estudos sobre as ideias de Tom Andersen, acerca da adoção de equipes reflexivas, trabalhando sob a orientação dos Processos Reflexivos. Na terapia familiar, por ele conduzida, depois de um longo tempo de germinação,

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

segundo Andersen “a própria ideia forçou seu nascimento” (p. 33, 1991). Após várias situações de hipóteses e incômodos pessoais dos terapeutas com o processo paralisado, aconteceu de em determinado momento, a equipe observadora da sessão terapêutica propor um momento de interação com a família, no mesmo ambiente.

A partir desse momento divisor de águas, a terapia familiar conduzida por Andersen e seus discípulos vem delineando novas formas de tratamento e de concepção epistemológica da Terapia Sistêmica, agregando, inclusive, o estudo da cibernética como fonte de analogias epistemológica (RAPIZO, 2002).

A abrangência dos estudos acerca dos Processos Reflexivos pode ser verificada nas ramificações pedagógicas ressaltadas por Schon (1988), num experimento que passou a criticar a relação de poder\saber entre professor e aluno:

Um dia mostraram aos professores um vídeo sobre dois rapazes

separados um do outro por uma tela opaca. Cada um dos rapazes tinha

diante de si um conjunto de sólidos geométricos de diferentes tamanhos,

formas e cores. Em frente de um dos rapazes estava um modelo

fixo: defronte do outro, encontrava-se uma miscelânea de sólidos

geométricos, que o segundo rapaz teria de transformar no modelo

fixo seguindo as instruções do primeiro. À medida que os professores

viam o filme, observavam que, embora as instruções do primeiro rapaz

parecessem bem formuladas, o segundo estava cada vez mais confuso.

Os professores diziam coisas como: O segundo rapaz parecia ser um

aluno de aprendizagem lenta, não consegue estar atento durante muito

tempo, não consegue seguir as instruções. Neste momento, uma das

investigadoras salientou: Parece-me que o primeiro rapaz deu uma

instrução errada, pois disse “põe o quadrado verde”, mas não existem

quadrados verdes, só há quadrados laranja e as únicas coisas verdes

são os triângulos. Uma das vantagens do vídeo é que pode ser revisto,

e por isso os professores puderam voltar atrás e observar o filme uma

vez mais. Com efeito, concluíram que as instruções do primeiro rapaz

se referiam a um quadrado verde quando não havia quadrado dessa cor.

À medida que continuavam a observar o filme, ficaram surpreendidos

ao notar que, de fato, o segundo rapaz era exímio no cumprimento das

instruções, encontrando sentidos em indicações sem nexo. Foi então

que um dos professores notou algo de surpreendente: Aquilo que

acabávamos de fazer, foi dar razão ao aluno. Essa expressão – dar razão

ao aluno – inspirou os professores durante os restantes dois anos do

seminário.

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

Este evento pode ser considerado de suma importância para as ideias de que falamos aqui .É o exemplo claro de uma mudança paradigmática prática.

O autor acima citado fala na formação de professores como profissionais reflexivos. A reflexão sugerida por Andersen aparece como algo ouvido que é internalizado e pensado antes de uma resposta a ser dada (p.35, 1991).

Na situação descrita acima, podemos encontrar justificativas para reflexões políticas, clínicas, filosóficas etc. Entretanto, penso ser importante sublinhar pelo menos dentre tantas analogias possíveis a partir do texto de Schon.

Como pano de fundo, podemos estabelecer uma discussão sobre o que uma postura reflexiva pode provocar nas relações tradicionais porque não venho defender a erosão das relações de poder no cotidiano. Todavia, penso que devam ser criticadas todas.

Dentro de um modelo tradicional o que significaria a atuação de um professor que reconstruísse a sua forma de ensinar baseado na contribuição de um aluno? Como isto seria possível se o aluno só tivesse a aprender? A analogia que proponho, ou a qual me rendo sem lutar, traz o exercício de colocar os pacientes no lugar de alunos. Que repercussões haverá quando nos dispusemos a rever toda a metodologia à qual fomos apresentados e pela qual fomos seduzidos, porque ela não está adequada a um paciente? Como ficará o meio acadêmico? Quais serão as consequências disso nos cursos de formação e especialização? Poderemos dizer que terapeutas comportamentais, por exemplo, poderão utilizar técnicas psicanalíticas, quando isso se adequar melhor a determinado paciente?

Falamos aqui, inicialmente, de flexibilidade. Esta fatalmente estará ligada ao trabalho conduzido à luz dos Processos Reflexivos. Não uma flexibilidade desordenada, desavisada, mas antes, a condição de se beneficiar de outras ideias, ideias estranhas ao arcabouço teórico ao qual nos tenhamos afeiçoado.

O tema da reflexão percorre um caminho eminentemente filosófico no que diz respeito à flexibilidade. Podemos considerar uma questão ética o pensamento crítico quanto à postura adotada pelo profissional em relação à suas convicções. É possível encontrar respaldo nas ideias de Feverabend (2010) quando este identifica o Relativismo Prático. Para ilustrar essa proposta, o autor apresenta a seguinte tese:

[...] indivíduos, grupos e civilizações inteiras podem lucrar ao estudar

culturas, instituições e ideias estrangeiras, por mais fortes que sejam as

tradições que apoiam suas próprias ideias (por mais fortes que sejam os

argumentos que servem de base a elas). Por exemplo, os católicos podem

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

se beneficiar ao estudar o budismo, médicos podem se beneficiar com

um estudo de Nei Ching ou de um encontro com feiticeiros africanos,

psicólogos podem se beneficiar de um estudo das maneiras como os

romancistas e atores constroem um personagem, cientistas de um modo

geral podem se beneficiar com um estudo de métodos e pontos de vista

não científicos e a civilização ocidental como um todo pode aprender

muito com as crenças, hábitos e instituições de povos “primitivos”.

(p. 29, 2010).

A relação que aqui fazemos entre reflexão e flexibilidade não é absoluta nem pretende ser e antes, a apresentação de uma interpretação possível para o que se pode entender por reflexão.

No campo conceitual, podemos obter várias definições e aplicações para o termo reflexão. È muito comum que as definições carreguem o sentido de uma ação reflexiva diante de algo apresentado ou vivenciado. Podemos visitar alguns comentários de Abbagnano (2007) sobre a definição feita por alguns grandes nomes da história da Filosofia:

[...] mesmo não empregando o termo [reflexão], Aristóteles admite o fato

óbvio de que o intelecto ‘pode pensar-se’. (...) Os escolásticos expressaram

esta possibilidade com o termo reflexão. Tomás de Aquino diz: ‘uma vez que

reflete sobre si mesmo, o intelecto entende, conforme essa reflexão, tanto o seu

entender quanto a espécie por meio da qual entende. (p. 986, 2007).

Ainda segundo Abbagnano podemos observar aqui o caráter essencial da reflexão, a partir da necessidade de refletir sobre si mesmo para então, entender o particular.

Um trabalho focado na reflexão é menos simples do que afetivo. Pode ser encarada como uma postura frente ao que se nos apresentada.

É comum, em nossos atendimentos, deparamos com situações que nos afetam e nos provocam. Cada uma dessas situações pode ser encarada como mais um momento em que o terapeuta deve escutar, acessar sua abordagem teórica de referencia, avaliar como deve proceder para fazer melhor o seu trabalho.

A postura reflexiva vai além de uma pessoa autocrítica; é ainda, uma postura cuidadosa e atenta aos afetos em nós provocados pelo encontro com nossos pacientes. Segundo Leibniz, a reflexão é a atenção dada àquilo que está em nós, enquanto os nossos sentidos não conseguem acessar tal coisa (ABBAGNANO, 2007).

Muito interessante, também, é a versão de Kant para a função da reflexão, afirmando que a reflexão não visa aos objetos em si para chegar aos conceitos. Antes disso, segundo

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Kant (in ABBAGNANO, 2007), a reflexão “é um estado de espírito em que começamos a dispor-nos a descobrir as condições subjetivas que nos possibilitam chegar aos conceitos.” (p.986)

Um caráter ressaltado ainda por Abbagnano que consideramos importante apara este trabalho é o caráter de ação criativa. Tal ideia, proposta por Hegel (IBID) está de acordo com os pressupostos do Construcionismo Social, quando afirma que “tal ação criativa traz à luz a verdadeira natureza daquilo que se investiga e, portanto, de algum modo produz tal natureza” (p. 986). Nas palavras de Hegel, segundo Abbagnano, podemos identificar algo que pode ser identificado como uma proposta de construção da realidade pelo sujeito.

Uma vez que, na reflexão, se obtém a verdadeira natureza, e esse

pensamento é minha atividade, essa verdadeira natureza é igualmente

produto do meu espírito, do meu espírito como Sujeito pensante, de

mim, na minha simples universalidade, como Eu que é sem dúvida por

si, ou seja, da minha liberdade. (ibid. p. 987).

Ainda temos, de acordo com o pensamento fenomenológico de Husserl, a reflexão retratada como uma espécie de percepção imanente, que se conecta imediatamente com o que é percebido (ibid.)

Quando trazemos para discussão o termo irreverência, trazemos também, inevitavelmente conectado a ele, a curiosidade. A principal referencia teórica e inspiração para a proposta da irreverência e da curiosidade como elementos fundamentais para este trabalho está nas ideais do psicoterapeuta italiano Gianfranco Cecchun (1932-2004 ). Cecchun fez emergir Terapia Familiar os conceitos de curiosidade e de irreverência.

Uma ideia importante e básica de seus estudos fala sobre a crítica ao saber apriorístico. Qualquer que seja, esse saber concorre para uma gama de preconceitos por parte do terapeuta, que na verdade, acabará eventualmente bloqueando o processo terapêutico, se tentar adaptar a problemática do paciente a um arcabouço teórico, antes de procurar investigar a situação e se relacionar genuinamente com a família.

A observação das ideias de Cecchin que são tão bem exploradas e difundidas por seus predecessores, nos faz considerar a importância da crítica sobre o trabalho do profissional que conduz qualquer processo terapêutico.

A irreverência e a curiosidade se mostram elementos básicos do conceito formulado por Cecchin, segundo Prati (2009), de irreverência teórica. De acordo com este princípio, procura-se constantemente criticar e investigar com curiosidade as teorias e práticas que surgem e são utilizadas na clínica. No trabalho de Prati observamos também as

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

palavras de McNamee (2004) que fala sobre a chamada promiscuidade teórica, que além de se preocupar com o olhar crítico e curioso, atenta a para o modo como os profissionais tomam decisões no processo terapêutico, caminhando no sentido de uma compreensão do que realmente “significa ser um terapeuta” e fazer um trabalho clínico. ( p.16)

Nessa proposta, trazemos a necessidade de uma postura flexível e criativa. Devemos estar prontos para que um novo espaço se crie dentro da relação estabelecida. Uma nova forma de comunicação sempre terá vez.

Nessa proposta, trazemos a necessidade de uma postura flexível e criativa. Devemos estar prontos para que um novo espaço se crie dentro da relação estabelecida. Uma nova forma de comunicação sempre terá vez caso estejamos atuando com uma atitude irreverente, curiosa e flexível.

Na terapia familiar, muitas vezes somos como que convidados a adotar uma postura rígida e talvez mais acessível para nós. A facilidade inicial pode se transformar em problemas posteriores, que serão observados quando o processo estiver muito limitado. Nas palavras de McNamee:

No campo da terapia de família, nossa preocupação é claramente

ajudar as famílias a encontrarem modos produtivos de viver juntas, a

inquestionável aceitação de que o método científico vai nos dizer qual

teoria ou modelo é o certo para ser utilizado é mais do que limitante.

Como observa Larner (2004), “ser científico é manter uma curiosidade

investigativa sobre como por que a terapia funciona, e aceitar que

a ciência pode não ser suficiente para explicar o processo” (p. 29).

Uma ênfase dialógica (em oposição ao cientificismo) gera o tipo de

irreverência (e curiosidade) exigida por uma terapia efetiva.

A irreverência pode ser encarada, simplesmente, como o ato de não reverenciar. É uma recusa sem agressividade. Uma recusa que substitui o tom carrancudo de uma recusa comum por uma alternativa mais produtiva que esta curiosidade.

O terapeuta irreverente surpreende a si mesmo, quando se vê aceitando participar de um processo para o qual uma linha teórica rígida e determinista aconselharia veementemente que ele se mantivesse distante.

Segundo McNamee, se formos um pouco irreverentes, talvez possamos começar a ver cada modelo de terapia como uma forma potencialmente útil de construção com nossos pacientes.

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A abertura às surpresas do encontro pode ser uma das mais eficazes ferramentas de que o terapeuta dispõe. Cada encontro é novo, cada encontro é único, e não somos capazes de prever as forças que irão emergir dele. Entretanto, podemos limitar essas forças, caso nos mantenhamos firmemente olhando para um único lado do horizonte, caso nos detenhamos a pensar sobre a validação de nossa abordagem teórica de afinidade.

Algumas palavras não combinam com o que procuramos trazer como objetivos de terapia: limitação é certamente uma delas. Quando uma forma de ver ou de lidar parece limitar as possibilidades de ação do sujeito em qualquer situação em que se encontre, a ampliação pode ser uma boa saída. É disso que falamos o tempo todo quando citamos a expressão mudança paradigmática.

Para o caso deste trabalho não é diferente. A proposta de uma aproximação entre Fenomenologia e Construcionismo Social pode ser encarada como uma proposta de outra visão sobre as coisas. Uma atitude irreverente frente às verdades que nos transmitem na academia certamente levará a outras estradas a percorrer.

Defendemos aqui a irreverência como companheira da reflexão e da curiosidade, no sentido de ser mais um elemento que parece apontar como uma seta contundente para a ampliação (de valores, de concepções, de critérios etc.).

No trabalho de campo

Quando tratamos dos Processos Reflexivos fazemos uma conexão imediata com a noção de mudanças paradigmáticas que permeia toda a produção de conhecimento nos dias atuais. A própria ideia de produção passa a ser questionada num momento que costuma ser chamado por alguns profissionais de pós-modernidade.

Trazemos uma reflexão sobre os processos reflexivos no trabalho de campo para que possamos situar com algum critério a figura do terapeuta nessa nova forma de trabalhar.

O contexto clínico do surgimento do que hoje denominamos Equipe Reflexiva foi marcado por uma mudança paradigmática. Neste caso, falamos da inclusão do observador no sistema por ele observado. Uma nova postura do terapeuta passou a ser estimulada com base nesse momento divisor de águas.

No trabalho desenvolvido por Guanaes (2006), encontra-se algo essencial para este trabalho. Nas palavras da autora, quando se refere a formas determinadas de se ver o mundo e a explicações de como as coisas são:

Apesar disso, a perspectiva construcionista vem questionar a universalidade

destas e de outras explicações de mundo, nos convidando a entendê-las

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como construções sociais. Essa perspectiva propõe que é por meio de nossa

participação em práticas discursivas, social, histórica e culturalmente situadas,

que produzimos, conjuntamente, descrições de realidade. (p. 19, 2006).

Alguns aspectos nos parecem de suma importância, quando tratamos dos chamados Processos Reflexivos na prática clínica. Pretendemos neste capítulo, trazer uma discussão sobre tais aspectos do ponto de vista do profissional que comanda o encontro terapêutico, que chamamos aqui de terapeuta de campo.

Em primeiro lugar, a relação com o Conhecimento. Depois de toda uma era em que se buscava atingir o Conhecimento por meio de métodos e análises criteriosas, tão próximas quanto possível de verdades científicas, chega-se a um tempo em que a ideia de que o conhecimento construído ganha força. E é nesse tipo de ambiente que surge, quase que imperativamente, a concepção dos Processos Reflexivos. A abordagem que lida com o conhecimento construído trará forçosamente uma nova forma de olhar para a figura que em outros tempos lá estaria para oferecer respostas e orientações.

Quando falamos sobre o conhecimento construído, e não dado ou alcançado, estamos lidando com um ambiente onde o observador passa a ocupar um lugar diferente do que ocupava antes. Para este trabalho, é fundamental a ideia de que o conhecimento construído esteja relacionado à inclusão do observador no sistema por ele observado.

Quando passa a fazer parte do sistema, o terapeuta de campo – nesse caso, a figura observadora – passa também a relacionar-se com o sistema de maneira diferente. Não está mais em um lugar estável e inabalável de saber ou em posição de dar respostas e instruções. O novo lugar é um lugar que oferece possibilidades de sensações novas e hipóteses novas sobre o que esteja acontecendo.

O novo lugar também traz novos desafios, como o incômodo que serviu de mola propulsora para as modificações no que se chamava de intervenção. A célebre mudança, que passava a fazer com que o terapeuta de campo consultasse a equipe reflexiva na presença da família, nos parece contribuir para a ideia do conhecimento construído. Este nos parece um detalhe crucial para uma aproximação maior e para um conforto também diferenciado no caso da família. Pensamos que, se a família se sente amparada durante todo o encontro, poderá sentir-se mais estimulada a contribuir com as ideias da equipe, que na verdade, serão ideias sobre seu próprio funcionamento. E uma das principais ideias gira em torno da parceria que experimenta com a equipe reflexiva.

Em relação a terapeutas e pacientes, Tom Andersen e seus colaboradores demonstravam corriqueiramente o incômodo com tal afastamento. Um detalhe importante é que as

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famílias pareciam trazer um retorno importante para eles nesse sentido. Nas palavras de Castanho:

Desde 1981, Tom Andersen e Aina Sporken, enfermeira de saúde mental,

discutiam sobre suas observações a respeito do que as pessoas lhes diziam no

primeiro contato; “Tipicamente, elas diziam “nós não sabemos o que fazer!

O que devemos fazer?” McNamee e Gergen (1998, p.73) em suas discussões

passaram a questionar por que a equipe de terapeutas mantinha-se afastada

das famílias nas pausas das sessões para suas conversações? (CASTANHO, p.

47, 2005).

No trabalho de campo, o terapeuta se dá conta de que não pode exercer a função sem considerar a parceria. O profissional reflexivo, em seu trabalho de campo, deve estar atento ao que ouve e ao efeito que o que ouve lhe causa. Podemos citar as palavras de Andersen sobre a reflexão, aparecendo esta como “algo ouvido que é internalizado e pensado antes de uma resposta a ser dada” (p. 35, 1991).

Tendemos a pensar que isso esteja relacionado com o que vem da família, do casal etc. No entanto, devemos atentar para o que diz e faz a nossa parceria terapêutica. A conexão com o membro da equipe reflexiva é essencial para que o trabalho seja vivenciado de forma eficaz por todos os elementos do sistema. Deve-se evitar o afastamento que pode ocorrer facilmente entre terapeutas e entre terapeutas e pacientes.

Ressaltamos que a função de terapeuta de campo tende a ser a mais organizadora do encontro terapêutico. Nem por isso, entretanto, deve se deixar levar por tendências objetivistas e deterministas. Muitas vezes é mais difícil ser reflexivo na posição de terapeuta de campo.

Na perspectiva da relação com o conhecimento, a função de terapeuta de campo pode servir como guia por um caminho desconhecido. Se o terapeuta de campo, por meio de uma boa relação com a família, consegue conduzir seus membros por um caminho que tende a abrir portas, o trabalho será mais bem tolerado; as construções a serem feitas terão mais o sentimento de libertação do que de incerteza.

Além da perspectiva sobre a relação com o Conhecimento, temos a perspectiva ressaltada por Tom Andersen da compreensão no lugar da explicação.

Este ponto traz a importância de ser mais uma forma de questionar a validade do método científico para o campo da terapia familiar. A perspectiva sistêmica contribui de forma incontestável para tal questionamento.

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

Mais uma vez, podemos dizer que a mudança paradigmática em relação ao lugar do observador guarda estreita relação com o teor compreensivo do trabalho orientado pelos Processos Reflexivos.

Devemos ressaltar que uma postura compreensiva não parece ter sido fácil de alcançar, mesmo para o próprio Andersen. Na verdade, não é difícil pensar que uma postura compreensiva seja alcançada depois que você já deu alguns “tiros n’água” com uma postura explicativa.

Compreender sem explicar parece mesmo pouco natural; parece a metade do caminho. Mas começamos a perceber a utilidade compreensão quando admitimos que o caminho não deva ser todo trilhado por nós, quando falamos de trabalho terapêutico.

A ideia de uma postura compreensiva chega ao autor após uma reflexão sobre a sua própria obra. No capítulo em que trata das reflexões feitas dois anos depois de seu livro, Andersen nos traz estas palavras:

Definitivamente, teria tirado as palavras explicar e explicação. Estas

palavras pertencem, como percebo hoje, àquela parte do mundo

onde se situam a ciências físicas (D’ANDRADE, 1986). Nessa parte

do mundo, buscam-se descrições que, esperemos, representem

exatamente o fenômeno fisco estudado. Estudando e descrevendo o

fenômeno sob diferentes influências, é possível explicar o que causa

qual mudança. É até possível predizer como o fenômeno será mudado

caso sofra a influência disto ou daquilo. Com base nesses estudos, é

possível desenvolver leis gerais de explicação e predição para o próprio

fenômeno e para fenômenos similares, as quais, por sua vez, podem

ser utilizadas para regular e controlar o mundo que nos cerca – ou pelo

menos parte dele. [...] No entanto, apesar de estar arrependido por ter

usado a palavra explicação na primeira edição do livro, me consola

um pouco notar que seu conteúdo tende para a palavra compreensão.

Todavia, se tivesse escrito o livro hoje, as palavras explicare explicação

teriam sido substituídas por compreender e compreensão (1991, p

145.).

Este nos parece o cerne do caminho percorrido pelos Processos Reflexivos. Uma trajetória que vai do extremo das necessidades para o espectro das possibilidades. Sai das necessidades de dar ao mundo uma razão específica e única para o lugar em que podemos abrir espaço para a existência de versões variadas sobre uma mesma história.

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Em minha experiência clínica, venho percebendo que a verdade científica é algo altamente contestável, pelo menos no que se refere ao trabalho de nós, terapeutas. Tendo me aproximado da perspectiva construcionista social, foi possível observar que a intuição poderia estar entre as mais importantes ferramentas de que o terapeuta dispunha.

Como terapeuta de campo, por muitas vezes, me encontrei na tentadora posição de esperar que a minha parceria resolvesse os meus incômodos com o que havia ouvido, ou mesmo com que eu havia falado. A partir de uma participação da equipe reflexiva que me fizesse conectar a questões direcionadas para o benefício da incerteza, dos caminhos em aberto, ia experimentando uma possibilidade maior de propor novas formas de compreensão para aqueles que estavam ali buscando ajuda. Muitas vezes eu acabava abrindo meus próprios caminhos, a partir de palavras que vinham de um ponto de vista completamente diferente.

O trabalho de campo é uma oportunidade ímpar para que possamos nos desvencilhar das regras que conhecemos quanto à atitude correta de um terapeuta. Nesse momento, podemos acrescentar às nossas intervenções clínicas elementos de metaforização baseados em nossa experiência de vida e perceber como esses elementos podem ser construtivos num trabalho de compreensão.

Fenomenologia e Construcionismo podem se encontrar no trabalho de campo quando o terapeuta, por intuição, decide ir por este ou por aquele caminho, pois os caminhos oferecidos a nós continuam existindo. Além disso, a proposta do Construcionismo Social parece ser compatível com a Fenomenologia no trabalho dos terapeutas de campo, tomando por base as ideias de Tom Andersen acerca da postura compreensiva que o terapeuta deve almejar. Tanto o Construcionismo Social quanto a Fenomenologia dão maior importância à compreensão do que à explicação. Isto fará com que os profissionais se tornem mais coadjuvantes no processo de reconstrução de pontos da vida de famílias atendidas, como pensamos que deva ser.

Na equipe reflexiva

Diferente do que vem acontecendo comigo no trabalho de campo, o trabalho na equipe reflexiva tem-se mostrado solo fértil para o surgimento de ideias livres e associações pouco usuais acerca das histórias que escuto. Muitas vezes me surpreendo com imagens de minha infância que me vêm à cabeça quando de um relato familiar. Nesses momentos, observo que as imagens que me aparecem, muito têm a ver com uma possibilidade nova, uma curiosidade minha sobre a história que é contada pela família.

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Muitas vezes, também, as imagens que encontro em meus pensamentos estão relacionadas à postura que meu parceiro, terapeuta de campo, assume no atendimento. Perguntas incendeiam a mente e tenho que selecionar o que mais me parece útil a cada encontro.

Por essas e outras razões, penso que uma discussão sobre a equipe reflexiva venha forçosamente carregada de subjetividade. O trabalho na equipe reflexiva acaba sendo um trabalho de autoconhecimento instantâneo, pois passamos a observar com mais cuidado o que acontece com nós mesmos quando somos tomados pela história de uma outra pessoa. Naturalmente, as perguntas serão um dos pontos mais importantes dessa função.

O trabalho na equipe reflexiva é constantemente alvo de perguntas internas sobre como se comportar e o que falar etc. Penso que tudo isso tenha um viés saudável que é o viés do cuidado com o outro. No entanto, é uma das armadilhas que estão sempre prontas para nos fazer recuar ao pensamento mecanicista e determinista, abandonando a visão de mundo que critica as verdades universais.

Segundo Tom Andersen (1991), as perguntas que se tornam saudáveis e construtivas são as perguntas adequadamente incomuns. Perguntas óbvias não nos fariam sair do lugar, perguntas agressivas e estranhas demais poderiam fazer com que a família se retesasse em um lugar de resistência à mudança. As perguntas adequadamente incomuns são ao mesmo tempo intrigantes e sedutoras, fazendo com que o paciente se sinta motivado a responder e a sair do lugar onde havia fincado os pés.

Se acreditarmos que não haja uma verdade universal, um modo de ser e de estar antes de sabermos com quem estamos lidando, poderemos, ainda que com dificuldade, manter a postura de curiosidade e de irreverência tratadas neste trabalho. Além de curiosidade e irreverência, considero essencial a postura autêntica. Podemos não dizer tudo que pensamos, mas é funcional, saudável, terapêutico e justo que, quando falarmos, falemos algo que pensemos genuinamente.

Uma das grandes armadilhas que temos que desarmar quando estamos na equipe reflexiva é aquela montada por nós mesmos, para nos proteger sabe-se lá de quê. Podemos imaginar que nos protejamos de fracassos, de sensações desagradáveis provocadas pela autoexposição, de um olhar crítico do colega, mas no fim das contas, a necessidade de proteção é sempre uma armadilha nossa para nós mesmos.

O treinamento pelo qual passamos nos anos de cursos de especialização não me parece ser suficiente para que paremos de nos proteger. Nem sei se devemos parar de nos proteger. Acontece que muitas vezes pecamos por proteção.

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

Quando estamos a ponto de fazer uma reflexão pela primeira vez, é comum que sintamos algo de visceral e estranho, como um desconforto na barriga, ou um ligeiro descompassar em nossos batimentos cardíacos. Se conseguimos aprender que esta é tão importante quanto a etapa da segurança.

É imprescindível que olhemos para nós mesmos de uma outra forma, para que consigamos fazer um bom trabalho que é totalmente “outra forma”. Em meu curto tempo de trabalho como membro de equipe reflexiva consegui assimilar a ideia de que não há como evitar uma palavra mal colocada em algum momento. Curiosamente, quanto menos me importo com as palavras bem colocadas, menos me sinto errando. A procura do certo me parece uma característica saudável, apesar de nos levar a enrijecimentos que apenas prejudicam.

O trabalho na equipe reflexiva pode servir para uma nova forma de ver tudo o que acontece à nossa volta, num encontro terapêutico. Estamos em um outro lugar, não precisamos conduzir o atendimento .Não precisamos fazer primeiro contato com as famílias. Podemos, simplesmente estar ali, sem estar ali.

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CAPÍTULO 5Contribuições terapêuticas

A clínica do Acompanhamento Terapêutico surgiu na Argentina na década de 1970 tendo como influência a psicanálise e as Comunidades Terapêuticas inglesas. Essa pratica chega ao Brasil na década de 1970 e consolida-se a partir da década de 1980 no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. O Acompanhamento Terapêutico surge como dispositivo ligado as ações que promoveram reformas psiquiátricas com o objetivo de superação do modelo manicomial e pela construção de modelos comunitários de atendimento psiquiátrico. Se essa função terapêutica teve seu início como prática privada, atualmente uma nova possibilidade tem se apresentado que e a introdução dessa prática nos serviços da rede pública de saúde e saúde mental, principalmente, em Centros de Atenção Psicossociais, Programas da Saúde da Família e Centros de Habilitação de crianças e adolescentes em conflito com a lei. O Acompanhamento Terapêutico tem se construído como um campo clínico interdisciplinar tendo sido exercido por vários profissionais da área da saúde. Por se desenvolver fora dos espaços tradicionais de atendimento e realizar-se nos espaços públicos e constituir-se como um recurso valioso para reconstrução do cotidiano e restituição de cidadania de pessoas excluídas socialmente, coloca-se como uma prática importante para o campo da Terapia Ocupacional. Este artigo aponta para a importância da inclusão dessa função terapêutica para constituir conteúdos em disciplinas de graduação e campo de estágios nos cursos de Terapia Ocupacional.

O Acompanhamento Terapêutico – AT, é uma clínica que se desenvolve nos mais diferentes lugares e contextos, ocorrendo no cotidiano, como um recurso de vanguarda, pois está atuando no espaço de articulação profissional, familiar e social. É uma modalidade que estabelece normas, tais como: tempo; espaço; perspectivas; honorários e habilidades pessoais. A prática não se restringe apenas à saúde mental, e atua principalmente na residência, onde o objetivo é a reorganização do espaço e das relações afetivo-familiares da pessoa em questão.

O AT é modalidade terapêutica usada em meio ao processo de reabilitação psicossocial, resgatando vínculos sociais, sua cidadania e sua circulação em espaços físicos e sociais, que façam sentido para o portador, independente de sua patologia. A reabilitação psicossocial é vista como processo fundamental de remoção de barreiras que impeçam a interação da pessoa com a comunidade e o pleno exercício de seus direitos de cidadania.

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

A reabilitação extrapola a especificidade das profissões de saúde, cujas ações têm pontos de inserção que abrem possibilidades para criatividade do agir, que se relacionam as habilidades e capacidades, tanto dos profissionais como do usuário inserido na assistência em saúde mental. Leva à reflexão contínua de que não há limite definido para este processo de buscar de ações que não estejam dentro de um protocolo organizado academicamente para produzirem reabilitados.

O AT é prática estratégica da antissegregação, que resgata a capacidade de inclusão social, oferece a possibilidade de se prevenir a cronificação, a institucionalização e a alienação social. O profissional presta o serviço no momento mais difícil, onde poderá decidir pelo cliente em situações nas quais este ainda não é capaz de agir por si só. Empresta o ego a ele em determinados momentos, e, espelho dos seus aspectos mais neuróticos, ajuda a conseguir uma linguagem libertadora, permitindo-o sair de sua clausura para reintegrar-se a sociedade. O acompanhante terapêutico (AT) deve estimular o desenvolvimento das áreas mais organizadas daquela personalidade neurótica propondo tarefas interessantes, canalizando as inquietudes para liberar a capacidade criativa inibida, a estruturação da personalidade e ajudar a reencontrar-se com a realidade. O AT deve, ainda, dissociar-se para poder relacionar-se com o cliente e ao mesmo tempo manter um distanciamento que lhe permita observar e avaliar a interação com ele.

A família, grupo primário e natural participa no desenvolvimento humano, no que se refere às características sociais, éticas, morais e cívicas do indivíduo. É no seio familiar que o ser humano tem a capacidade de desenvolver laços afetivos mais profundos. As famílias disfuncionais desenvolvem problemas porque não são capazes de ajustarem-se às transições que ocorrem no ciclo vital familiar, tornam-se rígidas e cristalizadas em alguns aspectos. O problema não é apenas o doente, mas a maneira que a família reage, interage e tenta adaptar-se ao período de crise.

Por isso é de importante valor diagnóstico registrar as mudanças observadas no cliente em relação ao vínculo com a família, o tipo de pessoas com quem se relaciona, perceber mudanças no sono, alimentação, higiene pessoal, ou seja, nos vínculos significativos para ele.

O AT poderá ocorrer em qualquer ambiente, como na rua, na própria residência do cliente e outros. Escutar, prestar atenção na vida do outro, compartilhar a experiência de cada um e ajudar a restabelecer pontes com o mundo, são fatores básicos. Usar a criatividade e estratégias que ajudem o cliente a ganhar consistência numa situação de encontro. O encontro é extemporâneo, não estruturado, não planejado, sem ensaios – produz-se no momento, no aqui e agora. A primeira fase é chamada de aquecimento, onde acontece

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UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS

a preparação do encontro, a segunda fase a dramatização, o ato do encontro paciente/terapeuta e paciente/consigo mesmo, a terceira, a fase dos comentários, das análises e do compartilhar.

O AT caminha com as ideias do encontro, com troca com o portador de transtorno mental, onde se vive e experimenta situações do passado, de hoje e do futuro, no aqui e agora, ocorrendo reciprocidade total, um encontro de corpos onde possam se tocar e comunicar-se de forma simples. O AT é também cuidador e a prática do cuidar se dá pela atenção, preocupação, responsabilidade, observação, afeto, amor e simpatia pelo outro; ajudando, compreendendo, aceitando e respeitando o conhecimento do outro. Na relação de estar com a pessoa, ambos são participantes de um processo de aprendizagem e descoberta, conhecendo o outro com seus limites, dificuldades e necessidades. O cuidador precisa ter paciência, tolerância, honestidade, confiança, humildade, aceitação, esperança e desafio.

A relação de ajuda abrange vários tipos de relações: com a pessoa e sua família, médico, professores, terapeutas e outros. O AT caminha nessa mesma direção: utilizar de forma funcional os recursos internos latentes do indivíduo. O AT é, por si só, um ato de movimento e de deslocamento do corpo do terapeuta até o corpo do acompanhado, este trabalho é uma prática que em si já se constitui investida no corpo do sujeito, portanto corporal, impressa na marca dos movimentos do corpo já no próprio ato de acompanhar.

O AT, enquanto modalidade terapêutica assistencial não tradicional em saúde mental vem ampliando seus conceitos e fundamentando suas bases teóricas. Sua valorização ao preencher as lacunas que os tratamentos psiquiátricos tradicionais deixam, devido aos seus limites, aumenta sua aceitação pelos diferentes profissionais, principalmente depois que as portas dos manicômios foram definitivamente abertas.

Acreditando ser possível associar modalidades terapêuticas não tradicionais na assistência ao portador de transtornos mentais, o AT pode contribuir muito na reinserção desse portador na sociedade, através do processo de reabilitação psicossocial, sustentando também a manutenção de seu estado de equilíbrio, modificando o comportamento e resgatando a qualidade de vida, aspectos esses dificilmente conseguidos apenas pela ação dos “remédios”.

Assim sendo, a justificativa para a realização desta pesquisa se ampara na possibilidade de focalizarmos essa prática por meio do método científico. Considerando a importância das transformações que vêm ocorrendo na assistência psiquiátrica em favor do acolhimento do portador de transtorno mental, este trabalho pretende, ao apontar os benefícios da prática do AT por meio da observação e análise de um caso concreto,

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mostrar as possibilidades de inclusão da prática do AT nos projetos terapêuticos das instituições que assistem essa clientela.

Por isso, o presente estudo teve como objetivo apontar e discutir a contribuição do AT no processo de assistência e reabilitação psicossocial do portador de transtorno mental.

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa descritiva que aborda a prática do AT fundamentada em diversos autores e estudos relacionados, analisando os benefícios do AT dentro de um projeto terapêutico multiprofissional, focando a relação entre o AT e o portador de transtorno mental e a importância desse encontro.

Participou deste estudo uma portadora de transtorno mental, acompanhada em regime semi-intensivo no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, da Secretaria Municipal da Saúde da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto/SP, Brasil, que possui três modalidades de assistência psiquiátrica: cuidado intensivo, semi-intensivo e não intensivo. A usuária estava no programa de cuidado semi-intensivo, e os critérios para a escolha da instituição foram: o grau de abertura da equipe para o trabalho, o enfoque multidisciplinar dos atendimentos e atividades realizadas; o acesso aos dados do sujeito da pesquisa e o interesse por parte da equipe multiprofissional em manter um grupo de discussão e articulação permanente com a pesquisadora. A pesquisa de campo foi realizada no ano de 2007.

A usuária participante do estudo (denominada, aqui, Lua) foi escolhida pela equipe do CAPS, por apresentar o seguinte quadro: diagnóstico de depressão moderada, transtorno de alimentação, transtorno bipolar, transtorno de personalidade narcisista, transtorno conversivo e bulimia, desencadeados após um acidente de carro ocorrido há 12 anos, no qual perdeu 90% da visão, passando a enxergar apenas vultos.

O motivo de sua escolha pela equipe referida foi sua limitação e a não aceitação da condição (deficiente visual), situação que indicava que o AT trabalharia favoravelmente no alívio de seu sofrimento psíquico e também no enfrentamento de suas limitações físicas e psíquicas, buscando melhor qualidade de vida. A usuária morava com o avô e a mãe, a qual, por ser portadora de síndrome do pânico, também fazia parte do programa de assistência do CAPS.

Lua passava a maior parte do tempo em casa, dormindo, e não demonstrava interesse por nada. Deveria ir ao CAPS para atividades programadas, mas comparecia apenas na avaliação do psiquiatra, não se interessando pelos outros atendimentos.

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Fato relevante foi o acidente que tornou Lua deficiente visual ter ocorrido seis meses antes de ela concluir o curso de musicoterapia. Após o acidente, voltou a estudar concluindo tal curso, teve uma vida social, com amigos e família, saía com os amigos para se divertir e a família sempre a apoiou em tudo que precisasse. Com o passar do tempo, Lua foi se afastando dos amigos, se isolando, perdendo o interesse por tudo. Atualmente, com 32 anos de idade, está obesa, não tem vontade de sair de casa, desenvolveu alguns transtornos, tem muita ansiedade e apresenta obesidade mórbida.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (protocolo no 0652/2006). Após isso, a pesquisadora participou de diversas reuniões da equipe multiprofissional para discussões de casos de portadores de transtornos mentais em regime semi-intensivo no CAPS, onde foi escolhida a usuária para ser assistida também através da prática do AT.

Escolhida a usuária, essa foi informada de todo o processo do AT e também a proposta de se submeter a este tipo de assistência. Após as informações, e com o seu aceite para o enquadramento nesta modalidade terapêutica, ela assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido juntamente com um familiar responsável (avô) e foi feito, junto com ela, todo um plano de trabalho a ser desenvolvido, que constou de 16 encontros de acompanhamento terapêutico, uma vez por semana, o que traduziu em um tempo de assistência de quatro meses.

Os encontros foram desenvolvidos nos seguintes locais: no CAPS, em restaurantes, dentro da própria residência, palestra informativa e Associação de Apoio aos Psicóticos – AAPSI, tiveram duração média de uma hora e trinta minutos e foram rigorosamente observados pelo próprio AT (observação participante).

Cada encontro foi arquivado para posterior análise. Os comportamentos considerados importantes apresentados pela usuária nos encontros, inclusive as suas falas, foram anotados em um diário de campo, para auxiliar na elaboração de um registro geral (relatório) que foi realizado pelo próprio AT no final de cada encontro. Foram analisados aspectos relativos à sua assistência e reabilitação psicossocial, tais como: resgate de sua autoestima; retomada de realização de atividades que fazia anteriormente ao início dos sintomas de seu transtorno mental; motivação para novamente buscar o laser e conviver de forma mais saudável no seu meio familiar e social; criação de momentos de confronto de seu estado mental com a realidade, possibilitando modificações no comportamento e melhoria da qualidade de vida.

Os resultados, portanto, foram analisados pelo método de análise de conteúdo dos encontros de AT realizados, utilizando a modalidade de análise temática, onde o tema

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está ligado a respeito de um determinado assunto, comportando um feixe de relações apresentadas graficamente por uma palavra, uma frase ou um resumo, visando o descobrimento dos núcleos de sentido, que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo.

Assim sendo, a síntese elaborada foi examinada por três examinadores, sendo dois com formação básica na Área de Ciências Humanas, com grande aproximação à área específica em questão, ou seja, a Área da Saúde Mental, e, o terceiro, também com formação básica na Área de Ciências Humanas, mas sem nenhuma aproximação com a Área da Saúde Mental. Esses examinadores, individualmente, após os exames das sínteses dos dezesseis encontros, fizeram uma nova síntese, mas agora, estabelecendo todo o significado de cada um dos encontros, em apenas uma frase. Sequencialmente, em uma reunião, foram feitas as leituras das frases dos três examinadores e realizada uma profunda discussão, para, finalmente, através do consenso, serem estabelecidas as dezesseis frases representativas dos dezesseis encontros.

Desta forma, os resultados são apresentados de maneira descritiva, mostrando as sínteses de cada encontro de forma real, utilizando-se às próprias falas de Lua e do AT, e a frase representativa de cada um deles, discutidos de forma qualitativa descritiva a partir de suas sínteses, com breve comentário ao final de cada encontro, buscando uma articulação com a realidade descrita. No final da apresentação das sínteses, frases e comentários, é apresentada uma discussão geral, e, posteriormente, as considerações finais.

Práticas terapêuticas no âmbito do serviço social

É importante fazer referência aos debates anteriores sobre este tema e aos seus resultados, que forneceram fundamentos à sua reflexão, presente na agenda do Serviço Social brasileiro desde o final dos anos de 1990. Nesse momento conjuntural, de intensas mudanças societárias, com impactos no mundo do trabalho e repercussões na profissão, o Conjunto CFESS/CRESS também tomava como desafio a discussão sobre as competências e atribuições privativas, nos marcos da regulação profissional, especialmente quanto aos artigos 4o e 5o da Lei no 8.662/1993.

Esses debates foram desencadeados pelo Conselho Federal de Serviço Social – CFESS, na gestão 1996-1999, posteriormente aprofundados na gestão seguinte (1999-2002), e sistematizados nas reflexões feitas pela COFI/CFESS e pela Professora Marilda Iamamoto e, coletivamente, debatidas na categoria, dando origem em 2002 à publicação “Atribuições Privativas do(a) Assistente Social em Questão”. O Conselho Regional de Serviço Social –CRESS, 7a Região Rio de Janeiro, Gestão 2002-2005, realizou debates

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em junho de 2002, que resultaram em duas brochuras publicadas, respectivamente, em: 2003, intitulada Serviço Social Clínico e o projeto ético-político profissional e em 2004, intitulada Atribuições Privativas do Assistente Social e o Serviço Social Clínico.

Tais publicações constituem, portanto, referências fundamentais para essa reflexão, com vistas ao seu aprofundamento e ao cumprimento da deliberação da Plenária Ampliada de 2007. Não se pode, portanto, deixar de reconhecer a importância do debate sobre este tema e a necessidade de vincular a reflexão a uma preocupação e desafio que já se colocavam naqueles contextos e que se aprofundam no Serviço Social hoje, ou seja, em que medida essas práticas terapêuticas se compatibilizam com as competências e atribuições privativas do assistente social, e de que forma consolidam, no exercício profissional, o projeto ético-político que representa, hegemonicamente, o processo de ruptura com o conservadorismo na profissão.

Sem extrair o Serviço Social das condições e relações sociais que lhe conforma – as relações capitalistas de produção, o que implicaria na sua desistoricização – reconhece-se que o trabalho profissional ocorre na concretização de um processo que tem como matéria as diferentes e múltiplas expressões da questão social. Um processo de trabalho exigente, portanto, de definição clara de objeto, objetivos, instrumentos e técnicas de atuação, além de referências teórico-metodológicas e ético-políticas, que dão sustentação aos elementos indicados. Em termos de sua finalidade na realidade brasileira, encontra-se em acordo com seu projeto ético-político profissional, a defesa, ampliação e consolidação dos direitos sociais, da democracia e da cidadania, cuja materialidade implica na realização de ações concretas, viabilizadoras do acesso dos sujeitos aos serviços e programas sociais.

A atuação do assistente social em práticas terapêuticas tem sido reivindicada por alguns profissionais como uma especialidade da profissão do Assistente Social. Afirmam que reconhecer estas práticas na profissão é “[...] fazer justiça aos Assistentes Sociais especializados nas diversas linhas das abordagens psicoterápicas, pois custa tanto quanto aos demais especialistas de outras origens acadêmicas, no que se refere à competência, seriedade e ética”. Assistentes sociais que compõem este grupo, ou possíveis apoiadores, valem-se de argumentos como a insuficiência dos paradigmas para lidar com a subjetividade, a defesa do pluralismo na profissão, da possível convergência entre a clínica e o político, do reconhecimento do caráter terapêutico do exercício profissional.

Sonia Beatriz Sodré Teixeira, (pp. 24-25, 2004) assistente social que desenvolve prática clínica no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, afirma que:

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Os assistentes sociais clínicos têm as suas práticas voltadas para o atendimento

de indivíduos, grupos, famílias que, por diversas razões, não tiveram suas

necessidades atendidas, sofrem psiquicamente e vivem em situações concretas

de exclusão e abandono. São constantemente solicitados para intervirem nos

conflitos familiares, nos conflitos comunitários e interpessoais, em situações

que envolvem crianças e adolescentes desprotegidos ou desfavorecidos.

Também atuam nas questões de dependência química, de abuso sexual, de

violência doméstica, nos campos da saúde, da educação, da reabilitação, no

campo sociojuridico, empresas e tantos outros.

Afirma, ainda, que é uma abordagem que privilegia a escuta da demanda imediata, que pressupõe a participação do assistente social de forma reflexiva, mobilizando recursos e condições para que as pessoas se “tornem capazes de exercer a crítica e reivindicar seus direitos sociais”.

A partir da sistematização das informações recebidas, observa-se que o objeto do trabalho profissional das práticas terapêuticas elenca a reintegração social, a ação com indivíduos, grupos, famílias em situações de crise, de sofrimento psicossocial, de risco pessoal e/ou social, pessoas com transtornos mentais, dependentes químicos, idosos, indivíduos em situação de desânimo, medo, desespero, angústia, estresse devido a transições da vida, depressão. Percebe-se uma confusão metodológica, ao apontar como objeto do trabalho, quem seria em tese, o público usuário da ação. Mas, certamente, as respostas consideram como objeto, os conflitos pessoais vivenciados, na relação homem meio, sem fazer referência às manifestações da questão social presente na sociedade capitalista.

Entretanto, parafraseando Iamamoto (2004, p. 39):

Os assistentes sociais trabalham, certamente, com famílias, mas o fazem em

um âmbito e com uma perspectiva distinta do psicólogo. Trabalhamos com

famílias atuando no processo de viabilização dos direitos e dos meios de

exercê-los. Requer considerar as relações sociais e a dimensão de classe que as

conformam, sua caracterização socioeconômica, as necessidades sociais e os

direitos de cidadania dos sujeitos envolvidos, as expressões da questão social

que se condensam nos grupos familiares, as políticas públicas e o aparato de

prestação de serviços sociais que as materializam etc. A dimensão “psi” tem, na

divisão técnica do trabalho, outras áreas profissionais, legal e academicamente

habilitadas para atuarem nesse campo.

Marilda Iamamoto (p. 39, 2004), vem reafirmar que o Serviço Social é uma profissão que interfere nas relações sociais quotidianas dos sujeitos, no entanto aponta que “não

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são relações aprisionadas exclusivamente no seu universo intrafamiliar e, muito menos, a partir da dicotomia entre a família e o meio. Lembra que a dicotomia homem-meio, foi a tradição do Serviço social nas abordagens clássicas.

A assistente social Mavi Rodrigues (p. 39, 2002) questiona: o Serviço Social Clínico aprofunda, faz avançar a direção social estratégica que está presente no projeto ético-político do Serviço Social ou nega essa direção? A problematização, por ela apontada, atinge de modo contundente questões importantes que devem ser explicitadas no debate: numa primeira dimensão, que denomina de técnico-operativa, traz as relações entre o Serviço Social Clínico e o mercado profissional, analisando a relação entre demandas e respostas profissionais, onde sustenta “que as demandas profissionais não ecoam no Serviço Social Clínico” e afirma que este não reconhece as demandas postas ao Serviço Social.

Explica que o campo socio-ocupacional do Serviço Social está composto das políticas sociais e dos diversos serviços, programas e benefícios, com competências e atribuições profissionais relativas à administração, planejamento, gestão e avaliação de programas e projetos, o que parece não estar posto ao profissional da clínica, uma vez que este se volta para questões de ordem micro.

Em última análise, significa entender que o “Serviço Social Clínico” não amplia como às vezes anuncia a atuação profissional, assim como não responde de acordo com o projeto ético-político. No que se refere aos objetivos das práticas terapêuticas, destaca-se o autoconhecimento, a facilitação de acesso aos recursos da comunidade, a mudança subjetiva, o reforço da dinâmica interna de cada indivíduo – autoestima, ajuda para superação de crises, potencialização da força de vida interna – demonstrando certa convergência na direção proposta para o trabalho, que apenas ganha sinais mais expressivos de diferenciação a partir do referencial teórico que serve de base e fundamento à ação profissional. Daí aparecer como vertentes teóricas a Psicanálise, a Psicopatologia, a Teoria Sistêmica, a Teoria Construtivista, a

Teoria da Comunicação, a Antropologia Cultural, a Pedagogia de Paulo Freire, a Psicoteologia, entre outras derivações aí presentes.

Deste modo, ainda que não se possa afirmar um retorno reacionário do conservadorismo, análises têm revelado no âmbito da profissão uma espécie de entrada (ou retomada) de uma perspectiva, afinada com uma direção psicologizante, verificada, sobretudo em algumas áreas, a exemplo da saúde mental. Isso decorre também de uma compreensão de que a realidade e as demandas atuais estariam a exigir outros referenciais analítico-interventivos. Assim, as práticas profissionais vão se afinando de modo acrítico com tais

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perspectivas colocando-se distantes das bases do Serviço Social, encontrando, então, as disciplinas “clínicas”, como a psicanálise e a terapia de família.

Por outro lado, o afastamento de um aprimoramento para dar conta de realizar a leitura da configuração da realidade atual, em suas profundas transformações e do papel profissional, pode levar os assistentes sociais, que não tendo clareza de suas atribuições, tomados pela dúvida e incerteza, a assumir e reforçar posturas ligadas ao cuidado terapêutico, de forma que o projeto profissional vê-se guiado principalmente por uma perspectiva psicologizante. Do estilhaçamento e fetichização do mundo, a razão fenomênica perde parâmetro objetivo e a saída é buscada no exacerbamento e na autoconcentração subjetiva, que tem como um dos resultados a busca e produção de propostas metodológicas dessa natureza.

Marilda Iamamoto (p. 58, 2004) afirma que o trabalho com indivíduos, grupos e famílias, obviamente, é parte da nossa matéria profissional: as múltiplas expressões da questão social, vividas pelos sujeitos, condensam suas necessidades e suas lutas. Contudo, aponta que é preciso ter claro a abordagem teórica metodológica. Neste campo do chamado “Serviço Social Clínico”, em que a abordagem psicossocial tem seus supostos, corremos o risco de retomar o que questionamos no Movimento de Reconceituação, retomar a tricotomia, caso, grupo e comunidade ou a “pulverização das especializações (SS clínico do judiciário, da previdência, da habitação).” Aponta, ainda, que a “abordagem psicossocial na nossa cultura profissional tem a sua história, uma história que foi submetida à análise crítica nas últimas quatro décadas”.

Afirma que ela não é só um termo, é uma concepção. “É uma maneira de ler as ações profissionais que norteia a sua efetivação.” Ainda que esse tema mereça um exame mais atento e rigoroso, observa-se como a problemática é examinada do ponto de vista do sujeito e não da integralidade do processo. As chamadas práticas terapêuticas, ao englobarem valores, metodologia e prática voltadas para a perspectiva pessoa-situação-ambiente, utilizam instrumentais técnico-operativos como diagnóstico, plano de tratamento psicossocial, atendimento individualizado, anamnese social, acompanhamento, visitas domiciliares, hospitalares e institucionais, anotações em prontuários, entrevistas, testes específicos, relatórios, grupo, oficinas terapêuticas, supervisão clínica, encaminhamentos para especialistas, terapia comunitária, terapia de orientação sistêmica, estudo trigeracional, utilização de vivências (danças, exercícios, caminhadas, relaxamento etc.). Vistos desse modo, não se pode depreender que isso lhe confere por si só uma perspectiva conservadora, uma vez que o uso dos instrumentais não pode ser analisado fora de toda a estatura teórico-conceitual e ético-política que lhes envolve e direciona.

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É, também, nisto que consistiria o que Mavi Rodrigues (2002, p. 39), entende a partir de uma segunda dimensão de sua análise, qual seja, os traços conservadores restaurados pelo “Serviço Social Clínico” na medida em que tais usos e manuseios servem a uma finalidade (auto conhecimento, elevação de autoestima, potencialização da força de vida interna, entre outras) que naturaliza a vida social, encobre problemas típicos da ordem burguesa e, por fim, desconhece o significado o sócio-histórico da profissão e destitui o trabalho profissional de todo seu conteúdo político.

Sobre isso não se pode afirmar que o Serviço Social e o projeto pelo qual lutamos e conquistamos não tenha suficientemente avançado em suas proposições, inclusive em bases jurídico-legais de sustentação, encontradas na Lei no 8.662/1993, no Código de Ética Profissional e nas Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS, cujas respostas profissionais estão ali manifestas ao se eleger os valores que conferem legitimidade à profissão, ao definir seus objetivos, ao delimitar direitos e deveres profissionais, ao vincular-se a um projeto societário radicado na construção de uma sociedade destituída de qualquer tipo de exploração, seja de classe, gênero ou etnia.

Ao intervir sobre danos e desordens mentais, cognitivas, emotivas, afetivas e incapacidades de desenvolvimento, o Serviço Social Clínico parece voltar às disfunções de ordem bio-psico-social, incorporando teorias biológicas, psicológicas, adentrando nas manifestações comportamentais dos processos conscientes e inconscientes. Seriam tais ações novas competências e atribuições relativas às novas configurações do trabalho profissional? A intervenção sobre as crises familiares, a depressão etc., tomados como objetos da profissão estão dando conta de reconhecer nestas demandas individuais suas dimensões universais e particulares, sem incidir apenas sobre os fragmentos da vida social? Tais situações sociais singulares que se apresentam são reelaboradas para além dos sentimentos individuais apreendendo-as nas suas dimensões coletivas e objetivas?

Como bem afirma Iamamotto (p. 55, 2000), o assistente social não trabalha com “fragmentos da questão social, mas trabalha com indivíduos que condensam, nas suas singularidades, as dimensões universais e particularidades das relações de classe”.

O arco de influência nestas práticas pode ser verificado igualmente no modo de operacionalização que se volta para atendimento e acompanhamento individualizado, grupoterapia e vivências socioterápicas, compreendidos como processos de crescimento interior e deslocamento das “mudanças, dirigidas e acomodadas pelo próprio sistema socioeconômico, para o despertar da consciência individual”, abordagens que se vinculam à problemática particular de caráter individualizado, a exemplo das chamadas

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abordagens narrativas que tornam o processo cognitivo dirigido à melhoria contínua da capacidade de compreender e gerir a própria vida.

A família é o elemento mais firme, mais seguro e mais estruturante da personalidade dos seus membros. É o local privilegiado para a formação do caráter dos filhos, sendo que os adultos desempenham um papel decisivo no pleno desenvolvimento das capacidades, atitudes e valores que sustentam as competências do sistema como um todo. A comunicação é então o fator principal a estruturar, pois é nela que assentam as práticas de interação formativa, relacional, educativa, de interação e integração social dos elementos que constituem.

Uma vez que as interações são várias, as relações familiares assentes em processos de comunicação permitem o equilíbrio do sistema familiar. Por outro lado, encarando a família como sistema ela permite através do processo de socialização interiorizar valores e as normas sociais para a sua formação e desenvolvimento (RELVAS, 1996). Sendo um sistema aberto está sujeito a apreciações e influências em todo o processo comunicativo. Havendo relações familiares equilibradas o próprio processo sistêmico permitirá o equilíbrio do sistema como um todo, ao mesmo tempo em que estabelece uma ligação com a sociedade, contribuindo desta forma para o equilíbrio social.

Por causa do contato com as pessoas em seu ambiente familiar, o Assistente Social consegue aproximar-se do vivido e do cotidiano do usuário, observando as interações familiares, a vizinhança, a rede social e os recursos institucionais mais próximos. Essa prática supera, em diversos aspectos, a entrevista feita na instituição, pois quando metodologias de atendimento à família se vê o movimento e o cotidiano das pessoas, muitos registros ficam na ‘memória fotográfica’ do assistente social.

A entrevista é muito utilizada quando o profissional precisa obter dados da família. Para Souza (1998), um dos maiores problemas da utilização da entrevista na área social é a questão da objetividade, de conseguir separar as informações dos sentimentos que surgem durante a abordagem. O entrevistador, na “busca pela objetividade, ‘esforça-se’ por ignorar as sensações, a imaginação, a arte e o lúdico, ao realizar e analisar a entrevista, deixando na maioria das vezes de abordar ou mesmo de referir-se à ‘arte’ e ao ‘sentir’ como processos de ação-reflexão-ação” (SOUZA, p. 39, 1998).

O estudo social e o parecer social apareceram poucas vezes na pesquisa se considerarmos ser este um instrumento específico da área do Serviço Social. O estudo social é utilizado pelo assistente social para orientar o seu trabalho, tanto no planejamento de intervenções como para demonstrar a situação sobre uma realidade investigada ou trabalhada, proporcionando-lhe respostas às necessidades da atuação profissional (PIZZOL, 2001).

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O parecer social é parte integrante do estudo social, em que o profissional, baseado nos dados coletados durante o estudo e procedendo a análise à luz de um referencial teórico, expõe sua opinião técnica de como poderá dar-se a solução do conflito que gerou tal estudo. Convém ressaltar que O parecer social deve constituir-se instrumento de inclusão e não de julgamento de valor, que se baseia numa atitude moralista ou preconceituosa de aferição de mentiras e verdades. [...] A caracterização do parecer social como um instrumento de realização de direitos implica atitude vigilante quanto aos preconceitos ou valores morais na reprodução de normas sem apreender seu significado para os usuários (SILVA, p. 118, 2000).

Dentre o instrumental técnico-operativo, os assistentes sociais também citaram os instrumentos relacionados ao registro do acompanhamento às famílias como os prontuários e os relatórios. De acordo com Iamamoto (p. 43, 1997), o conhecimento “é um meio por meio do qual é possível decifrar a realidade e clarear a condução do trabalho a ser realizado”. Para alguns profissionais, este é apontado como instrumento para que não haja um distanciamento entre a teoria e a prática.

Os resultados positivos no que tange ao acompanhamento familiar estão no campo da viabilização dos direitos sociais e na educação sociopolítica, afetando hábitos, modos de pensar e comportamentos dos indivíduos em suas relações sociais cotidianas, o que, conforme Simionatto (1998), inscreve-se no processo de produção/reprodução da vida social.

Os aspectos institucionais referidos revelam que resultados positivos são alcançados em diversos níveis nos serviços, tais como desempenho e capacitação profissional da equipe, ampliação do projeto e reconhecimento social, entre outros. No que se refere aos aspectos positivos da prática profissional, destaca-se a valorização do Serviço Social por parte de outros membros da equipe técnica e/ou setores dos serviços onde estão inseridos. Os profissionais também se deparam com questões que se configuram em resultados negativos, prejudicando o êxito dos objetivos propostos pelos serviços.

Entre esses resultados estão o número insuficiente de profissionais (tanto do Serviço Social como de outras áreas) e as questões burocráticas e administrativas (falta de recursos e renovação de convênios). Os informantes também indicaram a adesão parcial das famílias ao acompanhamento como um resultado negativo. Sobre a finalidade dos serviços, percebemos que a assistência configura-se como o eixo norteador da maioria dos serviços, seguida da educação e da pesquisa.

Nessa direção, a prática dos assistentes sociais está pautada sob duas perspectivas: a prestação de serviços (concessões de benefícios e auxílios) e as ações socioeducativas (orientação, prevenção, fortalecimento do grupo familiar).

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A pesquisa nos serviços é interpretada de diferentes formas pelos profissionais. Para alguns, a pesquisa é entendida como levantamento de dados, em que estes buscam informações sobre as necessidades e as expectativas das famílias atendidas, ou como conhecimento da realidade na qual elas se inserem. Para outros, a prática investigativa é vista como uma necessidade para o aprofundamento dos estudos na área em que esses profissionais atuam. Observamos que os profissionais defendem o desenvolvimento e a articulação das ações nas áreas da assistência, pesquisa e educação a fim de apresentar respostas mais efetivas aos usuários.

Em relação ao referencial teórico adotado pelos profissionais, destacamos que as linhas apresentadas evidenciam que a prática está orientada por uma perspectiva crítica e outra funcionalista. Percebemos ainda que, apesar dessas correntes teóricas terem sido citadas, na prática, alguns profissionais não têm clareza sobre o referencial que guia seu trabalho.

Ademais, verificamos um certo ecletismo por parte dos profissionais na condução de suas ações. Neste estudo evidenciamos que muitas vezes os profissionais têm dificuldade em explicitar o referencial que guia suas ações, o que indica um desafio para o Serviço Social na medida em que o conhecimento, elemento constitutivo do trabalho profissional, é necessário para que o assistente social decifre a realidade e indique as possibilidades nela contidas. Entendemos que o assistente social precisa estar munido de um referencial teórico metodológico cuja direção aponte para o compromisso de transformação da atual ordem societária, da luta por direitos, pela qualidade dos serviços prestados e para o fortalecimento das famílias. No que concerne ao instrumental técnico operativo, observamos que o assistente social lança mão de diferentes instrumentos e técnicas que o auxiliam no trabalho com famílias e nas situações que exigem a sua intervenção. Alguns instrumentos não são específicos da profissão, como a entrevista, a reunião de grupo, o prontuário, entre outros, porém, são adaptados dentro dos objetivos do Serviço Social. Já o parecer social e o estudo social constituem o instrumental próprio do assistente social. Enfatizamos que este parecer deve ser elaborado com base num referencial teórico e não nos juízos de valores do profissional.

No que se refere às formas de atuação no processo interventivo do assistente social, identificamos que alguns profissionais trabalham com um enfoque multidisciplinar, em que a troca limita-se às informações sobre a família, prejudicando assim a construção de saberes com as outras áreas do conhecimento envolvidas e proporcionando um atendimento fragmentado.

Porém é importante destacar que a realização de trabalhos socioeducativos, não podem ser compreendidos como ações para “consertar” as pessoas, mas ações que tenham um

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conteúdo compatível com a realidade social vivenciada por cada família, na busca em despertar e conquistar a emancipação, a autonomia, visão crítica da realidade, projeto de vida e perspectiva de mudanças.

Nesse sentido, é possível elaborar uma posição, ainda que preliminar, que atribui às práticas terapêuticas no Serviço Social brasileiro uma natureza conservadora, podendo-se ainda observar, a partir do que está informado, mas não expresso, vínculos com projetos societários distintos e antagônicos daquele do projeto ético-político-profissional.

É verdade que, de acordo com o referencial teórico-analítico e técnico-operativo relatado, os profissionais exercem suas práticas referenciadas em estudos e especializações distantes do processo de formação e das diretrizes curriculares do Serviço Social. Tal distanciamento se revela não apenas em relação ao conteúdo, mas, inclusive, à direção social da intervenção profissional. Denota um outro tipo de matéria e atribuições profissionais, em última análise, um outro exercício profissional, como já assinalava Marilda Iamamoto, em 2002.

Desta forma, pensar a prática profissional, de acordo com Iamamotto (2004, p. 81), não é pensar só no que o assistente social faz, mas é também no como o assistente social pensa aquilo que faz e a sociedade na qual está inscrito, portanto a prática profissional envolve como o assistente social explica, interpreta, analisa a sociedade, os sujeitos, a sua posição profissional. Supõe um substrato teórico-metodológico, histórico e ético.

O Serviço Social é uma profissão que se inscreve na divisão social e técnica do trabalho, como afirma Iamamoto (p. 54, 2004), é uma profissão que depende da relação entre Estado e sociedade civil, que depende das relações entre as classes, uma profissão que é inseparável da “questão social”. “A questão social não se identifica, de forma simplista, com ‘problema social’, e nem com ‘exclusão”. Assim não se pode pensar tais elementos – objeto, objetivos, referencial teórico e técnico-operativos – componentes da cultura profissional, sem levar em conta as expressões que a crise atual vai adquirir em tais elementos, denotando mudanças de princípios, valores, finalidades, orientações políticas, referencial técnico, teórico-metodológico, ideocultural e estratégico, assim como nos modos de operar e nos tipos de respostas construídas. Isto redunda em projetos profissionais e societários e racionalidades que se confrontam. Por isso a importância de compreender os elementos constitutivos da crise contemporânea. Tendências e perspectivas de atuação profissional devem ser apanhadas no contexto histórico uma vez que, das transformações macrossocietárias recentes – econômicas, políticas, sociais e culturais – derivam um tipo de abordagem que fragmenta e autonomiza estes aspectos e abstrai deles o conteúdo político do qual a questão social é portadora, formalizando-a

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TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I

em problemáticas particulares. Daí o entendimento de que há acentuação de uma tendência conservadora no Serviço Social Clínico.

A dimensão subjetiva não é negada no trabalho do assistente social. Mas não é atribuição privativa, nem tampouco competência deste profissional, realizar um trabalho terapêutico, fazendo da “psi” e da clínica, a base da sua intervenção profissional, não encontrando respaldo no estatuto legal da profissão e no arcabouço teórico metodológico consolidado nas últimas décadas.

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Para (não) Finalizar

Poder-se-ia perguntar o que reúne, então, este campo tão vasto? Podemos compreender, ao refletirmos sobre esse panorama, que é precisamente esta lógica epistemológica e hermenêutica que dá coesão e identidade a esta diversidade de possibilidades, permitindo espaços contínuos por onde podemos transitar, coerentemente, de acordo com os meios que nos pareçam mais úteis e despertem nosso entusiasmo e criatividade.

A terapia, enquanto uma prática social transformadora, deve ser compreendida a partir dos contextos locais e das histórias culturais das suas distintas comunidades linguísticas. A história tem ilustrado que, como parte dos sistemas de saúde mental as práticas da terapia têm veiculado os discursos dominantes com seus respectivos padrões morais a serviço da manutenção do status quo (HARE-MUSTIN, 1994), tendo trabalhado, muitas vezes, mais a serviço do controle e da normatização dos sistemas e instituições do que da mudança social.

O respeito pela diversidade cultural e pela multiplicidade de contextos com seus saberes locais implica numa terapia construída a partir da aceitação da responsabilidade social do terapeuta, legitimando os direitos humanos de bem-estar e de exercício da livre escolha. Uma tal postura coloca-se como imperativa, considerando-se as diversidades territoriais como, por exemplo, a do meu país de origem, o Brasil, um imenso território com toda a sua miscigenação cultural, étnica, religiosa e social. Contextos como este, exigem práticas locais, como por exemplo a desenvolvida por Barreto (s/d), que, com sua terapia comunitária, trabalhando com camadas de populações econômica e culturalmente carentes, pode ser considerado um terapeuta do povo, uma espécie de Paulo Freire da terapia.

Considerar as idiossincrasias dos contextos locais conduz a nós terapeutas para além das noções tradicionais de cultura, raça, gênero, classe social, com ênfase na complexidade, para além dos modelos e com espaço para inclusão de questões de espiritualidade.

Os imensos desafios que se apresentam para o terapeuta, vindos do campo da saúde mental, das instituições voltadas para o cuidado e tratamento da pessoa, dentro de uma perspectiva pós-moderna, convidam para a humildade na construção do conhecimento e conduzem, cada vez mais para a transdisciplinaridade numa instância de trocas colaborativas entre os distintos domínios de saber e a construção de um terapeuta engajado no seu tempo e história e comprometido com os macrocontextos políticos e sociais que afetam a vida das pessoas e as conduzem para terapia. Como este também

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REFERÊNCIAS

é o contexto no qual o terapeuta vive, o caráter autorreferencial da reflexividade das terapias pós-modernas, desafiam o terapeuta a tornar explícitos os seus pré-juízos, os seus valores, suas opções ideológicas, ou seja, os limites da sua subjetividade que estabelece os parâmetros para a clínica que pratica.

“O único meio de se não morrerem as ideias é continuar nascendo...”

(WITTGENSTEIN, L.)

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