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Saberes e fazer - educação

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  • Educao & Realidade, Porto Alegre, Ahead of print, 2015.http://dx.doi.org/10.1590/2175-623642057

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    Medicalizao dos Modos de Ser e de Aprender

    Ana Carolina ChristofariI

    Claudia Rodrigues de FreitasI

    Claudio Roberto BaptistaI

    IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS Brasil

    RESUMO Medicalizao dos Modos de Ser e de Aprender. Este artigo ana-lisa os modos de ser e aprender na escola, considerando a medicalizao como dispositivo que transforma comportamentos da vida humana em patologias. Investe-se na dimenso histrico-conceitual, problematizando esse processo. Os acontecimentos escolares apresentados do visibilidade prtica escolar de inventar diagnsticos que justifiquem o no-aprender. O presente artigo apoia-se no pensamento foucaultiano, sobretudo, em rela-o estratgia constitutiva de subjetividades pelos discursos. A anlise, ao problematizar as prticas escolares e os discursos patologizantes, investe na compreenso da condio humana considerada em permanente trans-formao.Palavras-chave: Educao Especial. Medicalizao. Patologizao. Inclu-so Escolar.

    ABSTRACT Medicalization of Modes of Being and Learning. This article analyzes the modes of being and learning in school, considering medical-ization as a device that transforms human life behaviors in pathologies. We invest in the historical-conceptual dimension, discussing this process. The school events here presented provide visibility to the practice of inventing diagnoses that justify the non-learning. The article is built on Foucaults thinking, particularly in relation to the strategy of subjectivity constitu-tion by discourse. The analysis focuses on the comprehension of the ever-changing human condition, while it discusses school practices and pathol-ogizing discourses.Keywords: Special Education. Medicalization. Pathologization. School In-clusion.

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    Medicalizao dos Modos de Ser e de Aprender

    Quando nasci veio um anjo safadoO chato do querubim

    E decretou que eu estava predestinadoA ser errado assim

    J de sada a minha estrada entortouMas vou at o fim

    inda garoto deixei de ir escolaCassaram meu boletim

    No sou ladro, eu no sou bom de bolaNem posso ouvir clarim

    Um bom futuro o que jamais me esperouMas vou at o fim1

    Irrequietos. Desatentos. Preguiosos. Caractersticas individuais ou patologias? Discutir e analisar o processo de patologizao dos mo-dos de ser e de aprender, no ambiente escolar, a aspirao deste artigo. Ao dar nfase patologizao, so colocados em destaque os aspectos que tendem a configurar as condies de aprendizagem e suas impossi-bilidades como parte constitutiva do processo de medicalizao.

    A diversidade humana tem sido diariamente produzida por um amplo processo de medicalizao, atribuindo aos indivduos uma s-rie de rtulos e classificaes, os inserindo em uma rede de explicaes patolgicas. Medicalizao um dispositivo que transforma problemas polticos, sociais e culturais em questes pessoais a serem tratadas ou medicadas. Isola-se o indivduo de um contexto para analisar em deta-lhe suas particularidades e torn-las patolgicas. Produz-se um modo de olhar para o outro como se ele fosse uma simples somatria de carac-tersticas biolgicas e comportamentais, ambas tomadas como ponto de partida para a definio da presena de possveis patologias.

    As questes biolgicas referem-se, na maioria dos casos, genti-ca, hereditariedade que foi o ponto de partida para a teoria da degene-rescncia. Esta foi desenvolvida sobre o modo como a espcie humana tende a se deteriorar. A ideia de uma espcie de contaminao, trans-misso dos males e desvios humanos, foi se desenvolvendo com base na atribuio de um carter de cientificidade para explicar porque alguns sujeitos representam, em seu corpo e sua conduta, a transgresso s leis humanas e s leis naturais. No Trait des dgnscences (Tratado das de-generescncias), de 1857, Morel define uma modificao no organismo de um tipo primitivo perfeito:

    Esse desvio, por mais simples que seja suposto em sua origem, encerra, no entanto, elementos de transmissibi-lidade de tal natureza que aquele que carrega seu germe torna-se cada vez mais incapaz de cumprir sua funo na humanidade, e que o progresso intelectual j bloqueado em sua pessoa encontra-se ainda ameaado na de seus descendentes (Morel, 2008, p. 500).

    Essa transformao seria um desvio mrbido que poderia causar danos ao desenvolvimento da espcie humana. A teoria alinha-se a um

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    carter moralizante, pois as principais causas da degenerescncia se-riam os desvios de inteligncia e de conduta em relao s regras social-mente estabelecidas. A imoralidade dos costumes, a intoxicao, enfer-midades congnitas, relaes consideradas promscuas, eram algumas das aes que causariam danos ao organismo e poderiam ser transmi-tidas s geraes descendentes, produzindo uma linhagem atingida e constituda como inferior. A ideia de uma predisposio hereditria ou adquirida cria uma condio de sujeito fragilizado. Este sujeito, por estar em contato com uma situao capaz de colocar sua integridade fsica e moral em perigo, teria uma maior probabilidade de desenvolver alguma patologia.

    As questes comportamentais, ou os chamados desvios de condu-ta, tornam-se sintomas patolgicos na medida em que a racionalidade mdica, sobretudo o discurso mdico-clnico, se faz presente em todos os campos da vida e se expande pelas diferentes prticas educativas. Nas primeiras dcadas do Sculo XX, com a intensificao das prti-cas higienistas no Brasil e com a insero destas na escola, atua-se de modo a prevenir maus hbitos. Para tanto, a manuteno da sade seria possvel por meio do cuidado dirigido s condies de vida, s relaes sociais entre adultos e crianas, s relaes familiares. Nesse sentido, a famlia passa a ser compreendida como forte influncia sobre o desen-volvimento de cada criana, sobretudo em relao ao desenvolvimento escolar, tanto como transmissora de genes supostamente saudveis, frgeis, doentes, como produtora de condutas que poderiam justificar a julgada incapacidade do indivduo de se adaptar s condies sociais nas quais est inserido.

    Ao analisar a participao de Arthur Ramos2, inscrita na dcada de 1930 na educao brasileira, e o modo como se foi construindo a ideia de uma criana anormal, a qual ele passa a denominar criana proble-ma. Silva (2011) afirma que diversas situaes podem gerar a inadequa-o social da criana e analisa os casos apresentados por Ramos em seu livro intitulado A Criana Problema, publicado em 1939. Considerando esses casos, ficou perceptvel que nas fichas de atendimentos no servio de ortofrenia e higiene mental em escolas pblicas experimentais do Distrito Federal,

    [...] constavam anotaes sobre o sexo e a idade da crian-a, a profisso dos pais, indicando se eram vivos e se dis-punham de boa sade, em que circunstncias se deram a gestao e o parto, se tinha irmos e/ou outros familiares morando na mesma casa, quais as condies de habita-o, informaes sobre as atividades desenvolvidas du-rante o dia, as alteraes do sono, seus medos e aspectos da personalidade. Em sequncia, apresentavam os hbi-tos e as queixas escolares e se havia problemas orgnicos (Silva, 2011, p. 62).

    Para o campo da educao, a relao famlia e comportamentos considerados inadequados, ou mesmo a suposta incapacidade cogniti-

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    va, sempre formaram um elo importante de constituio dos discursos sobre os alunos considerados fora dos padres de aluno ideal. At hoje, tais discursos justificam a suposta no-aprendizagem de muitos alu-nos, baseados na concepo de uma espcie de herana familiar dos males genticos e de conduta.

    No ambiente escolar o processo de medicalizao pode ser defi-nido como prticas que indicariam quais alunos estariam aptos a per-manecer na escola e a aprender na forma determinada por esta insti-tuio. A medicalizao a produo social de doenas que justificam a suposta no-aprendizagem de uma ampla gama de alunos, os quais no se enquadram no perfil de aluno padro. Este modo de subjetiva-o nos convoca a problematizar a classificao da diversidade humana como desvio, distrbio, como patologia. Nesse sentido analisaremos a emergncia daquilo que estamos chamando de medicalizao e a for-ma atravs da qual esse processo se faz visvel nas prticas escolares, a partir da compreenso de que os discursos so parte das prticas de medicalizao.

    A letra da msica de Chico Buarque, evocada na epgrafe, nos d pistas de como esse processo tem se tornado potente na constituio de lugares de sujeito, pois apresenta uma vida que resiste ao que lhe foi predestinada: uma vida produzida como obra de arte, porque no se deixa capturar pelas previses e luta para escapar do caminho aparen-temente inexorvel. Podemos encontrar muitas dessas vidas na escola. Em um contnuo jogo de resistncia e luta para ingressar no universo daqueles que sabem, aprendem, algumas vezes tais sujeitos entram em confronto com prticas que tendem a tornar um determinado modo de ser e estar, na vida, patolgico. Diz o personagem da msica: Predesti-nado a ser errado e inda garoto deixei de ir escola. Nas linhas dessa msica vimos uma vida construda, como errante, desde o nascimento, mas relutante, em litgio constante, se negando a ocupar o lugar que lhe proposto. O movimento de luta torna visvel a tentativa de evitar um processo que, em funo da evocao do lugar da escola Cassaram meu boletim , poderia ser aproximado do que, no mbito do presente texto, designado como processo de medicalizao. Apesar da tenta-tiva de escapar das rotulaes, das nomeaes, dos diagnsticos que desenham um quadro esttico das potencialidades de cada sujeito, to-dos ns somos de alguma maneira, em diferentes momentos de nossas vidas, compostos por uma racionalidade que governa as condutas e os modos de ser. Essa racionalidade pode, ao considerarmos os desvios e as condutas, ser identificada como racionalidade mdica. A medicina um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a populao, sobre o organismo e sobre os processos biolgicos e vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores (Fou-cault, 2010b, p. 212). A medicalizao torna-se um dispositivo de gesto de controle dos corpos.

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    Medicalizao: historiando um dispositivo

    A medicalizao3 um processo de produo de lugares, um dispositivo funcionando em forma de rede disposta em um conjunto rizomtico, [...] heterogneo que engloba discursos, instituies, or-ganizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas ad-ministrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas, morais, filantrpicas... de forma que o dito e o no dito so os elementos do dispositivo. O dispositivo [...] a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Foucault, 2011, p. 244). So disposies, produzindo subjetividades, movimentando linhas de saber constitudas de discur-sos cientficos. No dispositivo da medicalizao, uma das mquinas concretas a escola: ela cria lugares de sujeito, regimes de luz e enun-ciados que colocam em funcionamento e atualizam o processo da me-dicalizao dos modos de ser e de aprender. Essa maquinaria dispe visibilidades e enunciados, colocando o indivduo no papel de anormal; isso que faz o dispositivo da medicalizao: cria lugares para cada um ocupar. Diante desse processo, os modos de ser e as condutas so diag-nosticados, classificados e inseridos em um amplo universo nosogrfi-co4.

    A terminologia Medicalizao da vida foi inicialmente utilizada por Ivan Illich5, em seu livro A Expropriao da Sade (1975) para des-crever a insero crescente dos saberes mdicos, e seu aparato denomi-nado de progresso cientfico (Illich, 1975), em campos da vida individu-al que passam a ser submetidos a explicaes e intervenes mdicas. Ivan Illich discute como uma mentalidade mdica vai se alastrando e influenciando todas as relaes sociais; esse processo ele chama de me-dicalizao da vida. Ao longo de sua obra, descreve alguns dos sintomas sociais definidos como sendo consequncias do processo de medica-lizao da vida. Illich interpreta esses sintomas como males tpicos de uma civilizao superindustrializada e, ainda, afirma que essa ampla interveno mdica na vida cotidiana acaba por causar muitos preju-zos sociedade, sendo um deles o que o autor chama de iatrognese (iatros mdico; genesis origem). Esse termo refere-se epidemia de enfermidades produzidas pela interveno mdica. Enfermidades que no teriam aparecido se no houvesse aplicao de tratamentos reco-mendados pelos mdicos. Trata-se de um processo complexo de ser identificado, mas que evoca a circularidade produtora que congrega o ato de cuidar, o uso dos instrumentos do cuidado medicao ou pa-lavra e a produo de novas fragilidades associadas ao adoecimento, como a resistncia corporal a determinados tratamentos ou a identifi-cao patolgica em determinadas prticas sociais. A partir dessa pos-tura crtica, Illich define a polaridade: medicina e antimedicina.

    Foucault (2010a) se distancia desta dicotomia e das ideias de Illich ao propor que se pense em outra direo, buscando compreender [...] em que se consistiu a decolagem sanitria e mdica das sociedades de

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    tipo europeu a partir do Sculo XVIII (Foucault, 2010a, p. 192). Fou-cault acolhe a expresso medicalizao da vida, mas procura colocar em evidncia o processo de funcionamento das instituies do saber e do poder mdicos como um conjunto de procedimentos que inventam uma sociedade da norma. Foucault amplia o uso do conceito medica-lizao, pois fala da apropriao, pela sociedade, dos saberes mdicos reconhecidos como discurso com efeitos de verdade nas mais diferen-tes esferas sociais, disciplinando e governando a vida de todos e de cada um. A essa tecnologia de poder Foucault chamou de biopoder:

    Ao que essa nova tcnica de poder no disciplinar se apli-ca diferentemente da disciplina, que se dirige ao cor-po a vida dos homens, ou ainda, se vocs preferirem, ela se dirige no ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite se vocs quiserem, ao homem--espcie. Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige multiplicidade dos homens, no na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medi-da em que ela forma, ao contrrio, uma massa global, afe-tada por processos de conjunto que so prprios da vida, que so processos como o nascimento, a morte, a produ-o, a doena, etc. (Foucault, 2010b, p. 204).

    Foucault (2010b) alerta para a ressonncia deste conceito que gera uma intensidade de discusses: [...] a ateno da opinio pblica mun-dial para o problema do funcionamento [...] das instituies do saber e do poder mdicos (Foucault, 2010b, p. 167). Refere ainda que a medi-cina social no existe, porque toda a medicina j social. A medicina individualista, clnica, do colquio singular, seria apenas um mito me-diante o qual se defendeu e justificou certa forma de prtica social da medicina: o exerccio privado da profisso.

    Foucault, em sua conferncia intitulada O Nascimento da Medicina Social, problematiza se a medicina moderna, nascida nos fins do sculo XVIII, com o aparecimento da anatomia patolgica, ou no individual. Em sua anlise, procura mostrar que [...] a medicina uma prtica so-cial que somente em um de seus aspectos individualista e valoriza as relaes mdico-doente (Foucault, 2011, p. 79). Para ele, toda medicina social, mas pode ser do tipo individual ou coletiva, e definida em razo da interveno mdica e de seu objeto. Foucault (2011) apresenta reflexes sobre o livro de Victor Bullough (The Development of Medicine as a Profession, de 1965), analisando a apresentao deste autor sobre a histria da medicina na Idade Mdia. Naquela poca, a medicina era do tipo individualista e as dimenses coletivas eram discretas e limita-das. Segundo Foucault, com o desenvolvimento do capitalismo se deu um processo de socializao da medicina; o corpo tornou-se fora de

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    produo, de trabalho, e essa concepo foi criando a necessidade de governar a sociedade por meio do controle do indivduo, investindo-se inicialmente no biolgico e corporal, para posteriormente ser possvel controlar as conscincias e ideologias. Portanto, no h um processo de coao pela medicina, mas de produo, de um poder direcionador dos modos de olhar para o mundo, governar a si mesmo e aos outros; criar condies de vida. Foucault no concorda que existam dois movi-mentos diferenciados (medicina e antimedicina, assim como afirmava Illich), negando a existncia de duas perspectivas antagnicas.

    Afirma Foucault: O que rege a sociedade no so os cdigos, mas a perptua distino entre o normal e o anormal, o perptuo empre-endimento de restituir o sistema de normalidade (2010a, p. 181). Com isso, discute o processo de medicalizao como instituio de normas que regulam a vida cotidiana, como um processo de conduzir condutas, governar a vida. Para Foucault, [...] o diablico que, cada vez que se quer recorrer a um domnio exterior medicina, descobre-se que ele j foi medicalizado (2010a, p. 184). Apesar de no fazer uso sistemti-co do termo medicalizao, Foucault (2010a) faz referncia ao processo quando analisa a constituio de uma sociedade na qual o indivduo e a populao so governados por saberes da medicina. Neste sentido, Foucault fala do desenvolvimento de um poder sobre a vida, a partir do qual os saberes mdicos passam a permear todas as esferas sociais e constituem-se como relaes de poder. Estas prticas conduzem, mo-vimentam, se espalham, funcionam como uma maquinaria social que no est situada em um lugar e se dissemina por toda a estrutura social. Os saberes mdicos foram historicamente produzindo discursos, resis-tncias, formas de saber e de poder.

    O dispositivo de medicalizao se engendra das mais variadas maneiras no contexto no qual estamos inseridos. Roberto Machado, em seu livro Danao da Norma utiliza o termo medicalizao da socie-dade (1978), afirmando ser este processo intensificado na atualidade. Para este autor, a medicalizao da sociedade

    [...] o reconhecimento de que a partir do sculo XIX a medicina em tudo intervm e comea a no mais ter fron-teiras; a compreenso de que o perigo urbano no pode ser destrudo unicamente pela promulgao de leis ou por uma ao lacunar, fragmentria, de represso aos abusos, mas exige a criao de uma nova tecnologia de poder ca-paz de controlar os indivduos e as populaes tornando--os produtivos ao mesmo tempo que inofensivos; a des-coberta de que, com o objetivo de realizar uma sociedade sadia, a medicina social esteve, desde sua constituio, ligada ao projeto de transformao do desviante sejam quais forem as especificidades que ele apresente em um ser normalizado [...] (Machado, 1978, p. 156).

    Esse movimento da medicalizao na vida social torna visvel a ao do dispositivo na vida de cada um e de todos. Um dispositivo cons-

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    titudo de linhas que transitam, se conectam, se relacionam inventando modos de viver. Os indivduos passam a se organizar e se comportar de acordo com as normas mdico-sanitrias baseados na racionalidade mdica que indicava como prevenir determinadas doenas. Esse pro-cesso de medicalizao se atualiza, desenhando diferentes contornos tambm no mbito escolar.

    Medicalizao: prticas de normalizao escolar

    O termo medicalizao tem sido usado em diferentes perspecti-vas. Por um lado identifica-se a racionalidade mdica como uma fora produtora de discursos que funcionam e definem modos de ser e estar no mundo. Outros usam o termo como sinnimo do ato de medicar, quando seria necessrio reconhecer que o ato de medicar um dos ten-tculos da medicalizao talvez o mais visvel, ou mesmo o mais pos-svel de contabilizar. E os nmeros so prdigos quanto ao aumento de adoecimentos que necessitam de medicao. Cada vez mais assistimos a um processo amplo de medicao para tratar, minimizar, aniquilar sentimentos e aes que fazem parte da vida: tristeza, euforia, pregui-a, baixa autoestima, desnimo, falta de criatividade, agitao.

    Gaudenzi e Ortega mencionam que muitos autores utilizam o termo medicalizao como [...] crtica negativa ao excesso de medi-cao denunciando o aumento da interveno mdica em campos que at ento no lhe pertenciam (2012, p. 22). Esses autores apontam uma interveno poltica da medicina no corpo social, por meio do estabe-lecimento de normas morais de conduta e prescrio e proscrio de comportamentos, o que tornaria os indivduos dependentes dos sabe-res produzidos pelos agentes educativo-teraputicos (Gaudenzi; Orte-ga, 2012, p. 22).

    No mbito do presente texto, o conceito de medicalizao tem sido um disparador para analisarmos os processos que se referem transformao de questes culturais, sociais, polticas em questes m-dicas. A medicalizao funciona como um rastro de plvora que se in-filtra e se expande rapidamente de forma quase incontrolvel em todas as esferas da vida humana. Segundo Barros (2010, p. 89):

    De forma crescente e intensa, medicamentos so utiliza-dos para propsitos que extrapolam a funo precpua para a qual, em tese, foram sendo descobertos e criados, isto , aliviar sintomas e curar doenas. Interesses mer-cantis incentivam, fortemente, a crena na plula mgi-ca, pretensa soluo para tudo.

    Estamos falando no de um consumo de psicofrmacos para bus-car a cura de uma doena real, mas de um tipo de interveno qumica no corpo para supostamente regular o que est aparentemente desregu-lado; um modo de gerir estilos de vida, governar comportamentos por

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    meio de uma ao medicamentosa6. A histria da medicina , tambm, uma possibilidade de saber como essa rea de conhecimento deixa de ser o estudo das doenas e passa a ser o campo de produo da normali-dade, de definio do que a caracteriza, da potencializao/otimizao7 do corpo e da vida. A medicina est envolvida com todo campo de rela-es do homem com a vida. A partir da insero de seus conhecimen-tos nos diferentes espaos, as prticas sociais se apropriam da raciona-lidade mdica, e produzem cada vez mais uma demanda dirigida aos servios de sade e necessidade de intervenes medicamentosas no organismo. O campo da medicina produz discursos que definem como devemos ser, quais hbitos devemos ter para nos mantermos o maior tempo possvel saudveis, afinal entende-se que sade o que importa. Nesse sentido, Moyss afirma (2008, p. 1):

    Com o consentimento da sociedade, que delega medi-cina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, esto colocadas as condies histricas para medicalizao da sociedade, a includos comportamento e aprendizagem.

    Os discursos, compostos por uma rede de saberes produzidos pe-los campos da medicina, psiquiatria, psicologia e pedagogia, produzem um solo frtil para a irrupo do processo de medicalizao dos modos de ser e de aprender. o modo como o sujeito se expressa na escola, se apresenta, fala, se veste, se comporta; o seu processo de aprendi-zagem, como constri relaes, o ritmo na resoluo das atividades utilizadas pela escola na elaborao dos discursos que apologizam o aluno. Os problemas de carter pedaggico, poltico, social e cultural so traduzidos em questes biolgicas e mdicas. Esse fenmeno, cha-mado neste artigo de medicalizao dos processos de aprendizagem, refere-se prtica de se tomar um problema que no mdico e dar-lhe uma roupagem, transform-lo em um problema biolgico centrado no indivduo. compreender a vida escolar a partir de uma lgica mdica, relacionando aquilo que no est adequado s normas escolares (que no se enquadra nas performances escolares consideradas como metas em perodos estipulados) a uma suposta causalidade orgnica. So pro-duzidos problemas com uma caracterstica de causa biolgica. Sendo esta a principal questo considerada como um indicador das supostas dificuldades escolares, as intervenes direcionam-se busca de acom-panhamento e controle da doena. Ao se considerar a composio or-gnica como uma engrenagem falha, produz-se um discurso em que as grandes questes polticas e sociais so transformadas artificialmente em um problema do indivduo.

    Segundo Machado (2004, p. 2)8,

    Passou a ser senso-comum pensarmos que as conquistas dependem dos esforos individuais de cada um. comum assistirmos a programas na televiso que relatam hist-rias nas quais se refora a ideia de que as pessoas, indivi-

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    Medicalizao dos Modos de Ser e de Aprender

    dualmente, que precisam lutar para conseguirem o que querem. O sistema capitalista se constitui nesta ideologia defende que as pessoas que fracassam no aproveitaram bem as oportunidades que lhes foram dadas. Ora, pensar assim fortalecer a iluso de que vivemos condies de possibilidade igualitrias. O preo dessa iluso a priva-tizao da responsabilidade pblica e suas consequentes doenas contemporneas no corpo do sujeito.

    Esse discurso produz crianas incapazes de aprender e, tambm, a necessidade de um tipo de interveno que deixa o pedaggico de lado e d lugar a uma interveno relacionada aos saberes mdicos. Esse modo de gerir os processos de escolarizao tem se infiltrado no pen-samento cotidiano, como se fosse a nica alternativa para a educao: patologizar aqueles que a escola no consegue alcanar. As doenas da no-aprendizagem criam uma demanda dirigida aos servios de sade, s intervenes especficas; nem sempre tais intervenes so propos-tas com o intuito de potencializar a capacidade dos alunos, mas, em muitos casos, apenas visam transformar o aluno produzido pelo dis-curso da anormalidade em um sujeito mais prximo possvel da norma. O processo de medicalizao acalma conflitos. Se o suposto problema est no aluno, ningum tem culpa da sua doena. O discurso direciona-do ao aluno comumente sintetiza: no caso para o pedaggico, mas para a sade.

    A Medicalizao no Processo Escolar

    Pensar a relao do processo de medicalizao na escolarizao abrir brechas para questionar que tipo de escola estamos construindo e para quais alunos. A escola tem se mostrado como lcus privilegiado desse processo de medicalizao da vida. Essa concepo no recente. Com o ingresso dos mdicos higienistas nas escolas processo que, no Brasil, se intensifica nos anos de 1920 esse contexto passa a ser anali-sado como uma instituio com potencialidade para construir uma so-ciedade moral e fisicamente mais sadia. Machado (1978) aborda o olhar mdico atento ao local e ao funcionamento da escola; a medicina social criticava as escolas existentes no Rio de Janeiro:

    [...] nelas, as crianas no encontravam as condies que permitiriam seu sadio desenvolvimento. Reunidas ge-ralmente em grande nmero, so jogadas por um diretor ignorante de higiene em uma mesma casa pouco asse-ada, situadas em ruas acanhadas e tortuosas, no centro da cidade, muitas vezes prxima a hospitais cujas ema-naes mrbidas infectam o ar ou a quartis onde se passam cenas testemunhadas pelas crianas. Alm disso, a educao que recebem na escola volta-se basicamente para os livros, desprezando-se a educao do corpo (Ma-chado, 1978, p. 297).

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    A criana passa a ser vista como pea fundamental para o desen-volvimento e progresso de uma nao. Para Machado (1978) emerge, dessa nova exigncia, o controle da vida da criana por meio dessa insti-tuio voltada para ela. Tal exigncia seria justificada pela importncia da criana para a sociedade, pois o progresso s poderia ocorrer com o desenvolvimento saudvel de cada indivduo. Nesse sentido,

    [...] no aplicar o saber mdico no estabelecimento de en-sino significa comprometer o futuro da sociedade e, mais imediatamente, tornar o colgio, de centro de formao de cidados sadios e teis que deve ser, em uma ameaa a seus internos (Machado, 1978, p. 298).

    Ou seja, a escola era tida como o local mais apropriado para de-fender a sade fsica e moral desde a mais tenra idade. A presena m-dica ali foi se apropriando no apenas de um espao a enfermaria, por exemplo mas ocupando toda a escola com seu poder de deciso e orga-nizao desde os estudantes, professores, organizao das salas de aula e interveno nos contedos que deveriam compor o currculo. Nada deve escapar ao poderoso olhar que tudo conhece, que por todo lugar penetra. Olhar tanto mais poderoso por ser sbio (Machado, 1978, p. 302). Em relao intensa e mltipla atuao dos mdicos na escola, Stephanou (1999) afirma que pelo menos at os anos de 1930 no se en-contravam demandas explcitas conclamando os mdicos a assumirem um papel de responsabilidade nas questes educativas. No entanto, com a medicina tomando para si a tarefa de conduzir a humanidade a um estado hgido e civilizado, a educao do povo era uma prtica imprescindvel para se alcanar tal objetivo. A atuao do mdico na es-cola voltou-se, segundo a autora, tanto para a coletividade escolar como para cada indivduo em particular, fossem eles alunos, funcionrios ou professores. Nesse sentido Stephanou (1999, p. 63) afirma:

    A educao aparecer como aquela tarefa mais afinada com a misso da medicina preventiva. Mas medicina social, profiltica por excelncia, incumbiam tambm as aes corretivas e ortopdicas. Nesse sentido, para os mdicos, a educao no se resumia a uma instruo elementar. Defendiam uma educao fsica, intelectual, sexual, mental, enfim, moral, dos indivduos, para o que empreenderam iniciativas concretas, seja da educao escolar, seja da educao popular e propaganda sanitria. Embora reconhecendo que o espao concreto da cidade apresentava-se como espao pedaggico por excelncia, indicavam que a higienizao dos espaos era indissoci-vel de uma higienizao individual.

    O processo de medicalizao na escola desenvolveu-se com a ur-banizao e a consequente insero dos higienistas nas instituies es-colares com o intuito de propagar a educao sanitria por meio de uma atuao formativa e contnua. Os mdicos instituram-se como educa-

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    dores sociais, j que reconheciam a necessidade de uma ao educativa dirigida a toda populao. Esses mdicos consideravam a sade e a edu-cao como as primeiras necessidades do povo. Nesse sentido, a escola torna-se o espao pedaggico por excelncia, tendo como meta incul-car, desde cedo, as ideias que constituam o ideal higienista de produzir cidados civilizados, conscientes da importncia do cuidado de si, con-tribuindo para o progresso da nao. Almejar o progresso significava incorporar mtodos considerados cientficos tanto no campo da edu-cao como naquele da sade, e isso deveria ser feito por meio de prti-cas pedaggicas. A escola, portanto, torna-se o lugar onde os discursos pautados na racionalidade mdico-higienista ecoam, se multiplicam, se atualizam e possibilitam uma ao extensiva sobre a populao, in-cidindo sobre seus costumes. Stephanou (1999), ao analisar os discur-sos mdicos nas primeiras dcadas do sculo XX e suas implicaes no mbito escolar, apresenta como foi se produzindo a emergncia de uma parceria entre educao e sade.

    O Dr. Vianna ilustra com vigor a vertente da Medicina que creditava Educao o sucesso das providncias higini-cas: preparar o povo, subtra-lo da ignorncia, sensibili-zar as conscincias, produzir novos costumes para abolir as intimidaes e as medidas coercitivas, de resultados duvidosos e efmeros. Atravs da educao os indivduos tornar-se-iam agentes de sua prpria sade, irradiando-a no lar, no trabalho, na coletividade (Stephanou, 1999, p. 306).

    A autora mostra como as aes mdicas foram se tornando ml-tiplas, intensas e potentes no sentido de formular propostas de sane-amento, analisar o tipo brasileiro, propor estratgias de educao e propagandas sanitrias atravs de cursos, conferncias, conselhos m-dicos, divulgao por meio da imprensa, anlise dos currculos escola-res e propostas de insero de contedos mdicos e, ainda, a produo de uma circulao intensa de manuais de sade e higiene. A formao do cidado nas primeiras dcadas do sculo XX evidencia a preocupa-o dos cuidados pessoais nos domnios da urbanidade, da higiene e da sade por meio de prticas que deveriam conduzir ao governo de si mesmos em relao s condutas, ajustando-as aos novos modos de sociabilidade urbana. Eis um processo de medicalizao tornando-se potente por meio do ambiente escolar.

    A medicalizao, como ocorre com os fenmenos humanos em geral, no tem limite, pontos de partida ou de chegada, atravessa todos os campos da vida, compe a vida, e na escola que esse dispositivo se potencializa, ganhando intensa visibilidade por meio da classificao de condutas.

    A Educao, assim como todas as reas sociais, vem sendo medicalizada em grande velocidade, destacando-se o fra-

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    casso escolar e seu reverso, a aprendizagem, como objetos essenciais desse processo (Collares; Moyss, 1994 p. 26)9.

    A medicalizao no contexto da escola uma prtica que expli-ca os fenmenos chamados de fracasso escolar, a partir da racionali-dade mdica. Trata-se de transformar crianas em crianas anormais. Prolifera-se, desse modo, um discurso com status de verdade ao se considerar que esses alunos que supostamente no aprendem tm um problema com explicao de ordem mdica. O que est em jogo um violento processo de medicalizao de crianas cujo desempenho na escola no corresponde exatamente ao padro esperado (Garrido; Moyss, 2011, p. 150).

    Trata-se de uma prtica de conduo, de gesto de um modo de vida, da maneira atravs da qual cada aluno se expressa e constri a re-lao com o aprendizado. Um exemplo importante que nos induz a pro-blematizar a questo da patologizao dos modos de ser e de aprender a grande dificuldade proclamada na rea da leitura e da escrita que tem instaurado um processo explicativo que no mais questiona a escola, o mtodo ou as condies de aprendizagem e de escolarizao. Buscam--se na criana, em reas de seu crebro, em suas condutas e modos de expresso as causas das dificuldades de leitura, da escrita e consequen-temente a justificativa para a suposta incapacidade de acompanha-mento dos contedos escolares. A criana com dificuldades na leitura e escrita rotulada, procuram-se as causas, apresenta-se o diagnstico e em seguida prescrevem-se basicamente dois tipos de interveno: a medicao ou o acompanhamento teraputico. Essa dificuldade, que diz respeito ao processo de escolarizao de muitos alunos, tem sido comumente nomeada como dislexia e passa a ser constituda como dis-trbio. Considerada essa limitao como distrbio, pouco ou nada a es-cola acredita poder intervir por meio das prticas pedaggicas.

    Outra situao tomada como ponto de problematizao da medi-calizao dos modos de ser e de aprender a justificativa da no apren-dizagem em funo de uma desnutrio. Collares e Moyss (1994)10 ci-tam criticamente o fato de a relao entre desnutrio e fracasso escolar ter sido objeto de muitos trabalhos cientficos. Apesar da intensidade das crticas a essa associao simplificadora, h continuidade de dis-cursos que consideram a desnutrio como causa da no-aprendiza-gem. So duas vertentes que as referidas autoras sinalizam como sendo base do processo daquilo que chamam de patologizao do fracasso es-colar: uma delas tomar o fracasso escolar como consequncia da des-nutrio; a outra, como o suposto fracasso escolar ser explicado como resultado da existncia de disfunes neurolgicas. As autoras afirmam ainda que, apesar da intensidade da crtica em relao a esse tipo de as-sociao (entre desnutrio e no aprendizagem), ela ainda est presen-te nos discursos escolares sobretudo no que tange populao menos favorecida, para justificar a suposta no-aprendizagem de terminados alunos. Afirmam,

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    Os mitos, as crenas resistem inabalavelmente ao con-fronto com a realidade. No mximo, transmutam-se em aparentes novos mitos, novas crenas, para permanece-rem exatamente iguais (Collares; Moyss, 1994, p. 28).

    Transforma-se, desse modo, algo que diz respeito relao peda-ggica em supostos distrbios, como temos visto atualmente com diag-nsticos de dislexia, dficit de ateno e hiperatividade, entre outros. Crianas que em uma dada poca eram tidas como levadas, sapecas, introvertidas, agitadas, teimosas, indisciplinadas agora so diagnosti-cadas com os mais diversos transtornos, dficits, desvios11.

    Atualmente, essa distoro, esse grande hall de rotulaes, dire-ciona-se a todas as crianas, independente de sua classe econmica. Filhos de pais alcolatras, drogados, crianas oriundas de famlias de-sestruturadas, com pais ausentes: essas crianas tm seu histrico de vida analisado como causadores de seu suposto fracasso escolar. Uma condio de vida considerada desregrada torna-se justificativa de pro-vvel fracasso e, desse modo, a escola exime-se de uma anlise mais abrangente e contextualizada daquilo que foi categorizado como pro-blema de aprendizagem.

    O problema do fracasso escolar12 (Abreu, 2006; Collares; Moyss, 1992; Patto, 1999) individualizado, negando-se as relaes escolares estabelecidas ao longo do processo de escolarizao. A criana ou o jo-vem que no respondem adequadamente aos aprendizados que a escola exige, e no se enquadra em relao aos comportamentos determinados como adequados, d evidncias medicalizao na instituio. Ques-tes interpretadas como problemas capazes de produzir o fracasso es-colar so tratadas como dficits ou problemas biolgicos, ignorando-se as diferentes influncias dos modos de ser e de aprender.

    Segundo Baptista (2006, p. 40), a

    [...] educabilidade de todos os sujeitos, o potencial de mo-dificabilidade que existe em todas as pessoas, a compre-enso de que nos constitumos em situaes que devem ser contextualizadas historicamente, e, portanto, o verbo estar parece sempre mais potente para descrever nosso interlocutor (e a ns mesmos) do que o ser. Somos transi-toriedade, modificamo-nos continuamente.

    A medicalizao dos modos de ser e de aprender se constitui como negao do verbo estar, afetando a todos os escolares em um processo que se infiltra sorrateiramente por todas as frestas da escola. H in-meras formas de resistncia medicalizao, umas mais perceptveis do que outras: corpos em movimento constante, outros no silncio pa-ralisante. Alunos que dormem em aula, no participam das atividades, incorporam ou corporalizam13 os discursos que produzem seus modos de ser como patolgicos. Neste artigo, so apresentados fragmentos ilustrativos da relao de uma professora com seu aluno Valentin14. Os dilogos tomados como exemplos compem cenas que tornam visvel a

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    presena dos discursos medicalizantes no contexto escolar. Neste caso, o aluno Valentin parece ter assumido os valores, categorias e modelos mdico-explicativos. No entanto, Valentin foi um aluno que lutou para no incorporar um diagnstico. Quase mudou sua maneira de ver a vida e a si prprio. Os rumos de sua trajetria, em funo do olhar normati-vo, poderiam ter definido outro percurso escolar. Caponi (2010, p. 140) enfatiza:

    As classificaes humanas geram efeitos nos sujeitos: cada classificao, cada diagnstico, cada tipificao de pessoas, implica uma mudana no modo como agimos, como expressamos nossas emoes e sentimentos, no modo, enfim, de nos construirmos como sujeitos.

    Valentin era expansivo, suas intensidades, seus movimentos quase incontrolveis foram considerados patolgicos pela escola e seu modo de ser foi classificado pelo saber mdico, nomeado, rotulado como R46.315. O que dizem essa letra e esses nmeros sobre Valentin? Um diagnstico construdo em um curto espao de tempo entre m-dico e criana. Valentin comentou: o mdico mal me olhou... Nem me botou a mo. Valentin precisava ser controlado, disciplinado, docili-zado. Ele [...] entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompe (Foucault, 2009, p. 133).

    A seguir, Valentin constri com sua professora um dilogo, tor-nando visvel o dispositivo da medicalizao em seu pleno funciona-mento.

    Medicalizao dos Modos de Ser e Aprender em Funcionamento

    Em 2010, quando ocorreram as cenas aqui apresentas, o menino Valentin estava com nove anos. Gostava de expressar suas ideias, fazer comentrios em sala de aula em relao ao que estudava. Vestia-se de maneira peculiar. Na poca estava sendo exibida a telenovela brasilei-ra intitulada Ti ti ti. Havia um personagem infiltrado no mundo da moda e, para isso, inventou o nome de Victor Valentin, disfarando-se de estilista espanhol. Victor Valentin usava uma boina de lado, roupas tipicamente espanholas. Valentin, aluno, tambm usava boina e cami-sas para dentro da cala jeans. Por vezes ia para a escola de sapato, e no tnis, como mais frequente para crianas de sua idade. Destacava-se dos demais colegas por ter um estilo original. Por isso o nome fictcio da criana foi escolhido para esse texto. Sempre pareceu ser um menino destemido. Chegou escola sendo considerado um menino com difi-culdade na aprendizagem.

    Os trabalhos de escrita feitos em outra escola foram solicitados pela professora para que fosse possvel acompanhar a produo escrita do aluno. No entanto, no foi possvel tom-los como instrumento de

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    apoio didtico para analisar a produo textual. Estavam todos marca-dos com expresses como: letra horrvel, texto incompreensvel, melho-rar a letra. No havia comentrios sobre o contedo da escrita e sobre as ideias desenvolvidas por Valentin.

    Professora: Valentin, se tiveres, gostaria que me trouxesses os textos fei-tos por ti na outra escola. Gostaria de dar uma lida.Valentin: Mas, professora, no vais entender nada, minha letra horrvel. No sei escrever.Professora: Primeiro traga e depois olhamos juntos.Valentin: Estou avisando que no vais conseguir entender nada.

    Valentin j anunciava uma viso sobre si mesmo: no sabia es-crever. No entanto, quando levou os textos, leu para a professora. Os textos tinham uma histria coesa e, na maioria das vezes, com certo tom de humor. Os rabiscos feitos pela professora nos textos no se re-feriam ao contedo, mas valorizavam apenas a forma da letra. A partir desse discurso, o menino foi se vendo como algum sem capacidade para escrever. Essa questo ultrapassa o desenho da letra, pois trata-se da produo de um sujeito que se insere em um lugar de falha, fracasso. A professora se perguntava: Como retomar o sentido da escrita? Como mostrar o valor do que est escrito?, Valentin sabia escrever e escrevia bem.

    Valentin se autoafirmava, produzia seu lugar como original, no participava de uma hierarquia da norma onde deveria seguir um mode-lo, no era cpia dos padres de aluno ideal produzidos historicamente. Produzia novos modos de olhar, de pensar, invocava a inveno de pr-ticas pedaggicas, pois ele tornava visvel a possibilidade de ser, cons-tantemente, mltiplos outros.

    O menino ganhou esse apelido dos colegas, e, como muito se dis-cutia na turma a questo de apelido s poderia ser colocado em um colega quando fosse carinhoso e permitido , Valentin, ao ouvir ser cha-mado dessa maneira reclamou:

    Valentin: Professora, no gosto desse apelido.Professora: U, por qu? No um apelido ofensivo. Sabes por que te cha-mam assim?Valentin: Sei, porque na novela tem o Victor Valentin, que se veste como eu. Mas no sou Victor Valentin, sou [...].

    Nesse momento ele fala seu nome, reafirma no ser outro, no pode ser comparado, tem personalidade, no cpia, nico. Assim o aluno foi construindo sua trajetria escolar, se afirmando, expondo suas opinies, seus desejos, suas angstias e denunciando tudo que a ele desagradava. Esses breves excertos mostram como Valentin se in-sere no mundo; um menino que apresenta positividade, se afirma, intenso. Apresenta-se ao mundo na primeira pessoa e isso incomoda a escola, pois essa instituio, em geral, no sabe lidar com o posiciona-mento e com as resistncias dos alunos.

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    Valentin foi enviado ao servio de sade para ser diagnostica-do. Uma professora substituta eventual da professora titular sugeriu o encaminhamento do aluno. Essa professora substituta fazia queixas orientao escolar sobre o modo agressivo do aluno, por falar o que pensava, por no saber se controlar e causar tumulto em aula. Em um determinado dia, Valentin gritou com a professora, estava agitado e bra-vo. Alguns colegas estavam brigando, e a professora continuou a aula sem fazer nenhum tipo de interveno em relao briga. Valentin no se conteve e perguntou se ela no enxergava o que estava acontecen-do (sobre isso, disse que a professora fingia no ver o que acontecia em sala), e resolveu sair porta afora para chamar a direo e resolver o pro-blema. Essa atitude de Valentin poderia ter sido vista de diferentes ma-neiras, mas a professora considerou-a como desrespeito, abuso, falta de controle e, assim, conversou com o responsvel pelo aluno e comentou sobre sua suposta hiperatividade.

    Valentin mostra, nas diferentes cenas protagonizadas, o dispo-sitivo da medicalizao a pleno vapor. Os discursos sobre ele indicam que h algo de errado em seu modo de ser, de se vestir, de falar, de se expressar; um modo de ser causador de tumultos e que desorganiza a escola. Punindo Valentin com um diagnstico, mostra-se aos demais colegas que esse modo de ser criana, aluno, no adequado ou nor-mal. Essas sries de elementos que falam de Valentin mostram como a criana envolvida pela medicalizao, mas tambm anunciam os pontos de resistncia que ficam evidentes quando o menino afirma seu nome, diz ser o personagem da novela a imit-lo; manifesta-se quando sai de sala de aula, por achar que a professora no agiu como deveria. Essas aes de Valentin tornam visvel um modo de resistir ao processo de medicalizao.

    Valentin: Professora, fiquei sabendo ontem que preciso de um remedi-nho. Sabia que sou hiperativo?Professora: Como assim, Valentin? Quem te disse isso?Valentin: Fui na mdica e ela disse que sou hiperativo, que no paro e que preciso tomar um remdio para aprender. A mdica disse que sou hipera-tivo e que isso um tipo de doena que tem cura. Que s tomar remdio.Professora: Tu sabes o que significa isso, Valentin?Valentin: Sei, professora. que eu no paro quieto, sou atrapalhado, s vezes falo alto e tambm sou meio agressivo. Preciso ficar mais calmo. Eu sou assim mesmo, tu no achas, professora? Eu tenho essa doena? Preciso de remdio?Professora: Valentin, claro que no ests doente. O que eu acho que muita sade para um corpinho to pequeno. Tens muitas informaes, s muito inteligente e te empolgas em mostrar tudo que sabes.

    Valentin olhou sorrindo para sua professora e continuou a ser empolgado, inteligente, culto, interessado em aprender e ensinar e, sobretudo, a desafiar atributos esses considerados pela escola como sintomas de um possvel transtorno. As formas de comportamento de Valentin tornaram-se sintomas de uma suposta patologia.

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    Esse menino era considerado por alguns uma criana agitada. Ria muito, falava depressa, empolgava-se ao dividir saberes, mostrava um modo de ver o mundo extremamente criativo. Tinha pressa em mostrar a todos tudo que sabia e achava interessante. Por vezes, o contedo e as atividades trabalhados em aula lhe pareciam to motivadores que pedia para ficar de p para falar, escrever, fazer os exerccios, comen-tar, responder. Fazia piadas inteligentes, era perspicaz. Uma histria de vida escolar tornada problema, mas transformada por Valentin em aprendizado, em possibilidade de se (re)construir constantemente.

    Valentin resistiu ao processo de medicalizao de seus modos de ser e aprender, mas, tambm, participou do processo de incorporao do saber mdico, e isso se torna visvel quando se refere a si mesmo como hiperativo, mostrando ter conscincia do significado do termo. Com esse dilogo possvel vermos a medicalizao em ato; um dispositivo que nos produz e se renova constantemente; convoca-nos a problemati-zar a diferena entre uma doena a ser tratada e uma singularidade a ser reconhecida. Expropriadas de sua normalidade, muitas vezes as crian-as incorporam a ideia da doena, de que so fracas, tm falhas e so incapazes. Na luta pela sobrevivncia na escola, incorporam o rtulo e carregam o peso do estigma. A escola ainda se configura baseada em uma metodologia que, em grande parte, continua pautada em um nico modo de ensinar a mesma coisa a todos. Quem no consegue acompa-nhar esse processo educativo fica margem dos conhecimentos pro-duzidos na instituio. Qual escola para a criana contempornea? A medicalizao dos modos de ser e aprender evidencia a atualidade do funcionamento institucional da escola, nos mostra os acontecimentos nesse tempo de uma ampliao do processo de escolarizao. A medi-calizao da aprendizagem um problema poltico e social. um pro-cesso de enfraquecimento do sujeito. Esse mal tem remdio?

    Retornando aos Desafios: finalizando reflexes

    Este artigo teve por objetivo analisar o processo de medicalizao dos modos de ser e aprender no espao escolar. Esse dispositivo a me-dicalizao tem se intensificado na escola, trazendo tona explicaes centradas nos discursos embasados na racionalidade mdica para jus-tificar processos de escolarizao considerados de no-aprendizagem. Para isso, foi analisado o conceito de medicalizao como dispositivo e como ele se faz visvel nas prticas escolares atravs dos discursos, sobre os alunos, que tm evidenciado uma tendncia em transformar questes culturais, poltico-sociais e pedaggicas em patologias. Algu-mas perguntas tornaram-se potentes para que pudssemos tornar vis-veis as prticas escolares, produzindo conexes com discursos mdicos patologizantes: Quais prticas pedaggicas a medicalizao tem pro-duzido? Que lugares de sujeito tm construdo? Como esse dispositivo tem influenciado na concepo de ensinar e aprender? A partir desses

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    questionamentos, percebemos o modo como a medicalizao afeta a todos, mas a uns e outros de diferentes maneiras. As cenas vividas por Valentin permitiram analisar discursos que possibilitaram perceber o processo de produo de uma subjetividade patolgica na escola. As rupturas produzidas a partir do discurso da professora se constituem como possibilidade de brechas para que um discurso potencialmente pedaggico seja construdo. A palavra do professor uma pea impor-tante no jogo de saberes e poderes que produzem modos de ser aluno. Para a maioria dos alunos, sobretudo os que esto nos primeiros anos escolares, o que o professor diz lei. Dizer a uma criana que est ini-ciando seu percurso escolar que ela tem problemas, distrbios, que no ir conseguir avanar e que precisa de remdio ou de acompanhamen-to mdico para aprender, tende a expropri-la de suas potencialidades, como se, naquele corpo16, nada tivesse para ser construdo, modificado, compartilhado.

    A anlise dos discursos produzidos sobre Valentin foi o movimen-to disparador para visibilizar os enunciados que do sentido a uma de-terminada forma de existir no contexto escolar e se perpetuam, se en-razam, tornando-se verdades incontestveis no interior desta cultura. Com o exemplo apresentado pela histria desse menino, podemos per-ceber a medicalizao em ao, em movimento, compondo uma vida escolar. Olhares, gestos, intensidades, palavras, estilos de vida tornam--se elementos de um olhar clnico, de um olhar que foi sendo construdo no ambiente escolar, composto por discursos mdicos que buscam, no sujeito, uma falha, uma deficincia, algo que possa justificar cientifi-camente o porqu de determinados alunos no aprenderem como os outros, justificar o fracasso escolar de vidas que no conseguem se en-quadrar nas expectativas da escola.

    As estratgias de construo de lugares so inmeras, e podem se dar por meio de aes intituladas pedaggicas, definindo espaos que visam disciplinar o corpo. Junto a essas aes, em outros tantos mo-mentos, a medicao fica em evidncia, aliando-se a essas estratgias. Essa ao, de cunho pedaggico, pode ser percebida em discursos de pais, professores, alunos que consideram a necessidade de certas me-dicaes que tem por objetivo fazer os ajustes necessrios para que o aluno aprenda. Um exemplo que d visibilidade potncia desse dis-curso a fala da me de um menino enviado para avaliao psiquitri-ca: Vou dar Ritalina para escola, disse a me. Ao ser indagada sobre o que queria dizer com a afirmao Ritalina para a escola, a me explica que o mdico lhe havia dito que o remdio deveria ser dado um pouco antes de que o aluno fosse levado escola, para que ficasse mais calmo e no incomodasse tanto; segundo a me, em casa ele no precisava de medicao, j que sabiam contornar os problemas. Nada de novo, quan-do pensamos a histria do disciplinamento. A novidade est nas formas como isso tem se produzido (no processo de biologizao, por exem-plo), identificadas muitas vezes como cientficas e, portanto, seguras.

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    Por que motivo indicar a medicao para que algum possa frequen-tar um determinado espao? Por que em casa os conflitos so vividos e amenizados, e na escola busca-se o silenciamento, a no-experincia, no-convivncia? Patologizar, denominar como distrbio um modo de expresso, um modo de aprender, uma das tantas estratgias de subje-tivao que a medicalizao implica. Meira (2012, p. 140) afirma:

    A medicalizao constitui-se em um desdobramento inevitvel do processo de patologizao dos problemas educacionais que tem servido como justificativa para a manuteno da excluso de grandes contingentes de crianas pobres que, embora permaneam nas escolas por longos perodos de tempo, nunca chegam a se apro-priar de fato dos contedos escolares.

    Sabe-se que muitos alunos, embora tenham seu direito de acesso escola garantido, no tm seus modos de ser e aprender respeitados e valorizados da mesma forma. So criadas diferentes maneiras de se dizer aos alunos que no fazem parte do grupo que se instituiu como aluno normal, aluno padro, que h algo de errado com eles. A esses negada, de certa forma, uma experincia ampla de escolarizao, de convivncia e de apropriao do que estabelecido como contedo es-colar, excluindo-os do processo de transformao humana pelas expe-rincias com o outro.

    Discutir sobre o processo de medicalizao dos modos de ser e aprender colocar em suspenso as verdades produzidas pela escola so-bre o processo amplo de ensinar e aprender. questionar as prticas pedaggicas, as configuraes da escola, os espaos oferecidos. duvi-dar dos discursos que percorrem os corredores escolares, se alastram e invadem todos os espaos, produzindo modos de ser aluno, construin-do rtulos que definem o lugar que cada um e de todos. Afinal, para os problemas escolares haveria remdio17.

    Recebido em 25 de agosto de 2013Aprovado em 03 de fevereiro de 2014

    Notas

    1 O ttulo da msica At o fim, de Chico Buarque.

    2 Mdico higienista que, nomeado por Ansio Teixeira, assumiu, em 1933, o servio de ortofrenia e higiene mental do Distrito Federal.

    3 H estudos, como Abreu (2006) e Gaudenzi e Ortega (2012), que evocam possveis usos do termo medicalizao, em momentos precedentes a dcada de 1970, associando a extenso do mbito da ao mdica s diferentes esferas da vida.

    4 Nosografia a prtica de classificao metdica das doenas (Dicionrio Mor da Lngua Portuguesa. Editora Pedaggica Brasileira, v. 3, 1967, org. Jos Francisco Moreira).

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    5 Jos Augusto Cabral de Barros (2010, p. 91) afirma que essa terminologia proveniente do texto de Ivan Illich (1975) para definir o processo de invaso crescente da medicina (Barros, 2010) em reas da vida individual que passam a ser objetos da ateno mdica, mesmo que no tenham [...] sinais ou sintomas de carter mrbido ou patolgico (Barros, 2010).

    6 Os artigos que tm tratado o processo de medicao, como os de Valderrama (2010), Barros (2010), Hernez (2010) e Hellmann e Vaz (2010), utilizam o termo medicalizao referindo-se banalizao do uso de medicamentos, muitas vezes sem estar associado doena. Diferentes situaes que assumem cres-cente ateno pelo fato de virem sendo instrumentalizadas com o propsito de vender doenas, terminam em transformar a todos em pacientes, isto , potenciais consumidores de frmacos (Barros, 2010, p. 91).

    7 Segundo Nikolas Rose (2007, p. 38) o conceito de otimizao prope uma normalidade potencializada imaginando com isso um aumento de sucesso. Segundo este autor a otimizao se utiliza de ferramentas tecnologias para melhoria cognitiva e emocional. Este processo [...] no se limita a prometer a capacidade de lidar com a essa situao, ou mesmo a sua cura, mas a correo e melhoria do tipo de pessoa que somos ou quem queremos ser. No original: [...] (le tecnologie di miglioramento cognitivo ed emotivo) non promettono semplicemente la capacit di far fronte alla situazione, o anche la guarigione, ma la correzione e il potenziamento del tipo di persone che siamo o che vor-remo essere.

    8 Encaminhar para a sade quem vai mal na educao: um ciclo vicioso? Texto publicado pela Revista Educao SME, 2004.

    9 A Transformao do Espao Pedaggico em Espao Clnico. A Patologizao da Educao. Ideias (UNICAMP), v. 23, p. 25-31, 1994.

    10 A transformao do Espao Pedaggico em Espao Clnico.

    11 Apesar da importncia da temtica relativa os processos diagnsticos, consid-eramos que o investimento na ampliao desse debate transcende os objetivos do presente texto. Procuramos manter nossa ateno dirigida aos processos de nomeao mais difusos, cotidianos, caractersticos das relaes constitutivas dos sujeitos, mesmo que sejam nomeaes desprovidas de uma legitimidade tpica dos sistemas classificatrios.

    12 Artigo (O mdico higienista na escola: as origens da medicalizao do fracasso escolar) baseado em parte da dissertao de mestrado da Profa. Ma. Patrcia Carla Silva do Vale Zucoloto, realizada sob orientao da Profa. Dra. Maria Helena Souza Patto, apresentada ao Programa de Ps-graduao em Psico-logia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.

    13 O termo corporalizar aqui significa no apenas incorporar, reunir intimam-ente, juntar-se ao corpo, mas transformar o prprio corpo como se este fosse patolgico. Mostrar, por meio dos movimentos corporais, a patologia.

    14 Nome fictcio. As cenas apresentadas so fragmentos de dilogos que compem o que denominamos de medicalizao dos modos de ser e aprender. As cenas protagonizadas por Valentin so produzidas no contexto da prtica pedaggica de uma das autoras do texto.

    15 CID 10. R46 - Sintomas e sinais relativos aparncia e ao comportamento. R46.3 - Hiperatividade. Informaes baseadas no Classificao Internacional

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    de Doenas e Problemas Relacionados Sade, tambm conhecida como Classificao Internacional de Doenas CID 10. Disponvel em: .

    16 A palavra corpo utilizada entendendo-o como um fenmeno histrico que constitui uma relao complexa entre o interior e o exterior, capaz de ser af-etado de inmeras maneiras.

    17 A pesquisa a qual este artigo est vinculado foi financiada pela CAPES.

    Referncias

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    Medicalizao dos Modos de Ser e de Aprender

    Ana Carolina Christofari doutora em Educao pelo PPGEDU/UFRGS na rea de Educao Especial e Incluso Escolar. Integrante do Ncleo de Es-tudos em Polticas de Incluso Escolar NEPIE/FACED/UFRGS. Atua como professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre desde 2009. A te-mtica da medicalizao dos modos de ser e de aprender discutida na tese da autora. E-mail: [email protected]

    Claudia Rodrigues de Freitas doutora em Educao pelo PPGEDU/UFRGS. Professora da Faculdade de Educao e do Programa de Ps-Graduao da UFRGS. Integrante do Ncleo de Estudos em Polticas de Incluso Escolar NEPIE/FACED/UFRGS. Pesquisa os processos de Medicalizao da vida es-colar.E-mail: [email protected]

    Claudio Roberto Baptista doutor em Educao pela Universidade de Bologna. Professor da Faculdade de Educao e do Programa de Ps-Gra-duao da UFRGS. Coordena o NEPIE- Ncleo de Estudos em Polticas de Incluso Escolar da UFRGS. Pesquisa os processos de incluso escolar e a educao especial.E-mail: [email protected]