saude em debate_n75

232
ISSN 0103-1104

Upload: ionara

Post on 09-Jun-2015

1.943 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saude.

TRANSCRIPT

Page 1: Saude Em Debate_n75

Saú

de

em D

ebat

e

v.32

n

.78/

79/8

0

jan

./dez

. 20

08Cebes

ISSN 0103-1104

Page 2: Saude Em Debate_n75

Centro Brasileiro de estudos de saúde (CeBes)

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)

NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)

Diretoria Executiva

Presidente Sonia Fleury (RJ)

1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ)

2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF)

3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ)

4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP)

1O Suplente Francisco Braga (RJ)

2O Suplente Lenaura Lobato (RJ)

Diretor Ad-hoc Nelson Rodrigues dos Santos (SP)

Diretor Ad-hoc Rodrigo Oliveira (RJ)

CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL

Áquilas Mendes (SP)

José da Rocha Carvalheiro (RJ)

Assis Mafort (DF)

Sonia Ferraz (DF)

Maura Pacheco (RJ)

Gilson Cantarino (RJ)

Cornelis Van Stralen (MG)

CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL

Sarah Escorel (RJ)

Odorico M. Andrade (CE)

Lucio Botelho (SC)

Antonio Ivo de Carvalho (RJ)

Roberto Medronho (RJ)

José Francisco da Silva (MG)

Luiz Galvão (WDC)

André Médici (DF)

Jandira Feghali (RJ)

José Moroni (DF)

Ary Carvalho de Miranda (RJ)

Julio Muller (MT)

Silvio Fernandes da Silva (PR)

Sebastião Loureiro (BA)

SECRETARIA / SECRETARIES

Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves

A Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos

saúde em deBate

A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR

Paulo Amarante (RJ)

CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL

Jairnilson Paim (BA)

Gastão Wagner Campos (SP)

Ligia Giovanella (RJ)

Edmundo Gallo (DF)

Francisco Campos (MG)

Paulo Buss (RJ)

Eleonor Conill (SC)

Emerson Merhy (SP)

Naomar de Almeida Filho (BA)

José Carlos Braga (SP)

EDITORA ExECUTIVA / ExECUTIVE EDITOR

Marília Correia

INDExAÇÃO / INDExATION

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS)

Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]

Apoio

REVISÃO DE TExTO,CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Zeppelini Editorial

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Corbã Editora Artes Gráficas

TIRAGEM

2.000 exemplares

Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.

Capa em papel cartão supremo 250 gr

Miolo em papel kromma silk 80 gr

PROOFREADINGCOVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING

Zeppelini Editorial

PRINT AND FINISH

Corbã Editora Artes Gráficas

NUMBER OF COPIES

2,000 copies

This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.

Cover in premium card 250 gr

Core in kromma silk 80 gr

Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.

v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1

Page 3: Saude Em Debate_n75

Rio de Janeiro v.32 n.78/79/80 jan./dez. 2008

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

ISSN 0103-1104

Page 4: Saude Em Debate_n75

EdItorIal / EDITORIAL

aPrESENtaÇÃo / PRESENTATION

artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES

Ensaio

reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism

Alice Hirdes

REvisão

Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma históriaPsychology and Mental Health: three moments of a history

João Leite Ferreira Neto

Ensaio

a Estratégia atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

Eaps: challenge in the practice of the new devices of Mental HealthSilvio Yasui, Abilio Costa-Rosa

Ensaio

algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção

da saúdeReflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation

of the Mental Health professional in the context of health promotionWalter Ferreira de Oliveira

Ensaio

Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the current debate

Richard Couto, Sonia Alberti

REvisão

Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific literature

Tatiana Ramminger

Ensaio

a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte contemporânea

Ricardo Aquino, Thiago Ferreira de Aquino, Rita Aquino

Ensaio

Saúde Mental e cultura: que cultura?Mental Health and culture: what culture?

Alexandre Simões Ribeiro

Ensaio

a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the companhia Experimental Mu...dança

Myrna Coelho

PEsquisa

a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

The territorial action of the centro de Atenção Psicossocial as indicator of its substitutive nature

Renata Martins Quintas, Paulo Amarante

RElato dE ExPERiência

grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em Saúde Mental para além do sintomagroup of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptomsMilena Leal Pacheco, Luiz Ziegelmann

PEsquisa

Panorama do tratamento dos usuários de drogas no rio de JaneiroAn overview of treatment service for drug-addicts in Rio de JaneiroMagda Vaissman, Marise Ramôa, Artemis Soares Viot Serra

PEsquisa

Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da FamíliaTick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health StrategyIonara Vieira Moura Rabelo, Rosana Carneiro Tavares

Ensaio

Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntricaMental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric netMariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos

PEsquisa

a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma PsiquiátricaThe crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform contextKatita Jardim, Magda Dimenstein

RElato dE ExPERiência

a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de JaneiroThe construction of a territorial base service: the experience of the centro Psiquiátrico Rio de JaneiroAlexandre Keusen, Andréa da Luz Carvalho

RElato dE ExPERiência

articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo HorizonteLinking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas geraisSerafim Barbosa Santos-Filho

doCUMENtoS HIStÓrICoS / HISTORIcAL DOcUMENTS

Saúde Mental: condições de assistência ao doente mentalComissão de Saúde Mental dos Cebes

artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES

Ensaio

a crise de dominação no sistema público de saúdeThe domination crisis in the Brazilian public health systemArlene Laurenti Monterrosa Ayala

Ensaio

François dagognet, por uma nova filosofia da doençaFrançois Dagognet, for a new philosophy of diseaseSabira de Alencar Czermak

artIgo INtErNaCIoNal / INTERNATIONAL ARTIcLE

Ensaio

Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercadocolombian health model: exportable, depending on the interest of the marketMauricio Torres Tovar

9

18

27

38

49

60

72

83

92

99

108

121

133

143

150

161

172

182

193

200

207

S U M Á R I O • SUMMARY

Page 5: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008

EdItorIal 3

ambiciosa e revolucionária, a declaração de alma-

ata completou 30 anos sem que seus objetivos

fossem totalmente concretizados. o Centro Brasileiro

de Estudos de Saúde (cEbEs) dava seus primeiros passos

quando, em setembro de 1978, a organização Mundial

da Saúde (oMS) e o Fundo das Nações Unidas para a

Infância (unicEf) reuniram no Cazaquistão os represen-

tantes de 137 países que ungiriam a meta de acesso à

saúde digna por todos, no mais tardar até o ano 2000.

a promessa era desenvolver ações urgentes baseadas

na participação social e na promoção da atenção básica

à saúde. o apelo maior era em relação à necessidade

de uma ordem econômica mundial mais justa e mais

solidária.

a essência da alma-ata foi perdida, pois os resul-

tados sanitários nunca foram tão desiguais no mundo,

assim como nunca foi tão precário e injusto o acesso

à saúde. Hoje, é de mais de 40 anos a diferença na

expectativa de vida entre as nações mais pobres e as

mais ricas. os gastos públicos com a saúde nesses paí-

ses variam, respectivamente, de 20 a 6 mil dólares por

pessoa e por ano. Muitos governos deram respostas

inadequadas em relação a esse setor, além de terem sido

incapazes de antecipar os problemas e impotentes na

busca de soluções.

Em ano de efemérides – 20 anos de Sistema Único

de Saúde (SUS), 30 anos de alma-ata, 60 anos da de-

claração Universal dos direitos Humanos – o Brasil tem

bons motivos para se orgulhar do trabalho realizado na

tentativa de melhoria da saúde de seu povo. o relatório

anual da oMS de 2008 voltou a recomendar a adoção da

atenção primária à saúde em todos os países e destacou

o Brasil como exemplo. os avanços na construção da

política nacional de Saúde Mental, um dos temas desta

Saúde em Debate, representam bem essa conquista.

Mesmo nesse Brasil de tantos avanços não é con-

sensual o lugar da atenção primária à saúde, tampouco

são uniformes as abordagens em sua implementação.

Vista por alguns gestores como programa seletivo que

oferta uma “cesta” restrita de serviços e por outros,

meramente como um dos níveis de atenção à saúde,

ainda não foi viabilizada em sua concepção descentra-

lizada, mais abrangente e integral. Estratégica porta de

entrada do sistema, a atenção primária tem um papel

preponderante no processo de implementação do novo

modelo assistencial do SUS, desde que superadas a

superposição de redes de assistência, a falta de unifor-

midade na execução do Programa Saúde da Família

(PSF), as desigualdades no acesso e na utilização dos

serviços, a pouca valorização e formação inadequada dos

profissionais, a focalização e seletividade de ofertas do

pronto-atendimento mínimo – incluem-se nesse tópico

as assistências Médicas ambulatoriais (aMa) na cidade

de São Paulo e as Unidades de Pronto-atendimento

(UPa) no município do rio de Janeiro, alimentadas,

na verdade, pelo marketing eleitoral.

desde que proposta a ‘re-fundação’ do cEbEs, tem-se

voltado muito a atenção para a necessidade de retomada

do espírito crítico, do debate propositivo que deu origem

ao projeto da reforma Sanitária brasileira. Não se trata

de insistir na ressurreição da reforma em si, mas de reco-

nhecer o seu grande êxito na construção do SUS.

da mesma forma, não se trata de reinventar o

passado, mas de manter o clima dos movimentos que

se organizaram em torno de ideais e projetos coletivos,

capazes de exercitar a crítica, de reconhecer as deficiên-

cias, de reorientar os compromissos institucionais e de

radicalizar a democracia.

a dIrEtorIa NaCIoNal

Page 6: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008

EDITORIAL4

ambitious and revolutionary, the alma-ata decla-

ration has completed 30 years, without the total

fulfillment of its objectives. the Centro Brasileiro de

Estudos de Saúde (cEbEs) was taking its first steps when,

in September, 1978, the World Health organization

(WHo) and the United Nations Children’s Fund (uni-

cEf) brought together in Kazakhstan 137 representatives

of countries that would reach the goal of providing access

to a deserving health for all, until 2000, at the latest.

the promise was to develop urgent actions based on

social participation and on the promotion of basic atten-

tion to health. the greatest plea was related to the need

for a fairer and more solidary economic world order.

the essence of the alma-ata was lost, because the

sanitary results have never been so unequal in the world,

as well as the access to health, which has never been so

precarious and unfair. Nowadays, the difference of life

expectation rates between the poorest and the richest

nations is of more than 40 years. Public expenses with

health in these countries vary, respectively, from 20 to

6 thousand dollars per person and per year. Many go-

vernments have given inadequate answers regarding this

sector, and have also been incapable of anticipating the

problems and impotent in the search for solutions.

on an ephemerides year – 20 years of National

Health System (SUS), 30 years of alma-ata, 60 years of

the Universal declaration of Human rights – Brazil has

good reasons to be proud of the work accomplished in

the attempt to improve people’s health. the World Health

report 2008 has once again recommended the adoption

of primary attention to health in all countries, and poin-

ted Brazil as an example. the advances in constructing a

Mental Health national policy, one of the subjects of this

Saúde em Debate, clearly represent this achievement.

Even in Brazil, with so many advances, the placing

of primary attention to health is not consensual, and nei-

ther are uniform the approaches in its implementation.

Considered by many managers as a selective program

that offers a restricted “basket” of services and, by others,

as merely one of the levels of attention to health, it hasn’t

been made possible in its decentralized concept, more

extensive and complete. as a strategic front door of the

system, primary attention plays a preponderant role

in the process of implementing a new SUS assistance

model, as long as some issues can be overcome, such

as the superposition of assistance networks, the lack

of uniformity to execute the Family Health Program

(PSF), the inequalities to access and to use the services,

the little importance given to professionals and their

inadequate qualification, the focalization and selectivity

of minimum emergency room offers – in this topic are

included the ambulatory Medical Care (aMa), in São

Paulo, and the Emergency rooms (UPa), in rio de

Janeiro, sustained, in fact, by electoral marketing.

Since the proposal of re-founding cEbEs, there has

been a lot of attention into the need to retake the critical

spirit, the preposition debate that originated the Bra-

zilian Sanitary reform project. It is not about insisting

on the resurrection of the reform itself, but recognizing

its great success in constructing SUS.

also, it is not about reinventing the past, but

keeping the atmosphere of the movements that were

organized around collective ideas and projects, which

were able to exercise the criticism, recognize deficien-

cies, reorient institutional commitments and radicalize

democracy.

THE NATIONAL DIREcTORATE

Page 7: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

aPrESENtaÇÃo 5

Esta revista surge num momento muito especial,

afinal, comemoram-se os 30 anos da reforma Psi-

quiátrica no Brasil. Para celebrar esta data, selecionamos

uma capa estranha: a foto da grade de uma cela de um

hospital psiquiátrico. o objetivo desta imagem provo-

cativa é demarcar a distância histórica, ética e política

entre o momento inicial, 1978 e 1979, e o cenário atual

de participação dos usuários na construção da política,

serviços e estratégias em Saúde Mental.

No início deste ano, em meio às comemorações dos

30 anos de reforma, foi realizado, no rio de Janeiro,

o II Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde

Mental e direitos Humanos. Mais de 3.000 pessoas,

militantes das mais diversas áreas da saúde e dos direi-

tos humanos, participaram desse Fórum debatendo e

construindo um novo cenário para a Saúde Mental no

Brasil e em várias partes do mundo.

Para encerrar o ano com chave de ouro, lançamos

este número especialmente dedicado ao tema da Saúde

Mental, no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental,

organizado pela recém-criada associação Brasileira de

Saúde Mental (abRasmE).

Há um consenso na área da saúde coletiva sobre a

importante contribuição que o campo da Saúde Mental

tem trazido para a saúde de forma geral, problematizan-

do a relação instituição-usuário e de institucionalização,

destacando a importância do trabalho e do envolvimento

da família, bem como a importância do trabalho no

território. Enfim, são muitas, e reconhecidas, as contri-

buições. Sabemos que uma revista sobre Saúde Mental

não será consultada apenas por profissionais da área,

mas de toda a saúde pública.

a revista é iniciada com uma série de artigos de

natureza conceitual. aqui se incluem os artigos de

alice Hirdes, com uma leitura da reforma psiquiátrica

e da reabilitação psicossocial a partir do materialis-

mo dialético, de João leite Ferreira Neto, com uma

análise história de três momentos da psicologia em

Belo Horizonte, de Silvio Yasui e abilio Costa-rosa,

que discorrem sobre a estratégia e os desafios do novo

modelo de atenção psicossocial, de Walter oliveira

que aborda as bases conceituais da Saúde Mental

e sua relação com a formação dos profissionais no

contexto da promoção da saúde. o artigo de richard

Couto e Sonia alberti apresenta um histórico sobre

o conceito de reforma Psiquiátrica e a tensão entre

clínica e atenção psicossocial e, para finalizar a série,

uma importante revisão de estudos brasileiros sobre

Saúde Mental do trabalhador, de autoria de tatiana

ramminger.

a intervenção no campo da cultura tem assumido

um papel importante no processo da reforma Psiqui-

átrica brasileira e, por isso, um outro bloco de artigos

é dedicado à relação entre cultura e Saúde Mental.

o texto de ricardo aquino trata dos fundamentos e

princípios da Escola livre de artes Visuais do Museu

Bispo do rosário de arte Contemporânea. alexandre

ribeiro aborda as articulações entre Saúde Mental

e cultura e Myrna Coelho tece comentários sobre a

dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica a

partir das experiências vivenciadas na companhia

Experimental Mu...dança.

os Centros de atenção Psicossocial (caPs), dispo-

sitivos estratégicos da política pública de Saúde Mental

Page 8: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

aPrESENtaÇÃo6

brasileira, são objetos de pesquisa no artigo de renata

Quintas e Paulo amarante que discorrem sobre as

características inovadoras e substitutivas de tais dispo-

sitivos. o artigo de autoria de Milena leal Pacheco e

luiz Zielgman traz algumas reflexões sobre a terapia em

grupo em um caPs especializado em dependência quí-

mica; contemplamos, ainda, uma análise do tratamento

dos usuários de drogas no rio de Janeiro no texto de

Magda Vaissman et al.

outro tema importante diz respeito às relações e

possibilidades entre a área da Saúde Mental e a Saúde

da Família que, de formas distintas, está presente nas

abordagens dos artigos de Ionara rabelo e rosana

Carneiro tavares, através dos resultados de uma in-

tervenção psicossocial em mulheres que faziam uso de

ansiolíticos, e de Mariana dorsa Figueiredo e rosana

onocko Campos, que traz algumas observações acerca

do apoio matricial à Saúde Mental na atenção básica

à saúde.

a atenção aos usuários em crise é um dos aspectos

mais sérios e que coloca em xeque todo o processo da

reforma Psiquiátrica. três artigos são dedicados a esse

tema: o de Katita Jardim e Magda dimenstein, que traz

um análise das práticas do Serviço de atendimento Mó-

vel de Urgência (samu) em aracaju e suas articulações

com a rede de atenção psicossocial; o artigo de alexandre

Keusen e andréa da luz Carvalho relata a trajetória de

um centro de atenção em Saúde Mental que atende à

crise e se baseia na lógica do trabalho territorial. Serafim

Santos-Filho aborda a rica experiência de planejamento

e gestão da rede de serviços de saúde e Saúde Mental

em Belo Horizonte, indicando importantes caminhos

para os gestores.

Na seção de documentos Históricos, republicamos

uma das primeiras manifestações políticas do processo

de reforma Psiquiátrica no Brasil, um marco da pro-

dução crítica em Saúde Mental no país. trata-se de um

documento elaborado pelo Comissão de Saúde Mental

do cEbEs, intitulado condições de assistência ao doente

mental que, trazendo uma análise bastante precisa das

características de desassistência e violência institucional

do modelo psiquiátrico de então, foi apresentado no

I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos de-

putados em outubro de 1979. Nesse mesmo simpósio,

o cEbEs apresentou à sociedade brasileira a proposta

do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do histórico

texto A questão democrática na área da saúde. a capa da

presente edição traz uma das ilustrações desse texto.

temos uma pauta bastante ampla e variada, que

caracteriza a transdiciplinaridade e enorme dimensão

do campo da Saúde Mental.

Na seção de temas gerais, publicamos os artigos de

arlene laurenti ayala com uma instigante análise sobre a

crise de dominação ou controle das instituições de saúde

por parte dos trabalhadores de saúde e da população. o

texto de Sabira de alencar traz as reflexões do filósofo,

médico e epistemólogo François dagognet, o precursor,

a seu modo, da tradição de seu mestre georges Cangui-

lhem. Na seção internacional, Maurício torres analisa

em seu artigo os aspectos relacionados à estrutura, ao

financiamento e funcionamento do modelo de saúde

colombiano.

Boa leitura!

Paulo amaRantE

EditoR ciEntífico

Page 9: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

PRESENTATION 7

this magazine appears at a very special moment,

after all, the thirtieth anniversary of the Psychiatric

reform in Brazil is commemorated. to celebrate this

date, we have selected a strange cover: a picture of prison

cell bars of a psychiatric hospital. the purpose of this

provocative image is to delimit the historical distance,

ethics and politics between the initial moment, 1978

and 1979, and the current scenery of users’ participation

in the construction of Mental Health politics, services

and strategies.

In the beginning of this year, during celebrations

for the thirty years of the reform, the 2nd International

Forum about Collective Health, Mental Health and

Human rights took place in rio de Janeiro. More than

3 thousand people, militants in different fields of health

and human rights, have participated in this Forum,

debating and constructing a new scenery for Mental

Health in Brazil and around the world.

to end the year with a cherry on top, we have

released this issue, specially dedicated to the theme of

Mental Health, at the 1st Brazilian Congress of Mental

Health, organized by the recently created associação

Brasileira de Saúde Mental (abRasmE).

there is consensus in the collective health area

about the important contribution brought by the

Mental Health field for health in general, rendering

problematic to the relation institution-user and institu-

tionalization, accentuating the importance of health and

family involvement, as well as the importance of field

work. anyway, there many recognized contributions.

We know that a magazine about Mental Health will

not be consulted only by professionals of the field, but

by the whole public health.

the magazine starts with a series of articles of

conceptual nature. Here are included articles by alice

Hirdes, reading the psychiatric reform and the psycho-

social rehabilitation from dialectic materialism; by João

leite Ferreita Neto, with historical analysis of three

moments of psychology in Belo Horizonte; by Silvio

Yasui and abilio Costa-rosa, who discourse about the

strategies and challenges of the new model of psychoso-

cial attention; by Walter oliveira, who approaches the

conceptual basis of Mental Health and its relation to

the graduation of professionals in the context of pro-

moting health. the article by richard Couto and Sonia

alberti presents the history of the Psychiatric reform

concept and the tension between clinic and psychosocial

attention and, to end the series, an important review of

Brazilian studies about Mental Health of workers, by

tatiana ramminger.

the intervention in the culture field has been

assuming an important role in the process of the Bra-

zilian Psychiatric reform and, because of that, another

block of articles is dedicated to the relation between

culture and Mental Health. a text by ricardo aquino

about the fundamentals and principles of the Escola

livre de artes Visuais from the Museu Bispo do ro-

sário de arte Contemporânea is presented. alexandre

ribeiro approaches the articulations between Mental

Health and culture and Myrna Coelho comments on

the sociocultural dimension of the Psychiatric reform

from experiences seen in the dancing group companhia

Experimental Mu…dança.

the Psychosocial Care Centers (the so called caPs

in Brazil), strategic devices from the public policy of

Brazilian Mental Health, are objects of research in the

Page 10: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

PRESENTATION8

article by renata Quintas and Paulo amarante, who

discourse about the innovative and substitutive charac-

teristics of these institutions. the article by Milena leal

Pacheco and luiz Zielgman brings subjects to reflect

about group therapy at a caPs that is specialized in

chemical dependence; we also contemplate an analysis

of drug users` treatment in rio de Janeiro, in the text

by Magda Vaissman et al.

other important theme argues about the relations

and possibilities between the field of Mental Health and

Family Health that, in distinct ways, is present in the

analysis of articles by Ionara rabelo and rosana Carnei-

ro tavares, through results of a psychosocial intervention

in women who were on anxiolytics, and by Mariana

dorsa Figueiredo and rosana onocko Campos, that

brings some observations about matricial support to

Mental Health in the primary health care.

the attention to users in crisis is one of the most

serious aspects and jeopardizes the whole process of the

Psychiatric reform. three articles are dedicated to this

subject: the one by Katita Jardim and Magda dimens-

tein, which brings an analysis of practices of the Mobile

Urgency Service (the so called samu in Brazil) in aracaju

and its articulations with the net of psychosocial atten-

tion; the article by alexandre Keusen and andréa da luz

Carvalho narrates the trajectory of a Psychosocial Care

Center that attends to the crisis and is based on the logic

of territorial work. Serafim Santos-Filho approaches the

rich experience in planning and managing the net of

services of health and Mental Health in Belo Horizonte,

pointing out important directions for managers.

In the section of Historical documents, we have

republished one of the first political manifestations on

the process of Psychiatric reform in Brazil, a mark of

critical production on Mental Health in the country. It

is a document developed by the Mental Health Com-

mittee of cEbEs, entitled condições de assistência ao

doente mental, that, by bringing a very precise analysis

of the characteristics of unassistance and institutional

violence of the early psychiatric model, was presented

at the 1st Symposium of Health Policies in the deputy’s

in october, 1979. In this symposium, cEbEs presented

to the Brazilian society the proposal of the Unified

National Health System (the so called SUS in Brazil)

from the historical text A questão democrática na área da

saúde. the cover of the present edition has one of the

illustrations of this text.

the subjects are very broad and varied, which cha-

racterizes the transdisciplinarity and the huge dimension

of the Mental Health field.

In the general themes section, we have published

the articles by arlene laurenti ayala with a provoking

analysis about the domination crisis or the control of the

health institutions by the health workers and the popu-

lation. the text by Sabira de alencar brings reflections

of the philosopher, doctor and epistemologist François

dagognet, the predecessor, in his way, of the tradition

of his master georges Canguilhem. In the international

section, Maurício torres analyzes the aspects related to

the structure, financing and functioning of the Colom-

bian health model.

Enjoy your reading!

Paulo amaRantE

sciEntific EditoR

Page 11: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 9

reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial:

uma leitura a partir do materialismo dialéticoPsychiatric Reform and psychosocial rehabilitation:

an examination based on the dialectical materialism

RESUMO Este estudo traz uma reflexão teórica acerca da utilização do referencial

teórico metodológico do materialismo dialético como suporte para interpretação

e discussão do processo de Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial no

contexto brasileiro. Para tanto, utilizamos as leis da dialética e a dialética do

concreto como substrato teórico para analisar os movimentos que se desenvolveram

historicamente no campo da Saúde Mental e assim como na área da reabilitação

psicossocial.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental;

Desinstitucionalização; Marxismo.

ABSTRACT This paper is a theoretical reflection on the use of the methodological

theoretical reference of dialectical materialism as a basis to interpret and discuss

the process of Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation in Brazil. The

laws of dialectic and the dialectic of the concrete have been used as theoretical

support to the analysis of the movements that have taken place in the field of

mental health as well as in psychosocial rehabilitation.

KEYWORDS: Mental Health; Mental Health services; Deinstitutionalization;

Marxism.

alice Hirdes 1

1 Mestre em Enfermagem pela

Universidade Federal de Santa Catarina

(UFSC); docente de Saúde Mental

da Universidade luterana do Brasil

(UlbRa).

[email protected]

Page 12: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

10 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

I N T R O D U ç Ã O

Este artigo tem como objetivo realizar uma re-

flexão teórica sobre o tema da reforma Psiquiátrica

e da reabilitação psicossocial a partir do materialismo

dialético. recorreu-se a autores como lukács (1979),

Konder (1981), Kosik (1995) e lefebvre (1991), a fim

de se resgatarem os princípios e leis da dialética que

sustentam uma interpretação dos fenômenos com base

materialista. Para tais autores, nada que existe é eterno,

fixo, absoluto. toda vida humana é social e está sujeita

a transformações, ou seja, está historicamente condi-

cionada. o sujeito humano é essencialmente ativo e

interfere na realidade. Para a história sociológica (ou

sociologia histórica), os seres humanos não são apenas

objeto de investigação, mas sujeitos em relação ao pro-

cesso investigatório.

UMA BREVE VISÃO HISTÓRICA DO

MATERIALISMO DIALÉTICO

a lógica dialética, conforme Minayo (1998),

“introduz na compreensão da realidade o princípio

do conflito e da contradição como algo permanente

que explica a transformação” (p. 68). outra tese

fundamental da dialética é “o caráter total da exis-

tência humana e da ligação indissolúvel entre história

dos fatos econômicos e sociais e história das idéias”

(p. 69-70).

a partir do conceito de totalidade, que busca reter

a explicação do particular no geral e vice-versa, ocorre

o processo de pesquisa. o princípio metodológico da

totalidade significa:

compreender as diferenças numa unidade ou totalidade parcial; buscar a compreensão das conexões orgânicas, isto é, do modo de relacionamento entre as várias instâncias da realidade e o processo de constituição da totalidade parcial; entender, na totalidade parcial em análise, as determinações essenciais e as condições e efeitos de sua manifestação. (minayo, 1988, p. 70).

ao abordar a dialética da totalidade concreta, Kosik

(1995) dá ênfase à idéia de que esse não é um método

que pretende conhecer todos os aspectos da realidade, um

panorama total da realidade, mas é uma teoria da realidade

e do conhecimento que se tem dela como realidade. É

a partir do entendimento da realidade como concretude

possuidora de uma estrutura própria que se desenvolvem

concepções da realidade. dessas concepções decorrem

conclusões metodológicas que se convertem em princípios

epistemológicos para o estudo de temas da realidade ou

de práticas relativas à organização da vida humana e da

situação social. Kosik enfatiza que

a totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como totalidade concreta. (1995, p. 44).

Pontua, também, que totalidade não significa conhe-

cer todos os fatos, mas reconhecer a realidade como um

todo estruturado, dialético, no qual um fato ou conjunto

de fatos pode vir a ser racionalmente compreendido. o

conhecimento de fatos acumulados da realidade não sig-

nifica o conhecimento da realidade, assim como a reunião

de determinados fatos não constitui ainda a totalidade.

Se compreendidos como partes estruturais de um todo

dialético, os fatos são conhecimentos da realidade.

Konder (1981) também ressalta a característica

totalizante do conhecimento na dialética marxista. Essa

teoria decompõe o todo em partes para depois recompô-

lo e chegar à totalidade. Entretanto, o autor salienta que

tal totalidade não é simplesmente a soma das partes do

Page 13: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

11HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

todo. Por exemplo, em um trabalho de reabilitação de-

senvolvido por uma equipe interdisciplinar, ou transdis-

ciplinar, os conhecimentos se entrelaçam e os resultados

obtidos certamente serão mais ricos do que o trabalho

realizado por uma equipe multidisciplinar. Nesta última,

o trabalho é realizado em equipe, entretanto os saberes e

práticas são executados de forma isolada, estanque, cada

um com um papel fixo, pré-determinado. Isso que dizer

que o resultado dessa intervenção será um, ao passo que

a ocorrência simultânea de várias abordagens articuladas

entre si, será outra.

Este autor chama atenção para o fato de que a apro-

ximação da realidade não é a realidade, e que a realidade

é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem

dela. outra noção diz respeito à visão de conjunto da

realidade. Esta visão é sempre provisória, pois a reali-

dade não é estática, mas dinâmica e em está constante

transformação; não se pode pretender o esgotamento

da realidade de determinado contexto. ou seja, nunca

a realidade alcança uma forma definitiva, acabada.

a dialética, enquanto conceito grego da arte do

diálogo é utilizada cotidianamente pelos profissionais

de Saúde Mental nas negociações com os usuários e seus

familiares, assim como pela interlocução estabelecida

entre profissionais de equipes interdisciplinares. a dia-

lética enquanto conceito moderno do modo de pensar

as contradições da realidade e modo de compreender

a realidade em constante transformação nos remete

à busca constante de novas formas de abordagem da

complexidade dos transtornos mentais. Procura-se por

formas mais completas nas quais, através da construção

de novas possibilidades, o portador de sofrimento psí-

quico reencontre e reescreva a sua história.

Por outro lado, dialética, enquanto modo de pen-

sar as contradições da realidade, a história humana e a

transformação da sociedade, nos leva a uma permanente

inquietação, porque não se satisfaz com a aparência

das coisas, está sempre à procura de sua essência. Para

isso é necessário que sejam desveladas as partes, em um

constante caminho traçado do concreto ao abstrato

e vice-versa. Mas isso não significa, de modo algum,

deixar de lado a totalidade, a conexão e interligação dos

fenômenos do todo. a complexidade da dialética se dá

pela busca constante da superação, pela não-satisfação

com o já atingido, pela busca por formas mais elevadas

de apreensão da realidade e a explicitação que as contra-

dições da realidade e dos fenômenos encerram.

de acordo com lukács:

o conhecimento, que está em condições de apreender dialeticamente as ‘astúcias’ da evolução histórica, só é vá-lido e eficaz quando suas aquisições forem outros tantos expedientes para a ação prática, cujas experiências virão, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma força sempre nova. (1979, p. 237).

Entendo que o conhecimento deverá ser passível de

ser traduzido em uma prática; prática essa transforma-

dora e que, se entendida a partir do conceito marxista

de práxis – união da prática com a teoria – pode levar

à emancipação do ser humano. Nessa perspectiva, o

estudo de outras formas de tratamento e recuperação

de portadores de transtornos psíquicos emerge como

uma força que se empenha na busca de soluções mais

completas e complexas, visualizando a totalidade do

ser humano. Na perspectiva dialética, a transformação

das idéias acerca da realidade e a transformação dessa

realidade devem caminhar juntas.

de acordo com Kosik (1995) o homem não está

emparedado na subjetividade, mas tem com a sua

existência a capacidade de conhecer as coisas como elas

realmente são. E este conhecimento se dá através da

práxis. a dialética, para o autor, trata da “totalidade do

mundo revelada pelo homem na história e o homem

que existe na totalidade do mundo” (p. 248).

o princípio metodológico da investigação dialética

da realidade social é, para o autor anteriormente referido,

Page 14: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

12 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

o ponto de vista da totalidade concreta. Isso significa

que cada fenômeno pode ser compreendido como um

momento do todo. ressalta-se que um fenômeno social é

um fato histórico que desempenha dupla função: definir

a si mesmo e definir o todo, ser produtor e produto, ser

revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo, con-

quistar o próprio significado e conferir um sentido a algo

mais. Essa conexão das partes e do todo demonstra que

os fatos isolados são momentos artificiosamente separa-

dos do todo, os quais só adquirem verdade e concretude

quando inseridos no todo correspondente. assim como

o todo, se os momentos não forem separados tornam-se

um todo vazio e abstrato (KosiK, 1995).

Nas palavras de Konder (1981), para Hegel, filósofo

alemão e um dos expoentes do pensamento dialético, o

trabalho é a mola propulsora do desenvolvimento hu-

mano através da qual pode ser compreendida a atividade

criadora do ser. Hegel introduziu a concepção de supe-

ração dialética utilizando a palavra alemã aufheben, que

significa suspender. o filósofo emprega três diferentes

sentidos à palavra: o primeiro sentido é negar, anular,

cancelar; o segundo, erguer alguma coisa e mantê-la

suspensa; o terceiro, elevar a qualidade, promover a

passagem de alguma coisa para um plano superior. a su-

peração dialética, para Hegel, é a ocorrência simultânea

da negação de uma determinada realidade, a conservação

do essencial que existe na realidade negada e a elevação

dela a um nível superior (KondER, 1981).

abstraindo da concepção dialética a questão

negação-superação para o referencial de reabilitação

psicossocial, trago a negação da realidade assistencial

dos portadores de transtornos mentais centrado no

modelo do dano, nos déficits, assim como o resgate

e a centralização do foco nas habilidades e a busca do

trabalho para se atingirem os objetivos de reinserção

social, cidadania e qualidade de vida. ou seja, nega-se

a primeira realidade, a centralização do foco nos sinais

e sintomas; em suma, na doença resgata-se e centraliza-

se a atenção nos aspectos sadios e concomitantemente

busca-se melhorar a vida do ser humano portador de

transtornos psíquicos através de práticas de reabilitação

psicossocial.

aos novos serviços deverá corresponder uma clínica

renovada, com tratamentos diferenciados e, na qual

simultânea ou seqüencialmente, sejam desenvolvidos

projetos terapêuticos que contemplem as necessidades

psicossociais das pessoas envolvidas. Isto é o que poderá

efetivamente trazer uma pessoa a ser cidadã. Importante

se faz pontuar que os projetos não podem ser modelos

construídos a partir dos profissionais; devem ser cons-

truídos coletivamente com os maiores interessados: os

usuários.

PRINCIPAIS LEIS

Segundo Konder (1981), em virtude do pensamen-

to dialético de Hegel ser considerado abstrato, vago,

idealista, Marx e Engels reescreveram a dialética dentro

de uma perspectiva materialista. as três leis da dialética

formuladas por Engels com base em Hegel são: lei da

passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); lei

da unidade e luta dos contrários e lei da negação da

negação.

alguns autores contemporâneos como lefebvre

e Konder entendem que as leis da dialética não se

deixam reduzir a três. Esse reducionismo, na visão

de Konder (1981), é arbitrário, mas isso não significa

que as leis devem ser esquecidas, e sim utilizadas com

precaução. lefebvre (1991, p. 237) entende que as leis

do método dialético deverão ser universais e concre-

tas. Para este autor o método representa o universal

concreto. E estas leis deverão ser, ao mesmo tempo,

leis do real e do pensamento. deverão ser concretas

para atingir toda a realidade, mas não podem subs-

Page 15: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

13HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

tituir a investigação e o contato com o conteúdo.

através da investigação das realidades particulares,

da experiência e do contato com o conteúdo pode-se

chegar à essência, ao conceito e às relações das leis

particulares. o autor ressalta:

o método é alternadamente a expressão das leis uni-versais e o quadro de aplicação delas ao particular; ou, ainda, o meio, o instrumento que faz o singular subunir-se ao universal.(1991, p. 237).

as grandes leis do método dialético para lefebvre

são: lei da interação universal (da conexão, da media-

ção recíproca de tudo que existe); lei do movimento

universal; lei da unidade dos contrários; transformação

da quantidade em qualidade (lei dos saltos); lei do de-

senvolvimento em espiral (da superação).

a lei da interação universal prevê que nada é

isolado. o isolamento dos fatos e fenômenos significa

uma privação de sentido, de explicação, de conteúdo.

a pesquisa dialética considera cada fenômeno no

conjunto da inter-relação com os demais fenômenos

e, também, o conjunto da realidade na qual ele é

fenômeno.

Essa lei estabelece uma conexão importante dos

processos de institucionalização/ desinstitucionalização

e da discussão da reabilitação psicossocial. Sem o enten-

dimento anterior sobre a conformação do instituciona-

lismo em psiquiatria e dos saberes e práticas que durante

décadas legitimaram essa especialidade, não haverá o

entendimento ulterior da reabilitação psicossocial em

sua totalidade. a reabilitação psicossocial nasceu de

um conjunto de situações: a diminuição dos pacientes

internados em hospitais psiquiátricos a partir dos anos

1960, em todo o mundo; as demandas dos pacientes

ainda hospitalizados e a evolução dos conhecimentos

psiquiátricos (saRacEno, 1999). dessa forma, a rea-

bilitação psicossocial não pode ser tratada como um

fenômeno isolado.

E esta lei encontra-se atrelada à lei do movimento

universal, que reintegra o movimento interno dos fatos

e fenômenos e o movimento externo, que os envolve no

devir e vir-a-ser universal. a pesquisa dialética considera

cada fenômeno no conjunto de suas relações com os

demais fenômenos e com a realidade. Nessa lei, compre-

endemos a reintegração dos fenômenos – institucionali-

zação/desinstitucionalização/reabilitação psicossocial em

seu movimento próprio. através do movimento destes

fenômenos se estabelece o entendimento essencial e a

conexão entre eles.

a lei da unidade (interpretação) dos contrários nos

fornece a idéia de que a contradição dialética é uma

inclusão concreta dos contraditórios um no outro e,

simultaneamente, uma exclusão ativa. diferentemente

da lógica formal que conserva os dois contraditórios à

margem um do outro, que estabelece uma relação de

exclusão. a contradição dialética se situa no universal

concreto, enquanto a contradição formal permanece na

generalidade abstrata.

O método dialético busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera. (lEfEbvRE, 1991, p. 238).

Nessa lei, situo a institucionalização e a desins-

titucionalização em psiquiatria (intrinsecamente

contraditórias), como dois lados opostos um ao

outro, mas com uma unidade em comum: o foco na

abordagem da doença mental. Conforme o contexto,

prevalecerá um ou outro – a institucionalização ou

a desinstitucionalização. as idéias contidas em um

e em outro modelo entram em choque na realidade

concreta através das práticas executadas. a realidade

da desinstitucionalização não pode ser compreendida

sem o prévio entendimento da institucionalização,

assim como a conexão estabelecida com a reabilitação

psicossocial.

Page 16: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

14 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

as modificações quantitativas, lentas e graduais

desembocam em uma modificação qualitativa que apre-

senta características bruscas, tumultuosas, expressam a

crise e a metamorfose através da intensificação de todas

as contradições. É a transformação da quantidade em

qualidade, também chamada lei dos saltos. o salto

dialético implica, simultaneamente, a continuidade e a

descontinuidade. ou seja, o movimento que continua

e o aparecimento do novo.

trago, nesta lei, as mudanças ocorridas com o

processo de desinstitucionalização identificadas em

alguns lugares do mundo a partir da década de 1960 e

no Brasil mais tardiamente, após a redemocratização. as

transformações políticas, a redemocratização no país, a

Constituição de 1988, a luta pelos direitos humanos e

o Movimento pela reforma Sanitária desembocaram

em um movimento pela reforma Psiquiátrica no Bra-

sil. Neste movimento, pode-se observar que ocorreram

mudanças bruscas, o ‘salto’ dialético, através das de-

núncias expostas à opinião pública e o surgimento de

novas experiências em Saúde Mental, com características

desinstitucionalizantes. observa-se como característica

do salto dialético a continuidade, ou seja, o hospital

psiquiátrico como realidade ainda presente, os saberes

e práticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda

não superados; e a descontinuidade, que compreende

o aparecimento de novos serviços respaldados pelas

iniciativas das políticas públicas de Saúde Mental.

Uma característica da lei se refere ao fato de as coisas

não mudarem sempre no mesmo ritmo. transpondo

para a questão da reforma Psiquiátrica, foi possível

observar, nas últimas décadas, alguns períodos em que se

intensificaram as discussões e o surgimento de novos ser-

viços, assim como períodos em que houve uma desace-

leração do processo. Historicamente, podemos situar as

décadas de 1980 e 1990 como marcos significativos nas

discussões pela reestruturação da assistência psiquiátrica

no país. Em 1987, ocorreu a 1a Conferência Nacional de

Saúde Mental; em 1990, realizou-se a Conferência para

a reestruturação da atenção Psiquiátrica, em Caracas,

que resultou na Declaração de caracas. Finalmente, em

1992, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Saúde

Mental. Em seguida, houve uma lacuna no que se refere

às conferências e à legislação (porque os serviços conti-

nuaram sendo constituídos) até a aprovação, em abril

de 2001, da lei de reforma Psiquiátrica. Em 2001, Foi

estabelecido um novo fórum de discussões por meio da

3ª Conferência Nacional de Saúde Mental.

a lei do desenvolvimento em espiral defende que

há um salto dialético entre a vida e a matéria sem vida,

e não uma descontinuidade absoluta. Há uma unidade

sempre renovada entre o individual e o universal, que

submete esse individual às leis universais. É na sociedade

e no pensamento que se revela o movimento em espiral:

o retorno acima do esperado, para aprofundá-lo e elevá-

lo em nível, libertando-o de seus limites. É a contradição

dialética da negação da negação.

APLICAçÃO DO MATERIALISMO

DIALÉTICO NA REFORMA PSIQUIÁTRICA E

REABILITAçÃO

Considero esta lei fundamental para a compreensão

das mudanças e movimentos que o processo de reforma

Psiquiátrica encerra, pois ela contempla os refinamentos

conceituais produzidos. Cita-se como exemplo a dife-

renciação entre tratamento e reabilitação, o enfoque do

trabalho terapêutico sobre os aspectos da história de vida

das pessoas portadoras de sofrimento psíquico. No mo-

delo tradicional biomédico, centraliza-se no diagnóstico,

nos sinais e sintomas, nos déficits. através da modificação

da centralização do trabalho terapêutico, não no modelo

da doença, do dano, mas nos aspectos sadios das pessoas,

permitiu-se aprofundar a questão do sofrimento psíquico,

Page 17: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

15HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

e introduzir novos olhares e perspectivas, libertando o

usuário/paciente e o profissional desses limites. ocorre aí

um salto dialético e não uma descontinuidade absoluta, já

que o tratamento continua a ser realizado, mas associado

com técnicas de reabilitação psicossocial. a partir da

união tratamento-reabilitação psicossocial a compreensão

do indivíduo portador de transtorno psíquico torna-se

aprofundada e, dessa forma, realizam-se abordagens mais

completas. a lei da negação da negação promove refina-

mentos que são introduzidos aos poucos como estratégia

para se promover a superação dialética.

dentro de uma perspectiva mais ampla, de to-

talidade, considera-se de fundamental importância o

diagnóstico de vida de uma pessoa e o conseqüente

estabelecimento de um projeto terapêutico a partir do

contexto no qual se insere. Este projeto deve ser sufi-

cientemente flexível para que incorpore mudanças e dê

margem a possíveis redimensionamentos. ressalta-se

a necessidade de leitura do contexto dentro de uma

mudança de óptica: comumente, tal leitura é realizada

em cima dos déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar

as forças e os aspectos sadios constitui uma transição

importante no processo de tratamento e reabilitação,

assim como a noção de indissociabilidade de ambos.

lefebvre (1991) assinala que todas as leis dialéticas

constituem uma análise do movimento e no movimento

real estão implicadas a continuidade e a descontinui-

dade, o aparecimento e choque de contradições, saltos

qualitativos e superação. Encontram-se aí os aspectos

do movimento. as leis dialéticas pressupõem uma uni-

dade fundamental, que é encontrada no movimento,

no devir universal. o que ocorre, segundo o autor, é a

ênfase sobre uma ou outra lei, dependendo do tipo de

estudo realizado.

a partir desta constatação, utilizo como referência

para o processo analítico neste estudo a lei do desenvolvi-

mento em espiral, representado pela negação – superação

dialética. Muitos avanços ocorreram com as experiências

de desinstitucionalização. Entretanto, penso que, a des-

peito de muitos serviços que trabalham sob a égide da

reforma Psiquiátrica em nosso país, há a necessidade de

constantemente redimensionarmos o olhar para as práticas

em curso para que aos novos serviços correspondam as

balizas propostas; nesse caso, particularmente, o referencial

da reforma Psiquiátrica italiana. Sabe-se que os projetos

de reforma não são homogêneos, pois as práticas são exe-

cutadas conforme a concepção teórica dos profissionais

da área. dessa forma, é possível visualizar a existência de

princípios orientadores gerais, mas que em última análise

estão subordinados aos settings específicos das práticas.

através da negação da negação, ou seja, a negação de uma

determinada realidade centrada na exclusão (na doença)

para se afirmar outra realidade, focada nos aspectos sadios,

na identidade e cidadania dos portadores de sofrimento

psíquico, deverá prevalecer a superação dialética.

os serviços se constituem, para Saraceno (1999),

como a variável que influi no processo reabilitativo.

o autor assinala como característica de um serviço de

alta qualidade a capacidade do serviço em se ocupar de

todos os pacientes e a todos oferecer possibilidades de

reabilitação. Saraceno pontua, ainda, que os serviços

que não oferecem essas possibilidades acabam gerando

hierarquias de intervenção, e os menos dotados são

excluídos do processo. o autor ressalta que um serviço

de alta qualidade deverá ser permeável e dinâmico, com

alta integração interna e externa:

[...] um serviço onde a permeabilidade dos saberes e dos recursos prevalece sobre a separação dos mesmos e em que a organização está orientada às necessidades do paciente e não às do serviço.(1999, p. 96-97).

a integração interna e externa também deverá

acontecer nos movimentos que perpassam o tratamen-

to e a reabilitação psicossocial. Essa integração se fará

possível e concreta se os profissionais visualizarem a

importância da não-dissociação e assumirem ambos,

Page 18: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

16 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

o tratamento e a reabilitação. a idéia contida nessa

proposta enfrenta um embate que se estabelece muitas

vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é execu-

tado por uns e a reabilitação, por outros. ou seja, há

a necessidade de não-separação do trabalho manual do

intelectual reproduzido dentro dos serviços para que

haja a superação dialética.

Saraceno (1999) alerta que, na integração interna

de um bom serviço devem ser contempladas estratégias

organizativas e afetivas. a permeabilidade dos recursos

e dos saberes deve superar a sua separação. Compreen-

demos que esse patamar deveria se constituir no ideal

a ser alcançado pelos serviços. os movimentos nos ser-

viços, quando encaminhados às questões organizativas

e afetivas concomitantemente, conduzirão à superação

dialética. da mesma forma, quando os conflitos e

contradições forem dialeticamente trabalhados, e não

ocultados, será promovida a descontinuidade; o apa-

recimento do novo e a explicitação das contradições

conduzirá a saltos qualitativos que processarão mudanças

reais nos serviços.

Saraceno, asioli e tognoni (1997) destacam a

atitude de integração da equipe como uma das muitas

variáveis que determinam a enfermidade e a eficácia da

intervenção. tais variáveis, relacionadas à organização e

ao estilo de trabalho da equipe, podem ser favoráveis ou

desfavoráveis. os autores conceituam uma equipe inte-

grada com variável favorável e que deve ter as seguintes

características: distribuição do poder; importância dos

conhecimentos; comunicação clara e não-contraditória;

discussão e planificação do trabalho; socialização dos

conhecimentos; autocrítica e avaliação periódica dos

resultados. Entre os fatores que colcoam obstáculos

à integração interna, os autores apontam a separação

prática entre os diferentes papéis profissionais, os dife-

rentes níveis de capacitação e de aspectos culturais dos

papéis profissionais e os conflitos ou frustrações entre

os membros da equipe.

acrescentam-se aqui as inquietações que Basaglia

(1985) já enfatizava: não é a redefinição da instituição

em termos estruturais, através de novos esquemas,

que garantirá ações terapêuticas, mas as relações

que se estabelecerão dentro das novas organizações

assistenciais. os novos serviços deverão atentar para

as possíveis (e concretas) contradições que podem se

configurar no seu interior. Uma dessas contradições

se refere ao discurso sobre a prática muitas vezes não

ser condizente com a prática desenvolvida. Basaglia

postula que as contradições do real deverão ser

dialeticamente vividas. É importante ressaltar que,

nessa tentativa de criação de um mundo ideal, se as

contradições não forem ignoradas ou postergadas,

mas enfrentadas dialeticamente, a comunidade se

tornará terapêutica. Para isso, devem existir alterna-

tivas, possibilidades.

CONSIDERAçÕES FINAIS

resgato a lei da dialética, defensora de que a nega-

ção é a força motriz do progresso. Negação essa, enten-

dida como a negação de uma determinada realidade e

a força, como aquela que se empenha na construção de

outra realidade mais rica e completa. Essa lei poderá ser

empregada no campo da Saúde Mental, mais especifi-

camente na área da reabilitação psicossocial. resgata-se,

neste processo, toda a potencialidade para a produção

de vida significativa ao ser humano. Nesse momento

ocorre um salto qualitativo significativo, através de

uma práxis transformadora que vislumbra todas as

possibilidades que se descortinam frente ao cuidado à

pessoa portadora de transtorno psíquico. Isso permite

alcançar refinamentos conceituais que, em última análi-

se, proporcionarão um olhar crítico em relação à práxis

da reforma Psiquiátrica.

Page 19: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

17HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

o foco do trabalho terapêutico sobre a escuta, a

validação da identidade dos usuários, bem como a abor-

dagem aos pontos positivos, introduzem refinamentos

conceituais que se traduzem uma filosofia dos novos

serviços pautada na égide da reforma Psiquiátrica. Esses

diferenciais que contornam as ações introduzem saltos

qualitativos que se inserem na vida cotidiana das pesso-

as. a superação dialética é alcançada no momento em

que são reunidos, no mesmo sujeito histórico, aspectos

subjetivos e objetivos oriundos das demandas singulares

de cada pessoa.

Enquanto as práticas tradicionais objetalizavam o

doente (e o seu corpo), hoje rompe-se uma nova aurora,

na qual a subjetividade é reintegrada com o corpo social

dos portadores de sofrimento psíquico. Essa tomada

de consciência sobre a importância dessas intervenções

produz movimentos de superação da objetalização a que

foi submetido o doente e, também, a reconstrução de

um corpo físico, subjetivo e social.

R E F E R Ê N C I A S

basaglia, F. (org.). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. rio de Janeiro: graal, 1985.

KondER, l. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Coleção Primeiros Passos).

KosiK, K. Dialética do concreto. 6. ed. rio de Janeiro: Paz e terra, 1995.

lEfEbvRE, H. Lógica formal/lógica dialética. 5. ed. rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

luKács, g. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

minayo, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/rio de Janeiro: Hucitec/abRasco, 1998.

saRacEno, B.; asioli, F.; tognoni, g. Manual de saúde mental. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

saRacEno, B. Libertando identidades: da reabilitação psi-cossocial à cidadania possível. rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/te Corá, 1999.

recebido: abr./2008

aprovado: nov./2008

Page 20: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE18

Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma históriaPsychology and Mental Health: three moments of a history

RESUMO Neste artigo são apresentados e analisados três momentos da trajetória

dos psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do campo da Saúde

Mental, no município de Belo Horizonte, Minas gerais. O primeiro é aqui

chamado de implantação, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio

matricial. Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área.

conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação

clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde

Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a

ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente

prática matricial.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial;

Apoio matricial; Psicoterapia de grupo.

ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists

trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field

of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas gerais, Brazil. The first

moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third,

matrix support. This paper is examines a literature review and documents of

the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical

training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental

Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis

in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand,

enables the professional to work with present-day practice in matrix support.

KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix

support; Psychotherapy, group.

João lei te Ferre i ra Neto 1

1 Professor do Programa de Pós-

graduação em Psicologia da Pontifícia

Universidade Católica de Minas gerais

(PUC Minas); doutor em psicologia da

PUC São Paulo.

[email protected]

Page 21: Saude Em Debate_n75

19

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

I N T R O D U ç Ã O

Quando a psicologia foi reconhecida como profis-

são em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote-

rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório,

a organizacional e a educacional. a saúde pública ainda

não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos

essa situação mudou drasticamente.

Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Ca-

dastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)

contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de

Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos

profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psi-

cologia (sPinK, 2007). diversos estudos apontam que a

crescente presença dos psicólogos na saúde pública no

Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátri-

ca e com a criação do campo chamado de Saúde Mental

(dimEnstEin, 1998; fERREiRa nEto, 2004).

o objetivo deste artigo é a apresentação de al-

guns elementos da história da entrada e do percurso

dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde

Mental, no município de Belo Horizonte, Minas

gerais. as fontes bibliográficas e documentais pesqui-

sadas indicam que a construção desse percurso nesse

município ocorreu em três momentos, marcados por

características próprias, em que a noção de Saúde

Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas

diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua

integração no contexto do SUS. Na década de 1980,

ocorreu o primeiro período chamado de implantação,

seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial,

respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa

análise histórica abordará com maior atenção a pre-

sença de duas polaridades que atravessam este campo.

a polaridade entre abordagens individuais e coletivas,

e a composta pela especificidade da Saúde Mental e

da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo

da saúde geral e reforma sanitária. além da necessá-

ria revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de

dados será um conjunto de documentos produzidos

no decorrer da história mineira e da nacional.

MOMENTO ‘IMPLANTAçÃO’ – ANOS 1980

o Programa de Saúde Mental foi oficialmente

implantado em Minas gerais, na região Metropolitana

de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do go-

vernador tancredo Neves pelo Partido do Movimento

democrático Brasileiro (PMdB). Nesse período, um

número expressivo de profissionais de saúde com perfil

progressista ocupou postos importantes na Secretaria de

Estado de Saúde. É importante lembrar que o período

de abertura democrática no país consolidou uma

[...] tática desenvolvida inicialmente no seio do mo-vimento sanitário, de ocupação de espaços públicos de poder e de tomada de decisão como forma de in-troduzir mudanças no sistema de saúde. (amaRantE, 1998, p. 91).

a chamada Nova república tornou-se o apogeu

dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário,

juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu

com o próprio Estado.

os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa

Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI

Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração

entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados

atendendo em centros de saúde sem ligação com um

projeto ou programa que organizasse ações em Saúde

Mental.

Page 22: Saude Em Debate_n75

20

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

a proposta do Pisam parte da avaliação de uma

prevalência de transtornos mentais de 18% e uma

demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem

ações de prevenção primária, integração da Saúde

Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de

leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais

não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção

primária era considerada eficaz a realização de “grupos

operativos de gestantes, mães, professores e o atendi-

mento a crises” (mEndonça filho; alKimin, 1998, p.

25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser

conduzido por psicólogos.

Quanto ao atendimento clínico individual, os

pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos

graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma

franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os

psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico-

logia. o Pisam teve curta duração devido, entre outras

causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos

privados (mEndonça filho; alKimin, 1998).

Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde

1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros

de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro

de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram

as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em

centros de saúde no município. a atuação na época era

voltada para a demanda infantil, para a participação em

outros programas em andamento nas unidades (pueri-

cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação

junto a instituições comunitárias. Existe uma indicação

no documento pela priorização do trabalho em grupos,

“por permitir uma melhor resposta a demanda” (sEcRE-

taRia municiPal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita

ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar,

eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma,

a expressão Saúde Mental era tomada de um modo

genérico, sem relação com as propostas da reforma

psiquiátrica.

Nos antecedentes à oficialização do Programa

de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada

e genérica do que poderia ser definido como Saúde

Mental na rede pública. algumas vezes, era entendida

como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o

doente grave, como as ações preventivas e a participação

nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo,

mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda

pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra.

Já no Programa de ações da Saúde Mental da re-

gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do

programa na região metropolitana de Belo Horizonte,

Minas gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo-

ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas

em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços

de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria

com algumas prefeituras. as equipes são estabelecidas

como referência secundária, ou seja, como atendimento

especializado. a princípio, o Programa de Saúde Men-

tal buscava formular, de modo ainda primário, uma

concepção integral de saúde – o famoso trinômio do

bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde

Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio),

psicólogo (psico) e assistente social (social). a falta de

experiência para uma formulação mais sofisticada do

que seria um trabalho em equipe multiprofissional e

interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter-

nativa mais óbvia.

o documento retoma o histórico anterior do Pisam

e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com

muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob-

jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental.

Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à

demanda específica (doença mental), apoio aos demais

programas dos centros de saúde integrando a Saúde

Mental no contexto global da saúde, apoio técnico

ao nível primário, articulação com os recursos das

comunidades (escolas, creches, hospitais e associações

Page 23: Saude Em Debate_n75

21

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica

do programa. apenas no primeiro eixo é mencionada a

necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final-

mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de

‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido

de evitar ‘internações desnecessárias’ (sEcREtaRia dE

Estado dE saúdE, 1985, p. 8). ainda não se falava em

substituição do modelo hospitalar.

a ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten-

dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma

de abordagem das questões de Saúde Mental” (sEcRE-

taRia dE Estado dE saúdE, 1985, p. 7). aponta ainda

que a intervenção em grupos é um trabalho que exige

constante discussão e aprofundamento por parte dos

profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por

avaliação de seus impactos.

a partir desse período os psicólogos continuam

envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos

serviços, mas também começam a receber a clientela

prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes

com transtornos graves e persistentes. Como notificado

no documento, a formação em serviço por meio de su-

pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais

constante. além disso, inicia-se o curso de Especializa-

ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos

de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede,

oferecido pela Escola de Saúde de Minas gerais (Esmig),

com forte acento na prática clínica de base psicanalítica

lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente

ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se

tornará Escola Brasileira de Psicanálise.

Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por-

tador de algumas características. anterior à implantação

oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais

de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse

campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra-

mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na

atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do

Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra-

ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio

da psiquiatria. Somente quando Programa de ações é

implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar,

e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a

atuação dos psicólogos aos pacientes graves.

Nesse momento, é marcante a preocupação da

integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde

e a participação de seus profissionais em ações cole-

tivas com outros profissionais do serviço. as práticas

de grupo se constituem numa importante diretriz de

trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais

agentes. além disso, é preconizado o apoio técnico ao

nível primário, estratégia que somente se consolidará

no terceiro momento de ‘apoio matricial’.

MOMENTO ‘ANTIMANICOMIAL’ – ANOS 1990

a passagem entre os dois primeiros momentos

analisados está atravessada por alguns importantes

eventos. o primeiro deles, no ano de 1987, foi o II

Encontro Nacional dos trabalhadores em Saúde Mental

em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por

uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de

maio como o dia Nacional da luta antimanicomial. os

psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores

presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando

com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela-

borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar

a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do

movimento em relação ao Estado. as diretrizes apon-

tavam para um caminho de alargamento das fronteiras

da luta para uma ação no interior da própria cultura,

trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano

da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade

puramente assistencial e criava pontes entre as ações no

Page 24: Saude Em Debate_n75

22

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu,

desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou

da desconstrução/invenção” (amaRantE, 1998, p. 93),

induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista

e sua tática de ocupação da máquina estatal. desde essa

nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade

civil e os movimentos populares e com as associações de

usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa

e da opinião pública.

através do segundo evento, em 1989, a reforma

psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter-

venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos

na Casa de Saúde anchieta e a seqüente criação de dis-

positivos antimanicomiais na cidade, numa gestão que

inspirou várias experiências posteriormente conduzidas

por todo o país (amaRantE, 1998, p. 83).

Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação

ao Congresso do Projeto de lei 3.657/89 visando re-

gulamentar o processo de reestruturação da atenção à

Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal

Paulo delgado (Partido dos trabalhadores de Minas

gerais, Pt/Mg).

Em Belo Horizonte, somente durante a gestão

municipal do prefeito Patrus ananias, do Pt (1993

a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSa)

de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para

priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos

pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos

profissionais ficassem comprometidas e congestionadas

com a inesgotável demanda espontânea ou encaminha-

da de crianças com dificuldade escolar, pacientes com

quadros de ansiedade, aqueles pertencentes à ‘clientela

cativa’ dos centros de saúde. Nessa gestão, foi nomeado

para a Smsa o psiquiatra César Campos, engajado, já

de longa data, com os movimentos de luta contra o

aparato asilar. Iniciou-se a construção de dispositivos

substitutivos ao hospital, os centros de convivência e os

centros de referência em Saúde Mental (CERsam, versão

mineira dos Centros de atenção Psicossocial – caPs).

Um importante documento que avalia esse período

foi publicado numa coletânea organizada por técnicos

da saúde, com a assessoria do professor Emerson Merhy,

sobre a gestão da saúde. o capítulo que nos interessa

é assinado pela coordenadora do Fórum Mineiro de

Saúde Mental e pela coordenadora da Saúde Mental

da Smsa (lobosquE; abou-yd, 1998). Nesse docu-

mento, intitulado A cidade e a loucura – entrelaces, o

projeto de Saúde Mental é apresentado em uma versão

marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva

“a extinção do hospital psiquiátrico” e sua substituição

por outro modelo de atenção (p. 244).

o texto, que possui uma função de relatório da

gestão, possui um marcado tom político de ruptura

comparado ao de anteriormente. Essa ruptura é afirmada

em pelo menos quatro aspectos. o primeiro deles, de

cunho mais ideológico e organizacional, era a postulação

de uma incompatibilidade com certa vertente do movi-

mento sanitário com seu acento nos cuidados primários,

em detrimento do tratamento das doenças. Segundo as

autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritário,

é estabelecida uma divisão indesejada

[...] nos hospícios, os loucos; nos centros de saúde, os pequenos desviantes – crianças ditas problemáticas, mulheres ditas deprimidas – e as práticas preventivistas em geral. (1998, p. 245).

o projeto propõe o abandono do modelo america-

no de psiquiatria comunitária, adotado anteriormente

pelo Programa da região Metropolitana de 1985, com

seus níveis primário (rede básica), secundário (serviços

especializados) e terciário (hospital), pois valida a perma-

nência do hospital no topo do modelo assistencial. Por

isso, afirma que os cERsam “não se caracterizam como

serviços intermediários ou secundários” (p. 252), mas

Page 25: Saude Em Debate_n75

23

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

compõem uma rede de assistência que visa substituir

os hospitais psiquiátricos, sem hierarquizar os níveis

de atenção.

o segundo tem componentes de gestão de pessoal,

uma vez que a coordenação encontrou certa “oposição

por parte de profissionais de Saúde Mental”, os quais

se mostravam resistentes “a assumir as novas diretrizes

do trabalho” (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 253). a

proposta aponta uma mudança de foco da atenção das

“crianças robustas e gestantes saudáveis”, consideradas

clientela majoritária das unidades básicas, para os

psicóticos e neuróticos graves, que passam a ser quali-

ficados como “prioridades assistenciais” (p. 247). Isso

acarretou, por parte da gestão, uma ação de desestímulo

ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem

como a presença em grupos de outros programas, como

aqueles voltados para “gestantes ou diabéticos” (p. 246).

o tom depreciativo de avaliação do trabalho em grupos

e da participação em outros programas de promoção da

saúde, questionável, deve ser entendido a partir desse

contexto de uma gestão que se compromete com a

direção antimanicomial da Saúde Mental. No presente

momento o debate se faz no esforço de evitar a dissocia-

ção entre ações clínicas e de promoção de saúde.

o terceiro aspecto, de caráter político-adminis-

trativo, configurou-se como passo fundamental para

garantir a reorganização da assistência a partir das di-

retrizes antimanicomiais: a nova relação da SMSa com

os hospitais psiquiátricos. Isso envolveu a gestão dos

hospitais privados conveniados por parte da Secretaria.

Nesse sentido, foram realizadas várias ações visando efe-

tivar a desmontagem do aparato manicomial: supervisão

hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados

ao SUS, proibição de novas internações fora dos dois

hospitais públicos, disponibilização de todos os leitos

hospitalares privados conveniados na central de inter-

nação municipal. Uma das medidas mais eficazes para

a organização da nova rede de assistência em Saúde

Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente,

antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta,

via distrito Sanitário, com um profissional de Saúde

Mental no centro de saúde mais próximo de sua casa. a

organização desse fluxo impediu que os pacientes em alta

ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein-

ternados após nova crise. garantiu também a chegada

dos egressos nas unidades básicas de saúde, rompendo o

circuito: alta, residência, crise e nova internação.

Pacientes e familiares passaram a conhecer uma

nova possibilidade de atenção profissional, próxima de

suas casas. decorridos alguns anos após esse conjunto

de ações, é possível deduzir que para romper com o cir-

cuito hospitalar não é suficiente somente a implantação

de equipes nas unidades, é necessário uma política de

organização do fluxo da demanda. Caso contrário, os

profissionais permaneceriam com sua atividade drenada

com a clientela cativa do serviço, sem que os egressos se

tornassem parte de sua clientela habitual.

o quarto aspecto, de caráter ético e técnico, diz

respeito à concepção de clínica que subsidia um projeto

antimanicomial. de um lado, existe o destaque à psica-

nálise: “sem a psicanálise, [...] sem a referência que nos

inspira, nossas práticas de pensamento e de trabalho não

seriam o que são” (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 249).

as autoras reconhecem que a psicanálise usualmente não

está presente em momentos políticos incisivos, sendo,

portanto esta uma rara articulação. ainda é necessário

se fazer uma análise mais acurada dos limites e dificul-

dades oriundos da hegemonia da psicanálise no campo

da Saúde Mental (fERREiRa nEto, 2008).

de qualquer modo, a contribuição da psicanálise,

isoladamente, não é suficiente para se pensar sobre

a atuação na saúde pública. Permanece a dificuldade

presente no despreparo para conduzir uma clínica

sem setting definido. É necessário, então, desfazer sua

colagem com a clínica de consultório, uma vez que os

espaços da primeira são múltiplos, ou seja, abordagem

Page 26: Saude Em Debate_n75

24

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc.

Isso não se apresenta como tarefa simples, uma vez que

a formação prevalente ainda atende a esse modelo. as

autoras reconhecem que os profissionais não receberam

anteriormente este tipo de formação e perguntam:

“quem a recebe, aliás?!” (p. 263).

o texto relata também duas importantes ações

extraclínicas desenvolvidas pela Saúde Mental junto à

demanda infantil. a primeira foi a criação de fóruns

regionais de atenção à Saúde Mental da Criança e do

adolescente, envolvendo variados segmentos, tais como

os técnicos de Saúde Mental e da educação, membros de

Conselhos tutelares e de outras instâncias comunitárias,

com o objetivo de criar espaços de diálogo e busca de

soluções na atenção à infância tanto individual quanto

coletivamente. a ação dos psicólogos nesse processo foi

de suma relevância. o segundo foi o Projeto arte na

Saúde, como postura clínico-política de não psicologizar

as dificuldades infantis, utilizando espaços comunitários

com monitores da própria comunidade, desenvolvendo

atividades com crianças, idealizado por uma psicóloga

de unidade básica.

Vemos, portanto, nesse segundo momento, a psi-

cologia comparecer com suas fraquezas e virtudes. No

âmbito da ação clínica junto ao paciente com transtor-

nos graves e persistentes, havia muito que aprender, o

que ocorreu processualmente e não sem dificuldades

e resistências. No âmbito das ações extra-clínicas, a

trajetória da psicologia junto às crianças, adolescentes e

até mesmo junto ao diálogo interinstitucional agregou

contribuições importantes ao projeto.

MOMENTO ‘APOIO MATRICIAL’ – ANOS 2000

o Programa de Saúde da Família (PSF) é a principal

estratégia para reorientação do modelo assistencial de

atenção à saúde (bRasil, 2004a). É um movimento de

reorientação do modelo assistencial, operacionalizado

mediante a implantação de equipes multiprofissionais

em unidades básicas de saúde, tendo vínculo formal

com uma parcela da população adscrita. Foi formulado

pelo Ministério da Saúde em 1994, mas começou a ser

implantado, em Belo Horizonte, em 2002 com o nome

de BH – Vida.

o documento municipal a ser analisado, datado

de 2 de julho de 2003, foi intitulado Saúde Mental

na assistência básica (sEcREtaRia municiPal da saúdE,

2003), e visava estabelecer parâmetros para as relações

entre o projeto de Saúde Mental e o BH–Vida. Seu

contorno busca atender à função de ‘apoio matricial’

preconizada pelo Ministério da Saúde (bRasil, 2004B).

Seu diferencial em relação a outros documentos é sua

redação conjunta entre a coordenação de Saúde Mental e

as gerências de atenção à Saúde, ainda que a linguagem

e o ideário que ele apresenta tenham clara ligação com

a Saúde Mental.

o documento aponta para o desenvolvimento de

ações “que vão da assistência e da clínica às dimensões

relativas à reabilitação/reinserção no mundo do trabalho,

da cultura, da reprodução social ampla” (p. 2). discute

também a importância do atendimento na crise, even-

to que alimenta o sistema manicomial sem a busca

apressada da internação. Finalmente, indica o traba-

lho em equipe como instrumento para superação do

paradigma médico, “alargando competências comuns,

desmontando e reorganizando poderes e saberes esta-

belecidos” (p. 3).

No âmbito da integração das Equipes de Saúde

Mental (ESM) com as Equipes de Saúde da Família

(ESF), o documento preconiza que as primeiras

[...] priorizarão o atendimento aos portadores de sofrimento mental grave e persistente e as ESF se responsabilizarão pelas necessidades clínicas desta clientela. (p. 4).

Page 27: Saude Em Debate_n75

25

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

as ESM continuariam acolhendo outras demandas

mais leves, mas estas seriam atendidas pelas ESF com

apoio das ESM. os usuários e familiares devem par-

ticipar da formulação dos projetos terapêuticos, e do

controle e planejamento das ações de Saúde Mental. as

ações de apoio matricial devem realizar a

[...] discussão conjunta dos casos entre ESM/ESF, como forma de intercambiar cotidianamente, no trabalho concreto, saberes e competências, bem como, progres-sivamente, ir delimitando a clientela. (p. 5).

Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde aprovou

a portaria 154, que cria os Núcleos de apoio à Saúde da

Família (Nasf), fortalecendo as ações de apoio matricial,

através da criação de núcleos multiprofissionais, numa

composição escolhida entre 13 opções profissionais, com

ênfase nas ações de planejamento, educação continuada,

promoção da saúde e atendimento de casos. No caso da

Saúde Mental deve-se priorizar as abordagens coletivas.

recomenda também a presença de pelo menos um pro-

fissional de Saúde Mental em cada Nasf (diáRio oficial

da união, 2008, p. 39). Na portaria são considerados

profissionais de Saúde Mental: psicólogos, psiquiatras e te-

rapeutas ocupacionais (e não mais os assistentes sociais).

Esse apoio matricial ainda dá seus primeiros passos,

sendo que avaliar seu real impacto necessitará de um

tempo maior. Inicialmente nota-se uma preocupação

muito centrada na diminuição e qualificação da demanda

para a Saúde Mental (siRimim, 2007). Contudo, podemos

esperar que a aproximação no trabalho cotidiano entre as

Esm e as Esf, terá vários outros desdobramentos.

CONSIDERAçÕES FINAIS

refletir a partir de estudos históricos com enfoques e

recortes variados sobre trajetória da Saúde Mental é uma

maneira de evitar dissolver acontecimentos singulares em uma

suposta “continuidade ideal” teleológica (foucault, 1979, p.

28). também cerceia a tentação sempre presente da produção

de uma versão oficial da ‘história’ que, em geral representa

uma mitologia construída por um grupo hegemônico.

o recorte histórico aqui apresentado, que tem por

eixo a atuação do psicólogo, possui várias hipóteses de

interpretação. Uma delas é que as direções previstas em

1984 na implantação do programa, o ideário de inte-

gração na saúde geral de prática de apoio às equipes de

saúde e da valorização das práticas grupais, retorna com

vigor no apoio matricial. Podemos deduzir também que a

ação antimanicomial, que num primeiro momento opôs

a ação clínica às práticas grupais, se configurou como um

momento essencial para garantia do projeto de atenção

ao paciente grave. o antagonismo ‘clínica versus promo-

ção’ foi estrategicamente necessário para permitir uma

conjunção de esforços dos profissionais de Saúde Mental

na rede, sempre escassos frente à demanda de trabalho.

Contudo, com a consolidação da assistência ao paciente

grave, é possível pensarmos em fazer uma agenda de

integração em que ações de promoção caminhem juntas

com ações clinicas nas práticas de apoio matricial. a Saúde

Mental é um projeto sempre em movimento, composto

por diferentes atores sociais, que em diferentes momentos,

têm contribuído para sua contínua reinvenção.

No caso do psicólogo, encontramos inicialmente as

deficiências de uma formação clínica baseada num modelo

liberal-privado de consultório, o que não o preparava para

a opção prioritária do programa. Sua formação se deu,

portanto, em serviço, através das práticas de atendimento

aliada às supervisões. Sua entrada no SUS transformou

sua concepção de clínica e introduziu novas perspectivas

de clínica ampliada (fERREiRa nEto, 2008).

Mais recentemente, a ênfase presente em sua for-

mação para práticas grupais e intervenções psicossociais

pode capacitá-lo de modo diferencial para a presente

prática de apoio matricial.

Page 28: Saude Em Debate_n75

26

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

R E F E R Ê N C I A S

amaRantE, P. (org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. rio de Janeiro: Fiocruz, 1988.

bRasil. Ministério da Saúde. Atenção básica e a Saúde da Família. 2004a. disponível em: <http://dtr2004.saude.gov.br/dab/atencaobasica.php>. acesso em: 20 fev. 2006.

______. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. 2004B. disponível em: <http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/SM_Sus.pdf>. acesso em 20 fev. 2006.

diáRio oficial da união. N. 43, 4/03, 2008, p. 38-42.

dimEnstEin, M.d.B. o psicólogo nas unidades básicas de saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estu-dos de Psicologia, Natal, v. 3, n. 1, p. 53-81, jan./jun. 1998.

fERREiRa nEto, J.l. Práticas transversalidadas da clínica em saúde mental. Psicologia: reflexão e crítica, v. 21, n. 1, 2008.

______. A formação do psicólogo: clínica, social e mer-cado. São Paulo: Escuta, 2004.

foucault, m. Microfísica do poder. tradução roberto Machado. rio de Janeiro: graal, 1979.

lobosquE a. m.; abou-yd, m. a cidade e a loucura: entrelaces. In: afonso r., santos, a.; malta, d.; camPos, C.; mERhy, E. (org.) Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público. São Paulo, Xamã, 1998. p. 243-264.

mEndonça filho, J.b.; alKimin, W. A saúde mental no município de Belo Horizonte: prática em saúde mental nos centros de saúde. 1998. (Mimeo)

sEcREtaRia dE Estado dE saúdE dE minas gERais. Pro-grama de Ações em Saúde Mental. região Metropolitana de Belo Horizonte, 1985. (Mimeo)

sEcREtaRia municiPal dE saúdE. Jornal Sirimim. Belo Horizonte, ano VI, n. 2, mai./ago., 2007. (Mimeo)

sEcREtaRia municiPal dE saúdE dE bElo hoRizontE. Relatório de atividades de saúde mental em centros de saúde da SMSA. 14 dez. 1984. (Mimeo)

______. Saúde mental na assistência básica. grupo de trabalho geas/integração Saúde Mental e Saúde da Família, 2003. (Mimeo)

sPinK, M.J. A psicologia em diálogo com o SUS: prática profissional e produção acadêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

recebido: abr./2008

aprovado: out./2008

Page 29: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 27

a Estratégia atenção Psicossocial: desafio na prática dos

novos dispositivos de Saúde MentalEaps: challenge in the practice of the new devices of Mental Health

RESUMO O processo social complexo da Reforma Psiquiátrica, concretizado

como Política de Saúde Mental, nas últimas décadas tem levado a uma

profunda transformação na prática dos cuidados em Saúde Mental. Isso conduz

a mudanças no modelo técnico-assistencial que organiza e sustenta as práticas

desses profissionais que, por sua vez, encontram resistência em outros campos.

O objetivo deste trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Instituições

de Saúde Mental, que buscam implantar o novo modelo assistencial, apesar de

se depararem com práticas hegemônicas do paradigma que tentam superar. Foi

realizado um mapeamento preliminar das características da Estratégia Atenção

Psicossocial e possíveis avanços, a partir de sua implantação, são apontados.

PALAVRAS-CHAVE: centros de Atenção Psicossocial; Saúde Mental; Assistência

Integral à Saúde; Saúde coletiva.

ABSTRACT Once the complex social process of Psychiatric Reformation, materialized

in Brazil as Mental Health Policy, involves a deep transformation in mental health

assistance and causes several changes in the traditional technical assistance model

that organizes professional practices, it finds many resistances inside several fields of

knowledge. The main objective of this paper is to think about the everyday challenges

of Mental Health Institutions that aim to establish a new model of care but still have

problems with the old hegemonic practices that they intend to deny. It has been made

a preliminary mapping of Psychosocial Attention Strategy characteristics and some

possible advances, which could happen after its deployment, are herein stated.

KEYWORDS: Mental Health Services; Mental Health; comprehensive Health

care; Public health.

Si lv io Yasui 1 abi l io Costa-rosa 2

1 doutor em Saúde Pública pela

Escola Nacional de Saúde Pública

(ENSP) da Fundação oswaldo Cruz

(fiocRuz); docente do departamento

de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar

e do Programa de Pós-graduação em

Psicologia da Faculdade de Ciências e

letras da Universidade Estadual de São

Paulo (unEsP), assis.

[email protected]

2 doutor em Psicologia Clínica pela

Universidade de São Paulo (USP);

docente do departamento de Psicologia

Clínica do Programa de Pós-graduação

em Psicologia da Faculdade de Ciências

e letras da unEsP, assis.

[email protected]

Page 30: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

28 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

I N T R O D U ç Ã O

a política de Saúde Mental, construída e pactuada

por diferentes atores sociais desde meados da década de

1980, preconiza e almeja profundas transformações da

atenção, isto é, o atendimento e os cuidados ao sofri-

mento psíquico e demais impasses subjetivos.

Essas transformações apontam para mudanças

na concepção do processo saúde-adoecimento, no

modelo teórico e técnico-assistencial que organiza e

sustenta as práticas dos profissionais; que orienta e

sustenta o arcabouço jurídico e o universo de práticas

e valores culturais. Mudanças que apontam, tam-

bém, para proposições éticas em relação aos efeitos

e desdobramentos das ações no campo da Saúde

Mental (amaRantE, 2007; costa-Rosa, 2000). al-

gumas dessas transformações estão na constituição

maior do país e regulamentadas em forma de lei

como, por exemplo, a participação da população

no planejamento, gestão e controle das práticas de

atenção, e até mesmo na gestão dos dispositivos

institucionais.

Esse conjunto amplo de transformações práticas

e proposições teóricas, tanto éticas quanto políticas,

incorporado e vivenciado na atual Política de Saúde

Mental é suficiente para que possamos falar em Es-

tratégia atenção Psicossocial (EaPs), assim como foi

proposta a Estratégia Saúde da Família (ESF). analisar

os avanços, as resistências e os impasses no campo da

Saúde Mental atualmente, em termos de EaPs, nos

ajudará a explicitar algumas das relações atuais entre

o Centro de atendimento Psicossocial (caPs) e o am-

bulatório de Saúde Mental, bem como entre esses dois

e a atenção Básica. Essas relações se dão, sobretudo,

no que diz respeito aos desdobrementos a partir da

proposta de ações de matriciamento em implantação

nas diretrizes do Ministério da Saúde. Parte-se da hipó-

tese de que esses esclarecimentos poderiam contribuir

como importantes fatores de municiamento na luta

pelos avanços da EaPs.

as mudanças que já se processam, entretanto,

não se dão sem muitas resistências ou claras oposições

advindas de vários setores e direções. Já temos situado

o processo complexo a partir do qual se desdobram as

lutas pela reforma Sanitária e pela reforma Psiquiá-

trica, sob a égide de uma luta de hegemonia quanto

ao controle dos interesses e valores que se encarnam

também nas instituições de Saúde Mental (costa-

Rosa; luzio; yasui, 2003). Um de nós tem realizado

um avanço nos referenciais de análise desse processo

de ações e reações, especificando a forma geral dos

antagonismos em termos de luta paradigmática de dois

paradigmas: o Paradigma Psicossocial e o Paradigma

Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Costa-

rosa (2006) propõe que ‘paradigma’ seja entendido

como uma agregação dos diferentes vetores das pul-

sações tanto em termos de ação instituinte quanto de

resistências do instituído no campo da Saúde Mental.

o termo ‘medicalizador’ é utilizado com o duplo sen-

tido do radical ‘medic’: centrado no discurso e na ação

médica (clavREul, 1983) e orientado pela utilização

da medicação como resposta preferencial às demandas

do sofrimento psíquico.

Nessa perspectiva, o objetivo principal do presente

trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Insti-

tuições de Saúde Mental que buscam implantar o novo

modelo assistencial, mas ainda se deparam com práticas

hegemônicas do paradigma que buscam superar. Procu-

raremos, também, realizar um mapeamento preliminar

das características da EaPs e indicar possíveis avanços a

partir de sua implantação.

Page 31: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

29YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

A MUDANçA DE MODELO E A PRÁTICA DOS

PROFISSIONAIS: DESAFIOS DO COTIDIANO

DOS SERVIçOS

as transformações propostas pelo complexo campo

da reforma Psiquiátrica brasileira apresentam grandes

desafios, especialmente aos profissionais de saúde que

cotidianamente têm a tarefa de expandir e consolidar

essa mudança. Para isso, seus principais instrumentos

são: sua formação permanente, que faculte a redefini-

ção e reorganização de seu processo de trabalho, e a

articulação das alianças, ou mesmo forças antagônicas,

entre os diferentes setores da sociedade; em suma, que

viabilize a criação e expansão concretas de uma rede de

atenção e cuidados baseada em um território e pautada

nos princípios de integralidade e participação popular.

Esse processo emergente de trabalho deve pautar

sua organização cotidiana na ruptura com o modelo

tradicional. o modelo tradicional, pois, baseia-se no

princípio doença-cura e compreende de forma pre-

dominantemente orgânica o processo saúde-doença,

além de ser estratificado e hierarquizado por níveis de

atenção. Suas premissas são concretizadas em estratégias

de cuidado centradas na sintomatologia e, em conse-

qüência, predominantemente medicamentosas; além

disso, por causa da herança deixada pelas instituições

da reclusão, essas premissas são também hospitalo-

cêntricas. as aproximações à clientela e à população

seguem modelos verticalizados e reproduzem os moldes

socialmente dominantes da subjetividade serializada

do Modo Capitalista de Produção. as ações tendem

a ser funcionalistas por proporem uma adaptação de

indivíduos queixosos, ‘desequilibrados’ ou desajustados.

Um aspecto dessa prática que merece ser explicitado,

por sua importância radical, é a ação medicamentosa

como única solução para todos os males e sofrimentos,

subsumindo as pulsações instituintes que por ventura

estejam presentes nas queixas e impasses, funcionando

como um poderoso suporte para a valia da próspera

indústria farmacêutica.

a proposta de ação da EaPs exige a superação desse

paradigma e sua substituição por um novo que seja capaz

de se situar de modo afirmativo: um paradigma que

situe a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva, com-

preendendo o processo saúde-doença como resultante

de processos sociais complexos e que demandam uma

abordagem interdisciplinar, transdisciplinar e interseto-

rial, com a decorrente construção de uma diversidade de

dispositivos territorializados de atenção e de cuidado.

Mais ainda, para esse novo paradigma, produção de

saúde e produção de subjetividade estão entrelaçadas

e são indissociáveis, o que traz como conseqüência a

radical superação das relações sociais e intersubjetivas

sintônicas com o Modo Capitalista de Produção, que é

o alicerce do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico

Medicalizador (costa-Rosa, 2006).

Esses desafios se tornam ainda maiores, consi-

derando que essa mudança de paradigma ainda não

está presente na formação básica dos profissionais de

Saúde. Essa formação continua sendo organizada em

disciplinas e especialidades, com pouca ou nenhuma

integração, levando os profissionais em formação a um

olhar fragmentado da realidade, conseqüência do Para-

digma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador,

ainda dominante. Formados e formatados no modelo

médico-centrado hegemônico e em práticas disciplina-

res, os profissionais se vêem diante da responsabilidade

de implantar uma proposta de mudança de modelo

assistencial que requer uma ruptura radical da maioria

dos conceitos estudados ao longo dos anos de formação,

além de necessitarem rever radicalmente concepções

ideológicas e éticas. tal situação assume, por vezes,

características de um impasse.

Esse conflito entre proposta e prática, intenção e

gesto, gera uma tensão permanente no cotidiano insti-

tucional revelando a contradição entre os paradigmas

Page 32: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

30 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

que sustentam os diferentes modelos de cuidado. Via de

regra, os profissionais foram moldados em cursos nor-

teados pelo paradigma hegemônico, foram organizados

em torno de disciplinas fragmentadas, compartimenta-

lizadas, com pouca ou nenhuma articulação entre si.

os profissionais são estimulados, por exigência

do mercado, a se super-especializarem com o aprendi-

zado e o domínio de tecnologias pretensamente mais

sofisticadas. Uma vez graduados, estão aptos a agir

de forma específica, a ler fragmentos da realidade. os

médicos aprendem a medicar e a ver na medicação a

solução primeira para qualquer tipo de situação; os

psicólogos aprendem a realizar uma terapia centrada

no indivíduo e em seu sofrimento privatizado; os tera-

peutas ocupacionais aprendem a coordenar atividades,

etc. No entanto, nenhum desses profissionais aprende

a lidar com as situações cotidianas que os usuários dos

serviços de saúde e Saúde Mental necessitam quando

procuram pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como,

por exemplo, impasses na subjetividade das pessoas e seu

sofrimento, na maioria das vezes, desencadeados pelo

cotidiano, que se desenrola em duras condições sociais.

Esses profissionais são incapazes de ouvir o sujeito e sua

dor além da doença, de forma que articule os sintomas e

sinais em um quadro mais amplo e complexo; raramente

estabelecem diálogos que produzam uma integração

com outros profissionais que trabalham a seu lado; não

compreendem as dificuldades das pessoas em aderir ao

tratamento estruturado dessa forma; estranham e se

incomodam com as reivindicações das pessoas a res-

peito de seus direitos; apresentam grandes dificuldades

em construir estratégias que ampliem a participação e

autonomia dos usuários.

a mudança de paradigma não é uma agenda es-

pecífica da Saúde Mental. Pelo contrário, ela se inclui

no conjunto de transformações práticas que têm como

prioridade a construção do SUS no contexto da reforma

Sanitária.

Nesse contexto cresce a consciência de que a crise

na Saúde nada mais é que uma expressão fenomênica

de causas mais profundas que têm sua raiz no modelo

de atenção médica vigente, estruturado pelo paradigma

flexneriano. Sair da crise implica, necessariamente,

transitar de um modelo de atenção médica, fruto do

paradigma flexneriano, para um modelo de atenção à

saúde, expressão do paradigma da produção social da

saúde (mEndEs, 2006). a saúde seria concebida como

estado geral decorrente do modo de se levar a vida em

todos os aspectos: físicos, psíquicos, sociais, econômicos,

culturais e ambientais.

ao Paradigma da Produção Social da Saúde corres-

ponde o Paradigma Psicossocial. Há uma sintonia das

concepções ideológicas, teóricas e éticas entre a reforma

Psiquiátrica e a reforma Sanitária. Isso torna ainda mais

inadiável a questão da formação de novos trabalhadores

de Saúde Mental e do redirecionamento de outros que

se encontram ainda em práticas típicas dos modelos

vigentes, cuja superação se exige. Nossa experiência tem

demonstrado que, no campo da atenção ao sofrimento

psíquico, os avanços na direção da EaPs aparecem como

o passo mais apropriado para a superação de uma série

de impasses decorrentes dessas heranças do Paradigma

Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. tais im-

passes apresentam-se tanto na forma direta do modelo

asilar como na forma do preventivo-comunitário, cujo

estabelecimento modelo é o ambulatório de Saúde

Mental.

o relatório final da III Conferência de Saúde

Mental, promovida pelo Ministério da Saúde em 2002,

apresenta propostas referentes à política de recursos

Humanos, destacando-se que:

[...] uma política de recursos humanos deve visar im-plantar, em todos os níveis, o trabalho interdisciplinar e multiprofissional no campo da Saúde Mental, na perspectiva do rompimento dos ‘especialismos’ e da construção de um novo trabalhador em saúde men-

Page 33: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

31YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

tal, atento e sensível aos diversos aspectos do cuidado, garantindo que todo usuário dos serviços de saúde seja atendido por profissionais com uma visão integral e não fragmentada da saúde. (Brasil, 2002, p. 68).

É importante referir, aqui, as ações do Ministério

que, no setor da Saúde Mental, tendo à frente repre-

sentantes dos interesses diretos da reforma Sanitária e

reforma Psiquiátrica, empreende preciosas ações politi-

camente orientadas para essa direção, em termos de for-

mação permanente, análise e supervisão institucional dos

caPs. Um passo imprescindível nesse momento é reunir

e sistematizar todos os conhecimentos capazes de confi-

gurar claramente a EaPs. a partir da sistematização desse

corpo de conhecimentos, é possível ampliar as bases de

reflexão e análise da práxis, tanto da atenção Psicossocial

quanto da própria formação de trabalhadores em ação.

Essa nossa experiência indica que a ‘formação em ação’

é a única estratégia capaz de se contrapor efetivamente

aos efeitos desastrosos de uma formação universitária

que se referencia mais pelas demandas ideológicas co-

nectadas aos interesses socialmente dominantes e menos

pelas exigências éticas concretas da realidade da atenção

Psicossocial e da EaPs.

O AMBULATÓRIO DE SAúDE MENTAL

COMO ESTRATÉGIA QUE VISOU CONTRA-

POR-SE à LÓGICA HOSPITALOCÊNTRICA

Nos anos 1980, a criação dos ambulatórios de

Saúde Mental, constituídos por equipes multiprofis-

sionais, era apontada como um promissor instrumento

de mudança na realidade o primeiro passo da reforma

Psiquiátrica. No estado de São Paulo, a Secretaria de

Estado da Saúde elaborou também uma proposta de

ação em Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde

(UBS), acompanhada de um texto que apresentava

uma série de sugestões de organização do trabalho das

equipes de Saúde Mental nessas Unidades de Saúde e

nos ambulatórios. a abordagem era designada como

bio-psico-social.

o trabalho em equipe era uma espécie de terra

prometida onde, afinal, seria possível mudar o modelo

asilar e exercer uma boa assistência à Saúde Mental. Mas

a concretização dessa proposta de trabalho em equipes

multiprofissionais fez com que ela se transformasse,

ao longo dos anos, em um dispositivo burocrático. tal

organização de assistência hierarquizada, tendo a equipe

de Saúde Mental da UBS como porta de entrada, contri-

buiu para se configurarem novas demandas, sobretudo

um conjunto de ações ambulatoriais paralelas às do

Hospital Psiquiátrico. No entanto, não foi capaz de

produzir qualquer impacto na lógica hospitalocêntrica;

pelo contrário, produziu um aumento na demanda de

internações ao ampliar o acesso da população às con-

sultas psiquiátricas.

a multiprofissionalidade continua na agenda do

dia da EaPs; por isso é oportuno refletirmos um pouco

sobre ela.

Podemos levantar uma questão referente ao fato de

a reprodução da divisão social do trabalho no campo da

Saúde gerar uma hierarquização das relações, na qual o

saber médico impera sobre outros saberes, que cumprem

um papel secundário, o que reproduz a divisão típica do

Modo Capitalista de Produção. Isso produz uma espécie

de divisão de atividades e tarefas em compartimentos

com pouca ou nenhuma relação entre si. Um exemplo

desta divisão é uma dada situação em que a consulta

do psiquiatra é tomada como a atividade prioritária e

essencial. Isso gera uma agenda repleta, atendimentos de

curtíssima duração e com grandes intervalos de tempo

entre uma consulta e outra, visando uma alta produtivi-

dade, medida pelo número de consultas. Há, também,

a consulta, geralmente individual, com o psicólogo, que

Page 34: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

32 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

tem longa lista de espera, repetindo o modelo da prática

liberal típica de parte do trabalho desse profissional;

por fim, há os grupos de orientação, coordenados pela

enfermeira ou pela assistente social, sempre pedagógicos

e geralmente à margem das demandas subjetivas espe-

cíficas daqueles indivíduos. Esses encaminhamentos de

um profissional para outro são feitos mediante preen-

chimento de uma guia entregue pela recepção, onde se

agendam as consultas. todos os profissionais se reúnem

(com dificuldade) uma vez por mês e discutem questões

administrativas. Nos cinco minutos finais, um ou outro

caso mais grave é trazido à atenção da pequena parte da

equipe que permanece até o final da reunião.

a propósito do conceito multidisciplinar, do qual

surgiu o termo multiprofissional, Japiassu (1976) já

afirmava que a abordagem multidisciplinar estuda um

objeto sob diferentes pontos de vista, mas sem que tenha

havido um acordo prévio sobre os métodos a se seguirem

ou sobre os conceitos a serem utilizados. Há apenas uma

justaposição de disciplinas sem que fiquem evidentes as

relações que possam existir entre elas.

Na mesma linha de pensamento, almeida Filho

(2000) descreve a multiprofissionalidade como uma

justaposição de disciplinas em um único nível, sem

cooperação sistemática entre os diversos campos disci-

plinares. dessa forma, e segundo esses autores, pode-se

definir o multidisciplinar como uma somatória de

diferentes campos que não estabelecem diálogo e não

apresentam nenhuma cooperação entre si necessaria-

mente, mantendo seus limites e fronteiras e olhando

sob suas perspectivas e a partir de seus lugares para um

mesmo objeto, no caso, o sofrimento psíquico. a equipe

multiprofissional, por esta caracterização, já está fadada

a ser um apenas um agrupamento de profissionais de

distintas áreas que ocupam o mesmo espaço físico.

Essa configuração multiprofissional, já analisada e

criticada desde muito cedo, está de acordo com a lógica

do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-

lizador que, por sua vez, está em sintonia com a lógica

da divisão do trabalho do Modo Capitalista de Produ-

ção (costa-Rosa, 1987). Não há dúvidas de que, sem

uma crítica radical à divisão do trabalho e ao processo

de produção da atenção vigente no campo da Saúde

Mental, não poderemos obter avanços na superação da

estratégia asilar e preventivista ainda dominantes. a EaPs

exige um modo de organização de divisão do trabalho

mais coerente com a lógica dos modos de produção de

cooperação uma vez que, para o Modo Psicossocial,

não se distinguem o processo produtivo dos efeitos da

produção e dos beneficiários de tais efeitos.

No campo psíquico há uma indissociabilidade

entre produção de saúde e produção de subjetividade.

levar em conta a radicalidade dessa proposição conduz

a uma possível superação do modo de produção comum

e a um ‘drible’ das diferentes formas do atravessamento

capitalístico dessa produção. Para a EaPs, a superação

da divisão parcelada do processo de produção (divisão

em especialidades), ainda deverá vir acompanhada da

capacidade de vislumbrar formas para se alcançar a

transdisciplinaridade. a superação do princípio doença-

cura, pois, exige também a superação do modelo sujeito-

objeto que define as especialidades e ações no paradigma

hegemônico.

a EaPs implica também na superação da raciona-

lidade implícita no modelo médico hegemônico que

determina um modo de organização das práticas de

saúde, caracterizadas por atividades curativas, indivi-

duais, assistencialistas e organizadas em especialidades.

o Paradigma da Produção Social da Saúde pressupõe o

planejamento das ações de atenção de modo integral,

baseadas no trabalho em equipe e nas práticas coletivas

de saúde, superando a atual racionalidade que está

pautada numa prática privada e regida por uma lógica

de mercado. Nessa lógica existe apenas a sociedade

colocada de modo figurado, ou a parceria, movida a

interesses comerciais.

Page 35: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

33YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

Uma proposta de trabalho em equipe para a EaPs

precisa reconhecer os processos cotidianos de trabalho

como áreas de tensão e interesses sociais conflitantes

encarnados por distintos atores, para justamente pôr

a salvo desse conflito maior os interesses imediatos

dos sujeitos do sofrimento. Com isso, seria permi-

tido que eles tomassem uma posição nos conflitos e

contradições que os atravessam; conflitos esses que se

expressam no sofrimento que, por sua vez, manifesta-se

em sua história. além disso, remover as conquistas da

reforma Sanitária sobre a participação dos usuários e

da população no planejamento, gestão e avaliação dos

dispositivos institucionais não deixa de ser um modo

de abrir a oportunidade para eles de participação na

metabolização da contradição maior. Sair da posição de

objeto exigirá um exercício rotineiro nos vários aspectos

da práxis concernente ao novo paradigma.

A PERMANÊNCIA MICROPOLíTICA

DO HEGEMôNICO

a prática encontrada em diferentes caPs, principal

dispositivo para a implantação da atual política de Saúde

Mental, revelam que a lógica ambulatorial ainda está am-

plamente presente no sistema e de forma aparentemente

intacta. Prática essa bem distante daquela idealizada pelo

modo da atenção Psicossocial, cuja ética implica na

ousadia de buscar o novo. Isso ocorre ainda com mais

freqüência nos lugares em que a implantação do caPs se

deu a partir do ambulatório de Saúde Mental.

os exemplos a seguir demonstram situações de-

safiadoras que as equipes encontram no cotidiano, nas

quais se apresenta a tensão permanente que há entre um

paradigma hegemônico de cuidados que já se conhece,

e que o discurso oficial pretende superar, e outro para-

digma que se pretende construir a partir da prática, do

qual também já se conhecem várias coordenadas e que

é enunciado como estratégia dominante no discurso

oficial do Ministério da Saúde.

Um sujeito em crise que se recusa a ir à institui-

ção sob pretexto de que lá é lugar de louco; a família

que exige internação de um de seus membros em um

hospital psiquiátrico, reproduzindo a inércia do hábito

já instituído; o morador de rua que incomoda os vizi-

nhos por se encontrar em sofrimento psíquico grave;

o usuário que estabelece uma relação de dependência

com a instituição. Como resposta da equipe a essas

situações, ouvimos com muita freqüência as seguintes

falas: “o usuário não quer vir? Não é mais de nossa

responsabilidade, então.”; “a família pede internação?

Pois que interne.”; “Morador de rua? Isso é problema

da assistência Social do município.”; “o usuário está

em crise no serviço? Chama o psiquiatra para medi-

car!”; Se o usuário está tendo uma crise no meio da

rua, “Chama-se a polícia”

além das características que já foram apresentadas

sobre esse modelo hegemônico, é oportuno apresentar

outras características desanimadoramente freqüêntes nas

ações realizadas em muitos dos caPs: atos norteados por

valores e julgamentos morais como “Não faça mais isso,

fulano. É muito feio!”; “Quem não se comportar direito

não ganha o ovinho de Páscoa!”; “Quem vai acompa-

nhar os usuários? Eles não podem sair sozinhos!”; “Que

gracinha, nem parece que são doentes mentais!”

Frases como essas revelam que o sujeito do sofri-

mento é infantilizado e a atuação da equipe se pauta

na ‘correção’ e ‘educação’ de seus comportamentos.

Certa vez, um usuário, irritado, afirmou, a respeito do

caPs que freqüenta: “Isto aqui parece uma creche para

doido!”

Sobre esse tema Foucault afirma:

[...] a loucura encontra-se inserida no sistema de valores e das repressões morais. Ela está encerrada

Page 36: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

34 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

num sistema punitivo onde o louco, minorizado, encontra-se incontestavelmente aparentado com a criança, e onde a loucura, culpabilizada, acha-se originariamente ligada ao erro. (1975, p. 84).

a lógica presente nesse modo de atenção à Saúde

Mental submete os sujeitos do sofrimento e os próprios

trabalhadores a um lugar de sujeição, produção e repro-

dução de subjetividades enquadradas, conformadas e

bem-comportadas: produção de afetos tristes, renúncia

à potencialidade criativa, ao desejo, à autonomia. Não

há caPs aqui, apenas mais uma instituição de Saúde

Mental organizada a partir da mesma lógica hege-

mônica do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico

Medicalizador.

Essa persistência micropolítica da lógica paradigmá-

tica hegemônica também só poderá ser adequadamente

enfrentada com a ampliação dos espaços de formação

(formação continuada) e de exercício analisado (análise

e supervisão institucional), que já fazem parte das inicia-

tivas de formação dos trabalhadores de Saúde Mental

(tSM), componentes da atual política de atenção

Psicossocial do Ministério da Saúde.

INVENTAR A TRANSDISCIPLINARIEDADE

COMO MEIO NECESSÁRIO DA EAPS

a equipe é o alicerce, o principal instrumento de

intervenção, invenção e produção dos cuidados em

atenção Psicossocial. Produção que se dá no agencia-

mento das pulsações da demanda social e dos afetos para

se produzirem vínculos na negociação de interesses di-

vergentes e se construir a ética da atenção Psicossocial na

pactuação familiar e social para um projeto de cuidado;

agenciamento esse, enfim, das relações que emergem no

encontro que se dá entre o sujeito do sofrimento com

sua demanda, e do trabalhador com sua subjetividade

e caixa de ferramentas (mERhy, 2002).

ao romper com a visão biológica reducionista e

propor a desmontagem dos conceitos basilares da psi-

quiatria hospitalocêntrica e medicalizadora, a reforma

Psiquiátrica, alinha-se na perspectiva de uma crítica aos

fundamentos da racionalidade científica moderna (relação

sujeito-objeto, reducionismo, determinismo) e propõe

inventar o seu campo teórico-conceitual, estabelecendo

um intenso diálogo entre os diferentes campos do saber

e conhecimentos acerca do humano. Produz, também,

um turvamento entre os limites e fronteiras, constituindo

possibilidades diversas para pensar e fazer.

Essa é uma perspectiva semelhante à que Passos e

Barros (2000) denominam transdisciplinaridade que:

subverte o eixo de sustentação dos campos episte-mológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76).

Essa proposta é ousada, de alto risco e, ao ser intro-

duzida na práxis cotidiana, visa à produção do disforme,

à emergência do sem contornos, que mais desorganiza do

que orienta, que institui o próprio processo de instituir.

dessa forma, o pensamento corre riscos, assume o perigo

de se perder na indiferença e no relativismo, estando

sujeito à inércia do ‘tudo ou nada vale o mesmo’. É um

grande desafio constituir esse saber fazer nos interstícios

dos campos disciplinares. ou, como propõem Passos e

Barros (2000), com base em um conceito de deleuze,

nos “intercessores”, naquilo que se dá no “entre”, no

momento em que ocorre.

Não são apenas diferentes disciplinas que analisam

um mesmo objeto; a própria consistência do objeto é

transformada. É preciso se abrir às fronteiras e fazer tran-

sitarem conceitos e categorias, transmudarem os olhares

dos sujeitos em ação, transformarem-se os modos de

pensar, transformarmo-nos como sujeitos, já que se trata

Page 37: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

35YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

de um processo de construção de novas subjetividades.

Como diz Edgar Morin (2000), trata-se do desafio do

pensar complexo que remete à dialética e à revisão das

teorias de subjetividade.

No meio de aparentes desencontros é que reside a

estratégia para se produzirem os encontros dos sujeitos do

sofrimento com a equipe. Como concretizar, no dia-a-dia

de trabalho e de produção da atenção, esta transdisciplina-

ridade? aqui, podemos evocar a experiência vivenciada no

caPs luiz Cerqueira, no qual foi possível realizar um traba-

lho que muito se aproximou da proposta transdisciplinar,

e que poderia ser sintetizado da seguinte forma: o trabalho

em equipe é aquele em que os profissionais adotam uma

posição de humildade frente ao sofrimento psíquico, este

nosso objeto complexo, e o existir por ele contextualizado.

apenas uma solidária e despojada atitude de diálogo (in-

tenso e complexo), pode começar a sondar e contemplar

a amplitude de tal complexidade (yasui, 1989).

Isso se reflete na organização dos processos de traba-

lho, construídos como uma criação coletiva, de relações

horizontais, que aspira à transversalidade proposta por

Felix guattari (1981), e com uma efetiva participação

dos sujeitos do sofrimento e seus familiares. a concre-

tização desse projeto implica em: considerar e ativar os

dispositivos existentes no território; na responsabilização

pela demanda, especialmente nos momentos de crise;

na criação de múltiplas e diversas estratégias de cuidado

aumentando a responsabilidade de cada profissional, não

apenas nas decisões e nas competências para o projeto de

cuidados, mas também na gestão dos dispositivos insti-

tucionais. Isso implica, de outra parte, uma flexibilidade

na execução de tarefas distintas e intercambiáveis. É

necessário reconhecer, e não esquecer, que somos atores

de uma prática social, que têm a potencialidade, por

meio dos encontros que ensejamos no cotidiano de nossa

práxis, de produzir novos processos de subjetivação, de

produzir modos mais autônomos de viver e de fazer a

diferença. Essa diferença está encarnada em diferentes

formas de saída da subjetividade serializada que, mor-

mente, vem associada ao sofrimento e aos sintomas, para

outras subjetividades e subjetivações capazes de escapar

ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-

lizador e ao Modo Capitalista de Produção.

Conectar-se aos horizontes teóricos, técnicos e

éticos da atenção Psicossocial significa estar sempre

atento aos riscos de se recair na alienação do que já está

instituído. É preciso estarmos sempre atentos para que

nas finas teias do cotidiano não sejamos capturados pela

lógica do conformismo e da repetição, pois este é um

processo que se constrói em um movimento contínuo

de desfazer e fazer, desconstruir e construir. desconstruir

conceitos e categorias, redefinir as modalidades dos

vínculos intersubjetivos, inventar novas possibilidades

semânticas e teóricas, desfazer os limites disciplinares

para tornar novas as produções. trata-se aqui de um

novo agenciamento de pulsações da demanda social e

dos afetos, para se produzirem vínculos, que não deixam

de ser transferenciais; negociações entre interesses diver-

gentes presentes nas dimensões micro e macropolítica do

território; pactuações para um projeto de atenção e cui-

dado, que se fazem a partir das relações e nas relações que

emergem no encontro entre as demandas dos sujeitos e

as ofertas de possibilidades transferenciais, ou seja, entre

o sofrimento dos sujeitos e a capacidade de continência

da equipe. Não há dúvidas de que essa capacidade de

agenciamento por parte das equipes também é moldada

pela plasticidade de sua subjetividade e pela desenvoltura

complexa de sua ‘caixa de ferramentas’.

A ESTRATÉGIA ATENçÃO PSICOSSOCIAL

a seguir são apresentados alguns pontos para um

início de discussão acerca de uma definição possível

da EaPs.

Page 38: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

36 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

Yasui (2006) apresenta a idéia de compreender o

Centro de atenção Psicossocial como uma estratégia de

transformação da assistência, concretizada pela organiza-

ção de uma ampla rede de cuidados em Saúde Mental, e

que não se limita ou se esgota em sua implantação como

um serviço de saúde.

Neste texto, nomeamos claramente e EaPs,

definindo-a a partir dos quatro parâmetros do Modo

Psicossocial e das transformações nas dimensões epis-

temológicas, técnico-assistenciais, jurídico-políticas e

culturais (costa-Rosa; luzio; yasui, 2003; amaRantE;

2007). tal definição deve incluir, ainda, os princípios

e diretrizes da reforma Sanitária, particularmente a

participação popular no planejamento, gestão e con-

trole das instituições de Saúde, bem como a concepção

de integralidade das problemáticas de saúde e da ação

territorializada sobre elas. Essa realização prática da EaPs

se opera pela agregação da tática do Matriciamento, já

exercitada em alguns municípios e posta em ação pelo

o Ministério da Saúde, conforme a Portaria 154/2008

(bRasil, 2008), que cria os Núcleos de apoio à Saúde

da Família (nasf).

a EaPs é uma lógica que perpassa e transcende as

instituições enquanto estabelecimentos, tomando-as

dispositivos referenciados na ação sobre a demanda

social do território, distanciando-se, dessa forma, de

um sistema organizado e hierarquizado por níveis de

complexidade da atenção.

a EaPs, uma vez operando e concretizando o princi-

pio da integralidade na produção da atenção e cuidado,

através do matriciamento, da atenção básica e com a

Estratégia de Saúde da Família, poderá dar outro sentido

aos estabelecimentos caPs e seu atual segmento de ações

ambulatoriais. Poderá ajudar, também, na compreensão

de que a persistência do ambulatório, que convive com

o caPs em um mesmo território, significa a reincidência

no preventivismo, longe, portanto, da lógica da atenção

Psicossocial. Permitirá, ainda, re-configurar os caPs como

instâncias aptas a responder à especificidade das demandas

que lhes são atribuídas: demandas específicas de sofrimen-

to psíquico com exigências de intensidade variada, que

vão da exigência máxima que define o caPs atual, até as

intensidades variadas que definem atualmente, de modo

geral, o ambulatório. Sobretudo, a EaPs permitirá consi-

derar a atenção a um conjunto importante e numeroso de

problemáticas dentro da especificidade da atenção à saúde,

impedindo a medicalização e psicologização, geralmente

resultantes do modelo atual.

É necessário ressaltar, também, que na EaPs não

interessa mais se as problemáticas são de alta ou baixa

complexidade. Nas ações de matriciamento, ou nas ações

específicas dos serviços caPs, tudo é considerado de alta

complexidade, o que pode diferir é a especificidade do

saber e da ação exigidos. também não se trata apenas de

organizar os novos dispositivos institucionais em algum

sistema de referência e contra-referência: o sujeito será

sempre compreendido como aquele que está inserido no

território e, mesmo quando for alvo de ações específicas

de caPs ou ambulatoriais, não deixará de estar adscrito

à ESF nem de participar das ações simultaneamente

realizadas por ela; por isso a ESF deverá ser sempre a

referência maior da EaPs.

R E F E R Ê N C I A S

almEida filho, N. A ciência da saúde. São Paulo: hu-citEc, 2000.

amaRantE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. rio de Janeiro: fiocRuz, 2007.

Page 39: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008

37YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

bRasil. Conselho Nacional de Saúde. Sistema Único de Saúde. Relatório Final da III conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília, 11 a 15 de dezembro de 2001. Brasília, dF: Conselho Nacional de Saúde, 2002. 213 p.

______. Ministério da Saúde. gabinete do Ministro. Portaria n.º154/2008. Sobre os núcleos de apoio à saúde da família (NaSF). Brasília, dF, 2008.

clavREul, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense, 1983.

costa-Rosa, a. A instituição de saúde mental como dis-positivo social de produção de subjetividade. assis: unEsP, 2006. Mímeo.

______. o modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: amaRantE, P. (org.). Ensaios-subjetividade, saúde mental e sociedade. rio de janeiro: fiocRuz, 2000. p. 141-168.

______. A saúde mental comunitária: análise dialética de um movimento alternativo. 1987, 544 f. dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia da USP, São Paulo,1987.

costa-Rosa, a.; luzio, C.; yasui, S. atenção psicos-social: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: amaRantE, P. (org.). Arquivos de saúde mental e atenção psicossocial. rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. p. 13-44.

foucault, M. Doença mental e psicologia. rio de Janeiro: tempo brasileiro, 1975.

guattaRi, F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

JaPiassu, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. rio de Janeiro: Imago, 1976.

mEndEs, E.V. Uma agenda para a saúde. 2. ed. São Paulo: hucitEc, 2006.

mERhy, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: hucitEc, 2002.

moRin, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, re-formar o pensamento. rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Passos, E.; baRRos, r.B. a construção do plano da clinica e o conceito de transdisciplinariedade. Psicologia: teoria e pesquisa, Brasília, dF, v.16, n.1, p. 71-79, jan./abr. 2000.

yasui, S. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira. 2006. 208 f. tese (doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública/fiocRuz, rio de Janeiro, 2006.

______. caPs: aprendendo a perguntar. In: lancEtti, a. (org.). coleção Saudeloucura. São Paulo: hucitEc, 1989. v. 1.

recebido: abr./2008

aprovado: jul./2008

Page 40: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE38

algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde

Mental e a formação do profissional de Saúde Mental

no contexto da promoção da saúdeReflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation

of the Mental Health professional in the context of health promotion

RESUMO Este texto discute algumas bases conceituais da Saúde Mental e aspectos

relativos à inserção do profissional de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde

(SUS), na perspectiva da promoção da saúde. Algumas enunciações do conceito de

Saúde Mental são examinadas à luz dos confrontos paradigmáticos proporcionados

pela perspectiva multiprofissional. Os temas abordam as necessidades fundamentais

da formação em Saúde Mental, fortemente influenciada por fatores culturais,

econômicos e sociais. Aponta-se uma necessidade de maior discussão, no campo da

Saúde Mental, sobre suas bases conceituais e outros temas inter-relacionados.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Saúde pública; Sistema Único de

Saúde.

ABSTRACT This paper brings a discussion about some conceptual bases of Mental

Health and aspects related to the insertion of the Mental Health professional in

the Single Health System (the so called SUS in Brazil), in the perspective of health

promotion. The conceptualization of Mental Health is examined in light of the

paradigmatic confrontations propitiated in the multiprofessional context. The

themes herein stated respond to a fundamental need in the context of professional

formation in Mental Health which is strongly influenced by cultural, economic

and social factors. The need of more discussion on the Mental Health concepts

and other related themes are herein pointed out.

KEYWORDS: Mental Health; Public health; Single Health System.

Walter Ferre i ra de ol ive i ra 1

1 doutor; professor do departamento

de Saúde Pública do Centro de Ciências

da Saúde da Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC).

[email protected]

Page 41: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

39olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

I N T R O D U ç Ã O

DESAFIOS CONCEITUAIS E

PARADIGMÁTICOS EM SAúDE MENTAL

o campo profissional da Saúde Mental é vasto,

multidimensional e tem grande importância no con-

texto da saúde coletiva. Encontra-se em um momento

histórico de transição paradigmática, que tem como uma

de suas características a força que ganham propostas de

reestruturação epistemológica, técnico-assistencial e

político-jurídica, cujo maior impacto reside no desafio

da psiquiatria hegemônica como dispositivo de máximo

poder na área (amaRantE, 1995). o enfraquecimento da

hegemonia psiquiátrica favorece abordagens, em Saúde

Mental, a partir de bases conceituais mais diversificadas

e, particularmente, uma visão mais fenomênica, mais

social e interativa do universo psíquico, que desprivilegia

o domínio quase exclusivo do referencial nosográfico da

psiquiatria descritiva tradicional, inclusive no campo

clínico (moREiRa; sloan, 2002).

a reforma Sanitária brasileira apóia-se em uma

definição ampla de saúde, que procura não usar a doença

como referência primordial. No caso específico da Saúde

Mental, a busca é por uma definição de sanidade que

não tome como referência fundamental a patologia sob

a óptica médico-psiquiátrica. Essa idéia não só provoca

novos entendimentos do processo saúde-doença, na

perspectiva psicossocial, como estrutura o modelo de

atenção para a rede de Saúde Mental como um todo.

o compromisso da responsabilidade sanitária, que

se vem discutindo intensamente no âmbito do Sistema

Único de Saúde (SUS), inclui um reexame das posturas

éticas profissionais (camPos, 1997). Novas posturas e

novas abordagens tornam-se temas importantes no con-

texto da reforma Psiquiátrica. Propõe-se um novo olhar

sobre e um novo lugar social para a loucura, tomada

como referência emblemática; é preciso identificar a re-

forma Psiquiátrica a partir desse novo olhar e desse novo

lugar social (amaRantE, 1995). Mas há outros temas a

serem explorados na perspectiva do cuidado, da promo-

ção da saúde e das ações preventivas. alguns passos têm

sido dados nesse sentido, por exemplo, ampliando-se a

compreensão de certos estados psíquicos diagnosticáveis

como possíveis insanidades, para modos diferenciados

de vivenciar o cotidiano e que traz conseqüências para

a qualidade da vida de muitos sujeitos estigmatizados

como ‘loucos’ ou ‘anormais’.

apesar dos avanços, na prática, os profissionais,

nem sempre conseguem deixar de ter como foco prin-

cipal o controle dos sintomas, dos corpos e das vontades

de pessoas diagnosticadas como portadoras de transtor-

nos mentais (Rosa, 2006; scalzavaRa, 2006; olivEiRa;

doRnElEs, 2005). Coloca-se, então, uma questão

crucial: como desenvolver ações de Saúde Mental na

perspectiva da responsabilidade sanitária exercida efe-

tivamente em serviços territorializados e promotores da

saúde? a questão ressalta a necessidade de se continuar

com questionamentos, reflexões, problematizações sobre

e a busca pela operacionalização dos novos conceitos e

paradigmas na prática cotidiana do cuidado sanitário,

bem como na perspectiva das relações interpessoais,

interdisciplinares e multiprofissionais, de forma a se

construírem e operarem interações promotoras de saú-

de. além disso, ressalta-se a necessidade de as práticas

preventivas e reabilitadoras serem repensadas de forma

que sejam contextualizadas no projeto do SUS.

a formação dos profissionais de Saúde Mental,

entretanto, ainda se constitui, explícita e, às vezes, sub-

repticiamente como uma antítese das propostas das

reformas Sanitária e Psiquiátrica. o profissional está,

via de regra, à mercê de currículos que marginalizam

a Saúde Mental e o submetem à psicopatologia tradi-

Page 42: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

40 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

cional, privilegiam procedimentos clínicos quase que

exclusivamente aplicáveis a consultórios e ambulatórios

tradicionais e promovem a medicalização da vida coti-

diana, o que vai além da corriqueira medicamentação,

passando para toda uma postura cultural que transforma

condições sociais e culturais em problemas de ordem mé-

dica. além disso, há o currículo oculto, que desfavorece

a autonomia do cidadão usuário dos serviços de Saúde

Mental, fomentando a tutela e as assimetrias de poder

que permeiam as relações profissionais e institucionais

(olivEiRa, 2003). a superação dessa situação é um dos

maiores desafios no contexto da reforma Psiquiátrica.

Nesse sentido, ainda há muito a se debater (sobre a

evolução das bases conceituais e das representações

sociais da Saúde Mental, por exemplo) e a se repensar

como, por exemplo, as idéias que foram se cristalizando

no campo da psiquiatria e que estruturam grande parte

do pensamento dos profissionais de Saúde Mental, no

momento de sua formação acadêmica.

Nossa reflexão sobre a evolução do universo con-

ceitual em Saúde Mental é extremamente limitada, e

toma por base metodológica uma análise bibliográfica

focada em obras de autores que se tornaram marcos

proeminentes tanto no que se refere à historicidade da

formação acadêmica como no que diz respeito à for-

mação profissional a partir do que propõe a reforma

Psiquiátrica. torna-se possível, dessa forma, esboçar

algumas considerações frente às atuais políticas de Saúde

Mental propostas no contexto do SUS.

VERTENTES FUNDAMENTAIS NA

FORMAçÃO EM SAúDE MENTAL

o profissional de Saúde Mental contribui, com

sua emergente presença nas unidades de saúde geral,

para oxigenar o sistema de saúde como um todo atra-

vés de seus questionamentos. Mas, esse profissional

também traz consigo contradições inerentes à sua

formação, com sua raiz na literatura psiquiátrica tra-

dicional. Esta, através dos tempos, cristalizou idéias

que são assimiladas, repetidas e perpetuadas de forma

ostensiva ou sub-reptícia nos ambientes curriculares e

extracurriculares. o contraponto é dado pela incor-

poração gradativa, ainda que marginal, de um corpo

literário que vem surgindo nos últimos 30 anos a partir

do movimento da reforma Psiquiátrica.

No período de graduação dos cursos da área da

saúde, embora os níveis de discussão variem de acordo

com o curso, as idéias são em geral apresentadas sem

que se enfatizem os embates epistemológicos travados,

desde o século 18, em torno dos conceitos de saúde,

Saúde Mental e doença mental. Na pós-graduação,

esse quadro melhora para os profissionais que aten-

dem às áreas confluentes da saúde e das Ciências

Humanas e Sociais.

afinal, quais são as idéias, os conceitos e a filosofia

da prática que são transmitidas aos estudantes da área

como verdades inquestionáveis e, além de tudo, em um

ambiente de sala de aula, intimidador, pouco convida-

tivo à crítica e perenemente condicionado pelas notas

obtidas nas avaliações?

a história da psiquiatria constitui uma rota concei-

tual que tem como marco o trabalho de Philippe Pinel,

considerado por muitos o pai da psiquiatria e defensor

dos direitos humanos, conforme os cânones da revolu-

ção Francesa, da qual foi deputado. Pinel era adepto do

chamado tratamento moral, baseado na idéia de que a

disciplina e a moralização do comportamento, exercidas

em ambiente hospitalar, eram os principais elementos

potenciais de cura das doenças mentais (alExandER; sE-

lEsnicK, 1980). Isto se coadunava perfeitamente com al-

guns preceitos estabelecidos pela nova ordem capitalista

imposta pela burguesia, agora dominante. a organização

da existência humana nos moldes capitalistas torna de-

Page 43: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

41olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

sejável que os corpos não abriguem condições limitantes

ao trabalho, condições que podem ser produzidas por

problemas inatos ou por vidas desregradas. É preciso

cuidar dos corpos, atitudes e comportamentos, além de

controlá-los e normalizá-los. a noção de normalidade

torna-se importante e a prevenção e reabilitação passa

pelo controle, inclusive moral, das pessoas em todas as

suas instâncias (foucault, 1986; 1999). Surge, desta

forma, uma linha de pensamento e ação em saúde, cujo

objetivo é a normalização dos comportamentos e cuja

principal medida é a capacidade de produção.

a medicina se compromete, concomitantemente,

com o pensar científico da época, que busca as causas

definitivas das doenças em substratos patológicos orgâ-

nicos subjacentes. No final do século 19 surgiu, como

resultado, a nosologia de Emil Kraepelin, psiquiatra

alemão que se dedicou à descrição minuciosa de todos

os comportamentos apresentados pelos ‘doentes mentais’

e à definição de síndromes identificadas com estes com-

portamentos, permitindo uma sistematização substancial

do trabalho semiológico em psiquiatria e conferindo um

status de ciência clínica a esta especialidade, tornando-a

mais respeitável no âmbito da medicina geral.

as obras de Pinel e Kraepelin, assim como as de

outros psiquiatras como Esquirol e Janet, permitem

que diagnósticos psiquiátricos cada vez mais específicos,

que levem em consideração os comportamentos (sinais)

e sentimentos (sintomas) expressados pelos pacientes,

sejam estabelecidos. Essa psicopatologia descritiva per-

mite que os médicos psiquiatras estabeleçam ‘verdades

científicas’ e mantenham sob controle a determinação

do cuidado à doença mental. a verdade sobre a doença

mental, estabelecida pelo esquema nosográfico-compor-

tamental, afirma-se como instrumento de poder médico;

uma vez ensinada sob esta óptica, a psicopatologia passa

a ser aceita como verdade natural. E ela é apresentada

dessa forma até hoje, tendo como ‘bíblia’ o dSM-IV-

tr® da american Psychiatric association (2003).

Um dos legados da nosologia de Kraepelin é a idéia

de que não há cura para transtornos mentais graves,

como as síndromes psicóticas. Existe também a palavra

‘alienado’, oriunda da dicotomia colocada e usada para se

explicar e descrever a doença mental entre razão e desati-

no. o doente mental, por não dispor da razão, não pode

participar adequadamente da comunidade social; sua

própria natureza o aliena da convivência sadia e normal

(almEida filho, 1999). as idéias de que os alienados

não são capazes de contribuir produtivamente com a

sociedade e de que apresentam um razoável potencial

de periculosidade são, então, estabelecidas. o esquema

moral e nosográfico impregnou as páginas dos textos di-

dáticos utilizados largamente na formação de psiquiatras

e, por contingência, de outras disciplinas ligadas à Saúde

Mental. Passou-se a aceitar como verdades absolutas

essa idéia de que as pessoas com problemas mentais são

desatinadas, improdutivas, perigosas, incuráveis e que

seu tratamento deve ser feito em regime de estrita tutela,

baseado no controle cuidadoso de seus comportamentos,

normalizando-os e moralizando-os.

Na contra-hegemonia surge o trabalho de Freud,

mas algumas questões importantes pendiam sobre sua

obra. Primeiro, a psicanálise não se enquadra no restrito

esquema experimental que a ciência positivista domi-

nante aceitava como legítimo; segundo, Freud trabalhou

com populações restritas, principalmente com a classe

social mais privilegiada da Europa do fim do século 19

(embora os estudos das forças hegemônicas também

tenham sido, em sua quase totalidade, restritos a sujeitos

internados em manicômios). apesar de sua psicologia

dinâmica ser considerada contra-hegemônica, ainda é

de natureza essencialmente determinista e baseada em

estudos de casos patológicos.

Em 1913, Karl Jaspers lançou Psicopatologia geral,

propondo uma abordagem fenomenológica e existencial do

psiquismo. localizamos três vertentes importantes (psico-

patologia descritiva, psicologia dinâmica e fenomenologia

Page 44: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

42 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

existencial) para o futuro desenvolvimento do pensamento

em Saúde Mental; vertentes essas que até hoje marcam

profundamente a formação dos profissionais da área.

DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL EM

SAúDE MENTAL

No início do século 20, o movimento higienista

ganha grande força na psiquiatria, afirmando o inte-

resse pela anormalidade e a intervenção preventiva da

psiquiatria na vida pessoal, comunitária e institucional.

a essa altura o repertório psiquiátrico já incluía a noção

de impossibilidade de os esquizofrênicos estabelecerem

relações adequadas, o grande sintoma da esquizofrenia

na visão da nosologia de Kraepelin. Essa característica,

aliada àa noções de periculosidade e improdutividade,

passou a estereotipar por contraposição as maneiras de

ser da normalidade na visão da psiquiatria; visão essa

que consolidava a afirmação peremptória do sistema

capitalista. algumas repercussões desse jogo de forças

ideológicas no território da epistemologia da Saúde

Mental são flagrantes. Em 1947, Karl Menninger (apud

bRoWn, 1958, p. 2324), enuncia a seguinte definição

de Saúde Mental:

Adaptação dos seres humanos ao mundo e a outros com o máximo de efetividade e felicidade. Não somente eficiência, ou apenas contentamento - ou a graça de obedecer alegremente às regras do jogo. É tudo isto junto, os comportamentos que implicam consideração social, e uma disposição alegre.

também emblemáticos, Ewalt e Fansworth (apud

bRoWn, 1975) definem o indivíduo saudável como

sendo aquele:

que tem confiança em si mesmo e nos outros, um senso de competência e um sentimento de que a situação hu-

mana tem um significado maior e um valor profundo, tem mais resistência à descompensação emocional do que aqueles que têm atitudes e sentimentos que levam à insegurança.(p. 2324).

Por outro lado, ginsburg (1955) privilegia a capa-

cidade de se relacionar com o meio, que se manifesta

em três áreas principais: amor, trabalho e prazer. Ele

enfatiza como sinais de uma mente sã

a habilidade de reter um emprego, ter uma família, manter-se sem problemas com a lei e aproveitar as oportunidades de obtenção de prazer. (p. 2324).

a noção de sanidade estava centrada, portanto, na

adaptação social e cultural mediada pela segurança pessoal

e confiança na vida e no próximo, na participação alegre

de um jogo cujas regras eram estabelecidas no contexto

de um complexo social e ideológico hegemônico e na

habilidade em se adaptar à sociedade como ela é, aprovei-

tando as oportunidades que ela oferece para o encontro

da felicidade. tornam-se automaticamente suspeitos não

só aqueles que se encontram em forma radical de alie-

nação (os chamados loucos), mas também aqueles que

questionam, angustiam-se ou não aceitam as propostas

de participação social oferecidas pelo sistema.

Essas, e outras definições de mesmo tom, tornam-se

importantes referências e compõem o universo conceitual

dos livros-texto de psiquiatria dos países alinhados com o

sistema de produção e o modus vivendi capitalista, como o

Brasil. tais definições acabaram por nortear, nas décadas

seguintes, os principais textos psiquiátricos, como os de

Mayer-gross (Inglaterra), Kaplan (EUa), Honório delga-

do (Espanha) e Henry Ey (França) entre outros; passaram,

também, a apresentar ressonância em textos das áreas de psi-

cologia, enfermagem psiquiátrica e terapia ocupacional que,

mesmo trazendo eventuais críticas ao modelo biomédico,

aceitavam como base as verdades científicas já estabelecidas

nos textos psiquiátricos a respeito da loucura.

Page 45: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

43olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

Essa linha de pensamento, assim como as linhas

contra-hegemônicas, continuava abordando a Saúde

Mental a partir da doença. a organização Mundial da

Saúde (oMS) problematizou o assunto ao lançar no

preâmbulo de sua constituição, em 1946, a idéia de que

saúde não podia ser considerada apenas como a ausência

de doenças, mas um estado de bem-estar físico, mental

e social. Essa forma de compreender a saúde é simultâ-

nea ao lançamento de O normal e o patológico (1943),

de Canguilhem, que questiona a epistemologia vigente

até então na saúde e com grandes repercussões na Saúde

Mental. Esse filósofo discutiu de forma aprofundada a

questão de a saúde poder ou não ser considerada como

um conceito dentro dos padrões da ciência. o autor

conclui que sim, mas faz uma ressalva: há uma forma

de encarar a saúde que é subjetiva, pessoal e outra mais

objetiva, científica (canguilhEm, 1990). Essa idéia se

contrapunha àquelas de alguns autores da escola feno-

menológica, sobretudo os mais radicais, para os quais

a saúde é uma manifestação exclusivamente de caráter

pessoal, absolutamente privado, só podendo ser avaliada

pela pessoa que a vivencia (almEida filho, 1999).

tal problematização epistemológica, tanto quanto a

definição da oMS de 1946, trouxe conseqüências para

decisões sobre saúde coletiva. a partir desse entendimento

da saúde, como sendo um estado de bem-estar, ou uma

manifestação subjetiva, um atributo que se pode obje-

tivar e até mensurar, fundam-se diferentes maneiras e

possibilidades de programar, ou não, ações a promovam

e reabilitem. dependendo do conceito de Saúde Mental

sobre o qual se fundamenta, é possível pensar em que

consiste a sua manutenção, promoção e reabilitação.

Embora o discurso da saúde coletiva inclua o ob-

jetivo da promoção, as discussões acima colocadas não

são, a nosso ver, suficientemente contempladas nas dis-

cussões clínicas, curriculares ou nos processos de gestão

e planejamento. Essa evasão intensifica a confusão que

se instala a partir da contraposição de uma prática, for-

temente vinculada a uma epistemologia essencialmente

positivista, ao discurso da promoção, privilegiando-se

a quantificação de procedimentos, a protocolização

de ações e a avaliação por alcance de metas gerenciais

estabelecidas por planejamentos normativos.

a promoção da saúde questiona a atuação dos serviços

com base na objetividade e na quantificação. Como estabe-

lecer medidas efetivas para a Saúde Mental, ou objetivar a

análise da condição psíquica, sem voltar a privilegiar uma

nosologia hoje posta sob suspeita do ponto de vista da

eficácia terapêutica? (moREiRa; sloan, 2002).

Não existem definições claras que nos ajudem a

elucidar e quantificar a Saúde Mental, para fins de diag-

nóstico e tratamento e as que existem têm sua credibili-

dade em cheque, como é o caso dos testes psicológicos

e de muitas escalas diagnósticas baseadas em contagem

de itens sintomáticos. a questão pode ter significados

diferentes para profissionais que subscrevem uma abor-

dagem fenomenológica, existencial, qualitativa ou dinâ-

mica, e para gestores e avaliadores que determinam, com

base no desempenho objetivo e quantitativo, a alocação

de recursos nos âmbitos público e privado.

Na medida em que se acirram, e não se resolvem,

as tensões entre a hegemonia do modelo tradicional e a

postura de reforma Psiquiátrica, os profissionais de Saúde

Mental sofrem a ação de fatores estressantes que obstaculi-

zam seu desempenho profissional, obrigados a fazer, muitas

vezes, concessões que os desmotivam e os angustiam.

CONTRIBUIçÕES DO MODELO

CULTURALISTA, DA ANTIPSIQUIATRIA E DA

PSICOLOGIA SOCIAL

o modelo biomédico segue a tradição hegemôni-

ca e, portanto, dicotomiza saúde e doença. Na lógica

prevalente, o avanço de um lado significa a menor

Page 46: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

44 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

ingerência do outro, isto é, quanto mais uma pessoa se

encontra doente menos possibilidades há de que seja

considerada saudável e vice-versa. Essa premissa, aceita

com reservas, na clínica médica, torna-se complicada no

terreno mental que contempla a idéia de que um indi-

víduo pode, por exemplo, apresentar sinais de doença

mental e, ao mesmo tempo, funcionar de forma saudável

em outros planos existenciais ou temporais. o modelo

tradicional, ancorado na descrição e quantificação de

sintomas, se traduz em uma prática institucional que

desconsidera as potencialidades humanas e estigmatiza

por meio de diagnósticos que definem uma condição

como irreversível, apenas controlável por medicamen-

tos. Por outro lado, essa mesma maneira institucional

reforça a promiscuidade terminológica saúde/doença

como Zusman (1975) ilustra:

Instituições de ‘saúde mental’ normalmente atendem a “doentes mentais.” Profissionais de saúde mental são especialistas em tratamento de doenças mentais e têm relativamente pouco treino em saúde mental. Muitos questionários aplicados à população com a intenção de medir a saúde mental na verdade focalizam sintomas de doenças mentais. (p. 2324).

Para ronald laing (1959; 1967) e thomas Szasz

(1974), o diagnóstico é uma construção social e política

de base econômica e cultural; essa discussão é retoma-

da no campo da antropologia Médica sobretudo por

Kleinman (1988) e Young (1982). a contribuição epis-

temológica desses autores é suficientemente vasta para

merecer uma revisão à parte, trabalho a que se dedicou

almeida Filho (1999).

limitamo-nos aqui a enfatizar o reconhecimento,

por Kleinman, das diferenças biológicas e culturais no

estado de doença (sickness). o autor propõe duas cate-

gorias na análise da doença, usando o termo patologia

(disease) para categorizar as alterações biológicas ou

psicológicas, de acordo com a classificação biomédica,

e o termo enfermidade (illness) para as características

culturais da doença. Patologia refere-se à ocorrência ob-

jetiva de funcionamento anômalo dos sistemas orgânicos

ou fisiológicos. Na categoria enfermidade, incorpora-se

a experiência e a percepção individual relativas a uma

variedade de problemas decorrentes da patologia, bem

como a reação pessoal e social à enfermidade, ou seja, o

significado atribuído pessoal e culturalmente à doença.

a antropologia Médica potencializou um novo olhar

sobre a apresentação e o curso das doenças mentais. Sob

sua óptica, as apresentações, percepções, significados e

evolução das doenças não constituem uma realidade ob-

jetiva e inquestionável, como preconiza a psicopatologia

descritiva, mas ocorrem de acordo com o sujeito, com o

grupo sociocultural e com a interpretação e significância

que lhe são atribuídas pela sociedade e pelos próprios pro-

fissionais da área. além de se contrapor a uma nosologia

que reconhece uma evolução da doença independente-

mente da subjetividade, a abordagem antropológica tira

o foco da doença e o coloca na pessoa que sofre e nos

sujeitos que a circundam, inclusive o profissional que

a diagnostica e trata. Essa é uma proposta radical para

evolução do pensamento sobre a doença mental, embora,

como enfatiza almeida Filho (1999), a doença ainda seja

a referência para se pensar a saúde.

a antipsiquiatria, na década de 1960, marcou uma

nova aderência à fenomenologia existencial e uma transi-

ção para as definições reformistas contemporâneas, enfa-

tizando o condicionamento social da construção coletiva

da experiência e das identidades de grupos e indivíduos

(szasz, 1974). Uma criança, argumenta laing (1967),

começa já em tenra idade a perpetuar valores, crenças

e atitudes aprendidos no contexto da vida familiar e

por conta dos meios de comunicação. À medida que

se desenvolve pela socialização que acontece na igreja,

na escola, nos clubes e em outras instituições nas quais

se estabelecem relações, cujo acesso é determinado por

sua classe socioeconômica e pelas oportunidades que

Page 47: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

45olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

lhe são apresentadas (ou negadas) de acordo com sua

inserção sociocultural. a definição da insanidade mental,

aponta Szasz (1974), é produzida a partir dessas normas

e padrões de desenvolvimento, que obedecem a regras

morais e servem à opressão de minorias socioeconômicas

e aos interesses de indústrias de serviços e de produção

farmacológica, que dependem da sistematização da in-

sanidade para o seu sustento econômico e político.

a fenomenologia existencial, na visão da antipsi-

quiatria, conceitua a experiência humana como experi-

ência comum, compartilhada socialmente. lane (1984)

corrobora esta visão, apontando que toda psicologia é

psicologia social; não há como dicotomizar ser indivi-

dual e ser social. a autora trabalha a idéia de ‘indivíduo

social’, argumentando que a formação da identidade é

completamente relacional, que ocorre não só em fun-

ção de fatores pessoais, mas das relações com o mundo

exterior. Eu sou o que o outro ajuda a definir. Minha

experiência é parte da experiência geral do mundo. Mi-

nha percepção do mundo exterior, meus desejos, atitudes

e ambições são fruto do que os outros determinam. os

‘outros’ são pessoas, grupos e instituições com os quais

estou envolvido direta e pessoalmente, ou aqueles que

nem mesmo suspeito quem sejam, mas que podem in-

fluenciar minha maneira de ser. a idéia de que a Saúde

Mental da pessoa depende, além dela mesma, de suas

relações com o outro e com o mundo, também se con-

trapõe à radicalidade nosográfica-positivista, já que essa

busca a explicação da determinação da Saúde Mental

primordialmente a partir da genética e da bioquímica.

TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE

DEFINIçÃO DE SAúDE MENTAL

a década de 1970 foi marcada pelo desenvol-

vimento de uma série de movimentos de reforma,

destacando-se a atuação de Franco Basaglia na Itália,

que adicionou à sua visão epistemológica uma prática

política que visava o fim dos manicômios. Vastas

revisões sobre a reforma Psiquiátrica, na Itália e no

Brasil, têm sido conduzidas, como na obra de Basa-

glia (1985), amarante (1995) e rotelli, leonardis e

Mauri (2001).

Uma série de definições de Saúde Mental ainda

têm sido propostas, seguindo as várias vertentes que

compõem os eixos teórico-conceituais da área. Kaplan,

Sadock e grebb (1997) revisam o conceito e apontam di-

versos fatores considerados nessas definições, entre eles,

a resistência funcional, a constância da personalidade, a

disposição pessoal, o crescimento e o desenvolvimento

compatíveis com ciclo vital, a auto-afirmação, as atitudes

com o self, a percepção da realidade, a previsibilidade

de ações, as formas de reação perante circunstâncias

internas e externas, as características adquiridas e

adaptadas em relação ao meio-ambiente, a habilidade

de se relacionar com o meio ambiente e os graus de

autonomia, entendida como uma independência das

influências sociais.

Se pensarmos as tendências a partir do relatório

lalonde, um dos marcos da Promoção de Saúde, lan-

çado em 1974, teríamos ainda que considerar o estilo

de vida, a capacitação das comunidades e a oferta de

serviços como fatores condicionantes da saúde. a Saúde

Mental, nessa perspectiva, depende também da respon-

sabilidade pessoal e admite a influência dos poderes

socioinstitucionais.

Finalmente, em 2001 a organização Mundial de

Saúde enunciou uma definição de Saúde Mental, como

um:

Estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza suas habilidades, consegue lidar com os estresses normais da vida, pode trabalhar produtivamente e frutiferamente e está em condições de contribuir com sua comunidade. (Organização Mundial de Saúde, 2005).

Page 48: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

46 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

Pode-se dizer, ainda, que a evolução conceitual

no campo da Saúde Mental, em seus aspectos mais

progressistas, propicia um retorno da filosofia exis-

tencial como base interpretativa para a experiência

subjetiva (amaRantE, 2007). a compreensão ampla

desta evolução nos ambientes curriculares, acadêmi-

cos e clínicos, pode se fortalecer com o fomento de

discussões sobre a natureza da saúde, da doença, da

cura, da reabilitação, da promoção e da prevenção;

assim como discussões sobre temas como a inter e

a transdisciplinaridade, o interparadigmatismo, as

relações de poder e a contratualidade exercida entre

profissionais, serviços e usuários, direitos humanos,

autonomia e cidadania das pessoas com transtornos

psíquicos, natureza, missão e funcionamento das

instituições, institucionalização e desinstituciona-

lização, determinação multifatorial envolvida nos

processos saúde-doença e, enfim, sobre a natureza

essencialmente política da epistemologia em Saúde

Mental (vasconcElos, 2002; almEida filho, 1999).

Essas discussões podem viabilizar o exercício de novas

formas de relação, novas linguagens, novas práticas e

novas tecnologias sociais nos projetos terapêuticos,

bem como nortear a participação do profissional de

Saúde Mental em ações comunitárias.

É importante discutir como se efetiva e se cons-

trói, conceitualmente e na prática, a postura, o olhar,

do profissional e das instituições em relação ao sujeito

que procura por seus serviços ou é colocado involun-

tariamente na condição de usuário. o debate entre

correntes positivistas, biologicistas, fenomenológicas,

existencialistas, culturalistas, entre outras, tem um po-

tencial frutífero se exercido como um diálogo no qual

podem emergir livremente as discussões sobre estes e

outros temas relevantes para o avanço do projeto sani-

tário do SUS.

CONSIDERAçÕES FINAIS

Frente a um mundo em constante transformação, o

profissional de Saúde Mental enfrenta questionamentos

sobre temas emergentes e persistentes e, particularmente,

sobre o desenvolvimento de seu campo profissional.

Uma das formas de definir o campo da Saúde Mental

é como um sistema aberto que pensa a natureza, as

condições e as interações humanas, contextualizando

sua existência cognitivo-intelectual e suas interações

simbólicas. Esse sistema funciona em meio a uma

perspectiva sociocultural que constantemente avalia

comportamentos, determinando quais são adequados e

quais são inadequados. Nessa perspectiva, o campo da

Saúde Mental é um universo no qual constantemente

se elaboram, checam, discutem e restabelecem valores,

símbolos e significados; é um campo que contribui com

a formação, compreensão e elaboração de atitudes e

comportamentos pessoais, profissionais e institucionais,

diretamente influenciadores na qualidade da vida dos

indivíduos e das comunidades por meio do poder que

os profissionais detêm sobre os processos privados e

coletivos de saúde-doença.

o avanço neste campo é crucial para uma sociedade

mais sadia, mais justa e humanizada e se materializa no

seio de processos sociais complexos, como as Políticas

Públicas. a discussão das bases conceituais em Saúde

Mental contrasta e dialoga, assim, com um pano de

fundo social, político e cultural. as maneiras de concei-

tuar ‘saúde’ e ‘Saúde Mental’, transcendem disciplinas

científicas e territórios de ação em saúde, colocando

em perspectiva a necessidade de o profissional de Saúde

Mental encarar, em sua permanente formação, os papéis

que exerce frente à realidade da experiência humana da

forma como ela se apresenta no cotidiano de indivíduos,

grupos, comunidades e instituições.

Page 49: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

47olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

R E F E R Ê N C I A S

alExandER, F.g.; sElEsnicK, S.t. História da psiquiatria: uma avaliação do pensamento e da prática psiquiátrica desde os tempos primitivos até o presente. tradução aydano arruda. São Paulo: ibRasa, 1980.

almEida filho, N. o conceito de saúde mental. Revista USP, São Paulo, n. 43, p. 100-25, set./nov. 1999.

amaRantE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. rio de Janeiro: fiocRuz, 2007.

______. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiqui-átrica no Brasil. 2. ed. rio de Janeiro: fiocRuz, 1995.

amERican PsychiatRic association. Referência rápida aos critérios diagnósticos do DSM-IV-TR. tradução Maria Cristina ramos gularte. 4. ed. Porto alegre: artmed, 2003.

basaglia, F. (org.). A instituição negada. 3. ed. tradução Heloisa Jahn. rio de Janeiro: graal, 1985.

bRoWn, B.S. definition of mental health and disease. In: fREEdman, a.M.; KaPlan, H.I.; sadocK, B.J. com-prehensive textbook of psychiatry II. 2. ed: Baltimore: Williams & Wilkins, 1975.

camPos, g.W.S. Reforma da reforma: repensando a saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

canguilhEm, g. O normal e o patológico. 3. ed. tradução luiz otávio F. Barreto leite. rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

foucault, M. História da loucura na idade clássica. tradução José teixeira Coelho Neto. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 4. ed. tradução lígia M. Ponde. rio de Janeiro: Vozes, 1986.

ginsbuRg, S.W. the mental health movement and its theoretical assumptions. In: KotinsKy, r.; WitmER, H. (Ed.). community programs for mental health. Cambrid-ge, Massachussets: Harvard University Press, 1955.

Jahoda, M. current concepts of positive mental health. Nova Iorque: Basic Books, 1958.

JasPERs, K. Psicopatologia geral. 7. ed. tradução Samuel Penna reis. rio de Janeiro: atheneu, 1979.

KaPlan, H.I.; sadocK, B.; gREbb, J.a. compêndio de psiquiatria. 7. ed. tradução dayse Batista. Porto alegre: artes Médicas, 1997.

KlEinman, a. Rethinking psychiatry. Nova Iorque: Free Press, 1988.

laing, r.d. The politics of experience. Nova Iorque: Ballantine, 1967.

______. The divided self. londres: tavistock, 1959.

lanE, S. a psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In: lanE, S.; codo, W. (org.). Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.

moREiRa, V.; sloan, t. Personalidade, ideologia e psico-patologia crítica. São Paulo: Escuta, 2002.

olivEiRa, W.F. O currículo oculto e as relações de poder na formação do profissional de saúde mental. anais do VII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva: saúde, justiça e cidadania. Ciência e Saúde Coletiva, v. 8, Fasc. 1. rio de Janeiro: abRasco, 2003.

olivEiRa, W.F.; doRnElEs, P.S. Patrimônio e ambiente da loucura: a formação do profissional de saúde mental e o diálogo com a vida da cidade. In: amaRantE, P. (org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. v. 2, p. 13-43. rio de Janeiro: Nau, 2005.

oRganização mundial dE saúdE. Saúde mental. www.oms.org. acesso em: 30 set. 2005.

Page 50: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

48 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

Rosa, l.C.S. O nordeste na reforma psiquiátrica. tere-sina: UFPI, 2006.

RotElli, F.; lEonaRdis, o.; mauRi, d. desinstitucio-nalização, uma outra via. In: RotElli F.; lEonaRdis o.; mauRi d. (org.). Desinstitucionalização. São Paulo: hucitEc,2001. p. 17-59.

scalzavaRa, F. A operacionalização da reforma psiqui-átrica brasileira: um estudo do cAPS Ponta do coral de Florianópolis. dissertação. Faculdade da UFSC, Florianópolis, 2006.

szasz, t. The myth of mental illness: foundations of a theory of personal conduct. Nova Iorque: Harper & row, 1974.

vasconcElos, E.M. complexidade e pesquisa interdisci-plinar: epistemologia e metodologia operativa. rio de Janeiro: Vozes, 2002.

young, a. the anthropologies of illness and sickness. American Review of Anthropology, n. 11, p. 257-85, 1982.

zusman, J. Primary prevention. In: fREEdman, a.M.; KaPlan, H.I.; sadocK, B.J. (org.). comprehensive text-book of psychiatry. 2. ed. Baltimore: Williams & Wilkins, 1975. p. 2326-32

recebido: maio/2008

aprovado: set./2008

Page 51: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 49

Breve história da reforma Psiquiátrica para

uma melhor compreensão da questão atual*Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension

of the current debate

RESUMO O presente artigo visa fornecer um breve histórico do que se convencionou

denominar Reforma Psiquiátrica, partindo do pressuposto de que a psiquiatria

moderna, como especialidade médica, nasceu com uma reforma que seria, portanto,

um conceito intrínseco a ela. Das várias nuanças do termo, em particular, nos

desdobramentos nos anos 1950, na França, Inglaterra, Itália e Estados Unidos, visa-

se depreender o campo instituído da Saúde Mental – dos manuais de Psiquiatria à

Psicanálise, passando pelas Políticas da saúde pública –, supondo que o conhecimento

da história possa trazer instrumentos para uma melhor compreensão do que se

apresenta atualmente como tensão entre clínica e atenção psicossocial.

PALAVRAS-CHAVE: Reforma Psiquiátrica; Políticas de saúde; Manuais

psiquiátricos; Psicanálise.

ABSTRACT The article proposes a brief history of the so called Psychiatric

Reforms. It begins with the idea that modern Psychiatry was born as a reform

which would, in consequence, be intrinsic to psychiatry. Plural nuances of the

term are studied, particularly, those arisen from the movements in 1950´s and

changes in Psychiatry occurred in France, England, Italy and the United States.

The instituted field for Mental Health will then be examined as a derivation

from the effects of Psychiatric manuals and Psychoanalysis, as well as public health

politics, assuming that the fact of better knowledge of the history may provide

instruments for a better comprehension than the actual one, which presents a

tension between the clinic work and the psychological and social care.

KEYWORDS: Psychiatric Reform; Health politics; Psychiatric manuals;

Psychoanalysis.

richard Couto 1

Sonia albert i 2

1 Mestre em Pesquisa e Clínica em

Psicanálise pelo Instituto de Psicologia

da Universidade do Estado do rio de

Janeiro (IP/UErJ).

[email protected]

2 Professora adjunta do IP/UErJ;

e pró-cientista da UErJ; doutora

em Psicologia pela Universidade de

Paris X-Nanterre; pós-doutorada pelo

Instituto de Psiquiatria da Universidade

Federal do rio de Janeiro (IPub/UFrJ);

pesquisadora do Conselho Nacional

de desenvolvimento Científico e

tecnológico (CNPq); psicanalista

membro da Escola de Psicanálise dos

Fóruns do Campo lacaniano.

[email protected]

* texto que se baseia no primeiro capítulo da dissertação de Mestrado de richard Couto, orientando da professora Sonia alberti, que foi defendida e aprovada em 30 de abril de 2008.

Page 52: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

50 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

I N T R O D U ç Ã O

Em toda sua história, é a primeira vez, no Brasil, que

a atual reforma Psiquiátrica tem uma pretensão prática.

o intuito desta pesquisa não é refazer, em todos os seus

aspectos, a trajetória desta reforma, mas percorrer sua no-

ção, que está intimamente ligada à psiquiatria moderna,

a ponto de se poder levantar a hipótese de que a própria

psiquiatria moderna nasce com uma reforma. Com efeito,

quando Pinel abriu os portões do Hospital de Bicêtre

para a saída dos mendigos, dos órfãos e dos pobres, de

modo geral, que foram enclausurados devido à grande

mudança dos meios de produção na Europa e que gerou

modificações sociais contundentes no século 18, os loucos

foram mantidos enclausurados (MoRRissEy, goldman e

KlERman, 1980). assim, pode-se dizer que a primeira

reforma Psiquiátrica foi empreendida por Pinel, como

uma maneira de delimitar os loucos e suas questões no

espaço hospitalar, submetendo-os ao poder psiquiátrico,

sustentado pelo saber médico. tal observação não data de

hoje, veja-se, por exemplo, o texto de tuke (1892). Por

outro lado, no Brasil, a reforma Psiquiátrica é, atualmen-

te, elevada à categoria de conceito, guardando relação com

os documentos oficiais que regulamentam, viabilizam e

concretizam as propostas engendradas pelo movimento

sustentado pela lei 10.216. BraSIl. MINIStÉrIo da

SaÚdE. lei n.º 10216, de 06 de abril de 2001.

AS VÁRIAS NUANçAS DO TERMO REFORMA

PSIQUIÁTRICA

Primeiramente, parte-se da hipótese de que o termo

reforma Psiquiátrica está presente no corpo do saber psi-

quiátrico moderno desde seu nascimento, como uma das

muitas especialidades da Medicina. No Brasil, nos últimos

20 anos, no Brasil, é que o termo reforma Psiquiátrica

ganhou ares de grande novidade, principalmente com

aprovação da lei federal 10.216, em 6 de abril 2001, con-

solidando a desospitalização gradual dos pacientes psiqui-

átricos e a diminuição dos leitos hospitalares, bem como a

invenção de dispositivos substitutivos. daí a questão: que

implicação há entre o antigo e os novos dispositivos de

atendimento para os portadores de sofrimento psíquico e

para os usuários da assistência em Saúde Mental no Brasil,

como são denominados pela lei 10.216?

Com base do que foi apresentado na introdução (a

reforma ocorrida no século 18), o intuito desta pesquisa

é verificar que, com Pinel, a circunscrição dos doentes

mentais nos hospitais psiquiátricos (locais onde se pode-

ria melhor estudar e tratar os doentes por meio do então

proposto ‘tratamento moral’), se consolidou como uma

reforma. Para tal tratamento, considerava-se que a cura

das patologias mentais deveria ser conduzida mediante

a atenção integral à mente do doente, partindo da supo-

sição de que restava algo íntegro da razão perdida com a

doença. Pinel sustentava-se em sua relação com a história

natural e a filosofia para especificar as particularidades

das doenças mentais (bERchERiE; 1989).

Em nome do saber científico, a psiquiatria, para con-

testar Pinel, mais uma vez projeta uma reforma excluindo de

seu campo o tratamento moral da loucura e visa uma nova

maneira de tratamento, baseada no empuxo ao cientificismo

presente no século 19, em particular a partir de sua segunda

metade (albERti, 2003). Contudo, o que os historiadores

mostram é que por trás dessa reforma está a exigência feita à

Psiquiatria de retirar das grandes cidades, tanto na Europa,

quanto na américa do Norte, aqueles que poderiam abalar

e perturbar a ordem vigente dessas sociedades (Foucault,

1972; rEsEndE, 1987; Candiotto, 2007).

a massa que ocupou os hospitais psiquiátricos por

longos anos, especialmente a partir do início do século

Page 53: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

51CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

20, e o próprio modelo asilar, somente foram novamente

postos em questão depois da Segunda guerra Mundial.

Muitos fatores contribuíram para esse questionamento

e por uma nova argumentação de reforma Psiquiátrica.

dentre os principais fatores que exerceram influência para

a desmobilização das internações psiquiátricas, nos anos

do pós-guerra estão: o crescimento econômico de alguns

países, a reconstrução social e os movimentos sociais e civis.

Há outros fatores importantes: os psicofármacos – apesar

dos freqüentes questionamentos quanto aos efeitos de

sua comercialização –, a entrada da psicanálise nos meios

psiquiátricos. tanto nos hospitais ingleses quanto nos fran-

ceses, o número de psiquiatras com formação psicanalítica

cresceu consideravelmente, o que gerou uma nova forma

de postura diante do paciente psiquiátrico. Nos Estados

Unidos, essa influência da Psicanálise gerou a chamada

Psiquiatria Psicodinâmica; identificada com uma prática

liberal, a Psicanálise que se impôs no campo da Psiquiatria,

nos anos 1950, era aquela praticada na american Psycho-

analytic association (aPa), restringindo o exercício da

Psicanálise aos médicos – apesar das críticas veementes a

essa prática levantadas por Freud já em 1926 e 1927.

tal conjuntura também trouxe, ao campo da do-

ença mental, a reivindicação da participação da saúde

pública de competência do Estado, obrigando-o a uma

maior implicação nessa área. Isso foi de grande relevância

para os diferentes movimentos de reforma Psiquiátrica

surgidos a partir da década de 1950, como: a Psicologia

Institucional e a Política de Setor, na França; a Psiquia-

tria Comunitária e antipsiquiatria, na Inglaterra; a

Psiquiatria antiinstitucional, na Itália, e a desinstitu-

cionalização, nos Estados Unidos.

Segundo desviat (1999), apesar de haver diferenças

entre todos esses movimentos de reforma Psiquiátrica, as

condições norteadoras e essenciais para suas efetivações

foram as mesmas: 1) um clima social favorável ao ques-

tionamento do modelo manicomial, respaldado num

consenso técnico, político e social, que permitia a elabo-

ração de objetivos alternativos ao hospital psiquiátrico; 2)

a legitimação administrativa, que deveria partir do Estado

em forma de um compromisso de levar adiante o processo

de reforma, auxiliado por um corpo técnico qualificado.

Para o autor mencionado, todas as tentativas de reforma

Psiquiátrica são marcadas por estas duas condições.

DA PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL àS

COMUNIDADES

a Psicoterapia Institucional e a Política de Setor, na

França, formaram um conjunto de reformas que influen-

ciaram várias regiões da Europa, mas também a américa

latina, como o Brasil. a Psicoterapia Institucional foi o

braço teórico-clínico da política de setor francesa, aquela

que orientava o atendimento aos doentes mentais de

forma setorizada. tal forma de serviço pôde ser verificada

depois em outros movimentos de reforma Psiquiátrica

que estabeleceram sempre a divisão em zonas para os

serviços de atendimento. Pode-se dizer que a experiência

francesa foi a primeira a pôr, na prática, o atendimento em

zona. Naquele país, a marca da Psicoterapia Institucional

foi uma forte adesão à Psicanálise, principalmente a de

orientação lacaniana. a hipótese inicial da Psicoterapia

Institucional estabelecia que a instituição total, seja ela

hospital, presídio, entre outros, estava doente. Com

isso, não só os pacientes ou usuários eram doentes, mas

também os funcionários e agentes da instituição, e ambos

deveriam ser tratados. assim, o marco da Psicoterapia

Institucional e da Política de Setor se fez em razão de sua

proposta: ser uma ação de saúde pública1.

1 tal proposta da Política de Setor tinham como princípios fundamentais: o princípio da setorização ou zoneamento - delimitaram-se áreas com 50 mil a 100 mil habitantes; o princípio da continuidade terapêutica - uma mesma equipe, no conjunto de cada setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos diferentes serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até a cura e pós-cura; o eixo da assistência deslocou-se do hospital para o espaço extra-hospitalar - o paciente deveria ser atendido, na medida do possível, na própria comunidade e o efeito cronicizador da instituição deveria ser evitado (dEsviat, 1999).

Page 54: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

52 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Já a Comunidade terapêutica forneceu subsídios

à Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde da grã-

Bretanha. as comunidades terapêuticas tiveram seu início

ainda nos tempos da Segunda guerra Mundial, principal-

mente pelo trabalho realizado pelo psicanalista inglês W.

Bion, por meio do atendimento em grupo aos soldados

que apresentavam problemas quanto ao engajamento na

guerra. Essa foi a forma que ele encontrou para atender

um grande número de pacientes. No entanto, seu trabalho

diferia o grupo daquele identificado por Freud (1976C)

na medida em que propunha um grupo sem chefe. Bion

trabalhou com a possibilidade da existência:

de um grupo que não se baseia no Ideal do Um (como Exército e a Igreja nas célebres análises freudianas), mas que fizesse existir o particular do sujeito promo-vendo a heterogeneidade inassimilável a qualquer fu-são identificatória. (lauREnt et al.; 1998, p. 259).

deve-se salientar que as diretrizes da lei de Saúde

Mental britânica não tinham como objetivo abolir

do sistema o hospital psiquiátrico ou diminuir leitos

psiquiátricos nas unidades; o fechamento deveria ser

tributário do estabelecimento de outras unidades de

assistência aos pacientes e de serviços presentes nas

comunidades onde os pacientes se encontravam. a

estruturação dos serviços, a partir do seu planejamento

em regiões, com a ênfase nos programas de atendimen-

to parcial e nos serviços residenciais completos nas

comunidades, logo foi elogiada por órgãos internacio-

nais como a organização Mundial de Saúde (oMS).

Finalmente, é notória a modificação do tratamento

da questão com essa contribuição especificamente

inglesa e que tange à designação do campo já não

mais chamado de doença, mas de Saúde Mental, pois

foi a iniciativa inglesa que adotou este termo em seus

documentos, tanto que hoje a privilegia em detrimento

à doença mental.

ENTRE HUMANIZAçÃO E ECLETISMO

a Psiquiatria antiinstitucional, que se fez ponto

de partida para a reforma Psiquiátrica italiana, teve

seu início na experiência do psiquiatra Franco Basaglia,

quando, em 1961, ele assumiu a direção do Hospital

de gorizia, província italiana. o movimento basaglia-

no se caracterizou pela tentativa de humanização e a

transformação da instituição psiquiátrica, apoiando-se

no modelo de Comunidade terapêutica. Porém, em se-

guida, a tentativa era de levar a experiência dos pacientes

para fora dos muros do hospital, para a sociedade que

os excluiu:

Uma comunidade que se queira terapêutica deve levar em conta esta realidade dupla, a doença e a estigma-tização, para poder reconstruir gradualmente o rosto do doente, como devia ser antes de a sociedade, com seus inúmeros atos de exclusão e através da instituição que inventou, agir sobre ele com sua força negativa. (Basaglia; 1967 [1985], p. 124).

ao contrário dos movimentos na França e na Ingla-

terra, o movimento de Basaglia realizou uma contestação

incondicional do modelo manicomial. Uma das críticas

mais enfáticas ao hospital psiquiátrico, realizadas por

Basaglia e seu grupo, foi a violência praticada contra

o doente mental, como o choque elétrico, os métodos

de indução ao desmaio, a contenção e outros. Para o

psiquiatra italiano, a violência é tributária, direta das ins-

tituições, sejam elas a família ou o hospital psiquiátrico,

além de ser condição essencial para o estabelecimento e a

efetivação da instituição e tendo uma função meramente

adaptativa maquilada por um discurso respaldado no

campo médico a inferir uma causalidade biológica ao

sofrimento psíquico. o psiquiatra respalda a objetivação

que fica ainda mais acentuada devido ao assujeitamento

do paciente à instituição e ao saber psiquiátrico. Basaglia

ainda afirma que o problema não é a doença em si, mas

Page 55: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

53CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

a relação que se estabelece com ela, pois tanto o psiquia-

tra quanto a sociedade sempre tentaram se defender do

doente mental.

a desinstitucionalização norte-americana não

ofereceu resultados satisfatórios; na verdade gerou um

grande número de abandonados. até hoje, o estado

norte-americano não dispõe de Políticas Públicas de

Saúde, tais como os estados europeus ou como o Brasil.

Salvo o período em que John Kenndy foi presidente, o

estado americano pouco fez para se ter uma reforma

Psiquiátrica no país. Isso não quer dizer que nos Estados

Unidos não havia hospitais psiquiátricos públicos. Em

1955, havia, no país, cerca de 600 mil leitos psiquiá-

tricos e até 1958 houve uma crescente no número de

internos, sendo que os métodos de tratamento foram

questionados tanto pela opinião pública quanto por

psiquiatras da associação Norte-americana de Psiquia-

tria. diante desse quadro, em 1963, John Kennedy

realizou um discurso intitulado Mensagem sobre a

doença e o retardo mentais2, no Congresso Nacional

Norte-americano, para lançar seu programa de Saúde

Mental, que chegou a ser considerado uma revolução

na psiquiatria norte-americana. depois da mensagem,

foi apresentado ao Congresso Nacional, o projeto cujo

título era Community Mental Health Centers act of

1963, que estabelecia a criação de serviços que visassem

a prevenção e/ou o diagnóstico das doenças mentais e

que o atendimento a esses pacientes seria realizado ao

nível comunitário.

as propostas dos centros de Saúde Mental norte-

americanos a serem estabelecidos, a cada 75 a 200 mil

habitantes, eram de oferecer à comunidade serviços

essenciais tais como atendimento de emergência e

hospitalização no período de 24 horas, todos os dias da

semana. Como todo projeto de reforma Psiquiátrica,

os centros de Saúde Mental tinham como princípios:

a facilidade de acesso pela população aos serviços, que

incluía uma boa localização e descentralização dos refe-

ridos serviços; informações à população da área sobre os

serviços, a assistência e suas características. além disso,

tais serviços deveriam ser gratuitos e disponíveis a todos.

outra marca do projeto implantado por Kennedy foi sua

ênfase na prevenção da doença mental, como também

a tentativa de abrangência das necessidades da comuni-

dade atendida e não somente dos doentes mentais, que

já tinham tratamento.

o método utilizado para realizar o tratamento

poderia ser considerado eclético ou multidisciplinar:

psicoterapia de várias orientações, psicofármacos, tera-

pia ocupacional, etc. todavia, a orientação que mais se

destacou nos centros de Saúde Mental foi a Psiquiatria

Preventiva, de gerald Caplan, que pode ser considerado

o seu criador. a concepção de doença mental para a Psi-

quiatria Preventiva residia na postulação de que as várias

formas de doença mental, nas diferentes populações,

eram resultado de fatores contrastantes, fatores positivos,

denominados subsídios e fatores negativos, denominados

práticas de risco. o trabalho da Psiquiatria Preventiva seria

identificar tais fatores negativos e tentar corrigi-los de

maneira positiva, para que eles não viessem a desencadear

uma doença mental. a teoria da crise, desenvolvida em

1944 por lindemann, tornou-se a base da Psiquiatria

Preventiva. Caplan também se valeu das noções de crises

evolutivas e acidentais do psicanalista norte-americano

Erik Erikson. o projeto apresentado por Kennedy previa

a criação de 2.000 centros, mas foram criados somente

600. além disso, na ausência de um sistema nacional de

saúde e o estado crônico de alguns pacientes – e a pouca

importância que se deu ao fator da causalidade social tão

enfatizada na Mensagem do Presidente, em 1963 – aca-

bou por restringir os efeitos originalmente desejados ao

funcionamento dos centros de Saúde Mental.

2 Special Message to the Congress on Mental Illness and Mental retardation.

Page 56: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

54 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

A SAúDE MENTAL COMO CAMPO DE LUTA

E DEBATE: OS MANUAIS E A PSICANÁLISE

logo após as iniciativas de Kennedy, um movimen-

to de psiquiatras, surgido da Psiquiatria universitária

de orientação bioquímica, iniciou uma campanha de

retorno da Psiquiatria aos pressupostos médicos e cien-

tíficos do século 19, movido pelas pesquisas de cunho

psicobiológico e psicofarmacológico, principalmente

os trabalhos publicados em 1962 por donald Klein

sobre a eficácia da imipramina. Esse movimento ficou

conhecido como a Escola de Saint louis, que, na dé-

cada de 1970, deu partida à eliminação, por meio da

eficácia do medicamento, da diferença existente entre

psicose e neurose, iniciando a depreciação das entidades

clínicas presentes na Psiquiatria clássica e mantidas pela

Psicanálise, com lacan, que, na França, conceituou-as

como estruturas clínicas. No lugar da descrição e con-

ceituação das entidades clínicas como psicose, neurose e

perversão, preferiu-se uma lógica do conceito descritivo,

apoiada na noção de transtorno (disorder). as condições

para estabelecer o dSM-III e suas posteriores edições

estavam dadas:

O Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Norte-Americana (DSM) constitui o resultado melhor acabado das propostas empírico-operacionais da chamada Escola de Saint-Louis, liderada por Feighner, Robins e guze na década de 70. A criação de um sistema operacional de diagnós-tico para pesquisa como o RDc (Research Diagnostic criteria) e, posteriormente, do DSM-III derivam diretamente das proposições daquele grupo. (PEREiRa, 1998, p. 4).

os manuais que se seguiram pretenderam ser cada

vez mais desvinculados do saber psiquiátrico, a ponto

de, atualmente, a própria prática da Psiquiatria neles

sustentada ser de interesse cada vez menor para os

estudantes de Medicina: “deliberadamente ateóricos

[...excluem] toda e qualquer hipótese etiopatogênica,

como também [fazem desaparecer] o próprio conceito

de doença” (QuinEt, 2006, p. 12).

Por que não considerar a criação dos manuais de

diagnósticos ateóricos como uma reforma Psiquiátrica?

Porque a reforma Psiquiátrica não é somente movi-

mentos que contestam o saber psiquiátrico e visam a

substituição do modelo asilar de reclusão, mas é também

aqueles movimentos que tentam salvar a Psiquiatria, seja

com propostas de trabalho diferentes das anteriores, seja

instrumentalizando-a com as descobertas do saber médi-

co-científico ou tentando eliminar a confusão conceitual

entre as diversas disciplinas psiquiátricas. levantou-se

a hipótese de que a proposta do dMS de ser ‘ateórico’,

além de ser um projeto empírico-pragmático, também

deve ser examinada como uma proposta de reforma

Psiquiátrica. Segundo Pereira, a orientação ‘ateórica’ é

uma tentativa de não estar “submetido aos pressupostos

de qualquer uma das inúmeras disciplinas concorrentes

no campo da psicopatologia” (1998, p. 4). tal tentativa

é centrada de maneira enfática no empirismo dos fatos

clínicos, ou seja, tão somente nos fenômenos clínicos,

identificados e sustentados pela chamada Medicina

Baseada em Evidências (MBE).

a confecção do dSM também se serviu da di-

mensão sanistarista que sempre esteve subsidiada pela

epidemiologia e pela Medicina Social, encontrando,

assim, um lugar dentro das políticas de saúde públi-

ca. tendo em vista que o estado considera necessária

a intervenção da Medicina no social, no cotidiano,

principalmente quando a clínica passa a ser regida por

parâmetros normatizados, o dSM acabou sendo bem

recebido por se fazer um instrumento para o estado. a

marca dos últimos 30 anos é a busca de um ideal de

eficácia que a consolidação do dSM visa em garantir

a normatização dos usuários, apagando as diferenças

subjetivas que cada paciente pode ter se lhe é dada a

oportunidade de comparecer com sua singularidade.

Page 57: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

55CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Não é sem razão que muitos governos, inclusive no

Brasil, adotaram como modelo de tratamento, em

muitos hospitais e ambulatórios, as prescrições dadas

pelos Manuais de diagnósticos, como a classificação

diagnóstica e o uso de medicação correspondente; as

fichas de prontuários são a prova disso, tendo em vista

que exigem a sigla do transtorno que se supõem ser os

mais adequados ao paciente.

Numa vertente oposta à eficácia normatizada, à

biologização e à medicalização do sofrimento huma-

no está a Psicanálise. o rompimento da ortodoxia

psicanalítica se deu, em parte, mediante o ensino de

lacan, na França, que possibilitou o reconhecimento

da Psicanálise por teóricos do campo da Saúde Mental

como um saber que tem contribuições importantes

à Saúde Mental (cf. FiguEiREdo, 1997). Mas o uso

da Psicanálise nessas iniciativas não deixou de causar

questões em lacan, que, em vários momentos de seu

ensino, advertiu seus alunos sobre a extraterritorialida-

de da Psicanálise em relação à Medicina, aos psicólogos

e “outros distintos assistentes terapêuticos” (lacan,

1966[2001], p. 32).

A CONJUNTURA QUE LEVOU à ATUAL

REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA

Em 1852 foi o surgimento da instituição psiquiá-

trica brasileira. o hospital dom Pedro II, inaugurado

pelo próprio imperador, destinado aos doentes de todo

o território nacional, tinha uma capacidade para so-

mente 350 doentes e, no momento de sua abertura, já

contava com 144 internos. Uma característica peculiar

da Psiquiatria brasileira foi sua associação à Medicina

Higienicista. No governo de rodrigues alves (1902-

1906), dois nomes se destacaram na então ciência

brasileira: oswaldo Cruz e Juliano Moreira. a missão

desses médicos era ‘limpar’ a cidade do rio de Janeiro

do risco de infecção gerada pela falta de saneamento e

planejamento urbanos e da massa de desempregados e

indigentes que habitavam as ruas (rEsEndE, 1987). Por

meio de Juliano Moreira, criaram-se os hospitais colônia,

promovendo o uso do trabalho agrícola como instru-

mento de tratamento global dos doentes mentais. Como

tal projeto não vingou, os hospitais agrícolas acabaram

aderindo a sua verdadeira função, isto é, a exclusão dos

doentes mentais em locais geograficamente distantes.

a massa presente nos hospitais psiquiátricos, nas

colônias e as condições dessas instituições não sofreram

grandes modificações na era Vargas, no Estado Novo.

Pelo contrário, houve apenas reforma e ampliação das

instalações já existentes e a criação em larga escala de

outros hospitais estaduais, financiados pelo governo

Federal, que obedeciam ao modelo de colônia agrícola.

o modelo manicomial sempre foi a mola mestra das

Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil. Com o go-

verno militar na década de 1960, o que se testemunhou

foi a criação de clínicas e hospitais privados subsidiados

pelo estado, movidos pelos favorecimentos políticos e

o enriquecimento de seus proprietários, às custas das

diárias pagas pelo estado por cada paciente internado.

Em contraposição, durante os anos 1970, o mo-

vimento que resultou nas ‘Comunidades terapêuticas’

instaladas em alguns hospitais psiquiátricos, passou

a apostar na possibilidade de efetivamente sustentar

um trabalho terapêutico em função das propostas que

vinham das reformas realizadas em outros países e dos

investimentos pessoais de alguns psiquiatras. delgado

(1998) circunscreve três eventos políticos que desenca-

dearam o início da contestação e aquilo que se deno-

minou reforma Psiquiátrica brasileira: 1. Congresso

Brasileiro de Psiquiatria, entre agosto e setembro de

1977, em Camboriú, Santa Catarina; 2. I Congresso

Brasileiro de trabalhadores de Saúde Mental, em São

Paulo, em janeiro de 1979; 3. III Congresso Mineiro de

Page 58: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

56 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Psiquiatria, em novembro de 1979, com a presença de

Franco Basaglia, que teve uma influência marcante no

movimento de reforma Psiquiátrica no Brasil.

a partir do projeto de lei, conhecido como projeto

Paulo delgado, apresentado à Câmara Federal, em 1989,

iniciou-se, em nível nacional, um movimento crescente

de reformulação das Políticas Públicas de Saúde Mental,

que abriu as portas dos hospitais psiquiátricos tanto

para a entrada de pesquisadores e técnicos de diversas

áreas quanto para a saída de pacientes que, muitas ve-

zes, encontravam-se internados há décadas. Uma das

grandes contribuições da primeira versão do projeto de

lei foi possibilitar o debate sobre a lei Federal de Saúde

Mental, tendo em vista que a referida lei datava de 1934,

baseando-se, mormente, na exclusão dos pacientes do

convívio social.

O CONCEITO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA

NO BRASIL A PARTIR DE 1995

Nos textos estudados, deparou-se, algumas vezes,

com uma referência à reforma Psiquiátrica como um

conceito (cf. dElgado, 1998; amaRantE, 1995). Sua

formulação como conceito depende de cada autor que o

propõe e seu uso é tributário das afinidades intelectuais

e/ou políticas daquele que escolhe utilizá-lo. É interes-

sante acompanhar o desenvolvimento desse conceito

ao longo dos últimos anos e é por isso que se retomam

aqui algumas de suas incidências.

Em 1995, amarante identificava a reforma Psi-

quiátrica com um importante questionamento e con-

seqüente elaboração de propostas contrárias ao modelo

asilar. Propunha a reforma Psiquiátrica como um:

processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a

elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. (amaRantE, 1995, p. 91, grifo nosso).

No Brasil, associa tal processo à redemocratização

do país e à

crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza essa mesma conjuntura de redemocrtatização. (amaRantE, 1995, p. 91)

três anos depois, delgado (1998) chamava a aten-

ção para certa imprecisão do termo reforma Psiquiátri-

ca, do qual seria feito uso para designar as modificações

do modelo da assistência pública no serviço psiquiátrico

brasileiro, no qual se deu início um diálogo entre a Psi-

quiatria e outras áreas do campo da Saúde Mental:

Reforma psiquiátrica é uma expressão algo impre-cisa. Nela temos insistido como recurso de designação para o conjunto de modificações recentes que vêm sendo produzidas ou tentadas, a partir do final da década de 70, interessando ao modelo assistencial psiquiá-trico público, sua sustentação teórica e técnica, e as relações discursivas que se vêm estabelecendo entre a Psiquiatria, as demais disciplinas de saúde e do campo social, e as instituições e movimentos sociais. (1998, p. 42, grifo nosso).

ainda três anos depois, amarante (2001) apre-

senta uma outra definição, o que permite depreender

um avanço no próprio uso do termo. o autor mantém

o termo ‘processo’, mas ele deixa de ser histórico e

passa a ser ‘social’ e ‘complexo’, tendo uma dimensão

epistemológica, técnico-assitencial, jurídico-política

e cultural, pois haveria várias dimensões nesse mo-

vimento:

“sendo um processo, é antes de tudo permanente, não tem fim predeterminado e articula várias dimensões simultâneas e inter-relacionadas” (amaRantE, 2001, p. 104).

Page 59: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

57CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Nesse momento, lê-se uma primeira tentativa de,

efetivamente, definir o termo reforma Psiquiátrica, não

como um termo cujas incidências históricas podem ser

buscadas em vários contextos, mas que passou à referên-

cia do que acontecia no Brasil, no final do século 20, ou

seja, a desinstitucionalização – que estabelece outro mo-

delo de tratamento, diferente do modelo de isolamento

terapêutico – e a mudança – que redefine o conceito de

doença mental. o autor defende que debater o conceito

de doença é suficiente para transformar as relações das

pessoas envolvidas com a questão da Saúde Mental, além

de viabilizar a modificação dos serviços, dos dispositivos

e dos espaços na maneira de ver o usuário.

Esse novo paradigma já traz consigo também

o debate da dimensão jurídico-política dos direitos

dos doentes à cidadania, pois exige que se rediscuta e

redefina “as relações sociais e civis em termos de cida-

dania, direitos humanos e sociais” (amaRantE, 2001,

p. 105). Promover o resgate dos direitos de cidadãos

dos usuários, quase que perdido devido às internações

forçadas no passado, tornou-se a principal reivindi-

cação da reforma Psiquiátrica, pois o movimento

entende cidadania como a tentativa de garantir, por

meio de meios legais e oficiais, e da apresentação de

projetos e aprovação de leis, os direitos civis e sociais

dos portadores de sofrimento psíquico. além disso, é

necessária a implantação de serviços e/ou modificações

dos serviços já existentes para que a cidadania possa

ser uma conquista diária.

Com a lei 10.216, por exemplo, a internação passou

a ser voluntária ou involuntária; neste caso é obrigatório

informá-la, via formulário, ao Ministério Público Esta-

dual, justificando os motivos da decisão. Em sete anos,

a lei 10.216 promoveu grandes mudanças – os CaPs, as

residências terapêuticas, o trabalho articulado em rede

–, principalmente nos grandes centros. Nas áreas mais

afastadas deles, ainda há muita resistência e, freqüente-

mente, as coisas avançam muito lentamente.

o que fica notório, tanto na idéia central da lei

10.216 quanto nas propostas dos dispositivos criados

a partir dela, é a centralização da cidadania e o resgate

da contratualidade social, de modo que não há dúvida

quanto à importância que a lei sustenta no cuidado e

na atenção, ambos em primeiro plano, revertendo um

quadro calamitoso do contexto da institucionalização.

CONSIDERAçÕES FINAIS

Nos últimos anos, no entanto, multiplicaram-se os

estudos sobre a necessidade de investimento na clínica

da reforma Psiquiátrica, sintagma retomado no título

do livro de Fernando tenório (2001). apesar de serem

criados locais de tratamento que têm como objetivo

sustentar a clínica da reforma Psiquiátrica, observa-se,

por um lado, que a cidadania e o cuidado são tomados

como referência do tratamento dos usuários, mas, por

outro, promove-se uma preocupação maior com a es-

pecificidade de uma clínica que caminhe paralelamente

à atenção psicossocial.

Neste âmbito, percebe-se, nos últimos anos, que

sem um trabalho clínico que leve em conta o sofrimento

psíquico, o próprio resgate da cidadania e da autono-

mia pode ficar comprometido. assim, surge uma nova

tensão: entre clínica e atenção psicossocial, no campo

da Saúde Mental. algumas propostas por uma solução

sugerem ser preciso sustentar um enfoque multidiscipli-

nar: “o campo da saúde mental é [...] multidisciplinar,

heterogêneo e plural, onde diversos saberes e práticas se

entrecruzam” (rinaldi, 2006, p. 142).

Essa orientação visa o enlaçamento de vários sabe-

res. Mas, seria possível sustentar a clínica propriamente

dita sem uma orientação clínico-teórica que tenha con-

sistência para enfrentar os problemas diários de nossa

prática? (BaRbosa, 2004) desde o início da história

Page 60: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

58 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

da psiquiatria moderna, com Pinel e Esquirol, não há

clínica sem orientação definida (BERchERiE, 1989). Por

razões que transcendem este artigo e que precisariam

ser aprofundadas no futuro, é o campo psicanalítico

que mais se ocupa com essa busca na atualidade, o que

não deixa de levantar novos questionamentos. Por ora,

nota-se que a reação que alguns setores da reforma Psi-

quiátrica atual dirigem contra o trabalho de psicanalistas

que se instrumentalizam do movimento da reforma e,

ao mesmo tempo, procuram instrumentalizá-lo com as

contribuições de sua própria formação, relaciona-se com

o que já se observou, na década de 1970, nos Estados

Unidos, quando da publicação dos manuais como o

dSM. revisitar a história para verificar possíveis inci-

dências anteriores de questões atuais transcende a função

da história como registro e permite estudar as determi-

nações – nem sempre conhecidas – de movimentos e

resistências com as quais se tem que lidar atualmente.

R E F E R Ê N C I A S

albERti, S. crepúsculo da alma: história da Psicologia no Brasil no século XIX. rio de Janeiro: Contra Capa, 2003.

amaRantE, P. Sobre duas proposições relacionadas à clínica e à reforma Psiquiátrica. In: QuinEt, a. (org.). Psicanálise e Psiquiatria: controvérsias e convergências. rio de Janeiro: rios ambiciosos, 2001.

____________. Loucos pela vida: a trajetória da refor-ma Psiquiátrica no Brasil. rio de Janeiro: SdE/ENSP, 1995.

Basaglia, F. as instituições da violência. In: Basaglia, F. A instituição negada. rio de Janeiro: graal, 1985. p. 99-133.

BaRbosa, l.H. Psicologia clínica na Saúde Mental: crí-tica à reforma Psiquiátrica. ciências & cognição, ano 1, v. 3, p. 63-65, 2004.

BERchERiE, P. Fundamentos da clínica. rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

Candiotto, C. Verdade e diferença no pensamento de Michel Foucault. Kriterion, Belo Horizonte, n. 115, jun., p. 203-217, 2007.

dElgado, P.g. No litoral do vasto mundo: lei 10.216 e a amplitude da reforma Psiquiátrica. In: VEnancio, a.t.a.; Cavalcanti, M.t. Saúde Mental: campos, sa-beres e discursos. rio de Janeiro: Edições iPub/cuca, 2001.

_____________. Cidadania e Saúde Mental. Cadernos Cepia n. 4, cEPia, rio de Janeiro, 1998. p. 91-104.

dElgado, P. at alli. cadernos de textos da III conferência Nacional de Saúde Mental. Ministério da Saúde: Brasília/dF, 2001.

dEsviat, M. A Reforma Psiquiátrica. rio de Janeiro: FiocRuz, 1999.

FiguEiREdo, a.C. Vastas confusões e atendimentos imper-feitos. 2. ed. rio de Janeiro: relume dumará, 1997.

FREud, S. a análise leiga. In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. rio de Janeiro: Imago, 1976a.

______. Pós-escrito à análise leiga. In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. rio de Janeiro: Imago, 1976B.

______. Psicologia das massas e análise do Eu. In: Edi-ção standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. rio de Janeiro: Imago, 1976C.

Page 61: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

59CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

lauREnt, E. et al. o lugar da psicanálise nas institui-ções. In: associação Mundial de Psicanálise. Primeiro Congresso, Barcelona 1998: relatórios das escolas. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 1998.

MoRRissEy, J.; goldman, H.; KlERman, l. The enduring asylum: cycles of institutional reform at Worcester State Hospital. New York: grune and Stratton, 1980.

PEREiRa, M.E.C. O DSM-IV e o objeto da psicopatologia ou psicopatologia para quê? 1998. disponível em: <www.estadosgenerales.org/historia/98-dsm-iv.shtml>

QuinEt, a. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranóia e melancolia. rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

rEsEndE, H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: tundis, S.a.; Costa, N.r. (org.). cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 15-69.

rinaldi, d. Entre o sujeito e o cidadão: psicanálise ou psicoterapia no campo da Saúde Mental. In: albERti, S.; FiguEiREdo, a.C. Psicanálise e saúde mental: uma aposta. rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006.

russo, J.; VEnâncio, a.t. Classificando as pessoas e suas perturbações: a “revolução terminológica” do dSM III. Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental, v. 9, n. 3, p. 460-483, 2006.

ShoRtER, E. A history of psychiatry: from the era of the asylum to the age of Prozac. New York: John Wiley and Sons, 1997.

tEnóRio, F. A psicanálise e a clínica da Reforma Psiquiá-trica. rio de Janeiro, rios ambiciosos, 2001.

tuKE, d. Reform in the treatment of the insane: early history of the retreat. York, England, 1892.

recebido: abr./2008

aprovado: ago./2008

Page 62: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE60

Saúde do trabalhador de Saúde Mental:

uma revisão dos estudos brasileirosThe health of Mental Health workers:

a review of Brazilian scientific literature

RESUMO Neste artigo apresentamos uma revisão dos estudos brasileiros sobre a

saúde do trabalhador de Saúde Mental, considerando o processo de implantação

da Reforma Psiquiátrica no país. A bibliografia disponível é recente, datando

de pouco menos de uma década. No final dos anos 1990 havia um predomínio

de estudos em torno do conceito de estresse, com profissionais da enfermagem e

de hospitais psiquiátricos. Atualmente, sobretudo a partir de 2006, os estudos

não apenas apresentaram um crescimento significativo, como se tornaram mais

complexos e ganharam em qualidade, privilegiando, os trabalhadores de Saúde

Mental dos centros de Atenção Psicossocial (caps).

PALAVRAS-CHAVE: Serviços de Saúde Mental; Saúde do trabalhador;

Literatura de revisão.

ABSTRACT This paper presents a literature review under the theme “health of

Mental Health workers” as considered the introduction of the Psychiatric Reform

in Brazil. The available bibliography is recent, with less than a decade. In the

end of the 1990’s, studies on the concept of stress carried out with professionals of

nursing and in psychiatry hospitals were predominant. Nowadays, mainly since

2006, the studies not only increased significantly, but also became more complex

and acquired quality, favouring the workers of Mental Health of the Psychosocial

care centers (Caps).

KEYWORDS: Mental Health services; Workers Health; Review literature.

tatiana ramminger 1

1 Psicóloga; mestre em Psicologia

Social e Institucional pela Universidade

Federal do rio grande do Sul

(UFrgS); doutoranda em Saúde

Pública pela Escola Nacional de Saúde

Pública da Fundação oswaldo Cruz

(ENSP/fiocRuz).

[email protected]

Page 63: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

61raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

I N T R O D U ç Ã O

Neste artigo, procurou-se questionar a formar

como o campo Saúde do trabalhador dialoga com

a saúde dos trabalhadores de Saúde Mental. res-

saltamos que esse não é um tema muito pesquisado

nem na área de Saúde Mental, que tem priorizado

as discussões em torno das mudanças no cuidado ao

portador dos transtornos mentais e no entendimento

da loucura, nem no campo da Saúde do trabalha-

dor, que acumula estudos em organizações privadas

e industriais. tentando potencializar esse diálogo

necessário, nosso esforço aqui será reunir e discutir

a produção científica brasileira a respeito da relação

entre saúde/adoecimento e trabalho na área da Saúde

Mental, sobretudo a partir do processo de implantação

da reforma Psiquiátrica no país.

Para tanto, foram utilizados os bancos de dados de

teses e dissertações1 das universidades que disponibilizam

este recurso, bem como a base de dados da Biblioteca

Virtual em Saúde (Bireme, www.bireme.br), que inclui

Lilacs, Medline, cochrane e SciELO, com pesquisa feita a

partir dos seguintes descritores: Saúde do trabalhador;

Saúde Mental; reforma psiquiátrica; trabalhador de Saú-

de Mental; trabalhador psiquiátrico; hospital psiquiátri-

co. a última consulta foi feita em abril de 2008, sendo

que também recorremos, eventualmente, a resumos de

congressos científicos e capítulos de livros.

Em consulta à literatura que aborda o trabalho na

área da Saúde Mental, principalmente aos textos publi-

cados a partir do processo de implantação da reforma

Psiquiátrica no país, percebemos que os estudos privile-

giam as mudanças recentes nesse campo, sobretudo na

concepção de ‘loucura’ e nas formas de tratamento dos

usuários (Passos, 2003).

Farta bibliografia preocupa-se em (re)discutir a

função dos diferentes profissionais nas equipes dos

novos serviços de Saúde Mental como, por exemplo,

a atuação do terapeuta ocupacional (mangia, 2000;

RibEiRo; olivEiRa, 2005), do psicólogo (bandEiRa,

1992; figuEiREdo; RodRiguEs, 2004), do assistente

social (vasconcElos, 2000), do psicanalista (figuEiRE-

do, 2001), do acompanhante terapêutico (Palombini,

2004) e, sobretudo, dos enfermeiros (dalmolin, 1998;

bERtoncEllo; fRanco, 2001; KiRschbaum; Paula,

2001; casanova, 2002; lima; amoRim, 2003; olivEiRa;

alEssi, 2003; silvEiRa, 2003; silvEiRa; alvEs, 2003;

silva; fonsEca, 2005), técnicos e auxiliares de Enfer-

magem (maRanhão, 2004; zERbEtto; PEREiRa, 2005).

destaca-se, ainda, a tendência a repetir padrões comuns

ao hospital psiquiátrico, mesmo com severas críticas a

esse modelo (bRêda; augusto, 2001; camPos; soaREs,

2003; olivEiRa; alEssi, 2005a, 2005B; bichaff, 2006;

antunEs; quEiRoz, 2007; lEao; baRRos, 2008).

Por outro lado, a bibliografia existente sobre a rela-

ção entre saúde e trabalho em Saúde Mental é recente,

datando de pouco menos de uma década. recordemos

que os estudos sobre a relação entre saúde/adoecimento

e trabalho, tendem a estar ligados ao que é visível, ou

seja, ao que pode ser medido, examinado ou medicado,

estabelecendo-se objetivamente um nexo entre determi-

nada situação de trabalho e respectivas conseqüências

para a saúde do trabalhador (como no caso de uma

perda auditiva por exposição ao ruído, por exemplo).

dificilmente considera-se, portanto, a mobilização

cognitiva e afetiva do trabalhador, ambas característi-

cas importantes do trabalho em saúde, especialmente

do trabalho em Saúde Mental. Sendo assim, quase a

totalidade dos textos tem caráter qualitativo e poderiam

1 Quando parte das conclusões das dissertações ou teses possuíam publicação em periódicos científicos, privilegiou-se o artigo publicado.

Page 64: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

62 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

ser reconhecidos como parte do campo de estudos deno-

minado ‘Saúde Mental e trabalho’. Como este campo

não é homogêneo, ou seja, não há consenso sobre quais

seriam suas principais correntes teóricas (fERnandEs;

mElo; gusmão et al., 2006; JacquEs, 2003), fizemos

nossa própria divisão em três blocos, conforme os temas

privilegiados em cada estudo.

ESTRESSE, CARGA E SOBRECARGA NO

TRABALHO EM SAúDE MENTAL

Estabelecer a relação entre doença/Saúde Mental e

trabalho não é tarefa fácil. o processo de adoecimento

psíquico é sempre singular e envolve várias dimensões

da vida do sujeito, o que pode dificultar pesquisas quan-

titativas. talvez seja essa a explicação para o reduzido

número de estudos epidemiológicos encontrados, ainda

que sejam fundamentais para nos dar a dimensão deste

‘invisível’ que pode se tornar mais palpável na medida

em que começa a ser reconhecido estatisticamente

(tittoni, 1997).

aliás, foi o peso das estatísticas, somado ao esforço

dos pesquisadores e dos movimentos sociais, que possi-

bilitou o reconhecimento legal da relação entre Saúde

Mental e trabalho no Brasil a partir de 1999, através

do decreto 3.048 do Ministério da Previdência e as-

sistência Social que discrimina os transtornos Mentais

relacionados ao trabalho. dentre esses transtornos, há

a síndrome do esgotamento profissional, ou burnout,

descrita pelas teorias do estresse.

as teorias do estresse, embora tenham como re-

ferencial básico a Fisiologia, originaram modelos mais

complexos, com a inclusão da perspectiva social e da

subjetividade (sEligmann-silva, 2003). a síndrome

de burnout, mesmo que de início não estivesse ligada

exclusivamente às situações de trabalho, hoje tem sido

apontada como recorrente entre os profissionais da

educação, da saúde e da segurança, sobrecarregados em

suas formas de prover cuidado (codo, 1999). Segundo

Codo, as principais características dessa síndrome são

a exaustão emocional, a despersonalização da atenção

e a falta de compromisso com o trabalho. as pesquisas

acerca dos trabalhadores de Saúde Mental que seguem

esse referencial apontam um alto índice de esgotamento

emocional e estresse crônico entre eles, diretamente pro-

porcional ao tempo e à intensidade do cuidado direto

ao paciente (fEnstERsEifER, 1999; REgo, 2000; Rosa,

2001; costa; lima, 2002; RammingER, 2002; vianEy;

bRasilEiRo, 2003).

Por outro lado, Carvalho e Felli (2006), buscaram

analisar o processo saúde-doença vivenciado pela equipe

de enfermagem de um hospital psiquiátrico a partir dos

conceitos de carga de trabalho e desgaste, chegando

à conclusão que esses trabalhadores apresentam um

intenso desgaste mental muito mais pelas condições de

trabalho do que pelo convívio com os pacientes. as

cargas de trabalho (físicas, químicas, biológicas, fisio-

lógicas e psíquicas), segundo laurell e Noriega (1989),

são elementos do processo de trabalho que interagem

dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador

gerando processos de adaptação e que resultam em

desgaste, entendido como uma perda da capacidade

potencial e/ou efetiva corporal e psíquica.

Nessa direção, Bandeira, Pitta e Mercier (2000)

validaram, no Brasil, escalas internacionais de avaliação

de satisfação (SatIS-Br) e sobrecarga (IMPaCto-Br)

das equipes técnicas de serviços de Saúde Mental. tais

escalas passaram a ser utilizadas em pesquisas de ava-

liação, fornecendo importantes subsídios para estudos

epidemiológicos. além disso, os estudos de satisfação

vêm crescendo em importância na avaliação da quali-

dade dos serviços de Saúde Mental por considerarem

a percepção dos diferentes segmentos envolvidos na

atenção (usuários, familiares e trabalhadores), assim

Page 65: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

63raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

como a “escala de sobrecarga constitui um preditor

do estresse apresentado pelos trabalhadores de Saúde

Mental” (bandEiRa; ishaRa; zuaRdi, 2007, p. 280). No

entanto, reboucas, abelha, legay et al. (2008, p. 625)

ressaltam que, embora os estudos brasileiros sejam rea-

lizados com todos estes segmentos, “a pesquisa dirigida

à equipe técnica tem despertado menos interesse do que

as que avaliam usuários e familiares”.

Percebemos que de sua validação (ano 2000) até a

publicação das primeiras pesquisas feitas a partir dessas

escalas em relação ao trabalho em Saúde Mental, passa-

ram-se sete anos. tivemos acesso a quatro estudos, sendo

um de validação do construto das escalas, realizado em

um município de São Paulo (bandEiRa, ishaRa; zuaRdi,

2007), dois realizados em instituições do município do

rio de Janeiro (REboucas; lEgay; abElha, 2007; REbou-

cas; abElha; lEgay et al., 2008) e um que apresenta os

resultados preliminares da aplicação do instrumento em

toda rede de Centros de atenção Psicossocial (caPs) do

Ceará (godoy; Rigotto; maciEl et al., 2007). Nesses

estudos, a satisfação é considerada um estado emocio-

nal que envolve a interação das características pessoais,

valores e expectativas dos profissionais em relação ao

ambiente e organização do trabalho. Já o impacto diz

respeito às repercussões do trabalho sobre a saúde e o

sentimento de bem-estar do trabalhador (REboucas;

lEgay; abElha, 2007).

todas as pesquisas apontam para a predominância

significativa das mulheres no trabalho em Saúde Men-

tal, culminando no caso do Ceará, onde 72,8% dos

trabalhadores dos caPs são mulheres (godoy; Rigotto;

maciEl et al., 2007). a pesquisa de reboucas, legay e

abelha (2007) destaca que esse segmento concentrou

o menor nível de satisfação com o trabalho e o maior

impacto sobre a saúde, interpretado pelas autoras como

conseqüência da ‘dupla jornada’ feminina. No estudo de

validação de construto foi constatada a relação negativa

entre os escores de satisfação e sobrecarga, bem como

os níveis mais baixos de satisfação e mais elevados de

sobrecarga entre os trabalhadores com indicativo de

estresse (bandEiRa; ishaRa; zuaRdi, 2007). as demais

pesquisas confirmam que quanto maior o grau de so-

brecarga dos profissionais, menor o seu nível de satis-

fação no trabalho, assim como a relação inversa entre o

nível de escolaridade e satisfação. Em duas pesquisas, a

satisfação no trabalho esteve relacionada à atuação em

projetos novos e de status diferenciado, à maior idade

e ao contrato de trabalho precário. as pesquisadoras

atribuem tal resultado ao fato de que, provavelmente,

os profissionais mais jovens têm menos recursos para

lidar com os problemas inerentes ao desempenho das

atividades e quando possuem escolaridade mais elevada,

maiores expectativas em relação ao trabalho. (REboucas;

lEgay; abElha, 2007; godoy; Rigotto; maciEl et al.,

2007). Em relação ao impacto do trabalho, os resultados

foram diferentes. Enquanto os resultados encontrados

no rio de Janeiro (REboucas; lEgay; abElha, 2007;

REboucas; abElha; lEgay et al., 2008) não remetem

à associação significativa com a escolaridade, godoy,

rigotto, Maciel et al. (2007) apontam a relação direta

entre a baixa escolaridade e o impacto menor do trabalho

na vida dos profissionais.

SOFRIMENTO E PRAZER NO TRABALHO EM

SAúDE MENTAL

Passemos agora aos estudos que consideram a re-

lação entre prazer e sofrimento no trabalho em Saúde

Mental. a pesquisa de lanzarin (2003), ancorada na

Psicodinâmica do trabalho, procurou analisar as rela-

ções entre trabalho, prazer e sofrimento das auxiliares

de enfermagem de um hospital psiquiátrico. À luz

da Psicanálise, dejours (1988) entende que, frente às

vivências de sofrimento, os trabalhadores desenvolvem,

Page 66: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

64 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

coletivamente, estratégias defensivas que podem ser

muito úteis, pois permitem que as pessoas continuem

trabalhando, sobrevivendo à angústia. No entanto:

[...] as estratégias defensivas podem atenuar o sofri-mento, mas, por outro lado, se funcionarem muito bem e as pessoas deixarem de sentir o sofrimento, pode-se prever a alienação. (dEJouRs, 1999).

lanzarin (2003) percebeu grande envolvimento

emocional entre as auxiliares de enfermagem e a clien-

tela atendida. Segundo a pesquisadora, se por um lado

essa intensificação do laço afetivo constitui-se fonte de

gratificação para as auxiliares, e funciona como uma es-

tratégia defensiva frente ao medo e à angústia, por outro

lado contribui para a exploração do trabalho. Mulheres

em sua maioria, as auxiliares acabam tomando para si

algumas responsabilidades que não estão relacionadas

à função que desempenham. ao mesmo tempo, esse

cuidado não é reconhecido como uma qualificação ou

competência da trabalhadora, mas como a expressão de

um instinto maternal inato.

Ferrer (2007) e Silva (2007) nos apresentam

análises similares de estudos realizados com os pro-

fissionais dos caPs de Campinas, interior de São

Paulo (fERRER, 2007) e goiânia, goiás (silva, 2007),

embora não utilizem apenas o referencial dejouriano,

privilegiando as vivências de sofrimento dos traba-

lhadores. ambas as análises citam como importantes

componentes que contribuem para o sofrimento do

trabalhador de Saúde Mental a baixa remuneração,

os contratos diferenciados e, por vezes, precários de

trabalho, a má condição física e material dos estabe-

lecimentos, a limitação das demais redes de suporte

e promoção social, a carência de uma política de

cuidado aos trabalhadores da saúde e o próprio fato

de haver contato com a loucura. Por outro lado, as

duas pesquisadoras também apontam a implicação e

o prazer desses trabalhadores com sua atividade.

Considerando o referencial da Psicologia Institucio-

nal e da Psicanálise de grupos, Koda e Fernandes (2007)

analisam os conflitos e contradições que se instauram

a partir da implantação de um serviço substitutivo à

internação psiquiátrica que exige um contato mais pró-

ximo com o paciente e um trabalho mais articulado com

profissionais de outras áreas e instituições. Segundo as

autoras, isso leva a um “desenraizamento” do trabalha-

dor, que vê sua identidade profissional posta em questão.

os códigos anteriores, ainda que fossem avaliados como

inadequados, asseguravam um modelo de práticas e re-

presentações comuns em relação ao lugar do trabalhador,

à relação profissional/usuário, à concepção da loucura,

entre outras. a transformação desses códigos leva a um

momento de fragilidade, muitas vezes vivenciado como

ameaça contra o sujeito e o grupo ao qual pertence.

Corroborando esse entendimento, rabelo e torres

(2005) pretenderam avaliar a relação entre a adesão a

determinado paradigma norteador de práticas em Saú-

de Mental, e a saúde física e psicológica dos profissio-

nais da área em goiânia. as autoras consideraram dois

paradigmas: o biológico e o psicossocial. o primeiro

está ligado ao discurso médico psiquiátrico, com ênfase

nas causas orgânicas do adoecimento; o segundo, ao

discurso da reforma Psiquiátrica. Participaram da pes-

quisa, trabalhadores de seis serviços de Saúde Mental

‘substitutivos’ e seis clínicas psiquiátricas. os resultados

mostraram que os maiores níveis de bem-estar físico

e psicológico não estiveram relacionados ao local de

trabalho, mas à adesão ao paradigma biológico que,

segundo as autoras, por ser mais legitimado, oferece

maior segurança ao profissional nesse momento de

transição no qual o modelo biológico não foi aban-

donado, nem o modelo psicossocial definitivamente

implantado. No entanto, não podemos deixar de

questionar a validade da separação estanque entre esses

dois paradigmas, bem como das escalas de bem-estar

físico e psicológico utilizadas.

Page 67: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

65raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

SUBJETIVIDADE, DISCURSOS, PRÁTICAS

E VIVÊNCIAS DOS TRABALHADORES DE

SAúDE MENTAL

Por fim, aqui destacamos os artigos que não tratam

diretamente da relação entre saúde e trabalho em Saúde

Mental, mas que apresentam contribuições para o tema.

Considerando a análise do discurso dos trabalhadores,

encontramos os trabalhos de Bernardes e guareschi

(2004) e garcia e Jorge (2006). o primeiro parte do

referencial foucaultiano para compreender as formas de

subjetivação, ou o modo como os profissionais consti-

tuem a si mesmos e se reconhecem como trabalhadores

de Saúde Mental. Já garcia e Jorge (2006) procuram

destacar a vivência dos trabalhadores de um caPs à luz

do pensamento de Martin Heidegger e Hans-georg

gadamer. Embora sigam caminhos diferentes, os dois

estudos se valem da figura do ‘humano’ e da ‘humani-

zação’ para retratar as transformações no cuidado em

Saúde Mental. a conclusão é que a reforma Psiqui-

átrica, ao reivindicar a humanização do atendimento

em Saúde Mental, não pode deixar de lado o “humano

que cuida” (gaRcia; JoRgE, 2006), já que os próprios

trabalhadores reconhecem que “a humanização deles

[dos pacientes] será a nossa humanização” (bERnaRdEs;

guaREschi, 2004).

Em um estudo que privilegiou o ponto de vista dos

trabalhadores de Saúde Mental sobre a relação entre a

saúde e suas atividades de trabalho (RammingER, 2006;

RammingER; naRdi, 2007), evidencia-se que a preca-

riedade das políticas públicas de atenção à saúde do

servidor público reflete nos serviços de Saúde Mental. o

acolhimento (ou não) das questões relacionadas à saúde

no trabalho depende do funcionamento e das diretrizes

particulares de cada serviço. a análise dos discursos e

práticas possibilita o entendimento de que os trabalha-

dores habitam um espaço de tensionamentos e confron-

tos. Primeiro, pela circulação de diferentes formações

discursivas, incluindo desde a crença de que cuidar é

uma forma de caridade (discurso religioso), a afirma-

ção de que é a ciência que pode falar do tratamento da

loucura (discurso científico), até o entendimento de que

o trabalho em Saúde Mental não pode ser reduzido a

um domínio de técnicas, devendo incluir a implicação

política e afetiva com a construção de outro modo de

se relacionar com a loucura (discurso antimanicomial).

Em segundo lugar, pela oscilação dos trabalhadores

entre um papel desafiador e criativo, como agentes de

um dispositivo que se pretende inovador, e a constante

desvalorização de sua função enquanto servidor público,

traduzida pela falta de investimentos e ações interseto-

riais que impõem limites à prática e responsabilizam o

trabalhador individual, excessiva e exclusivamente pela

resolutividade dos serviços.

da mesma forma, o artigo de Silva (2005) sobre

os discursos e práticas em torno da responsabilidade

no campo da Saúde Mental, aponta para o aumento da

responsabilidade e autonomia do trabalhador de Saúde

Mental em seu processo de trabalho. No entanto, a

exigência do trabalhador apto a resolver problemas

complexos não é acompanhada do aumento dos ne-

cessários recursos teóricos, financeiros ou emocionais,

em uma clara tendência à precarizacão do trabalho,

somada a expectativas cada vez maiores em relação ao

trabalhador. além disso, a ‘tomada de responsabilidade’

– jargão do campo da saúde – não é apenas do serviço

(pelo território), mas também do trabalhador (por seu

processo de trabalho), do usuário (por sua condição

subjetiva), da família e da comunidade de modo geral

(responsabilização social dos atores), em um processo

no qual distintas áreas – Saúde Pública, análise Institu-

cional e Psicanálise – unem-se em torno da convocação

à responsabilidade.

também os estudos que privilegiam as teorias

sobre a representação social corroboram com a com-

preensão do trabalho em Saúde Mental como uma

Page 68: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

66 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

atividade complexa, com a circulação de distintos

discursos e um sobre-encargo do trabalhador, prin-

cipalmente pelo desinvestimento no trabalho e nos

serviços públicos (Koda, 2002; antunEs; quEiRoz,

2007; lEao; baRRos, 2008).

andrade (2007) propõe, inspirado em Nourodine

(2004), considerar o risco no e do trabalho em Saúde

Mental não apenas como negatividade ou algo que deva

ser combatido, mas como positividade e potencialidade,

um “ato de criatividade necessário e jamais dominado

para agir, produzir, inventar e realizar” (andRadE, 2007,

p. 85). No entanto, a não ser pelo risco de reproduzir

os modelos manicomiais ou enclausurar-se nas próprias

defesas frente ao sofrimento do outro, o autor não se

aprofunda em relação aos riscos da atividade do traba-

lhador de Saúde Mental.

Merhy (2007), embora sem a pretensão de apre-

sentar um estudo mais sistematizado, compartilha suas

reflexões, a partir de sua experiência como supervisor

de um caPs. Ele diz que buscar a produção de cuidados

em saúde para além das práticas hegemônicas, é estar

no ‘olho do furacão’, sendo necessário construir um

campo de proteção para aqueles que têm que moldar

suas caixas de ferramentas em ato. descreve o trabalho

nos caPs como algo árduo, com intensa demanda de

múltiplos cuidados, o que faz o trabalhador experi-

mentar sentimentos intensos e antagônicos, cobrando

de si mesmo e da equipe uma disponibilidade e uma

abertura difíceis de serem mantidas permanentemen-

te, sobretudo para quem oferta seu trabalho vivo

para vivificar a vida do outro. São sentimentos de

tristeza, exaustão e impotência que caminham lado a

lado com a exigência de acolhimento e resolução de

problemas complexos de forma criativa e entusiasma-

da. assim, o autor propõe a alegria e o alívio como

dispositivos analisadores.

a alegria é tomada como indicador da luta contra

a tristeza e o sofrimento, sendo necessário um espaço de

apoio, para além das supervisões institucionais e clínicas,

que permita retomar a produção de vida, consumida

em meio ao fazer cotidiano. Essa imagem do consumo

da vida pelo trabalho remete à exaustão ou combustão

(burnout) do trabalhador e da equipe, pois um coletivo

que consome sua própria vida com o objetivo de cons-

truir novas possibilidades de vida para outros, se não

a produzir o tempo todo, exaure. da mesma forma, o

segundo analisador proposto por Merhy – o alívio –

aponta para a necessidade de alívio também daquele

que se ocupa do alívio dos outros.

Uma equipe de trabalhadores dos Caps que não possa usufruir de alívios produtivos e de estados de alegria, de forma implicada, não tem muito a ofertar a não ser exaurir para gerar alívios nos outros, como o ma-nicômio já fazia e faz. (mERhy, 2007, p. 65).

aliás, a precarizacão e a falta de condições de tra-

balho em Saúde Mental, bem como o número sempre

insuficiente de trabalhadores, com excesso de encargos

e responsabilidades, salientados nos estudos aqui apre-

sentados, integram uma herança que acompanhou o

hospital psiquiátrico desde a sua fundação e parece ter

se perpetuado nos novos serviços de Saúde Mental2.

Esses últimos estudos, já apontam a relação intrín-

seca entre a gestão do trabalho e o trabalho como gestão,

ou seja, a indissociabilidade entre as formas de atenção

e gestão. o abismo entre um e outro gera sofrimento

e adoecimento entre os trabalhadores (santos-filho;

baRRos, 2007). Jorge, guimarães, Nogueira et al. (2007)

trata especificamente da gestão de recursos humanos

em três caPs de Fortaleza (CE). os autores afirmam

que os serviços de Saúde Mental enfrentam os mesmos

desafios do sistema de saúde geral como, por exemplo,

2 a esse respeito, consultar os relatórios dos primeiros hospitais psiquiátricos citados nos trabalhos de Wadi (2002) e Machado et al. (1978).

Page 69: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

67raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

a precarização do trabalho em saúde, que pode ser

definida como a flexibilização ou ausência de direitos

trabalhistas e de proteção social, baixa qualificação

profissional e condições de trabalho insatisfatórias. Na

pesquisa, 60% dos trabalhadores manifestaram algum

desconforto em relação ao processo de trabalho; suas

queixas compreenderam desde o volume de tarefas e a

burocracia excessiva, até a falta de colaboração e apoio

dos colegas e do próprio gestor. as condições de traba-

lho relacionadas à estrutura física dos serviços, também

deixa muito a desejar. No entanto, mesmo com todas

essas limitações, 80% dos trabalhadores declararam que

seu nível de satisfação, por trabalhar no caPs, é bom ou

excelente. os autores concluem que há um descompasso

entre as políticas de recursos humanos implantadas –

como a Política Nacional de Humanização da atenção

e gestão do SUS e o Programa Nacional de despreca-

rização do trabalho no SUS – e sua operacionalização

no nível local.

CONSIDERAçÕES FINAIS

analisando a bibliografia brasileira disponível sobre

a relação entre saúde e trabalho na área da Saúde Mental,

percebemos que trata-se de um tema recente, que data de

pouco menos de uma década. No final dos anos 1990,

predominaram os estudos em torno do conceito de es-

tresse em profissionais da enfermagem e trabalhadores

de hospitais psiquiátricos. atualmente, os estudos não

apenas cresceram significativamente, como se tornaram

mais complexos e ganharam em qualidade, privilegiando

os trabalhadores de Saúde Mental dos caPs. a biblio-

grafia tende a destacar os desafios colocados aos traba-

lhadores pela proposta “cuidar sem segregar” que exige

a redefinição de seu papel como profissional, sua relação

com a equipe e os usuários, bem como sua concepção

de loucura e cuidado. o trabalho em Saúde Mental é

compreendido como uma atividade, ao mesmo tempo

singular e coletiva, criativa e angustiante, gratificante e

desgastante e que, para além do corpo do trabalhador,

deve contar com sua capacidade relacional. os conceitos

mais utilizados nesses estudos, mesmo que por vezes mal

definidos, são aqueles relacionados ao campo da Saúde

Mental do trabalhador, tais como: estresse, desgaste,

sobrecarga, impacto, sofrimento psíquico, modos de

subjetivação e vivência subjetiva.

R E F E R Ê N C I A S

andRadE, J.M.P. o risco como potencialidade no tra-balho com saúde mental. In: mERhy, E.E.; amaRal, H. (org.). A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo/Campinas: aderaldo & rothschild/Serviço de Saúde doutor Cândido Ferreira, 2007. p. 82-106.

antunEs, S.M.M.o.; quEiRoz, M.S. a configuração da reforma psiquiátrica em contexto local no Brasil: uma análise qualitativa. cadernos de Saúde Pública. v. 23, n. 1, p. 207-215, 2007. bandEiRa, M. desinstitucionalização: estão os profissionais de psicologia preparados? Psicolo-gia: teoria e pesquisa, v. 8, n. 3, p. 373-384, 1992.

bandEiRa, M.; ishaRa, S.; zuaRdi, a.W. Satisfação e sobrecarga de profissionais de saúde mental: validade de construto das escalas SatIS-Br e IMPaCto-Br. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 56, n. 4, p. 280-286, 2007.

bandEiRa, M.; Pitta, a.M.F.; mERciER, C. Validação das escalas de avaliação da satisfação (SatIS-Br) e da sobre-carga (IMPaCto-Br) da equipe técnica em serviços de saúde mental. Jornal Brasileiro de Psiquiatria,

Page 70: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

68 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

bERnaRdEs, a.g.; guaREschi, N.M.F. trabalhadores da saúde mental: cuidados de si e formas de subjetivação. Psicologia USP, v. 15, n. 3, p. 81-101, 2004.

bERtoncEllo, N.M.F.; fRanco, F.C.P. Estudo bibliográ-fico de publicações sobre a atividade administrativa da enfermagem em saúde mental. Revista Latino-americana de Enfermagem, v. 9, n. 5, p. 83-90, 2001.

bichaff, r. O trabalho nos centros de Atenção Psicossocial: uma reflexão crítica das práticas e suas contribuições para consolidação da reforma psiquiátrica. dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, 2006.

bRêda, M.Z.; augusto, l.g.S. o cuidado ao portador de transtorno psíquico na atenção básica de saúde. ciên-cia e Saúde coletiva, v. 6, n. 2, p. 471-480, 2001.

camPos, C.M.S.; soaREs, C.B. a produção de serviços de saúde mental: a concepção de trabalhadores. ciência e Saúde coletiva, v. 8, n. 2, p. 621-628, 2003.

caRvalho, M.B.; fElli, V.E.a. o trabalho de enferma-gem psiquiátrica e os problemas de saúde dos trabalha-dores. Revista Latino-americana de Enfermagem, v. 4, n. 1, p. 61-9, 2006.

casanova, E.g. O cuidado de enfermagem em unidade de internação psiquiátrica: uma transição do asilar para a reabilitação psicossocial: o familiar e o exótico. tese (doutorado) – Escola de Enfermagem da UFrJ, rio de Janeiro, 2002.

codo, W. Educação, carinho e trabalho: burnout, a síndrome da desistência do educador, que pode levar à falência da educação. Brasília: UnB, 1999.

costa, J.r.a.; lima, J.V. trabalho do enfermeiro no contexto do hospital psiquiátrico: dimensão dos stressores. Revista Baiana de Enfermagem, v. 15, p. 33-47, 2002.

dalmolin, B.M. Reforma psiquiátrica: um processo em construção na prática dos enfermeiros do rio grande do Sul. dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Facul-dade de Saúde Pública da USP, São Paulo, 1998.

dEJouRs, C. conferências brasileiras: identidade, re-conhecimento e transgressão no trabalho. São Paulo: Fundap, 1999.

______. A loucura do trabalho: estudos de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez, 1988.

fEnstERsEifER, g.P. Assistência em saúde mental versus es-tresse no trabalho dos profissionais. dissertação (Mestrado em Psicologia) – PUC-rS, Porto alegre, 1999.

fERnandEs, J.d.; mElo, c.m.m.; gusmão, m.c.c.m.; fERnandEs, J.; guimaRãEs, a.. Saúde mental e trabalho: significados e limites de modelos teóricos. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 14, n. 5, 2006. p. 803-811.

fERRER, a.l. Sofrimento psíquico dos trabalhadores inse-ridos nos centros de Atenção Psicossocial: entre o prazer e a dor de lidar com a loucura. dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Unicamp, Campinas, 2007.

figuEiREdo, a.C. o que faz um psicanalista na saúde mental. In: vEnâncio, a.; cavalcanti, M. (org.) Saúde mental: campo, saberes e discursos. rio de Janeiro: Ipub/Cuca, 2001. p.73-82.

figuEiREdo, V.V.; RodRiguEs, M.M.P. atuação do psi-cólogo nos caPs do Estado do Espírito Santo. Psicologia em Estudo, v. 9, n. 2, p. 173-181, 2004.

gaRcia, M.l.P.; JoRgE, M.S.B. Vivência de trabalhadores de um centro de atenção psicossocial: estudo à luz do pen-samento de Martin Heidegger e Hans-georg gadamer. ciência e Saúde coletiva, v. 11, n. 3, p. 765-774, 2006.

godoy, M.g.C.; Rigotto, r.M.; maciEl, r.H.M.; tEixEiRa, a.C.a.; cavalcanti, N.C.; loPEs, C.H. con-dições organizacionais e saúde mental dos trabalhadores dos Caps do ceará. In: IV Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, Salvador. anais do rio de Janeiro: abRasco, 2007.

JacquEs, M.g.C. abordagens teórico-metodológicas em saúde/doença mental & trabalho. Psicologia & Sociedade, v. 15, n. 1, p. 97-116, 2003.

Page 71: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

69raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

JoRgE, M.S.B.; guimaRãEs, J.M.X.; noguEiRa, M.E.F.; moREiRa, t.M.M.; moRais, a.P.P. gestão de recursos humanos nos centros de atenção psicossocial no contex-to da política de desprecarização do trabalho no sistema único de saúde. Texto & contexto Enfermagem, v. 16, n. 3, p. 417-425, 2007.

Koda, M.Y. Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o dis-curso de usuários e trabalhadores de um Núcleo de atenção Psicossocial. dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 2002.

Koda, m.y.; fERnandEs, M.I.a. a reforma psi-quiátrica e a constituição de práticas substitutivas em saúde mental: uma leitura institucional so-bre a experiência de um núcleo de atenção psi-cossocial. cadernos de Saúde Pública, v. 23, n. 6, p. 1455-1461, 2007.

KiRschbaum, d.I.r.; Paula, F.C.C. o trabalho do enfermeiro nos equipamentos de saúde mental da rede pública de Campinas. Revista Latino-Americana de En-fermagem, v. 9, p. 77-82, 2001.

lanzaRin, C.C. carcereiros ou encarcerados: um estu-do sobre o trabalho dos auxiliares de enfermagem no Hospital Psiquiátrico São Pedro. dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) – UFrgS, Porto alegre, 2003.

lauREll, a.C.; noRiEga, M. Processo de produção e saúde. São Paulo: hucitEc, 1989.

lEão, a.; baRRos, S. as representações sociais dos pro-fissionais de saúde mental acerca do modelo de atenção e as possibilidades de inclusão social. Revista Saúde e Sociedade, v. 17, n. 1, p. 95-106, 2008.

lima, l.V.; amoRim, W.M. a prática da enfermagem em uma instituição pública no Brasil. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 56, p. 533-537, 2003.machado, r.; louREiRo, a.; luz, r.; muRicy, K. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. rio de Janeiro: graal, 1978.

mangia, E.F. a trajetória da terapia ocupacional da psi-quiatria as novas instituições e estratégias de promoção da saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional, v. 11, n. 1, p. 28-32, 2000.

maRanhão, r.M.C.S. reforma psiquiátrica: novas cartografias de trabalho para os técnicos e auxiliares de enfermagem psiquiátrica? tese (doutorado em Psico-logia). PUC-rJ, rio de Janeiro, 2004.

mERhy, E.E. os caPs e seus trabalhadores: no olho do furacão antimanicomial: alegria e alívio como dispositivos analisadores. In: mERhy, E.E.; amaRal, H. (org.). A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo/Campinas: aderaldo & rothschild/Serviço de Saúde doutor Cândido Ferreira, 2007. p. 55-66.

nouRoudinE, a. risco e atividade humana: acerca da possível positividade aí presente. In: figuEiREdo, M.; athaydE, M.; bRito, J.; alvaREz, d. (orgs.). Labirintos do trabalho: interrogações e olhares sobre o trabalho vivo. rio de Janeiro: dP&a, 2004.

olivEiRa, a.g.B.; alEssi, N.P. Superando o manicômio? desafios na construção da reforma psiquiátrica. Cuiabá: UFMt, 2005a.

______. Cidadania: instrumento e finalidade do proces-so de trabalho na reforma psiquiátrica. ciência e Saúde coletiva, v. 10, n. 1, p. 191-203, 2005B.

______. o trabalho de enfermagem em saúde mental: contradições e potencialidades. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 11, p. 333-340, 2003.

Palombini, a. Acompanhamento terapêutico na rede pú-blica: a clínica em movimento. Porto alegre: UFrgS, 2004.

Passos, I.C.F. Cartografia da publicação brasileira em saúde mental: 1980-1996. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 19, n. 3, p. 231-240, 2003.

Page 72: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

70 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

RabElo, I.V.M.; toRREs, ar.r. trabalhadores em saúde mental: relações entre práticas profissionais e bem-estar físico e psicológico. Psicologia, ciência e Profissão, v. 25, n. 4, p. 614-625, 2005.

RammingER, t. Trabalhadores de saúde mental: reforma psiquiátrica, saúde do trabalhador e modos de subjeti-vação nos serviços de saúde mental. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2006.

______. a saúde mental do trabalhador em saúde mental: um estudo com trabalhadores de um hospital psiquiátrico. Boletim da Saúde, v. 16, n. 1, p. 111-124, 2002.

RammingER, t.; naRdi, H. Modos de subjetivação dos trabalhadores de saúde mental em tempos de reforma psiquiátrica. Physis: Revista de Saúde coletiva, v. 17, n. 2, p. 265-287, 2007.

REboucas, d.; lEgay, l.F.; abElha, l. Satisfação com o trabalho e impacto causado nos profissionais de serviço de saúde mental. Revista de Saúde Pública, v. 41, n. 2, p. 244-50, 2007.

REboucas, d.; abElha, l.; lEgay, l.F.; lovisi, g.M. o trabalho em saúde mental: um estudo de satisfação e impacto. cadernos de Saúde Pública, v. 24, n. 3, p. 624-632, 2008.

REgo, d.P. Stress ocupacional do psicólogo em instituições de atendimento ao portador de psicose. dissertação (Mes-trado em Psicologia). Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 2000.

RibEiRo, M.B.S.; olivEiRa, l.r. terapia ocupacional e saúde mental: construindo lugares de inclusão social. Interface: comunicação, Saúde, Educação, v. 9, n. 17, p. 425-431, 2005.

Rosa, l.C.S. E afinal, quem cuida dos cuidadores? In: bRasil, Ministério da Saúde. caderno de Textos da III conferência Nacional de Saúde. Brasília, dF: Ministério da Saúde, 2001. p. 168-173.

santos-filho, S.B.; baRRos, E.B. (org.). Trabalhador

da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Unijuí, 2007.

sEligmann-silva, E. Psicopatologia e saúde mental no trabalho. In: mEndEs, r. (org.). Patologia do trabalho. São Paulo: atheneu, 2003.

silva, a.l.a.; fonsEca, r.M.g.S. Processo de traba-lho em saúde mental e o campo psicossocial. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 13, n. 3, p. 441-449, 2005.

silva, E.a. Dores dos cuida-dores em saúde mental: estudo exploratório das relações de (des)cuidado dos profissio-nais de saúde mental em Centros de atenção Psicossocial de goiânia – go. dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura) – UnB, Brasília, 2007.

silva, M.B.B. atenção psicossocial e gestão de popu-lações: sobre os discursos e as práticas em torno da res-ponsabilidade no campo da saúde mental. Physis: Revista de Saúde coletiva, v. 15, p. 127-150, 2005.

silvEiRa, d.P. Sofrimento psíquico e serviços de saúde: uma cartografia da produção do cuidado de saúde mental na atenção básica de saúde. dissertação (Mestrado em Saú-de Pública) – ENSP/fiocRuz, rio de Janeiro, 2003.

silvEiRa, M.r.; alvEs, M. o enfermeiro na equipe de saúde mental: o caso dos CErSaMS de Belo Horizonte. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 11, n. 5, p. 645-651, 2003.

tittoni, J. Saúde mental. In: cattani, a.d. (org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 215-219.

vasconcElos, E.M. Saúde mental e serviço social: o de-safio da subjetividade e da interdisciplinariedade. rio de Janeiro: Cortez, 2000.

vianEy, E.l.; bRasilEiRo, M.E. Saúde do trabalhador: condições de trabalho do pessoal de enfermagem em hospital psiquiátrico. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 5, n. 56, p. 555-557, 2003.

Page 73: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008

71raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros

Wadi, Y.M. Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela construção do hospital de alienados e da psiquiatria no rio grande do Sul. Porto alegre: UFrgS, 2002.

zERbEtto, S.r.; PEREiRa, M.a.o. o trabalho do profissional de nível médio de enfermagem nos novos dispositivos de atenção em saúde mental. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 13, p. 112-117, 2005.

recebido:abr./2008

aprovado: nov./2008

Page 74: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE72

a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário

arte ContemporâneaThe Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte contemporânea

RESUMO É apresentado o modo de funcionamento, princípio ético e os

fundamentos da Escola Livre de Artes Visuais, um setor do Museu Bispo do

Rosário Arte contemporânea que oferece experiência com a criação artística. O

museu define-se pela criação e é constituído como ‘instituição inventada’ na luta

da cultura contra a psiquiatria disciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Arte; criação; Museu; Psiquiatria; Terapia artística.

ABSTRACT One presents the modus operandi, ethical principles and foundations

of Escola Livre de Artes Visuais (Elavi). Elavi is a section of Museu Bispo do

Rosário Arte contemporânea which offers experience with artistic creation. The

museum is defined by the creation and stands as an ‘invented institution’ in the

fight of culture against disciplinary psychiatry.

KEYWORDS: Art; creation; Museum; Psychiatry; Art therapy.

ricardo aquino 1 thiago Ferre i ra de aquino 2 rita aquino 3

1 diretor; curador do Museu Bispo do

rosário arte Contemporânea.

[email protected]

2 Músico; mestrando do Programa

de Pós-graduação em Música na

Universidade Federal do rio de Janeiro

(uniRio); professor da Escola livre de

artes Visuais (Elavi).

[email protected]

3 dançarina; mestre em dança pela

Universidade Federal da Bahia (UFBa);

professora da Elavi em 2005-2006.

[email protected]

Page 75: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

73aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

I N T R O D U ç Ã O

Neste trabalho é apresentada a Escola livre de

artes Visuais (Elavi) do Museu Bispo do rosário

arte Contemporânea inaugurada em 18 de maio de

2005. a Elavi é o segmento do museu que oferece

a possibilidade de experimentação artística, seu pe-

ríodo de funcionamento é de segunda a sexta-feira,

matutino e vespertino, nas dependências do museu

localizado no perímetro do Instituto Municipal de

assistência à Saúde Juliano Moreira, na cidade do

rio de Janeiro, e é aberta a usuários dos serviços de

saúde mental, técnicos e comunidade. a característica

essencial da Elavi decorre do fato de ser um dispositi-

vo sem medicamentos que oferece a possibilidade de

experimentar a arte fora do circuito de tratamento,

de oficina de terapia ocupacional, da arteterapia, ou

outros. trata-se de um espaço catalisado por artistas,

sem a presença de qualquer profissional relacionado

à Saúde Mental.

o nome escolhido para a escola tem por referência

o trabalho do psiquiatra e psicanalista osório César

desenvolvido na Colônia do Juqueri entre 1949 e 1971.

o psicanalista denominava de Escola livre de artes

Plásticas. a escolha da denominação Escola livre de

artes Visuais foi dada em conformidade com a amplia-

ção do campo das artes plásticas, por intermédio do uso

de novas mídias.

o nome deste setor transmite a idéia de que os

freqüentadores não são ‘doentes mentais sob trata-

mento’, mas sim estudantes ou aprendizes de vivências

artísticas. Portanto, a escola desloca o foco da saúde e

doença para o da criação e cultura. Entende-se criação

artística como algo inerente ao que todos os homens são

potencialmente capazes. desta forma, a Elavi sustenta

a criação artística como uma estratégia de combate à

ciência psiquiátrica e aos seus efeitos.

Benedetto Saraceno recomenda que:

Não necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessi-tamos de esquizofrênicos cidadãos, não necessitamos que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a cidadania. (saRacEno, 1996, p. 16).

de fato, a Elavi enquanto setor do Museu Bispo

do rosário arte Contemporânea, que oferece experi-

ências com a arte, se coloca no campo da mudança e

do novo, contra o paradigma psiquiátrico clássico e o

seu positivismo cientificista. o museu coloca em ação

as palavras de Friedrich Nietzsche, as quais sintetizam

sua inserção no debate das questões sustentadas pela

reforma Psiquiátrica:

A história e as ciências naturais foram úteis para vencer a Idade Média: o saber contra a crença. Agora lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida! (niEtzschE, 1987, p. 11).

o funcionamento por três anos motivou esta

apresentação em que são contemplados os fun-

damentos e, justificado o recurso da arte contra a

psiquiatria.

MUSEU E REFORMA PSIQUIÁTRICA

a reforma Psiquiátrica se empenha pela mudança

do paradigma psiquiátrico que foi construído tendo

por base o asilo e saber psiquiátrico. a Modernidade foi

construída sobre as bases das instituições e dos saberes de

matiz disciplinar. a reforma Psiquiátrica problematiza

as bases disciplinares da Psiquiatria: o asilo e o saber, e o

correlato disto na cidadania. Mais do que isto, a reforma

Psiquiátrica luta por um novo lugar social na cultura a

Page 76: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

74 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

ser ocupado pela loucura e pelos que se encontram na

condição de sofrimento psíquico. Joel Birman (1992,

p. 72) destaca este como o eixo central da luta do mo-

vimento. Isto vem ao encontro das seguintes palavras

de Michel Foucault:

A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual denunciamos uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na história. (foucault, 2000, p. 157).

a desconstrução das instituições e do saber que

sustentam a psiquiatria exigiu a construção de novos

dispositivos, denominados por Franco rotelli (1990a)

como ‘instituição inventada’. Esta necessidade decorre

da mudança do foco do ‘mal obscuro’ (RotElli, 1990B,

p. 91) – os indivíduos recolhidos numa instituição –

para ter como objeto as pessoas em situação de sofri-

mento psíquico. a ‘instituição inventada’ inventa uma

nova maneira de cuidar, a partir de um novo olhar,

sobre um novo objeto. o Museu Bispo do rosário

arte Contemporânea é uma instituição inventada

pelas necessidades e especificidades da luta na cultura.

o foco de sua atuação é a defesa da cidadania plena

da criação artística dos usuários dos serviços de Saúde

Mental (aquino, 2004).

Com outras palavras, o Museu é uma instituição

inventada na dimensão da luta na cultura que tem como

proposta o empenho em prol da reforma Psiquiátrica

da criação artística dos usuários, museus e experiências

com a arte. Se a reforma Psiquiátrica luta pela cidadania

dos usuários e por instituições de cuidados em saúde que

respeitem estes direitos, o museu, por sua vez, é uma

‘instituição inventada’ que luta pela cidadania plena da

criação dos usuários.

Há três observações que ajudam a contextualizar

a Elavi:

• o conceito do Museu Bispo do Rosário Arte

Contemporânea se baseia na crítica ao modelo discipli-

nar de museu que se estrutura e define sobre a coleção de

objetos. a coleção funda o museu disciplinar localizado

em um edifício, o qual funciona como um pan-óptico,

como qualquer instituição disciplinar na qual se dirige

o público a receber passivamente uma narrativa que

tem por base uma história mestra, seja na esfera da arte,

como da história humana ou natural.

Pode-se sintetizar o modelo disciplinar de museu

da seguinte maneira: museu = coleção + edifício +

público.

a crítica a este modelo exigiu do Museu uma nova

definição assentada sobre a criação. a criação artística

é o que possibilita estabelecer uma linha de fuga do

controle do poder psiquiátrico. Como estudou gilles

deleuze (2003) a criação é a resistência por excelência

ao poder, sendo, conseqüentemente, o que funda o

Museu.

Segundo deleuze (2003, p. 4), “existe uma afi-

nidade fundamental entre a obra de arte e o ato de

resistência”. Para ele fazer arte é resistir:

[...] Quando dizemos que ‘criar é resistir’, trata-se de uma afirmação de fato; o mundo não seria o que é se não fosse pela arte, (...) as pessoas não agüentariam mais. (dElEuzE, 2003, p. 5).

a criação pode ocorrer em qualquer lugar denomi-

nado conforme Michel de Certau (2002, p. 202) ‘lugar

praticado’. Esta criação que é realizada no lugar pratica-

do e não mais no edifício sede do museu agencia relações

em ressonância naqueles pontos da rede do tecido social

que entram em contato com a ação de criação do museu.

Com isto de forma abreviada, o modo de funcionamento

do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea é:

museu = criação + lugar praticado + rede. a criação é o

elemento que funda o Museu em todo e cada segmento

do seu funcionamento, inclusive na Elavi;

Page 77: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

75aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

• quando se fala em luta contra a psiquia-

tria deve-se levar em consideração a observação de

Foucault, referente à obra de robert Castel: “[...]

a psiquiatria não nasceu no asilo; ela foi, de saída,

imperialista; ela sempre fez parte integrante de um

projeto social global” (foucault, 2002, p. 325).

Esta afirmação ganha maior relevo quando focada

para o fato de que a função de controle das institui-

ções disciplinares tende a se espalhar por todo o corpo

social. Para Foucault,

[...] o esquema pan-óptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades, é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma função generalizada. (foucault, 1977, p. 183).

a tendência prevalente é a disseminação das fun-

ções, entre elas o controle, exercidas dentro de cada

instituição disciplinar pela sociedade, exacerbado a

partir de 1945. Com isto, deleuze (1996) denominou

sociedade de controle a nova modalidade do poder de

demarcar o tecido social que se observa cada vez mais

na contemporaneidade. assim, o poder psiquiátrico

de controle circula pelo tecido social.

Na sociedade de controle, sustentar a resistência

através da criação artística é sustentar a própria vida,

pois, “a vida se torna resistência ao poder quando o

poder toma como objeto a vida”. (dElEuzE, 1988, p.

99) Com isto, amplia-se a definição: o Museu Bispo

do rosário arte Contemporânea se estrutura tendo

por base a criação para se colocar como uma estratégia

de resistência ao controle do poder psiquiátrico que

se exprime na cultura;

• a Modernidade foi marcada pela construção

das instituições disciplinares e por uma nova raciona-

lidade ou maneira de correlacionar as palavras e coisas.

Foucault denominou a este arranjo do pensamento

de epistémê. a epistémê da Modernidade, a terceira

e última estudada por Foucault, se alicerçou sobre

o historicismo e o deciframento. o historicismo se

apoiou no darwinismo e reservou ao ‘doente mental’

o lugar do primitivo, arcaico, não-culturalizado e

mais próximo ao animal. o deciframento é a atri-

buição daqueles racionais, adultos, machos, brancos,

europeus, de interpretar o sentido oculto das coisas

e o último segredo dos fatos humanos. a psicanálise

e a etnologia atravessam os saberes da modernidade

(foucault, 1981, p. 396).

a crise da sociedade disciplinar é concomitante

à crise da epistémê da Modernidade. Para george

Yúdice (2004), atualmente na sociedade de controle

vive-se sob uma nova epistémê, a contemporânea, que

é caracterizada pela ultrapassagem do historicismo e

do deciframento:

[...] propor uma quarta epistémê baseada na re-lação entre as palavras e o mundo que resulta das epistémês anteriores – semelhança, representação e historicidade-, mas que, no entanto, as recombina levando em consideração a força constitutiva dos signos. (yúdicE, 2004, p. 53).

Este é o patamar para a apresentação da Elavi,

enquanto setor do Museu que é uma instituição in-

ventada pela reforma Psiquiátrica na crítica do museu

disciplinar e que se afirma como um museu da criação.

a criação organiza e sustenta todos os aspectos do seu

funcionamento: a própria escola livre, as exposições, a

ação educativa, etc. o foco é a luta pela cidadania da

criação dos usuários na cultura. o seu funcionamento

se exerce em sintonia com a sociedade de controle –

enquanto uma estratégia de resistência ao controle

exercido pelo poder psiquiátrico – e também com a

racionalidade contemporânea em contraposição com

a moderna.

Page 78: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

76 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

A RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEA

antonio Negri e Michel Hardt (2000, p. 453-

458) indicam as características da nova racionalidade.

Eles começam por identificar as cinco oposições que

caracterizam a contemporaneidade: (1) criação contra o

limite e a medida; (2) procedimento e processo contra o

mecanismo dedutivo; (3) igualdade contra o privilégio;

(4) entre diversidade e uniformidade e (5) cooperação

contra o comando.

A nova racionalidade da Elavi

criação contra o limite e a medida

É afirmado o caráter ilimitado e desmedido da

potência de criação. Quando a potência cria, cria a si

mesma, alterando todas as relações e colocando-se em

um movimento de ultrapassar os limites e medidas, as

quais, contra o poder da criação, lutam por reduzi-la.

Procedimento e processo contra o mecanismo

dedutivo

trata-se da afirmação da liberdade e do processo

em luta com os enquadramentos externos da norma,

da verdade, da instituição, do saber e da autoridade.

acrescenta-se, entre outros, da instituição e dos saberes

psiquiátricos. É a afirmação da criação de novas singu-

laridades agenciadas pela potência da arte.

Igualdade contra o privilégio

o privilégio, por exemplo, dos técnicos ou do saber

é contraditório ao movimento da potência, ilimitada,

desmedida, não-institucionalizada. o privilégio promo-

ve o bloqueio do processo.

Entre diversidade e uniformidade

decorre logicamente da oposição entre igualdade

e privilégio

cooperação contra o comando

o exercício do comando é a afirmação do consti-

tuído, instituído, normatizado e do uniformizado. ao

contrário, cooperação é inovação. as práticas com a

arte na Elavi rompem com o esquema da racionalidade

moderna. Isso significa estimular a criação artística, sus-

tentar o procedimento, afirmar a igualdade, pressupor

a diversidade e atuar em cooperação. Portanto, surgem

os três eixos de sustentação da Elavi.

Três eixos de sustentação da Elavi

• Efetiva subjunção da concepção de espaço à

concepção de tempo – Hardt e Negri afirmam que “a

potência constituinte rompe o espaço e o transpõe para

o tempo” (haRdt; nEgRi, 2000, p. 439). Esta mudan-

ça, no eixo da temporalidade, implica redimensionar o

referencial de espaço para o de lugar praticado: o tempo

da criação, no presente, é que funda o espaço.

• Continuidade da crise instaurada pela potên-

cia – Implica na valorização do evento da criação e não

do lugar instituído, a Elavi é um lugar praticado pela

criação artística que instaura a crise que é a possibili-

dade de mudança que o acontecimento possibilita. os

acontecimentos ou eventos como define Milton Santos

não se repetem, são singulares: “onde ele se instala, há

mudança” (santos, 2002, p. 146).

a definição da Elavi é ampliada com a idéia de ser

um lugar praticado pela criação artística, que institui a

crise permanente, a crise da criação desmedida, susten-

tando-se assim enquanto uma clínica da desmedida, da

criação permanente a provocar crises, ou seja, mudanças

tanto externas – no ambiente – quanto internas nos

alunos e professores. Esta dinâmica do evento, no caso,

da criação artística, pode ser alcançada quando este

evento está catalisado e ocorre levando-se em contas

Page 79: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

77aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

as cinco oposições já descritas que levam a superar a

racionalidade moderna.

• Mudança da natureza da práxis constitutiva

– Para Hardt e Negri, “sua definição não é dada pela

efetividade do êxito, mas pela ação efetiva no sentido

de tentar sempre um novo êxito” (haRdt; nEgRi, 2000,

p. 440). Na Elavi a práxis é sempre re-proposta. a

potência se afirma em cada evento ou acontecimento,

criando novas relações de tempo e espaço. Isto pode

gerar, em cada nível, novas subjetividades que são pro-

porcionadas pela experimentação repetida. o objeto é

a memória do ato e o importante é a aposta na criação

desmedida através da arte. Na Elavi toma-se a potên-

cia da arte como a possibilidade de criação de novas

subjetividades que resistem ao controle. Fica esclareido

que o processo de afirmação da potência de criação é

mais importante que o produto final – o objeto é a

memória do ato. todo o esforço se dirige à valorização

do ato de criação e não do objeto final. a Elavi não

quer ‘fabricar artistas’, pois estes são valorizados pelos

objetos criados.

a afirmação desta produção, enquanto arte é apoia-

da no fato de que o processo a ser ativado é o da criação

artística, sendo o seu produto, o objeto, de natureza

artística. Isto é atingido, desde que não se interponha

outra lógica, a da razão e do pensamento.

a Escola valoriza a produção artística dos pacientes,

não como objeto artístico ou produto final a ser reconhe-

cido como arte de qualidade e o seu produtor, artista,

mas sim, deve-se valorizar a produção artística, no qual

os usuários se empenham. Pois, nesta produção eles se

fazem, constituindo novas subjetividades, segundo Niet-

zsche: “a ‘obra’, aquela do artista, do filósofo, inventa

em primeiro lugar aquele que a criou, que se supõe que

a tenha criado” (NiEtzschE, s/d, p. 199).

Possibilita-se que os usuários criem o seu fazer

artístico, valorizando a cooperação, sem a sugestão ou

a cobrança de um saber psiquiátrico. Esta produção

não está subjugada em seu nascedouro pelo olhar

interpretativo redutor a outra lógica ou saber. Nem

mesmo à concessão que se faz em arteterapia, quando

se afirma que possibilitam os pacientes à se exprimir

em outra linguagem, mais próxima daquela que pre-

domina no inconsciente, ou seja, por imagens e não

por palavras.

A ELAVI: ÉTICA E FUNDAMENTOS

Um princípio ético: as três metamorfoses

a ilustração do que é a postura ética adotada na

Escola livre pode ser encontrada em Nietzsche (1988, p.

43-44), quando ele menciona as três metamorfoses: do

espírito da suportação (camelo) ao espírito de rebeldia

(leão) e, deste ao espírito de criação (criança). E indica

então qual atitude do espírito que leva verdadeiramente

à criação: é o dizer sim à vida.

o artista é aquele que vê o mundo com o frescor

de uma criança, ou seja, com a total abertura para o

novo, aquele cuja postura não é a de ficar aprisionado

ao “Sim”, tal qual a postura do camelo, à submissão

aos ditames de, por exemplo, uma oficina, em que lhe

seria solicitado que este criasse naquele momento, com

aquelas pessoas, a partir daquele material, em muitas

até, que crie determinada forma de objeto, para tal ou

qual finalidade: a cura; um bazar; uma exposição; para

agradar ao profissional, etc.

a postura de dizer “Sim” o condena ao simulacro e

o afasta da possibilidade de criação, condenando aquele

que a isto se submete a uma falsa identidade, alienado

na submissão ao outro. da mesma forma, a atitude de

afirmar o “Não”, tal qual na postura do leão. Quando

Page 80: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

78 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

alguém se coloca nessa postura, sua identidade é cons-

truída em referência contrária a este outro.

a postura ética é levar às últimas conseqüências

a atitude de criar as condições para que as pessoas se

outrem, do verbo outrar, qual seja o exercício da capa-

cidade da pessoa poder vir a ser um outro pelo recurso

da arte. os “outramentos”, ou novas subjetividades de

um tipo distinto daquelas constituídas pela repetição

automatizada de padrões podem se afirmar quando

ocorre um mergulho na criação, quando se afirma a

desmedida da criação artística. denomina-se clínica da

desmedida a clínica ampliada no sentido definido por

Maurício garcia (1996, p. 11) que se calca na criação

artística, pois a arte não tem medida. Se houver medida

não há arte, pois esta é disruptiva por natureza, conforme

afirmou Felix guattari (1986, p. 36).

deve-se estar atento para que não se sucumba à ilu-

são de que o fato de uma determinada oficina produzir

‘produtos’, seria algo interessante sob o ponto de vista

da reforma Psiquiátrica. assim, até mesmo a realização

de uma exposição não deve iludir. deve-se atentar para

o fato de esta determinada oficina ou exposição estar

fabricando ou não falsas identidades, constituindo ou

não falsos selves, mesmo que o de artista. E, refletir se

dinamiza a construção de uma nova possibilidade ou

se está condenada ao passado, reproduzindo a lógica

disciplinar.

Para que a Elavi sustente as condições de afirma-

ção do devir criança, deve-se estar atento para que os

catalisadores também participem criando. Com isto,

é eliminada a distância entre um ‘olhar de fora’ – téc-

nico ou profissional, dotado de um saber artístico ou

de uma verdade psicológica -, no encontro com os

aprendizes.

a atitude dos catalisadores deve estar pautada

pelo recomendado pelo psicanalista Wilfred Bion, ‘sem

memória e sem desejo’. deve-se colocar junto ao aluno

sem ser o portador de nenhum de seus traços biográfi-

cos – sejam de sua história pessoal ou institucional – e

sem nenhuma expectativa direcionada a uma finalidade,

objetivo, intenção ou projeto. o devir criança é o apaga-

mento de qualquer sentimento ou ressentimento prévio

ao processo de criação. trata-se de promover o encontro

da sensibilidade consigo mesma sem a interferência de

nenhum pensamento, nenhum traço de identidade ou

referência de papel.

o catalisador não deve olhar o criador a partir de

nenhuma expectativa: de ser artista ou doente; de conti-

nuar o último trabalho; de criar algo para uma exposição;

de fazer algo para vender; de se colocar em tratamento;

de ser um artista plástico; ou seja, a postura deve ser sem

memória e sem desejo; sem nenhuma referência ao que

passou e sem nenhuma expectativa para o futuro.

o silêncio das emoções não se aplica no caso da

Escola. Vive-se no cotidiano um ruidoso e radical en-

volvimento, principalmente, com o processo de criação.

as relações e os afetos circulam entre as pessoas no

cotidiano das práticas. a intensidade dos afetos entre

os freqüentadores acontece com as características da-

quelas prevalentes dentro de qualquer grupo humano.

É possível definir que o grupo constituído na Elavi é

um grupo homogêneo com todos – alunos e professores

– igualmente irmanados na criação artística. trata-se

de relações transferenciais, sim, como qualquer outra

relação humana.

a relação transferencial não é operacionalizada,

entendida no plano da objetividade das relações

humanas. Nem mesmo se coloca a ressalva de que

numa atividade de arteterapia ou terapia ocupacional

a transferência se desenvolve mediada pela imagem ou

objeto. Na escola, o afeto que catalisa é a paixão de

criar; a captura que a arte agencia em cada um e esta

paixão não deve ser mediada por nenhuma relação

terapêutica ou transferencial.

a atitude de se colocar ‘sem memória e sem desejo’

implica sustentar as questões surgidas e não obstruí-las

Page 81: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

79aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

com alguma verdade, respondendo às solicitações ou

oferecendo respostas, promessas e perspectivas. trata-se

de não oferecer respostas às questões e sim sustentar

a indagação. Busca-se sair da ilusão de verdade, que

é o ancoradouro da ciência – falsa proteção de um

saber que lança previsões e que é transcendente – para

se colocar numa relação imanente à sensibilidade.

localizando-se no aqui e agora da criação, sem certe-

zas e verdades, mas com a potência da abertura para

o novo, inesperado, disruptivo, a desmedida, enfim,

a criação artística.

outro aspecto derivado da postura ética é o que

Frieda Fromm-reichmann (1984, p. 27) postula,

referindo-se aos profissionais que atuam na Saúde

Mental, de que o paciente não deva ser uma fonte de

satisfação, realização, segurança para o terapeuta, nem

mesmo nas fantasias.

a aposta é no processo de criação e não nos resul-

tados, benefícios advindos do resultado, uso que vai

haver do resultado, ou na promoção e gratificação dos

profissionais envolvidos. Fromm-reichmann chama a

atenção para a situação em que o profissional inseguro

ou insatisfeito não garanta uma transferência positiva

dos usuários, reforçando laços de admiração e de gra-

tidão, o que estimula uma relação de dependência e

infantilização. Isto deve ser levado em conta, pois se

trabalha com a arte e com produtos que podem vir a

ser valorizados no mercado repercutindo em ganhos

financeiros ou de prestígio.

Enfim, na Escola livre, apostar num devir criança

não se resume a uma recomendação técnica. Mais que

isto: trata-se de um princípio ético, visto que se articula

com uma postura básica de aposta radical na arte e na

criação artística. É a afirmação da vontade de alinhar-

se numa postura contra o controle que possa ocorrer

mesmo em dispositivos extramuros, pois, estas podem

reproduzir com a mesma intensidade uma relação de na-

tureza asilar, como destacou deleuze (1996, p. 220).

Fundamento primeiro: por uma estética não-

aristotélica

Indica-se sumariamente que o Museu se insere na

luta contra o paradigma clássico da estética concebida

segundo os mesmos princípios que fundamentam a

ciência para aristóteles, uma lógica do geral; algo que

pode ser entendido e reproduzido por qualquer um,

desde que leve em conta as condições de emergência do

fenômeno e que se assenta na possibilidade de se afirmar

os princípios gerais segundo os quais, dado efeito se ex-

ternaliza. a estética foi concebida tal qual uma ciência.

a arte, ao contrário, é de natureza singular e individual.

Fernando Pessoa (1986, p. 240) sistematizou a crítica

a esta arte aristotélica, caracterizando que esta tem por

finalidade a beleza. também indica os princípios que

caracterizam uma estética não-aristotélica, apontando

para a idéia de força em contraposição a de beleza. Na

Elavi não interessa uma estética – aristotélica – que se

baseie na noção de beleza, que vem ao lado da de catarse,

contemplação, acomodação ou adaptação.

Fundamento segundo: a loucura é ausência de obra

a Elavi é apoiada no ensinamento de Foucault

(2000, p. 156), que evidencia a relação de exclusão: a

loucura é ‘a ausência de obra’ (foucault, 2000, p. 156).

deleuze (1990) desenvolveu a seguinte tese, o paciente

quando está criando se coloca num devir artista e clinica

o mundo. Neste momento, o criador se coloca numa

postura contrária da compulsão à repetição, prevalente

na doença.

as práticas da Elavi estimulam o processo criativo

e através deste possibilitam a construção de novas subje-

tividades. Isto leva a um processo inverso ao da loucura,

enquanto a ausência de obra entrega à repetição do mesmo,

sem diferenciação, sem a afirmação da diferença. a saúde é

entendida como o fluir do processo de criação e a doença

como a interrupção deste processo. o objeto final a que se

Page 82: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

80 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

atinge é a memória do ato de criação. o que importa de

fato é a criação de novas possibilidades para o criador.

Fundamento terceiro: o objeto é a memória do ato

a Elavi investe no processo de criação artística:

não importa o objeto ou o produto final originado.

Valoriza-se o processo de criação, sendo entendido o

objeto como a memória do ato.

A prática na Elavi: sumário

a – alunos: usuários, técnicos, artistas e co-

munidade.

B – artistas como catalisadores: artistas oriundos

do campo da Saúde Mental ou do campo artístico

conduzem os trabalhos. Estes são os propositores ou

professores, denominados catalisadores. o catalisa-

dor, tal qual na reação química, é o agente que cria

as condições para que determinada reação química se

processe. Ele não está presente, nem no início nem

no resultado do processo, sua ação é a de facilitar

para que a reação ocorra, de forma mais rápida, mais

eficiente. o professor não ‘ensina a fazer arte’, mas

sim se coloca como exemplo e estimula a atitude da

criação.

C – Fazer junto: todos os envolvidos nas práticas

devem fazer juntos as mesmas atividades para evitar

o olhar controlador ou decifrador. rompe-se com a

prática de deciframento da criação sob qualquer teoria,

escola ou autor.

d – diferentes linguagens: diferentes linguagens

facilitam a livre escolha.

E – Saídas semanais: os alunos são convidados a

circularem pelos espaços sociais consagrados à arte, a

conhecer outros artistas e seus ateliês, a receberem a

visita de outros artistas interessados em intercâmbio e

troca de experiências.

F – os produtos são deles: o produto final perten-

ce a seus criadores. os usuários podem dispor de sua

criação.

g – Eles explicam: os autores ou criadores pro-

duzem discursividade sobre suas obras, recebem os

visitantes e comentam suas obras.

H – Exibir, segundo as correntes: Expõem-se as

obras segundo as correntes reconhecidas na História

da arte. o Museu combate o uso das denominações

que este segmento da criação humana recebeu no

campo psiquiátrico, que as toma como sintoma de

doença mental: arte psicótica, psicopatológica, louca,

teratológica, degenerada ou imagem do inconsciente.

da mesma forma, combate as denominações que

surgiram no campo artístico conferindo minoridade

social à estas obras: arte virgem, bruta, outside art

ou folk art.

I – Busca do estilo: Busca-se criar condições para

a constituição de novas subjetividades, a afirmação do

estilo de cada um, numa direção contrária à da psiquia-

tria, de tratamento e cura.

CONCLUSÕES

definir o Museu Bispo do rosário arte Con-

temporânea, como um museu de criação, implica

privilegiar a criação artística na exposição, na ação

educativa, na Elavi, entre outros. São criadas as

condições para que o processo da criação se expresse

em seu mais elevado grau, na forma mais radical da

arte, numa perspectiva que denominada ‘Clínica da

desmedida’, posto que se operacionalize a arte sem

amarras numa postura de se contrapor à lógica psi-

quiátrica, procurando através da criação artística, a

criação de novas subjetividades como resistência ao

controle do poder psiquiátrico.

Page 83: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

81aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

Na Elavi, a criação artística não é usada enquanto

terapia e se rompe com o deciframento da obra de arte.

Quando se fala em cura, tratamento, terapia e outros a

partir do referencial teórico da psiquiatria, diz-se: a Elavi

não cura, não trata, não é terapia. Porém, cura, trata, e age

no corpo teórico da psiquiatria: a arte contra a ciência. a

criação é catalisada exclusivamente por artistas.

Praticar oficinas com a arte pode implicar na

repetição da lógica disciplinar, a qual fundou o saber

psiquiátrico e o asilo. Nesse caso, se lança mão da arte

– domesticada –, como já se lançou mão da psicanálise,

dos grupos, das comunidades terapêuticas, do lazer e

do trabalho.

a Elavi permite a afirmação da obra em contra-

posição à loucura, ao criar as condições pra que estes

gestos sejam reconhecidos, enquanto obra e estas falas

são entendidas como linguagem.

a prática clínica da Escola livre é inserida no

campo em construção da clínica ampliada que interessa

à reforma Psiquiátrica, no qual o eixo da cidadania é

um dos referenciais e o alvo é o indivíduo em situação

de sofrimento psíquico.

R E F E R Ê N C I A S

aquino, r. Museu Bispo do Rosário: criação e resistência. 2004. dissertação (Mestrado em Memória Social) – Centro de Ciências Humanas,Universidade Federal do rio de Janeiro, rio de Janeiro, 2004.

biRman, J. a cidadania tresloucada. In: bEzERRa, B.; amaRantE, t.B. (orgs.). Psiquiatria sem hospício: con-tribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. rio de Janeiro: relume/dumará, 1992.

cERtEau, M. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

dElEuzE, g. Qu’est-ce que l’acte de création? Conferência na fundação Femis, realizada em 17 de maio de 1987. resgatada no endereço: www.webdeleuze.com. acesso em: 16 de mai. 2003.

______. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: conversações: 1972-1990. tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1996.

______. critique et clinique. Paris: Minuit, 1990.

______. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.

foucault, M. o asilo ilimitado. In: motta, M.B. Ditos e escritos I: problematização do sujeito: psicolo-gia, psiquiatria e psicanálise. rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

______. Prefácio Folie et déraison. In: Histoire de la folie à l’Âge Classique. Paris: Plon, 1961, p. VI. Publicado em motta, M. B. (org.). Michel Foucault: problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise: ditos e escritos I. 2. ed. rio de Janeiro: Forense, 2000.

______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

______. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. Petró-polis: Vozes, 1977.

gaRcia, M.l. Análise institucional: considerações sobre a clínica ampliada. dissertação (Mestrado em Psicolo-gia) – Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1996.

guattaRi, F.; RolniK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

haRdt, M.; nEgRi, a. Império. rio de Janeiro: record, 2000.

Page 84: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008

82 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea

niEtzschE, F.W. Assim falou Zaratrusta: um livro para todos e para ninguém. 9. ed. rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

______. Livro do filósofo. São Paulo: Moraes, 1987

______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. tradução antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, s/d.

PEssoa, F. apontamentos para uma estética não-aristoté-lica. In: PEssoa, F. Obras em Prosa. 3. ed. rio de Janeiro: Nova aguilar, 1986.

REichmann, F.F. Princípios de psicoterapia Intensiva. traduzido por Enrique thierer. 6. ed. Buenos aires: Hormé, , 1984.

RotElli, F. a instituição inventada. In: Nicácio, F. (org.). Desinstitucionalização. São Paulo: hucitEc, 1990a.

______. desinstitucionalização, uma outra via. In: Nicácio, F. (org.). Desinstitucionalização. São Paulo: hucitEc, 1990B.

santos, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2002.

saRacEno, B. reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: Pitta, a. (org.). Reabili-tação psicossocial no Brasil. São Paulo: hucitEc, 1996.

yúdicE, g. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMg, 2004.

recebido: abr./2008

aprovado: nov./2008

Page 85: Saude Em Debate_n75

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 83

Saúde em Debate, rio de Janeiro. v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

Saúde Mental e cultura: que cultura?Mental Health and culture: what culture?

“Em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos”(canclini, Culturas híbridas, p. 349)

RESUMO A partir de uma crítica às perspectivas mentalistas fortemente presentes

entre os dispositivos da Saúde Mental, busca-se valorizar a articulação da Saúde

Mental coletiva com a cultura. Entretanto, questiona-se sobre que concepção de

cultura estaria perpassando com justeza os avanços no campo da Saúde Mental

coletiva. Há conceituações de cultura que restabelecem posições reacionárias e,

enquanto tais findam por se mostrar condizentes com o reforço das concepções

mentalistas na Saúde Mental, o que seria um retrocesso para posturas excludentes.

Porém, mostram-se mais proveitosas as concepções pós-estruturalistas de cultura.

Para tal, são expostas linhas gerais dos conceitos de descoleção e hibridação a partir

das análises sobre a cultura empreendidas por canclini.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Psicologia clínica; Saúde Mental

ABSTRACT From a critical point of view to the mental perspectives, strongly

operating between devices of Mental Health, there has been an attempt to

searching the joint of collective Mental Health with the culture. However, it is

put in question what conception of culture would be supporting the advances in

the field of the collective Mental Health. There are culture conceptualizations that

reestablish reactionary positions and, therefore, are combined with traditional

positions in the Mental Health, what would be a retrocession to the excluding

postures. However, the conceptions after-critical of culture are more beneficial.

The general lines of descollect concepts and hibridation from the analyses on the

culture are herein displayed in the words of canclini.

KEYWORDS: Psychoanalysis; clinical psychology; Mental Health

alexandre S imões ribeiro 1

1 Psicanalista; doutor em filosofia pela

Universidade Federal de Minas gerais

(UFMg); professor da Universidade do

Estado de Minas gerais (UEMg) no

campus da Fundação Educacional de

divinópolis (funEdi).

[email protected]

Page 86: Saude Em Debate_n75

84

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

SALAS-AO-LADO

Nos últimos dez ou 20 anos, vem se percebendo

um interessante deslocamento nas rotinas e desafios que

compõem o campo da Saúde Mental no Brasil. Se for-

mos mais rigorosos, poderemos encontrar circunstâncias

propulsoras desse deslocamento em uma temporalidade

bem maior do que os dez ou 20 anos apontados. Contu-

do, percebe-se que, na última década, aquilo que ainda

era um tanto quanto isolado, às vezes disperso, discreto

e, em alguns casos, incipiente e amórfico se impôs de

tal maneira que, atualmente, ultrapassa limites setoriais,

fronteiras profissionais e delimitações epistemológicas do

conhecimento e do fazer para se mostrar mais enredado

e consistente.

aliás, como é sugerido neste artigo, parece que as

iniciativas de vanguarda presentes na Saúde Mental po-

deriam usufruir muito dos debates e circunstâncias vindos

de outros campos e problemáticas, não só relacionados à

doença, loucura, normalidade versus anormalidade. Em

suma, parece-me que uma forma de aprimoramento na

saúde mental, para além de aparatos adaptacionistas ou

normalizadores e taxonômicos, pode ser obtida se ousar-

mos visitar, por assim dizer, a ‘sala-ao-lado’.

Uma dessas salas-ao-lado, que vem apresentando

potentes desconstruções e agudas complexidades, é pre-

cisamente a que se mostra sensível às considerações pós-

estruturalistas acerca da cultura. tais circunstâncias e

resensibilização dos olhares iniciaram-se, de certa forma,

com a tradição inglesa dos Estudos Culturais (cf. silva,

2004): era preciso pensar o que vinha a ser educação,

conhecimento e cultura face às novas condições dos

trabalhadores no mundo pós-guerra, demarcado pela

bipolaridade de um globo dividido por dois sistemas

de produção antagônicos. Um pouco mais adiante no

tempo, tudo isso se torna agudo, pois a esse cenário

incorporam-se os fenômenos decorrentes da mobilidade

das fronteiras (às vezes, com efeitos devastadores para as

pessoas mais diretamente envolvidas nestas questões), ou

seja, os fenômenos oriundos de um mundo pós-colonial

em que a presença e a produção de diferenças, bem como

a diversidade de identidades (o louco, a mulher, o negro,

o africano, o sul-americano etc.), colocam em derrocada

olhares e fazeres até então aparentemente estáveis e que

garantiam a verdade, a ordem e o futuro.

É justo sublinhar, porém, a necessária discussão

acerca da loucura (em especial) e da Saúde Mental (em

geral) de maneira não restrita às especialidades (a iden-

tidade-psicólogo, a identidade-médico, a identidade-

família etc.) que se voltam, em tese, para tais temas, já

devidamente abordada por alguns autores (lobosquE,

2001; amaRantE, 2003). de certa forma, essa parece ser

a tônica difusa, mas sempre presente, na abordagem do

modo psicossocial de atenção à Saúde Mental (costa-

Rosa; luzio; yasui, 2003).

Certamente, a articulação das questões suscitadas

pelos caminhos da loucura (em todas as suas formas) em

relação à cultura tem como repercussão a produção de

um novo tom ou ânimo e, até mesmo, esperança em meio

à Saúde Mental. E isso, por si só, já é bastante louvável.

Contudo, se não nos indagarmos minimamente acerca do

que se entende por ‘cultura’, não conseguiremos ir além de

uma extravagante idolatria do ‘até-então-marginal’ (sob o

escopo de um ideal de compensação ou reparação sociais)

ou de uma frágil ética da tolerância, que nos conduz a

acolher, suportar e tolerar a diferença (por exemplo, sob

a forma do louco). ora, se há de fato uma possibilidade

e o desejo de se fazer uma transformação no campo da

Saúde Mental que não resulte em niilismo ou em uma

hierarquização disfarçada (‘somos tão superiores que acei-

tamos a diferença!’), trata-se de se produzir a diferença e

não exatamente aceitá-la piedosamente. Em suma,

Page 87: Saude Em Debate_n75

85

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

[...] procuramos deixar claro desde o início que o projeto antimanicomial não se reduz a reformas assistenciais. Por eficazes que sejam, as reformas no âmbito da assistência só adquirem um caráter trans-formador quando se articulam com uma intervenção na cultura, tendo a recriação das idéias sobre a figura do louco ao mesmo tempo como objetivo e efeito de sua implementação. (lobosquE, 2001, p. 30).

Mas é vital estarmos atentos para a seguinte pos-

sibilidade:

O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas às quais os homens são remetidos. Tais ati-vidades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas. (guattaRi; RolniK, 2000, p. 15).

ou ainda:

Atrás da falsa democracia da cultura continuam a se instaurar – de modo completamente subjacente – os mesmos sistemas de segregação a partir de uma cate-goria geral da cultura. Os Ministros da cultura e os especialistas dos equipamentos culturais, nessa perspec-tiva modernista, declaram não pretender qualificar socialmente os consumidores dos objetos culturais, mas apenas difundir cultura num determinado campo social, que funcionaria segundo a lei de liberdade de trocas. No entanto, o que se omite aqui é que o campo social que recebe cultura não é homogêneo. (guattaRi; RolniK, 2000, p. 20).

O deslocamento

Qual seria o deslocamento que, em tese, justificaria

a freqüentação de salas-ao-lado? trata-se da migração de

uma concepção de clínica e de todos os seus aparatos

calcados em prerrogativas mentalistas para uma perspec-

tiva que, em nítido contraste com aquela, apresentar-

se-ia mais porosa, aberta e extensiva, mas não por isso

isenta de rigor e, muito menos, de vigor. reflexões

desenvolvidas entre nós por Jairo goldberg (1992),

Paulo amarante (2003), abílio Costa-rosa (2003),

ana Pitta (1994), Joel Birman (2005) e muitos outros,

certamente influenciados por uma série de movimentos,

tendências e suspeitas deflagradas por cenários que se

impuseram no período pós anos 1950, em muitos países,

apresentam-se como relevos distintos, mas integrantes

de um mesmo território; território este que já coloca em

xeque a própria noção enrijecida de território, de espaço

com fronteiras discerníveis e de identidade fundante (por

conseguinte, de diferença). ao articular essas circunstân-

cias, promovedoras de descentramentos, com o rápido

quadro que cheguei a ilustrar acerca da possibilidade de

se freqüentar salas-ao-lado, indagaríamos: quais são as

possibilidades de intervenção em Saúde Mental em um

mundo pós-colonial?

A esfera e a clínica estrita

Principalmente através dos diversos discursos e

ações que compõem a psicologia, algo se impôs em

nossos imaginários (e digo isto sem desconhecer a

amplitude desse campo, bem como a larga, e às vezes

discrepante, variedade de teorias que aí se apresentam

oficialmente desde a segunda metade do século 19): a

apreensão do psíquico como uma interioridade, como

algo que se apresenta como posse individualizada e,

em contrapartida, demarcadora de uma imprescindível

marca individualizante e, por isso, identitária.

o psíquico, como um emaranhado de traços, memó-

rias, fantasias, idéias e desejos privados, nos seduz há tem-

pos, fomentando nossos imaginários e adensando discursos

e ações que extrapolam de forma marcante o campo da

psicologia, ainda que sempre porte sua marca e presença

maiores: a psicologização. a constituição de identidades

Page 88: Saude Em Debate_n75

86

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

calcadas em atributos e afetações privados é uma decorrên-

cia direta desse homo psychologicus, finamente construído

ao longo da modernidade e aprimorado em um mundo

industrializado. Vejam como é recorrente, por exemplo, a

idéia de Freud (a princípio, um perspicaz anti-mentalista)

enquanto descobridor do inconsciente. tão recorrente e

homogênea é essa imagem às prerrogativas do mentalismo

que fazemos dela uma marca de cientificidade (no sentido

de episteme, ou seja, saber articulado a uma coerência do

discurso) e caução das ações do psicanalista. Porém, uma

leitura mais atenta e aberta às curvaturas internas do que

Freud nos propôs pode verificar que a coisa mais estranha

que poderia lhe ser imputada é, precisamente, a condição

de ele ter sido o descobridor de algo que até então escapava

aos outros. Mas, para tanto, é preciso nos desvencilharmos

do seqüestro constante e naturalizado que nos traz uma

espécie de ‘servidão voluntária’ para, então, retomar a

incômoda expressão de la Boétie (1999). Essa servidão,

que implica em um curioso seqüestro, consubstancia-se

em mentalismo.

todavia, é justo frisar que a noção de interioridade

psicológica (e a operação psicologizante) encontra, an-

tes mesmo do estabelecimento inaugural do corpus da

psicologia a partir da segunda metade do século 19, seu

rastro em Santo agostinho e em suas reflexões confes-

sionais. a partir de outro ângulo, podemos notar que

com descartes (1596-1650), a interioridade é elevada

a uma dimensão que, em muito, convirá à instrumen-

talização da razão, ou seja, a esta localização da razão

como ferramenta que moverá, doravante, o mundo.

aliás, essa imagem da mobilidade do mundo é utilizada

pelo próprio autor:

Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu ligar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais, exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável. (dEscaRtEs, 1979, p. 91).

Para continuarmos a localizar grandes marcos e

momentos de inflexão que ainda hoje se impõem a

nós todos, contudo, não poderíamos nos descuidar de

Montaigne que possibilitou, com Ensaios e o tom que

ali se produziu, a ampliação da prática da introspec-

ção ao leitor comum como via de prospecção de uma

idiossincrasia enigmática. Está claro, contudo, que

Montaigne (1533-1592) não preconizou, nesse espaço,

o universal e o apodíctico, supostamente inscritos no

homem, debruçando-se sobre as opiniões, os costumes e

os dogmas de sua época, sensível à diversidade, ele soube

matricialmente chamar atenção para um caminho que

se abriu nas margens da filosofia, da literatura e da ‘fala-

de-si’ para o outro do externo, do dado a ver: o nosso

interior. a notória frase de Montaigne, “o que sou eu

sou para mim mesmo importa mais do que eu significo

para os outros” (1991, p. 47), ilustra precisamente a

dimensão que aí se inaugurou, não só em Montaigne

ou por ele, mas em seu tempo, desde então.

a ampliação desse processo para aqueles que nem

leitores eram, já que ele moldou imaginários e confor-

mou uma cultura (que, erroneamente, toma-se como

erudita) foi provocada, sob outra via, por Shakespe-

are que, segundo Harold Bloom (1995), nos levou a

reconhecermo-nos como dominados por uma profun-

didade obscura e insondável e, portanto, que nos levou

a entreouvir-nos.

o projeto de dominação, discernimento e ades-

tramento desse insondável não está em Shakespeare;

sejamos justos, pois ele privilegia perspicazmente o

paradoxo, o oxímoro e a fugacidade como poucos, desde

então. Ele soube nos interiorizar possibilitando que, ao

mesmo tempo, nos descompletássemos e transformás-

semos. a colonização do psíquico interiorizado foi, a

despeito disso, uma decorrência da modernidade.

Curiosamente, debates que parecem ser bipolari-

zados, tal qual o estabelecido entre, as múltiplas escolas

materialistas (hoje, significativamente reerguidas com

Page 89: Saude Em Debate_n75

87

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

o respaldo dos diversos organicismos e marcadamente

paramentadas de um efeito de cientificidade espetacu-

larizadora) e as escolas introspeccionistas firmam-se, ao

que tudo indica, em um mesmo ponto arquimediano:

a posse (podendo ou não passar por desenvolvimentos,

regressões, etapas etc.) de uma essência que demarcaria

o espaço mental e o espaço do mental. a própria idéia

de mente ou de aparelho psíquico, na maioria das vezes,

é um corolário dessas perspectivas.

Para se opor a isso, uma boa parcela da filosofia,

sobretudo a anglo-saxã declaradamente influenciada por

Wittgenstein, plasmou uma crítica que denunciava o

‘fantasma na máquina’ (para retomarmos o tropo pro-

posto por gilbert ryle em 1949, em O conceito de mente;

cf. Bouveresse, 1987) a título de patrocinador do mito

da interioridade. Mas sabemos também que esta crítica,

tendo trazido de início uma espécie de pharmakon aos

excessos essencialistas, acabou por solidificar uma certa,

e nefasta, reiteração do pragmatismo no campo teórico

e em muitas práticas, enclausurando-nos curiosamente

em outra forma de essencialismo.

Certamente, há razões para que essa imagem da

mente como espaço internalizado (ou locus privado) seja

tão atraente e, às vezes, até mesmo se imponha como

óbvia, de forma a não haver outra maneira de se falar em

psiquismo, subjetividade e clínica senão sob esta óptica,

ou na tentativa desesperada de se desvencilhar da mesma,

adotar um trajeto diametralmente oposto que resultaria

em uma forma de behaviorismo radical.

o estabelecimento de espaços a serem conquistados,

demarcados e apreendidos em sua totalidade é uma das

importantes decorrências da razão instrumental e da mo-

dernidade. Surgindo o indivíduo como mola-propulsora,

produto e processo dessa cena, conforme dumont (1985),

restava apenas categorizar, demarcar e apreender o espaço

interior hipostasiado sob a forma de mente.

Esse imaginário que promulga a detenção privada e,

em extremo, solipsista, de uma substância-espaço mental

é tão impregnante que nem mesmo uma apreensão da

psicanálise, como já cheguei a sinalizar, conseguiu se des-

vencilhar inteiramente dela. Mesmo a densa afirmação

freudiana, proferida ao menos de três formas explícitas

ao longo de sua obra, e ecoada a cada circunstância

clínica que levasse o mesmo Freud a sempre reconstruir

a posição do psicanalista – “o eu não é senhor em sua

própria morada” (1976, p. 178) – não conseguiu le-

vantar barreiras densas à indexação da psicanálise a essa

ótica esférica acerca de nós mesmos.

Ótica esférica de nós mesmos. o que isso significa?

Essa organização que nos conduz a um pathos dicotô-

mico: dentro-fora, sujeito-objeto etc. Nota-se, pois, que

as esferas à semelhança do que guimarães rosa (1988)

propõe acerca dos espelhos1, são muitas.

Quão comum é, entre psicanalistas, professores e

alunos de psicologia e o senso-comum, presenciarmos

a postulação do inconsciente menos como desconti-

nuidade e mais como conteúdo oculto, menos como

‘impossibilidade de totalização’ e mais como duplo que,

substancialmente, me habita?

Essas localizações sempre comportam efeitos clíni-

cos de grande envergadura. Em companhia de Foucault,

somos levados a compreender que na passagem do sé-

culo 18 para o 19, a medicina deu um salto que trouxe

implicações agudas que ultrapassaram em muito seus

espaços mais visíveis de operação. Instituiu-se então a

clínica médica moderna e foi a partir daí que muitos

outros campos obtiveram seus delineamentos. tornou-se

possível, a partir da medicina, amparada principalmente

pelo método anátomo-patológico, estabelecer um saber

sobre o individual mediado por seu sofrimento, a come-

çar pela instalação do mesmo em um corpo que já não

se contém: fisiologia, embriologia, anatomia e, por fim,

1Conto O espelho (Rosa, 1988, p. 65.)

Page 90: Saude Em Debate_n75

88

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

genética embaralhadas, mas convidando ao saber. Saber

este que não mais se volta para o estudo das doenças

tomadas como realidade em si, mas como específicas a

quem é afetado por elas. a clínica tornou possível uma

episteme do particular.

o passo seguinte, no campo das psicologias, foi

conectar esse aparato ao lugar da mente e engendrar, as-

sim, a clínica do psíquico. dessa forma, a clínica pôde se

sentir inteiramente à vontade com sua própria linhagem

etimológica, fazendo com que o ‘klinos’ implicasse em

um reclinar-se hierarquicamente sob outro que estivesse

abaixo, deitado, recolhido em sua profundidade.

A dobra da esfera

Pois bem, o deslocamento ao qual me referi no

início desse texto tem íntima relação com o afrouxa-

mento, a derrocada desse espaço esférico, desse locus

mental. Na atualidade, começamos a ser atravessados

tanto para o melhor quanto para o pior, por um

outro pathos: não mais cabem tão hegemonicamente

narrativas sobre nós mesmos, bem como sobre os fe-

nômenos contemporâneos, que partam de perspectivas

solipsistas. o solipsista é aquele que nos propõe que

‘meu mundo é meu mundo’, tamanho o compromisso

com essências, apriorismos e categorias universais que

independem da história e da política, ou seja, que não

se inscrevem em e através de processos contestados.

Solipso, ele segue sua rota hedonista apresentando-se

como a medida da vida.

apresento a hipótese de que a crescente reflexão,

ação e interlocução que vêm se dando não mais na Saúde

Mental enquanto espaço bem demarcado, mas na ‘Saúde

Mental coletiva’ como espaço poroso e afeito a uma

constante reterritorialização do psíquico, não seria pos-

sível sem que se instale uma sincronicidade entre esses

processos e as reterritorializações implicadas nos estudos

voltados à cultura, desde um viés antiessencialista.

Mas, muitas vezes, o avesso do interior pode nos con-

duzir a uma superfície ou exterioridade que insiste em se

contrapor àquela mesma interiorização, em uma espécie de

platonismo às avessas. Não é a essas paragens que lançamos

o nosso olhar, na busca de uma possível mitigação quando

não-desconstrução do mito da interioridade. Compreendo

que um psiquismo que se coloca no ‘entre-dois’ e não exa-

tamente em um in ou out seria uma rota viável e oblíqua

aos poderes dos discursos essencialistas.

Porém, sobretudo a partir da performática concilia-

ção de mitos cientificistas (talvez o maior de todos seja

a possibilidade de a ciência, através de uma englobante

parafernália tecnológica, scannear o espaço) com os

atuais modos de produção, circulação e consumo de

bens (rapidamente chamados de globalização), temos

a inundação de explicações e imagens fisicalistas do

funcionamento da vida em todos os seus aspectos e,

em especial, de nosso pathos. a exacerbação do espaço

individual, e não mais opaco ao organismo, colocou o

sujeito (ainda sobremaneira hipostasiado) na pele.

Benilton Bezerra Júnior (2002) argumenta perspi-

cazmente a forma como palavras e processos demarca-

dores de alguns aspectos de nossa condição, tais como

tristeza, desencanto, angústia e percalços da vida, deram

lugar a expressões mais abertas à técnica, à correção e à

adaptação, tais como ‘depressão’, ‘distimia’, ‘síndrome

do pânico’, ‘ansiedade’ e ‘afetivo-bipolar’. Nitidamente,

temos o mercado aberto a todos os ‘especialistas do bem-

estar’ que buscam um patamar de qualidade total, versa-

tilidade e assepsia do psiquismo. Eis aqui um fantasma

que, ao sair da máquina, assombra a Saúde Mental.

o mal-estar ganha, pois, uma visibilidade per-

formática (e as terapêuticas, idem). Nas palavras de

Benilton Bezerra (2002, p. 235):

Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofri-mento era experimentado como conflito interior ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as

Page 91: Saude Em Debate_n75

89

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro. Na cultura das sensações e do espetáculo, o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental falha, muito mais que em uma interiori-dade enigmática que causa estranheza. Os quadros sintomáticos prevalentes parecem atestar isso: fenô-menos aditivos (incapacidade de restringir ou adiar a obtenção de satisfação, que se torna compulsiva pela via das drogas ilícitas, dos medicamentos, do consumo, da ginástica e do sexo), transtornos vinculados à ima-gem ou á experiência do corpo (bulimias, anorexias, ataques de pânico), depressões menores e distimias (ausência de desejo, motivação, empenho).

SAúDE MENTAL COLETIVA E CULTURA:

ENTRANDO E SAINDO DA SALA-AO-LADO

Uma das características mais marcantes do campo

da Saúde Mental coletiva, bem como de todas as possi-

bilidades de afetação que ali se colocam não mais sob a

primazia do mentalismo, mas em suas clivagens, é que

as práticas não seguem protocolos, estruturas, mapas

rígidos e previamente estabelecidos. Em relação ao mo-

delo de clínica calcado no mentalismo essencialista, diria

que no modo psicossocial os conceitos, ações, perguntas

e dúvidas estão em estado de ‘descoleção’, isto é, estão

desterritorializados quando cotejados com a situação

anterior. descolecionar leva a ‘deslocar’, ‘decolar’, ‘des-

colar’ e, muitas vezes, a ‘des-escolarizar’.

Na Saúde Mental coletiva, portanto, presenciamos

muitas práticas à espera de uma conceituação, bem como

de novos modos de conceituar e pensar. Conceituação,

aqui, não implica em um aparato teórico que conduza

à representação do real em suas minúcias para melhor

compreendê-lo e, então, submetê-lo a um poder de

dominação. Comporta, sim, a possibilidade constante

de tornar a novidade algo transmissível.

Compreendo que os profissionais atuantes na área

da Saúde Mental possam obter uma interessante dobra

em seus tecnicismos realizando visitas à sala-ao-lado.

Um empolgante espaço de desconstrução de categorias

e perspectivas essencialistas vem sendo empreendido

nas problematizações acerca da cultura. dentre diversas

possibilidades que participam de um amplo quadro (que

poderíamos denominar pós-crítico ou pós-estruturalista

a título de uma nomeação um tanto quanto precária),

encontramos a argumentação de Nestor garcía Canclini

em seu livro culturas híbridas: estratégias para entrar e

sair da modernidade.

ali, Canclini empreende uma lúcida crítica em rela-

ção ao tratamento dicotômico e essencialista reservado,

classicamente, à cultura (suas produções, seus processos,

suas lógicas e demarcações), mas, notemos bem: não só

à cultura. recorrendo a dois conceitos mutuamente im-

plicados – os conceitos de ‘hibridação’ e de ‘descoleção’

– Canclini procura argumentar que não mais podemos

compreender e lidar com a cultura a partir de dualismos

(por exemplo, cultura erudita/cultura popular, cultura

massiva/cultura popular, hegemônico/subalterno,

tradicional/moderno etc.) e, muito menos, a partir da

suposta segurança dos lugares em que ela é produzida

ou, a princípio, contida. trata-se, por conseguinte, de

se desomogeneizar a cultura.

Nesse sentido, Canclini apresenta uma forte argu-

mentação que questiona o estatuto de locais destinados

à cultura e à preservação da história ou do patrimônio

cultural de um povo, uma etnia ou grupo, tal como se

dá usualmente com os museus e os monumentos.

ao falar em hibridação, isto é, a constante articu-

lação entre elementos supostamente puros e discretos,

promovendo outros elementos, estruturas, processos

que apagam as certezas em relação às fronteiras de-

marcadoras, conforme canclini (2006, pxix), somos

conduzidos a rever os lugares das coisas e dos processos.

Segundo Canclini:

Page 92: Saude Em Debate_n75

90

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

O desenvolvimento moderno tentou distribuir os objetos e os signos em lugares específicos: as mercadorias de uso atual nas lojas, os objetos do passado em museus de his-tória, os que pretendem valer por seu sentido estético em museus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitidas pelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas, e que indicam como usa-las, circulam, pelas escolas e pelos meios massivos de comunicações. Uma classificação rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, sustém a organização sistemática dos espaços sociais em que devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vida dos consumidores e prescreve comportamentos e modos de percepção adequados a cada situação2. (2006, p. 300).

a descoleção é uma decorrência da hibridação e,

enquanto tal, implica em repensar os modos e usos dos

poderes:

A partir do que viemos analisando, uma questão se torna fundamental: a reorganização cultural do poder. Trata-se de analisar quais são as conseqüências políti-cas ao passar de uma concepção vertical e bipolar para outra descentralizada, multideterminada, das relações sociopolítica. (canclini, 2006, p. 345).

talvez tivesse valia a amplificação de uma descole-

ção na Saúde Mental. Certamente, muitos daqueles que

por aí transitam e produzem seus modos de subjetivação

já o sabem ou já o fazem. Entendo que seja aí o lugar

em que a psicanálise ainda pode ter sua chance, não

bem como técnica de revelação do incógnito ou arte

interpretativa que busque esclarecer, mas como ação que

instaura descontinuidades e, portanto, devires. tal como

convidam as palavras de Benilton Bezerra:

O que determinará o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será sua capacidade de atualizar aquilo que está na origem da sua clínica: a sustentação de um campo de prática que põe qualquer tipo de experiência humana sob o crivo da interrogação. (2002, p. 238).

R E F E R Ê N C I A S

amaRantE, P. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. rio de Janeiro: fiocRuz, 2003.

bEzERRa JúnioR, B. o ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica. In: Plastino, C.a. (org.). Transgressões. rio de Janeiro: Contra-capa, 2002. p. 229-238.

biRman, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005.

bloom, H. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. São Paulo: objetiva, 1995.

bouvEREssE, J. Le mythe de l’intériorité: expérience, signification et langue prive chez Wittgenstein. Paris: Minuit, 1987.

canclini, N.g. culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª ed. São Paulo: EdusP, 2006.

costa-Rosa, a. o modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: amaRantE, P. (org.). Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. rio de Janeiro: fiocRuz, 2003. p. 141-168.

costa-Rosa, a.; luzio, C.a.; yasui, S. atenção psicosso-cial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: amaRantE, P. (org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. rio de Janeiro: Nau, 2003. p. 13-44.

dEscaRtEs, r. Meditações. São Paulo: abril Cultural, 1979.

dumont, l. O individualismo: uma perspectiva antro-pológica da ideologia moderna. rio de Janeiro: rocco, 1985.

2Vale ressaltar que o conceito de hibridação se torna mais potente à medida em que a hibridação não implica em junção totalizante, bem como na proporção em que é um processo que implica em perdas e ganhos. ainda segundo Canclini, “é necessário registrar aquilo que, nos entrecruzamentos, permanece diferente” (2006).

Page 93: Saude Em Debate_n75

91

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008

RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?

fREud, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise [1917]. In: Edição Standard das obras psicológicas com-pletas de Sigmund Freud. rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. XVII.

goldbERg, J. clínica da psicose. rio de Janeiro: te-Corá, 1992.

guattaRi, F.; RolniK, S. Cultura: um conceito rea-cionário? In: guattaRi, F.; RolniK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 15-24.

la boétiE, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1999.

lobosquE, a.M. Experiências da loucura. rio de Janeiro: garamond, 2001.

montaignE, M. Ensaios. São Paulo: abril Cultural, 1991.

Pitta, a. (org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1994.

Rosa, J.g. Primeiras estórias. rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

RylE, g. La notion d’esprit: pour une critique des con-cepts mentaux. Paris: Payot, 1949.

silva, t.t. (org.). O que é, afinal, estudos culturais? 3 ed. Belo Horizonte: autêntica, 2004.

recebido: abr./2008

aprovado: jun./2008

Page 94: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE92

a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a

Companhia Experimental Mu...dançaThe socio-cultural side of Psychiatric Reform and the companhia

Experimental Mu...dança

RESUMO Este artigo trata dos percursos da construção coletiva do espetáculo

de dança-teatro das loucuras Da História, pela companhia Experimental Mu...

Dança, no município de Diadema entre 1999 e 2001, e seus desdobramentos

até 2005. A companhia Experimental Mu...Dança é um grupo de dança-teatro

formado em 1999 por pessoas com grave sofrimento psíquico e militantes do

Movimento da Luta Antimanicomial. Esse espetáculo tem 80 minutos de duração

divididos em 16 coreografias criadas coletivamente, a partir de dois eixos definidos

pelos participantes: como o grupo vivenciou o processo de enlouquecimento e o

conceito de loucura. A partir da interface arte-loucura, essas experiências são

definidas como criação de um espaço de participação política.

PALAVRAS-CHAVE: Transtorno mental; Aceitação social; Política social.

ABSTRACT This paper presents the construction trajectory of the dance-theater

show das loucuras Da História created by the Experimental company Mu...

Dança, in the city of Diadema, São Paulo, Brazil, between 1999 and 2001, as

well as its development until 2005. This is a dancing-theater company created in

1999 by people with psychiatric disorders and militants of the antimanicomial

movement. The referred show has 80 minutes and presents 16 choreographies

that have been developed by the integrants of the group, based on two subjects:

how the group experienced the process of becoming “crazy” and the concept of

craziness. Supported by the art/craziness interface, these experiences are defined

as the creation of a space with political participation.

KEYWORDS: Mental disorder; Social desirability; Public policy.

Myrna Coelho 1

1 Psicóloga; coreógrafa; mestre em

Estética e História da arte pela

Universidade de São Paulo (USP);

professora do curso de Psicologia da

Universidade Nove de Julho (uninovE);

[email protected]

Page 95: Saude Em Debate_n75

93

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

I N T R O D U ç Ã O

o presente trabalho tem por objetivo discutir um

dos aspectos principais da reforma Psiquiátrica brasi-

leira: a dimensão sociocultural.

Segundo amarante (2007, p. 73), a dimensão

‘sociocultural’ expressa o objetivo maior da reforma

Psiquiátrica, ou seja, a transformação do ‘lugar social’

da loucura, pois o imaginário social – decorrente da ide-

ologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona a

loucura à incapacidade do sujeito em estabelecer relações

sociais e simbólicas. dessa forma, o aspecto estratégico

desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações que

visam transformar a concepção de loucura no imaginário

social, transformando, assim, as relações estabelecidas

entre sociedade e loucura.

de acordo com o ideal da reforma Psiquiátrica,

as transformações devem transcender à simples reor-

ganização do modelo assistencial e alcançar as práticas

e concepções sociais, intervindo não apenas no fun-

cionamento dos serviços e na formação profissional

dos técnicos envolvidos, mas no profundo e complexo

fenômeno da ‘representação social da loucura’. devemos

pensar o campo da Saúde Mental não como um mo-

delo, mas como um processo. Para tanto, a dimensão

sociocultural é fundamental.

Nesse processo, novas práticas surgem constante-

mente, em especial aquelas que fazem uso das linguagens

artísticas. Com o advento e a proliferação, especialmente

nas duas últimas décadas, de serviços substitutivos ao

manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a

ser amplamente utilizadas e, com isso, estudadas par-

ticularmente no campo da Saúde Mental. Inclusive, a

legislação brasileira que regulamenta o funcionamento

dos Centros de atendimento Psicossocial (caPs) insere

a prática de “oficinas terapêuticas” como “uma das

principais formas de tratamento oferecido nos caPs”

(bRasil, 2004).

ressalta-se que nessas manifestações artísticas, os

dispositivos materiais e institucionais que as atraves-

sam, isto é, o ambiente onde o indivíduo manifesta sua

criação, bem como aqueles de que dispõe para efetuar

sua criação, as referências de sua história de vida, de sua

própria subjetividade e da relação de si com a instituição

à qual está subordinado, marcará as possibilidades de

sua obra.

Mas, infelizmente, o fato de inserirmos práticas

artísticas em Saúde Mental não garante que elas sejam

antimanicomiais e, portanto, subordinadas teorica-

mente ao paradigma da reforma Psiquiátrica, o que

garantiria sua inserção real na dimensão sociocultural.

Nesse processo, muitas ações acabam por afirmar o

pensamento manicomial, reforçando preconceitos e

prestando um não-serviço à população. Por isso torna-se

tão necessário que tais práticas contemporâneas possam

ser discutidas.

A COMPANHIA EXPERIMENTAL MU...DAN-

çA E A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA

REFORMA PSIQUIÁTRICA

Mesmo sendo Política Ministerial, as oficinas artís-

ticas dentro de um caPs não são unanimidade teórica.

os saberes do campo da Saúde Mental não são únicos, há

muitas divergências que se colocam especialmente entre

dois paradigmas. de um lado, o manicomial baseia-se,

como nos adverte Foucault (2000), em uma invenção da

loucura como doença mental que pede um tratamento

fundamentado na moralidade e na medicamentação,

propondo, num processo de banalização do sofrimento

e da natureza humana, que qualquer investimento de

Page 96: Saude Em Debate_n75

94

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

cuidado em Saúde Mental seja um investimento voltado

para a ‘doença’, nunca para os sujeitos da experiência.

Já o paradigma antimanicomial, desenvolve várias ações

que buscam transformar o imaginário social em relação

à loucura, à doença mental, à anormalidade e que se

referem a um conjunto de práticas sociais que possam

construir solidariedade, a inclusão dos sujeitos em des-

vantagem social, a diferença e a diversidade (amaRantE,

1999, p. 51).

temos o relato de uma experiência paradigmática

da dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica,

possibilitada pelo trabalho iniciado em 1999 no Centro

de atenção Psicossocial (caPsi) de diadema (município

da periferia de São Paulo), época em que trabalhávamos

com arte na tentativa de encontrar novas formas de con-

vivência respeitosa e digna com as pessoas que buscavam

auxílio em Saúde Mental, coisa que o pensamento mani-

comial não leva em conta. Como estagiária de psicologia,

uma das atividades propostas pela ‘comissão de ensino’

da instituição a serem cumpridas era a realização de

um projeto que unisse a experiência de coordenação de

grupo com um desejo pessoal do estagiário. Por conta

de minha história pessoal como bailarina, eu e minha

supervisora de estágio, Patrícia Villas-Boas Valero, de-

cidimos montar um ‘grupo de dança’1.

a princípio, esse grupo se preocupava em recontar

as histórias culturais familiares dos participantes através

das danças populares brasileiras, pois hipotetizávamos que

um dos causadores do enlouquecimento é a vivência da

aculturação. Segundo redko (1998), tanto a incidência

quanto a evolução de graves sofrimentos psíquicos estão

ligados aos conflitos psíquicos inescapáveis ligados à

questão da imigração, à vivência pessoal ou familiar, ao

distanciamento de elementos de sua cultura tradicional.

Sendo a população de diadema composta em sua maioria

por migrantes, especialmente naturais de Minas gerais e

da região nordestina, tornou-se interessante a criação de

um projeto que resgatasse, a partir das danças populares,

histórias culturais das pessoas que estavam no caPsi, das

origens de suas famílias, de antigos costumes e rituais.

Iniciamos o projeto como grupo aberto e, com o

passar do tempo, pudemos perceber que nossa proposta

de trabalho não fazia sentido: o grupo queria dançar seu

encontro com a loucura, suas histórias de vida e enlouque-

cimento. a partir daí, mudamos os objetivos do grupo.

Num processo coletivo de discussão e decisão, inventamos

a companhia Experimental Mu...Dança e construímos seu

primeiro espetáculo, das loucuras Da História.

decidimos, em primeiro lugar, coreografar coleti-

vamente um espetáculo que problematizasse as histórias

de enlouquecimento dos participantes com o objetivo

de apresentá-lo o máximo possível para militarmos na

reinserção social da loucura, ou seja, travar debates

com as platéias sobre a loucura e o Movimento da luta

antimanicomial, divulgando-o e contribuindo para

modificar o lugar social do louco. as apresentações eram,

portanto, um norteador fundamental do trabalho sem o

qual o mesmo não se justificaria. a construção coletiva

surgia em nosso trabalho a partir de Hannah arendt

(2003) e sua distinção entre trabalho e labor, distinção

esta gerada por uma sociedade da produção. a idéia do

trabalho está comumente ligada ao suor e à supressão,

mas arendt chama nossa atenção para o quanto estes

aspectos relacionam-se com a idéia de ‘labor’, conceito

que expressa ciclos repetitivos, de longa duração. Já no

‘trabalho’, transcendemos nosso próprio universo na

medida em que, necessariamente, nos identificamos com

nossa produção criativa, diferindo-a da natureza. Isso faz

do ‘trabalho’ uma atividade tipicamente humana, que

nos possibilita construir histórias. É a diferença entre

fabricar bens duráveis e não duráveis, produzir fruição

de beleza e produzir escravidão.

1Esta experiência está descrita e analisada em nossa dissertação de mestrado das loucuras Da História: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social, apre-sentada ao programa de pós-graduação Iterunidades em Estética e História da arte da USP, 2007.

Page 97: Saude Em Debate_n75

95

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

o segundo ponto fundamental do trabalho da

companhia Experimental Mu...Dança era que, além

de recontar as próprias histórias de enlouquecimento,

pudéssemos questionar o conceito de ‘loucura’ estabe-

lecido em diferentes culturas e épocas históricas. Para

tanto, montamos um horário de ‘grupo de estudos’ que

ocorriam por meio de visitas à biblioteca e à videoteca

municipais e discussões acerca de livros como História

da loucura, de Michel Foucault e Dom Quixote de La

Mancha, de Miguel de Cervantes. Esse segundo ponto

viabilizava a construção de uma visão crítica a respeito da

própria loucura, e foi proposto pelos bailarinos do grupo

no momento em que deixaram de olhar apenas para o

próprio sofrimento e despertaram para os fenômenos

que contribuíram com a construção social da loucura.

Um terceiro ponto do trabalho foi a definição de

que, como militantes e aspirantes da divulgação da

nossa causa, deveríamos ocupar a cidade, “levando o

delírio à praça pública” (PElbaRt, 1990, p. 134), ou

seja, não deveríamos ensaiar no ambulatório, mas em

espaços dedicados a atividades culturais da cidade, onde

se encontrava nosso público-alvo. assim, ensaiamos no

Centro Cultural okinawa em dois momentos: quando

funcionava como um centro cultural, e quando abrigou

a guarda municipal. Ensaiamos, também, no Centro

Poliesportivo da cidade, no teatro Municipal (Centro

Cultural Clara Nunes) e na sala de dança do Centro

Cultural Serraria.

Nosso último ponto fundamental do trabalho foi

a definição da técnica artística utilizada: a dança-teatro,

em especial sua expressão contemporânea desenvolvida

pela bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch.

as obras de Bausch não apenas utilizam-se da re-

petição como método ou artifício coreográfico, mas a

incorporam como um tema a ser criticamente retalhado

e decomposto, até gerar o inesperado e, supostamente,

o oposto: a diferença, a transformação. a dança-teatro

de Bausch não rejeita nem serve à força disciplinária da

repetição, mas a usa consistentemente para subverter

seu próprio processo de dominação corporal, no aspecto

estético, cognitivo e social, para dançarinos e para o

público. através da repetição, sua companhia, o Wu-

ppertal dança-teatro, transforma estáveis polaridades.

Simultaneamente natural e linguístico, experiencial e

automático, pessoal e social, o corpo ‘reconta’ e ‘redança’

sua própria história de fragmentação, ausência e domi-

nação, repetindo e transformando constantemente, ou

seja, ‘redefinindo’ a dança (fERnandEs, 2000).

Vale lembrar que durante todo o processo de cons-

trução de Pina Bausch, as preocupações coreográficas

centram-se na valorização e reapropriação da gestua-

lidade individual. assim, na companhia Experimental

Mu...Dança, construímos pontes destas preocupações

coreográficas com o grupo, ampliando as possibilidades

criativas (castRo, 1992).

Em nossa Companhia entendemos que na contem-

poraneidade estamos muito distantes de nosso corpo e, no

caso de pessoas que tiveram histórias de confinamento em

instituições psiquiátricas, a relação com o corpo fica ainda

mais prejudicada. o corpo é visto como meio para a ob-

tenção de lucro (WEil, 1990), tornando-se visível apenas

no binômio trabalho-consumo, distante do que Keleman

(2001) chama de experiência da corporificação.

Partindo dos pilares apresentados, as pesquisas do

grupo levaram a construção do espetáculo por três eixos

norteadores: histórias/experiências de enlouquecimento

dos bailarinos, histórias de tratamento dos bailarinos,

estudo sobre a história da loucura e sua inserção em

algumas culturas. assim, o espetáculo das loucuras Da

História conta com 16 coreografias distribuídas em 80

minutos, criadas a partir das biografias dos próprios

bailarinos e pesquisadas a partir de três temas escolhidos

pelo grupo: o que é loucura? No decorrer da história

da civilização, ela recebe o mesmo significado? Esse(s)

significado(s) existe(m) independentemente da cultura

e da época em que o fenômeno está inserido?

Page 98: Saude Em Debate_n75

96

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

Em nossa dissertação, concluímos que a companhia

Experimental Mu...Dança possibilitou aos bailarinos

‘desgrudarem-se’ das experiências de enlouquecimento

e deixá-las no passado, saindo do lugar de ‘troca-zero’ da

loucura para a descoberta de outros lugares do mundo.

a metodologia de construção desse espetáculo tornou-se

visível. a partir da análise do espetáculo apontamos e

refletimos sobre as mudanças despertadas nos bailarinos.

a possibilidade de sair de um lugar de ‘troca-zero’ para

um lugar de criação abriu caminho para que outras

potencialidades fossem exploradas por eles. Sair do

papel social do louco é abrir-se para a possibilidade de

ocupar múltiplos papéis sociais. a apropriação de uma

nova linguagem, a vivência de uma construção grupal,

a ampliação da percepção sobre si e dos outros e a luta

pela mudança do imaginário social a respeito da loucura

trouxeram ao grupo uma vivência do trabalho como

construção de linguagem.

a transformação do ‘sintoma’ do sujeito em uma

característica de estilo da personagem que ele repre-

sentaria apresentou-se durante todo o trabalho como

um método bastante significativo. Uma saída para a

construção da tarefa e das personagens, mas também

uma maneira diferenciada de trabalhar com aquelas

pessoas. Percebemos que ao transformar o ‘sintoma’ em

‘estilo’ fornecíamos um novo sentido do ‘sintoma’ para

o sujeito, que poderia, a partir de então, entendê-lo

como algo que fosse além dele mesmo. Com o passar

do tempo, pesquisando e estudando as personagens, o

sintoma ‘desgrudava’ minimamente dos bailarinos, que

assumiam novas possibilidades de identidade produzin-

do algo além da loucura: a arte.

Com a valorização da formação do vínculo como

intermediário da tarefa, todos puderam perceber que

para que o objetivo do grupo fosse alcançado com êxito

era necessário que todos se empenhassem e expressas-

sem sincera opiniões. Esse fato sustenta o paradigma

antimanicomial na medida em que essa tarefa, tal como

foi proposta e construída, tornou-se um facilitador

para que o grupo pudesse despir-se do manicômio

mental (PElbaRt, 1990). apesar de todos nós sermos

militantes do Movimento da luta antimanicomial e,

ainda, apesar dos caPs serem instituições baseadas na

lógica da reforma Psiquiátrica, é comum percebermos

que as relações estabelecidas nessas instituições ainda

são baseadas em relações de saber-poder, ou seja, os

profissionais ‘psi’ têm uma posição privilegiada sobre os

sujeitos acometidos de sofrimento psíquico. Enquanto

os profissionais são bombardeados desde o início de sua

formação com uma verdade paradigmática que institui

as relações de certo e errado, profissional e paciente,

doente e são, louco e arrazoado, os pacientes, em suas

histórias de tratamento (ou tentativa de tratamento)

são bombardeados com informações a respeito de certa

doença incurável, da dependência do saber profissional

e mesmo da subordinação a ele. Mudar essa relação é

mudar a si mesmo.

assim como a companhia Experimental Mu...

Dança, muitos outros projetos inseridos na dimensão

sociocultural da reforma se tornaram paradigmáticos.

Portanto, torna-se necessário que pesquisas sejam

feitas de modo a sistematizar tais experiências para

que seja possível compreender os procedimentos me-

todológicos comuns que garantiriam uma verdadeira

inserção na dimensão sociocultural e a facilidade de

novas experiências.

CONSIDERAçÕES FINAIS

No momento em que a Secretaria Nacional de

Identidade e diversidade Cultural criou uma política

específica para financiar projetos culturais no campo

da Saúde Mental, é veemente que esse financiamento

seja direcionado pela qualidade dos trabalhos realizados

Page 99: Saude Em Debate_n75

97

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

e efetivo apoio às pessoas com sofrimento psíquico,

promovendo uma política de cura que garanta a disse-

minação do Movimento da luta antimanicomial na

cultura.

Sabemos que no atual estágio do capitalismo, no

qual técnica e razão se sobrepõem à subjetividade e ao

sentimento, as artes podem transformar essa situação em

criação para a autodeterminação. Nesse contexto a arte

se mostra um meio de conhecimento, instrumentos de

aprendizado e, por ser uma ‘ação’ coletiva, possibilita o

encontro e a atitude.

ao falar em ‘ação’, somos remetidos ao conceito

proposto por arendt (2003). Para a autora, a ‘ação’ é a

única atividade exercida diretamente entre os homens

sem a mediação das coisas ou da matéria. Para que ela

ocorra, é necessário que exista um ‘espaço público’, ou

seja, um espaço correspondente à condição humana da

pluralidade. Um espaço em que ‘iniciativa’ e ‘palavra’

circulem, conferindo a todos o mesmo direito de expres-

sar suas diferenças na construção coletiva. a ‘ação’ é a

condição para a vida política, a condição necessária para

que os sujeitos sejam protagonistas de seus papéis como

zoon politikon2 na construção coletiva de transformações

das realidades humanas. a ‘ação’ se consolida, então,

como a condição humana fundamental.

Se pensarmos que a construção do ‘espaço público’

é justamente proporcionada por um espaço horizontal

e criativo onde as subjetividades circulam, podemos

afirmar que a experiência de criação artística coletiva

pode ser uma tentativa de construção de ‘espaço pú-

blico’, ou seja, de experimentação da ‘ação’, a principal

característica dos homens.

a criação artística coletiva proporciona aos envol-

vidos a experiência da ‘ação’. todos sabem que podem

tomar a ‘iniciativa’ da ‘palavra’ para colocarem suas

idéias e opiniões, pois o trabalho realizado é de todos

e diz respeito aos processos de subjetivação e interação

de todo o grupo, ao passo que cria uma concretude

para esse processo, tornado visível justamente no fazer

artístico, na arte.

assim, hipotetiza-se, a partir da experiência da

companhia Experimental Mu...Dança que, além da qua-

lidade técnica dos trabalhos realizados na dimensão so-

ciocultural da reforma, o que garante a essas experiências

seu verdadeiro envolvimento pelos ideais da reforma

Psiquiátrica é, justamente, a existência da ‘ação’.

R E F E R Ê N C I A S

amaRantE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. rio de Janeiro: fiocRuz, 2007.

______. (org.). Franco Basaglia: escritos selecionados em Saúde Mental e reforma Psiquiátrica. rio de Janeiro: garamound Universitária, 2005.

______. (org.). Archivos de Saúde Mental e atenção psicossocial. rio de Janeiro: Nau, 2003.

______. (org.). Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. rio de Janeiro: fiocRuz, 2000. Coleção loucura e Civilização.

______. Manicômio e loucura no final do século e do milênio. In: fERnandEs, M.I.a.; scaRcElli, I.r.; costa, E.S. (org.). Fim de século: ainda manicômios? São Paulo: iPusP, 1999. p. 47-53.

2animal Político

Page 100: Saude Em Debate_n75

98

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

amaRantE, P.; doRnEllEs, P. loucos pela diversidade: construindo a política oficial do Ministério da Cultura [roda de conversa]. In: Encontro Nacional “20 anos de luta por uma sociedade sem manicômios”. realização: Conselho Federal de Psicologia, Prefeitura Municipal de Bauru, UNESP, Conselho regional de Psicologia de São Paulo– 6ª. região. Bauru, 6 à 9 de dezembro de 2007.

aREndt, H. A condição humana. rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

bRasil. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde, departamento de ações Programáticas Estra-tégicas. Saúde mental no SUS: os Centros de atenção Psicossocial. Brasília, dF: Ministério da Saúde, 2004.

castRo, E.d. A apropriação de si mesmo através da dança. dissertação (Mestrado em Comunicações e artes) – Escola de Comunicação e artes da USP, São Paulo, 1992.

coElho, M. das loucuras Da História: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social. dissertação (Mestrado interunidades em Estética e História da arte) – Escola de Comunicação e artes da USP, São Paulo, 2007.

fERnandEs, C. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: hucitEc, 2000.

foucault, M. História da loucura na idade clássica. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

KElEman, S. Mito e corpo: uma conversa com Joseph Campbell. São Paulo: Summus, 2001.

PElbaRt, P.P. o manicômio mental: a outra face da clausura. In: lancEtti, a. (org.) SaúdeLoucura 2. São Paulo: hucitEc, 1990. p. 131-138.

REdKo, C. Cultura, esquizofrenia e experiência. In: shi-RaKaWa, I.; chavEs, a.C.; maRi, J.J. (org.). O desafio da esquizofrenia. São Paulo: lemos Editorial, 1998.

WEil, S. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. São Paulo: Paz e terra, 1990.

recebido: abr./2008

aprovado: nov./2008

Page 101: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 99

a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial

em sua natureza substitutivaThe territorial action of the centro de Atenção Psicossocial as indicator

of its substitutive nature

RESUMO Tomou-se como campo de investigação um centro de Atenção

Psicossocial (cAPS), situado no município do Rio de Janeiro, para verificar como

se organiza o seu cotidiano, investigando as possibilidades de suas ações tanto no

seu interior quanto em relação ao território. Foram eleitas como categorias de

análise: a responsabilidade pela demanda, a porta aberta, a atenção às situações

de crise e o trabalho territorial, por estas características se articularem em um

serviço substitutivo. Utilizou-se de observação participante e de entrevistas semi-

estruturadas com profissionais do serviço. A investigação ressalta a importância

de chegar ao cotidiano deste dispositivo um entendimento das transformações

que pode operar.

PALAVRAS-CHAVE: Território; Serviço substitutivo; cAPS; Reforma

Psiquiátrica.

ABSTRACT The Psychosocial Attention center (caps) in the state of Rio de

Janeiro, Brazil, was taken as a field of investigation in order to verify how its

everyday praxis is organized, investigating the possibilities of its actions, either

inside the institution or in relation to the territory. It was elected as analysis

category the responsibility towards demand, the open door, the attention to crises

situations and the territorial work, for these characteristics are articulated to a

substitutive service. A participant observation was used as well as semi-structured

interviews with some professionals who work in the cAPS. The investigation

emphasizes the importance of making the everyday work reach an understanding

of the transformations it can operate.

KEYWORDS: Territory; Substitutive services; cAPS; Psychiatric Reform.

renata Mart ins Quintas 1

Paulo amarante 2

1 Psicóloga; mestre em Saúde Pública

pela Escola Nacional de Saúde Pública

da Fundação oswaldo Cruz (EnsP/

FiocRuz).

[email protected]

2 doutor em Saúde Pública, pesquisador

titular da EnsP /FiocRuz.

[email protected]

Page 102: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

100 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

I N T R O D U ç Ã O

a reforma Psiquiátrica, no Brasil, constitui-se de

processos com características locais, envolvendo lutas

sociais pela transformação do modo de concepção da

loucura e como lidar com o dito louco. luta-se tam-

bém, para transformar o modo como a Psiquiatria, em

nome da razão, permite-se categorizar, trancar e tratar

a loucura, em relação à articulação e invenção de possi-

bilidades de inserção social para as pessoas que sofrem

com transtornos mentais. além disso, compreende,

ainda, um processo permanente de utilização de jogos

de forças que engendram saberes e poderes, e configuram

a sociedade em que se vive.

o referencial teórico fornecido pela Psiquiatria de-

mocrática Italiana e pela experiência santista de Saúde

Mental introduz serviços que atuam como substitutivos

ao modelo manicomial, por promoverem rupturas em

relação ao modo de funcionamento centrado do hos-

pital psiquiátrico. Enquanto conjunto de referências

sociais, de códigos de funcionamento intrapessoais

que conformam um imaginário e uma realidade social

que inclui ou exclui o diferente, o território é palco de

exercício para a transformação cultural em relação ao

fenômeno da loucura.

No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS),

o Centro de atenção Psicossocial (CaPs) surge como

promessa de composição de uma assistência mais

articulada ao território (Portaria 336 de 19/02/02),

virtualmente capaz de conhecê-lo em suas peculia-

ridades, de lidar com as necessidades de seus usu-

ários, com as demandas que se produzem, enfim,

de compor com as forças do território em favor da

autonomia, a fim de que se encontrem soluções ao

sofrimento psíquico.

a capacidade do CaPs em substituir o manicômio

deve estar articulada ao modo com que a sociedade lida

com a diferença e como representa a loucura na era da

supremacia da razão. trata-se, portanto, da quantidade

de forças que o CaPs pode mobilizar, e que o torna capaz

de operar uma revolução na forma como que se lida com

a loucura na atualidade. Portanto cabe aqui a pergunta:

do que se trata ao se constituir um CaPs? E, uma vez que

é no território onde essas forças configuram o imaginário

e concretizam relações, torna-se estratégico indagar a

cerca do que pode um CaPs em relação ao território.

o objetivo da pesquisa foi caracterizar o funcio-

namento do CaPs no que diz respeito às novas práticas

assistenciais, verificando sua capacidade de articular

ou não às características do território, como indicativo

de sua capacidade de promover uma transformação na

relação da sociedade com a loucura. Não se propôs uma

avaliação do CaPs, mas contribuir com a compreensão

da noção de serviço substitutivo, a partir do conjunto

de ações que sua atuação territorial possibilita.

DESENHO METODOLÓGICO

trabalhou-se com a abordagem qualitativa, que de

acordo com Minayo (1993, p.10), possibilita “incorpo-

rar a questão do significado e da intencionalidade”, per-

mitindo evidenciar importantes questões que se fazem

presentes na construção cotidiana do CaPs e definem sua

tomada de posição em relação ao território.

após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesqui-

sa, foi obtida permissão para realizá-la tanto no serviço

de Saúde Mental pesquisado quanto na Coordenação

da Área Programática.

Para caracterizar o funcionamento do CaPs em

relação às práticas assistenciais, foi necessária a inserção

em campo, tendo como instrumentos de coleta de dados

Page 103: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

101QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

a observação participante e as entrevistas realizadas com

os profissionais do serviço.

a estada no serviço ococrreu por um período de

quatro meses. Neste intervalo de tempo, buscou-se

adentrar gradativamente nos espaços de atuação dos

profissionais, na medida em que havia consentimento.

a observação foi guiada por um roteiro que con-

templava aspectos como: a estrutura física do serviço;

seu funcionamento rotineiro; a dinâmica de equipe; as

relações construídas no interior do CaPs, com demais

atores e instituições do território.

Procurou-se, também, desenvolver o hábito de

estar no CaPs de diversas maneiras, isto é, ao expe-

rimentar o lugar de alguém na sala de espera, nas

discussões da equipe de profissionais no espaço de su-

pervisão, ao observar as interações entre os profissionais

e destes com a clientela, nas oficinas, assembléias, e em

atividades e reuniões fora do CaPs. No entanto, foi

possível perceber que havia um limite para a presença

em alguns espaços.

as entrevistas fizeram-se necessárias tanto para

abrir o campo de explanação sobre situações não

acompanhadas como para aprofundar o nível de in-

formações e opiniões quanto à construção do serviço

(Minayo, 1993).

as anotações feitas no diário de campo foram

separadas por categorias, as quais foram entrecruzadas,

promovendo uma sistematização que permitiu a formu-

lação de alguns temas principais, que, no final, compu-

seram a análise dos resultados, além do levantamento

de hipóteses esclarecidas nas entrevistas.

optou-se por entrevistas abertas, por possibilitarem

aos entrevistados discorrer livremente sobre os temas

de interesse para a pesquisa, favorecendo a elaboração

de um discurso em que pudessem expressar suas idéias,

crenças, maneiras de atuar e de conceber o CaPs. as

entrevistas foram realizadas após algum tempo de par-

ticipação no dia-a-dia do CaPs.

a partir dos dados obtidos na observação, foram

elaboradas perguntas que permitiram colher dos entre-

vistados suas opiniões acerca dos temas pretendidos.

Para isso, utilizaram-se perguntas disparadoras, no

intuito de deixar que os entrevistados discursassem

livremente sobre os temas de interesse, expondo, por

meio das associações de idéias, os sentidos que dão às

suas práticas no CaPs.

Foram realizadas seis entrevistas, no período de

agosto a novembro de 2005, concedidas no local de

trabalho dos entrevistados. os entrevistados, pela re-

solução 196/96, concederam livre e esclarecidamente

seus depoimentos, conforme o termo de consentimento

livre esclarecido.

as categorias de análise foram retiradas de Nicácio

(2003), que entende a proposta de um serviço substi-

tutivo como “serviço no/do território”, quando nele se

articulam características, como a responsabilidade pela

demanda, a porta aberta, a atenção às situações de crise

e o trabalho territorial, que levam a uma relação com

as pessoas que nele vivem, quais sejam. Estes princípios

expressam e compõem a transformação da prática tera-

pêutica e efetivam a substituição da lógica manicomial,

ao constituírem serviços fortes.

Para rotelli (2001), o serviço torna-se ‘forte’,

territorial ou substitutivo, ao reconhecer o usuário

em sua complexidade, mas também considerando sua

singularidade e sua diversidade, elaborando respostas

dinâmicas e individualizadas que tentam preservar e

ampliar a riqueza da vida das pessoas.

A PORTA ABERTA

a porta aberta delineia novas bases na relação com

o usuário, em que a acessibilidade e a permeabilidade

do uso do serviço, por parte de qualquer pessoa, tra-

Page 104: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

102 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

duzem uma flexibilidade em sua organização. Manter

a porta aberta implica, na capacidade plástica, de aco-

lher a demanda, de forma a garantir atenção a todas

as pessoas que chegam ao serviço, oferecendo uma

possibilidade de resposta a sua questão, mesmo que

seja sua escuta apenas.

Na experiência santista, a ‘porta aberta’ traduz um

conjunto de relações institucionais, num movimento

contínuo de questionar e eliminar a contenção concreta

e simbólica das instituições asilares, pelas quais se dava

o controle do paciente, que:

[...] requer uma dinâmica de trabalho que distante de concepções burocráticas seja capaz de operar no movimento de ordem-desordem, instituinte-instituído na qual as ações são construídas, desmontadas, recons-truídas a partir das necessidades dos usuários em seu contexto de relações [...]. (Nicácio, 2003, p.221).

o dia-a-dia do serviço evidenciou a falta da com-

preensão da noção de porta aberta. observou-se, por

meio da fala de um entrevistado, um ritmo ambulato-

rial de funcionamento, com uma freqüência maior de

técnicos trabalhando nos consultórios ou em oficinas:

“a gente ainda tá preso a esse modelo do atendimento,

da consulta, os grupos” (t3).

Poucas pessoas freqüentavam o serviço de forma

diária e as diversas atividades funcionavam com pou-

cos, sendo quase sempre com os mesmos pacientes. a

presença das famílias restringia-se ao grupo familiar ou

ao acompanhamento às consultas, e não foi observada

a presença de pessoas da comunidade, mesmo em mo-

mentos mais coletivos, como em festas.

a dinâmica do serviço deixava pouco espaço para

a invenção de ações por parte dos pacientes (mesmo

aquelas requeridas para cada caso), funcionando com

atividades padrão: consultas e psicoterapias individuais,

oficinas, visitas domiciliares, assembléia e supervisão.

Havia uma repartição dos espaços em que o paciente

era autorizado ou não a participar, o que evidencia

que o serviço não funcionava segundo a dinâmica da

porta aberta.

Esse paciente foi indo por conta própria. Ele sabia que tinha oficina do papel tal dia, ele vinha na oficina do papel. E aí, quando a gente se deu conta, ele tava freqüentando várias atividades no caps. Até ele le-vou a criar uma regra na equipe, de que paciente de recepção não poderia participar das atividades ainda, só depois que já tivesse cadastrado, que tivesse projeto terapêutico que podia participar, porque meio que fugiu das nossas rédeas. (t2).

a porta aberta também significa a abertura

para o outro, no reconhecimento e acolhimento dos

usuários e ao responsabilizar-se pelos problemas de

saúde da região, numa relação em que Campos (1994)

estabelece entre um “coeficiente de acolhida” e a

“plasticidade” do modelo de atenção, quando se trata

de acessar, junto com o paciente, toda uma variedade

de problemas da demanda, que incluem questões

sociais, econômicas, culturais, além da inconstância

dos recursos disponíveis.

RESPONSABILIDADE PELA DEMANDA

a tomada de responsabilidade aponta para a

ação no território da vida dos pacientes, a partir da

necessidade de assumir uma interação ampla e direta

com a condição do paciente e das suas relações, e

chegando aos seus ambientes de vida (dEll’acqua,

1991). o serviço não é o único local de exercício da

tomada de responsabilidade, pois a prática terapêu-

tica é orientada para o enriquecimento da existência

global, complexa e concreta dos usuários, que os faz

sujeitos ativos nas relações dentro e fora do serviço

(rotElli, 2001).

Page 105: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

103QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

ao contrário da direção da prática em relação aos

ambientes de vida dos usuários dos serviços substituti-

vos, observou-se uma tendência na dinâmica do CaPs

de trazer para o serviço as situações de trabalho com

seus pacientes. No caso de uma paciente, a falta de um

trabalho mais articulado com a vizinhança e os fami-

liares resultou em ela ser vista como ‘monstro’ por uma

pessoa próxima, que exigiu que a tirassem dali e que a

internassem. a dificuldade em conviver com a diferença

de seu comportamento tornou-se insuportável para sua

mãe, que optou por sua internação já na primeira reação

de agressividade da filha.

assim como o olhar de estranhamento da mãe,

o olhar do serviço enxergava a doença, algum retardo

mental a junto à psicose, deixando de encontrar soluções

terapêuticas que ampliassem a rede de relações para a

aceitação e promoção da diferença. a hospitalidade

oferecida pelo serviço deixou de mobilizar “uma quanti-

dade maior de energia humana e recursos institucionais”

(dEll’acqua, 1991, p.65).

A ATENçÃO DO CAPS àS SITUAçÕES DE

CRISE

a capacidade de responder de forma diversa às

situações de crise se insere nas práticas dos serviços

substitutivos como capacidade cotidiana de sustentar

a atenção à crise, pelo exercício do trabalho em equi-

pe, e ao articular tutela, direitos e responsabilidade

(Nicácio, 2003).

a complexidade envolvida nas situações de crise

demanda a criação de estratégias de contato, pautados

na possibilidade de transformação da intervenção vio-

lenta, ressignificando os conflitos em direção à invenção

de saúde. a base para tais possibilidades constitui-se na

relação de contrato e de reciprocidade com o usuário, e

depende da disponibilidade da equipe para situações que

desafiam novas formas de comunicação entre os envolvi-

dos, “sem protocolos de intervenção pré-constituídos, ou

mesmo ‘equipes especiais’ de intervenção” (dEll’acqua,

1991, p.61). lidar com a crise requer a permissão de

entrada em cena de todos que participam do contexto

relacional dos usuários.

Segundo os discursos dos profissionais, a forma

de o serviço lidar com a crise era ruim, acentuada pela

falta de condições materiais. Evidenciava-se o mau fun-

cionamento em equipe e o medo dos profissionais em

lidar com o paciente em crise e articular possibilidades

de atuação que substituíssem a internação.

Precisava não a mesma estrutura que o hospital tem, mas o mínimo de estrutura pra poder ficar com uma pessoa que está de fato agitada. Porque assusta, né?, ameaça de bater, fica falando sem parar.[...] As pessoas chamam logo a ambulância. Muito rapidamente, é a 1ª coisa que se pensa. Você pode tentar fazer outras coisas, você pode chamar a ambulância e paralelamente ir tentando abordar essa pessoa.[..] Tem situações com colegas onde a gente ficou lá embaixo e as pessoas olhando da escada de cima. (t3).

a resposta às situações de crise está relacionada à

organização das práticas do serviço, em sua capacidade

de acolhimento e reconhecimento que se constitui como

alternativa à internação psiquiátrica:

Depende de cada equipe, de como o serviço se orga-niza. (...) Acho que essa é a questão da relação com o território, o cara ao invés de ir pra emergência, vem pro serviço porque ele sabe que pode ser resolvido ali ou acolhido, esse sofrimento foi acolhido e foi conduzido de alguma forma. (t4).

Evidenciou-se que a forma como o CaPs lida com

a crise guarda relações com a orientação teórica que

organiza suas práticas e com o movimento de sair para

atuar nos espaços de vida dos usuários.

Page 106: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

104 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

A RELAçÃO COM O TERRITÓRIO

o território é o local onde deságuam todas as trans-

formações ocorridas no interior do serviço. a interven-

ção precisa chegar às instâncias reais e imaginárias para

se disseminar a norma e a exclusão, e passar ao âmbito

da política, do direito, das legislações, do trabalho e da

cultura. Colocar-se assim em movimento, articulando-

se no convívio entre as pessoas, é o que Santos (1988)

chama de “território da vida”, território onde se dão as

trocas materiais e simbólicas e as relações sociais.

Para Nicácio (1994), o trabalho territorial é construído

na articulação de ações diretas e indiretas, abrindo espaços

para a ressignificação do fenômeno da loucura e o reposi-

cionamento sociopolítico do paciente na sociedade.

a incorporação da noção de território e o alcance

das questões que ela implica indicam a assimilação de

mudanças concretas ao mesmo tempo na sua dinâmica

e em relação à sociedade.

o entendimento que traz a relação do CaPs com o

território é apontado na fala de um profissional quando

diz que “a gente tá tentando fazer esses trabalhos mais

externos” (t1). Existe a consciência de que o trabalho

do CaPs em articulação com outros atores pode mudar a

percepção que se tem do sofrimento mental, a começar

da própria família. No entanto, é freqüente, nas falas da

maioria dos entrevistados, a menção à carência de recursos,

que lhes dificulta sair do ambiente de trabalho, apesar do

reconhecimento de que o CaPs deve atuar no território:

É uma cilada também, que os caps têm que ter o cuidado de sair, porque o trabalho te toma, né? Tem casos muito graves que se deixar você fica só dentro do caps! E a idéia é estar ocupando espaço no território. Então esse é um desafio. (t1).

a relação com o exterior, no entanto, ainda se

reduz às iniciativas pessoais de alguns poucos profissio-

nais, que procuram trabalhar com algumas instituições

localizadas no território, estabelecendo parcerias para

venda de trabalhos confeccionados pelos pacientes: “É

algo que tá no projeto, mas que na prática precisa de

disponibilidade pra isso.” (t2).

o questionamento de que o CaPs possui de fato

um trabalho no território se deve ao fato de que a ação

no território é mais do que a presença física do serviço

na região. o discurso de um profissional chama atenção

para uma necessidade de entender o trabalho fora do

CaPs, a partir da ótica da inserção social, e reconhece que

uma atuação nesse sentido ainda é incipiente no CaPs.

O fato de você estar lá fora com eles não significa que eles estejam integrados. Se a gente só coloca eles pra vender, não incentiva uma crítica a respeito disso, por exemplo, só vai vender nos fóruns de saúde mental, a gente não pode achar que isso é o externo propriamente dito. O externo é o cara poder pôr a barraquinha dele, ou ser um ambulante como um outro, com as dificuldades que ele tem. A gente tendo que ajudar da forma que ele precisa, mas não estar tão dependente de situações como essas. (t3).

o trabalho territorial precisa avançar mais, para

chegar à possibilidade de convívio social, fora da pro-

teção institucional. trabalha-se para a construção de

um novo pacto social, que cria campos de troca entre

os diversos segmentos da sociedade, e interfere nos

processos de exclusão social, além de possibilitar uma

nova ética, “em cujo espaço seria possível reciclar tudo

aquilo que seria descartável na lógica de uma sociedade

excludente” (BaRRos, 1994, p.103).

CONSIDERAçÕES FINAIS

Percebe-se, por meio da observação participante,

assim como pelas falas dos profissionais entrevistados,

que o serviço pesquisado tem-se utilizado tanto de

Page 107: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

105QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

iniciativas diretas como indiretas. São realizadas visitas

domiciliares, acompanhamento aos pacientes internados

em instituições psiquiátricas, viabilização de atendimen-

to na rede de saúde, além de passeios, e negociações com

instituições de lazer, educação, trabalho, e da rede de

saúde, como ambulatórios de Saúde Mental da região,

nos casos de referência e contra-referência.

No entanto, no CaPs pesquisado, a temática da atu-

ação territorial é pouco presente nas discussões dos técni-

cos, no cotidiano do serviço, fruto de uma dinâmica insti-

tucional no qual as atividades encontram-se centradas na

clínica tradicional. ao mesmo tempo, algumas atividades

e críticas ensaiam movimentos de questionamento desse

funcionamento. No entanto, não há um envolvimento

suficiente dos profissionais para criar uma participação

da equipe nos contextos reais de vida da clientela, e que

mobilizem pessoas diversas na articulação de redes sociais,

responsabilidades e potenciais de ação.

Para Basaglia, o território:

[é o] lugar da expressão plena das contradições de classe, espaço real que tornaria mais clara a própria colocação e mais natural o resultado das alianças. (2005, p.242).

A partir de então, coloca-se como serviço que convive com o manicômio e o realimenta, quando suas práticas não alcançam a reprodução social de sua clientela. É justamente essa discussão política e estratégica da relação com o território que se encontra ainda pouco presente no entendimento do lugar do caps, conforme observado, instituindo um serviço que se coloca como intermediário na relação com o hospital psiquiátrico. A gente não quer ser chamado de um serviço substitu-tivo. A gente tá longe disso. A gente ainda é uma coisa mais ou menos alternativa, no sentido que a gente não substitui o hospital, a gente recorre à internação com muita freqüência. Então não há essa coisa da apropriação do espaço. (t3).

a desinstitucionalização não se restringe à retirada

de pacientes da instituição psiquiátrica. Ela é, funda-

mentalmente, a luta contra o que fundamenta a insti-

tuição, seja ela psiquiátrica ou não. trata-se de dar voz

àqueles que tradicionalmente encontram-se na posição

de inferiorizados, e lutar pela sua liberação, uma vez que

a desinstitucionalização é, em última instância, “a luta

pela liberação do homem” (VEntuRini, 2003, p.165). a

desinstitucionalização é o questionamento dos lugares de

produção de valores da sociedade, é uma luta política.

Faz-se necessário colocar em questão a própria

normalização do espaço que constitui o CaPs enquanto

instituição. Na grande maioria das vezes, este dispositivo

vem funcionando como um espaço organizado, de ma-

neira procedimento-centrado, de forma em que as práticas

e as relações interpessoais se localizam no seu interior,

numa dinâmica centrada na intervenção medicamentosa

e psicoterapêutica, que tende a produzir uma cronicidade

dos próprios profissionais dentro do serviço.

apesar do tempo de reforma Psiquiátrica empreen-

dida no país, entende-se que a superação do manicômio

não se reduz a uma modernização da assistência, mas se

trata de uma luta contra os mecanismos de controle da

população, que precisa ser melhor trabalhado no coti-

diano dos atores da reforma Psiquiátrica. Essa percepção

acerca da capacidade de invenção que um serviço precisa

ter para substituir a lógica psiquiátrica ainda não chegou

ao ponto de transformar suas práticas e construir serviços

de Saúde Mental que se coloquem como substitutivo.

Para Venturini, a presença de usuários, familiares, di-

versos cidadãos e a construção de um clima de cooperação

social “constituem-se em indicadores rigorosos da eficácia

da desinstitucionalização” (2003, p.173). desse ponto de

vista, o serviço precisa redefinir sua prática, flexibilizar-se

no exercício de seu poder, ao abrir-se para permitir o con-

flito dos atores e incorporar uma capacidade de negociação

que considere as necessidades de sua clientela.

a penetração no território acontece quando os ser-

viços se organizam para acolher e trabalhar a pessoa em

sua existência concreta, o que impulsiona a um trabalho

Page 108: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

106 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

permanente de inscrição na dinâmica do território, ao

identificar os atores que estão relacionados às ações de

reconstrução de relações com a loucura e ultrapassando

iniciativas isoladas, como sair em busca de determinada

parceria para alguma ação pretendida.

da arquitetura hospitalar, que exerce seu poder de

controle e de formação de corpos dóceis pela anulação

das possibilidades de existência própria, ao espaço

aberto do território, o tema ainda é a convivência com

um poder invisível e onipresente, e a ampliação da

capacidade de singularização1 de pessoas e de grupos.

trata-se mesmo de facilitar rebeldias cotidianas, revo-

luções moleculares, de refazer territórios de resistência e

existência, não totalmente imunes à ordem dominante,

mas poder ampliar a função de autonomização dos

grupos, tornando-os mais hábeis quanto

à capacidade de operar seu próprio trabalho de se-miotização, de cartografia, de se inserir em níveis de relação de força local, de fazer e desfazer alianças, etc. (guattaRi; rolniK, 1986, p. 46).

Em relação a isso, há perseguição dos operadores

dos serviços substitutivos, chamando de invenção de

saúde e de vida.

R E F E R Ê N C I A S

Basaglia, F. a doença e seu duplo. In: amaRantE, P. (org.). Escritos selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. rio de Janeiro: garamond, 2005. p. 161-186.

BRasil. Ministério da Sáude. Secretaria de assistência à Saúde. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Brasília, dF, 2002.

CamPos, F.C.B. O modelo da Reforma Psiquiátrica bra-sileira e as modelagens de São Paulo, campinas e Santos. 2000. tese (doutorado) – Faculdade de Ciências Mé-dicas da UnicamP, Campinas, 2000.

dEll’acqua, g., MEzzina, r. resposta à crise. In: dElgado, J. (org.). A loucura na sala de jantar. Santos: resenha, 1991. p. 53-79

giovanElla, l.; amaRantE, P. o enfoque estratégico do planejamento em Saúde Mental. In: amaRantE, P. (org.). Psiquiatria social e Reforma Psiquiátrica. rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 113-149

guattaRi, F.; rolniK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.

Minayo, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/rio de Janeiro: Huci-tEc/abRasco, 1993.

Nicácio, F. Utopia da realidade: contribuições da desinstitucionalização para a invenção de serviços de Saúde Mental. 2003. tese (doutorado) – Faculdade de Ciências Médicas da UnicamP, Campinas, 2003.

__________. O processo de transformação da Saúde Mental em Santos: desconstrução de saberes, instituições e cultura. 1994. dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – PUC-SP, São Paulo, 1994.

rotElli, F. a instituição inventada. In: Nicácio, F. (org.). Desinstitucionalização. 2. edição. São Paulo: HucitEc, 2001. p. 89-99.

__________. Superando o manicômio: o circuito psi-quiátrico de trieste. In: amaRantE, P. (org.). Psiquiatria social e Reforma Psiquiátrica. rio de Janeiro: FiocRuz, 1998. p. 149-170.

1 Por singularização guattari e rolnik (1986) entendem a capacidade de captar os elementos da situação, de construir as próprias referências práticas e teóricas, saindo da dependência total em relação ao poder global, para ler a própria situação e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criação e de autonomia.o e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criaç, e de ter a capacidadestmento dos tles atores que dele se util

Page 109: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008

107QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

__________. o trabalho de Saúde Mental no território. In: Kalil, M.E.X. (org.). Saúde Mental e cidadania no contexto dos sistemas locais de saúde. São Paulo/Salvador: HucitEc/Cooperação Italiana em Saúde, 1992. p. 75-80.

Santos, M. Metamorfoses do espaço habitado: funda-mentos teóricos e metodologia da geografia. São Paulo: HucitEc, 1988.

VEntuRini, E. a qualidade do gesto louco na era da apropriação e da globalização. In: amaRantE, P. (org.). Archivos de Saúde Mental e Atenção Psicossocial. rio de Janeiro: NaU Editora, 2003. p. 157-184

recebido:maio/2008

aprovado: ago./2008

Page 110: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE108

grupo como dispositivo de vida em um caPs ad:

um cuidado em Saúde Mental para além do sintomagroup of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms

RESUMO A dependência química envolve aspectos sociais, ocupacionais,

econômicos, políticos e psíquicos, e necessita, portanto, de diferentes olhares

sobre a vida dos sujeitos para que haja uma aproximação de um cuidado

integral. Entretanto, durante muito tempo, os modelos de atenção em Saúde

Mental centraram-se na atenuação de sintomas, deixando em segundo plano

outras questões vinculadas à existência. Neste artigo, objetivou-se refletir sobre

as possibilidades existentes para a clínica de grupos, dentro de um centro de

Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (Caps ad), por meio do relato de

experiência com um grupo terapêutico. Utilizaram-se os conceitos de produção de

subjetividade, clínica, desejo, saúde, cuidado, integralidade e grupo dispositivo

para problematizar alguns relatos dos participantes.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; centro de atenção psicossocial; Psicoterapia

de grupo

ABSTRACT chemical dependency encompasses social, occupational, economic,

political and psychical aspects and, therefore, it demands numerous views of

people’s life in order to provide full care, as much as possible. However, for a long

time, attention on Mental Health standards focused on diminishing symptoms,

while other issues concerning existence were lagged behind. In this paper, we have

aimed at reflecting on opening up opportunities for group clinic at a center of

Psychosocial Alcohol e drugs (Caps ad) by means of the report of an experience

with a therapeutics group. We considered the concepts of subjectivity production,

clinic, desire, health, care, integrity and groups of devices with the purpose of

questioning some participants’ speech.

KEYWORDS: Mental Health; Psychosocial care center; Psychotherapy, group

Milena lea l Pacheco 1

luiz Ziege lmann 2

1 Psicóloga com residência Integrada

em Saúde (rIS) com ênfase em Saúde

Mental no grupo Hospitalar Conceição

(gHC).

[email protected]

2 Médico psiquiatra do Hospital Nossa

Senhora da Conceição (HNSC) do

gHC.

[email protected]

Page 111: Saude Em Debate_n75

109

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

I N T R O D U ç Ã O

Este estudo é fruto de uma experiência clínica com

um grupo de adultos que se encontrava em tratamento

para dependência química1 em um Centro de atenção

Psicossocial Álcool e drogas (caPs ad) de Porto alegre,

em 2006, durante meu primeiro ano de residência In-

tegrada em Saúde (rIS) com ênfase em Saúde Mental

no grupo Hospitalar Conceição (gHC)2.

o caPs ad do Hospital Nossa Senhora da Conceição

(HNSC) surgiu com o objetivo de oferecer um cuidado

contínuo às pessoas, com idade a partir de 12 anos, que

apresentassem graves problemas decorrentes do uso de

substâncias psicoativas e/ou do comprometimento sócio

familiar tais quais: intenso sofrimento psíquico, dificul-

dades no convívio social e familiar, escassez de recursos

sociais, políticos e econômicos, entre outros. Inscrito

na proposta de descentralização e territorialização3 do

Sistema Único de Saúde (SUS), esse serviço é destinado

à população das regiões Norte/Eixo Baltazar, Nordeste

e Noroeste de Porto alegre/rS, e fornece atendimento

individual e grupal aos dependentes e seus familiares, por

intermédio de equipes multidisciplinares composta por

profissionais das áreas de Medicina, Psiquiatria, Psicologia,

Serviço Social, terapia ocupacional e Enfermagem.

os caPs ad são considerados a principal estratégia

da reforma Psiquiátrica para o desenvolvimento de ser-

viços substitutivos em Saúde Mental. Esses serviços são

voltados às pessoas portadoras de sofrimento psíquico,

usuárias de álcool e outras drogas e a seus familiares. Por

intermédio de cuidados de atenção diária, os caPs ad

possibilitam cuidados integrais à saúde, propondo uma

nova abordagem, ligada ao social, do sofrimento psíqui-

co, distinta do modelo manicomial, que acaba sendo

gerador de exclusão e estigma social (bRasil, 2004B).

Embora historicamente a problemática do uso, do

abuso e da dependência de substâncias psicoativas tenha

sido abordada por um modelo médico-centrado, em 2003,

a Política Nacional de atenção Integral a Usuários de Álcool

e outras drogas foi apresentada pelo Ministério da Saúde.

Esse documento assinala a necessidade de se facilitar o

acesso de usuários ao tratamento, de se ampliar o olhar dos

profissionais, bem como considerar os processos subjetivos,

as heterogeneidades, as multiplicidades e as particularidades

e diferenças dos sujeitos (bRasil, 2004a).

Em março de 2006, eu e um colega, psicólogo e

residente em Saúde Mental, fomos convidados pela

equipe do caPs ad para coordenar o chamado grupo de

Sentimentos. Com abordagem centrada nos sujeitos e

suas relações, a proposta foi a de criar um espaço coletivo

onde os usuários pudessem refletir sobre suas vidas além

do uso dessas substâncias, buscando outros sentidos em

suas experiências. o grupo de Sentimentos foi iniciado

com oito homens e quatro mulheres, mas alguns pa-

cientes optaram por deixar o espaço e permanecer nos

atendimentos individuais em outros grupos de apoio ou,

mesmo optaram por se desvincularem do caPs.

as falas apresentadas neste artigo são de seis adultos:

cinco homens e uma mulher, com idade entre 35 e 60 anos,

pertencentes a camadas populares e, com exceção de um dos

integrantes, que não estavam empregados no momento.

1Considera-se dependente químico uma pessoa que faz uso abusivo de álcool e/ou drogas, que apresenta problemas sociais, psíquicos, familiares, ocupacionais, econômicos e políticos recorrentes e que sente dificuldade em reduzir ou suspender tal uso (bRasil, 2004a).2o gHC é uma instituição federal considerada eminentemente pública, uma vez que a população atendida é, em sua totalidade, usuária do Sistema Único de Saúde (SUS). atualmente, possui quatro núcleos hospitalares: Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo redentor e Fêmina, mais doze Postos de Saúde Comunitária (bRasil, 2007).3o território não é (apenas) o bairro do sujeito ou uma área geográfica, mas o conjunto de referências socioculturais e econômicas que permeiam o cotidiano do sujeito. É constituído, sobretudo, pelas pessoas que o habitam, com seus conflitos, interesses e relações (bRasil, 2004B).

Page 112: Saude Em Debate_n75

110

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

No primeiro dia de encontro, após nos apresen-

tarmos, solicitamos que cada um dos presentes fizesse

o mesmo. todos os participantes revelaram o nome e

o tipo de droga que utilizavam. dissemos a todos que

a forma como eles haviam se apresentado “não nos

contava quase nada a respeito de suas vidas” e apenas

mostrava que a existência deles se restringia a uma de-

terminada substância. apresentando-se dessa forma,

(re)afirmavam a idéia de que suas identidades eram

constituídas predominantemente pela dependência de

determinada substância. o grupo ficou surpreso com

tal afirmação, já que, segundo um dos integrantes,

“isso é tudo o que as pessoas querem saber da gente

[...] a única coisa que importa é se eu bebi ou não, às

vezes isso acontece até mesmo aqui no caPs”.

a partir dessa experiência e de trechos das falas,

verifiquei o modo como um cuidado que aborda as-

pectos além dos sintomas de dependência contribui no

tratamento, refletindo sobre as aberturas produzidas na

clínica de grupos. assinalam-se momentos em que o

grupo buscou compartilhar diferentes situações vividas,

produzir outras subjetividades e desmitificar alguns

modos de ser e viver. Este estudo foi fundamentando

em idéias, de autores como Birman, rolnik, Benevides,

Brasil, Naffaf Neto, Foucault, entre outros, que dizem

respeito a produções de subjetividade, clínica, cuidado,

desejo, integralidade na atenção e grupo dispositivo.

PRODUçÕES DE SUBJETIVIDADE

o surgimento do Estado moderno, oriundo de

conjunturas investidoras na anulação das diferenças

entre os sujeitos, como o Iluminismo, a revolução

Francesa, a revolução Industrial e a Psicologia Com-

portamental, inseriu na sociedade a idéia de que

todos os indivíduos são iguais e possuem as mesmas

oportunidades durante a vida. Benevides e Joseph-

son (2006) localizam, nesse período, o surgimento

de um paradigma enraizado na individualização, no

autocentramento e na totalização, denominado modo-

indivíduo. Marcado por uma oposição entre indivíduo

e sociedade, esse modo-indivíduo visa corpos úteis,

produtivos e objetos de cuidado, determinando certas

formas de estar, sentir, pensar, desejar e viver o mundo

(bEnEvidEs, 1994).

diferentemente dessa idéia da subjetividade centra-

da no “eu”, as produções de subjetividades, ou modos

de subjetivação, são fabricadas e modeladas no registro

social (bEnEvidEs, 1995). Essas produções se iniciam

no nascimento e envolvem tudo aquilo que produz

sentido, como o contato com o ambiente familiar,

a relação com amigos, afetos, música, arte, cinema,

política, ou seja, expressam-se através do modo como

os indivíduos pensam, sentem e agem em relação a si,

ao outro e ao mundo. É tudo aquilo que singulariza

e diferencia e são processadas no encontro do sujeito

com o ambiente social, resultando tanto em marcas

singulares como em valores compartilhados na cultura,

na história, na política e no coletivo. Segundo Benevides

(2001), tal noção de subjetividade, não-dicotomizante,

impossibilita uma separação entre o que é do indivíduo

e o que é do social.

Miranda (2000) afirma que é possível conceber

as produções subjetivas a partir de dois pólos. No pri-

meiro, os indivíduos apresentam certa passividade em

relação às instituições produtoras de subjetividade como

a família, o Estado, o trabalho, o sofrimento psíquico,

repetindo suas formas de agir e pensar. No segundo,

os indivíduos e os grupos criam “processos múltiplos e

heterogêneos, que engendram relações livres e criativas”

(p. 41) assumindo, dessa maneira, suas existências de

forma singular, criando diferentes valores, novas formas

de pensar e agir e tornando, por fim, a produção de

subjetividade singularizada.

Page 113: Saude Em Debate_n75

111

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

Para Benevides (1994) o corpo-indivíduo tornou-

se objeto de controle e vigilância, impulsionando a

busca de um cuidado de si. Inspirada em pensamen-

tos foucaultianos, a autora afirma que os modos de

subjetivação tanto constroem determinados objetos

de interesse, como afirmam formas de existir:

a cada momento da história, prevalecem certas re-lações de poder-saber que produzem sujeitos-objetos, necessidades e desejos. (p. 28).

guatarri e rolnik (1986) assinalam que as subjetivi-

dades são produzidas também pelas Ciências Humanas,

porque são elas que criam, juntamente com a Medicina,

a possibilidade de investimento em formas de viver a

partir do modo-indivíduo. Essas ciências podem tanto

incentivar a manutenção de processos subjetivos homo-

geinizados sem criar saídas para a singularização, como

investir em modos de subjetivação heterogêneos.

No caso do uso nocivo do álcool e outras drogas,

mesmo com a implementação da reforma Psiquiátrica e da

Política Ministerial, o sujeito, nesse caso dependente quí-

mico, é inserido em um registro social que o individualiza

– ‘Eu sou alcoolista’ – e o circunscreve em um determinado

território de existência ainda marcado pelo estigma, pelo

preconceito e pela exclusão. assim, serviços de atenção à

saúde, como os caPs, podem funcionar tanto como meca-

nismos de controle e vigilância, como de auxílio na criação

de subjetividades mais livres, criativas e autônomas.

afinal, como pensar uma clínica produtora de

subjetividades?

CLíNICA, CUIDADO E INTEGRALIDADE

durante muito tempo as práticas terapêuticas fo-

ram utilizadas para “remover, excluir, abrigar, alimentar,

vestir, tratar” (bEzERRa JúnioR, 2001, p. 29) aqueles

que eram considerados loucos, marginais, bêbados

e indesejados pela sociedade. ou seja, nssa época, as

intervenções serviam apenas para impedir novas pro-

duções subjetivas.

No caso da Psicologia, Medeiros, Bernardes e

guareschi (2005) afirmam que ela surgiu com o intuito

de “descobrir o que tornava os seres humanos sujeitos

da razão.” (p. 265), criando uma série de recursos

para o indivíduo governar a si mesmo. Esses recur-

sos – avaliações, exercícios comportamentais, falar de

si – eram (e ainda são) utilizados, muitas vezes, para

que o indivíduo soubesse (saiba) quem ele é e enten-

desse (entenda) como e por quê age em determinadas

circunstâncias: “tudo para atentar para as próprias

condutas, controlar os excessos, responsabilizar-se por

seus atos.” (mEdEiRos; bERnaRdEs; guaREschi, 2005,

p. 266). Nesse caso, o foco não está na saúde e sim

na materialização de uma interioridade do indivíduo

para subsidiar, segundo Bernardes (2007), formas de

poder sobre a vida.

Para Foucault (1992), a invariância da clínica

aparece na história à medida que os modos de ver e de

sentir são mudados, assim como a própria objetividade

da doença.

a clínica atual ainda apresenta:

[...] posturas clínicas que reproduzem, acriticamente, as clássicas dicotomias interior/exterior, consciente/inconsciente, sujeito/objeto, clínica/política, e tantas outras, porém procurando ajustá-las aos novos tempos. (nEvEs; JosEPhson, 2001, p. 99).

de acordo com Coimbra (2002), essa clínica se

depara com:

[...] histórias e trajetórias que falam de experiências, aventuras, desventuras, sonhos, utopias, massacres fraquezas, cumplicidades, omissões, convivências. (p. 19).

Page 114: Saude Em Debate_n75

112

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

tudo isso envolve os mais diversos processos sub-

jetivos. assim como a contemporaneidade, a clínica é

atravessada pela complexidade e pela desestabilização

e deve ser entendida, segundo deleuze (1992) como

experiência de desvio, de desestabilização e de crise uma

vez que acompanha a criação de territórios existenciais,

através de um caráter processual. Envolve, também,

questões individuais e coletivas que interpelam o sujeito

e seus modos de subjetivação. Esses atravessamentos

ocorrem através de movimentos de territorialização,

desterritorialização e reterritorialização do desejo.

desejo, de acordo com rolnik e guatarri (1986)

é uma potência de criação de vida, capaz de inventar e

transformar modos enrijecidos de ser, sentir e pensar.

todo desejo é um devir, que constrói e reconstrói objetos

e seus correspondentes modos de subjetivação (RolniK,

2006). Na clínica, a manifestação do desejo se dá no

corpo, é ele que comunica.

o surgimento do SUS e seus princípios (uni-

versalidade, eqüidade, hierarquização, integralidade,

descentralização e participação comunitária) colocou

no cenário da saúde pública outros olhares em relação

ao sofrimento e ao sujeito, abrindo possibilidades para

se dar espaço ao que vem do corpo, ao desejo, ao afeto

e ao impulso para a vida, aspectos esses que, muitas

vezes, são capturados pelas convenções que enrijecem

e doutrinam certos modos de vida ‘indesejados’ para

a sociedade. além disso, a partir da 8a Conferência

Nacional de Saúde, a saúde passa a ser vista não apenas

como ausência de doença ou esbatimento de sintomas,

mas como um encadeamento de interações em vários

níveis de complexidade interdependentes (gioRdan,

1998). Sendo assim, saúde e doença passaram a não ser

conceitos definitivos ou opostos, pois “dizem respeito à

sobrevivência, à qualidade de vida ou à própria produção

de vida” (cEccim, 2000, p. 28), estando relacionados às

condições físicas, psicológicas e sociais; ou seja, o indiví-

duo torna-se um ser tridimensional e biopsicossocial.

as novas concepções de saúde e doença vão ao en-

contro da proposta de integralidade, na qual o principal

interesse já não é o sintoma, mas o sujeito e seu contexto

biopsicossocial. Para Mattos (2001), a integralidade

está relacionada ao ideal de uma sociedade mais justa

e solidária, pois sua atenção diz respeito ao cuidado às

pessoas, aos grupos e à coletividade em seus contextos

históricos, sociais, políticos, econômicos, culturais e

também subjetivos.

Nesse sentido, os espaços terapêuticos podem

possibilitar que os sujeitos encontrem novas formas

para resolver seus conflitos a partir de outras leituras

de sua própria vida. Naffah Neto (1994) utiliza o ter-

mo “psicoterapia-genealógica” (p. 20) para destacar a

importância de o terapeuta denunciar tudo aquilo que

empobrece a vida das pessoas, produzindo, juntamente

com o paciente, pequenas revoluções no cotidiano. Se-

gundo o autor, psicoterapia significa, etimologicamente,

o “cuidado pela vida” (p. 21), capaz de desenvolver o

que Nietzsche chamou de “vontade de potência” (p.

21): uma “potência autônoma, nos seus movimentos

de expansão/retração, construção/destruição, enchentes,

contração/consonância” (p. 110). Segundo o autor, a

vida doente é:

[...] enredada por valores que a intoxicam, obs-truem, empobrecem, necessitando desenvolvimento, soltura, liberdade, para recuperar a sua potência criadora e produzir novas formas. (naffah nEto, 1994, p. 23).

assim, tudo aquilo que vem do corpo, os afetos, as

intensidades, os desejos, as vontades, os movimentos, é

reprimido e a vida se torna limitada.

a concepção de clínica acima descrita nos oferece

uma abertura para o conceito de cuidado proposto por

Boff (2000). o autor assinala que o cuidado contri-

bui para a reinvenção. aquele que cuida, no entanto,

deve considerar a liberdade do sujeito, sua liberdade e

Page 115: Saude Em Debate_n75

113

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

capacidade de escolha e seu potencial para estabelecer

normatizações próprias. Pautado na integralidade, e

não na seleção, aquele que cuida de outrem percebe que

cada sujeito possui necessidades que atravessam campos

múltiplos e singulares; sendo assim, seu olhar precisa ser

deslocado da doença, atingindo um conjunto de fatores

que envolvem a vida.

ALGUMAS CONSIDERAçÕES ACERCA DA

DEPENDÊNCIA QUíMICA

a compreensão ampliada do sujeito oferece, de

acordo com Birman (2005), instrumentos para a for-

mulação de um pensamento crítico sobre o mal-estar da

contemporaneidade e sua forma de expressão: o narcisis-

mo. Segundo o autor, para entender os processos subje-

tivos, é necessário investigar os destinos do desejo.

Nas últimas décadas, no ocidente, o ‘eu’ passou

a assumir uma posição privilegiada na construção de

subjetividade. o autocentramento do sujeito no eu,

oriundo das noções de interioridade e reflexão cons-

truídas no início da modernidade, conjugou-se ao valor

da exterioridade e a subjetividade, por sua vez, acabou

tendo uma configuração

estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica. (biRman, 2005, p. 23).

Com isso, o exibicionismo e o autocentramento

atingiram o valor da solidariedade/alteridade, impe-

dindo que os sujeitos reconhecessem os outros em suas

diferenças e singularidades. desse modo, o narcisismo

torna-se uma forma de subjetivação tributária de uma

organização social que incita o consumo desenfreado, o

autocentramento e a necessidade de prazer imediato.

o uso abusivo de álcool e outras drogas está,

portanto, relacionado às produções da atualidade:

narcisismo, consumismo e imediatismo. o indivíduo

busca desesperadamente atingir a plenitude narcísica

através de uma poção mágica que inviabilize o reco-

nhecimento de sofrimentos e desilusões inerentes

ao ser humano. Nesse “pacto de morte o valor que

direciona o sujeito é um antivalor” (biRman, 2005, p.

23), pois é o não-saber sobre sua existência, alienan-

do-se da vida e do outro por meio de um objeto que

satisfaz e mortifica ao mesmo tempo. ao encontrar

na substância um alívio imediato (e passageiro) para

angústias, sofrimentos, desilusões, tristezas, entre

tantos outros sentimentos despertados, o sujeito se

volta para si.

No contexto da dependência química, em que os

destinos do desejo ficam autocentrados no indivíduo, é

oferecida uma abertura para a discussão do trabalho com

grupos como uma possibilidade de produção de modos

de vida, como propõe Benevides (1995):

Às portas do século XXI, quando observamos o crescente processo de individuação e privatização das práticas sociais e psíquicas, pensar o grupo nos aparece como uma possibilidade de colocar em questão a problemáti-ca da economia do desejo, dos processos de subjetivação e, quem sabe, chamar a atenção para a urgência de se criarem laços de solidariedade e alianças de cidadania. (p. 143).

O DISPOSITIVO GRUPO

os espaços grupais foram utilizados na saúde

pública durante muito tempo com o objetivo único

de atender um maior número de pacientes através da

otimização dos recursos humanos. de fato, em um

grupo abrangemos um maior número de pacientes. No

Page 116: Saude Em Debate_n75

114

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

entanto, é preciso refletir sobre a riqueza desses espaços

quando tomados como dispositivos para a saúde.

Conforme Benevides (1994) o termo dispositivo

indica algo capaz de acionar um processo de decompo-

sição, produzir novos acontecimentos e romper com o

que se encontra impedido de criar, por meio de tensio-

namentos, movimentos e novos agenciamentos. a clí-

nica de grupos tem caráter processual. Esse processo de

mudança não se restringe a uma tomada de consciência,

pois essa, muitas vezes, é capturada por sentimentos de

culpa e valores morais. Para funcionar como provocador

de inquietações, esse tipo de cuidado precisa provocar

inquietações, suscitar perguntas e trazer respostas novas

(bRasil, 1995). Essa experiência pode tirar o olhar do

sujeito de si, de seu lugar. Naffaf Neto (1994) afirma que

as relações em um grupo terapêutico podem estabelecer

tanto identificações ligadas às representações, ou “formas

extensivas, circunstanciais, históricas, que transpassam

todos e os fazem sentir no mesmo barco” (p.104), como

singularizações.

Passos (2005) utiliza-se de guatarri (1981) para fa-

lar das diferenças entre grupo-sujeitado e grupo-sujeito.

o primeiro é o grupo dos estereótipos, da hierarquia, da

autoconservação, da exclusão, da unificação, da totaliza-

ção e verticalização e que estabelece formas específicas

de ser e de viver. o segundo abre-se para os processos

criativos de outrem e para a alteridade porque precisa

do diferente; é suporte para diversos modos de expressão

emergentes e diferentes enunciados.

Frente a uma situação de conflito trazida por al-

gum dos participantes, perguntávamos com freqüência

para os demais: “alguém já passou por uma vivência

parecida?”. Buscávamos, como aponta Ziegelmann

(2005), outros modelos de saúde que não reduzissem

os sujeitos a categorias diagnósticas, mas tomassem as

formas de viver e os processos de composição de si como

construções coletivas.

GRUPO DE SENTIMENTOS:

OUTRAS POSSIBILIDADES

a proposta de trabalho com o grupo de Sentimentos

já aparece no campo da Saúde Mental há muitas décadas.

Entretanto, em grande parte, apresenta uma conotação vol-

tada para a individualização do sintoma, o que é recorrente

em modelos psiquiátrico-psicológicos voltados para aquilo

que nós, enquanto coordenadores/facilitadores, questio-

návamos. a nossa idéia era intervir tanto no grupo como

no caPs, problematizando alguns modos de subjetivação

acerca do tratamento de dependência química.

Sentávamos em círculo a fim de visualizarmos uns

aos outros, em encontros semanais com duração de uma

hora. Entramos em acordo a respeito de as faltas serem

comunicadas. a ausência de algum membro, quando

não notificada anteriormente, geralmente fazia os ou-

tros pensarem que o colega havia tido uma recaída: “o

fulano não está vindo faz tempo. Será que ele recaiu?”.

Em relação à abstinência, o único critério colocado

pelo grupo era de que não se deveria comparecer aos

encontros sob efeito de álcool ou outras drogas. Porém,

em duas ocasiões, um paciente compareceu alcoolizado

e os demais participantes disseram que aquilo era “uma

falta de respeito com a gente que está levando a sério” e

enfatizaram que nós, os coordenadores, deveríamos bar-

rar a participação dos usuários naqueles dias. Embora os

pacientes fizessem uma crítica dizendo que “a sociedade

só aceita quem não bebe”, eles mesmos esperavam que

cada integrante mantivesse a abstinência. o simples fato

de eles relacionarem a ausência à uma recaída reforça

essa idéia. Essa visão da abstinência e da recaída está de

acordo com as idéias de Moraes (2008), que, em um

estudo realizado em um caPs ad, concluiu que, tanto

para os usuários como para os profissionais, a abstinên-

cia é o principal objetivo do tratamento e a recaída é

entendida como um mau comportamento:

Page 117: Saude Em Debate_n75

115

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

Talvez a abstinência seja a expressão máxima de que alguém se encontra em condições de ajustamento e purificação, necessários para serem aceitos socialmente. Mesmo assim, parece que o caráter de vigilância sobre essas pessoas se manterá permanente [...] uma vez alcoolista, sempre uma pessoa diferente, em que não se pode confiar por estar sujeita permanentemente a recaídas e crises. (moRaEs, 2008, p.128).

No início, os participantes se restringiam aos

sintomas: “É tudo por causa da maldita da cachaça”.

desconheciam que o grupo “pelo potencial criativo

que insere a partir das transversalizações de idéias, sen-

timento e experiências do outro” (ziEgElmann, 2003, p.

9), oferece outras subjetivações e territórios existenciais

capazes de ressignificar vidas.

aos poucos, o grupo foi trazendo outras inquieta-

ções: “Eu queria que vocês me ajudassem com o meu

casamento. Eu tenho vontade de sair de casa, mas fico

com pena das crianças”. Percebíamos que essas pessoas

tinham uma necessidade de falar sobre diferentes aspec-

tos de suas vidas e não apenas aos sintomas relacionados

à dependência química e buscavam outras respostas

através de uma experiência coletiva para desconstruir

aquilo que há anos se repete: “Eu lembro do primeiro

dia em que a gente conversou. todo mundo só falava

na droga, como se aquilo fosse a gente”.

aos poucos, o grupo passou a desnaturalizar seu

território existencial:

No início achei que aqui só me perguntariam se eu tinha bebido ou não. Vi que nesse grupo a gente pode falar do que quiser e se não quiser falar nada pode ficar quieto também, só escutando o outro.

de um modo em geral, as pessoas procuram os

serviços público de saúde acreditando que devem mani-

festar somente a queixa de seus sintomas, que não podem

falar de si, de suas vidas. o tempo de atendimento é

curto. No entanto, se por um lado essas pessoas falam

de seus sintomas repetitivamente na tentativa de se sen-

tirem aliviadas, por outro, reproduzem certas práticas

hegemônicas tradicionais que direcionam seu olhar à

doença e não ao sujeito e sua complexidade.

o uso abusivo de substâncias psicoativas juntamente

com a sociedade e seus valores morais que determinam

o que é certo e errado, o que é bom ou ruim inibem a

produção subjetiva do sujeito, bem como o surgimento

de outras formas de ser, estar e sentir. a pessoa passa a se

subjetivar principalmente através da droga: “Meu nome é

fulano e o meu problema é a bebida”. Se por um lado a

tomada de consciência faz com que o sujeito reconheça a

dependência química como um problema, ela também o

captura. Nesse caso, a produção subjetiva é marcada pelo

estigma, preconceito, culpa, tristeza e alienação: “lá em casa

eu não posso opinar porque eu sou o bêbado”. apresenta-

vam-se ‘escravos(as)’ do álcool e das drogas, enxergando a

dependência química como uma marca de sua identidade

e a substância, como uma marca de si e um meio de se

relacionar socialmente: “Eu sou o Fulano, eu bebo”.

Benevides (1994) afirma que devemos buscar a

desnaturalização:

[...] tentar ver historicamente como se produzem de-terminados efeitos de verdade nos discursos e práticas, efeitos estes que não são, em si, nem verdadeiros, nem falsos. (p. 24).

ao questionarmos o modo como cada participante

se apresentava, tentávamos também provocar o surgi-

mento de outros territórios, desejos e modos de vida.

A auto-identificação dos sujeitos como ‘dependentes’ parece estar em consonância com um imaginário que a própria sociedade criou, através dos dispositivos de tratamento que reforçam sua postura de impotência diante do controle do uso de drogas [...] como se a partir do momento em que esses sujeitos assumissem a posição de impotência perante a droga, dizendo ‘eu sou adicto’, isso tornasse sua condição inquestionável e natural. (santos, 2007, p. 195).

Page 118: Saude Em Debate_n75

116

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

de acordo com Brasil (1995), a troca de experiên-

cias com o outro propicia a criação de diversos sentidos,

o questionamento de estruturas duras, e a desnatura-

lização de modos estereotipados de viver, oferecendo

mudanças objetivas e subjetivas. o entrecruzamento de

idéias e a coletivização de ações, afetos e pensamentos,

algumas vezes, promovem o rompimento das estereo-

tipias paralisantes que dificultam o viver: “Cada um de

vocês é uma força que me ajuda. É um reforço que eu

levo comigo”. o confronto com as diferenças facilita

o rompimento com as habituais dicotomias existentes

entre o pensar, o sentir e o fazer, agindo criativamente

sobre os conflitos e inovando as relações através da

criação de novos vínculos: “Às vezes eu estou em casa

e me lembro do que um de vocês falou e aí paro de

pensar bobagens”.

No grupo, os participantes compartilhavam a

experiência da solidão e do empobrecimento dos vín-

culos: “os amigos de bar não são amigos de verdade”.

Falavam de intenso sofrimento psíquico proveniente de

sentimentos de desvalia, solidão, tristeza e exclusão.

Eu queria falar para vocês que eu ando me sentindo muito sozinho. A família não tem me procurado mais, procuram muito pouco. Lá na comunidade o pessoal é gente boa, mas não é a mesma coisa.

ao oferecer um espaço de escuta e de reflexão, o grupo

permitiu que os sujeitos vivenciassem outros sentimentos,

significados, pensamentos, valores, fazeres: “Eu acho que a

gente mesmo acaba fugindo dos amigos de verdade, da fa-

mília. Hoje eu sei dar valor para a minha velha”. a proposta

de clínica grupal dá oportunidade para que se formarem

laços e solidariedade, aliviando sentimentos de vazio,

solidão e desesperança: “aqui a gente tem cumplicidade e

confiança”. Por terem vivido anos ou décadas escondidos

atrás de um sintoma, as relações consigo e com o outro

encontram-se desgastadas, desacreditadas.

luz (2001) assinala que as relações de solidariedade

renovam a sociabilidade e podem restaurar o tecido

social, formando

pequenos e múltiplos pontos de resistência ao indivi-dualismo dominante, colocando a amizade e a coo-peração no lugar do valor dominante da competição. (p. 41).

o restabelecimento da confiança no outro faz com

que o isolamento seja substituído pela convivência, gerando

otimismo e esperança nos sujeitos. Por outro lado, Naffaf

Neto (1994) escreve que o termo amizade não condiz com

a realidade de um grupo terapêutico: “mesmo as grandes

amizades sempre preservam um certo pudor, um certo reca-

to” (p. 103). os grupos são mais como laboratórios da vida

social, pois reúnem pessoas que nunca se encontrariam ou

criariam vínculos um com o outro, mas que nesses espaços

aprendem a compartilhar experiências fundamentais.

Proposto como dispositivo analítico, o grupo serviu

para descristalizar posições e papéis a partir dos quais esses

sujeitos construíram suas identidades: “antes era tudo por

causa da maldita cachaça”. Quando pensamos os grupos em

geral com dispositivos, sem separá-los por objetivos clínicos

ou ligados à re-socialização, poderemos habitar em outro

regime de enunciação, no qual clínica e política formariam

um espaço de mútuo engendramento. transversalizamos,

com isso, as questões ditas sociais e políticas bem como as

chamadas subjetivas ou “íntimas” (bEnEvidEs, 2001):

Depois que eu comecei a participar desse grupo eu vi que eu tenho que ir atrás das minhas coisas. Não posso ficar só me queixando, querendo que os outros mudem. O tempo está passando e eu vou fazer o que da minha vida?

o espaço pode ser visto como um “aprendizado.

a gente precisa de novas idéias, novas experiências para

se reciclar”. Isso ocorre na medida em que trabalhamos

Page 119: Saude Em Debate_n75

117

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

sob a perspectiva da integração social e da produção de

autonomia, incentivando os próprios sujeitos a buscarem

outros modos de existência: “É como eu já disse para

vocês uma vez: não adianta mudar os caminhos, mas

sim o jeito de caminhar”.

Em um dos encontros, um participante do grupo

comunicou seu afastamento devido a uma cirurgia de

redução de estômago que sofreria:

Eu queria dizer para vocês que eu terei que me afastar do grupo. Eu fui chamado para fazer uma cirurgia de redução de estômago e agora é isso que está me faltan-do. Eu quero poder caminhar, andar de ônibus, hoje eu não caibo nas poltronas do ônibus. Eu quero poder comprar roupas, sair, dançar, voltar a trabalhar. Eu tenho só 35 anos e quero mais é viver.

Escutar o desejo desse participante e percebê-lo

como responsável por sua própria vida é cuidar de forma

integral, é tomá-lo como sujeito capaz de ter autonomia

para fazer suas próprias escolhas. o rompimento com

o paradigma tradicional desloca o objeto de cuidado

da doença para o sujeito em sua existência-sofrimento

(alvEs, gulJoR, 2006).

através de trocas, os participantes transformam suas

questões em problemas e realizam novas ações, na tenta-

tiva de solucioná-los. a fala de cada um pode convidar

o outro a novos entendimentos, ampliando os domínios

de significação: “ao escutar as outras histórias, eu pude

rever a minha própria história”. o grupo possibilita a

experiência genuína da alteridade como valor orienta-

dor de vida. Estamos mergulhados em uma sociedade

centrada no indivíduo, onde o outro serve como objeto

de usufruto de cada um. o contato com o coletivo pode

despertar novos posicionamentos frente a esse modo de

individualização dominante que perpassa as formas do

sujeito se relacionar consigo e com os outros: “No início

eu achava que os meus problemas eram maiores e mais

importantes do que os dos outros”.

outro ponto importante foi a percepção de que os

resultados alcançados vão além do espaço grupal: “o que

a gente vive aqui, leva para lá fora. Quando eu estou

em casa eu penso naquilo que a gente conversou aqui”.

a vivência pode servir para “descristalizações de lugares

e papéis que o sujeito-indivíduo constrói e reconstrói

em suas histórias” (bEnEvidEs, 1995, p. 152): “antes eu

pensava que o meu problema era o maior de todos, só

pensava em mim”.

Ver o grupo como disparador de novos modos de

subjetivação, é considerar que as diferenças, e não as

igualdades, possibilitam novas formas de existir e signi-

ficar a vida. Em grupo são desenvolvidas as habilidades

interpessoais, o desempenho de papéis designados pela

cultura, a participação nos processos coletivos e as so-

luções para os problemas.

“Esse grupo é forte porque aqui a gente fala a

verdade. Eu venho aqui porque me faz bem”. Essa força

à qual o membro do grupo se refere mostra que poder

falar do cotidiano e de seus diferentes atravessamentos

é saudável e produz autonomia. o cuidado para além

do sintoma da dependência incentiva o sujeito a buscar

outras respostas, a dar novos sentidos aos seus desejos e

às suas relações libertando-se, assim, dos sintomas. E aí

que reside a sua força.

Em nossos encontros, os participantes procuravam

outras maneiras de viver a vida. ao invés de usar drogas

para ‘aliviar’ sentimentos, pensavam na companhia da

família, dos amigos e, muitas vezes, na companhia de

si mesmo.

Na metade do ano, os participantes começavam

a chegar um pouco antes do horário do grupo para

conversar entre eles dentro do caPs, sem a presença dos

‘doutores’. Era uma conversa informal, ‘mais livre’, de

‘amigo’. Nos grupos, os participantes mencionavam que

gostariam de se encontrar: “fora do caPs, a gente poderia

marcar um churrasquinho”. Nesse momento, o grupo

passou a caminhar com mais autonomia ou, segundo

Page 120: Saude Em Debate_n75

118

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

Maturana e Varela (1997), a partir de um andar auto-

poiético. ainda de acordo com esses autores, o grupo

já funcionava como dispositivo para o desenvolvimento

de duas características básicas do viver: a potência de

criação de si e sua capacidade de autonomia, produzin-

do o aumento progressivo das potências criativas e de

autonomia na busca de novas composições de si.

PARA FINALIZAR

Este trabalho, escrito por vários outros além de

mim, buscou contribuir com a criação de campos de

atuação que reivindiquem a singularidade, a multiplica-

ção de modos de subjetivação, o resgate da criatividade,

tomando a clínica como desvio. tivemos como objetivo

abrir reflexões acerca de cuidados em Saúde Mental,

incentivando mais pesquisadores a criar problematiza-

ções e construir outros saberes. Não tenho a pretensão

de fechar a discussão e nem de afirmar que a clínica de

grupos voltada para a produção de subjetividade seja

melhor ou pior do que outras modalidades de grupo ou

da individual, mas procurei mostrar que o modelo de

atenção integral e o espaço grupal possibilitam que os

sujeitos não fiquem tão fragmentados em sua escuta.

a ação terapêutica proposta foi a de cuidar da pessoa

a partir da escuta de sua vida, com a intenção de produzir

outros modos de existência, potencializando, dessa froma,

a saúde, a autonomia e a liberdade, mesmo que isso se mos-

trasse desafiante. Foi preciso pensar em uma clínica integral

voltada para outras produções subjetivas; um cuidado que

considerasse a complexidade de vida dos sujeitos, tomando

o sofrimento psíquico, no caso o consumo de álcool e dro-

gas, não apenas como algo provocado pelo indivíduo, mas

como algo decorrente de uma produção social.

No desenrolar dessa experiência, pude perceber

que o grupo funcionou como dispositivo quando pro-

duziu pequenas rupturas nos modos de subjetivação

do coletivo em relação ao sofrimento, às relações e às

histórias individuais. o desenvolvimento desses atri-

butos produziu nos sujeitos um aumento de algumas

potências criativas e da autonomia, construindo novas

composições de si.

R E F E R Ê N C I A S

alvEz, d.; gulJoR, a. o cuidado em saúde mental. In: PinhEiRo, r.; mattos, r. cuidado: as fronteiras da integralidade. rio de Janeiro: UErJ/IMS/abRasco, 2001. p. 221-240.

bEnEvidEs, r.d.B. dispositivos em ação: o grupo. In: lancEtti, a. (org.). Saúde e loucura 6. São Paulo: Hucitec, 1997.

______. grupo e produção. In: lancEtti, a. (org.). Saúde e loucura 4. São Paulo: Hucitec, 1995.

______. grupo: a afirmação de um simulacro. 1994. tese (doutorado) – Faculdade de Psicologia da PUC, São Paulo, 1994.

bEnEvidEs, r.d.B.; JosEPhson, S.C.; catalán, l.E.g.; mascaREnhas, W.F.; santos, a.d.; olivEiRa, F.P. a desinstitucionalização da loucura, os estabelecimentos de cuidado e as práticas grupais. In: Jacó-vilEla, a.M.; cEREzzo, a.C.; RodRiguEs, H.B.C. (org.). clio-Psyché hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. rio de Janeiro: relume dumará/FaPErJ, 2001.

bERnaRdEs, a. restos da existência: articulações entre o público e a psicologia. Entrelinhas. Revista do conselho Regional de Psicologia. Porto alegre, ano 8, n. 38, p. 3-12, mar./abr. 2007.

Page 121: Saude Em Debate_n75

119

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

bEzERRa, J. Considerações sobre terapêuticas ambulato-riais em saúde mental. In: tundis, S.; costa, N. (org.). cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001.

biRman, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 5 ed. rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

boff, l. Cuidado: o ethos do humano. In: fERREiRa, g.; fonsEca, P. conversando em casa. rio de Janeiro: Sette letras, 2000. p. 73-78.

bRasil. Ministério da Saúde. grupo Hospitalar Concei-ção. Relatório Social 2005. disponível em: <http://www.ghc.com.br/default.asp?idmenu=outrasPuclicacoes>. acesso em 15 jan. 2007.

______. Política Nacional sobre Drogas/Brasília: Presi-dência da república. Secretaria Nacional antidrogas, 2005. p. 22-24.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde. A política do MS para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. SVC/CN – dSt/aids. 2a ed. revista e ampliada. Brasília: Ministério da Saúde, 2004a.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde. departamento de ações Programáticas Estra-tégicas. Saúde Mental no SUS: os Centros de atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004B.

______. V. grupo de mulheres e histórias de vida: por um processo de desnaturalização na prevenção do HIV. In: czEREsnia, d.; santos, E.; baRbosa, r.; montEiRo, S. AIDS: pesquisa social e educação. São Paulo: Hucitec/abRasco, 1995. p. 116-117.

cEccim, r.B. Saúde e doença: reflexão para a educação em saúde. In: mEyER, d. (org.). Saúde e sexualidade na escola. Porto alegre: Mediação, 2000. p. 37-50. Série Cadernos de Educação Básica.

coimbRa, C. a (de)formação psi: alguns analisadores. In: RodRiguEs, H.; lEitão, M.; baRRos, r. (org.). grupos e instituições em análise. 3 ed. rio de Janeiro: record/rosa dos tempos, 2002. p. 19-41.

dElEuzE, g. conversações. rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

foucault, M. O nascimento da clínica. rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.

gioRdan, a. as principais funções de regulação do corpo humano. In: moRin, E. (org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 226-42.

guataRRi, F. a transversalidade. In: guataRRi, F. Revo-lução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 88-105.

guataRRi, F.; RolniK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.

luz, M. Políticas de descentralização e cidadania: no-vas práticas de saúde no Brasil atual. In: PinhEiRo, r.; mattos, r.a. (org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. rio de Janeiro: UErJ/IMS/abRasco, 2001. p. 17-37.

mattos, r. a. os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: PinhEiRo, r.; mattos, r.a. (org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. rio de Janeiro: UErJ/IMS/abRasco, 2001. p. 39-64.

matuRana, H.; vaREla, F. De máquina a seres vivos: autopoiese – a organização do ser vivo. Porto alegre: artes Médicas, 1997.

mEdEiRos, P.; bERnaRdEs, a.; guaREschi, N. o conceito de saúde e suas implicações nas práticas psicológicas. Psicologia: teoria e pesquisa. Brasília, v. 21, n. 3, p. 263-269, set./dez. 2005.

Page 122: Saude Em Debate_n75

120

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

miRanda, l. Subjetividade: a (des)construção de um conceito. In: souza, S. Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. rio de Janeiro: Sette letras, 2000.

moRaEs, M. o modelo de atenção integral à saúde para tratamento de problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas: percepções de usuários, acompanhantes e profissionais. ciência e Saúde coletiva, rio de Janei-ro, v. 13, n. 1, 2008. disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000100017&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 29 Jan. 2008.

naffaf nEto, a. Psicoterapia em busca de Dionísio: Nietzsche visita Freud. São Paulo: Escuta, 1994.

nEvEs, C.; JosEPhson, S. a crítica como clínica. In: machado, l.; lavRadoR, M.; baRRos, M. Texturas da psicologia: subjetividade e política no contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p. 99-108.

Passos, E. Prefácio. In: ziEgElmann, l. Psiquiatria So-cial contemporânea: narrativa de uma trajetória clínica. Petrópolis: Vozes, 2005.

RolniK, S. desejo em três movimentos. In: RolniK, S. cartografia sentimental: transformações contempo-râneas do desejo. Porto alegre: Sulina/UFrgS, 2006. p. 31-37.

santos, C.E. Uma breve reflexão sobre o tratamento da drogadição. In: mERhy, E.; amaRal, H. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo: aderaldo & rothschild, 2007. p. 193-201.

ziEgElmann, l. Vidas em movimento: como viver num mundo assim. Porto alegre: ritter dos reis, 2003.

______. Psiquiatria social contemporânea: narrativa de uma trajetória clínica. Petrópolis: Vozes, 2005.

recebido: abr./2008

aprovado: jul./2008

Page 123: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 121

Panorama do tratamento dos usuários de drogas

no rio de JaneiroAn overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro

“É muito antes do ópio que minh’alma é enferma”Fernando Pessoa

RESUMO Este artigo reflete sobre a construção de uma rede de assistência

em álcool e outras drogas no Rio de Janeiro durante 1980 a 2004, mediante

movimento da Reforma Psiquiátrica e os primórdios da formulação de políticas

públicas no campo. Utiliza-se de abordagem qualitativa, baseada na história

de vida de atores sociais, e sua relação com a implantação de instituições e

serviços ligados a este cuidado especializado. Apesar da implantação de um

modelo de assistência baseado nos centros de Atenção Psicossociais, neste período

permaneceram várias contradições e dicotomias, como se o modelo da Reforma

Psiquiátrica passasse ao largo das práticas efetivamente propugnadas.

PALAVRAS-CHAVE: Assistência à Saúde Mental; Dependência química;

Reforma dos serviços de saúde.

ABSTRACT This article deals with the reflexion, concerning the installation of

a service for the assistance of alcoholics and drug-addicts in Rio de Janeiro, during

the period of 1999 to 2004, by means of the Psychiatric Reform movement which

anticipated the public policy of treatments in the field. It covers a qualitative

approach based on the history of the social actors and its relations with the

introduction of services and instructions devoted to this specialized care. Despite

the implantation of an assistance model based on the psychosocial scope centers,

during the period it was verified a lot of contradictions and dichotomies, like

the Psychiatric Reform model would navigate far from the effectively supported

practices.

KEYWORDS: Assistance to Mental Health; Drug addiction; Health services

reform.

Magda Vais sman 1

Mari se ramôa 2

artemis Soares Viot Serra 3

1 Mestre e doutora em Psiquiatria pelo

Instituto de Psiquiatria da Universidade

Federal do rio de Janeiro (IPUB/

UFrJ); coordenadora da Unidade de

Problemas relacionados ao Uso de

Álcool e outras drogas (UNIPrad) do

Hospital Escola São Francisco de assis

(HESFa) da UFrJ; médica psiquiatra

desta unidade.

[email protected]

2 Mestre e doutora em Psicologia

Clínica pela Pontifícia Universidade

Católica do rio de Janeiro (PUC-rio);

supervisora do Centro de atenção

Psicossocial para Álcool e outras drogas

(CaPS ad) Mané garrincha, do rio de

janeiro.

[email protected]

3 Mestre em Serviço Social pela Escola

de Serviço Social (ESS) da UFrJ;

assistente social da UNIPrad/HESFa/

UFrJ.

[email protected]

Page 124: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

122 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

I N T R O D U ç Ã O

o estudo é sobre a construção de uma rede de aten-

ção ao uso de drogas no estado do rio de Janeiro. Nos

últimos vinte anos foi observada uma discrepância entre

as propostas e implementações de serviços pautados no

movimento da reforma Psiquiátrica1, no que se refere

à assistência à loucura e dependência de drogas.

o objetivo foi desenvolver um histórico dessa as-

sistência e da situação dos dispositivos de tratamento.

Utilizou-se uma abordagem qualitativa com entrevistas

com profissionais representativos do campo e análise

de cadastros de serviços. Neste período, prevaleceu a

iniciativa privada na oferta de serviços e no treinamen-

to de recursos humanos, devido à ausência de política

pública. Mas, a partir de 2002, o Ministério da Saúde

estabelece política para o setor2.

Nos primórdios da estruturação deste campo, os

serviços ambulatoriais ou hospitalares eram privados e

inspirados em experiências pessoais3. tinham a hipótese

de que a vivência pessoal construiu uma prática bastante

solidária4, mas, pouco teorizada, com influências norte-

americanas e metodologia pragmática. Nesse período,

existia um profundo debate entre profissionais da Saúde

Mental, no âmbito da reforma Psiquiátrica, referente

às noções de doença, de periculosidade e da internação

como exclusão social entre outras.

o paralelo entre o campo da Saúde Mental e a

organização de serviços de drogas, teve o objetivo de

contribuições para conscientização da necessidade de

consolidação e desenvolvimento de políticas públicas

na área em nosso estado. Em 1980 surgiram os Centros

de atenção Psicossocial (caPs), dispositivos usados

para psicóticos e neuróticos graves, como resposta à

ineficácia do sistema ambulatorial em reduzir o núme-

ro de internações em hospitais psiquiátricos. Mas os

dependentes de drogas que se encontravam internados

em hospitais psiquiátricos ou que já estavam sendo

atendidos em ambulatórios, com várias reinternações,

não foram beneficiados por tal política, a não ser no

caso de comorbidade.

o termo ‘dependência química’ apareceu freqüente-

mente nas falas dos entrevistados referentes a serviços neste

período estudado. ressaltando a noção de doença, valori-

zando o produto em si e confundindo as várias formas de

relação do usuário com as drogas, como o uso, abuso e a

dependência. a ‘dependência química’ apresenta-se como

objeto dos campos dos saberes médico e jurídico, numa

ênfase dada à droga, o que pode levar a ações repressivas,

com caráter de ‘guerra às drogas’ e à manutenção do

desaparecimento do sujeito. No campo do saber médico

o dependente de outras drogas é visto como doente que

requer cuidados especializados e no campo jurídico como

doente e criminoso5. deve-se pensar em uma assistência ao

usuário de drogas que não o remeta sempre à sua impotên-

cia e sim a sua potência de vida, pois é justamente isso que

o paciente busca em seu afã por um grande êxtase.

1 No contexto de reforma, a Psiquiatria difere da Saúde Mental. de acordo com Saraceno (1999, p. 144-145), a primeira se refere ao trato da doença mental e a segunda coloca no centro da intervenção a dinâmica da saúde-doença, em que, além de tratar o trabalho de prevenção e promoção de saúde também são imprescindíveis para o desenvolvimento do bem-estar das pessoas.2 Política do Ministério da Saúde para atenção Integral a Usuários de Álcool e outras drogas, 2003. Portaria 816/gM (30/04/2002) e em maio dispõe sobre as normas para funcionamento e cadastramento de caPs ad.3 “na criação de serviços e unidades de tratamento de dependentes químicos sempre estiveram presentes vários atores que têm em comum uma história escrita de muito suor, sofrimento e sangue”. (Freire, E., comunicação oral).4 Porém, segundo richard rorty (1993), as pessoas são solidárias quando aceitam as diferenças, o que não ocorreria, portanto, num grupo de iguais.5 a legislação a respeito (1976 a 2001) sempre foi muito confusa, pois um usuário e traficante eram criminalizados e penalizados, pois sempre houve graves dificuldades de se avaliar essa distinção, visto que muitos usuários, em função da situação de violência nas ‘bocas de drogas’ optam por comprarem grandes quantidades de substância para uso, mas seriam enquadrados como traficantes, pois o critério usado pela Justiça é o de quantidade.

Page 125: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

123VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Mas o que houve historicamente para que o campo

tenha se organizado isoladamente da Saúde Mental

e das propostas de políticas públicas, até o final dos

anos 1990?

Um setor da medicina tentou preencher a falta de

políticas específicas na área, com iniciativas privadas,

marcadas pelo isolamento, entendendo a internação

como medida terapêutica ou como o tratamento.

Pensou-se na organização de serviços para usuários

de drogas no campo da Saúde Mental e a possibilidade

de articulação de diversos saberes para a construção de

uma prática com os usuários, que se baseie em uma

assistência de âmbito territorial6, na prática possível dos

caPs ad e na constituição de uma rede.

METODOLOGIA

Utilizamos a abordagem de pesquisa social em

saúde como apreensão da realidade e a estratégia de

‘história de vida’ (minayo, 1996, p. 126-129) por ser

apropriada para ser traçada uma história dos primeiros

serviços para dependentes de drogas no rio de Janeiro

e conseqüentemente, sobre impasses e possibilidades de

construção de uma rede para atendimento de usuários

de drogas.

Foram realizadas seis entrevistas com atores que

identificamos a partir de nossa vivência no campo da

assistência, como importantes, os quais atuaram no

período inicial de 1980 a 1990.

Posteriormente, procedemos à análise qualitativa

das histórias de vida contidas nestes depoimentos e foi

desenvolvida uma análise do discurso, o que possibilitou

o levantamento de algumas questões.

Paralelamente, realizou-se um levantamento das

instituições disponíveis no estado do rio de Janeiro

até agosto de 2004, a partir de dados organizados pelo

Conselho Estadual antidrogas, e do cadastro orga-

nizado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade

Federal do rio de Janeiro (iPub/UFrJ) em parceria

com o nEPad/UErJ.

ALGUNS ASPECTOS CONJUNTURAIS

atualmente vive-se uma pandemia de drogas com

a explosão do consumo, da criminalidade e da violên-

cia a elas relacionadas a partir da década de 1980. Se

anteriormente, nos anos 1970, o uso de drogas estava

aliado a um enfrentamento político, jovens protestavam

contra a política militarista norte-americana no bojo da

guerra do Vietnã e manifestavam seu apoio a Martin

luther King pela paz, hoje a relação do sujeito com a

droga é outra, sendo a droga representada por um ob-

jeto de consumo, em uma busca desenfreada por prazer

individualista (Ramoa, 1999).

o resultado da política de repressão ao tráfico de

cocaína dos países sul-americanos, estabelecida pelos

Estados Unidos e Europa, o Brasil torna-se importante

rota e parte considerável da produção passa a ser destina-

da ao consumo interno, com conseqüente agravamento

da violência urbana.

a partir da década de 1990, o uso de drogas, sua

produção e comercialização passaram a representar um

problema mundial ao lado da aids, fome, violência e

corrupção. torna-se conseqüentemente motivo de posi-

cionamento da organização das Nações Unidas (oNU)

na 20ª Sessão Extraordinária da assembléia geral das

6 território entendido não apenas como região, mas no sentido de um pulsar das relações entre horizontalidades e verticalidades. as horizontalidades serão dos domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais. (santos, M.; silvEiRa, M., 2002.)

Page 126: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

124 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Nações Unidas em 12 de dezembro de 1996, quando

foram propostas medidas de cooperação internacional

no enfrentamento do problema das drogas.

Houve também neste colóquio o reconhecimento

do princípio de ‘redução de demanda’, essencial no

enfrentamento do problema, com o compromisso de

introduzir programas e estratégias nacionais pretenden-

do-se obter resultados significativos e mensuráveis até

2008 (bRasil/sEnad, 2001). assim, em 2001 o Brasil

adota em âmbito nacional uma Política antidrogas que

representa um avanço, ao aderir as diretrizes da ‘redução

da demanda’, ao invés de priorizar somente ações de

cunho repressivo e de segurança e um retrocesso, no

que se refere ao que já vinha acontecendo em termos de

política de redução de danos. Em 1998, a Casa Militar

da Presidência da república assume a coordenação da

Secretaria Nacional antidrogas (Ramos, 1998).

a proposta de redução da demanda corre o risco de

ser atrelada à idéia de criminalizar o usuário e/ou depen-

dente de drogas e responsabilizar tal parcela da população

pela existência do tráfico de drogas, ao invés de questionar

a necessidade de descriminalização da droga.

Porém, a institucionalização e a globalização do

narcotráfico na contemporaneidade devem ser levadas

em consideração como questões que apontam para a

necessidade de uma assistência ao usuário de drogas, que

seja pautada em uma prática territorial, visto que deve

pensar em criar condições de enfrentamento do tráfico

de drogas a partir de alternativas de lazer, de trabalho

etc., para que o usuário de drogas e que muitas vezes

se introduz no tráfico para obter a droga, adquira de

fato e de direito seu lugar de cidadão na sociedade, não

sendo visto como doente ou criminoso, mas como uma

existência em sofrimento (PRocóPio: 1999, p. 70- 94;

RottEli; lEonaRdis; MauRi,1990, p. 17-59). a reforma

Psiquiátrica traz a preocupação não só com a doença,

mas com o sujeito que sofre e foi influenciado pelo mo-

vimento de reforma Sanitária na sua constituição7.

OS SERVIçOS PARA USUÁRIOS DE DROGAS E

SUA PERIODIZAçÃO

Há pouco tempo no setor público só havia a re-

clusão nos hospitais psiquiátricos como proposta de

‘tratamento’ para usuários de álcool e outras drogas. os

serviços psiquiátricos encontravam-se8, em sua grande

maioria, altamente despreparados tecnicamente para

enfrentar esta questão. Não havia centros de atenção

psicossocial especializados, ambulatórios, hospitais-dia,

leitos hospitalares, etc. o primeiro centro de tratamento

especializado para usuários de drogas foi o Centro de

recuperação de dependentes químicos – cREdEq9, con-

veniado com o Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu

na década de 1980 e havia dificuldade para ter acesso ao

mesmo, cujo período de internação era de cem dias, o

que implicava em baixa rotatividade do leito hospitalar.

Em meados dos anos 1980, a conjuntura epidemioló-

gica do uso abusivo de drogas era evidente e com isso

surgiu uma demanda de atenção médica e psicológica

mais especializada, visto que o atendimento em hospi-

tais psiquiátricos, desde seu surgimento, trouxe como

herança dos hospitais gerais, a visão de filantropia e de

atendimento leigo-religioso.

7 amarante (1995, p. 93-99) apud Silveira da Silva (2000) destaca três momentos da estruturação da reforma Psiquiátrica Brasileira: 1-trajetória alternativa (de meados de 1970, no movimento contra a ditadura militar); 2-trajetória Sanitarista (no início dos anos 1980, profissionais reformistas da saúde incorporam-se ao aparelho de Estado); 3-trajetória da desinstitucionalização (desconstrução/invenção), que surge na I Conferência Nacional de Saúde Mental, abrindo o caminho para a mudança do Movimento dos trabalhadores em Saúde Mental para o da luta antimanicomial.8 ainda hoje a situação não é muito diferente.9 cREdEq – instituição da assistência Social evangélica.

Page 127: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

125VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

logo, no rio de Janeiro, até a década de 1980, ou

se tinha uma alta quantia para custear um tratamento

especializado ou ia-se para o hospício. Naquele momen-

to era predominante a filosofia de tratamento baseada na

exclusão do usuário do contexto social, laboral e familiar.

a internação em clínica especializada constituía-se como

a única alternativa de tratamento.

Surgem, então, os primeiros serviços de atenção

a dependentes de drogas na cidade do rio de Janeiro,

cuja historiografia encontra-se sintetizada no Quadro

1 (em anexo 1)10.

Nos depoimentos levantados e já mencionados

anteriormente é bastante relevante que a história pessoal

destes precursores com a droga, funcione como um me-

canismo propulsor de criação de serviços, podendo levar

a uma posição de maior solidariedade ou de maior difi-

culdade de suporte teórico para as referidas práticas.

o motivo em se envolver no cuidado aos usuários

de álcool e outras drogas deve-se à existência de algum

membro com este problema na própria família ou por

vivência pessoal com esta problemática. a única ex-

ceção até 2001 é o Núcleo de Estudos e Pesquisas em

atenção ao Uso de drogas da Universidade do Estado

do rio de Janeiro (nEPad/UErJ), pois a equipe de

profissionais que criou este núcleo buscou na psicanálise

subsídios para sua metodologia de trabalho em atenção

às toxicomanias seguindo o modelo francês em sua fun-

damentação prática e teórica, inclusive sob supervisão

do psicanalista francês Claude olievenstein do Centro

Marmotan de Paris.

Esta instituição foi a primeira de caráter univer-

sitário no estado, sendo responsável pela formação de

inúmeros pesquisadores deste campo de saber. desen-

volveu os primeiros levantamentos epidemiológicos

sobre o consumo de drogas entre estudantes do ensino

fundamental e médio no estado. No entanto, em face de

sua perspectiva filosófica baseada no modelo francês de

toxicomania na atuação clínica, o nEPad passou a ficar

solitário em relação a outros núcleos, pois sua área de

atuação restringia-se às drogas ilícitas, sendo os usuários

de álcool encaminhados a outros serviços.

Se por um lado o setor público não apresentava

alternativas ou condições de acesso ao dependente de

drogas, por outro a assistência psiquiátrica mostrava-se

inadequada e despreparada. diante deste panorama, o

setor privado vislumbra a possibilidade de um grande

negócio na área da saúde, sem concorrentes. todavia,

assume um papel importante e propõe como estratégia

de tratamento o modelo chamado Modelo Minne-

sota, inspirado nos passos e tradições dos alcoólicos

anônimos e que fomentou o surgimento de toda uma

geração de profissionais e instituições seguidoras de seus

ensinamentos, a partir de um centro de tratamento para

dependentes químicos chamado Vila Serena.

Esta instituição teve um papel fundamental de

formação de uma ideologia de tratamento aos usuários

de álcool e outras drogas e de articulação de uma política

privatista de atenção, não somente no rio de Janeiro

como em todo o Brasil. Vila Serena, cujo berço foi no

Estado de São Paulo, se tornou após alguns anos uma

‘franchising’, a primeira no Brasil em termos de trata-

mento de ‘dependentes químicos’, e exportou seu mode-

lo de atendimento a várias capitais brasileiras e cidades

do interior; sendo inicialmente financiada por grandes

empresas multinacionais como Mcdonald’s e a Johnson

& Johnson para a internação de seus executivos.

Fundada em l983 pelo ex-padre John Burns, o qual

trouxe ao Brasil o modelo de tratamento de abordagem

norte-americana do confronto com a realidade do adicto

e de práticas psicopedagógicas através de dinâmicas e

10 Cabe ressaltar que na retrospectiva não foi feita uma separação clara entre os setores públicos e privados, pois se sabe que são complementares dentro do SUS, cabe ao poder público: a regulamentação, normalização, auditoria e controle do sistema como já vigora para o funcionamento de comunidades terapêuticas, segundo o modelo psicossocial (resolução - rdC /anvisa, nº 101 de 30 de maio de 2001).

Page 128: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

126 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Instituição Modelo Tipo Tipo de Atenção1971-1980

Comunidade S8 1971 ComunidadeTerapêutica

Filantrópica Internação ePós-tratamento

1980-1985

Hospital Pedro Ernesto 1980Vila Serena 1983Hospital Pinel UTA 1985Hospital Estadual Pedro II * (Santa Cruz)

Psicossocial MinessottaPsicossocialPsicossocial

Universitário PrivadaPúblicaPública (SES)

AmbulatórioInternaçãoInternaçãoInternação

1985 -1990

Credeq 1985*Nepad (UERJ) 1985 OPJ 1987Clínica Contexto 1989Hospital da PM 1988Fundação Osvaldo Cruz 1988

MinessottaPsicanalistaDay-TopMinessottaMinessottaPsicossocial

Filant. (SUS)UniversitáriaFilantrópicaPrivada CorporativaUniversitária

InternaçãoAmbulatórioInternaçãoAmbulatórioInternaçãoAmbulatório

1990-1995

Clínica Jorge Jaber 1989 Clínica Aldeia 1991Casa do Caminho

MinessotaMinessotaMinessota

PrivadaPrivadaFilantrópica

InternaçãoInternação Internação

1995-2000

Cepral/UFRJ 1995projad/UFRJ 1996Unidade Certa* 1996 (Casa de Saúde Dr. Eiras)Centro Vida 1996Projeto Bem-Te-Vi* 1997-1999

PsicossocialPsicossocialMinessotaMinessotaMinessota

UniversidadeUniversidadePrivada (SUS)FilantrópicoFilantrópico

AmbulatórioAmbulatórioInternaçãoCentro-diaAmbulatório

Santa Casa da Misericórdia (RJ) 1998NAAD 1998Integrarte Petrópolis 1998Celeiro da Saúde 1999Caps ad Estadual Centra-Rio 1999Rede FIA-19981. Criaa UFF (Niterói) 19982. Resgate (Campos) 1998 3. Ceata (Duque de Caxias) 1998 4. AADEQ* (Jacarepaguá)* 2000-2005 5. CASA DO LINS* Fundação Simonton IBMR 1999-20056. Reencontro Casa da Vila (S. João do Meriti) 19987. Gaia (Volta Redonda)8. amai (Campos) 9. Casa de Guaratiba* (Rio de Janeiro) 1998-2000Cead/deprid (SEAS)1998Clínica Michelle de Morais 2000Projeto Nossa Casa (deGase) 2000

PsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessota Psicossocial

PsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessotaPsicossocialMinessota Minessota PsicossocialMinessota MinesotaMinessota Psicossocial

UniversidadePúblico (SMS)FilantrópicoFilantrópicoPúblico

UniversitárioONGONGONGONGONG ONGONGONGPúblicoONG (SEAS)Público

AmbulatórioAmbulatórioCentro-diaCentro-diaHospital-dia

Centro-diaAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioInternaçãoAmbulatórioInternaçãoAmbulatório

2001 - 2005

Cepuad/UFRJ 2001-2005*Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (deGase) 2001REVIVA (Barra Mansa) 2001Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 uNiprad/UFRJ 2005Caps ad Raul Seixas 2003Transformando Viver (FIA) 2005Semente do Amanhã (FIA) 2003Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001

PsicossocialMinessota PsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessotaMinessotaMinessotaMinessota

Universidadedeprid-SEJPúblicoONGONGUniversidadePúblico (SMS)ONGONGPúblico (SEAS)Público (SEAS)

AmbulatórioAmbulatórioInternaçãoInternaçãoInternaçãoAmbulatórioHospital-diaCentro-diaInternaçãoInternaçãoInternação

2001 - 2005

Cepuad/UFRJ 2001-2005*Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (deGase) 2001REVIVA (Barra Mansa) 2001Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 uNiprad/UFRJ 2005Caps ad Raul Seixas 2003Transformando Viver (FIA) 2005Semente do Amanhã (FIA) 2003Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001

PsicossocialMinessota PsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessotaMinessotaMinessotaMinessota

Universidadedeprid-SEJPúblicoONGONGUniversidadePúblico (SMS)ONGONGPúblico (SEAS)Público (SEAS)

AmbulatórioAmbulatórioInternaçãoInternaçãoInternaçãoAmbulatório

Centro-diaInternaçãoInternaçãoInternação

*Não realizam mais esse tipo de assistência. o Hospital Estadual Pedro II, após participação em curso de atualização na área de álcool e outras drogas, para a zona oeste, promovido em 2007 pela coordenação de saúde mental do município do rio de Janeiro, tenta reativar atendimento a dependentes de drogas. Fonte: Catálogo de Serviços para dependência Química, 4ª edição, Conselho Municipal de Entorpecentes (comEn), Prefeitura do rio de Janeiro; Catálogo de Serviços Núcleo de Estudos e Pesquisas em atenção ao Uso de drogas da Universidade do Estado do rio de Janeiro, Universidade Federal do rio de Janeiro (nEPad/UErJ/UFrJ)

Quadro 1 - Principais serviços na área de álcool e outras drogas de 1971 a 2005 no rio de Janeiro.

Page 129: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

127VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

palestras baseadas na filosofia dos grupos de mútua-

ajuda. outra forma de atuação deste grupo preconizava

a intervenção específica para ‘dependência química’ nas

empresas, mais conhecidos como Programas de assis-

tência ao Empregado (PaE), através de treinamento

de assistentes sociais e supervisores, que ao identificar

casos de ‘usuários pesados’11, deveriam encaminhá-los

para tratamento interno em Vila Serena. após a alta da

internação de 28 dias, em média, os trabalhadores se-

riam acompanhados pelas assistentes sociais no setor de

trabalho nas empresas, sendo que estes grupos nos locais

de trabalho foram chamados de pós-tratamento12.

Em Vila Serena também era ofertado um grupo de

reflexão e acompanhamento para ex-residentes e que

fazia parte do chamado pós-tratamento (buRns, 1995,

p. 25-27). Isto implica na idéia de que ‘tratamento’ se

faz sob regime de internação e que o seguimento não

é tratamento e sim pós-tratamento, ou seja, posterior

à exclusão social, em que pese ficar marcada como

instrumento terapêutico à semelhança do tratamento

moral dado aos loucos de toda sorte dos primórdios da

psiquiatria pineliana.

Naquela época, havia uma carência de profissionais

aptos para o atendimento aos dependentes. Médicos e

outros profissionais estavam distantes desta realidade;

não havia elo de identificação, além da sabida falta

total de preparo de profissionais da área de saúde e da

Saúde Mental. Surge então como proposta de atenção

aos usuários: utilizar-se daqueles que vivenciaram o

processo de uso de drogas e que saíram do ‘pesadelo

das drogas’13, através da ajuda de grupos de mútua-

ajuda, seriam justamente os que estariam aptos a tratar

dos dependentes – surgem, então, os conselheiros em

dependência química.

Vila Serena trouxe a prática do aconselhamento14,

ofereceu cursos e palestras a leigos e profissionais inte-

ressados em temas de dependência de drogas. Baseada

na metodologia da Fundação Halzenden/Minnesota, a

qual valorizava a ponte com os alcoólicos anônimos,

o grupo dirigente de Vila Serena sai fortalecido por

membros dos movimentos de mútua-ajuda. Nesse pe-

ríodo, com a valorização profissional da metodologia dos

12 passos, há uma estimulação também de criação de

grupos de Narcóticos anônimos e de familiares (na-

Ranon), já que se iniciava o grande ‘boom’ de consumo

das drogas ilícitas.

Neste cenário de ambientes de tratamento percebe-

se o surgimento de um novo ator na figura do ex-depen-

dente, o qual se prontifica a contar seu drama pessoal a

outro, ainda em fase de recuperação, possibilitando, a

princípio, que o internado ou residente realize a iden-

tificação a partir de suas vivências pessoais. Estes conse-

lheiros passam a atuar junto da equipe de saúde como

agentes de motivação e em certas unidades até mesmo

como figura central em programas de recuperação sob

regime de internação, conforme ainda hoje é adotado

na grande maioria das comunidades terapêuticas15 que

oferecem tratamento ‘leigo’ e sem a necessidade da pre-

sença de pelo menos um médico clínico/psiquiatra na

equipe, conforme a Portaria anvisa 101/2001.

Esta modalidade de atuação, ‘aconselhamento’,

até então não existia no escopo de atuação da equipe

11 termo utilizado por entrevistado.12 Esta abordagem compreende a questão das drogas como sendo uma doença de caráter exclusivamente orgânico e moral, sendo necessário o reconhecimento e a reparação do mal cometido a outros pelo uso da droga. o cunho religioso evangélico esteve presente desde a fundação dos alcoólicos anônimos (Ramoa, 1999).13 termo utilizado por entrevistado.14 ocupação muito consagrada nos Estados Unidos e desconhecida até então no Brasil.15 No estado do rio de Janeiro, a experiência das comunidades terapêuticas teve pouco êxito. No entanto, a Comunidade S8 em Niterói, criada em 1971, bastou para formar posteriormente uma forte tradição evangélica de atenção a dependentes. Esta comunidade leiga e de caráter filantrópico foi a pioneira e se mantém hoje como a mais antiga instituição de tratamento de dependentes .

Page 130: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

128 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

de Saúde Mental. Foi e continua sendo mal interpre-

tada e sem maiores aportes técnicos e teóricos ou de

representação profissional. Verificou-se, assim, que o

aperfeiçoamento e o treinamento foram desde o início

uma grande preocupação do pessoal que atuava nesta

área. No caso de aconselhamento, contudo, houve um

verdadeiro ‘boom’. todos se arvoraram de cuidadores de

dependentes de drogas e houve uma vasta proliferação

de pequenos treinamentos, de modo geral capitaneados

pelas clínicas privadas para atender a qualquer interessa-

do, sem quaisquer requisitos acadêmicos prévios.

No período de 1980 a 1989, o papel da equipe de

Saúde Mental e do profissional de saúde ainda tinha

pouca relevância. Esta situação perdurou até 1990,

quando se se constataram inúmeros casos de comorbi-

dade psiquiátrica16.

Exceto a necessidade premente de utilização de téc-

nicas específicas de terapia de família e de outros suportes

psicoterapêuticos, os psiquiatras assumiram naquela

época a liderança de muitas equipes. Mas, começava a

se delinear uma psiquiatria diferente na relação com o

poder médico, em que o cuidado é obrigatoriamente

compartilhado com o restante da equipe, frente por um

lado, ao pobre arsenal psicofarmacológico disponível, e

por outro, à magnitude do problema ‘drogas’ com suas

múltiplas causas e a necessidade de atuação multidisci-

plinar, assumindo-se, assim, o compartilhamento das

decisões em grupo, seja com relação ao diagnóstico ou

para traçar, em conjunto, as estratégias terapêuticas no

plano de trabalho. Negociam-se metas com o próprio

paciente que assume um papel ativo no seu tratamento.

Enfim, em todos os centros (com orientações meto-

dológicas diversas) abandonava-se uma postura clínica

baseada na forma hierárquica de cuidado e passava-se

a uma atuação mais horizontal contando-se com uma

equipe multidisciplinar.

até 1995, o modelo predominante no rio de

Janeiro foi centrado no hospital e totalmente desar-

ticulado com o sistema ambulatorial. Em termos de

seguimento, existia o que se chama ainda hoje de pós-

tratamento, geralmente um atendimento semanal em

grupo, pelo prazo de 12 meses, o mesmo ocorria nos

programas financiados pelas empresas. Estas encami-

nhavam seus empregados às clínicas particulares, que

realizavam um acompanhamento, geralmente dentro

da empresa, em grupos de empregados que passaram

por internação em clínica particular. o próprio ter-

mo ‘pós-tratamento’ já mostra o quanto se enfatiza

que o tratamento do dependente de drogas se dá via

internação em um centro de tratamento e em regime

de exclusão. Não se falava ainda em reabilitação psi-

cossocial e reinserção social, pois pela metodologia dos

12 passos a abstinência e sua manutenção eram a única

meta no tratamento.

outro modelo de assistência aos usuários foi a

comunidade terapêutica, mas praticamente não existiu

modelo de assistência em nosso estado, exceto pela pre-

sença da Comunidade S8. No entanto, foi largamente

adotado em vários estados brasileiros, principalmente

por comunidades ligadas às entidades religiosas católicas

e evangélicas17. realizava acompanhamento de pós-in-

ternação por nove meses, o qual envolvia o ambulatório

16 Estudos americanos em epidemiologia de comorbidade de transtornos relacionados ao álcool, drogas e outras desordens psiquiátricas como o Epidemiologic cathment Area (ECa) Study mostram que mais da metade dos usuários de álcool e/ou de drogas teriam, pelo menos, uma comorbidade associada. No caso da cocaína, 76% dos usuários teriam um transtorno psiquiátrico adicional. assim, existiriam as seguintes prevalências: 15,7% no último mês, 19,5% nos últimos seis meses e 32,7% ao longo da vida. Em outro estudo importante, o National comorbidity Survey (NCS) de 1994, estima que 48% de 8.098 entrevistados entre as idades de 15 a 54, reportaram abuso de substâncias e de álcool e/ou de transtornos psiquiátricos ao longo da vida. dos 26,6% que possuíam algum transtorno ligado ao uso de substância, a metade seria devido ao álcool. Quadro de ansiedade (24,9%) e doenças afetivas (19,3%) respondem pela maioria destes transtornos. (apud Beeder, a.B; Millman, r.B, 1997)17 a comunidade terapêutica baseia-se num modelo que busca integrar diversas abordagens: a médica (psiquiatria e clínica médica), a psicossocial (o modelo de base psicanalítica, terapia familiar) e a cultural (atividades de caráter espiritual, recreativo e intelectual), preconizando um regime de internação muito longa, em torno de nove meses, com fortes características de incentivo a mudanças comportamentais.

Page 131: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

129VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

de dois meses e a freqüência a grupos de mútua-ajuda. E

os trabalhos da Clínica day top e Synanon18 dos Estados

Unidos são adotados como sistema de tratamento.

No período de 1995 a 2000 inicia-se a inclusão de

novos atores no panorama de assistência aos usuários de

álcool e outras drogas no estado, até então dominado

por iniciativas lucrativas. Houve um importante avanço

e inicia-se o processo de especialização dos serviços em

nossa área, com a criação na Universidade Federal do rio

de Janeiro (UFrJ) do Centro de Estudos e reabilitação

do alcoolismo (cEPRal) no Instituto de Neurologia

(INdC) e do Programa de assistência ao Usuário de

drogas (PRoJad) do Instituto de Psiquiatria (iPub), bem

como, a implantação na Santa Casa da Misericórdia dos

Programas de tabagismo e de alcoolismo.

Finalmente, inicia-se neste período, no âmbito da

universidade, a consecução de sua missão primordial

que é a de treinamento, ensino e pesquisa. São defen-

didas as primeiras teses universitárias no rio de Janeiro

neste campo de saber. Consolida-se, no rio de Janeiro,

uma nova geração de professores e pesquisadores sobre

dependência de drogas e com grandes perspectivas de

criar novas linhas de pesquisas no futuro. No âmbito

privado de ensino criam-se as primeiras pós-graduações

em dependência química na Universidade Estácio de Sá

e no Instituto Brasileiro de reabilitação (IBMr) para

formar, capacitar e oficializar novos profissionais da área

de Saúde Mental e afim, desejoso de atualizarem um

conhecimento algumas vezes previamente adquirido na

suas práticas, mas sem a sistematização de um ensino

formal acadêmico.

ocorre um verdadeiro boom nesta área, até então,

tão carente. Viu-se a instalação maciça de novos serviços

e mesmo de novas formas de financiamento do setor

público e foi aberto um amplo leque de parcerias entre

o setor publico filantrópico e de oNgs (organizações

não-governamentais) consignados no Programa de

atenção a Criança e ao adolescente Usuário de drogas,

da Fundação para a Infância e adolescência, ligada a

Secretaria de ação Social e Cidadania do estado permi-

tindo uma ampla cobertura a outras cidades do estado

do rio de Janeiro. totalizam sete unidades ambulatoriais

e de internação e três instituições ligadas à prevenção

instaladas e que mantém convênios com a FIa. os

modelos de tratamento são os mais diversos, desde

serviço universitário como o da Universidade Federal

Fluminense, aos de cunho religioso e são oferecidos

programas a adolescentes ‘infratores ou não’, na área de

prevenção, internação e ambulatorial.

Neste momento histórico surgem duas novas

instituições que trazem um novo paradigma para o

panorama da assistência pública no estado: o Centro

de recuperação de adictos (cEntRa-rIo), o primeiro

hospital-dia público na zona sul da cidade criado no final

de 1998, que apresentou um crescimento vertiginoso no

volume de atendimentos aos usuários de álcool e drogas,

atualmente conta com cerca de cem casos novos/mês

o que confirma a nosso ver a previsão de que ainda há

uma grande demanda reprimida de pessoas com estes

transtornos que necessitam de ajuda.

o segundo momento foi com a implantação do

setor de atendimento ao usuário de álcool e outras drogas

junto ao Conselho Estadual antidrogas (cEad). o cEad

logo assumiu a tarefa do estabelecimento de diretrizes

políticas na área de assistência a dependência de drogas.

as recomendações preconizadas durante o I Fórum Esta-

dual antidrogas, realizado pelo cEad, cuja tarefa foi de

organizar as políticas de atuação no setor de prevenção,

tratamento e reabilitação de dependentes, desenhadas

naquele encontro. o cEad, através do dEPRid, assume

18 Segundo Saád (2001, p. 18), por volta de 1953, surge na Califórnia uma nova modalidade de tratamento, a comunidade terapêutica denominada Synanon. Seu fundador utilizou conceitos de comunidades terapêuticas psiquiátricas da medicina militar e conceitos de alcoólicos anônimos, mas a comunidade tera-pêutica estava mais compatível com os conceitos de reabilitação psicológica da visão criminal do uso de drogas, exceto que estava empenhada em construir uma comunidade policialesca como um passo para a redenção dos adictos.

Page 132: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

130 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

a missão de operacionalizar uma política de assistência

aos usuários de drogas em nosso estado. deixa de ser

um órgão meramente consultivo, passando a ocupar um

espaço político de ponta, em termos da formulação de

políticas de saúde pública na área de alcoolismo e outras

drogas e na assistência ao usuário de drogas. Naquele

momento político o governo do estado do rio de Janeiro

assumiria através do cEad uma política de assistência

aos usuários enfatizando o seu vetor social no estado.

assim, ao assumir a função de assistência e acolhimento

aos usuários de drogas e à suas famílias, favorecendo a

eqüidade e acessibilidade ao cuidado, de forma universal,

modifica drasticamente o panorama da assistência que

no início da década passada estava restrito às clinicas

privadas, a algumas obras filantrópicas ou ao hospital

psiquiátrico. Não se pode deixar de ressaltar o fato de

que durante esse período vinham sendo pensadas formas

de implantação de uma política pública para o setor,

no campo da Saúde Mental e que a iniciativa do cEad

de implantar um espaço de assistência ocorre de forma

totalmente desarticulada com as propostas divulgadas

pelas Conferências Nacionais de Saúde Mental, estando

inclusive, na ‘contramão’ de tal proposta, que privilegia

uma assistência pautada no modelo de reabilitação psi-

cossocial, não se baseando na internação como elemento

primordial de uma assistência.

Na virada do século, ou seja, de 1999 para 2000,

assiste-se a um crescimento de 300% nos atendimentos

no cEad. Pelas estatísticas divulgadas no ano de 2001,

observou-se um aumento de mulheres dependentes de

drogas procurando ajuda, a maioria associada ao uso

indiscriminado de tranqüilizantes. diante do enorme

incremento de seu ambulatório, o cEad propõe ao

governo do Estado a implementação da primeira

clínica popular de internação pública especializada no

estado, a Clínica Michelle de Morais, em dezembro de

1999, localizada no bairro de Santa Cruz no espaço

arquitetônico asilar, onde funcionou o Hospital Psiqui-

átrico raimundo Nonato. Em 2001 é implementada

a segunda clínica de regime de internação, a clínica

ricardo Iberê gilson, em Valença, na qual funcionou

um reformatório para adolescentes infratores. E a

terceira clínica Nise da Silveira em Barra Mansa. tais

unidades (perfazem o número de três, com proposta de

expansão, tendo cada uma 90 leitos disponíveis) estão

ligadas à Secretaria de ação e desenvolvimento Social

e relegam ao SUS/Secretaria de Estado da Saúde um

papel secundário na formulação e implementação desta

política, o que tenta ser modificado a partir de uma

política de Saúde Mental implantada pelo Ministério

da Saúde e que privilegia a implantação dos caPs ad.

a partir de 2001.

o iPub/UFrJ, ao criar o Programa de Estudos e

assistência a Usuários de drogas (PRoJad/UFrJ), faz no

contexto de tornar-se um centro de referência formador

de recursos humanos junto ao Ministério da Saúde no

tocante ao treinamento e capacitação de profissionais

do setor público que atuarão nos Centros de atenção

Psicossocial para Álcool e outras drogas (caPs ad), os

quais seriam implementados a partir de 2003.

No campo da Saúde Mental não foi traçado até

2001, alguma política oficial específica para a depen-

dência de drogas ainda que por parte do SUS houvesse

previsão orçamentária para recuperação dos ‘viciados’19.

Pelo contrário, no Brasil, o foco das políticas públicas de

álcool e outras drogas saíram do âmbito do Ministério

da Saúde e foi para o âmbito do Ministério da Justiça,

inicialmente com a criação do Conselho Federal de

Entorpecentes (confEm) em 1987, o qual pautou o

momento de sua atuação no plano governamental nos

últimos anos no estabelecimento de políticas ligadas à

ações de repressão aos entorpecentes.

19 artigo 32 § 1ºque diz que metade da receita de que trata o inciso I do artigo um deste artigo, apurada mensalmente, a qual será destinada à recuperação de viciados.

Page 133: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

131VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Em 2001, o Brasil adota em âmbito nacional uma

Política antidrogas que representa um grande avanço ao

aderir às diretrizes da redução de demanda, no lugar

de priorizar somente as ações de cunho eminentemente

repressivo e de segurança. opera a partir de quatro dimen-

sões da ação antidrogas: prevenção, repressão, tratamento

e recuperação, reinserção social e a redução de danos.

o Ministério da Justiça ao assumir a liderança na

questão álcool e outras drogas, torna uma questão de

estado por força de pressões internacionais. Posterior-

mente, após a 20ª reunião das Nações Unidas em l998, a

Presidência da república extingue o confEm e transfere

suas atribuições ao gabinete Militar da Presidência da

república com a criação da Secretaria Nacional antidro-

gas (sEnad) e fomenta seus desdobramentos aos níveis

estaduais e municipal na luta antidrogas. ou seja, o

‘combate’ às drogas passa a ser visto como uma política

de capital importância para a preservação e manutenção

do estado brasileiro.

É a partir desse contexto histórico apresentado

que se deve entender os impasses para a implantação

de uma nova política para álcool e outras drogas, como

proposta pelo Ministério da Saúde quando lança o Pro-

grama Nacional de atenção Comunitária Integrada aos

Usuários de Álcool e outras drogas (Portaria 816/gM,

30/04/2002) e quando dispõe sobre as normas para

funcionamento e cadastramento de caPs ad, bem como

sobre o Programa Permanente de Capacitação para a

rede de caPs ad (Portaria 305/SaS de 03/05/2002).

Para que se crie uma rede de atenção ao usuário

de drogas é preciso efetivar a atual legislação em Saúde

Mental, articular os diversos setores produtivos da socie-

dade, para que a mesma possa ser de fato uma sociedade

solidária, na qual cuidar do diferente torne-se uma

conduta ética por parte de todos. Para tal é preciso que

ideologias sejam desconstruídas e para isso nada melhor

do que fazer com que os profissionais de Saúde Mental

estejam inseridos nas comunidades e que possam atuar a

partir do saber da mesma e não que estejam defendidos

em posições rígidas apoiadas em saberes pré-estabelecidos.

ou seja, a criação dessa rede é algo extremamente novo e

na contramão de propostas como Justiça terapêutica ou

práticas centradas na internação como modelo de inter-

venção. Foram propostas articulares práticas novas, tais

como internação domiciliar a programas já existentes de

Saúde Mental e de saúde da família, para que se possa a

partir de demandas produzir mudanças efetivas na vida

de quem sofre ou de quem compartilha do sofrimento

associado ao uso indevido de drogas.

R E F E R Ê N C I A S

amaRantE, P.d.C.; toRRE, E.H.g. História da loucura: quarenta anos transformando a história da psiquiatria. Psicologia clínica, rio de Janeiro, Pontifícia Universi-dade Católica do rio de Janeiro, v.13, n. 1, p. 11-26, 2001.

basaglia, F. A psiquiatria alternativa: contra o pessi-mismo da razão, o otimismo da prática. rio de Janeiro: graal, 1982.

bEEdER, a.B.; millman, r.B. Patients with Psycho-pathology. In: loWinson,J; Ruiz,P; langRod, r.M. Substance abuse. 3. ed., New York: Willians & WilKins, 1997.

bRasil. Ministério da Saúde. ato portaria n. 816/gM, de 30 de abril de 2002. texto do ministro de Estado da Saúde. Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Atenção comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília, dF: 2002. disponível em: <http://www.saudemental.med.br/ad.html>. acesso em 24 nov. de 2008.

Page 134: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

132 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

______. gabinete de Segurança Institucional. Secre-taria antidrogas. Política Nacional Antidrogas. Brasília, 2001. disponível em:<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/PNad_VersaoFinal.pdf >. acesso em: 24 nov. 2008.

______. gabinete de Segurança Institucional. Secretaria antidrogas. O Sistema Nacional Antidrogas e a Redu-ção de Demanda. Brasília, dF, 2001. disponível em: <http://sidornet.planejamento.gov.br/docs/cadacao/cadacao2005/downloads/0665.PdF>. acesso em: 24 nov. 2008.

______. Ministério da Saúde. Secretária Executiva. Secretária de atenção a Saúde. Coordenação Nacional dSt/aids. A política do Ministério da Saúde para aten-ção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, dF: 2003.

______. agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria colegiada n. 101, de 30 de Maio de 2001.

buRns, J. O caminho dos doze passos: tratamento de dependência de álcool e outras drogas. São Paulo: loyola, 1995.

costa, J.F. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. rio de Janeiro: taurus, 1988.

minayo, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4. ed. rio de Janeiro: hucitEc/abRasco, 1996.

PRocóPio, a. O Brasil no mundo das drogas. 2. ed. Pe-trópolis: Editora Vozes, 1999.

Ramoa, M.l. A desinstitucionalização da clínica na re-forma psiquiátrica: um estudo sobre o projeto caPs ad. tese (doutorado em Psicologia Clínica). departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do rio de Janeiro, 2005.

______. O grupo de auto-ajuda em dois contextos: al-coolismo e doença mental. dissertação (Mestrado em Psicologia Clinica). departamento de Psicologia da PUC - rio, 1999.

Ramos, S.P. Secretaria Nacional Antidrogas: um progresso para trás. Editorial. Boletim da abead, jun., 1998.

RoRty, r. Solidariedade ou objetividade, Novos Estudos cebrap, v. 36, p. 109-121, jul. 1993.

RotElli, F.; lEonaRdis, o.; mauRi, d. desinstituciona-lização, uma outra via. In: nicácio, F. (org.). Desinsti-tucionalização São Paulo. hucitEc, 1990. p. 17-59.

saád, a.C. tratamento para dependência de drogas: uma revisão da história e dos modelos. In: cRuz, M.; baRRos, S. (org.). Álcool e drogas: usos, dependência e tratamentos. rio de Janeiro: Edições IPub/Cuca, 2001.

santos, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2002.

saRacEno, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Belo Horizonte/rio de Janeiro: te Corá Editora/Instituto Franco Basaglia, 1999.

sERRa, a.S.V. Esqueceram de mim: políticas públicas de atenção em saúde em relação ao uso, abuso e de-pendência de álcool e outras drogas para crianças e adolescentes no rio de Janeiro. dissertação (Mestrado). Escola de Serviço Social da Universidade Federal do rio de Janeiro, 2007.

silvEiRa d.a.; silva, a.C. Reformulando a vida: o de-safio na inserção social e na construção da cidadania de usuários de saúde mental. dissertação (Mestrado em Psicologia) – departamento de Psicologia da PUC - rio, 2000.

soaREs, l.t. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2001.

recebido: abr./2008

aprovado: nov./2008

Page 135: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 133

Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência

em Saúde Mental na Estratégia Saúde da FamíliaTick-men and their women: a report about

Mental Health issue in Family Health Strategy

RESUMO Este trabalho apresenta os resultados de uma intervenção psicossocial

planejada para atender mulheres que estavam usando medicação ansiolítica. Esta

intervenção foi organizada por uma equipe de profissionais do centro de Atenção

Psicossocial (Caps ii) em conjunto com equipes de saúde da família (ESF). Ao todo

foram realizados dez encontros com diferentes dinâmicas de grupo, desenvolvidas

para o grupo de mulheres e ESF com o objetivo de problematizar o papel da

mulher em conjunto com o significado do remédio na construção desta identidade.

constatou-se que o grupo ajudou estas mulheres a entenderem seu sofrimento para

além do sintoma, uso racional, bem como a retirada da medicação.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; gênero; Programa Saúde da Família.

ABSTRACT This paper presents the results of a psychosocial intervention planned

to attend women who were taking anxiolytic medicines. This intervention was

carried out by a professional team from the Mental Health Services (Caps ii)

along with professional groups of the family health strategy. In total, ten weekly

meetings using different group dynamic techniques were accomplished developed

for women and professionals from the family health strategy. These meetings aimed

at discussing the women’s role, together with the meaning of the medicine in the

construction of a identity. It was found that the group helped the participants

to understand their suffering beyond the symptoms, the rational use and the

withdrawal of the medication.

KEYWORDS: Mental Health; gender; Family Health Program.

Ionara Vie i ra Moura rabelo 1

rosana Carneiro tavares 2

1 Psicóloga do Centro de apoio

Psicossocial (caPs) Beija Flor – SMS

goiânia; doutoranda em Psicologia

pela Universidade Estadual Paulista

(unEsP).

[email protected]

2 Psicóloga do caPs Beija Flor – SMS

goiânia; mestre em psicologia.

[email protected]

Page 136: Saude Em Debate_n75

134

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

I N T R O D U ç Ã O

a reforma Psiquiátrica coloca-se como um desa-

fio às ações de Saúde Mental na atenção básica, pois

confronta a lógica do encaminhamento, bem como

reafirma a comunidade como o locus para o atendimento

aos transtornos metais. É a partir deste princípio que

os Centros de atenção Psicossocial (caPs) se propõem

a trabalhar em conjunto com as equipes de atenção à

saúde da família, atualmente nomeadas como Estratégia

Saúde da Família (ESF), através de diferentes estratégias

de atuação em cada região do país.

desde as primeiras oficinas propostas pelo Mi-

nistério da Saúde, realizadas no ano de 2001, para se

avaliar a inclusão de ações de Saúde Mental na atenção

básica, houve a discussão tanto dos principais proble-

mas e situações de risco em Saúde Mental, bem como,

o direcionamento para estratégias de intervenções

comunitárias conjuntas, estudos de caso, construção

de projeto terapêutico individualizado, evitando as-

sim a lógica do encaminhamento. Percebe-se que a

princípio o governo Federal optou por uma lógica

nomeada como matriciamento (ou apoio matricial)

para a atuação de equipes de Saúde Mental em con-

junto com as ESF.

o apoio matricial é uma estratégia que busca co-

nhecer e interagir com as equipes de atenção básica em

seu território; procura estabelecer iniciativas conjuntas

de levantamento de dados relevantes sobre as demandas

em Saúde Mental no território; atender conjuntamente

situações complexas, realizar visitas domiciliares acom-

panhadas da equipe e atender casos complexos em

conjunto (bRasil, 2007).

É importante ressaltar que tais estratégias confron-

tam o modelo manicomial, pois rompem com a lógica

da especialização, e, portanto, ampliam para fora do

hospital psiquiátrico todas as estratégias de atenção em

Saúde Mental. a partir destas considerações coloca-se

a relevância deste trabalho, a qual propõe relatar uma

experiência realizada no município de goiânia a partir

do ano de 2006, entre a equipe de um caPs II que

atende a usuários com transtorno mental e duas equipes

de saúde da família.

Este trabalho iniciou-se a partir de um levanta-

mento realizado pela equipe de mulheres atendidas

nesta comunidade que faziam uso continuado de

ansiolíticos. a proposta de busca apenas por mulhe-

res ocorreu em função de estudos que indicam uma

prevalência de pessoas do sexo feminino como sendo

o público que mais faz uso abusivo de ansiolíticos.

Sendo assim, justificam-se a relevância e a contempo-

raneidade deste estudo por avaliar que a consolidação

de novos paradigmas de atenção em Saúde Mental

depende das possibilidades de reinvenção da atuação

em comunidades.

OS ENCONTROS POSSíVEIS: SAúDE MEN-

TAL E ESTRATÉGIA SAúDE DA FAMíLIA

o compromisso com a intervenção nos processos

de adoecimento, através de ações localizadas na comuni-

dade, tem sido um eixo norteador da política de atenção

básica em saúde que se fortaleceu com a implantação

da Estratégia Saúde da Família (ESF), anteriormente

nomeada como Programa de Saúde da Família (PSF).

até o ano de 2007, estas equipes totalizaram aproxima-

damente 29 mil em todo o território nacional, atingindo

cerca de 90 milhões de brasileiros.

Porém, percebe-se que essas equipes apresentam

deficiências quanto às atuações em Saúde Mental visto

a hegemonia do modelo biomédico (filho; Rocha;

Page 137: Saude Em Debate_n75

135

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

fRança, 2006). dessa forma, nota-se a importância na

reflexão e pesquisa sobre estas novas práticas que se inse-

rem no processo da reforma sanitária brasileira, elegendo

neste instante o núcleo familiar como possibilidade de

intervenção e manejo do processo saúde e doença.

Simultaneamente à implantação e implementação

das equipes de saúde da família, o Ministério da Saúde

totalizou a implantação de aproximadamente 1.100

caPs em todo Brasil.

Para detectar a necessidade de expansão da rede de

Saúde Mental, a proposta do Ministério da Saúde (bRa-

sil, 2005) é de um caPs para cada 100 mil habitantes,

porém o critério populacional não deve ser o único para

se planejar a rede de Saúde Mental, cabendo ao gestor

local junto a outras instâncias planejar os dispositivos

que melhor atendam à população local. ao avaliar-se

apenas os caPs direcionados para o atendimento aos

usuários com transtornos mentais, considera-se que os

caPs I dá resposta efetiva a 50 mil habitantes, os caPs

II dá cobertura a 100 mil habitantes, e os caPs III a 150

mil habitantes, sendo assim, de acordo como Ministério

da Saúde, há déficit em todas as regiões brasileiras, pois

atualmente os caPs estão assim distribuídos: região

Norte com 0,19 caPs; região Nordeste com 0,28 caPs;

região Centro-oeste com 0,27 caPs; região Sudeste

com 0,34 caPs e região Sul com 0,41 caPs por 100

mil habitantes.

Mesmo ao se considerar um mapa com tantas

deficiências, para um país de dimensões continentais,

é importante ampliar o debate sobre a Saúde Mental,

pois a lógica do território como espaço de relações e

trocas, que permeiam os princípios do caPs e da Saúde

da Família, terminam por contribuir para a conver-

gência de ações apoiadas por um mesmo paradigma

em saúde.

a integração prevista entre os caPs e a ESF passa

a ser discutida sob um novo enfoque quando, o Minis-

tério da Saúde (2008) publica a Portaria 154 em 24 de

janeiro de 2008. tal portaria cria os Núcleos de apoio

à Saúde da Família (nasf), compostos por profissionais

de diferentes áreas de conhecimento com o objetivo

de apoiar, atuar em conjunto e compartilhar com a

ESF, práticas em saúde nos territórios sob responsabi-

lidade das mesmas. a portaria recomenda a presença

de pelo menos um profissional de Saúde Mental na

implementação das equipes dos nasf, porém, não há

exigência que este profissional esteja lotado nos caPs

do território, mas apenas que esteja lotado em uma

das unidades de saúde do território. tal fato deve ser

objeto de discussão dentro de cada município, pois

ficará a critério do gestor local a escolha da composição

e lotação das equipes dos nasf. Esta proposta fomenta

novos debates, e propõe que profissionais dos caPs

fiquem atentos para que as nasf e os caPs não passem

a desenvolver atividades paralelas, mas que possam

funcionar em rede para a atenção em Saúde Mental

no mesmo território.

ao mesmo tempo em que novos dispositivos são

criados, os trabalhadores de caPs e equipes de saúde da

família já têm construído experiências muito ricas em

Saúde Mental, mesmo que nomeadas diferente, mas que

mantém entre si a lógica do matriciamento, onde são

priorizadas a supervisão, o atendimento compartilhado

e a capacitação em serviço, com o objetivo de aumen-

tar a capacidade resolutiva das ações de Saúde Mental

naquele território.

a atuação de forma compartilhada permite a

integralidade das ações e favorece o trabalho de ques-

tões de forma transversal como o conceito de gênero,

o qual é capaz de interligar situações de exploração,

discriminação, violência, salientando determinantes

sociais e culturais que interferem na saúde de mulheres.

Para melhor especificar como o conceito de gênero se

inscreve de maneira importante no cotidiano de Saúde

Mental, são discutidos alguns estudos que abordam

esta temática.

Page 138: Saude Em Debate_n75

136

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

INTERFACES SAúDE MENTAL E GÊNERO

Para confrontar o cotidiano excludente das re-

lações em sociedade é necessário pensar as relações

historicamente construídas de exploração da mulher,

pobre, negra, analfabeta, louca, desempregada que mora

longe e sofre violência física por parte do parceiro. dar

nome, cor, sentido, data e hora para o sofrimento, pode

possibilitar aos trabalhadores e usuários dos serviços

construírem reflexões sobre o que estão vivenciando,

possibilitando a transformação desta identidade nome-

ada como vítima-doente, podendo ser reposicionada

e não só ceder à mera repetição de uma identidade

pressuposta pelo outro (ciamPa, 2001).

ao se procurar estudos que tentam compreender as

trajetórias e pontos de aproximação e afastamento das

categorias Saúde Mental e gênero, percebem-se duas

grandes bases teóricas: abordagens epidemiológicas com

base no modelo biomédico e abordagens sociológicas

que tentam compreender os determinantes sociais e as

representações compartilhadas que estão presentes no

fenômeno.

os estudos de base epidemiológica (NunEs Filho;

BuEno; NaRdi, 2000) afirmam que a prevalência de

transtornos mentais leves é maior entre mulheres,

principalmente em áreas urbanas. Com relação ao

transtorno depressivo, ele ocorre três vezes mais em

mulheres que em homens, tais dados avaliam de forma

essencialista a Saúde Mental, transformando sofrimento

em adoecimento.

Por outro lado, as abordagens sociológicas irão

enfatizar os estudos sobre como as situações de vio-

lência, exploração e gênero interferem no processo

saúde-doença. Como exemplo pode-se citar o estudo de

adeodato; Carvalho; Siqueira e Souza (2005), no qual

em uma amostra de 100 mulheres que foram agredidas

por seus parceiros e fizeram denúncia na delegacia da

Mulher do Ceará, 72% apresentaram quadro sugestivo

de depressão, 78% queixavam-se de sintomas de ansie-

dade e insônia, 39% confirmavam ideação suicida e 24%

iniciaram o uso de medicação ansiolítica após as situa-

ções de agressão. Mesmo que tal estudo seja norteado

pela semiologia psiquiátrica, ele é válido no sentido de

apontar como a rede de conflitos sociais que, em alguns

casos configuram-se também como violência intrafami-

liar, é constituinte do campo da Saúde Mental.

a situação de violência familiar constrói diferentes

processos e resistências, porém, pode-se avaliar o quanto

crianças, adolescentes e mulheres (mães de crianças,

vítimas de abuso sexual) também apresentam conflitos

e sofrimento diante da lei do silêncio imposta pelas

relações de poder (aRaúJo, 2002).

Pode-se também, encontrar discussões como as rea-

lizadas por Maragno; goldbaum, gianini e Novaes, em

que se detectaram diferenças significativas na prevalência

de transtornos mentais comuns em determinados grupos

populacionais, sendo maior entre mulheres, idosos e

pessoas com menor renda ou de menor escolaridade.

Este estudo foi realizado em regiões periféricas da ci-

dade de São Paulo e demonstra o quanto os processos

que envolvem o sofrimento psíquico conectam-se aos

indicadores de vulnerabilidade social.

Neste cenário de turbulência das relações de violên-

cia e exploração sociais, é necessário salientar o conceito

de gênero como categoria que se afasta dos princípios

essencialistas ao tentar explicar o ser humano, e tenta

investigar a realidade de maneira plural, histórica e

cultural (guaciRa,1997). Neste sentido, pode-se pensar

como as experiências vivenciadas por mulheres, que

não se igualam sob esta nomenclatura, podem produzir

‘sofrimentos psíquicos’ (reforça-se aqui o plural porque

também plural será o sofrer) diante da significação que

dão e recebem sobre seu cotidiano.

Como exemplo desta perspectiva, cita-se o estudo de

alves (2002) no qual o sofrimento descrito por mulheres

idosas, ao narrarem suas histórias de vida, é nomeado

Page 139: Saude Em Debate_n75

137

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

como ‘nervoso’, ou seja, relatam como uma vida vinculada

à pobreza e violência gerando experiências de fragilização,

e tais experiências são objetivadas num sofrimento cultu-

ralmente compartilhado, como relatos do nervoso.

a partir da concepção de que Saúde Mental e gêne-

ro tecem fios que podem ser tocados nas relações entre

profissionais de saúde e comunidade, pode-se pensar em

tais fios que ao mesmo tempo em que produzem sentidos

para as mulheres, também constroem barreiras entre

profissionais e pacientes, na medida em que existam

trabalhadores que não conseguem mais ouvir o sofrer e

o transformam em dor ou querelância, e a resposta para

este problema será a coisificação-medicalização.

Com base no que foi exposto acima, pode-se refletir

o grande investimento que o Brasil tem feito a fim de

criar novos dispositivos de atenção em Saúde Mental.

dessa forma, torna-se essencial que os trabalhadores de

Saúde Mental estejam envolvidos nesse processo, trans-

versalizando o aparato biomédico com possibilidade de

intervenções que possam enriquecer não só o referencial

teórico, mas também as estratégias utilizadas.

Sendo assim, fundamenta-se a discussão de gênero

como um dos prismas que pode transversalizar este ema-

ranhado, pois esta temática é capaz de tocar diferentes

experiências, ao mesmo tempo em que desencadeia

reflexões pertinentes ao viver em comunidade.

a conectividade do sofrimento psíquico às questões

transversais da vida em sociedade, como por exemplo, as

questões de gênero, torna-se a principal referência para a

atuação em Saúde Mental. Nessa perspectiva, destaca-se

o trabalho desenvolvido por um caPs de goiânia, em

conjunto com duas equipes de saúde da família, cujo

principal objetivo foi retomar o sofrimento psíquico pelo

viés do sofrimento sócio-afetivo relacionado às questões

de gênero, e proporcionar aos profissionais de saúde

da família a ampliação das possibilidades de reflexão e

compreensão do adoecimento psíquico para além dos

aspectos biomédicos dos sintomas.

O CAPS E A ESF:

CO-AUTORIA EM SAúDE MENTAL

o trabalho desenvolvido foi planejado em conjunto

com as enfermeiras de duas equipes de saúde da família

e com os agentes comunitários destas equipes. o pla-

nejamento em conjunto teve como principal objetivo

possibilitar a aproximação da equipe do caPs com as

equipes de saúde da família e romper com o estigma de

que trabalhar a Saúde Mental é ação restrita de unidades

de Saúde Mental, cuja compreensão coloca a atuação do

ESF na lógica de encaminhamentos quando se detecta

problemas de ordem psíquica.

o planejamento deu-se por meio de reuniões com

as equipes de Saúde da Família, a fim de fazer levanta-

mento da demanda, de quais seriam os problemas viven-

ciados pela população do bairro que pudessem indicar a

existência de sofrimento psíquico. Buscou-se nesta fase

priorizar a atenção à população feminina que estivesse

fazendo uso continuado de ansiolítico ou que estivesse

solicitando à equipe de saúde o uso da medicação. Para

este levantamento foram feitas buscas em todos os

prontuários das duas equipes, a fim de detectar aquelas

famílias que tivessem mulheres em uso de ansiolíticos

e/ou de antidepressivos. Com este levantamento foram

encontradas nas duas equipes, 53 mulheres com este

perfil (27 de uma equipe e 26 de outra).

após este primeiro levantamento foram planejadas

visitas domiciliares a todas essas mulheres, a fim de

conhecer a história de vida e uso de ansiolíticos. tais

visitas foram realizadas pelos agentes comunitários de

saúde (aCS) e tiveram importante papel para a capaci-

tação em serviço dos aCS, pois constituíram elementos

de re-significações do que é adoecimento psíquico e

de como os sintomas aparecem no curso de vida das

pessoas. todos os casos visitados foram discutidos em

equipe e propiciaram aos aCS trabalhar com crenças,

tais como, ‘usam remédio porque não conseguem dor-

Page 140: Saude Em Debate_n75

138

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

mir’; e reelaborar novos significados que permitissem

compreender os sintomas como não desconectados da

vida e da realidade dessas mulheres. Com os estudos de

caso a equipe de saúde da família pôde conectar, por

exemplo, a insônia com a realidade de vida das mulheres,

com relações de poder e com questões sociohistóricas

de gênero.

o passo seguinte foi planejar quais seriam as

intervenções a serem realizadas. decidiu-se, assim, or-

ganizar reuniões semanais e convidar essas mulheres a

participarem. o planejamento das reuniões era realizado

semanalmente com as equipes de saúde da família. as

reuniões semanais com as mulheres ocorriam com a par-

ticipação de duas psicólogas do caPs, de uma enfermeira

da equipe de saúde da família e de uma aCS. após cada

reunião com o grupo de mulheres foram realizadas reu-

niões com todo o restante dos aCS, a fim de apresentar

os conteúdos trabalhados, avaliar o desenvolvimento do

grupo de mulheres e planejar o que seria trabalhado na

semana seguinte.

os encontros semanais com as mulheres tinham

como objetivo problematizar o papel da mulher na re-

alidade histórico-social, em conjunto com o significado

do remédio na construção da identidade feminina. Fo-

ram desenvolvidas dinâmicas e vivências que pudessem

transportar as mulheres ao núcleo de seus sentimentos

e sofrimento, como meio de fazer a junção entre os

sintomas (que exigiam o uso da medicação) e a realidade

vivenciada (opressora e impeditiva de rompimentos).

de todas as experiências realizadas destacam-se al-

gumas mais provocadoras de reflexões e importantes para

a compreensão da efetividade do trabalho ora apresenta-

do. São descritas a seguir algumas destas dinâmicas:

• apresentação com figuras: no primeiro encontro

foi realizada uma dinâmica de apresentação, cujo objeti-

vo foi conhecer as mulheres que estavam participando,

propiciar o conhecimento entre elas, esclarecer o objeti-

vo do grupo e motivá-las para a participação nos encon-

tros. Foi desenvolvida uma dinâmica de apresentação,

com gravuras de conteúdos diversos e solicitou-se que

cada uma das mulheres escolhesse a gravura que melhor

representasse o seu jeito de ser e que permitisse a sua

apresentação por meio desta gravura. Essa dinâmica foi

suficiente para uma significativa mobilização de algumas

mulheres e permitiu a reflexão quanto à necessidade de

propor vivências e dinâmicas menos complexas e mais

lúdicas, a fim de evitar a auto-exposição desnecessária,

mas muitas vezes inevitável, dadas as poucas oportuni-

dades de fala e reflexões que essas mulheres têm no seu

cotidiano;

• complementação de um pensamento: foi solici-

tado que cada mulher do grupo completasse a seguinte

frase: ‘Se eu pudesse, eu trocaria meu remédio por...’.

o objetivo era possibilitar a reflexão do sentido do uso

do remédio na vivência de cada mulher, ou seja, buscar,

minimamente, conectar o sintoma gerador do uso da

medicação à realidade vivenciada por cada mulher. Nesta

dinâmica foi possível emergir conteúdos relativos ao

desejo por estabilidade financeira, à vontade de sentir-se

feliz, ao desejo de ter novamente a alegria de antes e de

retomar vínculos com familiares, o qual foi colocado por

algumas como tendo sido perdido, em função do casa-

mento, das dificuldades financeiras (muitos familiares

moravam em outras cidades ou o marido as impedia de

vê-los, etc). Foram expressos conteúdos de identidade

de gênero e sua relação com o casamento, o sofrimento

de algumas mulheres pelo fato de serem obrigadas a

romper com o seu núcleo familiar primário e ter de se

adaptar à cultura imposta pelo esposo;

• recortes de nomes e características: tal dinâmica

foi planejada, em função dos conteúdos emergentes

na dinâmica anterior com relação ao afastamento do

núcleo familiar primário. Foi solicitado que cada mu-

Page 141: Saude Em Debate_n75

139

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

lher escrevesse o seu nome e sobrenome em uma folha,

destacando cores diferentes para cada nome/sobrenome

e características que pudessem definir cada nome. o

objetivo foi trabalhar a construção da identidade destas

mulheres em cada eixo familiar (mãe, pai e esposo).

Foram emersos conteúdos relativos à formação da iden-

tidade no seio familiar, como por exemplo, a família

materna e paterna produzindo preconceito de raça; e

a construção da identidade familiar se contrapondo à

identidade construída com o casamento. ou seja, foram

conteúdos que marcaram as contradições vivenciadas

por essas mulheres, que ao se casarem renunciavam

a identidade construída em seu núcleo familiar e se

rendiam à exigência de uma aceitação incondicional da

identidade da família construída com o esposo (esposa,

mãe, cuidadora). Para o desenvolvimento desta dinâmica

houve um problema: algumas mulheres não sabiam ler

e escrever. Na reunião de avaliação deste encontro com

todos os aCS, estes avaliaram que o ambiente familiar

dessas mulheres é opressor e dificulta que os agentes

possam intervir. os aCS refletiram também sobre as

especificidades do bairro: distante, tem alto índice de

criminalidade que gera preconceito e dificulta o acesso

da população masculina a empregos, fazendo com

que as mulheres tornem-se arrimo de família. Foram

reflexões feitas pela equipe de saúde da família que,

concretamente, retiraram o sofrimento como sendo

apenas o sintoma (‘não dorme e por isso toma remédio’)

e possibilitou sua compreensão pelo viés do sofrimento

sócio-psico-afetivo.

• linha da vida: foi trabalhada a dinâmica da

linha da vida, iniciando-se aos 15 anos e utilizando

intervalos de cinco anos. Foi solicitado que cada

mulher representasse em um papel pardo (por meio

de escrita ou qualquer outra expressão gráfica, como

desenhos ou símbolos) cada período de sua vida,

iniciando-se aos 15 anos e passando pelos 20, 25, 30,

e assim sucessivamente. Com essa dinâmica surgiram

elementos que possibilitaram trabalhar questões de

gênero relativas ao papel da mulher no casamento, no

qual ficou marcado um modelo idealizado de casamen-

to perfeito e o sofrimento advindo da realidade, ou

seja, da impossibilidade de realização de uma relação

homem/mulher plena. Foram trabalhados ditados

como: ‘Quem faz o casamento é a mulher’; ‘por trás

de um grande homem há sempre uma grande mulher’.

Foi constatada a dificuldade das mulheres em abando-

narem as escolhas de forma ativa, de sair de relações

infelizes sem necessitar ‘fugir’, os rompimentos relata-

dos eram todos sem autonomia. os conteúdos foram

trabalhados buscando refletir a necessidade de que as

mulheres construam recursos pessoais e sociais que

permitam os rompimentos necessários ao bem-estar

e à Saúde Mental. dificuldade de lidar com a própria

sexualidade foi outro elemento que emergiu com essa

dinâmica e permitiu que fossem, minimamente, dis-

cutidos aspectos relacionados a gênero e sexualidade.

Na avaliação com os aCS muitos se identificaram com

os relatos das mulheres, pois a maioria eram mulheres,

e neles elas puderam refletir suas próprias vidas. Foi

evidente a coincidência do início do uso da medicação

com o confronto e a realidade do casamento infeliz.

a realização da dinâmica da linha da vida durou três

encontros e permitiu amplas reflexões, ressalta-se que o

conteúdo mais homogêneo que emergiu dos encontros

entre todas as mulheres que freqüentaram o grupo é a

condição histórico-social da identidade feminina cons-

truída para o casamento perfeito, no qual a mulher se

incumbe do papel de fazer tudo o que o homem solicita

ou deseja; nunca dizer não ao homem; e sempre permitir

que o marido sugue todas as energias. Uma condição

que coloca na mulher a posição de impossibilitada de

romper com uma relação infeliz e na qual muitas vezes

não há, inclusive, percepção dessa infelicidade, visto que

Page 142: Saude Em Debate_n75

140

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

culturalmente se o casamento não está bom é porque a

mulher está agindo errado.

Esta condição histórica da mulher de se colocar

como principal responsável pela felicidade do casamen-

to, aliada à condição do homem de não fazer concessões

na relação marital impõe à mulher, principalmente

àquela que se encontra em desvantagem socioeconômica

e educacional uma postura de não conseguir romper

com uma relação infeliz e nem superar os estigmas socio-

culturais. Houve relatos de mulheres que se percebiam

infelizes na relação, mas não tinham recursos pessoais

para superar suas dificuldades e romper com essa relação,

assim, algumas vezes, sentiam-se obrigadas a conviver

com um ‘homem-carrapato’.

a expressão ‘homem-carrapato’ foi utilizada por

uma dessas mulheres e é retomada no presente artigo

como sendo a forma mais fidedigna de expressar sua

condição de vida ao lado de um homem que a massacra

e que a impede de viver a própria vida, um homem cuja

ação se limita a sugar o sangue da uma mulher presa a

uma situação, cuja condição histórico-social a impede

de se libertar.

assim, possibilitar a essas mulheres momentos de

reflexão e compartilhamento de todo o seu sofrimento,

advindo muitas vezes de sua própria condição sociohis-

tórica, cria possibilidades de re-significação do sofrimen-

to e de ampliação de recursos pessoais e afetivos para

lidar com o seu sofrimento. Fornece condições, mesmo

que minimamente, de reelaborar o papel da mulher na

formação do ‘homem-carrapato’, pois se ela procura de

todas as formas atender a todos os desejos ou exigências

do homem, obviamente ele se sentirá muito tranqüilo na

relação e utilizará de todos os seus potenciais masculinos

para manter-se nessa condição.

após seis meses, foi realizada avaliação das atividades

no grupo, e encerramento do mesmo. Neste período

foram realizadas reuniões para estudo de caso de algumas

mulheres que participavam do grupo e estavam há vários

anos utilizando a medicação em função de prescrições

anteriores, requisitavam a continuidade da medicação

apenas porque entendiam que este tratamento era o mais

adequado, até o momento que perceberam, no grupo

realizado, que sua relação necessitava de algo mais que

abafar quimicamente seu sofrimento. após estudo de caso

com equipe do caPs, os médicos das ESF fizeram novas

avaliações para hipótese diagnóstica e, contando com

o apoio do grupo, foi possível a retirada do ansiolítico

em alguns casos, uso racional e troca de medicação em

outros. algumas mulheres que foram ao grupo em busca

do medicamento encerraram o processo compreendendo

melhor os mecanismos geradores de sofrimento e as ha-

bilidades sociais para lidar com os mesmos, sem que para

isso precisassem silenciar-se com o medicamento.

CONSIDERAçÕES FINAIS

o trabalho desenvolvido entre o caPs e as equipes

de saúde da família, como capacitação em serviço por

meio de estudos de caso e realização de grupos de gênero

possibilitou às aCS e às enfermeiras das equipes de saúde

da família a compreensão do sofrimento psíquico para

além do sintoma, pois inicialmente a associação feita

por esses profissionais era de que o uso de ansiolítico

era devido e justificado por um sintoma específico: a

insônia. ao final, todos os profissionais da equipe de

saúde da família demonstraram novas compreensões

a respeito da insônia como indicando a existência de

um sofrimento socioafetivo, mesmo que ainda não

totalmente declarado.

o trabalho em conjunto com as equipes de saúde

da família permitiu não só a aproximação das equipes,

mas também, a garantia da capacitação em serviço,

haja vista que no decorrer desta atividade, não só as

mulheres acompanhadas no grupo foram re-avaliadas

Page 143: Saude Em Debate_n75

141

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

com a possibilidade de se beneficiarem tanto das temá-

ticas trabalhadas no grupo, bem como, da utilização do

uso racional da medicação. Por outro lado, entende-se

que estes estudos de caso funcionam como capacitação

em serviço, pois o conhecimento compartilhado entre

todos os profissionais ultrapassa os casos estudados e

serve de apoio para manejos em outras situações que se

configurem demandas em Saúde Mental.

Pode-se considerar que o trabalho em equipe, com

relação à estratégia saúde da família, propicia a re-signi-

ficação do sofrimento e a ampliação das ações do caPs,

rompendo com a lógica do encaminhamento. tal ação

traz para o profissional da unidade de atenção à família a

condição de ser capaz de intervir efetivamente na Saúde

Mental das pessoas da comunidade de sua abrangência,

sem necessitar encaminhar a um serviço especializado

uma possibilidade que se dá pela transversalidade das

temáticas trabalhadas em Saúde Mental, como a pro-

posta aqui relatada de inserção da categoria gênero para

a compreensão do sofrimento psíquico.

É importante ressaltar que houve uma mudança

significativa na percepção dos aCS, pois durante este pro-

cesso eles começaram a trazer casos novos de pessoas em

grave sofrimento psíquico, que se encontravam isoladas

em casa há vários anos. Este fato chama atenção, pois,

por mais que os aCS já soubessem e trabalhassem com o

caPs nesta região, ainda assim não conseguiam enxergar

como situações de Saúde Mental os casos de isolamento

como o do exemplo acima. até mesmo a descrição de

casos novos quando precisavam solicitar visitas domi-

ciliares com a equipe do caPs, passou a ser detalhada,

contextualizada e já com as nuances de vulnerabilidade

social típicas das vivências em Saúde Mental.

a experiência de trabalho em apoio à ESF

também foi essencial para a criação de alguns pro-

tocolos para o funcionamento da atenção em rede.

Com relação à dispensação de alguns medicamentos

psicotrópicos, o caPs passou a garantir a entrega

desta medicação para as usuárias do grupo em

acompanhamento na ESF, pois tais medicações não

existem nestas unidades. também com relação ao

prontuário, foi estabelecido que haveria a evolução

do prontuário da família (ESF), como forma de pri-

vilegiar uma comunicação única, e mesmo que os/as

usuários(as) também estivessem em atendimento no

caPs, a equipe de Saúde Mental teria um prontuário

na unidade, mas manteria atualizado o prontuário na

ESF. tal conduta facilitou o monitoramento do uso

de medicamentos, pois o aCS passou, a saber, por

exemplo, o projeto terapêutico do usuário e apoiá-lo

na implementação do mesmo, seja no uso diário da

medicação, seja na busca por escolas e atividades de

geração de renda da região.

Como parte do protocolo, também com relação

às visitas domiciliares dos técnicos dos caPs, passou-

se a agendá-las com antecedência para que fossem

sempre realizadas com aCS e enfermeiras da ESF.

tal procedimento fez com que novas redes de suporte

social começassem a interagir com as famílias com

pessoas com sofrimento psíquico grave. tal fato foi e

é crucial na diminuição das internações psiquiátricas

e manejo das situações de crise, pois a família passa

a contar com vários atores, e, portanto, não mais

recorre à lógica crise-doença-internação. também a

equipe de saúde da família passou a compreender o

sofrimento psíquico conectado com as experiências

vividas, e, sentindo-se mais próxima da equipe do

caPs passou a evitar o uso da ambulância (tanto

no sentido literal como no figurado), acreditando e

reinventando estratégias para atender ao sofrer sem

necessariamente encaminhá-lo.

Novas estratégias para a compreensão do sofri-

mento psíquico também foram viabilizadas para a

equipe do caPs, que na interlocução com a atenção

básica tem conseguido aliar não só novos atores para

confrontar a lógica asilar, mas também tem encon-

Page 144: Saude Em Debate_n75

142

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

trado suporte para a criação de projetos terapêuticos

individualizados de usuários de Saúde Mental, que

sem nunca colocar os pés no caPs já começam a

estabelecer laços contratuais na comunidade, graças

ao empoderamento construído pelos trabalhadores e

trabalhadoras das ESF.

R E F E R Ê N C I A S

adEodato, V.g.; caRvalho, r.r.; siquEiRa, V.r.; sou-za F.g.M. Qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de seus parceiros. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 108-113, 2005.

alvEs, P.C. Nervoso e experiência de fragilização: narra-tivas de mulheres idosas. In: minayo, M.C.S.; coimbRa Jr., C.E.a. (orgs.). Antropologia, saúde e envelhecimento. rio de Janeiro: fiocRuz, 2002. p.153-174.

aRaúJo, M. F. Violência e abuso sexual na família. Psi-cologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 2, p. 3-11, 2002.

bRasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 154, de 24 de janeiro de 2008. diário oficial da União. Brasília, dF: Ministério da Saúde, 2008.

______. Ministério da Saúde, Secretaria de atenção à Saúde, departamento de ações Programáticas Estra-tégicas. Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. relatório de gestão 2003-2006. Brasília, dF: Ministério da Saúde, 2007.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde. daPE. Coordenação geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Bra-sil. documento apresentado à Conferência regional de reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. oPas. Brasília, dF: Ministério da Saúde, 2005.

ciamPa, a.C. A estória de Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense, 2001.

guaciRa, l.l. gênero, sexualidade e educação: uma pers-pectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes,1997.

maRagno, l; goldbaum, M.; gianini, r.J.; novaEs, H.M.d.; césaR, C.l.g. Prevalência de transtornos mentais comuns em populações atendidas pelo Progra-ma Saúde da Família (QUalIS) no município de São Paulo, Brasil. cadernos de Saúde Pública, rio de Janeiro, v. 22, n. 8, p. 1639-1648, 2006.

nunEs filho, E.P.; buEno, J.r.; naRdi, a.E. Psiquiatria e saúde mental: conceitos clínicos e terapêuticos funda-mentais. São Paulo: atheneu, 2000.

viEiRa filho, N.g.; Rocha, E.C.; fRança, E.M. Saúde mental na prática da atenção integral do programa de saúde da família. revista Brasileira de Medicina de Famí-lia e Comunidade, [online]. disponível em: http://www.sbmfc.org.br/comunicacao/revistas/7f33e427-745d-49-de-afaa-16149f0aeb6a.aspx. SBMFC, rio de Janeiro, v. 2, n. 5, p. 15-22, 2006. acesso em 17 nov. 2008.

recebido: abr./2008

aprovado: jul./2008

Page 145: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 143

Saúde Mental e atenção Básica à Saúde:

o apoio matricial na construção de uma rede multicêntricaMental Health and primary health care:

the matrix support building a multicentric net

“En medio de la maraña, Dios, la araña”.

alejandra Pizarnik

RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Básica

como uma das necessidades atuais para a continuidade da Reforma Psiquiátrica,

considerando que a atenção em Saúde Mental deve ser feita dentro de uma rede

ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usuários. Em

seguida, é problematizado o apoio matricial como arranjo de gestão para organizar

as ações de Saúde Mental na Atenção Básica e sua potencialidade como disparador

da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva

e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.

PALAVRAS-CHAVE: gestão; Saúde Mental; Atenção básica à saúde; Apoio

matricial.

ABSTRACT In this article, it is argued the insertion of Mental Health in the

basic system, as one of the current necessities for the continuity of the Psychiatric

Reform, considering that the attention to Mental Health must be made inside

an ample and linked net of cares. After that, the matrix support is analyzed as a

powerful management arrangement to organize the actions of Mental Health in

the basic attention and as a trigger for the amplification of the clinic in the health

teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system.

KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix

support.

Mariana dorsa Figueiredo 1

rosana onocko Campos 2

1 Mestre; doutoranda em Saúde

Coletiva pelo departamento de

Medicina Preventiva e Social da

Faculdade de Ciências Médicas da

Universidade Estadual de Campinas

(dMPS/ FCM/ unicamP).

[email protected]

2 doutora em Saúde Coletiva;

professora do dMPS/FCM/unicamP.

[email protected]

Page 146: Saude Em Debate_n75

144

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

I N T R O D U ç Ã O

Uma rede ou um emaranhado?

durante as últimas duas décadas, a implementação

do modelo dos Centros de atenção Psicossocial (caPs)

tem sido o principal investimento da política de Saúde

Mental no Brasil. o processo de extensão da cobertura

desses serviços demonstra a crescente e intensiva difusão

da rede substitutiva de Saúde Mental pelo país, numa

trajetória frutífera de reversão do modelo assistencial cen-

trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no

restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos

e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de

desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as

formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na

lógica sanitária hegemônica (amaRantE, 2001), o modelo

dos caPs ganhou grande visibilidade no decorrer da refor-

ma Psiquiátrica brasileira, ocupando um lugar de destaque

na reorganização da assistência em Saúde Mental.

Porém, essa rede de atenção à doença mental grave,

ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde

e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo

de forma bastante afastada da rede de atenção Básica

à saúde, resultando num certo descompasso entre as

práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua

acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra-

mentos importantes para o SUS, enquanto sistema

unificado e integral, assim como para a eficácia tanto da

atenção Básica, quanto dos caPs, devido a dificuldade

de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção

resolutiva em Saúde Mental.

Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS,

só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá-

ticas e de profundas alterações nas estruturas de poder

estabelecidas, instituindo uma lógica do trabalho inter-

disciplinar, por meio de uma rede interligada de serviços

de saúde, a qual permita a articulação das ações que, em

Saúde Mental, é uma necessidade inquestionável.

UMA REDE MULTICÊNTRICA

Considerando a complexidade das demandas em

Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão

sobre a necessidade de articular a assistência prestada

nos caPs com outros serviços de saúde, equipamentos

sociais e a rede social nos territórios, na construção de

uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,

desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos

vínculos sociais.

ainda que a clínica das psicoses e das neuroses

graves esteja baseada em cuidados intensivos de especifi-

cidade de equipamentos como os caPs (tEnóRio, 2002),

a atenção Básica tem um importante papel no processo

de reinserção social, já que está imersa nos territórios e

é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os

usuários, quanto para suas famílias. além disso, atende

a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e

é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos

principais problemas de saúde. a questão mencionada

aqui vai além da definição de qual serviço deveria se

incumbir das demandas de maior gravidade, se os caPs

ou a atenção Básica, também, e está na relação a ser

construída entre os dois tipos de serviços.

o Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define

que um caPs deve:

responsabilizar-se [...] pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do seu território e [...] desempenhar o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial. (bRasil, 2004, p. 126).

Page 147: Saude Em Debate_n75

145

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

ora, se os caPs forem considerados ordenadores da

rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando

o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação

àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto

almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar

com o conceito e imagem de uma rede multicêntrica,

em que o caPs pode funcionar como agenciador das

demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro

lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos

na atenção se destacam, em determinado momento, de

acordo com o andamento do Projeto terapêutico de cada

usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento

das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se

movimente para dar sustentação às necessidades dos

usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente

para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar

em um suporte efetivo para as dificuldades que esses

usuários possuem.

assim, destaca-se a necessidade da integração dos

serviços, há casos comuns entre os serviços, ou situações

que dizem respeito tanto aos caPs quanto à atenção

Básica. Seria o caso do usuário do caPs, aquele da

região de abrangência de determinada equipe da UBS

ou o garoto usuário de drogas que em dado momento

precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é

fundamental a articulação dos serviços, a discussão do

caso comum e o envolvimento dos diversos atores no

caso em questão.

É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde

Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já

que tem sido crescente a demanda pela atenção aos

transtornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos

geralmente sob a forma de queixas somáticas e ‘nervosas’,

transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio-

nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do

abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos,

são diversos os problemas advindos das faltas concretas

na vida, geradas pela ordem socioeconômica vigente. a

miséria em que se encontra a maior parte da população

brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se

traduz em condições de existência favoráveis às dificul-

dades afetivas, emocionais e relacionais.

Segundo a organização Mundial de Saúde (oMS)

os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da

carga mundial de doenças (oMS, 2001). No Brasil, o

Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-

ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de

cuidados contínuos, intensivos (específicos dos caPs).

Nove por cento da população apresenta transtornos

mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-

correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,

pelos quais a atenção Básica que deve responsabilizar-se

(bRasil, 2003).

Existe, ainda, um componente subjetivo associado

ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como

entrave ao tratamento, à adesão as práticas preventivas e

até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,

uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais

se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;

ou o paciente com câncer que não encontra resistência

para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-

ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF

(camPos, g.W.S., 2003).

atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de

atenção Básica vem tencionando a incorporação das

dimensões subjetiva e social na prática clínica, através

do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio

do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade

aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes

se deparem cotidianamente com problemas de Saúde

Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra

que 56% das equipes de PSF referem realizar ‘alguma

ação de Saúde Mental’ (bRasil, 2003), ainda que essas

equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com

esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade

com as famílias e as comunidades, elas se constituem

Page 148: Saude Em Debate_n75

146

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

num recurso estratégico para o enfrentamento do

sofrimento psíquico.

além disso, a oMS e o Ministério da Saúde esti-

mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos

profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori,

uma demanda específica que justifique a necessidade

de uma atenção especializada (bRasil, 2003). É o caso

da senhora que se costuma denominar ‘poli-queixosa’,

e que representa uma demanda freqüente para a aten-

ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar

com sua existência pobre de sentido, com a ausência de

espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos,

o empreendimento de longos processos psicoterápicos

e a administração de antidepressivos são insuficientes

como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros

dispositivos de atenção, disparadores de produção de

vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade

(camPos; nascimEnto, 2003).

assim, na continuidade da reforma Psiquiátrica

e para propiciar maior consistência às intervenções

em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver

estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental

na atenção Básica, promovendo a interlocução entre

os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi-

cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção

ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o

conjunto de relações sociais que determinam desejos,

interesses e necessidades, conforme gastão Wagner de

Souza Campos (2000; 2003).

Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da

atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado

por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse-

rir a Saúde Mental e outras áreas especializadas na atenção

Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador

da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. trata-

se de uma importante discussão na atualidade, já que a

estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada

em nível nacional a partir da Portaria nº 154, na qual o

Ministério da Saúde (bRasil, 2008) aprovou a criação

dos Núcleos de apoio à Saúde da Família (nasf). Similar

ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os

nasf são compostos por profissionais de diferentes áreas

especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de

Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e

resolutividade dessas equipes.

O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAúDE

E SAúDE MENTAL

“Onde a brasa mora e devora o breucomo a chuva molha o que se escondeuO seu olhar melhora o meu”

arnaldo antunes e Paulo tatit

Na proposta de Campos (1999), profundas refor-

mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde

com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-

balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. o

autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo

que os antigos departamentos especializados (outrora

verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio

especializado às equipes interdisciplinares.

Essas equipes, denominadas pelo autor como

Equipes de referência, têm como princípio a adscri-

ção de clientela, garantindo um sistema de referência

e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.

a relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-

tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.

assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele

é atendido por sua Equipe de referência, o que per-

mite o acompanhamento do processo saúde/doença/

intervenção (camPos, 1999). gradativamente, isto es-

timula a responsabilização pela produção de saúde, pois

quando o usuário passa a ter um nome e uma história,

Page 149: Saude Em Debate_n75

147

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

a implicação da equipe tende a aumentar e as respostas

profissionais a serem menos estereotipadas. as Equipes

de referência, portanto, seriam responsáveis por realizar

os projetos terapêuticos, promovendo, assim, o vínculo

e a responsabilização.

dessa forma, o apoio matricial seria uma ferramen-

ta para agenciar a indispensável instrumentalização das

equipes na ampliação da clínica1, subvertendo o modelo

médico dominante que se traduz na fragmentação do

trabalho e na produção excessiva de encaminhamentos,

muitas vezes desnecessários, às diversas especialidades,

segundo rosana onocko Campos (2003).

o apoio matricial se configura como um suporte

técnico especializado (camPos, 1999) que é ofertado a

uma equipe interdisciplinar de saúde, a fim de ampliar

seu campo de atuação e qualificar suas ações. Ele pode

ser realizado por profissionais de diversas áreas especia-

lizadas, mas estamos tomando aqui a especificidade da

Saúde Mental, considerando que as questões subjetivas

transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser

abordadas em toda relação terapêutica.

a proposta é que os profissionais possam aprender a

lidar com os sujeitos em sua complexidade, incorporan-

do as dimensões subjetiva e social do ser humano, mas

que estejam acompanhados por alguém especializado

que lhes dê suporte para compreender e intervir neste

campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe-

cimentos e ações, historicamente reconhecidos como

inerentes à área ‘psi’, são ofertados aos profissionais de

saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar

sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimento psí-

quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria

uma oferta do núcleo profissional ‘psi’ ao campo dos

profissionais de saúde (camPos, 2000), na construção

de um novo saber, um saber que se pretende transdis-

ciplinar. a transdisciplinaridade que, no sentido dado

por Passos e Barros (2000) é uma das grandes apostas

do apoio matricial.

A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização [...] da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76).

a Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa

a compor a rede matricial de apoio. Constitui uma linha

de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a

lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e

romper com o sistema de referência e contra-referência,

que produzem encaminhamentos consecutivos para as

diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-

sabilização pela produção de saúde (camPos, 1999).

a partir de discussões clínicas conjuntas, apoio para

a construção de projetos terapêuticos ou mesmo inter-

venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,

visitas domiciliares, entre outras), os profissionais matri-

ciais podem contribuir para o aumento da capacidade

resolutiva das equipes, qualificando-as para uma atenção

ampliada em saúde que contemple a complexidade da

vida dos sujeitos.

os atendimentos conjuntos com o profissional ma-

tricial têm uma importante função pedagógica, já que as

equipes podem aprender in loco a intervir no campo da

Saúde Mental e se autorizar nas ações que nem sempre

cabem nos protocolos, lidando com situações de exclu-

são social, violência, luto, as mais diversas perdas, que

não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a

própria consulta clínica. ou ainda quando se trata de um

usuário de referência do caPs que está em tratamento na

atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se

inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com

1Campos, g.W.S. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para centrá-la num sujeito concreto e singular, portador de certa enfermidade. ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeitos em sua tota-lidade, considerando o biológico como determinante do processo saúde e doença, mas também incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e cultural como outros determinantes.

Page 150: Saude Em Debate_n75

148

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

quadros psiquiátricos mais graves e o atendimento

conjunto com o apoiador matricial pode proporcionar

um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e

da doença mental, ajudando a diminuir o preconceito

e a segregação da loucura.

Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi-

te distinguir as situações individuais e sociais, comuns

à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela

Equipe de referência e por outros recursos sociais do

entorno, daquelas demandas que necessitam de uma

atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida

na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais

ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade,

pelo caPs da região de abrangência. Pretende-se, com

isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de

referência e profissionais matriciais, de modo que o

encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito

de forma dialogada.

assim, é possível promover a eqüidade e o acesso,

garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as

vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa-

vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção

em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a

articulação entre os profissionais na elaboração de proje-

tos terapêuticos pensados para cada situação singular.

o apoio matricial, portanto, provoca e explicita

uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos

papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando

as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos

diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais,

a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas

cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente

em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e

tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação

de fluxo, evitar práticas que levam à ‘psiquiatrização’ e à

‘medicalização’ do sofrimento humano.

Segundo Campos (1999), essa reordenação do

desenho institucional da rede de atenção Básica per-

mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas

necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser

enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo

a gestão do processo de trabalho e a formação de outra

subjetividade profissional, centrada no diálogo e na

transdisciplinaridade.

No entanto, deve-se reconhecer que a mudança

da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial

não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre

automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-

lhada junto às equipes, instalando espaços destinados

à reflexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e

que possam ser continentes aos problemas na relação

entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,

à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento

do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com

a pobreza e a violência. todas essas questões podem

dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-

fissionais não tiverem espaços de reflexão e formação

permanentes para processá-las, que sejam capazes de

realimentar constantemente a potencialidade do apoio

matricial, enquanto arranjo transformador das práticas

hegemônicas na saúde.

assim, afirmamos a importância de espaços

coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual

saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-

cias interligadas e complementares. Uma rede que,

sobretudo, incite o movimento de acordo com as

necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais

ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao

usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele

fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da

desresponsabilização, uma rede de salvamento e não

de captura e impotência.

Page 151: Saude Em Debate_n75

149

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008

FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

R E F E R Ê N C I A S

amaRantE, P. a constituição de novas práticas no campo da atenção psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na reforma Psiquiátrica no Brasil. Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, 2001.

bRasil. Ministério da Saúde. Secretaria de assistência à Saúde. Portaria nº 154, de 24 de janeiro de 2008. disponível em: <http://dtr2004.saude.gov.br/dab/legislacao.php>. acesso em: 10 mar. 2008.

______. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. legislação em saúde mental. 3. ed. revista e atualizada. Brasília, dF: Ministério da Saúde, 2004.

______. Ministério da Saúde. Coordenação de Saúde Mental e Coordenação de gestão da atenção Básica. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários Brasília, dF: Ministério da Saúde, 2003. (Mimeo)

camPos, F.C.B.; nascimEnto, S. P. Apoio matricial: reciclando a saúde mental na atenção básica. Campinas, 2003. (Mimeo)

camPos, g.W.S. a clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: camPos, g.W.S. (org.). Saúde Paidéia. São Paulo: hucitEc, 2003. p. 51-67.

______. Um método para análise e co-gestão de cole-tivos. São Paulo: hucitEc, 2000.

______. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. ciência Saúde coletiva, v. 4, n. 2, p. 393-403, 1999.

camPos, r.o. a gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades técnicas. In: camPos, g.W.S. (org.). Saúde paidéia. São Paulo: hucitEc, 2003. p. 122-149.

oRganização mundial dE saúdE. relatório sobre a saúde no mundo – Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Biblioteca da oMS, geneva. 2001.

Passos, E.; baRRos, r.B. a construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: teoria e pesquisa, v. 16, n. 1, p. 71-79, 2000.

tEnóRio, F. a reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. História, ciências, Saúde – Manguinhos, rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p.25-59, 2002.

recebido: abr./2008

aprovado: nov./2008

Page 152: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE150

a crise na rede: o SaMU no contexto

da reforma PsiquiátricaThe crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context

RESUMO Esta pesquisa investigou as práticas dos profissionais do Sistema de

Atendimento Móvel de Urgência (samu) no que diz respeito aos atendimentos

psiquiátricos na cidade de Aracaju (SE) e suas possíveis articulações com a Rede de

Atenção Psicossocial (Raps). A primeira etapa da pesquisa foi realizada através de

entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores do samu. Os resultados indicam

que a concepção de urgência psiquiátrica deles se baseia no conceito de agressividade

e que o tempo gasto nas ocorrências psiquiátricas e a falta de capacitação em

Saúde Mental dificultam o transcorrer desses atendimentos. Na segunda etapa,

participamos das reuniões de construção do protocolo psiquiátrico do samu.

PALAVRAS-CHAVE: crise; Urgência; Saúde Mental.

ABSTRACT This research investigated the professional practices from samu

(Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) at psychiatric cases of the city

of Aracaju (SE), Brazil, and its possible articulations to psychosocial services

network. Fieldwork first step was made with samu workers by semi-structured

interviews. The results indicate that their urgency psychiatric conception is based

on aggressiveness concept and that the wasted time at psychiatric cases support

and low training in mental health care are dificulties to emergency service. The

second step was to attend meetings to build a new psychiatric urgencies protocol

for samu.

KEYWORDS: crisis; Urgency; Mental Health.

Kati ta Jardim 1

Magda dimenste in 2

1 Psicóloga; mestre em Psicologia

pelo Programa de Pós-graduação em

Psicologia da Universidade Federal

do rio grande do Norte (UFrN);

supervisora clínico-institucional

do Centro de apoio Psicossocial

(caPs) Irmã augustinha; Membro da

coordenação pedagógica da Escola

técnica do SUS de Sergipe.

[email protected]

2 Psicóloga; doutora em Saúde Mental

pelo Instituto de Psiquiatria da

Universidade Federal do rio de Janeiro

(IPUB/UFrJ); docente do Programa de

Pós-graduação em Psicologia da UFrN.

[email protected]

apoio financeiro: Coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (caPEs)

Page 153: Saude Em Debate_n75

151

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

I N T R O D U ç Ã O

Com o avanço da luta pela consolidação da refor-

ma Psiquiátrica, que vem se desenrolando desde o final

da década de 1970 no Brasil, após concretizações impor-

tantes, nos encontramos, hoje, em um momento crucial.

Um dos grandes empecilhos do Movimento Nacional de

luta antimanicomial (MNla) e da reforma Psiquiá-

trica está diante dos nossos olhos de forma gritante: os

caminhos tortuosos de atenção e resposta à crise.

Se o intuito da reforma Psiquiátrica é questio-

nar a lógica manicomial, a psiquiatria tradicional e o

hospício, símbolo máximo de exclusão da diferença,

preconizando o cuidado em liberdade, atenção integral

e serviços substitutivos, devemos nos perguntar qual

posicionamento adotamos diante de uma pessoa em

crise. É importante mencionar que as situações de crise

são um dos principais motivos de internação psiquiátrica

no Brasil atualmente (JaRdim, 2008).

Isso porque, nesses momentos, a rede de atenção

Psicossocial (RaPs) que deveria se responsabilizar também

pela atenção à pessoa em crise, delega essa função à rede

de Urgência e Emergência (REuE). a REuE é uma das

mais medicalizadas pela sua própria tradição e apesar da

estrutura de rede pensada para organizar o Sistema Único

de Saúde (SUS), a RaPs e a REuE têm linguagem, timing e

aparelhagem muito diferentes e que, em vários momentos,

chegam a ser discrepantes, dificultando seu diálogo.

assim, ao delegar a atenção à crise para as urgências

(que por ser uma das portas de entradas do SUS, podem

regular a demanda diretamente para dentro dos grandes

hospitais psiquiátricos) sem nenhuma discussão ou

comunicação inter-redes, estaremos reforçando delibera-

damente a lógica manicomial e enfraquecendo os nossos

serviços substitutivos. tais serviços passam a operar como

meros serviços alternativos, alternativas fracas, diga-se de

passagem, visto que no momento de maior necessidade

‘devolvem’ o louco ao manicômio. Por isso, se faz neces-

sária uma discussão acerca da atenção à crise não somente

pelos serviços substitutivos, mas com foco nas conexões

inter-redes, envolvendo também a REuE e outras.

Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investi-

gar a atuação de profissionais do dispositivo móvel da

Política Nacional de atenção às Urgências, o Serviço

de atendimento Móvel de Urgência (samu), frente às

ocorrências psiquiátricas, bem como as articulações desse

serviço com a RaPs do município de aracaju (SE).

Algumas definições

antes de começarmos a falar sobre o histórico do

samu, é importante conceituarmos urgência e emergên-

cia, já que esse é o foco do atendimento prestado pelo

serviço. as várias definições destes termos ainda não são

claras para a maioria dos profissionais de saúde, que as

usam indiscriminadamente no seu dia-a-dia. Para tanto,

vamos delimitar o sentido em que estamos utilizando

esses termos para fins de esclarecimento do leitor.

Urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à

saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador

necessita de assistência imediata” (fERnandEs, 2004, p. 2).

Portanto, a urgência se caracteriza por uma situação em

que há necessidade de atendimento imediato, porém, sem

risco de perder a vida, apresentando uma gravidade con-

siderada ameaçadora à integridade física ou psicológica

da pessoa. Como exemplo podemos citar fraturas com

necessidade de imobilização e crises de asma. É no âmbito

da Urgência que se localiza o atendimento psiquiátrico.

Já a emergência é definida como a constatação de

condições de agravo à saúde que implicam em risco

de morte ou sofrimento intenso, lesões irreparáveis,

normalmente caracterizadas por declaração do médico

Page 154: Saude Em Debate_n75

152

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

assistente. os exemplos seriam as hemorragias, ataques

cardíacos, amputamentos etc. (fERnandEs, 2004). a

escolha dos conceitos foi feita mediante comparação

de algumas definições de urgência e emergência (con-

sElho fEdERal dE mEdicina, 1995; stERian, 2002;

fERnandEs, 2004 e camPos, 2005), que nos levaram

à constatação de que, salvo algumas divergências, elas

convergem para o exposto.

Em 1986, foi criado no rio de Janeiro o grupo de

Socorro e Emergência (gSE) que finalmente contava

com uma equipe composta por médico e enfermeiros

da própria equipe de saúde do Corpo de Bombeiros.

Foi nesse contexto que o samu foi instituído no Brasil,

mais especificamente na cidade de São Paulo, através de

um acordo bilateral com a França. o samu brasileiro é

estruturado com base no modelo francês, mas baseia-se

em muitos conceitos do modelo americano para seus

treinamentos, como as diretrizes do Pre Hospital Trauma

Life Suport (PHtlS)1.

Só em 2002, com a instauração da Política Nacional

de atenção às Urgências, que o samu deixou de ser um

serviço opcional existente em algumas cidades, passando

a fazer parte oficialmente do SUS como seu dispositivo

pré-hospitalar de urgência. o serviço foi regulamentado

através da Portaria 1864 gM de 29 de setembro de 2003

(bRasil, 2002; bRasil, 2003).

deste modo, conta com uma equipe composta por

médicos, enfermeiros, técnicos/auxiliares de enferma-

gem, condutores veiculares e aqueles responsáveis pelo

suporte na central de regulação2, técnicos auxiliares de

regulação Médica (taRms) e rádio operadores. o samu

atende urgências e emergências clínicas, traumáticas,

gineco-obstétricas, pediátricas e psiquiátricas; funciona

segundo regulação médica concernente à gestão dos

fluxos de ofertas de cuidados médicos, triando as ocor-

rências, a fim de evitar o uso inadequado dos recursos

públicos (bRasil, 2002; bRasil, 2003). É a regulação

médica que interliga o atendimento Pré-hospitalar

(aPH) ao hospital. a função do médico é:

julgar e decidir sobre a gravidade do caso e enviar os recursos necessários ao local, monitorar e orientar o atendimento realizado por outro profissional de saúde [...] ou [...] por um popular. Define e aciona o hospital de referência ou outro meio ao atendimento necessário. (são Paulo, 2001 apud camPos, 2005, p. 16).

a partir do recebimento de uma chamada na central

reguladora, atendida por um taRm, que deve acalmar o

solicitante e preencher um formulário eletrônico com a

localização da vítima, dados detalhados do local, pontos

de referência e o motivo da chamada. a partir de então,

o taRm passa a ligação para o médico regulador que

avalia o caso em questão, decidindo se há necessidade de

mandar uma ambulância ou se apenas uma orientação

médica basta. Se houver a necessidade de se mandar a

ambulância, ele escolherá qual delas será acionada, já

que há dois tipos de ambulância no samu: as Unidades

de Suporte Básico (USBs), que contam com uma equipe

de auxiliares de enfermagem e condutor veicular, e as

Unidades de Suporte avançado (USas) com uma equipe

formada por médico, enfermeiro, auxiliar e condutor

veicular, sendo esta última uma espécie de Unidade de

tratamento Intensivo (UtI). depois disso, o médico

decide para qual hospital, ou outro serviço da rede, será

direcionado o caso, preparando a equipe hospitalar para

receber o usuário.

1 Prehospital trauma life Support Committee and the National association of Emergency Medical technicians in cooperation with the Committee on trauma of the american College of Surgeons (1999). PHTLS: Basic and advanced prehospital trauma life support. 4a ed. St. louis.2 a regulação médica é o elemento ordenador e orientador do Sistema de atenção Integral às Urgências, que estrutura a relação entre os vários serviços, quali-ficando o fluxo dos pacientes no Sistema e gerando uma porta de comunicação aberta ao público em geral, através da qual os pedidos de socorro são recebidos, avaliados e hierarquizados. (bRasil, 2001, p. 1).

Page 155: Saude Em Debate_n75

153

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

Hoje em dia, a rede nacional do samu conta com

112 unidades implantadas. No total, 924 municípios

são atendidos pelo samu, cerca de 92,4 milhões de

pessoas. algumas das capitais brasileiras que possuem a

estrutura do samu são: aracaju, Belém, Belo Horizonte,

Brasília, Campo grande, Curitiba, Florianópolis, For-

taleza, goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Macapá,

Natal, Palmas, Porto alegre, Porto Velho, recife, rio

Branco, rio de Janeiro, Salvador, São luís, São Paulo,

teresina e Vitória3.

UM ENSAIO METODOLÓGICO

a pesquisa foi realizada em duas etapas; a primeira

em janeiro de 2007 e a segunda, de maio a setembro

do mesmo ano. a primeira etapa teve como corpus de

análise dez profissionais vinculados ao samu de aracaju,

sendo cinco deles homens e cinco mulheres, com idade

entre 25 e 36 anos, e período de vinculação ao serviço de

quatro anos e dois meses. Cinco integrantes dessa equi-

pe eram auxiliares de enfermagem, três eram médicos

reguladores, sendo que dois deles aglutinavam funções

de coordenação: um enfermeiro também coordenador

e uma assistente social gerente (contabilizando quatro

gestores). Escolhemos informantes de influência direta

nos atendimentos psiquiátricos4, na gestão das capa-

citações e na regulação médica, pontos fundamentais

para a prática. a coleta de dados foi realizada através

de entrevistas semi-estruturadas gravadas.

Para isso, construímos dois roteiros: o primeiro

deles, feito para os médicos e gestores, era composto

por nove questões e dizia respeito à Portaria 2048/gM

e às Urgências Psiquiátricas. abordava, além disso, a

reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Men-

tal e as capacitações realizadas no serviço. o segundo

roteiro de entrevista foi elaborado para os auxiliares de

enfermagem com sete questões. Neste, tratamos tam-

bém das Urgências Psiquiátricas, da Política Nacional

de Saúde Mental e da reforma Psiquiátrica, além da

formação técnica e das participações nos atendimentos

psiquiátricos. Neste momento, abriu-se espaço para

relatos de experiências.

levando-se em consideração que o funcionamento

do samu se dá através de protocolos nos quais são cir-

cunscritas e especificadas as medidas tomadas para cada

tipo de ocorrência atendida, o fato de o samu não possuir

um protocolo psiquiátrico constitui um problema.

Em maio de 2007, os integrantes das equipes dos

serviços responsáveis pelo atendimento às urgências

psiquiátricas decidiram sentar e discutir, num grupo

operativo, o que fazer com essa situação. geralmente,

quem lida com isso tende a colocar a ‘crise do paciente’

como foco de sua preocupação, não conseguindo enxergar

as necessidades e demandas excessivas da clientela que

o próprio serviço pode estar colapsando (dEll’acqua;

mEzzina, 2005). Nesse ínterim, o samu decidiu lidar

com a crise do serviço como lida com a crise do paciente:

criando um protocolo específico, uma normatização, que

serviria para produzir um padrão a ser seguido, o que

não é de todo negativo, pois é necessária a construção de

um parâmetro que guie os profissionais. Porém, haveria

problema se esses parâmetros se sobrepusessem às pessoas

e à ética de cuidado, tornando-se um mero procedimento

técnico e, por fim, mortificando as relações.

assim, a segunda etapa da pesquisa, realizada de

maio a setembro de 2007, compreendeu o acompanha-

mento das reuniões para a construção do protocolo psi-

3 Boletim: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=23745&janela=1. acesso em 6 de março de 2007. 4 tendo em vista que os profissionais que realizam o atendimento às ocorrências psiquiátricas no samu de aracaju são os médicos (indiretamente, por telefone), os auxiliares de enfermagem e os condutores veiculares (diretamente, no local).

Page 156: Saude Em Debate_n75

154

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

quiátrico e a realização dos atendimentos psiquiátricos

junto às equipes das USBs. No entanto, nesse artigo,

abordaremos somente as reuniões de protocolo.

as reuniões intersetoriais contaram com uma psi-

cóloga representante da Coordenação de Saúde Mental,

dois psiquiatras, uma médica sanitarista, a gerente do

serviço de Urgência Clínica e Mental do São José, o

coordenador clínico do samu de aracaju e da Urgência

Clínica e Mental (UCM) do Hospital Filantrópico São

José, órgão responsável pela regulação da demanda de

Saúde Mental na REuE, e o coordenador clínico do

samu estadual. Nas reuniões foram observados a relação

entre os serviços e quais direcionadores a gestão usava

para idealizar esse instrumento. além disso, a nossa

participação constituiu uma intervenção, tendo em

vista que acompanhamos a realidade dos casos assistidos

pelas ambulâncias do samu, geramos discussões a partir

dos casos assistidos e da literatura esquisada. além da

nossa participação nas reuniões, de maio a setembro de

2007 foram realizadas entrevistas abertas com alguns

dos participantes: uma médica sanitarista, responsável

pelo Núcleo de Cuidado em Saúde Mental na atenção

Básica, um dos psiquiatras, que compôs o delineamento

de cinco síndromes, base do protocolo que guiará os pro-

fissionais do samu, quanto a sua regulação e abordagem

no local de ocorrência, o coordenador clínico do samu

de aracaju e do UCM e a psicóloga representante da

coordenação de Saúde Mental.

A primeira etapa da pesquisa de campo: urgência,

tempo, capacitações e o protocolo

a primeira etapa da pesquisa de campo foi cons-

tituída por intermédio de entrevistas. os dados mais

relevantes produzidos dizem respeito a três aspectos: a

concepção que a equipe tem de urgência psiquiátrica, a

questão do tempo no atendimento, a falta de capacitação

e a ausência do protocolo psiquiátrico.

a concepção de urgência psiquiátrica foi associada

de forma unânime pelos entrevistados a ‘agressividade’.

É interessante destacar isso porque a idéia dos técnicos

de que em uma ocorrência psiquiátrica lidarão com

alguém que pode ameaçar sua integridade física os leva

às práticas adotadas nos atendimentos. Por acharem que

serão agredidos, os profissionais adotam uma postura de

defesa, que acaba se transformando em ataque, ou uma

postura de medo, que acaba gerando omissão do cui-

dado. assim, ambas as posturas geralmente progridem

para uma contenção mecânica e, para lidar com isso,

o samu conta com o auxilio do Corpo de Bombeiros,

cordas e muitas ataduras.

além das práticas in loco, a concepção da urgência

psiquiátrica ligada à agressividade também influencia

diretamente na regulação médica. Esta, por sua vez,

organiza os fluxos dos atendimentos, decide se libera ou

não uma ambulância para o caso e é responsável pelo

encaminhamento dos pacientes a um serviço de saúde

fixo. dessa forma, os reguladores acabam por selecionar

a demanda dos casos atendidos, tendo em vista que uti-

lizam a lógica de que os casos que devem ser removidos

pelo samu são aqueles que não podem ser transportados

num carro comum, ou seja, os casos que precisam de

um aparato específico para imobilização. Com isso, o

samu reforça o estigma contra as pessoas em sofrimento

psíquico e encoraja a utilização de métodos manicomiais

em seus atendimentos.

outra questão importante é a do tempo. os ser-

viços de urgência têm de funcionar da maneira mais

breve possível. Quando falamos em casos referentes à

Saúde Mental, porém, o tempo acaba se esticando. Um

dos entrevistados relatou que, em alguns momentos, os

atendimentos psiquiátricos chegam a demorar quatro

vezes mais do que um atendimento clínico. Como agir a

tempo nesses serviços significa salvar vidas, eles acabam

resistindo em liberar ambulâncias ou até mesmo em

realizar os atendimentos; entendem que uma garota com

Page 157: Saude Em Debate_n75

155

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

asma precisa muito mais de uma USB do que um louco

surtando e isso acaba fortalecendo o estigma.

apesar de o samu ter um Núcleo de Educação

Permanente, nenhuma capacitação em Saúde Mental é

ministrada atualmente, sendo que apenas duas aconte-

ceram em 2004. os gestores afirmaram que a falta de

capacitação sobre esse tema se deve à falta de informação

sobre o assunto publicada na literatura e, também, à falta

de interesse dos profissionais. Muitos técnicos afirmaram

que não gostam de realizar os atendimentos psiquiátri-

cos; quando perguntamos o motivo, responderam não

saber como agir nesses casos. É importante ressaltar

que o samu é um serviço que funciona com base em

protocolos e sua rotina consiste em segui-los, já que são

eles que guiam as atitudes dos profissionais durante as

ocorrências. Por isso, a falta de protocolo psiquiátrico

foi apontada como um item negativo, um agravante

desestabilizador do funcionamento do serviço.

atualmente, está sendo desenvolvido o protocolo

da psiquiatria pela coordenação de Saúde Mental de ara-

caju, juntamente com a gestão e os psiquiatras da UCM

e com a gestão clínica dos samus estadual e municipal.

Esse protocolo busca delinear quais critérios deverão

ser usados na regulamentação para guiar os médicos

a respeito dos procedimentos que devem ser seguidos

no caso de ocorrências psiquiátricas. delinear esses

procedimentos é importante para o funcionamento do

samu no campo da Saúde Mental, afinal, isso enquadra

o paciente psiquiátrico definitivamente no hall dos casos

atendidos e com alta resolutividade.

Entretanto, há a necessidade de segurança e, por

isso, busca-se o controle em tudo que se faz. a estabili-

dade dos espaços, porém, é ilusória e ignorar isso acaba

por emperrar os fluxos da vida, causando o sofrimento. a

saúde é a fluidez desse processo. assim, a formatação de

prática rígidas, como as propagadas pelo samu quando

se trata de Saúde Mental, acaba sendo parte mais de um

grande problema do que de uma solução.

Configurar um serviço dessa forma não seria em-

perrar os fluxos?

Será que, em lugar de enxergarmos esse ‘não saber

o que fazer’ como uma grande questão a ser extirpada o

quanto antes, não residiria aí uma grande potencialidade

de afirmação vital?

ao final dessa primeira experiência, percebemos que

somente entrevistas focadas na legislação5, na concepção

de urgência psiquiátrica e nas capacitações não levariam

a discussão muito longe, porque poderia desvelar pro-

blemas, mas seria pouco útil na proposição de soluções

práticas. Por conta disso, foi necessário dar continuidade

à pesquisa de campo com a segunda etapa, que problema-

tizaria não só as bases epistemológicas das urgências psi-

quiátricas realizadas pelo samu de aracaju, mas também o

movimento dos usuários na rede e a criação do protocolo

psiquiátrico (que ocorria desde o primeiro semestre de

2007 e não chegou à sua conclusão até então).

tendo em vista essa proposta, o espaço do samu,

como um lugar de fluxo contínuo, condensou as questões

levantadas, configurando o ponto de partida para se dis-

cutir as conexões inter-redes e o próprio funcionamento

dos atendimentos psiquiátricos. Partindo da necessidade

premente de se organizarem estratégias que dêem conta

da atenção à Saúde Mental, o samu decidiu construir o

protocolo psiquiátrico. assim, a nossa análise foi feita

a partir do acompanhamento das reuniões do grupo

operativo e, a bordo das ambulâncias, da participação

do atendimento aos casos que entram nesse circuito pelo

samu e desembocam na Urgência Clínica e Mental do

São José. Escolhemos esse destino com base na conexão

entre os dois serviços: o samu como a porta de entrada

da demanda e a UCM de São José como regulador do

fluxo das urgências psiquiátricas na rede.

5 a Portaria 2048/gM e a Política Nacional de Saúde Mental.

Page 158: Saude Em Debate_n75

156

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

Segunda etapa da pesquisa de campo: sobre as reuniões

de construção do protocolo psiquiátrico

Em maio de 2007, o samu fervilhava em meio a

uma crise decorrente de um processo que se arrastava

desde a abertura do serviço, quando a Portaria 1864/

gM de 29 de setembro de 2003 foi escrita e publicada

(bRasil, 2003). a Portaria, que institui o samu como

dispositivo móvel da Política Nacional de atenção às

Urgências (bRasil, 2002), estrutura um serviço capaz

de resolver as questões mais complicadas, de aplacar o

mal-estar nos lugares mais distantes, ainda que houvesse

a necessidade de os profissionais ficarem pendurados

numa corda de rappel para um salvamento vertical

ou embaixo de ferragens, resgatando uma vítima. os

técnicos do samu devem se tornar agentes preparados

para enfrentar qualquer situação, com ‘nervos de aço’

construídos sob um considerável alicerce identitário.

Poucas coisas poderiam tirar a estabilidade de um

serviço como o samu, mas a comoção gerada pelas ur-

gências psiquiátricas levantava questões todos os dias. os

médicos reclamavam por não saberem regular, os auxilia-

res de enfermagem tinham medo de serem assassinados

durante os atendimentos, o relacionamento com a UCM

era complicado e com os caPs, inexistente. Surgiu, então,

a necessidade de se idealizar um protocolo psiquiátrico.

Nesse sentido, ficou decidido que o delineamento

desse protocolo seria feito em conjunto pela Saúde

Mental e pela UCM, o que contribuiria para conectar

a rede. Entretanto, estavam sempre lidando com uma

linha tênue que poderia simplificar esse objetivo ao focar

na simples criação de uma normalização para diminuir

a crise, não só dos pacientes, mas dos próprios serviços

inquietos com as suas incertezas.

Não era só o samu que estava em crise. a UCM tam-

bém dava seus sinais. a sua atribuição de urgência clínica

foi retirada um mês após a sua inauguração e com isso,

todos os seus instrumentos para esse tipo de atendimento

foram desativados. Nesse sentido, o médico clínico geral,

que fazia parte da equipe, deixou de ser plantonista e

passou a ser diarista: tem de se apresentar uma vez por dia

e checar todos os internos. o caso é preocupante. alguns

pacientes com diagnóstico prévio de transtorno psiquiátri-

co com intercorrências clínicas que foram encaminhados

para lá por conta de uma regulação desatenta chegaram a

óbito graças à falta de estrutura do serviço.

geralmente, nos casos em que o solicitante atesta

que a pessoa a ser atendida tem um diagnóstico psiqui-

átrico prévio, o fluxo da rede é unilinear, ou seja, não

existe conexão direta ou indireta nem encaminhamentos

para a RaPs ou para um núcleo de atenção Básica: o

atendimento delegado à REuE começa e termina em si

mesma. Pode-se dizer que um circuito fechado é um

circuito mortificado.

o primeiro passo para o ‘tratamento’ da crise em

ambos os serviços foi programado para ser a construção do

protocolo. No entanto, o que poderia dar, de fato, corpo

à articulação e extrapolar essa norma é o que se constrói

ao longo desse processo: a aproximação dos gestores a fim

de se formar uma rede de apoio social, a familiarização

com o tema e a invenção de estratégias flexíveis capazes

de dar suporte aos trabalhadores e aos usuários.

Problemas de articulação da rede surgiram aos mon-

tes. o samu não entendia porque os caPs têm carros

próprios mas nunca podem usá-los, mesmo quando um

de seus usuários surta e precisa ser levado à UCM. a

prioridade do samu é atender pessoas que estejam nas

ruas, pacientes encaminhados de algum outro serviço

ficam em segundo lugar na escala de prioridade. a gestão

do samu justifica que pacientes nos serviços estão mais

bem assistidos do que aqueles que estão em via pública,

podendo, dessa forma, esperar para serem transportados.

Quando, em uma das reuniões, os representantes dos

caPs compareceram, a questão de que eles não têm como

atender à crise foi colocada, ou seja, eles precisariam com

urgência da ajuda do samu, pois nem sempre seus carros

estariam à disposição ou mesmo funcionando.

Page 159: Saude Em Debate_n75

157

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

Surge, então, uma questão crucial: a falta de res-

posta aos episódios de crise dos usuários dos caPs e de

outros cidadãos não vinculados aos serviços é um dos

principais fatores que contribuem para o fortalecimen-

to da lógica manicomial, exatamente por direcionar

essa demanda aos hospitais psiquiátricos, que ainda

se mantêm fortes por serem consagrados pela própria

rede substitutiva como o serviço indicado para atender

prontamente a crise do usuário por meio de internações

e intervenções medicamentosas.

Enquanto ambulatório que acompanha longitudi-

nalmente um usuário constante, essa realidade do caPs

pode ser a base da idéia, sustentada pelo grupo das reu-

niões de construção do protocolo, de que o médico é o

profissional mais capacitado para lidar com a crise, visto

que a tradição psiquiátrica das internações compulsórias

se sustenta na grande maioria das vezes por conta das

crises. da mesma forma, a falta de preparo dos profis-

sionais para lidarem com esses momentos de sofrimento

intenso é indiscutível, já que eles costumam se colocar

na defensiva, com medo do que pode acontecer. Isso

fortalece a idéia de que, nessa situação, o melhor a se

fazer é conter o paciente.

Essa posição centrada no médico, principalmente

no que diz respeito ao atendimento à crise, dificulta

os trabalhos e nos faz regredir. Como assim? Um dos

principais argumentos utilizados como justificativa para

a não-atenção à crise nos caPs é a falta de psiquiatras na

rede. Muito ainda gira em torno do psiquiatra quando

nos reportamos à crise. apesar disso, nós já tivemos vá-

rias experiências bem sucedidas de resposta à crise sem

psiquiatras ou, até mesmo, sem profissionais da Saúde

Mental6 (lancEtti, 2006).

Esses pontos mostram como a crise é o ponto cen-

tral da captura da loucura. a crise é o momento em que a

RaPs se desfaz daquele usuário e o deixa a cargo da REuE

que, mais do que qualquer outra rede, é absolutamente

medicalizada. tendo em vista que tanto a RaPs quanto

a REuE compõem o SUS, mas, não conversam muito

entre si, o que poderia ser o encaminhamento cabível

vira uma agressão à vida da pessoa.

a construção do protocolo será muito eficaz para

o samu funcionar, mas em nenhum momento foi ques-

tionado se a crise será mais bem assistida e, conseqüen-

temente, se é de um serviço padronizado e rápido ou de

um médico que lhe diga o que fazer e quais remédios

tomar que uma pessoa em crise mais precisa. Isso é uma

simplificação diante da complexidade da vida. a crise,

vista como um diagnóstico, cola as duas principais ações

de supressão: a medicação e a internação compulsórias.

tendo isso em vista, questionamos: a quem serve

esse protocolo? o que significa um protocolo nesse

contexto? Seria possível enquadrarmos as diferenças

em protocolos?

o trabalho na urgência requer uma sensibilidade do

técnico que o faça captar o que se passa no campo, produzir

sentido para o que está acontecendo, buscar informações

do usuário e adaptar as suas possibilidades às necessidades

dele. apesar de o protocolo buscar certa uniformidade,

nunca é demais lembrar que, em uma urgência psiquiátrica,

estamos lidando com pessoas em momentos de intenso

sofrimento; aliás, sofrimento que lhe é infligido por sua

diferença e desafia, questiona um mundo que preza pela

identidade. Utilizar um protocolo ao pé da letra reforça

a idéia de que a loucura precisa ser enquadrada em uma

norma, favorecendo a violência simbólica.

Para isso, trazemos à baila outros princípios do SUS

(integralidade, eqüidade e humanização), importantes

norteadores de uma prática ampla. a ‘integralidade’ con-

siste na atenção geral ao usuário, buscando atender a todas

6 Para um maior aprofundamento sobre isso consultar lancEtti, a. clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005; RotElli, F.; lEonaRdis, o.; mauRi, d. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001.

Page 160: Saude Em Debate_n75

158

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

as suas necessidades e, para isso, é importante que haja

integração das ações, pressupondo a articulação da saúde

com outras políticas públicas que tenham repercussão na

área e na qualidade de vida dos indivíduos. a ‘eqüidade’

tem como objetivo diminuir as desigualdades levando-se

em conta as diferenças, ou seja, tratar desigualmente os de-

siguais: dar mais a quem precisa de mais e menos a quem

precisa de menos (cunha; cunha, 1998). a ‘humaniza-

ção’ é a valorização dos diferentes sujeitos implicados no

processo de produção de saúde (bRasil, 2004).

Com base nisso e nos princípios da reforma

Psiquiátrica é que defendemos uma flexibilização do

protocolo, que deve servir como um dispositivo para

disparar ações consoantes com a necessidade imediata do

sujeito, transformando-o em agente ativo no processo,

fazendo-o cooperar com a equipe, incorporando-o à

própria intervenção, dando-lhe um lugar privilegiado.

o samu, em vez de servir como um mero transporte

com ares manicomiais, deve intervir de forma incisiva

e que contemple as diretrizes da reforma Psiquiátrica.

Sabemos dos impasses de um serviço como esse fun-

cionar com uma lógica oposta a que está acostumado.

Exatamente por isso as urgências psiquiátricas acabam

se constituindo enquanto analisadoras do samu de uma

maneira geral. Em vez de tentarmos adequar o atendi-

mento do sujeito em crise aos moldes protocolares, por

que não pensarmos em estratégias que humanizem o

samu de forma que todas as ocorrências possam seguir,

de maneira palpável, as diretrizes do SUS?

à GUISA DE UMA CONCLUSÃO

a reforma Psiquiátrica ainda é muito recente e por

buscar a descontrução de uma instituição secular, como

é o caso da Psiquiatria tradicional, exige de nós cada vez

mais estratégias de guerra e um caminhar constante.

a acomodação e convencionalização de uma verdade,

a caracterização de uma só tática como eficaz, nos faz

voltar à estaca zero, à conhecida lógica manicomial.

Esse imperativo por constantes criações e movimen-

tações é a grande inspiração dos movimentos antimani-

comiais. Buscamos considerações que dêem abertura e

propiciem uma fluidez da vida em todas as direções, e não

a instituição de conclusões definitivas, simplificadoras e

precipitadas. Por isso, o nosso campo de atuação tende a

se expandir e a se reinventar todos os dias.

assim, focar o samu, um serviço altamente medica-

lizado que, para alguns, não é compatível em nada com

os objetivos antimanicomiais e de desinstitucionalização

da reforma Psiquiátrica, se tornou algo desafiador que

nos abriu possibilidades para pensarmos em potenciali-

dades ainda não exploradas. a nossa pesquisa, em suas

inúmeras idas e vindas, percorreu caminhos inter-redes

para conhecer o trabalho dos técnicos do samu, pensar

em suas possíveis articulações a fim de problematizar a

atenção e a resposta à crise na cidade de aracaju.

apesar de o samu ter um histórico de hesitações no

atendimento a casos psiquiátricos, o que inclui uma falta

de adesão aos treinamentos e capacitações sobre o tema,

de acordo com atribuição da Portaria 2048/gM de 5 de

novembro de 2002, a demanda psiquiátrica continuará

chegando até ele. Por conta disso, houve a decisão de

aproximarem-se da RaPs a fim de construir o protocolo.

Esse momento é especialmente importante, a despeito

de estar, ainda, em fase embrionária, porque já começa

a gerar frutos; na última reunião para a construção do

protocolo, realizada em meados de novembro, alguns

gestores da RaPs e da REuE decidiram que, após quase

um ano de reuniões e negociações, chegara a hora de

compartilharem essas questões com todos os trabalha-

dores de ambas as redes.

Para tanto, no primeiro semestre de 2008, aconte-

ceu o I Encontro Inter-redes de atenção à Pessoa em

Crise, destinado à discussão da problemática das urgên-

Page 161: Saude Em Debate_n75

159

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

cias psiquiátricas, incluindo a construção e validação do

protocolo e as possíveis articulações inter-redes a fim de

se estimular a co-responsabilização dos serviços e técni-

cos em relação ao usuário em crise. Esse foi o primeiro

encontro de muitos outros já planejados.

além disso, o samu se mostrou um serviço com pos-

sibilidades inesgotáveis de acolhimento à crise, visto que

os técnicos podem chegar até a pessoa em sofrimento,

o que viabiliza a inclusão da família no processo, bem

como a rapidez no atendimento que, feito no momento

propício, pode evitar internações e permitir encaminha-

mentos mais eficazes e potentes.

o acolhimento se mostrou a principal força para o

estabelecimento de vínculos que auxiliem a pessoa em

crise na produção de sentido. assim, a crise pode ser rein-

ventada como potência transformadora, momento para

engendrar mudanças e afirmar uma emancipação terapêu-

tica. Sendo o acolhimento um procedimento que utiliza a

comunicação como fundamento e os afetos como direção,

ele se torna ‘improtocolável’, aberto, totalmente flexível

para se adequar às situações que se apresentarem.

Isso nos remete a uma discussão que já começa a

se alastrar mais enfaticamente pelos serviços e entre os

gestores da Saúde Mental: o papel dos caPs na atenção

à crise. Com a recusa dos caPs ao atendimento à crise

e seu funcionamento morno de ambulatório, estamos

vivendo o que mais temíamos: a verdadeira institucio-

nalização dos serviços mais emblemáticos da reforma

Psiquiátrica. a estratégia que deveria abrir caminho

para a vida e seus territórios está se fechando, ocupado

demais com sua burocracia a ponto de fechar os olhos

para a rede, os usuários e seus problemas factuais. Um

serviço fechado cheira a manicômio.

Se ao invés de nos preocuparmos com o usuário e

sua liberdade, com o seu direito de usufruir a sua vida

e emancipação, nos fecharmos, achando que terapias e

passeios vão dar conta disso e esquecermos que o tra-

balho que procuramos realizar são atos de forte cunho

político, cairemos na mesma ditadura da lógica manico-

mial. Por isso, impera um incômodo, um movimentar

incessante e criativo que rodopia no caos da vida. as

certezas, as verdades, as seguranças sólidas, as identidades

que, apesar de flexíveis, cortejam uma invariabilidade

de essência podem conferir um território confortável

e sem surpresas, que pode nos fazer descansar do mo-

vimento. Entretanto, esse conforto estático equivale à

própria morte. Vivemos numa guerra constante contra

a cristalização dos fluxos, contra a acomodação que gera

uma reprodução incessante de burocracia e sofrimento.

deveríamos, antes, nos abrir à fluidez e às possibilidades

que podem ser criadas com o intuito de despertarmos

para a transitoriedade potente e criativa da vida.

a necessidade de preparar os técnicos de ambas

as redes é frisante; aproximá-los de seu tema comum

é necessário. as oficinas virão com esse propósito, mas

não podem ser a única tentativa. além da programa-

ção de capacitações e treinamentos em conjunto, seria

significativo intercambiar os profissionais para que

conhecessem a fundo os problemas e possibilidades da

rede. Porém, por se tratarem de redes muito distintas é

importante haver prudência ao aproximá-los. No que

diz respeito à atenção à crise e urgência psiquiátrica,

seria interessante que pessoas fossem estrategicamente

plantadas nos serviços de ambas as redes. Esses profis-

sionais serviriam como aproximadores, disseminadores

de idéias e semeadores de pequenas dúvidas, seriam

incitados a usar a imaginação auxiliando a desemperrar

alguns fluxos previamente estabelecidos.

Precisamos nos aventurar em outros mundos

possíveis; se a crise é a principal responsável pela inter-

nação de pessoas em sofrimento, o que reforça a lógica

manicomial, é esse o desafio que precisamos encarar; é

a questão da crise e de quais significados ela pode as-

sumir que precisamos discutir e pelos quais precisamos

nos responsabilizar. os movimentos antimanicomiais

ainda são muito jovens, mas já deram vários indícios

Page 162: Saude Em Debate_n75

160

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica

de que são eficazes naquilo que se propõem a fazer. Sua

operacionalização e reinvenção estão em nossas mãos e

cabe a todos nós levá-las a diante.

Este trabalho é uma convocação, um chamado para

uma guerra que não permitirá acomodação sob pena de

nos aprisionar em sua mortificação. Portanto, este é um

convite à experimentação e à invenção de outros mundos

possíveis para a loucura e para nós mesmos enquanto

pessoas e profissionais.

R E F E R Ê N C I A S

amERican collEgE of suRgEons. Atendimento Pré Hospitalar ao Traumatizado PHTLS. 5. ed. EUa: El-sevier, 1997.

bRasil. Ministério da Saúde. Secretaria executiva, Núcleo técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhi-mento com avaliação e classificação de risco: um paradigma ético-estético no fazer em saúde. Brasília, dF, 2004.

______. Ministério da Saúde. Portaria 1864/gM de 29 de setembro de 2003. Institui o componente pré-hospitalar móvel da Política Nacional de atenção às Urgências, por intermédio da implantação de Serviços de atendimento Móvel de Urgência em municípios e regiões de todo o território brasileiro: samu – 192. Brasília, dF, 2003.

______. Ministério da Saúde. Portaria 2048/gM de 5 de novembro de 2002. dispõe sobre o funcionamento dos Serviços de Urgência e Emergência. Brasília, dF, 2002.

______. Ministério da Saúde. Portaria 814/gM de 1° de junho de 2001. dispõe sobre a normatização dos serviços de atendimento pré-hospitalar móvel de urgências, revogando a Portaria 824 de 24 de junho de 1999. Brasília, dF, 2001.

camPos, r.M. Satisfação da equipe de enfermagem do serviço de atendimento móvel de urgência no ambiente de

trabalho (samu). dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do rio grande do Norte, Natal, 2005.

consElho fEdERal dE mEdicina. resolução nº 1451 de 10 de março de 1995. define Urgência e Emergên-cia, equipe e equipamentos para os primeiros socorros. Diário Oficial da União. Seção I, p. 3666. Brasília, 1995. disponível em http://www.cremesp.org.br/library/mo-dulos/legislacao/versao_impressao.php?id=2989. acesso em 16 out. 2008.

cunha, J.P.P.; cunha, r.E. Sistema Único de Saúde: prin-cípios. In: camPos, F.E.; tonon, l.M.; olivEiRa JúnioR, M. (org.). Planejamento e gestão em saúde. cadernos de Saúde, n. 2. Belo Horizonte: Coopmed, 1998.

dEll’acqua, g.; mEzzina, r. resposta à crise: estratégia e intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In: amaRantE, P. (org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial 2. rio de Janeiro: Nau, 2005. p. 161-194.

fERnandEs, r.J. caracterização da atenção pré-hospitalar móvel da Secretaria de Saúde do Município de Ribeira Preto – SP. dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Escola de Enfermagem de ribeirão Preto da USP, ribeirão Preto, 2004.

JaRdim, K. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (samu) no contexto da reforma psiquiátrica: em análise a experiência de aracaju – SE. dissertação (Mestrado em Psicologia) – Centro de Ciências do Homem, letras e artes da UFrN, Natal, 2008.

lancEtti, a. clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005.

RotElli, F.; lEonaRdis, o.; mauRi, d. Desinstituciona-lização. São Paulo: Hucitec, 2001.

stERian, a. Emergências psiquiátricas: uma abordagem psi-canalítica. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.

recebido: abr./2008

aprovado: ago./2008

Page 163: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 161

a construção de um serviço de base territorial: a experiência

do Centro Psiquiátrico rio de JaneiroThe construction of a territorial base service: the experience of the centro

Psiquiátrico Rio de Janeiro

RESUMO O artigo relata a trajetória do centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

(cPRJ), centro de atenção à saúde mental pertencente à Secretaria Estadual de

Saúde do Rio de Janeiro, no atual contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

A partir das políticas estaduais e municipais de Saúde Mental, que orientam a

substituição de hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços de saúde mental

de base comunitária, o cPRJ vem se transformando em um serviço territorial

cada vez mais voltado a atender às necessidades da clientela do seu território de

forma complexa, incluindo o desafio de acompanhar clinicamente pacientes com

transtornos mentais graves e moradores de rua.

PALAVRAS-CHAVE: Psiquiatria comunitária; Reforma Psiquiátrica; Saúde

Mental; Política de Saúde; Serviços de Saúde Mental; Reforma dos Serviços

de Saúde.

ABSTRACT The article states the trajectory of the centro Psiquiátrico Rio de

Janeiro, a center of attention to mental health belonging to the State clerkship

of Health of Rio de Janeiro in the current context of the Brazilian Psychiatric

Reform. Starting from the state and municipal politics of Mental Health, that

gives orientation to a replacement of psychiatric hospitals for a net of services of

Mental Health of community base, centro Psiquiátrico Rio de Janeiro have been

transformed throughout years into a territorial service of complex assistance focused

on the needs of the patients, including the challenge of following-up patients with

serious mental disorders and homeless people.

KEYWORDS: community Psychiatric; Psychiatric Reform; Mental Health;

Health Policy; Mental Health Services; Reformulation of Health Services.

alexandre Keusen 1

andréa da luz Carva lho 2

1 Médico psiquiatra; doutor em

Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria

da Universidade Federal do rio de

Janeiro (UFrJ); diretor do Centro

Psiquiátrico do rio de Janeiro (CPrJ) de

1998 a 2006; atualmente funcionário do

setor de terapia de Família do Instituto

de Psiquiatria da UFrJ.

[email protected]

2 Psicóloga sanitarista; mestre em Saúde

Coletiva pelo Instituto de Medicina

Social da Universidade Estadual do

rio de Janeiro (IMS/UErJ); analista

de gestão em Saúde da diretoria de

Planejamento Estratégico da Fundação

oswaldo Cruz (fiocRuz).

[email protected]

Page 164: Saude Em Debate_n75

162

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

I N T R O D U ç Ã O

a partir do final da década de 1970, um movimento

político que questionou o tratamento hospitalocêntrico

de doentes mentais (amaRantE, 1995) e criou as bases

das políticas e técnicas na área da Saúde Mental do

final da década de 1980 e da década de 1990, ajudou a

fundar o conceito de reforma Psiquiátrica atualmente

já absorvido no dia-a-dia de gestores, profissionais da

Saúde Mental e usuários.

a reforma Psiquiátrica1 consiste em um conjunto

teórico e prático de transformações nas áreas da política

de saúde, da clínica e da cultura, que tem como pres-

suposto e critério ético a inclusão do doente mental

na sociedade, bem como o seu tratamento em serviços

de base comunitária e a sua inscrição social como um

cidadão de direitos2.

a redução dos leitos psiquiátricos e a expansão

de uma rede de serviços comunitários têm sido uma

das estratégias implantadas pelo Ministério da Saúde a

partir da década de 1990, que visa à inclusão social do

doente mental e o seu tratamento prioritário em servi-

ços abertos como, por exemplo, os Centros de atenção

Psicossociais (caPs).

Este artigo pretende relatar a história da transforma-

ção de um hospital psiquiátrico em um Centro Integrado

de Saúde Mental. Hoje, considerando-se a política que

privilegia a implantação de uma rede comunitária, é de ex-

trema importância se pensar no que pode ser feito com os

equipamentos hospitalares psiquiátricos públicos. É nesse

sentido que o artigo pretende acrescentar algo: relatando

a experiência das modificações ocorridas na assistência

de um hospital psiquiátrico que procurou aproximá-lo

cada vez mais dos modelos comunitários atualmente

preconizados pela política de Saúde Mental.

BREVE HISTÓRICO DO CENTRO

PSIQUIÁTRICO RIO DE JANEIRO

o Centro Psiquiátrico rio de Janeiro (CPrJ) é

um centro de atenção integrado de Saúde Mental sob a

administração da Secretaria Estadual de Saúde do rio de

Janeiro (SES/rJ). Criado em agosto de 1998, a partir da

transferência do Posto de atendimento Médico (PaM)

Psiquiátrico localizado na avenida Venezuela (antiga

emergência psiquiátrica que, nos anos 1970, centralizava

todas as internações dos pacientes segurados do Instituto

Nacional de Previdência Social, INPS), caracteriza-se

por um serviço com emergência psiquiátrica que conta

com uma Enfermaria, dispõe de 18 leitos psiquiátricos

(oito femininos, sete masculinos e três extras), um am-

bulatório e um hospital-dia.

a missão do CPrJ tem sido desenvolver projetos e

ações voltados à clientela com transtornos mentais, em

especial àqueles com quadros mais graves e dificuldades

nas relações sociais. de 1998 a 2006, foi concebido

em adequação às Políticas Públicas voltadas para a

reforma Psiquiátrica desenvolvidas pelo Ministério

da Saúde (MS), SES/rJ e pela Secretaria Municipal de

Saúde do rio de Janeiro (SMS/rJ). atuando de forma

integrada, os serviços do CPrJ buscavam atender essa

clientela em situações de crise e de acordo com suas

demandas cotidianas.

1 o conceito de reforma psiquiátrica no Brasil sofreu a influência dos movimentos de reforma psiquiátrica na Europa e EUa, mas principalmente teve como inspiração o modelo de reforma italiano (ver dEsviat, 2001 e RotElli; lEonaRdis; mauRi, 1990).2 a lei 10.216/2001 (bRasil, 2004a) regulamenta os direitos dos doentes mentais e os tipos de internação. as repercussões clínicas e políticas desta legislação são analisadas por delgado (2001).

Page 165: Saude Em Debate_n75

163

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

No início, em 1998, era como um hospital psi-

quiátrico; possuía 15 leitos para curta permanência nos

quais era feita a avaliação da internação psiquiátrica e,

quando necessário, o encaminhamento de pacientes

para clínicas privadas contratadas do SUS. Possuía,

também, um ambulatório predominantemente de

psiquiatras e um hospital-dia incipiente. Seu papel era

ser mais um hospital psiquiátrico que concentrasse os

recursos e a clientela de todo o município e estado do

rio de Janeiro. Com o avanço das Políticas Públicas

voltadas à abertura de serviços territoriais que dessem

conta das demandas da clientela em seu entorno, como

os Centros de atenção Psicossociais (caPs), a política de

controle e regulação dos leitos psiquiátricos3 bem como

o início das discussões entre os serviços do entorno do

hospital através do Fórum de Saúde Mental da Área

Programática 1.04 (a partir do segundo semestre de

2006), o CPrJ realizou transformações em seu projeto

terapêutico institucional no sentido de caminhar para

o perfil de uma unidade assistencial em Saúde Mental

mais engajada em responder às necessidades e demandas

da população adscrita ao hospital.

É preciso ressaltar que, na área de Saúde Mental, a

oferta de recursos mais próximos do local de moradia dos

pacientes e o sentido de responsabilização das equipes

pelo seu acompanhamento é o modelo que traz melhores

resultados em relação à diminuição na necessidade de se

utilizar a internação, que geralmente é um recurso que

onera o sistema de saúde e não deve ser utilizado como

único recurso terapêutico. outro ponto importante a

ser destacado, é que os contextos do paciente e da sua

família devem ser considerados relevantes para o trata-

mento dos transtornos mentais.

É nesse sentido que a sua clientela alvo, prioritária

para acompanhamento no ambulatório e hospital-dia,

é a residente na área do centro do município do rio de

Janeiro e adjacências (área programática 1.0). No entan-

to, ele ainda permanece como um dos quatro pólos de

emergência psiquiátrica da cidade do rio de Janeiro5,

oferecendo atendimento 24 horas e sendo responsável

pela avaliação da necessidade de internação. Seus leitos

são regulados desde maio de 2003 pela Central de re-

gulação da SMS/rJ.

É importante destacar, ainda, os projetos voltados

a especificidades de determinadas clientelas. o aten-

dimento à população de rua com transtornos mentais

realizado no hospital-dia, em parceria com o Instituto

de Psiquiatria/UFrJ, e o projeto PatER, desenvolvido

no ambulatório e voltado para a população idosa tam-

bém portadora de transtornos mentais, são exemplos

desses projetos.

ressalta-se que o projeto terapêutico da insti-

tuição é oferecer serviços (internação, atendimento

mutiprofissional na emergência e consultas em diversas

especialidades tais quais: psiquiatria, psicologia, assis-

tência social, enfermagem, terapia ocupacional, oficinas

terapêuticas, atendimento à família, grupos terapêuticos

e atividades artísticas) para a clientela com transtornos

mentais, levando-se em consideração o quadro clínico

e a situação social dos pacientes. o desafio do CPrJ é

criar projetos que respondam às diversas necessidades

de sua clientela.

3 a partir de maio de 2003, a SMS rio de Janeiro passou a regular todos os leitos psiquiátricos públicos e privados contratados da Cidade do rio de Janeiro. o CPrJ, junto com os outros três pólos de emergência psiquiátrica (Hospital Municipal Jurandyr Manfredini (HMJM), Instituto Municipal Philippe Pinel (IMPP) e Instituto Municipal Nise da Silveira), passou a integrar esse processo de regulação, configurando-se como avaliadores da internação psiquiátrica da cidade (solicitantes e executantes de internação psiquiátrica). Seus leitos eram preferencialmente reservados à sua clientela.4 o CPrJ está localizado na Praça da Harmonia, no bairro Saúde, na área programática 1.0. Essa área possui uma projeção da população para 2007 de 228.549 habitantes, segundo dados do Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do rio de Janeiro). os bairros oficiais que compõem esta aP são: Centro, Saúde, gamboa, rio Comprido, São Cristóvão, Santa tereza, Mangueira, Paquetá, Santo Cristo, Cidade Nova e Caju. 5 os outros três pólos psiquiátricos são o HMJM, o PaM rodolpho rocco e o IMPP, sendo que o HMJM e o IMPP são também hospitais psiquiátricos.

Page 166: Saude Em Debate_n75

164

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

Na época da mudança do antigo PaM Venezuela,

o centro se encontrava em clara decadência, sendo des-

crito como uma ‘pocilga’ pelo coordenador de saúde

do Ministério da Saúde em 1987. Já o seu processo de

transformação foi avaliado duas vezes pelo Programa

Nacional de avaliação do Sistema Hospitalar (PNaSH)

(bRasil, 2004a) como a melhor unidade do Estado do

rio de Janeiro.

Neste texto relataremos a evolução desta experi-

ência, avaliando o ano de 2006 em comparação com

o período de 2000 a 20056, através da compilação

de indicadores da assistência e outros relatos sobre as

mudanças dos serviços que objetivavam construir um

serviço de Saúde Mental de base territorial.

O FLUXO DE PACIENTES NO CPRJ

Como já dito anteriormente, o CPrJ se configura

como um dos quatro Pólos de Emergência Psiquiátrica

no Município do rio de Janeiro, responsável pela ava-

liação da necessidade de internação. a porta de entrada

para os seus diversos serviços como enfermaria, ambu-

latório e hospital-dia é a emergência que funciona 24

horas, sete dias por semana.

Caso haja necessidade do paciente permanecer in-

ternado, ele é encaminhado à enfermaria, onde a equipe

realiza uma avaliação sobre a sua permanência ou solicita

à Central de regulação um leito para a sua transferência.

Essa decisão é feita com base em diversas variáveis como

o local de moradia do paciente, acompanhamento do

paciente por algum serviço do CPrJ e, sobretudo, sua

situação clínica.

o ambulatório é aberto preferencialmente aos

pacientes que residem na área programática 1.0 do

município do rio de Janeiro, mas mantém assistência

a todos os pacientes de outras regiões do município e

Estado do rio de Janeiro que já se encontravam em

acompanhamento na Unidade.

o hospital-dia acompanha preferencialmente

novos pacientes, moradores da área programática 1.0

do município do rio de Janeiro, e pacientes antigos de

outras regiões do município e Estado do rio de Janeiro.

Esse é um dos poucos serviços no Estado que possuem

um projeto terapêutico para o acompanhamento de

população de rua.

as equipes realizam reuniões semanais internas

para discussão dos casos e dos problemas dos serviços;

seus coordenadores reúnem-se semanalmente com a

direção para que haja maior integração entre os vários

serviços. as equipes também fazem reuniões entre si

para discutir casos.

INDICADORES DA ASSISTÊNCIA

Emergência e enfermaria

Houve um aumento nos atendimentos feitos na

emergência e no ambulatório no período de 2000 a

2005, sendo que registrou-se uma diminuição no nú-

mero de atendimentos na emergência nos anos 2000

e 2001, enquanto no ambulatório manteve-se um

aumento em todo o período. Em 1999, o ambulatório

realizava 14.996 atendimentos; em 2005 esse número

6 o CPrJ começou a desenvolver um sistema próprio de registro de informações desde a sua inauguração, em 1998. todos os pacientes que entram na emergência são registrados nesse sistema. No decorrer desses oito anos, foram feitas discussões com as equipes dos diversos serviços nas reuniões semanais de direção visando integrar suas informações, ou seja, que o registro do paciente poderia ser visualizado em todas os departamentos de ações terapêuticas no hospital. tal sistema permitiu também a realização de estudos sobre a reinternação dos pacientes para uma melhor formulação dos projetos terapêuticos das equipes. a partir do ano 2000, o sistema passou a ser alimentado com informações mais contínuas.

Page 167: Saude Em Debate_n75

165

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

cresceu em 95% (29.257 atendimentos). Já no ano

2006, houve uma diminuição de 12% nos atendimentos

de emergência em relação a 2005 (gráfico 1).

dentre os fatores para a diferença no desempenho

da emergência e do ambulatório, destacam-se: a análise

da demanda que chega ao CPrJ e que, em grande parte,

reflete a oferta ainda insuficiente de serviços de saúde

mental na Cidade do rio de Janeiro; as dificuldades de

articulação entre os diversos serviços em uma cidade

de aproximadamente seis milhões de habitantes e com

uma história marcada pela presença maciça de hospitais

psiquiátricos na resolução dos problemas de quem sofre

de alguma desordem psíquica.

o desafio da implantação da reforma Psiquiátrica

na Cidade do rio de Janeiro está não só no aumento

de serviços extra-hospitalares que se responsabilizam

pelo acompanhamento de determinada clientela, mas

também na elaboração de processos de trabalho que

estejam mais direcionados à necessidade da clientela

de ser considerada em sua integralidade e no fato de o

recurso da internação ser utilizado com critério técnico

definido por uma equipe multidisciplinar.

de 2004 a 2005, houve um aumento significativo

dos atendimentos feitos pela emergência do CPrJ em

relação aos números anteriores, que variavam entre

10.000 e 12.500 atendimentos anuais. Em 2004, houve

16.059 atendimentos e em 2005 esse número subiu

para 17.125. destacamos que no segundo semestre de

2005, houve a transferência de uma das Emergências

Psiquiátricas do Instituto Municipal Nise da Silveira para

o PaM rodolpho rocco. Esse acontecimento causou

alguns transtornos para a clientela, já acostumada ao

atendimento feito pelo Instituto Médico Nise da Silveira

já que foi feita uma distribuição desta clientela entre os

outros três pólos de emergência.

a diminuição no número de atendimentos em

2006 pode estar relacionada a alguns fatores internos

e externos ao funcionamento do CPrJ. os fatores ex-

ternos dizem respeito a uma tendência, que se iniciou

em 2003 e acelerou durante esse ano, dos serviços a se

responsabilizarem preferencialmente por suas clientelas

mais adscritas, visando o seguimento desses pacientes

inclusive com ações em seu território de moradia; ou-

tro fator importante foi a ação da assessoria de Saúde

Mental da SES/rJ no auxílio aos municípios do Estado

do rio de Janeiro para organizar suas portas de entrada.

Já os fatores internos dizem respeito à rigorosa avaliação

dos pacientes no CPrJ pela equipe que, neste período

0

10000

20000

30000

40000

50000

60000

1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

EmergênciaAmbulatórioTotal

Gráfico 1 - distribuição de atendimentos na emergência e no ambulatório no CPrJ de 1999 a 2006

Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 1999-2006

Page 168: Saude Em Debate_n75

166

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

de oito anos, tornou-se multidisciplinar, inibindo cada

vez mais a distribuição de receitas (prática usual nas

emergências em geral) fazendo com que, dessa forma, o

paciente se engajasse em um tratamento contínuo.

Um dos indicadores que ajuda a acompanhar o

desempenho das equipes de emergência é o percentual de

atendimentos na emergência que se tornam internações.

Como já foi dito anteriormente, esse indicador reflete

o esforço do CPrJ em tornar mais complexo o atendi-

mento em sua porta de entrada, de forma que a decisão

acerca da internação seja um critério técnico consentido

pelo médico juntamente com o psicólogo e o assistente

social. os dados apresentados no Quadro 1 mostram a

relação entre o número de atendimentos na Emergência

Psiquiátrica do CPrJ e o número de internações.

Nesse período, a média percentual de internações

girou em torno de 16%. a partir de 2002, houve uma

tendência de queda mais expressiva com estabilização

entre 2004 e 2005 e nova queda em 2006. analisando-se

os números absolutos de atendimentos na emergência e

o número de internações, percebemos, no entanto, que

houve uma queda significativa das internações em com-

paração aos anos de 1999 e 2006 (com uma diferença

de 943 internações, ou seja, queda de 41%).

Chama-se atenção para o fato de o CPrJ ter uma

enfermaria dispondo de leitos de curta permanência.

Como já constatado, esses leitos foram inseridos na

Central de regulação da SMS/rJ em maio de 2003,

quando os leitos psiquiátricos começaram a ser regu-

lados na cidade do rio de Janeiro. o CPrJ é uma das

quatro portas de entrada que avaliam a necessidade de

internações psiquiátricas sendo que os 18 leitos da Enfer-

maria de Curta Permanência são disponibilizados para o

próprio CPrJ; quando há necessidade de transferência,

o hospital solicita um leito à Central de regulação.

Segundo dados do datasus/MS, o faturamento das

internações em um período de seis anos (2000 a 2005)

têm sido em média r$ 95.638,83, o que representa uma

média de 836 autorizações de Internações Hospitalares

(aIH) por ano. Chamamos a atenção para o fato de que

o faturamento da aIH corresponde ao pagamento das

internações de 24 horas e que muitas vezes o paciente

tem alta em menor período.

Na enfermaria, há um esforço da parte da equipe em

tornar essa internação o mais breve possível com a finali-

dade de inserir o paciente em serviços extra-hospitalares.

a enfermaria conta com uma equipe multidisciplinar

formada por médicos psiquiatras, enfermeiros, técnicos

em enfermagem, auxiliares de enfermagem, terapeutas

ocupacionais e assistentes sociais. a estada do paciente

no CPrJ não se limita à permanência no leito e à ad-

ministração de medicamentos; a equipe multidisciplinar

Anos Número de atendimentos Número de internações %1999 12.050 2.295 19,05

2000 10.130 2.205 21,77

2001 10.572 2.114 20,00

2002 11.956 2.051 17,15

2003 12.679 1.881 14,84

2004 16.059 1.967 12,25

2005 17.125 2.106 12,30

2006 11.882 1.352 11,38

Quadro 1 - Percentual de atendimentos da emergência psiquiátrica do CPrJ que se tornaram internações de 1999

a 2006

Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 1999-2006

Page 169: Saude Em Debate_n75

167

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

deve qualificar a assistência, oferecendo atividades no

pátio interno da enfermaria, e realizar grupos diários

com as famílias dos pacientes internados. dessa forma,

acredita-se que o que faz diminuir o tempo de interna-

ção é a interlocução da equipe multidisciplinar com os

recursos apresentados para cada paciente visando, em

muitos casos, a sua intensificação e articulação.

o caminho para o setor é assumir integralmente

toda a clientela de seu território, tendo-se inclusive

ampliado o número de leitos voltados ao atendimen-

to, e não à transferência dos pacientes do território, e

procurar encaminhar os pacientes de outras localidades

para os outros pólos. durante o ano de 2006, a equipe

da enfermaria começou a dar prioridade ao atendi-

mento a essa clientela, não mais transferindo aqueles

que morassem na região, fortalecendo os laços com

o hospital-dia e com ambulatório. Uma dificuldade

evidente, em função da limitação de recursos para se

lidar com os pacientes de outras regiões, ocorria espe-

cialmente em relação à clientela feminina que possuía

poucas alternativas de leitos disponíveis na cidade do

rio de Janeiro.

Em 2005, iniciamos um processo de discussão no

CPrJ que resultou em uma nova organização denomi-

nada de Setor de atividades. o hospital-dia foi dividido

em um setor de atividade e um setor terapêutico, com

o objetivo de se organizar a demanda dos projetos tera-

pêuticos da clientela. Na enfermaria a equipe do ‘pátio’,

desde 2003, iniciara atividades no ambulatório com a

clientela da sala de espera e com atendimentos progra-

mados. Em 2006, com a fusão de todas as equipes envol-

vidas em projetos de atividades, houve a possibilidade de

oferecer a toda a clientela do CPrJ, independentemente

do local do atendimento, a possibilidade de envolvê-la

com programas de atenção específica, seja em termos

de terapia ocupacional, musicoterapia, arte-terapia,

projetos vocacionais, entre outros. Isso, juntamente

com as transformações pelas quais a enfermaria passava,

apontava para o encaminhamento do projeto do CPrJ

como uma unidade de atenção territorial no campo da

Saúde Mental.

de acordo com os dados apresentados no Quadro 2,

as médias dos indicadores hospitalares (taxa de ocupação

e tempo médio de permanência) aumentaram no

período de 2000 a 2005. Esses valores (principalmente

o tempo médio de permanência) expressam, em parte,

resultados do incremento das atividades na enfermaria

nesse período.

o Quadro 2 mostra, também, uma diferença

de 23 pontos entre as médias na taxa de ocupação de

2000 e 2006. Esse aumento pode estar relacionado às

dificuldades de obtenção de leitos femininos na cidade

do rio de Janeiro. Principalmente em 2005, houve uma

drástica combinação de suspensão e redução de leitos

devido aos vários processos de auditoria e interdições

em hospitais psiquiátricos privados contratados pelo

SUS realizados pela Vigilância Sanitária da SES/rJ e

SMS/rJ. Em 2006, houve a suspensão de internações

na Clínica Valência, que oferecia 200 leitos ao sistema.

Essa medida resultou na modificação dos leitos psiqui-

átricos públicos que passaram a atender mais mulheres

do que homens, já que há uma oferta maior de leitos

Indicadores hospitalares 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Taxa de ocupação 71% 79% 82% 80% 89% 85% 94%

Tempo médio de permanência (dias) 2 2 2 2 3 2,3 3,9

Quadro 2 - taxa de ocupação e tempo médio de permanência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro no período

de 2000 a 2006 – médias

Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 2000-2006

Page 170: Saude Em Debate_n75

168

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

masculinos nas clínicas privadas contratadas pelo SUS

na cidade do rio de Janeiro.

Em 2006, o CPrJ registrou em cinco meses (ja-

neiro, março, abril, maio e setembro) taxas de ocupação

maiores que 100%. os tempos médios de permanência

nos leitos femininos (6,6 dias) sempre foram, em média,

maiores do que os masculinos (1,6 dias).

No entanto, ao analisar as altas dadas no período

(com exceção daquelas devido a óbito, transferência e

evasões), percebe-se que este indicador vem aumentando

gradativamente, podendo estar relacionado, mais uma

vez, ao trabalho da equipe da enfermaria. o Quadro 3 de-

monstra que a média percentual de altas dadas pela equipe

da enfermaria em relação à média do total de internações

no período aumentou significativamente, havendo uma

diferença de 15 pontos entre 2005 e 2006.

Houve apenas 11 óbitos no período de 2000 a

2006: dois no ano de 2000, um em 2001, um em

2002, dois em 2003, dois em 2004, três em 2005 e um

em 2006. Segundo portaria do Ministério da Saúde no

251/2002 do Programa Nacional de avaliação do Siste-

ma Hospitalar (PNaSH) (bRasil, 2004B) que orienta a

estrutura e funcionamento dos hospitais psiquiátricos,

o CPrJ deve ter uma estrutura de pouca complexida-

de atender às ocorrências clínicas. observa-se que a

maior parte das causas de morte esteve relacionada à

dificuldade de tal paciente ser inserido e acompanhan-

do clinicamente pela rede de saúde em geral e não à

desordem psiquiátrica.

Ambulatório e hospital-dia

o ambulatório do CPrJ oferece atendimento indi-

vidual e em grupo por médicos psiquiatras, psicólogos e

assistentes sociais, para pessoas maiores de 18 anos. Nos

últimos quatro anos, definiu-se que a clientela de primeira

vez deveria ser moradora dos bairros localizados na área

programática 1.0 do Município do rio de Janeiro, mas

há ainda pacientes de outras áreas programáticas do mu-

nicípio e da Baixada Fluminense que são acompanhados.

Essa escolha se deu devido a um grande número de faltas

às consultas marcadas de pacientes de áreas mais distantes

e, também, para que o serviço pudesse utilizar melhor

toda sua capacidade. de acordo com o Quadro 4, houve

Tipo de atendimento 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Inicial 1.651 1.565 2.545 1.839 1.782 1.300 1.012*

Subseqüente 18.901 19.705 22.768 28.577 28.832 30.523 27.736*

Total 20.552 21.270 25.313 30.416 30.614 31.823 28.748*

Quadro 4 - atendimentos de primeira vez e subseqüentes no ambulatório do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

– período 2000 a 2006

* Não está contabilizado o mês de janeiroFonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. Boletim de Atendimento Ambulatorial 2000-2006

Indicador hospitalar 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Internação 187 176 176 158 159 175 113

Altas hospitalares 36 36 43 42 43 39 42

% 19% 20% 24% 27% 27% 22% 37%

Quadro 3 - Internação e alta hospitalar no Centro Psiquiátrico rio de Janeiro no período de 2000 a 2006 – médias

Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 2000-2006

Page 171: Saude Em Debate_n75

169

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

um aumento de 55% nos atendimentos do ambulatório

no período de 2000 a 2005.

o ambulatório do CPrJ desenvolve um projeto

especial voltado para a população idosa (projeto Pater),

que realiza avaliação neuropsicológica de pacientes com

suspeitas de demência e Mal de alzheimer; dessa forma,

projetos terapêuticos específicos para estas clientelas

podem ser elaborados.

outro projeto desenvolvido no ambulatório foi a

formação do núcleo de Psicanálise, com reuniões dos

técnicos de vários setores semanalmente. Essa equipe

ampliou de forma significativa o atendimento psico-

terápico na Unidade e, com sua discussão, influenciou

projetos na emergência e no hospital-dia.

o hospital-dia do CPrJ é voltado ao atendimento de

pacientes com transtornos mentais graves e persistentes

cujos laços sociais encontram-se esmaecidos. É também

composto por uma equipe multidisciplinar: psicólogo,

médico psiquiatra, terapeuta ocupacional, assistente

social, auxiliares de enfermagem e oficineiros. além das

tradicionais consultas realizadas por profissionais de nível

superior, o hospital-dia oferece atividades que visam à

reinserção psicossocial de pacientes como oficinas de

arte, marcenaria e culinária. Esse serviço oferece

alimentação para pacientes que freqüentam o serviço

em regime integral. o hospital-dia do CPrJ possui,

também, uma associação de familiares, a associação dos

Familiares, Usuários, amigos e Funcionários do Centro

Psiquiátrico do rio de Janeiro (afaucEP), que apóia as

famílias e pacientes do hospital-dia. o Quadro 5 mostra

o aumento de 22% nos atendimentos feitos no hospital-

dia do CPrJ, comparando-se os anos 2000 e 2006.

Segundo dados do datasus/MS apontados no Quadro 6

houve também um crescimento no faturamento do

hospital-dia no período 2000 a 2005.

o hospital-dia ainda realiza parcerias com as áreas

sociais da SES/rJ, da SMS/rJ e com o Instituto de Psi-

quiatria da UFrJ para o cuidado e acompanhamento de

pacientes com transtornos mentais graves e persistentes

em situação de moradores de rua, em especial aqueles

que moram no centro da cidade e adjacências. Essas

parcerias implicam no abrigamento desses pacientes em

albergues e hotéis; a contrapartida dada pelo CPrJ é o

tratamento destes pacientes. Esse projeto foi incluído

entre as dez experiências bem sucedidas na III Confe-

rencia Nacional de Saúde Mental.

Clientela atendida 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Pacientes 8.626 10.523 10.006 11.135 12.656 11.852 11.799

Familiares 1.227 849 698 592 420 270 271

Total 9.853 11.372 10.704 11.727 13.076 12.122 12.070

Quadro 5 - Número de atendimentos de pacientes e familiares no hospital-dia do Centro Psiquiátrico rio de

Janeiro – período de 2000 a 2006

Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. Boletim de Atendimento Hospital-dia 2000-2006

Unidade 2000 2001 2002 2003 2004 2005

CPRJ 180.421,7 205.837,4 222.553,6 172.012,8 210.219,4 195.396,5

Quadro 6 - Valores totais anuais, em reais, de faturamento do hospital-dia do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

– Período 2000 a 2005

Fonte: dataSUS/Ministério da Saúde. Sistema de Informações Hospitalares 2000-2005

Page 172: Saude Em Debate_n75

170

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM SERVIÇO DE

SAÚDE MENTAL TERRITORIAL NO MEIO

DO CAMINHO7

destacamos que, ao final desses quase dez anos,

o CPrJ têm ampliado sua produção em todos os seus

serviços, procurando qualificar a assistência em Saúde

Mental de acordo com os princípios da reforma Psi-

quiátrica, ou seja, garantir os direitos dos pacientes e

um tratamento humanizado, inserindo-o no social para

romper preconceitos.

a arte adquiriu um papel especial como instru-

mento terapêutico e elemento de enfrentamento do

processo de exclusão e da luta contra o estigma dessa

clientela. destacamos o projeto, chamado Convivendo

com a Música, que gerou o grupo musical Harmonia

Enlouquece composto pela clientela e técnicos da

Unidade, que já lançou dois Cds e vem se apresen-

tando em eventos públicos de importância social e

Casas de Espetáculos no projeto loucos por Música e

outros, no rio de Janeiro, Salvador, Santos, Brasília e

Porto alegre. No projeto Convivendo com a Música,

semanalmente, a clientela se reúne para ouvir e tocar

música; pelo menos uma vez por mês eles recebem um

músico convidado: já foram recebidos um violinista da

Sinfônica de Sttugart, uma banda punk de meninas

do rio de Janeiro, uma banda de forró entre outras

participações. além da música as artes plásticas, poesia,

teatro e outras expressões artísticas foram vivenciadas

durante este período no CPrJ.

Em 2006, o hospital começou a desenvolver pro-

jetos de visitas domiciliares sistemáticas para pacientes

que residem da área do entorno do hospital, mas que

não conseguem aderir a nenhum dos seus serviços e,

também, serviços terapêuticos para moradores de rua

com transtornos mentais graves e persistentes e que

não têm onde morar.

analisando-se o modelo assistencial desenvolvido

pelo CPrJ de 1998 até o momento, pode-se dizer que

esse modelo está em processo de transição, ou seja,

ao longo deste período o hospital foi agregando à sua

função de avaliação da internação psiquiátrica outros

serviços como ambulatório e hospital-dia, serviços que

se responsabilizam pelo acompanhamento de clientelas

e tornam o CPrJ uma instituição mais complexa vol-

tada ao seguimento da população residente nas áreas

próximas ao hospital.

Esta apresentação de uma experiência vivenciada

no CPrJ destaca que seu atual modelo assistencial se

aproxima mais das funções de um caPs tipo III8 (bRa-

sil, 2004C), ou seja, uma unidade de Saúde Mental

voltada à população com transtornos mentais graves e

persistentes e que tenham dificuldade em estabelecer

laços sociais. a grande diferença é o fato de que o CPrJ

ainda possui uma emergência psiquiátrica e ainda cum-

pre a função de avaliação da internação psiquiátrica

para a cidade do rio de Janeiro.

Isso nos permite demarcar a possibilidade de haver,

nas grandes cidades, um desenvolvimento de serviços

que possam atuar de forma integral e ser integrado à

rede, atendendo de forma territorial a clientela, seja

na crise, em sua demanda cotidiana ou no processo

de reabilitação.

Por fim, ressalta-se que as modificações realizadas

em seu modelo assistencial relacionam-se às necessi-

dades e negociações junto às Secretarias Estadual e

Municipal de Saúde do rio de Janeiro com o intuito

de se implantar a política da reforma Psiquiátrica.

7 Este título se deve ao fato de que o CPrJ, apesar de todas as modificações apresentadas o aproximarem de um serviço territorial, sua posição no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde ainda é de hospital psiquiátrico.8 Um caPs tipo III se constitui como um serviço de atenção psicossocial de base territorial que funciona 24 horas e possui no máximo cinco leitos para internação psiquiátrica exclusiva de seus pacientes em acompanhamento.

Page 173: Saude Em Debate_n75

171

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro

ao mesmo tempo, todo o processo de construção da

diversidade de atividades só foi possível por causa do

engajamento de técnicos, usuários e seus familiares que,

através de debates públicos, assembléias e reuniões de

equipe, procuraram encontrar soluções para a melhoria

da assistência dada pelo CPrJ.

R E F E R Ê N C I A S

amaRantE, P. (org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. rio de Janeiro: SdE/ENSP, 1995.

bRasil. Ministério da Saúde. lei n. 10216 de 6 abril de 2001. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, dF, 2004a. p. 17-19.

_______. Ministério da Saúde. Portaria gM/MS n. 251, de 31 de janeiro de 2002. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, dF, 2004B. p. 118-124.

_______. Ministério da Saúde. Portaria gM/MS n. 336, de 19 de fevereiro de 2002. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, dF, 2004C. p. 125-136.

dElgado, P.g.g. No litoral do vasto mundo: lei 10.216 e a amplitude da reforma psiquiátrica. In: cavalcanti, M.t.; vEnâncio, a.t.a. (org.). Saúde mental: campo, saberes e discursos. rio de Janeiro: Edições IPUB-CUCa, 2001. p. 283-290

dEsviat, M. a reforma Psiquiátrica. rio de Janeiro: fiocRuz, 2001.

RotElli, F.; lEonaRdis, o.; mauRi, d. desinstituciona-lização, uma outra via: a reforma Psiquiátrica italiana no contexto da Europa e dos ‘países avançados’. In: nicácio, F. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 17-59.

recebido: abr./2008

aprovado: ago./2008

Page 174: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE172

articulando planejamento e contratos de gestão na

organização de serviços substitutivos de Saúde Mental:

experiência do SUS em Belo HorizonteLinking planning and management contracts in the organization

of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas gerais

RESUMO Neste artigo aborda-se a experiência de articulação de um conjunto

de instrumentos de gestão subsidiando a organização dos serviços substitutivos

de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS) de Belo Horizonte, Minas

gerais há cerca de dez anos. Enfatiza-se o modo de aporte das diretrizes do

planejamento e dispositivos agregados, para avançar num modelo de co-gestão dos

processos locais de trabalho. Além da utilidade na organização interna dos serviços,

explicita-se o potencial dessas ferramentas de gestão na organização da rede e no

desenvolvimento de ações articuladas. O aprofundamento dessas aproximações

pode contribuir para a consolidação dos processos coletivos de trabalho em Saúde

Mental e potencializar a integração da rede.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Planejamento; gestão; Rede.

ABSTRACT In this article it is approached the articulation experience of a

set of management tools subsidizing the organization of substitutive Mental

Health services of the Single Health System (SUS) of Belo Horizonte (Minas

gerais), in about ten years. The emphasis is in the mode of intake of the planning

guidelines and aggregated tools to improve a model of participating management.

In addition to the utility in the services internal organization, it is clear that

these tools potential for managing the organization’s network and development

of coordinated actions. It is suggested that these approaches deepening can do

much to the consolidation of the collective work processes’ in Mental Health and

to enhance the network integration.

KEYWORDS: Mental Health; Planning; Management; Network.

Serafim Barbosa Santos-Fi lho 1

1 Médico sanitarista; mestre em

saúde pública e epidemiologia pela

Universidade Federal de Minas gerais

(UFMg); consultor do Ministério

da Saúde, atualmente realiza

acompanhamento/apoio aos Serviços

de Saúde Mental do Sistema Único

de Saúde (SUS) em Belo Horizonte

e região Metropolitana na área de

planejamento e gestão.

[email protected]

Page 175: Saude Em Debate_n75

173

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

I N T R O D U ç Ã O

Historicamente, no âmbito dos serviços tradi-

cionais de Saúde Mental não eram utilizados recursos

de planejamento focados nos processos de trabalho e

organização da atenção. a aproximação das diretrizes

e instrumentos de planejamento estratégico e outras

ferramentas de gestão no campo da Saúde Mental é algo

que vem ocorrendo recentemente, a partir das mudanças

no paradigma da atenção, especialmente com a refor-

ma Psiquiátrica e proposta dos serviços substitutivos

(amaRantE, 1992).

a apropriação dos referenciais do planejamento,

atrelados à uma concepção de gestão participativa, con-

tribui não somente para articular a dinâmica dos serviços

em torno de sua missão e metas, mas sobretudo para

fomentar o exercício da construção coletiva de objeti-

vos, processos e viabilidade para os projetos desejados.

o planejamento pode, portanto, ser exercitado em um

caráter pedagógico, de aprendizagem coletiva.

Nesse sentido, nossa aproximação sistemática em

curso há cerca de 10 anos, inicialmente com um dos

Centros de referência de Saúde Mental (cERsam/caPs)

do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte (SUS/

BH), pautou-se exatamente por essa linha, fomentando

a perspectiva de um ‘jeito’ compartilhado de conduzir

serviços, marcando a importância do envolvimento efe-

tivo de todos os atores na produção do seu próprio fazer

e das práticas de atenção, jeito que sugeria a importância

da atitude de co-responsabilização em torno de ‘planos

de ação’, planos sempre cuidadosamente revistos, e vistos

não numa perspectiva burocrático-protocolar, mas como

norteador dos movimentos considerados necessários

para a consolidação dos serviços. Essa sistemática de

aproximação e acompanhamento dos serviços alinha-se

ao que tem sido apontado por Campos (2000, 2003,

2006) como inovações nos modelos de gestão, atualmen-

te enfatizando-se a metodologia de ‘apoio institucional’,

como estratégia de assessorar os coletivos na discussão e

enfrentamento de situações, compartilhando e fazendo

ofertas, inclusive de ferramentas.

Nesse eixo, trabalhar com ferramentas de planeja-

mento e de avaliação abre caminhos para repensar per-

manentemente ‘o quê’ (metas) está sendo alcançado, com

quais ‘estratégias’, em quais ‘direções’, atinando-se para

um acompanhamento avaliativo das ‘mudanças’ propostas

e esperadas com o serviço. Esse processo ajuda na refle-

xão contínua sobre a proposta de desinstitucionalização,

sobre o que ela traz como objetivos e quais componentes

(‘indicadores’) realmente delimitam o caráter ‘substitutivo’

dos serviços, isto é, faz pensar sobre os objetivos e o que

está efetivamente sendo posto em prática.

No presente artigo, esses e outros aspectos são

levantados e analisados, tendo-se por base um ‘projeto

de intervenção/apoio’ que começou com uma série de

oficinas de planejamento ocorridas em um cERsam/

caPs do SUS/BH, no início de seu funcionamento,

em meados dos anos 1990. Essas oficinas propiciaram

a orientação do processo de trabalho no serviço, avan-

çando em discussões que extrapolam a tessitura do seu

modus operandi, abrigando importantes questões nessas

direções que acabamos de mencionar, no sentido de fo-

mentar o protagonismo da equipe na co-construção do

‘sentido’ daquele serviço substitutivo que se inaugurava.

a pergunta que sempre levantamos para inquietar: ‘a

que viria um serviço substitutivo?’ E, quais ‘frentes de

ação’ poderiam ser construídas para corresponder à nova

missão que se colocava.

a seguir, são sintetizadas algumas reflexões sobre

os movimentos desencadeados com o serviço que foi

mencionado, agregando também nossas outras experi-

ências, estendidas aos demais serviços da rede do SUS/

BH e outros municípios mineiros.

Page 176: Saude Em Debate_n75

174

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

A demanda pelo ‘planejamento’ e os rumos da

interlocução estabelecida

o primeiro serviço que nos foi demandado para

contribuir com a organização no início de sua estru-

turação foi o cERsam/caPs Noroeste. Esse cERsam foi

criado no final de 1995, a partir da reestruturação de

um ‘grande’ serviço ambulatorial ligado ao Instituto

Nacional de Previdência Social (inamPs), no processo

de municipalização de serviços. os gestores do Sistema,

no qual o Serviço estava inserido, articularam um grupo

de apoio à sua reorganização, incluídos como assessores

para a discussão de seu planejamento. a participação

deu-se, então, desde o ‘planejamento’ das estratégias para

‘desconstruir’ o serviço instituído (InamPs), caminhando

para ajudar em todas as etapas de sua estruturação como

cERsam/caPs.

No CERsam/caPs em sua nova missão e organização

como serviço substitutivo seria um serviço de curta per-

manência, devendo estar articulado a uma rede ambula-

torial para acompanhamento após o período de crise.

após o início de funcionamento, a equipe do ‘novo’

serviço manifestou interesse em discutir sistematicamen-

te os problemas que estavam sendo observados, expressos

no processo de trabalho, nos resultados das atividades

e principalmente nas insatisfações que começavam a

despontar no grupo.

a partir de uma reunião inicial e co-validação da

demanda que se apresentava, delinearam-se os pos-

síveis movimentos a serem disparados, enfatizando e

explorando especialmente o interesse e mobilização

dos envolvidos na construção de um possível ‘projeto’

para o serviço.

Como grandes grupos de problemas pode-se citar:

(I) aqueles que tocavam na dificuldade de compreensão,

de forma coletiva, das diretrizes centrais do projeto ins-

titucional da Saúde Mental dentro de um novo modelo

assistencial; (II) os relacionados a recursos humanos,

principalmente quanto ao desenvolvimento, qualificação

e adesão ao modelo proposto; (III) os relacionados ao

processo de trabalho, mostrando a inexistência ou insu-

ficiência de definição ou clareza de papéis, atribuições,

arranjos para o trabalho em equipe, rotinas operacionais

e fluxos; (IV) as dificuldades de viabilizar algumas pro-

postas previstas no modelo, especialmente as do âmbito

da reabilitação psicossocial; (V) e as questões estruturais

inicialmente trazidas como uma percepção de limitação

de recursos materiais e humanos.

Seguindo na problematização das situações, mais

do que ações sistemáticas para superação dos problemas

levantados, o planejamento passou a ser uma estratégia

da equipe para a construção de um ‘projeto diretor’

do cERsam/caPs. Clareou-se para a equipe a dimen-

são político-instrumental implicada no planejamento

estratégico, possibilitando entender a necessidade de

uma permanente atitude de participação e negociação,

não somente na definição de uma ação/projeto, mas

principalmente para assegurar a sua operacionalização.

Vislumbrou-se a dimensão político-decisória implica-

da no ato de planejar, envolvendo interesses, desejos,

recursos físicos e mobilização de poderes dos diversos

atores implicados.

as principais ações propostas englobaram aspectos

que contemplavam desde a necessidade de discussões

continuadas e ampliadas em torno do projeto institu-

cional da Saúde Mental, até a estruturação de rotinas ad-

ministrativas para o serviço. Permeando esses extremos,

o processo de trabalho foi o alvo central do enfoque,

criando-se critérios e fluxos organizadores do trabalho da

equipe e para articulação com outros órgãos e serviços,

problematizando-se a idéia de rede.

os momentos da construção das matrizes operacio-

nais concluíram uma primeira fase do planejamento do

cERsam/caPs, desenhando o que era preciso ser explo-

rado mais minuciosamente. a conclusão dessa fase foi

ligada diretamente ao estabelecimento de cronogramas

de trabalho, constando de subprojetos e atividades a

Page 177: Saude Em Debate_n75

175

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

serem desenvolvidas no âmbito interno e nas articulações

com órgãos externos.

Para além de uma abordagem instrumental de

planejamento: contribuição das oficinas e movimentos

de planejamento na ampliação das discussões

Vale ressaltar uma dimensão de ações que naquele

momento foi de vital importância para o Serviço, ou

seja, a preocupação em se demarcar como uma das

pautas prioritárias a discussão da (nova) clínica que

se desejava fazer e que já se experimentava no próprio

exercício de um aprendizado coletivo. Na medida

em que foram se desenvolvendo as oficinas de plane-

jamento, inicialmente no âmbito da exploração dos

problemas gerais (‘organizacionais’) e, depois como

desdobramento dessas, outros assuntos emergiam do

próprio cotidiano de experiências, vivências, desafios

que se apresentavam em meio a muitas inquietações,

inclusive, pela própria novidade e intensidade do

que estava sendo construído. as oficinas, portanto,

contribuíram funcionando como um cenário no qual

se acolhia e provocava a discussão das demandas e

ofertas do Serviço – a ‘clientela-alvo’, os ‘produtos’ a

lhes serem ofertados, o ‘modo de ofertar’, as marcas

(‘qualidade’) a serem impressas nessas ofertas/ações,

e as ‘respostas’ esperadas com esses ‘investimentos’.

Como isso era efetivamente o cerne do trabalho, na

medida em que se ia aprofundando a discussão sobre

o ‘fazer’ e conduzir os ‘casos’, foi sendo observado

ou reforçado a necessidade de tratar dessas questões

também em outra esfera, ampliando os loci de sua

problematização. Nesse momento, despontou e

fortaleceu-se na própria equipe a demanda por ati-

vidades de supervisão clínica. É interessante lembrar

que essa demanda se apresentou como uma operação

colocada em um dos planos de ação da equipe, a partir

das primeiras oficinas de planejamento.

E nesses movimentos, o serviço/equipe foi cres-

cendo em seu potencial de inventar rumos e buscar a

consolidação dos apoios considerados necessários como

desafios. do ponto de vista do planejamento, havia que

se exercitar esse apoio com direcionamento cuidadoso

dos problemas levantados, principalmente para não

correr o risco de enviesar ou supervalorizar as dimensões

mais ‘aparentes’ dos problemas ou as que apareciam

como ‘sintomas’ mais diretos, a exemplo das situações

de ‘demanda excessiva’ ou das ‘várias faltas estruturais’,

queixas que já naquele momento eram largamente

manifestadas.

Portanto, a necessidade de ajudar a tratar dos

problemas trazendo-os para o âmbito do ‘processo de

trabalho’, processo complexo por se pretender como

inovador e em ruptura (ou superação) com os modelos

tradicionais de fazer. Por outro lado, o cuidado também

na perspectiva propositiva, ajudando a equipe a encon-

trar rumos, mas sem passar a idéia de que as soluções dos

problemas passavam por um eixo de ‘total organização’,

de modo acrítico, com o risco de se criar uma visão ‘dura’

de um processo de planejar; risco de tentar responder

com estruturas rígidas, ‘protocolos’ e ‘fluxos’ inflexíveis

às situações que na verdade eram revestidas de outros

desafios e necessidades.

Na verdade, o mais importante era provocar e

inquietar a equipe para perceber o processo de plane-

jamento e organização atrelado à perspectiva da clínica

que é o caminho pelo qual se apresentam, e são reveladas

as necessidades reais dos sujeitos/usuários.

Portanto, é no âmbito da clínica que se conhece

a necessidade e se direciona a ação; e é nesse contexto

que essa necessidade e essa ação poderiam ser debati-

das, ‘organizadas’, sistematizadas, direcionadas, à luz

de um planejamento – planejamento que viria ajudar

a pensar critérios, prioridades, fluxos, constituição de

equipes, papéis, etc, mas tudo em torno de um objeto

claro/esclarecido (necessidades, demandas, prioridades).

Page 178: Saude Em Debate_n75

176

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

Evidentemente, a potência do planejamento se estende

quando se pensa que tudo isso está na perspectiva de

rede, uma vez que os ‘casos’ (as necessidades, demandas)

circulam em vários pontos de uma rede, para tal carecen-

do de bons (e pactuados) arranjos e fluxos. Mas, tudo

na perspectiva do que são exatamente as necessidades

(compreendidas no âmbito da clínica ampliada) dos

sujeitos-usuários da saúde mental. Pode-se notar que o

que se nomeia como dispositivo de ‘projetos terapêu-

ticos’, em um sentido, ocupam esse lugar de necessária

indissociação entre ‘clínica’ e ‘planejamento’ e entre

‘atenção’ e ‘gestão’1.

ressalta-se a importância atual dessas reflexões,

inclusive porque não é incomum os serviços/equipes de

Saúde Mental em início de funcionamento ou em fases

de reorganização ‘solicitarem’ planos/intervenções em

certa dureza na concepção de organização, como que

‘sufocados’ por problemas e ‘crentes’ em sua solução, por

meio de arranjos apenas estruturais, formais, ‘externos’,

como que externos à clínica, ao objeto mais central

nesses/desses serviços.

ainda no rastro dessa reflexão enfatizada é pertinen-

te a perspectiva de um desenho de ‘apoio’ aos serviços,

compondo-se de momentos regulares de supervisão

clínica (realizadas por um supervisor específico) e de

momentos de ‘oficinas’ em uma ótica mais ampliada

de planejamento. observa-se que em determinados

momentos isso é benéfico para os serviços. Essa alter-

nância de espaços de problematização, cada um com

suas especificidades e jeitos próprios, foi experimentada

no cERsam Noroeste e também vivenciada ou sugerida

em outros serviços. deve ser vista não exatamente como

uma complementaridade de abordagens, mas como

espaços de levantamentos, explorações e condução de

situações (baseadas nos ‘casos’ e na vida do serviço)

que, ora podem ser da ordem de discussão em fóruns

‘específicos’ (supervisão), ora devem ser ampliadas, na

ótica da gestão (também em sentido ampliado), para

resultar em revisão dos modos de funcionamento e

em intervenções e respostas mais eficazes e satisfatórias

(tanto para usuários quanto para os trabalhadores/

equipe, e para a instituição/gestão). É importante

observar o quão interessante (e coerente) tem sido a

pauta dos seminários regulares que o cERsam Noroeste

vem fazendo bianualmente, cujos temas vêm a refletir

exatamente essa interlocução entre clínica e eixos de

planejamento/gestão.

acredita-se, e há esse retorno a partir de nossas

atividades de acompanhamento, que a máxima amplia-

ção de espaços de discussão possibilita não somente a

ampliação de alternativas, mas também gera ‘desesta-

bilizações’ interessantes, provocativas. as discussões

ampliadas ajudam a não cristalizar a prática, a não se

colocar apenas em função da demanda, a refletir sobre

uma série de pontos críticos do processo e relações de

trabalho, enfim, fazendo aparecer e/ou fortalecer estra-

tégias que têm coerência com as práticas substitutivas.

Possibilitam, com diferentes olhares e questionamentos,

tocar em ‘indicativos’ que estariam refletindo a eficácia

na gestão e resultados dos serviços.

Esses novos serviços de caráter substitutivo (ao

modelo manicomial), na medida em que se consolidam,

acenam cada vez mais a desafios em torno do processo e

metas para o enfrentamento dos modelos tradicionais.

Por um lado, podem ser elencados vários indicadores

de resultados satisfatórios, como por exemplo, os casos

progressivos de desospitalização dos pacientes, a redução

nos índices de reinternação ou de primeiras internações,

1 o aprofundamento dessa discussão, em diferentes direções, tem sido feito por gastão Wagner Sousa Campos (Campos, 2000, 2003, 2006) e tem sido retomada suas bases na formulação das diretrizes e dispositivos do Humaniza SUS/Política Nacional de Humanização. Para maior conhecimento sobre o marco teórico-político do Humaniza SUS, bem como seus dispositivos, recomenda-se uma consulta aos materiais disponibilizados no site do Ministério da Saúde: www.saude.gov.br/humanizasus

Page 179: Saude Em Debate_n75

177

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

a ampliação de acesso e outros. Por outro lado, no coti-

diano dos serviços, os profissionais têm convivido com

problemas de diferentes ordens, de âmbito estrutural e

de processos de trabalho, resultando em desgastes com

múltiplos fatores em seu entorno – vêm acarretando

uma sobrecarga diária aos profissionais, traduzida no

desgaste que é vivido para se conseguir levar adiante o

projeto proposto.

Essas questões acenam para a necessidade de apro-

fundar a discussão da organização dos serviços nesse

momento de consolidação. E para isso é importante o

aporte de referenciais que ajudem a problematizá-los,

isto é, dando visibilidade aos resultados (indicadores

quanti-qualitativos), evidenciando as falhas no pro-

cesso e sugerindo caminhos para correção de rumos

e viabilização de novas frentes. a apropriação de

ferramentas de planejamento e de avaliação assume

relevância especial no âmbito do movimento e de-

sempenho dos gestores (e equipes), que muitas vezes

expressam a sua limitação quanto a habilidades em

conduzir os processos cotidianos. Mais do que um

caráter instrumental, esses aportes são um arsenal

importante para efetivar o processo coletivo da ges-

tão, ampliando e consolidando dispositivos de gestão

participativa, como os colegiados/fóruns de decisão e

condução dos serviços.

O PLANEJAMENTO PERMEANDO A AçÃO

INTERSETORIAL EM SAúDE MENTAL

a intersetorialidade pode ser vista como ‘estra-

tégia de reorganização das respostas aos problemas,

necessidades e demandas sociais dos diversos grupos da

população’ (tEixEiRa, 2002), refletindo em projetos e

planos efetivos de ação; e o planejamento como meio de

‘revalorizar as estratégias de negociação e de cooperação,

em prol da legitimidade dos planos’ (onocKo, 2003).

Isto implica,

assumir uma perspectiva mais descentralizada de mundo, trazendo à tona o mundo social dos atores para além da fria compreensão do planejamento enquanto tecnologia (onocKo,2003),

o que potencializa sua relevância enquanto ação comu-

nicativa.

Considerando as dimensões técnica e política do

planejamento e da atuação intersetorial, deve-se enfatizar

o seguinte:

O trabalho não se restringe, portanto, a um simples preenchimento de planilhas e corresponde a uma verdadeira análise do ‘estado da arte’ em termos do conhecimento e da tecnologia disponível para o en-frentamento do problema selecionado, ao tempo em que liberta a imaginação dos participantes para que possam pensar em formas inovadoras de organização das atividades previstas, com os recursos disponíveis. (tEixEiRa; Paim, 2002).

Se tais princípios valem para o setor saúde em geral,

destaca-se aqui sua pertinência na área da Saúde Mental,

considerando os desafios para ampliação e consolidação

dos seus novos serviços e práticas (serviços e práticas

inovadoras) e a estruturação de projetos intersetoriais.

Ilustrando o potencial do planejamento participativo

na ampliação de ações intersetoriais em Saúde Mental

À luz do planejamento participativo, as ‘situações’

que se apresentam como situações-problema – objetos de

intervenção – são realidades a serem conhecidas, reconhe-

cidas e exploradas pelos diversos sujeitos que as vivenciam.

o ponto central que se destaca nesse eixo é o reconhe-

cimento dos ‘outros’ atores na articulação desejada para

propostas de solução (construção de alianças para atuação

e solução). No atual momento da reforma Psiquiátrica,

Page 180: Saude Em Debate_n75

178

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

tanto no plano mais ‘macro’, como na esfera local de

implementação de ações, é indiscutível a necessidade

de potencializar a ‘reunião’ dos diversos sujeitos/agentes

envolvidos nesse ‘assunto’, no intuito de possibilitar a

manifestação de suas diferentes percepções e interesses, e

disparar movimentos de intervenção. No plano local, por

exemplo, deve-se refletir sobre até que ponto se avançou

no envolvimento do ator ‘família/familiares’ na dinâmica

dos novos serviços; indo mais longe: até que ponto foram

disparadas ações para envolvimento da comunidade local.

Por outro lado, deve-se refletir permanentemente sobre o

grau de articulação que se tem conseguido efetivar entre

os próprios serviços de saúde, buscando sempre manter

em pauta a discussão sobre ‘rede’.

de outro lado, numa perspectiva bastante am-

pliada, exemplos recentes da Saúde Mental podem

ser tomados para ilustrar experiências efetivamente

inovadoras no âmbito de um plano intersetorial. É o

caso da iniciativa de propiciar aos usuários atividades

como visitas/entradas nos cinemas da cidade, mobili-

zando, para isso, diferentes setores, incluindo a rede de

empresas de cineclubes. Isso demonstra a incorporação

e intercâmbio de desejos, interesses, saberes e recursos

distintos, bem como de operações táticas desencadeadas

para viabilizar essas ‘intenções’, essas ações. E, é um

exemplo de situação que deve ser colocada em análise,

nos espaços do cotidiano de trabalho, para delas serem

extraídas as ‘lições’ como experiência pedagógica, de

aprendizado no aporte de habilidades e instrumentos

de planejamento/negociações. Certamente essa é uma

dentre várias outras experiências, e foi aqui destacada

por permitir demarcar de forma muito pertinente à

‘coerência entre o que se propõe como projeto inovador

(âmbito da inclusão social efetiva dos sujeitos), o exer-

cício de uma clínica ampliada (contemplando recursos

ampliados nos projetos terapêuticos) e a perspectiva

organizativa (do planejamento) contribuindo para isso’.

(Comentário do autor)

Em um seminário da rede de serviços de Saúde

Mental da criança e do adolescente, tendo como tema

central a Intersetorialidade, foi possível contribuir

no aprofundamento da discussão sobre a construção

de ações articuladas com diferentes atores sociais. os

desdobramentos desse seminário levaram à revisão

dos marcos de organização da atenção à criança e do

adolescente, sendo um dos produtos desse movimento

a elaboração de um documento/projeto de construção

compartilhada, envolvendo a coordenação, equipes de

trabalhadores e gestores locais (dos serviços), abrindo-se

para o envolvimento de outras áreas. reafirma-se com

isso a potência do trabalho construído em parcerias.

o esforço para a realização de um trabalho con-

junto é por si mesmo um indicador de aprendizagem

na perspectiva da atuação integrada, desafio que deve

levar em conta as diferenças reais existentes (de objetos,

de saberes, de momentos, de gerência, etc.) entre os

diferentes serviços que compõem a rede, o que torna

fundamental a premissa de ‘flexibilidade’ para buscar

integração, inclusive numa perspectiva que pode ser

chamada político-pedagógica. Especialmente o ‘momen-

to estratégico’ do planejamento deve ser terreno fértil,

como salienta onocko (2003), para, nesses contextos, a

‘equipe se confrontar com as perguntas: Quem somos?

Quem são os outros? Estamos imaginando o mesmo

futuro? desejamos as mesmas coisas?’. desponta nesse

contexto uma importante problematização de ‘sentidos’,

de interesses e de espaços de governabilidade, que pode

apontar para desafios maiores, como reflexão sobre a

(re)construção coletiva de objetivos, produtos esperados

e processos de trabalho, estimulando a mobilização,

motivação, criatividade e assunção de responsabilida-

des, como a atitude política. a implicação no processo

passa a ir além da assunção ou delegação de funções e

competências restritas ao plano técnico. acredita-se que

a democratização das relações e intensificação das ações

comunicativas (entre dirigentes, técnicos e usuários, e

Page 181: Saude Em Debate_n75

179

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

interserviços em rede) deve-se constituir como um dos

produtos dos instrumentos de gestão, firmando espaços

para mudanças das práticas institucionais (camPos,

2000; tEixEiRa; Paim, 2002).

No momento atual da Saúde Mental, a exploração

de todas essas perspectivas pode potencializar em muito

o desenho, abrangência e ‘invenção coletiva’ de ações.

Vale ressaltar que alguns dos serviços substitutivos,

como os centros de convivência, vêm demonstrando,

segundo sua própria percepção, que não há limites

para disparar experiências inovadoras, muito para além

de abordagens tecnicistas. E quanto mais sistemáticas

forem as interlocuções, subsidiadas por arranjos/planos

político-instrumentais é possível aumentar o alcance e

qualidade dessas iniciativas e seus resultados.

AVANçANDO NO APORTE DE FERRAMENTAS

DE GESTÃO: APOSTANDO NOS

DISPOSITIVOS DE CONTRATUALIZAçÃO,

‘CONTRATOS DE GESTÃO’, PARA

CONSOLIDAR A REDE DE SAúDE MENTAL

até a presente discussão, foi enfatizada a aborda-

gem dos instrumentos de planejamento e organização

de serviços em seu potencial de abrir campo para pro-

blematizações e negociações. E na intenção de explorar

ao máximo essa perspectiva do compartilhamento dos

processos, das metas e do fazer cotidiano, pautam-se

agora os chamados ‘contratos de gestão’, dispositivos

que têm sido enfatizados a partir da Política Nacional de

Humanização (PNH) (bRasil, 2006) e que possibilitam

avanços nos modos de definir coletivamente os modos

de fazer e os rumos de um projeto, serviço ou da rede.

Parte-se de uma situação concreta que começou

a se experimentar na rede de Saúde Mental do SUS/

BH mais recentemente, envolvendo todos os caPs/

cERsams e Coordenação de Saúde Mental. o início

desse processo deu-se a partir de uma nova série de

oficinas chamadas pelos próprios serviços (gestores)

e coordenação, para discussão de problemas gerais

no funcionamento dos serviços e articulação da rede.

ao serem levantadas coletivamente algumas questões,

foi proposta a continuação do debate canalizando-o

de forma a apontar e direcionar, coletivamente,

metas e estratégias de ação (para enfrentamento dos

problemas identificados), definindo e negociando as

metas possíveis de serem alcançadas, considerando a

realidade de cada serviço e dentro de prazos julgados

pertinentes. assim seriam trabalhados com metas

que norteariam o acompanhamento e avaliação de

desempenhos, conforme acordos firmados entre

partes (Coordenação e gestores locais). os pró-

prios instrumentos avaliativos seriam negociados e

definidos de forma compartilhada. apesar de terem

sido envolvidos cerca de seis meses nesses primeiros

movimentos (de problematização, definição e pactu-

ação de metas), esse processo foi apenas iniciado e,

aqui, é importante ressaltar tal movimento enquanto

potencial que se apresenta para ajudar na consolidação

da rede de Saúde Mental do sus/BH. destacam-se

duas vertentes capazes de abrigar a riqueza desse

processo de contratualização e o que efetivamente

ele pode potencializar.

Quanto ao alcance do método/dispositivo

a perspectiva da ‘contratualização’ está atrelada à

efetivação de um processo de ‘co-gestão’, extrapolando

uma compreensão de ‘contrato’ no sentido formal,

normativo ou mesmo jurídico. No âmbito que mais

interessa ao presente artigo, contratar significa, então,

a capacidade de estabelecer contato, criar conexões,

redes – uma estratégia de pôr as ações, os serviços,

para funcionar de outro modo; para alterar os modos

Page 182: Saude Em Debate_n75

180

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

de relação e os modos de gerir o/no trabalho. Em

termos instrumentais, os contratos devem-se compor

de metas discutidas e definidas coletivamente, pelas

partes envolvidas no processo, co-construindo pro-

jetos, encadeando-se co-análises e co-elaboração de

propostas viáveis. Em sua metodologia, é importante

serem desencadeados movimentos simultâneos em

duas direções: em uma, o movimento de oficinas en-

volvendo gestores dos serviços e coordenação central;

em outra, um desdobramento e aprofundamento de

discussões entre gestores e suas equipes, não somente

repassando ‘informes’, mas criando-se espaços efetivos

de atualização das diretrizes dos projetos, propiciando

sua apropriação pelo conjunto dos trabalhadores e

ajustamento coletivo de metas no nível local.

Em ambas as direções, o eixo fundamental é

o de abertura a processos de pactuação, com co-

responsabilidade em torno de metas não-definidas de

modo apenas externo, mas de forma compartilhada.

Nesse eixo, deve-se valorizar também a perspectiva de

formação dos gestores quanto à capacidade de gestão

baseada na escuta; quanto ao aprimoramento de uma

das funções do gestor como apoiador institucional, a

de fazer ‘ofertas’, provocando e estimulando inovações

no trabalho, sustentando os processos e movimentos.

a essa ótica atrela-se a perspectiva pedagógica de forta-

lecimento dos gestores (e da gestão) quanto ao aporte

de conceitos, ferramentas e instrumentos de gestão,

que podem ser mais sistematicamente utilizados no

dia-a-dia, envolvendo os trabalhadores em práticas

institucionais de planejamento, avaliação, contratua-

lizações (com base em metas), ampliando a capacidade

de intervenções de toda a equipe. Esse aspecto ‘for-

mativo’, na própria prática, é um aspecto que deve ser

ressaltado inclusive pela necessidade e compromisso

institucional com a atualização dos gestores, alguns

novos na rede, e com pouco conhecimento das áreas

de planejamento, gestão e avaliação.

Quanto aos conteúdos previstos nos contratos e seu

‘acompanhamento avaliativo’

as metas que foram contempladas nos ‘contratos

internos de gestão’ refletem pautas ampliadas, nas quais

se pode observar o avanço do projeto de Saúde Mental

no sus/BH, sobretudo dando passos para ajudar a

ampliar/consolidar um trabalho em rede, com esforços e

instrumentos mais sistemáticos para viabilizar e sustentar

articulações e pactuações entre os serviços. Por outro

lado, e ao mesmo tempo, mostram-se claros os diferentes

momentos de cada serviço/cERsam, cada um apontando

suas metas específicas, seus ‘jeitos’ e seus tempos para

desencadear processos (para isso podendo-se proceder a

uma ‘decomposição’ das metas a serem programadas de

forma gradativa num cronograma de implementação).

o respeito aos diferentes perfis, momentos e especifi-

cidades de cada serviço é uma diretriz cara ao âmbito

dos contratos de gestão. É um dos seus diferenciais de

outros instrumentos de definição de metas, comumente

estabelecidas de modo prescritivo e unilateral. o que

poderia parecer apenas um processo de programação,

ganha outra relevância, de âmbito político e de rede de

compromissos.

Uma estratégia fundamental do processo de contra-

tualização é instituir um método de ‘acompanhamento

avaliativo’, cuidando para que as metas sejam aferidas

(em seu cumprimento), não no sentido de uma ‘fiscali-

zação de seu alcance absoluto’, mas no que se concebe

como ‘avaliação formativa’, capaz de ir ‘incluindo’ as ra-

zões que explicam seu maior ou menor êxito, subsidian-

do ‘regulações’ no processo e repactuação de metas.

Vale destacar as metas/iniciativas que foram aponta-

das, buscando-se cada vez mais efetivar o funcionamento

dos serviços na perspectiva de uma atuação transdisci-

plinar, crescendo em sua proposta de se constituir como

serviço inovador, produtor de conhecimento, de uma

‘clínica feita por muitos’ (utilizando uma expressão da

área e que serviu como mote de um dos grandes seminá-

Page 183: Saude Em Debate_n75

181

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

rios bianuais que se organizou com o cERsam Noroeste).

tudo isso vai de encontro ao que se quer enfatizar no

âmbito da missão dos serviços de saúde, marcando seu

compromisso com a produção de serviços (âmbito da

atenção), mas também com a produção de sujeitos,

conhecimento, aprendizagem no coletivo (âmbito da

gestão) (camPos, 2000; 2003; 2006). a democratização

das relações e intensificação das ações comunicativas

entre dirigentes, técnicos e usuários deve-se constituir

como um dos produtos desses instrumentos de gestão,

instituindo-se como espaço para mudança das práticas

institucionais.

R E F E R Ê N C I A S

amaRantE, P.d.C. a trajetória do pensamento crítico em Saúde Mental no Brasil: planejamento na descons-trução do aparato manicomial. In: Kalil, M.E.X. (org.). Saúde Mental e cidadania no contexto dos sistemas locais de saúde. São Paulo: hucitEc, 1992. p.103-119.

BRasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Hu-manização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

CamPos, g.W.S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: CamPos, g.W.S.; minayo, M.C,S.; aKERmaN, M.; JúnioR, M.d.; caRvalho, Y.M. (org.).Tratado de saúde coletiva. São Paulo: hucitEc, 2006.

______. Saúde paidéia. São Paulo: hucitEc, 2003.

______.Um método para análise e co-gestão de coletivos a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a de-mocracia em instituições: o método da roda. São Paulo: hucitEc, 2000.

onocKo, r.C. O planejamento no labirinto. 1. ed. São Paulo: hucitEc, 2003.

tEixEiRa, C.F; Paim, J.S. Planejamento e programação das ações intersetoriais para a promoção da saúde e da qualidade de vida. In: tEixEiRa, C.F. (org.) Promoção e vigilância da saúde. Salvador: ISC, 2002.

recebido: abr./2008

aprovado: out./2008

Page 184: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

doCUMENto HIStÓrICo / HISTORIcAL DOcUMENT182

o quadro sabidamente distorcido da assistência médica no Brasil, com a perversa tendência à privatização e ao

abandono pelo Estado da responsabilidade pela assistência médica da população, delegando essa obrigação social aos

grupos privados, é consideravelmente mais grave na área de cuidados ao doente mental.

Se é verdade que a tendência à privatização é um fenômeno geral atingindo os mais variados segmentos da as-

sistência médica, ou fora dela, não é menos verdadeiro que a previdência conta com alguns hospitais de conhecida

eficiência técnica, não raro os mais procurados nas diferentes especialidades por seu reputado padrão de qualidade e

que, se não atendessem ao universo de segurados, devido ao seu número aquém do mínimo necessário num Estado

estruturado para atender às necessidades mínimas de todos os setores sociais, constituir-se-iam um serviço modelo,

a partir do qual os particulares seriam medidos, num sistema em que o controle de qualidade sobre os serviços con-

tratados fosse efetivo.

Essa possibilidade, todavia, nem mesmo é possível na psiquiatria, especialidade da sem nenhuma unidade

hospitalar oferecida pela Previdência, deixando a totalidade da assistência entregue aos hospitais particulares

através da compra de serviços. Não resta, pois, à Previdência, a possibilidade de controlar a qualidade dos ser-

viços comprados, medida por comparação com a assistência diretamente prestada, como é exeqüível noutras

especialidades.

desse modo, é de se estranhar que a psiquiatria seja o setor da assistência médica onde as denúncias sobre as

distorções, a eficiência e o baixo padrão tenham se tornado lugar comum, motivo que faz dela assunto permanente

Comissão de Saúde Menta l dos cE b E s

SaÚdE MENtal condições de assistência ao doente mental*

* texto extraído de: “Condições de assistência ao doente mental”. In: assistência psiquiátrica no Brasil: setores públicos e privados. Revista Saúde em Debate, rio de Janeiro, n.10, p. 49-55, abr./jun. 1980.

Page 185: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

183CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

nas páginas dos jornais. Uma nota oficial do Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro, em

setembro de 1978, já apontava a necessidade de:

1. Denunciar que o modelo assistencial psiquiátrico em funcionamento é ineficaz, cronificador e elitista. Ineficaz, já que o índice de recuperação é insignificante e a prevalência de doença mental na população só tem aumentado. croni-ficador porque elege métodos que, usados isoladamente, provam ser francamente nocivos, como a segregação de doentes em hospitais, com internações repetidas. E elitista, porque deliberadamente exclui o acesso das camadas mais amplas da população a técnicas mais eficazes, como a psicoterapia.

2. Denunciar que tal distorção permite florescer uma verdadeira “indústria da loucura”, constituída por gigantescos hospitais, os quais têm na eterna reinternação de doentes mentais, tornados crônicos, uma fonte inesgotável de lucro, financiada principalmente pela previdência Social.

temos razão para acreditar que a alarmante situação, denunciada há cerca de um ano, não mostra sinal algum de

mudança. Pelo contrário, a desativação dos próprios da divisão Nacional de Saúde Mental (dinsam), o incremento

da política de credenciamento, o vertiginoso crescimento do setor privativo e a diminuição das oportunidades de

preparação de recursos humanos pintam com cores mais sombrias a situação do setor. a seguir, serão feitas conside-

rações sobre o quadro atual da atenção ao doente mental com base na cidade do rio de Janeiro, observando-se como

se articulam a atuação do Ministério da Saúde, da Previdência Social e o setor privado.

A ATUAçÃO DO MINISTÉRIO DA SAúDE

a dinsam, órgão do Ministério da Saúde, antigo Serviço Nacional de doenças Mentais, foi criada com o objetivo

de prestar assistência médica ao doente mental e ditar a política de saúde do setor. Uma das poucas áreas em que o

Ministério da Saúde ocupa-se de parte do atendimento médico assistencial às pessoas, a dinsam parece passar por

um processo irreversível de deterioração.

Criada em 1941, essa divisão orientou as políticas do setor e estimulou a construção de frenocômios por todo

o país, sendo que o setor público deteve a responsabilidade maior por essa parte especializada da assistência. além

da fixação das políticas e da parte normativa, a dinsam desincumbiu-se da prestação direta da assistência no antigo

distrito Federal através da Colônia Juliano Moreira, do Centro Psiquiátrico Pedro II, do Engenho de dentro, do

Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, e, posteriormente, do Hospital Pinel. Com a transferência da Capital para

Brasília e com a criação do Estado da guanabara, os hospitais permaneceram sob a administração do Ministério da

Saúde, situação diferente das verificadas nas demais unidades da federação.

Embora devesse oferecer um atendimento de padrão modelar, próprio para uma instituição que normatiza a

assistência, a verdade é que a assistência prestada se caracterizou, com breves e escassas exceções, como retrógrada,

ineficaz e aquém do padrão mínimo aceitável.

o Hospital Pinel, talvez por estar localizado na Zona Sul carioca e prestar pronto-socorro a uma camada social-

mente privilegiada da população, funcionou desde a sua criação em moldes mais modernos, oferecendo uma assistência

de melhor qualidade. tanto foi assim que logo se transformou em um dos principais centros de formação de recursos

Page 186: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

184 CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

humano, acolhendo estagiários de todo o país; essa situação perdurou até o último ano. No Centro Psiquiátrico do

Engenho de dentro, no curto período de 1972 a 1974 ocorreram experiências bastante interessantes tanto do ponto

de vista técnico, com a introdução de novas formas de tratamento, quanto do ponto de vista de formação profissional,

com a instituição da residência médica e o incremento das possibilidades de aperfeiçoamento técnico para as diversas

categorias profissionais que atuam nos programas de atenção ao doente mental. tais experiências não tiveram, po-

rém, longo fôlego. Experiências promissoras em seu início, dotando a dinsam de atividade acadêmica, propulsora de

melhorias no padrão de atendimento, elevando o conceito dos profissionais e da população beneficiaria dos hospitais

do Engenho de dentro, não foram adiante. Injunções políticas, interferências na orientação técnica adotada e mma-

cartismo fizeram com que esses hospitais regredissem a uma época que se acreditava estar ultrapassada. as técnicas

mais liberais e eficazes de tratamento, com psicoterapia, o atendimento familiar, a comunidade terapêutica, e mesmo

o internacionalmente conhecido Museu do Inconsciente, considerados subversivos pela maior liberdade e participação

que propiciavam ao interno e foram substituídos pelo encarceramento sumário e pela brutal opção do eletrochoque,

além das altas doses de medicamentos.

deve-se lembrar, a bem da verdade, que o padrão de atendimento do Hospital Pinel relativamente razoável – por

comparação – e esses fugazes ventos inovadores no Engenho de dentro em nenhum grau transportaram as sementes

modernizantes à Colônia Juliano Moreira com seus milhares de internos, insignificante número de técnicos, deixa-

dos ao longo do caminho, entregues à própria sorte. Para se ter uma vaga idéia do desamparo a que foram relegados

esses infelizes, um grupo de médicos, assistentes sociais e psicólogos, contratados em 1974 como estagiários, foram

encarregados de fazer um levantamento sobre o número e a situação dos pacientes ali internados2. Para a perplexidade

desses técnicos, dentre os inúmeros absurdos constatados, descobriu-se que o número real de internos era bem maior

do que a capacidade a instituição, doentes (?) sem registro, sem prontuário nem tratamento. Para citarmos apenas

mais um dado, tendo em vista o número exaustivo de problemas apontados, boa parte dos pacientes não via um

médico havia mais de dez anos, o que da indícios do descaso da instituição em relação à recuperação dos pacientes.

Isso nos permite, ainda, fazer uma dramática interferência sobre os índices de recuperação naqueles hospitais, posto

que a dinsam não divulga dados sobre período de internação e índice de altas.

o fim da residência médica no Engenho de dentro e a repressão às formas mais modernas de tratamento, não

sustaram os programas de estágio, que prosseguiram no Hospital Pinel, foram estendidos ao Engenho de dentro e,

em menor grau, à Colônia e ao Manicômio Judiciário. Entende-se isso, em primeiro lugar, pela dramática carência

de profissionais nesses hospitais, o que poderia ser minimizado pela ampliação do número de estagiários não remu-

nerados ou bolsistas sub-remunerados, mas se tornaria mais oneroso com a utilização de profissionais regularmente

contratados; em segundo lugar porque, com o afastamento da direção que implementara inovações, estimulando a

participação de técnicos e pacientes na condução do tratamento, novos técnicos foram então admitidos para trabalhar

“com rédeas curtas” e mantendo o mesmo controle sobre os pacientes. os técnicos que para ali se dirigiram, em geral

recém-formados e em busca de aprimoramento e experiência, acharam-se usados como mão-de-obra substitutiva,

farta e barata, nem ao menos recebendo em troca a especialização procurada.

Estiolou-se a formação, subverteu-se a experiência, e o estágio para profissionais e estudantes foi oficializado atra-

vés de concursos para as “bolsa de saúde mental”, com verbas da Campanha Nacional de Saúde Mental, expediente

que ao mesmo tempo sub-remunerava o profissional utilizado como mão-de-obra para sanar a crônica deficiência

Page 187: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

185CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

de técnicos (o último concurso para o provimento de cargos data de 1957), e mascarava o processo de exploração

existente por não reconhecer o vínculo trabalhista, expediente típico de lesão aos direitos do trabalhador assalariado,

perpetrado por instituições públicas ou privadas nesses 15 anos de regime autoritário.

a partir de então, o peso maior da responsabilidade com a assistência caiu predominantemente nos ombros de

estudantes e profissionais denominados estagiários ou “bolsistas”, fórmula mágica através da qual o Ministério da

Saúde desconhecia os direitos trabalhistas de mais de duas centenas de trabalhadores. Para evitar discussões estéreis,

julgamos relevante ressaltar que não se tratava, absolutamente, de cursos de especialização ou de estágios de treinamento

profissional, como demonstravam a inexistência de um programa de ensino, a falta de supervisão e, até mesmo, a

assunção de cargos com responsabilidade de chefia por esses trabalhadores que, ademais, cumpriam função de ensino

ao orientar a prática dos estudantes que faziam Internato no Hospital Pinel. Não restam dúvidas, pois, tratar-se de uma

forma de velar a relação de emprego, escamotear a legislação trabalhista e lesar os direitos desses trabalhadores3.

Naturalmente, a progressiva mobilização de amplos setores da sociedade civil e dos trabalhadores, em particu-

lar, em prol da reconquista dos direitos usurpados a partir de 1964, teve forte ressonância entre os profissionais da

dinsam4. alargada a tomada de consciência do esbulho aos seus direitos e criadas as condições para sua organização e

mobilização, com a criação do Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro, esses trabalhadores,

após insistirem na regularização de sua situação trabalhista e na melhoria da assistência, razões pelas quais se viram

acuados por ameaças e punições diversas, até a concretização de demissões, paralizaram suas atividades; foi única

maneira encontrada para deixar clara a discordância da parte deles com o tipo de atendimento que vinham sendo

obrigados a prestar, especialmente no Engenho de dentro e na Colônia Juliano Moreira, e exercer legítima pressão

no sentido de ver tal situação regularizada. Na ocasião, foi enviado um documento à direção da dinsam e ao Ministro

da Saúde, Sr. almeida Machado, do qual, entre outras reivindicações, destacamos:

1. Reconhecimento do vínculo trabalhista conforme prevê o cap. V – decreto 60.252, que cria a campanha Nacional de Saúde Mental, para os técnicos funcionalmente denominados “bolsistas” [...]2. Regularização da situação trabalhista, conforme determinada a Lei 3.999 de 15 de dezembro de 1961, para os técnicos funcionalmente caracterizados como estagiários, que cumpram carga horário semanal mínima de 20 horas e que tenham tempo de serviço superior a 6 meses. O art. 3º da referida Lei dispõe sobre a remuneração para os médicos ditos estagiários e acadêmicos internos após cumprido esse prazo.3. Regularização da situação trabalhista dos demais técnicos em saúde mental, em conformidade com o disposto na cLT.

4. criação da Residência Médica em Psiquiatria, oficializada junto ao MEc, e de acordo com as normas da Associação Nacional dos Médicos Residentes.5

Na realidade, em sua “luta pela dignidade profissional e melhores condições de atendimento à população”6,

esses trabalhadores exigiam tão somente o cumprimento da legislação em vigor, tornada letra morta pelo próprio

poder público.

data daí o ritmo acelerado de deterioração, até agora irreversível, do atendimento psiquiátrico prestado pela

dinsam, bem como a paralisação dos programas de aperfeiçoamento de recursos humanos levados a cabo, princi-

palmente no Hospital Pinel, e que deixaram seqüelas de extrema gravidade mesmo com a contratação de alguns

profissionais pelo departamento administrativo do Serviço Público (dasP), pequeno número, considerada a popu-

Page 188: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

186 CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

lação de internos e o volume de atendimentos outrora prestados nos ambulatórios que até hoje continuam à mostra,

desafiando uma solução. Essas seqüelas, conseqüências da irresponsabilidade da direção da dismam e do Ministério

da Saúde, podem ser assim resumidas:

1. Extinção do atendimento psicoterápico à população infanto-juvenil, sem recursos para tratamento particular;

2. Extinção do ambulatório de Crise do Hospital Pinel, para prevenção de suicídios e atendimento a problemas

emocionais prementes;

3. Paralisação do Centro de Informação toxicológica (CIt) do Bloco Médico – Cirúrgico do Engenho de

dentro;

4. Comprometimento da qualidade do trabalho assistencial dos demais setores, pela sobrecarga de trabalho

sobre os trabalhadores que permaneceram incapazes de arcar com as duas centenas de serviços que, mesmo contando

com as duas centenas de demitidos, era demasiado7.

Não é à toa que o Ministério da Saúde, órgão normativo da assistência médica e que deveria prestá-la em nível

modelar, oferece à população uma assistência que, para evocarmos uma palavra que designava certo tipo de doente

mental, é sórdida. a Colônia Juliano Moreira, com seus 4.000 internos, parece estar situada fora do tempo, cuja marcha

parece ignorar, e cumprir seu inexorável destino de campo de concentração8. o Centro Psiquiátrico do Engenho de

dentro está com seus ambulatórios desativados, pavilhões semi-abandonados e internos assistidos por um número

insuficiente de técnicos. o Hospital Pinel, outrora disputado campo de treinamento profissional e dotado de serviços

de conceituada reputação, encontra-se semi paralisado.

os hospitais do Ministério da Saúde são hoje, mais do que nunca, baluarte da psiquiatria mais retrógada. Brioche

para os ideólogos da privatização; prova da incapacidade da privatização; prova da incapacidade do poder público em

prestar assistência médica à população.

A PREVIDÊNCIA SOCIAL E A SOLUçÃO ASILAR

ao contrário do que ocorre na área do Ministério da Saúde, onde a assistência é prestada diretamente através da

dinsam, na área previdenciária, o Instituto Nacional de assistência Médica da Previdência Social (inamPs) arca com

apenas parte do atendimento ambulatorial, oferecendo a grupos privados, e outros, toda a assistência hospitalar.

o destaque, para efeito de exposição, da assistência previdenciária privativista, por equívoco, não marca como

poderia uma oposição ao Ministério de Saúde. Pelo contrário, somos levados a acreditar em uma complementaridade

entre as duas áreas: na medida em que parece ocorrer uma progressiva e intencional atrofia do Ministério da Saúde,

tem-se como conseqüência a retração de sua área de atuação na assistência psiquiátrica direta, ocorre simultaneamente,

grande crescimento da oferta de atenção médica por terceiros, através da venda de serviços à Previdência. ou seja, a

retratação do Ministério da Saúde na prestação de serviços, no rio de Janeiro, coincide com a hegemonia absoluta

da atenção previdenciária, entregue a terceiros. Faz-se necessária a pergunta: quem lucra com essa política de saúde?

Page 189: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

187CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

Parece que a resposta está diante dos olhos de quem quer enxergar. Isso não quer dizer (desfaçamos logo qualquer

equívoco) que apoiemos ou façamos apologias à psiquiatria asiliar prestada pelo Ministério da Saúde ou por quem

quer que seja. o problema é que a progressiva desmobilização dos próprios do Ministério da Saúde, longe de repre-

sentar uma diminuição no índice de reinternação no rio de Janeiro, apenas mudou o locus, situado agora no hospital

privado, cujo objetivo é o lucro e onde o paciente é apenas um meio para isso, uma mercadoria. Bem entendido, a

retração da atenção psiquiátrica pelo Ministério da Saúde determinou apenas um repasse do paciente ao lucrativo

setor privado.

Esse modelo assistencial adotado pela Previdência, entregando a terceiros a responsabilidade pela assistência,

proporcionou um verdadeiro boom psiquiátrico, representado pelo vertiginoso crescimento do número de leitos

psiquiátricos e, em seu rastro, da população asilar. Seria o resultado do surgimento de demanda reprimida, consti-

tuída por pessoas até então sem acesso aos hospitais? Parece tratar-se de algo diferente, todavia. Não temos notícia,

pelo menos neste século, de pacientes psiquiátricos sem tratamento por ausência de vagas em hospital. ao contrário

de outras especialidades, em que existem até mesmo filas de pacientes aguardando vagas para tratamento clínico ou

cirúrgico em regime de internação, na psiquiatria, os leitos existentes, já no período anterior à adoção da linha priva-

tizante, davam conta da assistência a ser prestada. apesar disso, entretanto, o credenciamento de leitos foi crescente,

fazendo-nos supor que isso era realizado sempre diante da demanda. Coloca-se, então, a pergunta: Qual a natureza

dessa demanda?

Pergunta difícil de ser respondida, dada a inexistência de estudos mais aprofundados nesse campo; dificuldade

essa, acrescida inclusive pela imprecisa delimitação do conceito de doença mental. Isso, porém, não nos impede de

adiantar a seguinte hipótese, plausível a nosso ver: o sistema político e econômico, implantado neste país nos últimos

15 anos, pelo que vem provocando de opressão, exploração e miséria, constitui-se como um fator permanente de

exclusão do tecido social ao elevar a criminalidade, a morbidade e a marginalização em geral a índices inimagináveis.

as instituições de saúde, a psiquiátrica em especial, ao tomarem para si esses marginalizados, enquanto doente, exime

a sociedade da responsabilidade de sua produção. ou seja, o processo de desenvolvimento adotado no país, alienante

e excludente, deixa à sua margem uma parcela de indivíduos que não suportaram o peso da marcha. a instituição

médica, ao medicar o problema, psiquiatrizá-lo ao inseri-lo nas classificações nosográficas, esconde a relação causal

existente, prestando-se ao papel ideológico de escamotear a questão da produção social da doença. a contrapartida

da dissimulação ideológica oferecida ao sistema está representada nos ganhos que aufere, em decorrência da linha

privatizante adotada, tendo o Estado abandonado sua função de produtor de direto aos serviços de saúde.

Para que não restem dúvidas: estamos falando da cumplicidade entre o Estado, que deveria representar a todo

heterogêneo da sociedade, e a parcela dominante desse todo, representada aqui, nesse setor específico do sistema,

pelos empresários da saúde. de um lado, o Estado ao adotar um modelo político-econômico marginalizador de

mais de 70% da população em relação aos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico, possibilita um

aumento econômico, possibilita um aumento dos índices de morbidade e, com ele, de doenças mentais, ao mesmo

tempo em que privatiza a assistência; de outro, esses setores privados, beneficiados pela linha privatizante e que, em

contrapartida, isenta a organização social imprimida pelo Estado, pela responsabilidade da produção das doenças, ao

medicar ou psiquiatrizar o problema.

Page 190: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

188 CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

Para se ter uma idéia a respeito da produção desse tipo especial de marginalizados9, o doente social e o papel

ideológico de encobrimento da medicalização, vale consultar o ensaio Assim enlouquecem nossos operários10, publicado

recentemente, que aponta como alternativa para fugir da fome e da miséria, “a loucura como estatuto”, isto é, uma

condição que permite ao trabalhador receber o benefício doença da Previdência e fugir da exploração do trabalho.

ainda sobre a natureza desse tipo de marginalização continuam ou autores:

Ele está alienado do controle social e do controle da produção, produz sem prazer e sem nenhum outro ganho secundário de origem psicológica, só é motivado pela permanente necessidade imediata de sobrevivência. É máquina submetida a stress contínuo, a desgaste oriundo das massacrantes jornadas de trabalho, o que ganha não dá nem para a alimentação e, portanto, não há a mínima possibilidade de lazer, as férias são vendidas em troca de um salário extra, a vida é um imenso e doloroso cansaço.

Insistindo ainda na caracterização dessa demanda, para que não pairem dúvidas sobre a cumplicidade que de-

nunciamos, entre Estado e empresários da saúde, citamos uma matéria, publicada no último boletim informativo do

Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro11, sobre a região de Paracambi (rJ) que, diante do

fechamento de sua maior indústria e o aumento extraordinário do índice de desemprego e miséria:

assiste à expansão de um hospital psiquiátrico, que lentamente vai absorvendo, no seio acolhedor da medicina mental, os desempregados e suas famílias: o hospício substitui a fábrica; o desemprego e a miséria se acomodam no diagnóstico psiquiátrico.

Considerada assim a natureza da demanda12, entende-se o que significa o crescimento do número de leitos psi-

quiátricos enquanto pólo de atração para essa massa de marginalizados sociais, feitos doentes, e que encontram no

Estatuto do doente Mental uma forma de subsistência, através do benefício-doença. a internação representa, para o

paciente, a prova da gravidade de seu estado de saúde e a garantia do recebimento do auxílio e, para o hospital, lucro

certo e garantido no ato do credenciamento com a Previdência.

acusada a linha privatista vigente e caracterizada a demanda, faz-se mais claro o predomínio asilar em detri-

mento do tratamento ambulatorial, implantado nos últimos anos, embora sabiamente ultrapassado e mais oneroso.

Ultrapassado porque, ao invés de contribuir para o ponto restabelecimento do paciente, contribui justamente para

institucionalizá-lo ao cronificar as suas mazelas; e oneroso porque comparado ao custo do tratamento realizado em

caráter ambulatorial (mais eficaz inclusive e, por isso, menos interessante do ponto de vista econômico) é o que conta

dentro da lógica capitalista para as empresas médicas13. Estas exercem, através da Federação Brasileira de Hospitais

(FBH), uma influência na fixação das linhas políticas para a saúde, sem a contrapartida da influência do segurado.

daí a orientação vigente, nitidamente privativista e empresarial, autocrática e antipopular, no sentido que, se atende

às pressões dos setores empresarias, não responde às necessidades de saúde da população. o próprio Ministério da

Saúde aponta o quadro da assistência psiquiátrica no Brasil da seguinte forma:

1. O sistema assistencial brasileiro, baseado na solução custodial, que consiste na internação em massa dos pacientes em hospitais psiquiátricos, está inteiramente superado, pois seu abandono vem sendo preconizado há cerca de trinta anos.

Page 191: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

189CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

2. As internações em hospitais psiquiátricos do país são feitas, em proporção apreciável, de modo indiscriminado sem a devida triagem especializada.3. As despesas com hospitais psiquiátricos alcançam 90% dos custos operacionais totais, havendo Estados que não utilizam recursos em serviços estra-hospitalares.14

o Ministério da Saúde reconhece, pois, a natureza anômala e indefensável da tendência asilar da assistência psi-

quiátrica ao privilegiar o asilo, em detrimento do ambulatório e ao estimular o uso abusivo do leitor hospitalar. dessa

forma, o índice de internação em relação ao número de consultas efetuadas superam qualquer estimativa técnica. Para

se ter uma noção em números, prova irrefutável de que o interesse do segurado ou de que os parâmetros ditados por

estudos idôneos ficam em segundo plano diante da lógica empresarial, confrontamos a estimativa da organização

Mundial da Saúde (oMS), segundo a qual “o percentual de admissão hospitalar deverá atingir 3% das consultas

psiquiátricas”, com a estimativa da Previdência que calcula em 13,7% as consultas psiquiátricas que resultaram em

internações em 1975 e em 36% o cálculo referente apenas ao Estado de São Paulo em 197315.

ao menos no que diz respeito a discursos, publicações, mensários estatísticos, etc, não têm o Ministério da Saúde

ou a Previdência como negar a índole perversa de um modelo voltado exclusivamente a interesses alheios à recuperação

da saúde do segurado. No que diz respeito à prática, entretanto, aliam-se na cumplicidade ao estimularem a medici-

na de mercado, omitirem-se na apuração das denúncias às distorções apontadas e propiciarem o credenciamento de

crescente número de leitos hospitalares construídos com financiamento do Fundo de apoio Social, recurso público,

portanto. Em dados de 1973, tímidos para refletir a aberração de hoje, as ações de saúde do Ministério da Previdência,

quanto a gastos, se realizam em mais de 90% através do setor privado, dos quais 80% em hospitalização16. atualizem-se

esses dados, considerando a privatização crescente e, ademais, considere-se que nessa área especializada a Previdência

não conta com nenhum próprio e teremo, na devida dimensão, o caráter perverso, anacrônico e cúmplice, que os

setores público e empresarial conferem ao modelo assistencial. Essa característica, nesse setor especializado, reflete

e complementaridade e adequação entre o sistema político-econômico alienador-enfermizante e a prática médica

psiquiatrizante.

Não seria acaso necessário perguntarmos: a existência de instituições que acolham em seu seio esse marginalizado

social, diagnosticado como doente mental, encobrindo com o manto de seu reconhecimento científico e a reivindi-

cação da propriedade de sua intervenção técnica, os mecanismos socioeconômicos da marginalização? Não integrará,

organicamente, um sistema calcado na defesa de interesses particularistas e na repressão e marginalização daqueles

que se lhes opõem? É justamente a confirmação da existência da organicidade dessa relação, que estivemos discutindo,

que faz do modelo assistencial o que ele é hoje.

Indicada a inclinação estrutural da assistência – perversão estrutural – e de como se dá nele a inserção da insti-

tuição psiquiátrica, faz-se necessária, ainda que em rápidas pinceladas, uma observação sobre o papel desempenhado

pelos técnicos de saúde mental e suas condições de trabalho.

Como se sabe, o modelo capitalista de desenvolvimento impôs não apenas uma alienação do trabalhador em

relação aos instrumentos de produção e ao produto de seu trabalho, mas também determinou um rumo na evolução

das relações de produção, no sentido de uma socialização cada vez mais ampla da atividade produtiva. ora, julgando

ter ficado claro o exposto até aqui, se a prática médica é organizada em termos empresariais e obedecendo à lógica

Page 192: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

190 CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

do mercado, nenhuma estranheza deve causar a verificação de que uma evolução no mesmo sentido tenha ocorrido

na medicina17. de fato, o predominante no cenário da assistência médica são as clínicas, hospitais, etc, geridos como

empresas, voltadas para o lucro como qualquer empresa capitalista, transformando o médico e demais técnicos em

trabalhadores assalariados. Empregado, trabalhará cumprindo orientação da empresa, atribuindo prioridade ao lucro

financeiro do patrão, o que significa aumentar o período de internação, efetuar internações desnecessárias e outros

expedientes, sem contar aqueles que correm o risco de serem sumariamente dispensados18. Não é por outra razão que

o total de intervenções em psiquiatria no país, na área previdenciária, chegou a 305 mil quando a estimativa da Pre-

vidência ficava em 105 mil, calculando-se em bilhão o gasto desnecessário, no ano de 197719. Como desvincular esse

tipo de distorção do processo de aviltamento da dignidade do profissional acuado diante da pressão dos empresários,

sob a angustiante necessidade de garantir o emprego?

assim se explicam as condições de exploração a que os profissionais estão submetidos e que, por sua vez, está inti-

mamente relacionada com o tipo da assistência prestada: 1) o empresário, dispondo de forças de trabalho em excesso,

sustentado pela proliferação indiscriminada de escolas médicas, impõe sua lei ao mercado, explorando o médico e

interferindo em seu trabalho. Impõe critérios de admissão, altas, tratamentos e etc, que visam ao lucro e não à cura;

2) o padrão de atendimento, em conseqüência, é o pior possível, com o tratamento sofrendo a intervenção de fatores

extra técnicos, não raro danosos ao paciente; 3) o médico, impotente, é aviltado: primeiro, na sua autonomia técnica,

ao se ver constrangido a adotar critérios com os quais não concorda, cassada sua liberdade de escolha do tratamento

adequado, independentemente do fato de a empresa receber mais ou menos por ele; segundo, em sua condição de

trabalhador, ao ver freqüentemente desrespeitados os direitos trabalhistas elementares.

Quando o profissional mostra discordância com o papel que lhe obrigam exercer, invariavelmente perde o

emprego. E os casos de demissão, sobretudo nesses dias em que, depois de anos de severa repressão, os médicos

e demais técnicos voltam a discutir a questão da assistência psiquiátrica e a reivindicar melhores condições de

trabalho, são cada vez mais freqüentes. Situam bem o problema das demissões e ameaças diversas, aqueles que as

consideram como:

investida dos empresários da loucura contra aqueles que se negam a compactuar com as condições vergonhosas de tra-balho e com o precário atendimento dispensado aos pacientes.20

diante desse quadro sombrio, onde se combina o desrespeito aos direitos e à dignidade do profissional, o trata-

mento repressivo aos pacientes e o super-faturamento das empresas, a Previdência cruza os braços, abdicando à sua

responsabilidade, a não ser que atribuamos seriedade e eficácia aos relatórios que locupletam as gavetas dos burocratas,

ou as prosaicas ‘incertas’ do atual titular da pasta.

o mal de que sofre o modelo médico assistencial e, em particular, a assistência psiquiátrica, é estrutural. Não se

trata apenas de evitar distorções, recuperar ou aperfeiçoar o atual modelo. a perversão estrutural que denunciamos

tem seu ponto de partida na abdicação, pelo Estado, à prestação de um serviço básico: o serviço de saúde, direito

inalienável do homem. ao delegar sua prestação a terceiros, o Estado mostra, na área específica da saúde, a feição

particularista que vem assumindo nos últimos quinze anos.

Page 193: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

191CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

NOTAS*

1. Jornal do Brasil, 2/9/78.

2. dados obtidos com profissionais que fizeram parte desse grupo de trabalho. o relatório final desse levanta-

mento foi arquivado pela dinsam.

3. Para melhor caracterização da situação dos profissionais denominados “bolsistas”, consultar o artigo Subem-

prego na Dinsam, publicado no sinmEd, abril de 1978. p. 6 (rJ).

4. Ver documento enviado pelos “bolsistas” e estagiários, datado de 6/6/78, ao diretor da dinsam, exigindo

a readmissão de três colegas demitidos, por denunciarem as precárias condições da assistência e a irregularidade do

vínculo trabalhista. a resposta a este documento foi a demissão imediata de mais 80 profissionais.

5. documento enviado ao Ministro da Saúde em julho de 1978.

6. Idem.

7. Nota oficial do Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro, em O globo, setembro

de 1978.

8. Jornal do Brasil, 23/9/79.

9. a marginalização social gerada pelo modelo de desenvolvimento a que o país vem sendo submetido a partir

de 64 se manifesta ao aumento da criminalidade, dos menores abandonados, uso de drogas, etc. a doença mental

representa apenas uma das formas de marginalização.

10. revista rádice, pág. 21, nº 10, ano II, jul-agost, 1979.

11. Boletim Informativo do M.t.S.M., nº 5, agosto de 1979.

12. a caracterização da demanda, feita aqui superficialmente, está a exigir estudos mais aprofundados. tornado

doente mental pelo trabalho ou excluído do processo de produção, marginalizado e acolhido numa instituição psi-

quiátrica, essa diferença não tira a validade da nossa argumentação.

13. “Que o setor privado mantenha a situação pela recusa em investir em ambulatórios compreende – se facilmente

porque a consulta médica que irão vender ao inamPs custa Cr$ 86.00 e o leito hospitalar 5.000 ao mês. apesar disso,

em alguns Estados como Pernambuco e São Paulo, um sistema ambulatorial privado começa – se a estruturar, talvez

nesses casos o ambulatório e hospital psiqiátrico estejam se retro alimentando não tem que prove aos empresários

que os ambulatórios podem ser lucrativo”. santana, S. A Situação da Assistência Psiquiátrica no Brasil. III Encontro

Nacional de assessores de Psiquiatria do inamPs/MPaS, Porto alegre, rS, outubro de 1978, mimeografado.

14. bRasil, MS. Política Nacional de Saúde, Brasília, 1973.

15. gEntilE dE mEllo, C. a Irracionalidade da Privatização da Medicina Previdenciária. Revista Saúde em Debate,

nº 3, 1977, SP.

16. gEntilE dE mEllo, C. Perspectivas de Medicina da Previdência Social, Ver. Paulista de Hospitais, 21(12):540-

46, dez. 1973, SP.

* as citações do presente documento foram mantidas na formatação da publicação original.

Page 194: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008

192 CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

17. Na psiquiatria a socialização do trabalho é favorecida ainda mais por ser a assistência desempenhada por uma

equipe multidisciplinar.

18. sinmEd, jun-jul., 79, pág. 13, rJ.1

19. gEntilE dE mEllo, op. Cit., 1973.

20. B. I. do M.t.S.M., op. Cit., nº 5.

Page 195: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 193

a crise de dominação no sistema público de saúdeThe domination crisis in the Brazilian public health system

RESUMO A crise atual das instituições públicas de saúde é evidenciada pela

freqüência sempre crescente com que surgem notícias, veiculadas na imprensa

escrita, manifestações de insatisfação dos usuários e trabalhadores da saúde.

Procurando compreender melhor essas manifestações, este artigo examina o

enfraquecimento dos mecanismos de dominação/controle dessas instituições sobre

os trabalhadores de saúde e população. Em segundo lugar, apontam-se as formas

de coerção adotadas por essas instituições em situação de oposição e conflito. E,

finalmente a necessidade de um controle verdadeiramente democrático sobre o

setor é reafirmada. Foram utilizadas como prova da situação atual de crise no

setor, notícias de jornais de difusão nacional e regional.

PALAVRAS-CHAVE: Dominação-subordinação; Participação social; Sistemas

de saúde; Setor público.

ABSTRACT The current crisis in the Brazilian public health institutions becomes

evident through the users’ and healthcare workers’ manifestations of dissatisfaction

shown in the increasing number of news in the press. Aiming at understanding

those manifestations, this paper analyzes the institutions’ weakening of the control/

domination mechanisms over healthcare workers and the population. The ways of

coercion adopted by some institutions in situations of conflict and opposition are

herein pointed out. Finally, this paper also reinforces the need of a true democratic

control over the health sector. As a means of highlighting the current situation,

news printed in both local and national newspapers were used.

KEYWORDS: Dominance-subordination; Social participation; Health systems;

Public sector.

arlene laurent i Monterrosa ayala 1

1 Mestre em Saúde Pública pela

Universidade Federal de Santa Catarina

(UFSC); enfermeira da Secretaria

Municipal de Saúde de Joinville,

(SMS).

[email protected]

Page 196: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

194 aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde

I N T R O D U ç Ã O

Como pode a 8ª Conferência Nacional de Saúde e

o movimento pela reforma Sanitária dos anos 1970 e

1980 ter tido sucesso em identificar um modelo teórico

de atenção à saúde com base em premissas e diretrizes

da universalidade, integralidade, equidade, descentrali-

zação e participação da sociedade, mas não nas formas

e modalidades de transição para que tais premissas e

diretrizes fossem alcançadas?

É tarefa de uma teoria de transição articular as

questões específicas do processo social em andamento,

identificando com precisão suas limitações. desse modo,

as restrições da teoria da reforma Sanitária com relação

aos problemas da transição hoje se afirmam, primor-

dialmente, pela ausência de uma estrutura organizativa,

composta por indivíduos livremente associados capaz

não só de negar a ordem dominante, mas também de

exercer as funções de participação na efetivação dos ide-

ais da reforma Sanitária. a participação, como resultado

de tradições culturalmente estabelecidas na sociedade

no intercurso material, é o elemento estratégico para

a reestruturação dos rumos da tão desejada reforma

e retomada do compromisso com os valores de uma

sociedade produzida na própria realidade.

Hoje, somos testemunhas da atual crise pela qual

o setor público de saúde vem passando. tal crise, nem

preciso dizer, vem violando o direito mais elementar dos

indivíduos: decidir sobre sua própria existência.

a leitura de jornais com informações sobre o nosso

dia-a-dia pode constituir uma fonte importante para a

explicitação da crise e dos embates políticos contempo-

râneos do setor da saúde. Nessa perspectiva, procurou-se

mostrar um olhar sobre o nosso cotidiano e uma leitura

mais atenta das informações veiculadas pela imprensa

escrita às quais, muitas vezes, não damos nenhuma

importância e sequer percebemos as manifestações de

uma crise ali explicitadas.

O trajeto problemático do setor de saúde

durante o percurso de organização do setor saúde

no Brasil, a função da participação na definição das

políticas de saúde foi alienada dos setores da sociedade

e transferida para as instituições públicas. assim, essas

instituições adquiriram o poder de aglutinar os traba-

lhadores de saúde e setores da sociedade num padrão

hierárquico estrutural e funcional segundo um critério

que define a maior ou menor participação no controle

e definição dessas políticas.

a centralização do poder de decisão nos níveis

centrais de comando e a arrogância dos especialistas em

planejamento e gestão em saúde não têm sido capazes de

imprimir a eficácia, no sentido de controlar o número de

pessoas que vêm adoecendo e morrendo diariamente.

Práticas determinadas em tais bases têm privado os

trabalhadores do setor e usuários, de participar efetiva-

mente na definição das políticas de saúde, o que vem

ampliando consideravelmente a incapacidade do setor

em responder às necessidades básicas de saúde dos indiví-

duos e da coletividade. a prova disso é a crise estrutural

da saúde, que já vem ocorrendo há algum tempo e, a

cada dia, aprofundando-se, ainda que sua intensifica-

ção não assuma a forma de “grandes confrontações”. a

seguir, mostraremos trechos de manchetes publicadas

em jornais que explicitam a crise.

Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e bebês são transferidosA Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro fechou, ontem de manhã, a Maternidade Leila Diniz, em Jacarepaguá, onde um bebê morreu no início do mês e outros três foram contaminados, supostamente por uma bactéria. [...]. Há um ano, outros cinco bebês também adoeceram por causa de uma bactéria e três

Page 197: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

195aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde

deles morreram, após inundações na maternidade (albuquERquE, 2005).

outra notícia veiculada no Jornal Folha de São Paulo

expõe a gravidade da situação atual. Em nome da neces-

sidade de racionalização, estuda-se de que forma poderá

ser negado aos pacientes com quadro clínico grave o

acesso a tratamentos que poderiam salvar suas vidas.

Constata-se que, na tentativa de resolver o problema do

déficit do número de leitos de UtI, o governo propõe a

restrição do acesso aos pacientes, sem que em momento

algum faça referência às reais necessidades de ampliação

do número de leitos. Segundo o presidente da associação

de Medicina Intensiva Brasileira (amib):

existe oferta de 21,5 mil leitos de UTI em todo país, no entanto, seriam necessários no mínimo 26 mil vagas, embora o número ideal, segundo recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de no mínimo 44 mil. (apud colluci, 2005, p. C1).

Governo federal quer restringir UTI a doentes com chances de recuperação O Ministério da Saúde vai criar normas que permitam selecionar o tipo de paciente que ocupará um leito de UTI. A idéia é que entrem e permaneçam nas unidades de terapia intensiva das redes públicas só pacientes com chances reais de recuperação. Para isso, serão estabeleci-dos indicadores de prognóstico, baseados em evidências científicas, utilizadas tanto na internação como na alta [...] (colluci, 2005, p. C1).

o absurdo, na notícia acima referida, é a delega-

ção de responsabilidade, imposta pelos burocratas aos

médicos, de condenar à morte. Essa delegação desloca

a responsabilidade do setor de salvar ou melhorar a

vida para os profissionais médicos. desses exemplos,

que poderiam ser multiplicados, parece ficar evidente

que não se poderia chegar a outra conclusão que não

a da possibilidade de esta crise ser posta como o limite

da própria vida.

Ironicamente, porém, a padronização do trabalho

intelectual ‘no topo’ das hierarquias técnicas, o mono-

pólio da informação e decisão à ‘democracia represen-

tativa’ através da institucionalização e cooptação dos

Conselhos Municipais de Saúde, entre outras questões

e o acesso limitado dos indivíduos ao acesso universal,

trazem consigo uma ‘bomba social’ em forma de uma

constante insatisfação da parte dos usuários em gran-

de escala, à medida em que o sistema não consegue

absorver as demandas por serviços e que as formas de

organização, saídas da lutas autônomas, começam a se

submeter às formas de organização da classe gestora,

sendo os representantes do corpo social transformados

em novos gerentes da instituição.

a contradição é estabelecida entre a forma vigente

de controle e a perda dos comandos centrais do setor

do controle e da dominação, dado o funcionamento

problemático do setor, que produz um padrão de

atendimento desumano e com baixa resolutividade aos

grupos populacionais.

a prática de dominação do setor saúde vem en-

contrando resistência da população, que mostra sua

insatisfação através da imprensa, em função do difícil

acesso às tecnologias em saúde, desde as mais simples

até as mais complexas; do outro lado, há uma resistência

por parte dos trabalhadores de saúde, em conflito com

as formas de organização do trabalho impostas pela

estrutura central de comando, que exigem vários pressu-

postos operacionais e técnicos; destaca-se, sobretudo, o

pressuposto de perseguição de eficiência, num contexto

de pouca valorização dos trabalhadores e sobrecarga de

trabalho.

o insucesso dos programas de saúde reflete na

prática das unidades de saúde responsáveis pelo atendi-

mento aos indivíduos e à coletividade. a superlotação

dos prontos atendimentos dos hospitais e os agravos à

saúde dos portadores de doenças crônicas que poderiam

ser prevenidos, e exigem tratamentos mais agressivos,

Page 198: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

196 aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde

podem ser um indicativo da baixa resolutibilidade desses

programas.

Igualmente significativo é o modo persistente com

que esses gestores acreditam que novos programas de

saúde, contempladores dos efeitos dissociados de seus

determinantes, possam resolver os problemas de saúde

da população sem que sejam consideradas as dimensões

geradoras do adoecimento: a econômica, a política e a

social. ou ainda, como se pode constatar na manchete

a seguir, atribuir a culpa da ineficácia do sistema ao

fato de os especialistas médicos realizarem concursos

em instituições públicas simplesmente para testar suas

capacidades profissionais, ignorando que, para esses

profissionais, os salários oferecidos pelo sistema público

estão aquém do mercado. Para Pierantoni (2001), essa

remuneração desloca esses profissionais para setores

ligados à assistência supletiva à saúde.

Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde[...] A mãe de Pablo, de um ano e um mês, deveria levar o filho a cada 30 dias no médico para acompa-nhar a doença do filho, que sofre de sopro no coração. Desde janeiro, porém, ela não consegue vaga no posto de saúde da Vila Nova.[...]. Desde o início do ano, apenas uma especialista está atendendo a população do bairro na parte da manhã. Gerente se justificaPor lei, não podemos renovar os contratos, temos de chamar médicos aprovados no concurso público de 2004. A gerente complementa: ‘Há quem faça o concurso só por fazer, da mesma maneira que pres-tam vestibular para testar a própria capacidade’ [...] (WEbER, 2005, p. 6).

Vista de outra forma, a justificativa explicitada aci-

ma no jornal do município de Joinville, Santa Catarina,

A Notícia, deixa claro que o setor público de saúde nem

sempre representa uma alternativa profissional atrativa

e, por isso, não logra sucesso no preenchimento de seus

quadros. a resposta dada pela gerente dissimula a falta

de atratividade, jogando, mais uma vez, ao profissio-

nal de saúde, a responsabilidade pela ‘leviandade’ ao

afirmar que o mesmo só presta concurso público para

‘testar seus conhecimentos’, distorcendo a verdade. Essa

resposta não pode identificar as reais causas do não-

preenchimento das vagas disponibilizadas. Uma delas,

a falta de atratividade pela remuneração do trabalho, já

é vista como resultado da política de não-priorização

da saúde nas ações dos governos. assim, se evita não

apenas enfrentar as causas, mas simultaneamente essa

evasiva torna-se uma conveniente ‘justificada’ perante

a população.

Repressão ao dissenso

Quando o setor de saúde não consegue enfrentar

manifestações de dissenso e, ao mesmo tempo, impor sua

‘tolerância repressiva’, entra em cena a defesa deliberada

da repressão. a concretude dos fatos evidenciados nos

leva a abordar com especial atenção uma pequena parte

da história dos trabalhadores de saúde da instituição

na qual a autora trabalha há tantos anos, sobretudo em

razão de práticas dessa instituição pública, que têm como

base uma determinada forma de resposta ao dissenso na

qual a dominação deve sempre prevalecer.

a atitude de expor a situação, de certa forma re-

presenta uma fonte de dados e, espera-se que, com esse

procedimento, seja possível esclarecer que o episódio

ocorrido no final do ano de 2003 e durante o ano de

2004 teve substancial importância no que diz respeito

ao estudo do tema proposto. as manchetes de jornal

a seguir, ilustram muito bem o que hoje vivenciamos

no setor:

Perseguição e política Uma das fiscais que prestou depoimento ontem na cEI que investiga denúncias contra o setor de vigilância sanitária, da Secretaria de Saúde de Joinville, disse que foi vítima de perseguição por parte do chefe hierárquico, Domingos Alacon [...]

(nEvEs, 2003, p. 8).

Page 199: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

197aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde

Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da saúde [...] A secretária municipal de saúde, Tânia Eberhardt, admitiu ontem ter conhecimento de que o ex- chefe da vigilância à saúde, engenheiro Domingos Alacon, era sócio de uma empresa que poderia ter afinidade com o setor que ele dirigia [...]. Nos depoimentos anteriores, dois fiscais disseram sentir-se constrangidos ao autuar empresas que eram clientes do centro de Assistência Integral ao Trabalhador (Cait), empresa de Alacon. ‘Todos sabemos que as pessoas, às vezes, procuram dire-tamente as instâncias superiores, mas isso não é nenhum crime’, disse a secretária, sobre o fato de empresários não quererem falar com os fiscais, mas diretamente com o ex-chefe do setor [...] (JungEs, 2003, p. 5).

os fatos ocorridos na Secretaria Municipal de Saúde

de Joinville despertaram na autora uma profunda inquie-

tação a respeito das questões dos interesses explicitados

pelos gestores de saúde, indignação com a injustiça e a

opressão para com os trabalhadores de saúde que tive-

ram a coragem de denunciar o uso da estrutura pública

pelos setores privados e, tristeza em relação aos 1.700

trabalhadores de saúde e Conselho Municipal de Saúde

que se omitiram, permanecendo em silêncio e alheios

perante os acontecimentos da época.

tais acontecimentos sugerem uma análise inquie-

tante, primeiro por tratar-se de uma tentativa de colocar

as instituições públicas a serviço dos setores privados e,

segundo, por tornar-se evidente que o fato foi totalmente

ignorado pelos setores representantes da população,

principalmente pelo Conselho Municipal de Saúde e

pela Comissão Municipal de Saúde do trabalhador,

esta última composta por sindicatos de trabalhadores.

Isso nos leva a concluir que esses setores não possuem

um projeto político voltado para o interesse coletivo, ou

talvez que não possuam projeto político nenhum ou po-

dem estar sendo cooptados pelos interesses dominantes

no poder. Por último, pode-se constatar que a defesa da

intolerância institucionalizada, na forma de punição dos

trabalhadores de saúde1, relaciona-se à legitimação de

tais práticas por meio da sujeição desses trabalhadores

a processos disciplinares.

Ação política como expansão do setor privado

as matérias jornalísticas a seguir expõem, de forma

reveladora, que as formas de controle indireto das deci-

sões são obrigadas, em função dos grandes interesses de

expansão dos setores privados, a permitir um controle

direto, através de representantes de grandes empresas

aos mais elevados postos políticos do executivo, ou ain-

da, por intermédio das instituições de direito privado,

denominadas de organizações Sociais (oS). Portanto,

a política atualmente nada mais é que a aplicação de

medidas utilizadas como instrumento de manipulação

do corpo social em detrimento de seu desenvolvimen-

to, sendo também de sua responsabilidade responder

sistematicamente às crises do sistema.

Vejamos outra manifestação da mídia na qual as

estratégias de ocupação privada das macroestruturas

afinada com os princípios de expansão encontram seu

equivalente também nas microestruturas.

Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de realizar repasses ilegais [...] o prefeito de Itabuna, geraldo Simões (PT), foi acusado pelo Ministério Público de efetuar repasses ilegais (no total, R$ 7 milhões) para a Aias (Associação Itabunense de Apoio à Saúde). [...] ‘As transferências são ilegais e configuram, em tese, ato de improbidade administrativa, que causa prejuízo ao erário’, escreveu o procurador [...]. Segundo o promotor, a irregulari-dade está no fato de uma entidade privada, sem fins lucrativos, gerir recursos do governo [...] (maRtinEz, 2003, online).

o modo como a ação política tem sido utilizada

para a expansão do setor privado é ainda mais revelador,

1 os três trabalhadores de saúde que denunciaram as irregularidades na Secretaria Municipal de Saúde foram transferidos e respondem ou responderam por processo administrativo interno. Um deles sofre de distúrbios psiquiátricos e se encontra em tratamento.

Page 200: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

198 aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde

mesmo quando tais ações são desvirtuadas e apresentadas

como interesse da sociedade. Na manchete a seguir cons-

tatamos esta revelação, à medida que o atendimento das

reais e prioritárias necessidades da população não se cons-

titui pré-condição para o financiamento das empresas do

setor privado, prestadoras de atendimento em saúde.

Governo Lula cria programa de apoio financeiro para os planos de saúde O governo Luiz Inácio Lula da Silva prepara medi-das de socorro financeiro para as empresas de planos e seguros de saúde, o polêmico setor que reúne 1.797 operadoras e responde pela assistência a 40,1 milhões de brasileiros. A intenção é criar duas linhas de cré-dito, ambas com recursos do mercado financeiro, a princípio de duas instituições estatais[...]. Uma das linhas servirá para estimular fusões e aquisições. [...] Se aprovada, ela poderá criar monopólio no mercado, diz Arlindo de Almeida, presidente da Abramge[...]. Segundo cardoso, os principais grupos de setor, o de operadoras e seguradoras de saúde, perderam clientes nos últimos quatro anos, [...] (lEitE, 2005, p. C1).

a medida acima, proposta pelo atual governo, visa

equilibrar as enormes perdas do setor privado. Conse-

qüentemente, ela prescreve a transferência de subsídios

públicos a esses setores. Essas medidas políticas têm

servido, portanto, para responder às crises das institui-

ções privadas e aos ditames do Capital Monopolista,

numa freqüência crescente. Não há dúvidas de que no

sistema atual se desenvolve uma crise estrutural em sua

totalidade, hoje manifestada através do crescente e con-

tínuo distanciamento entre os interesses da maioria da

população e das estruturas do sistema, de maneira que

as perturbações acentuam-se e a observação a ser feita

refere-se ao fracasso evidente das instituições públicas e

privadas no enfrentamento dos problemas da socieda-

de. E isso nos faz evidenciar a necessidade urgente de

um controle social que garanta uma maior eficácia do

sistema público de saúde e, portanto, a melhoria das

condições de vida dos indivíduos e da coletividade.

A necessidade de um controle social

Se há necessidade de retornar aos princípios origi-

nais da reforma Sanitária é imprescindível uma análise

da forma como se instituiu o controle social do Sistema

Único de Saúde (SUS). a lei 8.142 de 28 de dezembro

de 1990 instituiu os conselhos e as conferências como

instâncias de controle social do SUS (Radis dados,

2005). ao analisar esse importante aspecto da proposta,

deparamo-nos com grandes dificuldade por entender-

mos que a instituição de uma entidade jurídica não ga-

rantirá o controle social, e pela completa transformação

dos ideais da reforma Sanitária em uma realidade que

substitui a participação coletiva dos indivíduos livre-

mente associados pela participação forçada de homens

governados por uma força política que lhes é alheia, na

forma dos Conselhos Municipais e locais de Saúde.

Sob tais circunstâncias, cabe ao movimento pela

reforma Sanitária refletir se a institucionalização do

controle social tem levado à sustentação e legitimação

das aspirações da sociedade ou do sistema. Estamos

convictos de que as aspirações do corpo social só podem

ser plenamente estabelecidas se as condições para sua

realização forem expressas concretamente, na própria

realidade.

CONSIDERAçÕES FINAIS

Quando a sobrevivência dos indivíduos está ame-

açada, e de fato está, pela estrutura pública ineficiente,

ineficaz, corrupta e pela administração, das instituições

públicas e privadas, inadequada e descomprometida com

o bem-estar da sociedade, a saída é a mudança das regras

do jogo social; é colocar os indivíduos no controle dos

seus interesses. reconhecer essa necessidade significa

não ser condescendente com as políticas atualmente

praticadas pelas instituições, que privilegiam o capital e

Page 201: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

199aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde

utilizam medidas manipuladoras e repressivas, além de

imporem a penúria, a falta de alternativas, a humilhação

e a miséria aos indivíduos, descumprindo, com rigor,

o seu objetivo.

E isso nos faz retornar ao corpo de nosso trabalho.

Caracteriza-se aqui que no passado, os defensores da

reforma Sanitária discursaram em prol de uma política

antiliberal. agora, precisam retomar,com o mesmo vigor

a análise da conjuntura atual. deve-se considerar aspec-

tos que nos limitamos a simplesmente mencionar, como,

por exemplo, emancipar as ações coletivas dos interesses

econômicos e conceber programas e instrumentos de

ação sóciopolíticos elaborados pela própria realidade.

assim, as instituições não devem ser definidas em de-

talhe antes que sua articulação prática aconteça, mas

devem ter como pressuposto as necessidades e, portanto,

a flexibilidade das demandas sociais. o último ponto

a enfatizar é o controle social, que deverá incorporar o

poder político de decisão com o corpo social, dando

origem a uma ação política determinada pelos interesses

coletivos da sociedade.

R E F E R Ê N C I A S

albuquERquE, r. Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e bebês são transferidos. Jornal do Brasil, rio de Janeiro, 24 abril 2005.

colluci, C. governo federal quer restringir UtI a do-entes com chances de recuperação. Folha de São Paulo, São Paulo, p. C1, 11 de abril, 2005.

JungEs, l.S. Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da Saúde: secretária defende sanitarista acusado de improbidade em depoimento a vereadores. A Notícia, Joinville, p. 5, 17 de dezembro, 2003.

lEitE, F. governo lula cria programa de apoio finan-ceiro para os planos de saúde. Folha de São Paulo, São Paulo, p. C1, 24 de abril, 2005.

maRtinEz, M. Prefeito de Itabuna (Ba) é acusado de realizar repasses ilegais. Folha de São Paulo, agência Fo-lha Salvador, 20 de maio 2003. disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br >. acesso em: 10 maio 2005.

Neves, A. Perseguição e política. A Notícia, Joinville, Cadernos aN Cidade, p. 8, 13 de dezembro 2003.

PiERantoni, C.r. as reformas do Estado, da saúde e re-cursos humanos: limites e possibilidades. ciência & Saúde coletiva. rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 341-60, 2001.

Radis dados (reunião, análise, difusão de informação sobre saúde). Crise da saúde acende alerta no SUS. Jornal do Radis, rio de Janeiro, 33, p. 10, 2005.

WEbER, B. Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde: desfalque de médicos se arrasta desde dezembro, quando venceram os contratos. A Notícia, Joinville, Cadernos aN Cidade, p. 6, 9 de abril, 2005.

recebido: maio/2008

aprovado: nov./2008

Page 202: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE200

François dagognet, por uma nova filosofia da doençaFrançois Dagognet, for a new philosophy of disease

RESUMO O texto pretende apresentar o filósofo, psiquiatra e epistemólogo francês

François Dagognet, ainda pouco conhecido no Brasil apesar de sua vasta obra

transdisciplinar que compreende mais de cinqüenta livros com temas diversos e

de grande importância, na atualidade. Aluno de georges canguilhem, Dagognet

retoma problemáticas tais como normal/patológico, corpo/vivente, distanciando-se

em alguns pontos de seu mestre por estar inserido em um novo contexto de progresso

científico e tecnológico, com novas pautas de discussões. Sempre atento à aplicação

dos saberes (médico, jurídico, filosófico, estético) na realidade, esse pesquisador

traz imensa contribuição para o campo da saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Vitalismo; Normatividade; Epistemologia; corpo.

ABSTRACT This article aims to present the French philosopher, psychiatrist

and epistemologist François Dagognet, still unknown in Brazil despite his

transdisciplinary work that includes more than fifty books and a wide variety of

important nowadays themes. As he was georges canguilhem’s student, Dagognet

recovers issues such as normal/pathological, body/living beings, but disagrees with

the master for he was in a new context of scientific and technological progress, with

new kinds of subjects on the agenda. He turned his attention to the application of

knowledges (medical, juridical, philosophical, aesthetical) in the current reality,

bringing precious contributions for the health field.

KEYWORDS: Vitalism; Normativity; Epistemology; Body.

Sabira de alencar Czermak 1

1 Psicanalista; mestranda em Saúde

Coletiva no Instituto de Medicina

Social da Universidade do Estado do

rio de Janeiro (UErJ).

[email protected]

Page 203: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

201CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença

I N T R O D U ç Ã O

georges Canguilhem foi, para muitos, um grande

mestre, um teórico que deu o que falar em sua época,

tecendo críticas severas à tradição filosófica e médica ou

mesmo incentivando atos políticos de importância históri-

ca. Sua filosofia de vida foi um divisor de águas na tradição

da medicina. o livro O normal e o patológico, concluído

em 1966, é a sua obra mais conhecida e a principal repre-

sentação de seu pensamento. Quase meio século depois, a

discussão central do livro ainda é um valioso argumento

crítico em relação às perspectivas reducionistas que sempre

assolaram as velhas discussões no terreno das patologias:

como as definir, de onde vêm e o que se faz com elas.

Canguilhem formou um número importante de

intelectuais franceses, sobretudo nos anos 1960. dentre

seus pupilos, esteve Michel Foucault, seu orientando

na elaboração de A história da loucura na idade clássica

(1961). Foucault afirma em um artigo escrito em 19851,

no qual homenageia o mestre, que, sem Canguilhem,

diversos debates não teriam sido tão bem compreendi-

dos. E acrescenta:

Este homem, cuja obra é austera, voluntariamente bem delimitada, e cuidadosamente devota a um do-mínio particular numa história das ciências que, de todo modo, não se faz passar por uma disciplina de encenação aparatosa, encontrou-se de certa maneira presente nos debates em que ele próprio tomou bastante cuidado de nunca aparecer. (p. 763)2.

É nesse sentido, entre outros motivos, que se enfa-

tiza a importância de um pensador com a experiência

de François dagognet. Filósofo e médico desde os pri-

mórdios da psicofarmacologia e da época em que ainda

não existia raio X, completa 84 anos de idade e ainda

agita o cenário francês com seus elogios ao Prozac, à

instrumentação médica, ao transtorno (trouble), com sua

briga pela homoparentalidade e pelo direito à fecundação

post-mortem3. trata-se de um teórico eclético visto que seu

interesse se estende da geologia à química, passando pela

epistemologia, neuropsiquiatria, direito, sociologia, psi-

canálise e por onde mais a contemporaneidade exigir.

a proposta deste artigo é apresentar a leitura que

dagognet faz do pensamento de Canguilhem, de quem

se distancia em algum ponto de sua trajetória.

DAGOGNET, ALUNO DE CANGUILHEM

georges Canguilhem e François dagognet são

reconhecidos como dois grandes mestres no domínio

da filosofia da Medicina. o primeiro, nascido em 1904

em Castelnaudary, sul da França, lecionou em várias

instituições acadêmicas francesas como filósofo. Sua tese

de doutorado, porém, foi defendida no curso de Medi-

cina sob o título O Normal e o patológico, com diversas

atualizações de seus argumentos até ser publicada como

a sua obra-prima. Vinte anos mais jovem e nascido em

landres, também no sul da Franca, François dagognet

seguiu os passos do mestre. assim como georges Can-

guilhem, cursou Filosofia e depois Medicina. trilhou

um percurso teórico marcado pela epistemologia de

Bachelard, de quem também foi aluno e amigo. Exerceu,

durante dez anos (na década de 1950) atividade clínica

e reivindica a tradição francesa de rené laennec e rené

leriche (dumas, 2005, p. 261).

1 La vie: l’expérience et la science2 tradução da autora. 3 Para mais informações, consultar Questions interdites (2002) e Penser le vivant: l’homme, maître de la vie? (2003) de dagognet.

Page 204: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

202 CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença

É possível perceber a reciprocidade entre os dois a

partir das referências mútuas nas obras de um e outro,

como se vê nos livros La Raison et les Remèdes (1964), de

dagognet e O Normal e o patológico, dois clássicos escri-

tos na mesma época. Em 1983, Canguilhem organizou

o primeiro colóquio sobre a obra ainda em construção

de dagognet, em Saint-Julien-en-Beaujolais, cidade de

Claude Bernard. Nessa data, dagognet havia concluído

treze dos mais de cinqüenta livros que escreveu até hoje.

Em 1997, o autor publicou o primeiro estudo sobre o

conjunto da filosofia de vida proposta por Canguilhem,

dando origem ao livro georges canguilhem: philosophe

de la vie.

Entre suas teorias acerca da normatividade,

das normas, da máquina, da evolução, de auguste

Comte, Claude Bernard ou gaston Bachelard, o eixo

central do legado deixado por Canguilhem é, sem

dúvida, o vivente (vivant). Em georges canguilhem:

philosophe de la vie, dagognet retoma a perspectiva

canguilhemiana para expor seu pensamento funda-

mental, confrontá-lo a novos impasses e, acima de

tudo, apontar a busca de Canguilhem pela essência

da vitalidade (dagognEt, 1997, p. 167). talvez seja

nesse ponto que se encontra a crítica mais importante

de dagognet ao mestre: a tese central de Canguilhem

traz os equívocos da tradição médica bem como sua

incapacidade de reconhecimento de situações de fato

e valor na clínica. Como nos esclarece dagognet, na

denúncia epistemológica a respeito da ambigüidade

que acompanha o termo ‘normal’, geralmente dedutí-

vel para o uso do conceito de patologia, Canguilhem

termina deslizando no mesmo erro: parece acreditar

ter encontrado um ‘finalismo’ para a vida, ou seja, um

princípio que explicaria a organização biológica dos

seres vivos por um fim ao qual eles seriam destinados,

uma espécie de adaptação a uma ordem universal

advinda de um princípio ou de uma vontade superior

à própria vida.

ao desacreditar que a vida é redutível a seus proces-

sos químico-físicos e acreditar que é algo mais do que

a soma de todos os seus aspectos, Canguilhem reincide

em um vitalismo epistemologicamente contraditório,

mas compreensível, tendo-se em vista os efeitos éticos

que o objetivismo da época devia engendrar. de alguma

maneira, para ele a vida se tornou inobjetivável. Por

isso a pretensão da Medicina em objetivar a questão do

patológico e do normal deveria ser combatida.

Vale lembrar que nenhum estudioso da década de

1940 fazia as experiências que atualmente se fazem, na

tentativa de manipular a vida. Houve com freqüência,

nesse período crítico da história, experimentos de cunho

eugenista e de efeitos sociais devastadores. Hoje, conhe-

cemos o código genético, fazemos experiências entre

espécies e a Medicina, sem dúvida, foi muito beneficiada

com tais avanços. a idéia da vida artificial passa a ter

um sentido que na época não existia. os limites entre

o artificial e o natural hoje estão cada vez mais turvos.

Se as idéias de dagognet parecem mais pragmáticas que

as de Canguilhem, é preciso que seja lembrada a época

em que foi escrita a sua obra-mestre. o próprio autor

reconhece que suas idéias se modificaram enormemente

desde La raison et les remedes (1964).

No prefácio de georges canguilhe: philosophe de la

vie, uma questão importante introduz as discussões do

livro: por que o jovem filósofo teria escolhido, sem in-

tenção de exercê-la, o domínio da Medicina? dagognet

sugere que isso tenha se dado pelo interesse inicial do

mestre por auguste Comte, pela insatisfação que sentia

diante das idéias de ordem e progresso que atravessavam

o século 20 e, ainda mais, pela relevância que as inves-

tigações sobre o corpo vivo tinham para ele. Contra o

positivismo da época, Canguilhem defende a concepção

de corpo como uma ‘potência criativa’ que contém sua

normatividade vital. a vida, para ele, tem sua base na

idéia de normatividade, conceito que usa contra as ins-

tituições que queriam ‘discipliná-la’ ou contra os saberes

Page 205: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

203CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença

objetivistas e reducionistas que tentavam controlá-la. a

Medicina parece ter sido fundamental para o esclareci-

mento do positivismo experimental do conhecimento

(através do hospital e do laboratório) e seus limites, ou

seja, o esquecimento do corpo doente e da experiência

da doença à qual o sujeito resiste e através da qual se re-

nova. Nessa época, marcada pela tradição positivista, era

como se coubesse apenas ao filósofo lembrar o médico

da questão essencial: interrogar-se sobre o que significa

estar doente (dumas, 2005, p. 263).

Esse rebelde escolheu a Medicina porque, de um lado, ele precipita o começo de uma importante cisão entre a saúde e aqueles que dela tratam; de outro, percebe no fundo desse problema a filosofia maior do corpo, da existência e da liberdade. Enfim, essa disciplina lhe permite abordar uma questão que lhe é essencial, a da técnica, da instrumentação e da aplicação real. Ora, o médico valoriza a eficácia. (dagognEt, 1997, p. 51).

Como era de se esperar, o livro privilegia esse con-

ceito central do projeto canguilhemiano de normativi-

dade, mostrando como essa noção tornou-se complexa

e foi enriquecida ao longo de sua obra (sobretudo com

as contribuições do campo da genética) em oposição a

outras perspectivas. trata-se de uma nova filosofia do

corpo, como afirma dagognet, diferente do reducio-

nismo da teoria molecular e de toda Medicina clássica,

construída sobre três eixos complementares: um corpo

dialetizado, um corpo semafórico e um corpo rebelde.

Canguilhem sugere que o corpo não advém de

uma única extensão e, portanto, não pode ser reduzido

a um objeto composto por várias partes que se somam

entre si. o corpo só pode ser compreendido em uni-

dade e somente através dessa concepção holística é

possível entender a potência integradora, compensadora

e regeneradora da totalidade que comanda as partes

e as absorve. o teórico parece ter ultrapassado uma

concepção uniformizada do corpo mostrando que ele

mantém suas diferenças ao mesmo tempo em que as

integra. dagognet acolhe uma noção semelhante do

corpo dialetizado, ou seja, é um todo que não deixa de

se fracionar para melhor atender ao conjunto e torná-lo

mais rico em sua diferenciação. as partes do corpo, no

entanto, só podem funcionar se o conjunto, aquele que

as integra e recompõe, não estiver alterado (dagognEt,

1997, p. 174).

de acordo com dagognet, foi Canguilhem quem

introduziu no campo da Medicina a idéia de um corpo

que não cessa de emitir todo tipo de sinal. dagognet o

chamará de corpo ‘semafórico’. a partir de O Normal

e o patológico, os corpos doentes ganham outra impor-

tância; o pathos irá preceder o logos e, conseqüente-

mente, a clínica passará a ser soberana. o autor não só

seguiria de modo fiel esse princípio, como o ampliaria

afirmando que “ao médico caberá a tarefa de aprender

e colher os menores sinais que o corpo entrega. a ele

cabe saber questioná-lo e interpretá-lo” (dagognEt,

1997, p. 179).

Provavelmente pelo fato de ter permanecido vivo

ao longo de tantas transformações, o saber clínico

para dagognet em muito se beneficia das técnicas que

sofisticam o olhar e a escuta do médico. dagognet se

preocupa em mostrar o quanto a clínica progrediu com

os aparelhos de captura, de gravação e visualização em

tela, tornando mais claro aquilo que antes precisava ser

dissecado. Se também para Canguilhem o corpo emite

sinais que devem ser minuciosamente colhidos e inter-

pretados, dagognet escancara um elogio à tecnologia

médica e à instrumentação que permite dispensar o

dilaceramento do corpo para aperfeiçoar a leitura mais

acurada e objetiva de suas perturbações. Por mais que a

exteriorização possa parecer objetivação, dagognet não

deixar de frisar que a doença cardíaca, por exemplo,

nunca poderá ser reduzida a um simples traço elétrico,

ou a um eletrocardiograma. Mesmo que o laboratório

seja indispensável, não há razão para que se exclua a

Page 206: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

204 CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença

‘subjetividade’. de acordo com a idéia canguilhemiana,

é exatamente devido à existência de doentes que existe

uma doença e não o contrário. o doente é bem mais

do que sua estrutura físico-química. Mas, para equili-

brar a valorização da instrumentação e retomar a lição

do mestre, dagognet profere um elogio ao periférico,

acreditando não haver afecção grave que não possa se

projetar na pele.

É em relação ao corpo rebelde que o caminho des-

ses dois filósofos parece se bifurcar. Em seus primeiros

trabalhos, Canguilhem opõe a potência afirmativa e

singular do corpo a tudo aquilo que a captura para,

dessa forma, inseri-lo nas normas. Ele se faz advogado da

‘vitalidade transbordante do corpo’ em oposição à lógica

corretiva e normalizante dos profissionais da saúde, dos

educadores e higienistas. a relação de conflito que há

entre a normatividade não submetida às normas disci-

plinares está, para dagognet, no centro das contradições

do campo médico. Ele não compactua com essa idéia,

mas defende justamente que as normas disciplinares de

Canguilhem muitas vezes servem à normatividade, e

não parece concordar que a Medicina seja uma réplica

da vida. a fundação da Medicina para dagognet parece

sim estar na vida, mas não deixa de estar na ciência, na

política, no social, na filosofia.

Canguilhem toma partido do ser vivo em seu

caráter resistente e reativo ao examinador que quer

compreender as razões do seu comportamento. Ele se

posiciona contrário às técnicas de dosagem e aos exa-

mes numéricos da época em prol de uma singularidade

que transcenderia a qualquer tabela de medidas. Claro

que ele não se opõe a uma abordagem racional da cor-

poreidade, mas à rigidez dogmática de uma razão que

submeteria o corpo a teorias pré-existentes. a crítica de

dagognet é justamente que Canguilhem, como filósofo

da vida, mobiliza a razão, purifica-a de seu positivismo,

mas termina propondo uma espécie de ‘vitalismo racio-

nal’. Esse oximoro reflete bem a tensão presente nessa

filosofia entre um lado obscuro, irredutível à razão, e o

poder analítico que exige inteligência ou racionalidade

para ser alcançado.

Encantado como é pela química, dagognet defen-

de outra idéia de organismo. o corpo não é, para ele,

rebelde à razão, tampouco o corpo doente é inacessível,

pois permanece idêntico em sua impermanência:

[...] não só seus principais constituintes oscilam apenas dentro de limites bastante estreitos [...] mas, sobre-tudo o código matricial, aquele que marca ou sela fundamentalmente o ser, permanece o mesmo. Não mudamos. (dagognEt, 1997, p. 268).

E é por isso que a razão deve ser astuta ao criar meios

de, sem trair a si própria, entrar nessa lógica do corpo vi-

vente que se auto-constitui ao lutar contra os obstáculos.

Isso não significa, para dagognet, desqualificar a expe-

riência do doente. Estar doente é perder a sua liberdade

e viver na dependência. “a doença é a dor, eu percebi

que como filósofo eu não tinha nenhuma idéia da dor,

da morte e do sofrimento” (dagognEt, 1996, p. 21).

Para ele, a enorme adesão às idéias de Foucault acentua

o vitalismo rebelde da filosofia de Canguilhem.

POR UMA FILOSOFIA DA DOENçA

dagognet não se propôs a refletir sobre a doença,

mas a partir da doença e de seus efeitos. Em Pour une

philosophie de la maladie (1996), ele contextualiza o

campo do saber, criticado na primeira parte de O normal

e o patológico. Explica, ainda, que a filosofia da Medici-

na existe desde Hipócrates, no século 4 antes de nossa

era, e que a tradição hipocrática influenciou por muito

tempo pensadores, como auguste Comte, e clínicos,

como François Broussais, quanto ao entendimento da

doença e quanto à sua filosofia.

Page 207: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

205CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença

desde o fim do século 19, duas escolas principais

se desenvolveram. de um lado, a escola de fisiologia

alemã, sintonizada com os trabalhos de François Ma-

gendie e Claude Bernard, que denunciava a necessidade

de hospitais e laboratórios, apoiava o diagnóstico e

seus instrumentos. a doença aqui é objetivada tanto

quanto possível. de outro lado está a Medicina hospi-

talar, escola dos grandes clínicos (onde se encontram

rené laennec e Xavier Bichat), que prioriza o olhar do

médico, a decifração dos sinais, a tomada da história

do doente. Esta última, qualificada como humanista,

desenvolveu-se com mais força na França após a revo-

lução Francesa (1789-1799) e se manteve até o século

20, por exemplo, com rené leriche. Segundo dagognet,

leriche revolucionou a cirurgia ao abrir espaço para a

instrumentação sem se afastar do doente (dagognEt,

1996, p. 12-13).

trata-se de um confronto entre a escola instrumen-

talista dos técnicos, que desvaloriza o olhar médico e a

escuta do doente em prol de sua objetivação, e a escola

semiológica, que prioriza a leitura dos sinais. dagognet

questiona para que lado é preciso pender para que se

defina e compreenda realmente a patologia. a maior

parte dos objetivistas se fixou na doença e deixou de

lado o doente. observa-se, no entanto, com alguma

complacência, que foi um momento importante para

a anatomia patológica, para a bioquímica e para a

parasitologia, ainda que o sujeito tanto quanto o seu

lado social (a maneira de se viver, o meio, os riscos)

fossem minimizados. Esse frenesi tecnicista, como ele

chama, de importância em certo aspecto, atingiu seus

limites. Então, foi preciso voltar a atenção ao subje-

tivo. daí surgem questões fundamentais como: onde

situar a fronteira entre a irregularidade (a anomalia, a

singularidade) e a anormalidade (o patológico), assim

como outras que giravam em torno da oposição entre

o objetivo e o subjetivo, o resultado cifrado e a dis-

função. No século 20, à medida em que a Medicina se

tornava cada vez mais sofisticada e eficaz, os problemas

também ganharam complexidade e fizeram com que se

repensassem a essência do ato médico e a velha relação

médico-paciente. No âmbito da filosofia da doença,

dagognet descreve a luta que sempre existiu entre suas

correntes de pensamento.

ainda nesse livro (1996), o autor descreve Can-

guilhem como o fortalecedor da tradição francesa

neste campo, aquele que mostrou a instrumentação e

as análises biológicas da técnica reportadas ao corpo

do doente. dagognet posiciona O normal e o patológico

enquanto marca dessa perspectiva humanista e ressalta

a crítica canguilhemiana dirigida a uma concepção

ontológica da doença e da saúde contrapondo-a ao

foco sobre a normatividade individual presente tan-

to no estado patológico quanto no estado de saúde.

apesar da crítica que faz ao vitalismo de Canguilhem,

esses conceitos continuam sendo centrais em todo o

seu percurso. também concorda com a contraposição

que o mestre sugere à visão puramente quantitativa

da doença e sua descentralização em partes do orga-

nismo, falando sobre o caráter histórico e singular de

toda doença. Propõe que o corpo seja colocado entre

a clínica e a instrumentação, ou seja, considera-se

partidário da Medicina objetivada, mas sem deixar de

reconhecer seus limites.

Com relação ao status ontológico da doença,

questão filosófica que dividiu o pensamento médico

desde a antigüidade, o discurso médico oscilou entre

duas concepções distintas. Uma que se propunha a

reificar a doença e outra chamada tradicionalmente

de ‘dinâmica’ ou, depois do século 19, de ‘fisiológica’.

dagognet acredita que tais concepções não consti-

tuem uma real oposição, mas uma espécie de conluio

entre a idéia segundo a qual o estado de doença é

eminentemente individual e a versão científica da

Medicina. Em síntese, o que esse pensador propõe

é que o estado da doença não seja compreendido

Page 208: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

206 CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença

unicamente a partir da relação da Medicina com o

indivíduo doente, visto que a mediação da sociedade

será sempre fundamental.

Para concluir, vale reforçar que além da riqueza

histórica e teórica que as filosofias desses dois grandes

pensadores apresentam, a importância de ressuscitar

tais discussões está em se pensar o processo terapêu-

tico, seja ele de que ordem for, no sentido de uma

recuperação da normatividade, diferente da orientação

de normalidade que o presente nos traz preponde-

rantemente. a normatividade existe na saúde ou na

doença, e esta última não pode mais ser compreendida

simplesmente como um mal a ser erradicado. apesar

das contradições apontadas por dagognet no vitalismo

materialista canguilhemiano, não há dúvida de que

valorizar a normatividade e não a normatização é a

melhor opção para os agentes de saúde, ou melhor, os

intérpretes da vida, quanto aos efeitos éticos, morais

e clínicos de tal perspectiva.

R E F E R Ê N C I A S

canguilhEm, g. O normal e o patológico. 4. ed. rio de Janeiro: Forense, 1995.

dagognEt, F. georges canguilhem: philosophe de la vie. Paris: les Empêcheurs de penser en rond, 1997.

______. Pour une philosophie de la maladie. Paris: tex-tuel, 1996.

______. La raison et les remèdes. Paris: Presses Univer-sitaires de France, 1964.

dumas, r. François dagognet lecteur de georges Can-guilhem. In: chazal, g.; salomon, C. (org.) François Dagognet, médecin et philosophe. Paris: l’Harmattan, 2005.

foucault, M. la vie, l’expérience et la science (1985). In: Dits et écrits 1954-1988. Paris: gallimard, 1994. v. 4.

______. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961.

recebido:abr./2008

aprovado: out./2008

Page 209: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

artIgo INtErNaCIoNal / INTERNATIONAL ARTIcLE 207

Modelo de salud colombiano: exportable, en función

de los intereses de mercadocolombian health model: exportable, depending on the interest of the market

RESUMEN Este artículo describe los aspectos relacionados con la estructura,

financiación y funcionamiento del modelo de salud colombiano y los resultados

sanitarios que ha producido luego de 14 años de implementación. La información

presentada es principalmente secundaria, proveniente de fuentes institucionales y

académicas del país y el análisis hace parte de los procesos de reflexión académica

y política que impulsa el Movimiento Nacional por la Salud y la Seguridad

Social. Se revela la acción devastadora del modelo de salud colombiano sobre las

estructuras y funciones públicas de la salud y la violación sistemática del derecho

a la salud de la población.

PALABRAS-CLAVE: Sistema de Salud; Derecho a la salud; Mercado;

colombia.

ABSTRACT This article describes the aspects related with the structure, financing

and operation of the colombian health model and the sanitary results after 14

years of implementation. The information presented is mainly from secondary

institutional and academic sources of the country. The analysis is part of an

academic and political reflection which promotes the National Movement for

Health and the Social Security, from witch the author is the political spokesman.

It will also show the devastating action of the colombian health model over its

public health functions and structures, and the systematically violation of the

health right.

KEYWORDS: Health System; Right to health; Market; colombia.

Mauric io torres tovar 1

1 Médico, Salubrista ocupacional,

Coordinador de la región andina

de la asociación latinoamericana de

Medicina Social (alamEs), Vocero

Político del Movimiento Nacional

por la Salud y la Seguridad Social de

Colombia.

[email protected]

Page 210: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

208 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

I N T R O D U ç Ã O

Colombia fue una de las naciones latinoamericanas

más juiciosas en acoger e impulsar, desde comienzos de

los años 1990 del Siglo XX, el conjunto de orientaciones

dadas por el Banco Mundial en materia de reformas

económicas, sociales y políticas, en el marco de la glo-

balización neoliberal que propuso la liberalización del

mercado y el ajuste estructural del Estado.

En este sentido, Colombia impulsó un conjunto de

reformas tanto del aparato estatal (reforma judicial y admi-

nistrativa), como del sector económico y social (reformas

tributaria, educativa, laboral, de seguridad social y de sa-

lud) y avanzó en una reorientación del Estado llevándolo

a un papel más de regulador de mercado que de oferente

directo de servicios1. Esto produjo cambios profundos en

la esfera del mundo del trabajo generando flexibilización

laboral con efectos de precarización de las condiciones de

trabajo, mayor desempleo, crecimiento importante de la

economía informal, arrastre hacia la pobreza y la miseria

de amplios sectores de la población y pérdida de soportes

de protección social con los que se contaba.

En el campo específico de la seguridad social en

salud, Colombia acogió la orientación de reforma a

este sector propuesta por el Banco Mundial (banco

mundial, 1993), que tenía como eje central la reforma

del financiamiento de los servicios de salud en cuatro

aspectos básicos: a) el cobro de tarifas a los usuarios

de servicios estatales, b) la provisión de seguros frente

a los riesgos económicos relacionados con la atención

médica, c) el empleo eficiente de recursos no guber-

namentales y d) la descentralización de los servicios

gubernamentales.

Bajo esta égida Colombia, en su reforma Cons-

titucional de 1991 definió la salud como un servicio

público permanente (sin reconocimiento explícito de

su condición de derechos humanos), que puede ser

prestado por el Estado o por los particulares; base cons-

titucional sobre la que se reestructuró administrativa y

financieramente la Seguridad Social en el país a través

de la ley 100 de 1993.

la imposición de la nueva organización de la salud

en Colombia no se dio sin previa lucha. Para avanzar

en este modelo, la tecnocracia colombiana, formada

principalmente en Harvard y puesta al servicio de la

política privatizadora de salud, desarrolló una batalla

de ideas para ganar terreno ideológico en el campo de

la salud, esgrimiendo el argumento de que hay recursos

insuficientes para grandes demandas de salud, por lo

cual se requería un modelo regulador, y el mejor para

ello es el mercado, en la lógica de la oferta y la demanda

que regula el consumo, distribuye adecuadamente y con

calidad el servicio, y hace uso eficiente de los recursos.

Estas tesis permitieron que los empresarios de la

salud ganaran en la batalla de ideas un asunto fun-

damental que ha logrado que el modelo de salud en

Colombia continúe incólume luego de 14 años, a pesar

de sus efectos devastadores: hacer entender y creer que

la salud es un bien privado de consumo que se resuelve

individualmente en un mercado de servicios de atención.

así, se despojó a la salud de su condición de derecho

humano fundamental, deber de Estado.

Para reafirmar la experiencia como un modelo de

salud que enfrenta adecuadamente los problemas de

ineficiencia, baja calidad e inequidad, se han adelantado

1 Esta orientación internacional respondió a la necesidad de la recomposición del modelo de acumulación capitalista, en lo cual los servicios públicos se empe-zaron a ver como un campo para explorar y explotar por el mercado, lo que implicó reconocer al Estado de bienestar, ya no como un salvador sino como un gran competidor. tal fue el entendimiento de fondo, que llevó a que de manera específica en el sector Salud, el aseguramiento y la prestación de los servicios de atención a la enfermedad fueran incorporadas en la lógica de mercado.

Page 211: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

209toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

diversas estrategias, una de las mas sobresalientes fue la

de haber ubicado a Colombia en el informe mundial

de salud del año 2000 como el país con mayor equidad

financiera en salud en el mundo (oRganización mun-

dial dE la salud, 2000). Si estos son los resultados,

pues es claro que se debe acoger la experiencia exitosa y

debe impulsarse en muchos países, como efectivamente

viene ocurriendo2. El modelo así, ha ganado legitimidad

exportable.

En este escrito y bajo una postura de deber ético, se

describe la estructura del modelo de salud colombiano y

sus impactos, que evidencian por que este modelo de salud

no debe ser acogido por los pueblos de américa latina

y el mundo, dada su acción devastadora sobre las estruc-

turas y funciones públicas de la salud y por su violación

sistemática del derecho a la salud de la población.

EL MODELO DE SALUD COLOMBIANO

En desarrollo del mandato de la Constitución

Política de 1991, se adelantó el proceso de reforma a

la seguridad social que llevó a la expedición de la ley

100 de 1993 mediante la cual se creó el Sistema de

Seguridad Social Integral, con cuatro componentes:

pensiones, salud, riesgos profesionales y servicios

sociales complementarios. Este sistema optó por un

modelo de aseguramiento individual como vía para

alcanzar la universalización de los servicios de salud y

por la creación de un mercado de servicios de atenci-

ón para superar los problemas de calidad y eficiencia,

bajo la lógica de regulación de mercado vía oferta y

demanda.

a la ley 100 de 1993 subyace una comprensión

de la salud como un bien de consumo privado, respon-

sabilidad directa de los individuos, quienes acceden

a ella a través de un mercado de servicios, en donde

el Estado, a través de una política de focalización de

subsidios, incorpora a los miembros de la comunidad

que no tienen capacidad económica. Esta política que

ha orientado la salud en el país durante los últimos 14

años ha consolidado la concepción de salud como una

mercancía, alejando las políticas públicas de la compren-

sión de la salud como un derecho humano que debe

ser garantizado por el Estado a todos los ciudadanos

(toRREs; PaREdEs, 2005).

Organización

El Sistema general de Seguridad Social en Sa-

lud (SgSSS) se organiza en la lógica de un seguro

popular de salud, que implica una vinculación a él

vía aseguramiento individual a través de una cuantía

que se paga (cotización), bien por lo cual se tiene

capacidad de pago o que se recibe un subsidio para

el pago. Esto implicó que el seguro público de salud

fue sometido a una desintegración en sus compo-

nentes de administración y prestación de servicios,

para lo cual se creó un mercado para administrar este

seguro y articularlo con el de prestación de servicios.

a su vez, implicó la generación de mecanismos de

regulación de mercado para facilitar un desarrollo

armónico de tales mercados (gRuPo Economía dE

la salud, 2002).

Para esto, el SgSSS generó una organización de la

oferta de los servicios del aseguramiento y de la prestaci-

ón de los servicios de atención con criterios de mercado

y separó las funciones de afiliación, administración, pres-

tación y regulación. Esto implicó el surgimiento de un

conjunto de actores o agentes de mercado responsables

de estas funciones:

2 El caso de república dominicana y recientemente México.

Page 212: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

210 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

• las aseguradoras denominadas Empresas

Promotoras de Salud (EPS), bien del régimen Con-

tributivo (EPS-C) o del régimen Subsidiado (EPS-S)

quienes están encargadas de realizar la afiliación de los

asegurados, administrar los recursos del aseguramiento

y contratar la prestación de los servicios de atención. En

este sentido las EPS hacen una función de articulación

entre los usuarios que se aseguran con las instituciones

que les prestan los servicios;

• las Instituciones Prestadoras de Servicios de

Salud (IPS), quienes prestan los servicios de salud defini-

dos en un paquete denominado PoS (Plan obligatorio

de Salud), según grados de complejidad de la atención

(desde el primer nivel el menos complejo, hasta el cuarto

el más complejo);

• las Empresas Sociales del Estado (ESE), hos-

pitales de carácter público que debieron convertirse

en empresas autosostenibles financiera y administra-

tivamente, para lo cual como cualquier IPS venden

servicios y compiten en el mercado por los contratos.

Cuando muchas de ellas no resistirán a la competencia,

se quebraron, por lo que el patrimonio público que el

Estado y la sociedad conservaban en salud, han venido

pasando a manos privadas (PaREdEs, 2000);

• al Estado se le asignó la función de coordinación

y modulación del sistema, de promover la incorporación

de las personas que no pueden pagar su seguro y de realizar

acciones de impacto colectivo que poseen externalidades

(es decir aspectos que no controlan el propio sector sa-

lud), inmersas en el Plan de Salud Pública (anteriormente

conocido como Plan de atención Básica, PaB).

la incorporación al SgSSS se hace vía afiliación al

aseguramiento según la condición socioeconómica de

la persona a través de varias vías:

• por el régimen contributivo, si se tiene capa-

cidad de pago, bien como trabajador formal, servidor

público, pensionado o trabajador independiente,

afiliándose a las EPS-C, recibiéndose un paquete de

servicios del régimen contributivo (PoS-C) a través

de las IPS;

• por el régimen subsidiado, a través de las

EPS-S (antes denominadas administradoras del ré-

gimen Subsidiado – arS), mediante el subsidio del

Estado (subsidio a la demanda) que se recibe por la

condición socioeconómica de pobre, atribuido por

un sistema de identificación de beneficiarios (sisbEn),

subsidio que puede ser completado si clasificado en

el nivel 1 o 2 del sisbEn o si un subsidio parcial esta

clasificado en el nivel 3 de sisbEn. reciben un paquete

de servicios de régimen subsidiado (PoS-S) si es sub-

sidio completo o reciben atención a las enfermedades

crónicas (denominadas enfermedades de alto costo) a

través de las IPS y ESE;

• cuando las personas no pueden acceder al régi-

men contributivo por su incapacidad de pago y han sido

identificados como beneficiarios por el sisbEn pero no

alcanzan los subsidios para cobijarlos, quedan en con-

dición de población pobre no asegurada (inicialmente

llamada vinculada) y son atendidos por los municípios

a través de las Empresas Sociales del Estado (ESE) o por

IPS privadas que tengan contrato con los municípios,

con los recursos del subsidio a la oferta en salud (subsi-

dios dados directamente por el Estado a los municipios

para los contratos con los hospitales públicos);

• hay un grupo de personas que pertenecen

a regimenes de excepción, es decir que cuentan con

su propio sistema de seguridad social. Estos sectores

son de las fuerzas militares y el sector público de la

educación.

Page 213: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

211toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

Hay una franja poblacional que el SgSSS no tiene

en cuenta, que en el lenguaje popular se le ha denomi-

nado población ‘sandwich’, por no tener capacidad

adquisitiva para vincularse al régimen contributivo,

pero que no son lo suficientemente pobres para obtener

el subsidio, y por lo tanto no reciben ningún tipo de

beneficio por parte del SgSSS, a no ser que lo paguen

completamente de su bolsillo. Esta población es com-

puesta principalmente por personas de clase media

desempleadas, grupo que viene creciendo dado las

reestructuraciones laborales y los cambios en el mundo

del trabajo en Colombia.

En relación al componente de beneficios que brin-

da el SgSSS, el cotizante y su núcleo familiar reciben

un paquete de servicios en salud denominado PoS, lo

cual es diferenciado, siendo más amplio para el régimen

contributivo que para el subsidiado y más restringido

para los que reciben el subsidio parcial.

El contenido del PoS se define teniendo como

criterio el perfil epidemiológico de la población co-

lombiana, el ciclo de vida, la disponibilidad tecnoló-

gica para su atención y el costo de efectividad de los

tratamientos.

El PoS incluye servicios de promoción, pre-

vención, atención de la maternidad y la enfermedad

general, diagnóstico, tratamiento, rehabilitación física

y provisión de medicamentos esenciales en su presen-

tación genérica. Para el régimen contributivo incluye

intervenciones en los tres niveles de atención en salud,

mientras que el PoS para los afiliados al régimen sub-

sidiado sólo incluye intervenciones del primer nivel de

atención, excepto para mujeres embarazadas y niños

menores de un año cuyas intervenciones incluyen todos

los niveles de complejidad. Para aquellos que reciben

subsidio parcial el PoS se restringe a la atención a un

grupo de enfermedades de alto costo (enfermedades

catastróficas como las denomina la ley 100, referidas a

un conjunto de enfermedades principalmente crónico

degenerativas, que demandan altos recursos para su

atención).

las EPS reciben un pago por la garantía del PoS al

asegurado denominada unidad de pago por capitación

(UPC), que es un pago anual por persona dependiente

del ciclo vital de ella, siendo mayor, por ejemplo, cuando

hay mayor riesgo de enfermar como en el caso de la

población infantil, de la población adulta mayor, o de

las en mujeres en edad fértil.

En este aspecto de beneficios del SgSSS se expresa

de manera clara parte de las inequidades que genera,

en tanto a la población afiliada al régimen contribu-

tivo le brinda un paquete de servicios que es mayor

en comparación al que recibe la población afiliada al

régimen subsidiado, y ni que decir en relación al que

recibe la población con subsidio parcial (que recibe

un pequeñito PoS como popularmente se le viene

diciendo).

Hay otro conjunto de acciones que las EPS deben

garantizar relacionadas con promoción de la salud y pre-

vención de la enfermedad (PyP), acciones no relaciona-

das directamente con la atención de la enfermedad y que

buscan precisamente mantener la salud de las personas.

Estas acciones han entrado en la lógica de mercado, por

lo cual son reconocidos que lo desarrollado en PyP es

muy débil y lo pago por ello se convierte más bien en

un rubro de ganancias para las EPS, como lo mostró la

defensoría del Pueblo al evidenciar el incumplimiento

de las aseguradoras en estos aspectos (dEfEnsoRía dEl

PuEblo, 2003).

Para garantizar la prestación del PoS, las EPS

contratan con las IPS o ESE a través de mecanismos de

mercado. Entonces, se establecen relaciones contractu-

ales entre ellas, en las cuales se observa una lógica, por

la cual las EPS buscan sacar el mejor partido. En ese

sentido las EPS han incorporado variantes para la con-

tención de costos como la contratación por capitación

(se contrata la atención de un número determinado

Page 214: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

212 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

de personas por un monto fijo de dinero, mecanismo

a través del cual le traslada el riego a las instituciones

prestadoras de servicio); glosan los servicios, es decir

no aceptan las condiciones en que las prestadoras han

brindado un servicio y por lo tanto no le reconocen el

pago; lentifican el flujo de pago (pueden pasar más de

seis meses para que se les pague los servicios prestados

a las IPS y ESE). Esto lleva a su vez a que las IPS y ESE

generen barreras de acceso para contener costos y evitar

asumir el riesgo3.

Complementario a las acciones del PoS se define

un conjunto de acciones establecidas en el Plan de Salud

Pública (antes PaB). Este plan aborda un conjunto de

intervenciones dirigidas a la colectividad o a los indivi-

duos pero que tienen altas externalidades, o sea asuntos

que no son de exclusivo control del sector salud, tales

como la información pública, educación y fomento de la

salud, el control de consumo de sustancias psicoactivas,

complementación nutricional, planificación familiar,

control de vectores, entre otras.

la organización del SgSSS en Colombia descrita

respondió a un enfoque llamado pluralismo estructurado

o como otros mencionan de competencia o mercado

regulado, bajo el precepto y la comprensión que la salud

es un bien privado de consumo que debe regularse en

una oferta de mercado, lo que garantiza su distribución

adecuada, su calidad y el uso eficiente de los recursos.

Producto de este modelo se organizó el SgSSS en tor-

no a cuatro funciones básicas: articulación, prestación,

financiación y modulación, por lo cual se procura la

integración de todos los agentes en torno al suministro

del plan único de salud (PoS), financiado con un pago

por capitación UPC (fREnK; londoño, 1997).

En este modelo, las EPS son el centro financiero

al recaudar la cotización, descontar la capitación cor-

respondiente a cada uno de sus afiliados y son los que

administran el plan de salud para estos mediante la

prestación directa o la contratación de servicios con otros

agentes. las EPS actúan en el marco de un contrato

público, son delegadas por el Fondo de Solidaridad y

garantía (fosyga) y hacen parte de un mercado alta-

mente regulado en el cual lo producto (PoS), el precio

(UPC) y ciertas pautas de la entrada y operación en

el sistema están determinadas por normas (gRuPo dE

Economía dE la salud, 2002).

Es claro que el SgSSS es un modelo de asegu-

ramiento público, lo cual separa las funciones de

aseguramiento, prestación y regulación, que genera un

conjunto de actores de mercado para estas funciones

y que establece un conjunto de mecanismos de regu-

lación del mercado, establecidos por el aseguramiento

obligatorio, el PoS, la UPC, el fosyga, la prohibición

de la selección del riesgo por parte del asegurador; la

prohibición de la selección adversa por parte del paciente

por medio de los tiempos mínimos para beneficios; y el

control del riesgo moral por parte de los usuarios por

medio de las cuotas moderadoras denominados coPagos

(hERnándEz, 2003a).

Bajo esta concepción y modelo se asume entonces

que el mercado regulado distribuye eficientemente la

provisión de servicios individuales, mientras el Estado

incorpora a los pobres al mercado a través de los subsi-

dios, vigila el cumplimiento de las reglas de mercado y

dispensa los servicios estrictamente públicos, es decir,

con altas externalidades ubicados en el denominado

Plan de Salud Pública (hERnándEz, 2003B).

tal separación, sustentada en la teoría económica

neoclásica, deja a los servicios de atención de enferme-

dades en calidad de bienes privados (los individuos están

dispuestos a pagar por ellos ya que satisfacen sus necesida-

3 tal situación en gran medida es responsable por el denominado paseo de la muerte, en donde una persona en una condición crítica de salud solicita atención y empieza a ser llevada de una a otra institución, que niegan el servicio por que no demuestra quien paga o que lo que se paga por ella no es suficiente para cubrir la condición clínica que se debe atender, hasta que se presenta una atención tardía o simplemente no se da, y la persona fallece. Paseos de la muerte que no son situaciones aisladas, y sí vueltos constantes, y son otros indicadores de la lógica mercantil de la política de salud.

Page 215: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

213toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

des particulares) y a las acciones colectivas de salud como

bienes públicos (son bienes que satisfacen necesidades de

muchas personas al mismo tiempo, es decir, tienen altas

externalidades y las personas no están dispuestas a pagar

por ellos, por lo cual deben ser financiados con recursos

públicos y ejecutados por el estado descentralizado), lo

que genera un proceso estructural de fondo impidiendo

una acción integrada e integral del SgSSS y lleva a que

no se garantice la salud como derecho humano para todas

y todos (hERnándEz, 2003B).

Financiación

En el SgSSS coexisten articuladamente, para su

financiamiento y administración, un régimen contribu-

tivo de salud y un régimen de subsidios en salud, con

vinculaciones mediante el fosyga.

El financiamiento del régimen contributivo se basa

en un esquema de aporte obrero patronales debiendo

cubrir los costos del PoS para todos los afiliados y sus

beneficiarios, y, además, realizar una contribución so-

lidaria para la financiación del régimen subsidiado. El

monto actual de la cotización, ajustado por la ley 1.122

de 2007, es del 12.5% del ingreso base de cotización

(IBC); en el caso de los trabajadores dependientes, el

8.5% lo paga el patrón y el 4% el trabajador; y en el

caso de los independientes, éstos pagan el 12.5% del

IBC que declaren.

El manejo de los recursos financieros está a cargo

del fosyga, el cual esta adscrito al Ministerio de la

Protección Social y se maneja mediante un encargo

fiduciario. Posee cuatro cuentas: compensación, solida-

ridad, promoción y eventos catastróficos. En la cuenta

de compensación se administra el régimen contributivo

y su saldo se determina por la diferencia entre los apor-

tes de los cotizantes, descontando 1.5 que se trasfiere

al régimen subsidiado, y el valor de la UPC que debe

reconocerse a las EPS por todos los afiliados.

El régimen subsidiado se financia mediante cuatro

fuentes de recursos que fueron definidos por la ley 60

de 1993 y luego ajustado por la ley 715 de 2001, el

sistema general de participaciones (que incluye la suma

del situado fiscal y la participación de los municípios en

los ingresos corrientes de la nación), los recursos de soli-

daridad del fosyga, el esfuerzo propio de las entidades

territoriales y los recursos de las cajas de compensación

familiar.

lo dinero del régimen subsidiado es administrado

bajo un esquema de subsidio a la demanda, que se con-

creta vía una política de focalización, la cual identifica

al beneficiario y le asigna el subsidio que le da ingreso

a la EPS-S y recibe un PoS-S.

CONSOLIDACIÓN DE INEQUIDADES E

INJUSTICIAS EN SALUD PROPIAS DEL MER-

CADO

En términos de los resultados sanitarios y sociales

que ha ocasionado este modelo neoliberal de salud

durante estos 14 años de implementación, se eviden-

cian un conjunto de efectos entre los que se destacan

(toRREs, 2003):

No se logró la Universalidad

la ley 100 de 1993 estableció que para el año 2001

existiría cobertura en salud para toda la población, con

igualdad de benefícios.

Según las cifras de aseguramiento presentadas por

el Concejo Nacional de Seguridad Social en su informe

de 2007 al Congreso de la república, se refiere que

hay 37.3% de la población total asegurada al régimen

contributivo, 46.9% asegurada al régimen subsidiado,

4.5% en regímenes especiales y 11.3% de la población

Page 216: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

214 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

no tiene aseguramiento. Cabe distinguir que del por-

centaje de población asegurada en régimen subsidiado,

el 9.4% son subsidios parciales (concEJo nacional dE

sEguRidad social En salud, 2007).

Hay una diferencia ostensible entre cobertura

de aseguramiento y acceso real a los servicios. Estar

asegurado no es garantía de acceder a los servicios, por

el conjunto de barreras que el sistema ha desarrollado

de carácter administrativo, geográfico, económico y de

información (REstREPo; EchEvERRy; vásquEz; RodRí-

guEz, 2006).

Parte del problema de no lograr la cobertura uni-

versal obedece a que el aseguramiento se soporta sobre

el empleo formal y Colombia tiene un escenario de

desempleo del 13.6% (danE, 2007) y de informalidad

y subempleo que supera el 60%.

Lo privado se ha favorecido a costa de lo público

Uno de los efectos positivos más destacado por los

defensores del modelo está en relación con el incremen-

to de los recursos financieros para el sector salud, que

sin lugar a dudas es cierto; pero también es cierto que

estos recursos han servido para enriquecer las arcas de

las intermediadoras (EPS).

Es claro que hay un incremento de los recursos para

el sector salud, lo cual no redunda en aumentos suficien-

tes de la cobertura de salud, ni en resultados positivos

para la salud, lo que esta en relación con la evidencia de

que 30% de estos recursos quedan en la administración

de la intermediación que hacen las aseguradoras y 5%

va para infraestructura (lEguizamón, 2007).

El cambio central del esquema de financiamiento

pasando del subsidio de oferta al subsidio a la demanda

exigió a los hospitales públicos a generar sus propios

recursos para sostenerse económicamente a partir de

la venta de servicios, lo que acarreó un aumento de las

dificultades económicas para la mayoría de estas insti-

tuciones, llevando a muchas de ellas incluso al cierre

(por mencionar como ejemplo vergonzoso el cierre del

hospital emblemático de mayor nivel de formación

académica en el país, el Hospital San Juan de dios de

Bogotá), desestructurando de esta manera la red hospi-

talaria pública, base de la protección social en salud para

extensos sectores de la población colombiana.

La salud de la gente se deterioró

la situación de salud debe ser la manera adecuada

para medir los impactos de una política de salud. aun-

que al modelo se le pueden atribuir el mejoramiento en

indicadores tradicionales, como el de mortalidad mater-

na y infantil de manera global4, el énfasis del modelo en

la atención a la enfermedad ha reducido el componente

de salud pública, dejándolo contenido a un plan (PaB,

ahora plan territorial de salud pública), que esta en la

misma lógica del paquete de servicios.

Esto ha llevado a debilitar programas de promoción

y prevención tan importantes como los relacionados con

la prevención y atención a la fiebre amarilla, la tubercu-

losis y la malaria, enfermedades estas que han tenido un

crecimiento importante en el país (entre 1995 a 2000

la fiebre amarilla reportó un total de 21 casos; la tasa

promedio anual de tuberculosis pulmonar fue de 12 por

100.000 y el promedio anual de casos de malaria llegó

casi a los 100.000).

El componente de inmunización se ha debilitado

completamente, según información del Ministerio de la

Protección Social en 2003, 15 de los 32 departamentos

en el país no lograron alcanzar las coberturas promedios

del 90% para ninguna de las vacunas del plan ampliado

de inmunizaciones; en 2006 la cobertura en vacunación

fue de 86.5% para polio, 86.1% para dPt, 88.2% para

BCg, 86.1% para HEPb; 86% para HiB y 88.3% para

4 Si, por que en quinquenio 2000 a 2005 la tasa de mortalidad infantil nacional fue de 19 por 1.000 nacidos vivos, pero en el área rural fue de 24, de madres con educación superior fue 14, en madres sin educación fue 43, en estratos ricos 14 y en estratos pobres 32 (EncuEsta nacional dE dEmogRafía y salud, 2005).

Page 217: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

215toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

tV (ministéRio dE la PRotEcción social/ oRganiza-

ción PanamERicana dE la salud, 2007). Coberturas

no útiles de vacunación, lo que ha generado la reemer-

gencia de enfermedades infectocontagiosas. Para citar

un ejemplo, en estos momentos en Colombia se vienen

presentando casos de rabia humana, un indicador que

evidencia que la salud pública con este modelo de salud

entro en la debacle.

Las inequidades en salud se incrementaron

los datos muestran que el sistema colombiano

aumentó las inequidades en salud, es decir que quienes

más necesitan menos reciben y quienes más tienen más

reciben. Según estudio hecho por el observatorio de

la Seguridad Social de la Universidad de antioquia en

junio de 2003 al desagregar la distribución porcentual

del subsidio en salud por condiciones socioeconómicas

se encontró que el decil 1 (los más pobres) recibían el

de 4.8%, mientras que para el decil 9 era del 12.8%

y para el decil 10 (los más ricos) era del 14%. al ob-

servar los denominados gastos de bolsillo se observó

también discriminaciones de índole económica ya

que mientras los hogares donde los jefes pertenecían

a regímenes especiales gastan el 5.7% de su ingreso,

los del régimen subsidiado gastan el 14% y los que no

están afiliados el 12.4% (gRuPo dE Economía dE la

salud, 2003).

En relación con el uso efectivo de los servicios de

salud las razones más frecuentes para no acudir a éstos

tiene que ver con los costos que generan, bien por las

cuotas moderadoras y los coPagos en el régimen con-

tributivo, o por el pago porcentual que se deben hacer

del costo de los servicios en el régimen subsidiado.

Quejas, reclamaciones y tutelas en salud por doquier

Son miles de casos de violación al derecho a la salud,

muchos de los cuales se evidencian en el conjunto de tu-

telas (recurso de amparo) para proteger este derecho.

asunto que se constata con el resultado de la inves-

tigación de tutela en salud de la defensoría del Pueblo

que arrojó un resultado impactante revelando que en

el país se presentan 60.000 tutelas en salud anuales.

la mayoría de acciones de tutela fueron interpuestas

por negación de servicios, por falta de oportunidad

en el tiempo para la atención y por la no entrega de

medicamentos, aspectos del PoS por el que las EPS

reciben pago a través de la UPC; lo que evidencia la gran

vulneración general del derecho a la salud ocurriendo

en Colombia, con sus obvias consecuencias para la sa-

lud, la vida y la integridad de la población colombiana

(dEfEnsoRia dEl PuEblo, 2007).

Precarización de las condiciones laborales de los

trabajadores del sector salud

El modelo de salud llevó a que el ejercicio de las

profesiones del área de la salud se rija por la lógicas de

mercado, por lo cual las aseguradoras y las prestadoras

interpretan el acto terapéutico como un componente

del negocio y por lo tanto ejercen sobre él las técnicas

administrativas para que sea lo más rentable posible

(toRREs, 2006a).

El sector de la salud también entró en el proceso de

flexibilización laboral. Miles de trabajadores despedidos

por la liquidación y reestructuración de las instituciones

públicas de salud, contratación temporal que se hace a

través de cooperativas intermediadoras precarizando

las condiciones de trabajo y disminuyendo el monto

salarial. la situación es tan grave que para cientos de

trabajadores formales del sector público se ha vuelto

común que pasen meses sin recibir salario. Esta situación

es reflejo de la lógica de mercado que contiene costos

y aumenta ganancias también por la vía del manejo de

lo laboral.

Un alto porcentaje de la fuerza de trabajo de salud

pasó a ser contratado por las aseguradoras y prestadoras

en modalidades temporales y de subcontratación (en ge-

Page 218: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

216 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

neral a través de una figura perversa llamada cooperativas

o asociaciones de trabajo que desvirtúa la esencia del

cooperativismo) y desde esta relación laboral subordi-

nada se imponen condiciones en aspectos básicos de la

relación del profesional de la salud con el paciente.

Esta situación ha implicado que las aseguradoras

y las prestadoras definan la forma como se contrata el

talento humano de salud, la manera como debe trabajar

en términos de tiempos y ritmos, que tipo de conductas

terapéuticas pueden o no pueden desarrollar y el monto

de pago de sus honorarios. Esto explica la imposición

sobre la mano de obra médica de ver un volumen alto de

paciente por hora (por lo cual los tiempos de consulta se

redujeron, sin tener en cuenta los estándares internacio-

nales) y de imponer ahorro de gastos por diversas vías:

solicitud del mínimo de exámenes clínicos y prescripción

del menor número de medicamentos.

Esto a su vez ha llevado a un deterioro de la calidad

de los servicios asistenciales. los casos de iatrogenia

ahora son múltiples.

Degradación de la institucionalidad pública de la

seguridad social

Este modelo desestructuró la institucionalidad

pública en seguridad social con que contaba el país. la

Caja Nacional de Previsión (caJanal) que cubrió la se-

guridad social de los trabajadores oficiales fue liquidada

hacia finales del año 2000. El Instituto de los Seguros

Sociales (ISS) se fue desmontando paulatinamente y en

el año 2003 solo tenía tres millones de afiliados estando

en 1996 con diez millones, asunto que fue inverso para

las EPS privadas (toRREs, 2006B) y en 2007 se le dio la

estocada final a partir de separar sus áreas administrativas

de las de prestación y empezarse a liquidar esas áreas de

prestación. En este año de 2008 se dará el proceso de

liquidación completo del ISS.

al caso de caJanal y el ISS, se suma al caso de

otras empresas del Estado que fueron vendidas o li-

quidadas. Por supuesto se entiende claramente que lo

que acá ha primado son los grandes flujos de capital

que atraviesan a estos sectores y que el sector privado

se los viene apropiando. No es gratuito que algunas

de las EPS privadas estén ranqueadas dentro de las

100 empresas más grandes de Colombia, con un

crecimiento financiero para el año 2003 del 18.26%,

cinco veces superior al promedio nacional que fue del

3.74% (infoRmE EsPEcial, 2004).

Ruptura del tejido social

El modelo esta fijado sobre una base de focalización

de subsidios para incorporar sectores pobres de la po-

blación al aseguramiento, y ha generado disputas entre

sectores sociales por el acceso a estos subsidios llevando a

rupturas dentro de las comunidades e incluso al interior

de organizaciones sociales, asunto que ha sido denun-

ciado por las propias organizaciones, especialmente del

campo y del sector indígena.

LOS AJUSTES DE TUERCA A LA POLíTICA

PRIVATIZADORA DE SALUD

durante estos años de implementación de la políti-

ca de estado en salud en Colombia a través de la puesta

en escena de la ley 100 de 1993, los gobiernos de turno

han buscado profundizar el modelo privatizador, que

de entrada no lograron, dada la resistencia de sectores

progresistas en el país.

Como estrategias para avanzar en esta vía se han

utilizado principalmente tres herramientas. de un lado,

la orientación del Banco Mundial de impulsar la nueva

concepción de protección social derivada del deno-

minado manejo social del riesgo, que lleva a impulsar

programas de transferencias en efectivo condicionadas

Page 219: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

217toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

para los más pobres, junto con reformas estructurales

de los sistemas de salud hacia sistemas de aseguramien-

to individual con subsidio a la demanda para pobres.

Modelo acogido por Colombia y que viene impulsando

el país a través del programa de familias en acción y del

régimen subsidiado de salud.

de otro lado, la suscripción de un tratado de libre

comercio con Estados Unidos, que busca en el compo-

nente de salud profundizar la privatización del sector al

ahondar la concepción de la salud como bien privado

de consumo, ampliar el mercado de servicios de salud

a las multinacionales farmacéuticas, de aseguramiento

y de prestación de servicios tanto de atención, como de

educación en salud, alejando a la salud de su realización

como derecho humano y bien público. Este tratado de

libre Comercio (tlC) de ser firmado (afortunadamente

se detuvo su firma en el Congreso de Estados Unidos),

será sin lugar a duda un ajuste de tuerca en el proyecto

neoliberal de privatización de sectores como el de la

seguridad social y la salud (toRREs, 2006C).

Por último, por las presiones políticas de diversos

sectores se impulso una reforma a la ley 100 dada sus

limitaciones y efectos negativos, la cual quedo normada

en la ley 1.122 de 2007, la cual mantuvo el modelo de

aseguramiento e intermediación, garantizando el juego de

los actores privados tanto en el componente de asegura-

miento como de prestación de servicios a la enfermedad,

sin resolver los problemas de fondo que derivan de una

política con este tipo de orientación (toRREs, 2007).

CONCLUSIONES

la ley 100 de 1993 instauró en Colombia un siste-

ma de aseguramiento individual en salud que modificó el

papel del Estado en la prestación de estos servicios dando

mayor participación al sector privado; imponiendo a los

ciudadanos demostrar capacidad de pago para acceder

al aseguramiento, definiendo un conjunto mínimo de

intervenciones en salud (PoS), cambiando la concepción

de salud pública al restringirla al desarrollo de acciones de

bajo costo y alto impacto a partir de la lógica de factores de

altas externalidades y un cambio en los subsidios estatales

pasando de los de oferta a los de demanda, entregados

a través de una política de focalización que incorpora al

aseguramiento a sectores sociales marginales (caRmona;

molina; casallas, 2003).

la implementación de este modelo de salud de

corte neoliberal ha venido instalando un conjunto de

conceptos y procesos en el país en contra vía de la ga-

rantía del derecho a la salud, entre los que se destacan

(hERnándEz, 2003a; caRmona, 2006):

• se naturaliza que la salud es un bien privado de

consumo al satisfacer necesidades individuales por las

que se esta dispuesto a pagar;

• se separa la atención individual de la enfermedad

de la atención colectiva. los campos de la salud pública y

la promoción de la salud son marginados y disminuidos

en su potencial transformador de la situación de salud. En

esta lógica de mercado promocionar y prevenir la salud

no es rentable, el negocio esta en la venta de servicios

individuales de atención a la enfermedad;

• se producen exclusiones e inequidades propias

del mercado: hay una salud para ricos (medicina priva-

da); una salud para sectores asalariados (aseguramiento)

y una salud para pobres (redes públicas de salud);

• se produce una serie de barreras administrativas,

económicas, geográficas y culturales para el acceso a los

servicios, como mecanismos de contención de costos

para el aumento de las utilidades del actor de mercado

más beneficiado: las aseguradoras (EPS) privadas;

Page 220: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

218 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

• el modelo de salud es homogenizador, no re-

conoce las diferencias en términos de territorio, clase,

etnia, género, diversidad sexual;

• el modelo se entroncó perfectamente con la

nueva orientación de comienzo de milenio del Banco

Mundial denominada manejo social del riesgo, que

promueve el enfrentamiento y resolución de las diversas

contingencias sociales, sanitarias y económicas a que están

expuestas las personas desde el ámbito individual y fami-

liar, reforzando que la protección social es un asunto de

mercado donde el Estado es regulador de este y asignador

de subsidios.

las orientaciones y resultados del modelo de salud

en Colombia que se han descrito, permiten decir que no

puede ubicarse como un modelo exitoso y con legitimidad

exportable y que más bien se ve la urgente necesidad de

establecer una política que coloque el bienestar y la pro-

moción de la salud en el centro y razón de ser del modelo

de salud, en una perspectiva universal y pública, y no

como un asunto subordinado a la lógica de los intereses

particulares del mercado, lo que debe permitir concretar

la realización del derecho a la salud y constituirse en un

componente de un modelo de protección social integral

que enfrente y supere el conjunto de inequidades sanita-

rias y sociales presentes en el país.

B I B L I O G R A F í A

banco mundial. El financiamiento de los servicios de salud en los países en desarrollo: una agenda para la re-forma. Washington: 1993.

caRmona, l.d. (org.). Ley 100: balance y perspectivas. Bogotá: Movimiento Nacional por la Salud y la Seguri-dad Social y Corporación para la Salud Popular grupo guillermo Fergusson, 2006.

caRmona, l.d.; molina, N.; casallas, a.l. la des-la des-protección social. En: PaREdEs, N. (org.). El embrujo autoritario: primer año de gobierno de Álvaro Uribe Vélez. Bogotá: Ediciones antropos ltda., 2003.

concEJo nacional dE sEguRidad social En salud. Informe Anual del concejo Nacional de Seguridad So-cial en Salud a las comisiones Séptimas de Senado de la República y cámara de Representantes 2006 – 2007. Bogotá, 2007.

dEPaRtamEnto administRativo nacional dE EEsta-dística. Informe público. Bogotá, 2007.

fREnK, J.; londoño, J. l. Pluralismo estructurado: ha-cia un modelo innovador para la reforma de los sistemas de salud en américa latina. En: fundación mExicana PaRa la salud. Observatorio de la salud: necesidades, servicios, políticas. México: Funsalud, 1997.

gRuPo dE Economía dE la salud. resultados económi-resultados económi-cos de la reforma a la salud en Colombia. observatorio de la seguridad social, Medellín, v. 3, n. 7, 2003.

______. la regulación en el sistema de salud colom-biano. observatorio de la seguridad social, Medellín, n. 6, 2002.

hERnándEz, M. El debate sobre la ley 100 de 1993: antes, durante y después. En: agudElo, S.F. (Ed.). La salud pública hoy: enfoques y dilemas contemporáneos en salud pública. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2003a.

______. Neoliberalismo en salud: desarrollos, supuestos y alternativas. En: REstREPo, d. (Ed.). La falacia neoli-beral: crítica y alternativas. Bogotá: Ediciones antropos ltda., 2003B.

Informe especial sector económico. Revista Semana, Bogotá, n. 1.147, 2004.

Page 221: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008

219toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

lEguizamón, g.B. cuentas de salud de colombia 1193-2003: el gasto nacional en salud y su financiamiento. Bogotá: Ministerio de la Protección Social, 2007.

ministéRio dE la PRotEcción social/oRganización PanamERicana dE la salud. Situación de salud en co-lombia: indicadores básicos 2006. Bogotá, 2007.

oRganización mundial dE la salud. Informe Mundial de la Salud 2000. Sistemas de Salud: Mejorando la ac-tuación. ginebra: oMS, 2000.

PaREdEs, N. a cinco años de la reforma del sistema de salud colombiano, ¿qué ha pasado con el derecho a la salud? En: PlatafoRma colombiana dE dEREchos humanos, dEmocRacia y dEsaRRollo. La salud esta grave. Una visión desde los derechos humanos. Bogotá: Ediciones antropos, 2000.

PRogRama dE salud. La tutela y el derecho a la salud: período 2003 – 2005. Bogotá: defensoría del Pueblo, 2007.

______. Evaluación de los servicios de salud que brindan las empresas promotoras de salud: índice de vulneración o cumplimiento de los diferentes componentes del dere-cho a la salud en el esquema de aseguramiento. Bogotá: defensoría del Pueblo, 2003.

REstREPo, J.H.; EchEvERRy, E.; vásquEz, J.; RodRíguEz, S. El seguro subsidiado y el acceso a los servicios de salud: teoría, contexto colombiano y experiencia en antioquia. Medellín: Centro de Investigaciones Económicas Uni-versidad de antioquia, 2006.

toRREs, M. Plan Nacional de Salud Pública ¿respuesta a situación de la salud? UN Periódico, Bogotá, n. 107, 2007. p. 10.

______. Ejercicio médico en Colombia: de la práctica profesional liberal a la neoliberal. Le Monde Diplomati-que, Bogotá, n. 48, 2006a.

________. ISS: Crónica de una muerte anunciada. Desde Abajo, Bogotá, n. 116, 2006B.

______. El tlC entre Colombia y Estados Unidos: ajuste de tuerca en la reforma privatizadora de la ley 100 de 1993. En: caRdona, l.d. (org.). Ley 100: balance y perspectivas. Bogotá: Ediciones antropos, 2006C.

______. Colombia, avanza la privatización de la segu-ridad social. Le Monde Diplomatique, Bogotá, n. 18, 2003.

toRREs, M.; PaREdEs, N. derecho a la salud. Situación en países de américa latina. El caso colombiano: “El mercado no es para todos y todas”. gerencia y Política de Salud, Bogotá, n. 8, 2005.

recebido: maio/2008

aprovado: out./2008

Page 222: Saude Em Debate_n75

Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 220, jan./dez. 2008

agradECIMENtoS / AcKNOWLEDgEMENTS220

aMÉlIa CoHN

aNa lUIZa StIEBlEr VIEIra

aNa MarIa CoSta

aNa MarIa MalIK

aNdrÉa gUErra

aNNa CHIESa

ÁQUIlaS MENdES

aSSIS MaFort

CÉlIa MarIa dE alMEIda

dUlCE MarIa SENNa

ElIaNE goNÇalVES

EMIKo EgrY

EStEla aQUINo

EVErardo dUartE NUNES

FÁtIMa CorrÊa olIVIEr

FErNaNdo FrEItaS

grEICE MENEZES

gUIlHErME CaStElo BraNCo

IaNNI rEgIa SCarCEllI

IZaBEl PaSSoS

JoSÉ aUgUSto C.BarroS

JoSÉ JUSto StErZa

JoSÉ lUIS tEllES

JUaN StUardo roCHa

JUarEZ PErEIra FUrtado

KarEN gIFFIN

KatHIE NJaINE

lUCIa C. doS SaNtoS roSa

lUCIENE KaNtorSIKI

lYgIa MarIa FraNÇa PErEIra

Magda dIMENStEIN

Magda VaISSMaN

MÁrCIa Car

MarIa HElENa MaCHado

MarIa HElENa MENdoNÇa

MarIa ISaBEl Baltar da roCHa

MarIa lUIZa HEIlBorN

MarIa tErESa S. SoarES dE BrIto E alVES

MarIaNa BarCINSKI

Marta MarIa alVES da SIlVa

MYrNa CoElHo

NINa ISaBEl SoalHEIro

PatrÍCIa dorNEllES

rENato VEraS

roBErto PaSSoS NogUEIra

roSaNa oNoCKo CaMPoS

SaraH ESCorEl

SIlVIo YaSUI

SIMoNE goNÇalVES

SIMoNE MoNtEIro

SoNIa BarroS

SoNIa FlEUrY

tErESa SEaBra

tHoMaS JoSUÉ SIlVa

tÚlIo FraNCo

VICtor VallE

VolNEI garraFa

WaltEr olIVEIra

WaNda ESPIrIto SaNto

WIlZa VIllEla

a revista Saúde em debate agradece a cooperação dos Consultores

ad hoc que colaboraram no processo editorial das revistas n.76/75/77

e n.78/79/80

Page 223: Saude Em Debate_n75

aSSoCIE-SE ao CEBES E rECEBa aS NoSSaS rEVIStaS

o cEbEs tem duas linhas editoriais. a revista Saúde em Debate, que o associado recebe quadrimestralmente em abril, agosto e dezembro, e a Divulgação em Saúde para Debate, cuja edição tem caráter temático, sem periodicidade regular.

QUEM SoMoS

desde a sua criação em 1976 o cEbEs tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 31 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, em movimentos sociais, nas instituições ou no parlamento.

durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o cEbEs continua empenhado em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas políticas e nas práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobre as questões de saúde; e, em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade mais justa.

a produção editorial do cEbEs é resultado do trabalho coletivo. Estamos certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação.

a ficha abaixo é para você tornar-se sócio ou oferecer a um amigo! Basta enviar a taxa de associação (anuidade) de r$ 150,00 (institucional), r$ 100 (profissional) ou r$ 50,00 (estudante) em cheque nominal e cruzado, junto com a ficha devidamente preenchida, em carta registrada, ou solicitar, nos telefones ou e-mail abaixo.

CorrESPoNdÊNCIaS dEVEM SEr ENVIadaS Para

cEbEs – Centro Brasileiro de Estudos de Saúdeav. Brasil, 4.036 – Sala 802 – Manguinhos – 21040-361 – rio de Janeiro – rJ – Brasiltel.: (21) 3882-9140 e 3882-9141 – Fax.: (21) 2260-3782

Site: www.cebes.org.br / www.saudeemdebate.org.brE-mail: [email protected] / [email protected]

FICHa dE INSCrIÇÃo (preencher em letra de forma) Valor: r$ 100,00

Para efetuar depósito: caixa Econômica Federal – Agência: 1343 c/c: 0375-4 Operação: 003cNPJ: 48.113.732/0001-14

atualização de Endereço

Nova associação

Pagamento de anuidade Nome:

Endereço:

Complemento:

Bairro: CEP:

Cidade: UF:

tel.: ( ) Fax.: ( )

Cel.: E-mail:

local de trabalho:

Profissão:

data de Inscrição: assinatura:

Page 224: Saude Em Debate_n75

a revista Saúde em debate, criada em 1976, é uma publica-

ção do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), voltada para

as Políticas Públicas na área da saúde. Publicada quadrimestralmen-

te nos meses de abril, agosto e dezembro, é distribuída a todos os

associados em situação regular com a tesouraria do Cebes.

aceita trabalhos inéditos sob forma de artigos originais,

resenhas de livros de interesse acadêmico, político e social e

depoimentos.

os textos enviados para publicação são de total e exclu-

siva responsabilidade dos autores.

É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos

desde que identificada a fonte e a autoria.

a publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres

do Conselho Editorial ad-Hoc estabelecido para cada número

da revista. Eventuais sugestões de modificações da estrutura ou

de conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acordadas

com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações

depois que os trabalhos forem entregues para a composição.

ModalIdadES dE tEXtoS

aCEItoS Para PUBlICaÇÃo

Artigos originais

1. Pesquisa: artigos que apresentem resultados finais de

pesquisas científicas, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

2. Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema

específico de relevante interesse para a conjuntura das políticas

de saúde no Brasil, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

3. revisão: artigos com revisão crítica da literatura sobre

um tema específico, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

4. relato de experiência: artigos com descrições de expe-

riências acadêmicas, assistenciais e de extensão, com tamanho

entre 10 e 15 laudas.

Resenhas

Serão aceitas resenhas de livros de interesse para a área de

políticas públicas de saúde, a critério do Conselho Editorial.

os textos deverão apresentar uma noção do conteúdo da obra,

de seus pressupostos teóricos e do público a que se dirige em

duas ou três laudas.

Documentos e depoimentos

Serão aceitos trabalhos referentes a temas de interesse

histórico ou conjuntural, a critério do Conselho Editorial.

SEÇÕES da PUBlICaÇÃo

a revista está estruturada com as seguintes seções:

Editorial

apresentação

artigos temáticos

artigos de tema livre

artigos Internacionais

resenhas

depoimentos

documentos

aPrESENtaÇÃo do tEXto

Seqüência de apresentação do texto

os artigos podem ser escritos em português, espanhol

ou inglês.

os textos em português e espanhol devem ter título

na língua original e em inglês. os textos em inglês devem

ter título em inglês e português e o título, por sua vez, deve

expressar claramente o conteúdo do artigo.

a folha de apresentação deve trazer o nome completo

do(s) autor(es) e, no rodapé, as referências profissionais (con-

tendo filiação institucional e titulação) e o e-mail para contato.

Quando o artigo for resultado de pesquisa com financiamento,

citar a agência financiadora.

apresentar resumo em português e inglês (abstract)

ou espanhol e inglês, no qual fique clara uma síntese dos

propósitos, métodos empregados e principais conclusões do

trabalho com o mínimo de três e máximo de cinco descrito-

res (keywords), não ultrapassando o total de 700 caracteres

(aproximadamente 120 palavras). Para os descritores, utilizar

os termos apresentados no vocabulário estruturado (deCS),

disponíveis no endereço http://decs.bvs.br. Caso não sejam

encontrados descritores relacionados à temática do artigo, po-

derão ser indicados termos ou expressões de uso conhecido.

INStrUÇÕES aoS aUtorES - SaÚdE EM dEBatE

Page 225: Saude Em Debate_n75

Em seguida apresenta-se o artigo propriamente dito:

a. as marcações de notas de rodapé no corpo do texto

deverão ser sobrescritas. Ex.: reforma Sanitária1

b. para as palavras ou trechos do texto destacados a critério

do autor, utilizar aspas simples. Ex.: ‘porta de entrada’.

c. quadros e gráficos deverão ser enviados em impressão de

alta qualidade, em preto-e-branco e/ou escala de cinza, em

folhas separadas do texto, numerados e intitulados correta-

mente, com indicações das unidades em que se expressam

os valores e fontes correspondentes. o número de quadros

e gráficos deverá ser, no máximo, de cinco por artigo.

d. os autores citados no corpo do texto deverão estar escritos

em caixa-baixa (só a primeira letra maiúscula), observando-

se a norma da aBNt NBr 10520:2001 (disponível em

bibliotecas). Ex.: Conforme Mario testa (2000).

e. as referências bibliográficas deverão ser apresentadas,

no corpo do texto, entre parênteses com o nome do

autor em caixa-alta seguido do ano e, em se tratando

de citação direta, da indicação da página. Ex.: (Miranda

Netto, 1986; testa, 2000, p. 15).

as referências bibliográficas deverão ser apresentadas

no final do artigo, observando-se a norma da aBNt NBr

6023:2000 (disponível em bibliotecas). Exemplos:

Carvalho, a.I. Conselhos de saúde, responsabilidade

pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do

Estado. In: Fleury, S.M.t. (org.). Saúde e democracia: a luta

do Cebes. São Paulo: lemos, 1997. p. 93-112.

Cohn, a.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular

e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do

município de São Paulo. Saúde em debate, londrina (Pr),

n. 38, p. 90-93, 1993.

demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.

Extensão do texto

o artigo deve ser digitado no programa Microsoft®

Word, ou compatível, em página padrão a4, com fonte

times New roman tamanho 12 e espaçamento entre linhas

de 1,5.

Declaração de autoria e de responsabilidade

Segundo o critério de autoria do International Commit-

tee of Medical Journal Editors, os autores devem contemplar

as seguintes condições: a) Contribuir substancialmente para

a concepção e planejamento, ou análise e interpretação dos

dados; b) Contribuir significativamente na elaboração do

rascunho ou revisão crítica do conteúdo; c) Participar da

aprovação da versão final do manuscrito. Para tal, é neces-

sário que se assine a seguinte declaração de autoria e de

responsabilidade:

“Certifico que participei de forma suficiente na concep-

ção deste trabalho para tornar pública minha responsabilidade

pelo seu conteúdo. Certifico que o manuscrito representa

um trabalho original e que nem este manuscrito, nem outro

com conteúdo substancialmente semelhante de minha au-

toria foi publicado ou submetido a apreciação do Conselho

Editorial de outra revista, quer seja no formato impresso ou

no eletrônico.”

Conflitos de interesse

os trabalhos encaminhados para publicação deverão

conter informação sobre a existência de algum tipo de con-

flito de interesse entre os autores. os conflitos de interesse

financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao

financiamento direto da pesquisa, mas também ao próprio

vínculo empregatício.

Ética em pesquisa

No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de 1997

e que envolvam seres humanos nos termos do inciso II da

resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (pesquisa

que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de

forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele,

incluindo o manejo de informações ou materiais) deverá ser

encaminhado um documento de aprovação da pesquisa pelo

Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada.

No caso de instituições que não disponham de um Comitê

de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada a aprovação pelo

CEP onde ela foi aprovada.

Page 226: Saude Em Debate_n75

Fluxo dos originais submetidos à publicação

todo original recebido pela secretaria do Cebes é

encaminhado ao Conselho Editorial para avaliação da

pertinência temática e observação do cumprimento das

normas gerais de encaminhamento de originais. Uma vez

aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a

dois membros do quadro de revisores (pareceristas) da

revista. os pareceristas serão escolhidos de acordo com o

tema do artigo e sua expertise, priorizando-se conselheiros

que não sejam do mesmo estado da federação que os auto-

res. os conselheiros têm um prazo de 45 dias para emitir

o parecer. ao final do prazo, caso o parecer não tenha sido

enviado, o consultor será procurado e a oportunidade de

encaminhamento a outro conselheiro será avaliada. o

formulário para o parecer está disponível para consulta no

site da revista na Internet. os pareceres sempre apresenta-

rão uma das seguintes conclusões: aceito para publicação;

aceito para publicação (com sugestões não impeditivas);

reapresentar para nova avaliação após efetuadas as modi-

ficações sugeridas; recusado para publicação.

Caso haja divergência de pareceres, o artigo será encami-

nhado a um terceiro conselheiro para desempate (o Conselho

Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer).

No caso de solicitação de alterações no artigo, poderão ser

encaminhados em até três meses.

ao fim desse prazo, e não havendo qualquer manifesta-

ção dos autores, o artigo será considerado como retirado.

o modelo de parecer utilizado pelo Conselho Científico

está disponível em: http://www.saudeemdebate.org.br

Envio do artigo

os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial

devem ser enviados através do site da revista: www.saudee-

mdebate.org.br.

Endereço para correspondência

avenida Brasil, 4.036, sala 802

CEP 21040-361 – Manguinhos, rio de Janeiro (rJ)

tel.: (21) 3882-9140

Fax: (21) 2260-3782

E-mail: [email protected]

Page 227: Saude Em Debate_n75

the magazine Saúde em debate, created in 1976, is a

publication by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes),

directed to Public Policies in the health field. Published every four

months, in april, august and december, it is distributed to all of

the associates in regular situation with Cebes’ treasurer’s office.

It receives unpublished works under the form of original

articles, book reviews of academic, political and social interest

and declarations.

the texts that are sent for publication are of total and

exclusive responsibility of the authors.

the total or partial reproduction of the articles is permit-

ted, as long as identified the source and authorship.

the publication of papers is conditioned to the opinions

of the Editorial Board ad-Hoc established for each issue of the

magazine. occasional suggestions of alterations in structure

or content, from the Board, will be previously resolved with

the authors. additions or modifications will not be admitted

once the works have been delivered for composition.

ModalItIES oF tEXtS

aCCEPtEd For PUBlICatIoN

Original articles

research: articles that present final results of scientific

researches, between 10 and 15 sheets.

assays: articles containing a critical analysis about a

specific subject of relevant interest for the health policies

conjuncture in Brazil, between 10 and 15 sheets.

review: articles with a critical review of literature about

a specific subject, between 10 and 15 sheets.

Experience report: articles containing descriptions of

academic, attendance and extension experiences, between

10 and 15 sheets.

Reviews

Book reviews of interest for the health public policies

field will be accepted under the criteria of the Editorial Board.

the texts must present a notion about the content of the

paper, of its theoretical purposes and of the public to which

it is directed in two or three sheets.

Documents and declarations

Papers referring to themes of historical or conjectural

interest will be accepted under the criteria of the Editorial

Board.

SECtIoNS oF tHE PUBlICatIoN

the magazine is structured with the following sec-

tions:

Editorial

Presentation

thematic articles

Free theme articles

International articles

reviews

declarations

documents

tEXt PrESENtatIoN

Sequence of text presentation

the articles may be written in Portuguese, Spanish or

English.

the texts in Portuguese and Spanish must contain the

title in the original language and in English. the texts in

English must contain the title in English and in Portuguese,

and it must express the content of the article clearly.

the presentation sheet must have the author’s full name

and, at the footnote, the professional references (containing

institutional affiliation and title) and e-mail for contact.

When the article is a result of financed research, cite the

financing agency.

Present the abstract in Portuguese and English, or Span-

ish and English, so that a summary of the purposes, methods

used and main conclusions of the paper is clear with the

minimum of three and maximum of five keywords, without

exceeding the total of 700 letters (approximately 120 words).

For the keywords, use the terms presented in the structured

vocabulary (deCS), available on http://decs.bvs.br. In case the

INStrUCtIoN For aUtHorS - SaÚdE EM dEBatE

Page 228: Saude Em Debate_n75

keywords related to the theme of the article are not found, it

is possible to indicate terms or expressions commonly used.

after, the article itself is presented:

a. the footnote markings must be superscribed. Ex: Sani-

tary reform1

b. for words or extracts of the text that stand out under the

author’s criteria, use simple quotation marks. Ex: ‘front

door’.

c. boards and graphs must be sent in high quality print-

ing, black and white and/or gray scale, in sheets that

are apart from the text, numbered and correctly en-

titled, containing indications of the units in which are

expressed the correspondent values and sources. the

number of boards and graphs must be, at most, five per

article.

d. the authors that are cited in the text must be written in

small letters (only the first one is capital), observing the

aBNt NBr 10520:2001 norm (available in libraries).

Ex: according to Mario testa (2000).

e. bibliographical references must be presented in the text,

in parenthesis, with the name of the author in capital

letters followed by the year and, in the case of a direct

quotation, the indication of the page. Ex: (Miranda

Netto, 1986; testa, 2000, p. 15).

Bibliographical references must be presented at the end

of the article, observing the aBNt NBr 10520:2001 norm

(available in libraries).

Examples:

Carvalho, a.I. Conselhos de saúde, responsabilidade

pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do

Estado. In: Fleury, S.M.t. (org.). Saúde e democracia: a luta

do Cebes. São Paulo: lemos, 1997. p. 93-112.

Cohn, a.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular

e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do

município de São Paulo. Saúde em debate, londrina (Pr),

n. 38, p. 90-93, 1993.

demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.

Text extension

the article must be typed on Microsoft® Word software,

or compatible, in pattern page a4, font times New roman,

size 12 and 1,5 between lines.

Declaration of authorship and responsibility

according to the criteria of authorship of the Interna-

tional Committee of Medical Journal Editors, the authors

must contemplate the following conditions: a) to contrib-

ute substantially for the conception and planning, or data

analysis and interpretation; b) to contribute considerably for

the elaboration of the draft or critical review of the content;

c) to participate in the approval of the final version of the

manuscript. For that, it is necessary to sign the following

declaration of authorship and responsibility:

“I certify that I have participated sufficiently for the

conception of this paper to make public my responsibility

for its content. I certify that the manuscript represents an

original paper and that not this manuscript nor any other

with a substantially similar content of my authorship has been

published or submitted to the analysis of an Editorial Board

from another magazine, printed or electronic”.

Conflicts of interest

the texts sent for publication must contain information

on the existence of any kind of conflict of interest among the

authors. the conflicts of financial interest, for instance, are

not only related to the direct financing of the research, but

also to the employment bond itself.

Ethics in research

For researches initiated after January 1997 that involve

human beings under the terms of the incise II, resolution

196/96 of the Health Councils (research that individually

or collectively involves the human being, directly or indi-

rectly, in its totality or partially, including the management

of information or materials), a document of approval of the

research by the Committee of Ethics in research from the

institution where it was developed must be sent. In the case

Page 229: Saude Em Debate_n75

of institutions that do not have a Committee of Ethics in

research, an approval by the Post office region where it has

been approved must be presented.

Flow of originals submitted to publication

Every original received by Cebes’ office is forwarded to the

Editorial Board for the evaluation of thematic pertinence and

the observation of the fulfillment of general rules for directing

originals. once they have been accepted for analysis, the originals

are forwarded to two members of the reviewer’s board (report-

ers) of the magazine. the reporters will be chosen according

to the expertise and the theme of the article, giving priority to

counselors who are not from the same State of the federation

as the authors. the counselors have 45 days to emit the report.

on the deadline, if it has not been sent, the consultant will be

informed and the opportunity to forward it to another counselor

will be analyzed. the form for the report is available for consulta-

tion in the website of the magazine in the internet. the reports

will always present one of the following conclusions: accepted

for publication; accepted for publication (with non restraining

suggestions); present again for new evaluation after making the

suggested modifications; refused for publication.

In case there is a divergence in reports, the article will

be sent to a third counselor to decide (the Editorial Board is

allowed, under its criteria, to emit a third report). In the case

of alteration requirements in the article, they can be sent in

up to three months.

at the end of this deadline, and if there is no mani-

festation from the authors, the article will be considered as

cancelled.

the model of the report used by the Scientific Council

is available on http://www.saudeemdebate.org.br.

Sending the article

the work to be analyzed by the Editorial Board must be

sent by the magazine’s website: www.saudeemdebate.org.br.

Mail address

avenida Brasil, 4.036, sala 802

CEP 21040-361 – Manguinhos, rio de Janeiro (rJ)

Phone: (21) 3882-9140

Fax: (21) 2260-3782

E-mail: [email protected]

Page 230: Saude Em Debate_n75
Page 231: Saude Em Debate_n75

Centro Brasileiro de estudos de saúde (CeBes)

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)

NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)

Diretoria Executiva

Presidente Sonia Fleury (RJ)

1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ)

2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF)

3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ)

4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP)

1O Suplente Francisco Braga (RJ)

2O Suplente Lenaura Lobato (RJ)

Diretor Ad-hoc Nelson Rodrigues dos Santos (SP)

Diretor Ad-hoc Rodrigo Oliveira (RJ)

CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL

Áquilas Mendes (SP)

José da Rocha Carvalheiro (RJ)

Assis Mafort (DF)

Sonia Ferraz (DF)

Maura Pacheco (RJ)

Gilson Cantarino (RJ)

Cornelis Van Stralen (MG)

CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL

Sarah Escorel (RJ)

Odorico M. Andrade (CE)

Lucio Botelho (SC)

Antonio Ivo de Carvalho (RJ)

Roberto Medronho (RJ)

José Francisco da Silva (MG)

Luiz Galvão (WDC)

André Médici (DF)

Jandira Feghali (RJ)

José Moroni (DF)

Ary Carvalho de Miranda (RJ)

Julio Muller (MT)

Silvio Fernandes da Silva (PR)

Sebastião Loureiro (BA)

SECRETARIA / SECRETARIES

Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves

A Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos

saúde em deBate

A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR

Paulo Amarante (RJ)

CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL

Jairnilson Paim (BA)

Gastão Wagner Campos (SP)

Ligia Giovanella (RJ)

Edmundo Gallo (DF)

Francisco Campos (MG)

Paulo Buss (RJ)

Eleonor Conill (SC)

Emerson Merhy (SP)

Naomar de Almeida Filho (BA)

José Carlos Braga (SP)

EDITORA ExECUTIVA / ExECUTIVE EDITOR

Marília Correia

INDExAÇÃO / INDExATION

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS)

Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]

Apoio

REVISÃO DE TExTO,CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Zeppelini Editorial

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Corbã Editora Artes Gráficas

TIRAGEM

2.000 exemplares

Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.

Capa em papel cartão supremo 250 gr

Miolo em papel kromma silk 80 gr

PROOFREADINGCOVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING

Zeppelini Editorial

PRINT AND FINISH

Corbã Editora Artes Gráficas

NUMBER OF COPIES

2,000 copies

This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.

Cover in premium card 250 gr

Core in kromma silk 80 gr

Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.

v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1

Page 232: Saude Em Debate_n75

Saú

de

em D

ebat

e

v.32

n

.78/

79/8

0

jan

./dez

. 20

08Cebes

ISSN 0103-1104