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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO KELEN ANTUNES LYRIO AS REDES DE SABERES, FAZERES E PODERES DOS SUJEITOS PRATICANTES DA EDUCAÇÃO INFANTIL COMO POSSIBILIDADES DE PROBLEMATIZAÇÃO DO CURRÍCULO POR PROJETOS VITÓRIA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO

KELEN ANTUNES LYRIO

AS REDES DE SABERES, FAZERES E PODERES DOS SUJEITOS

PRATICANTES DA EDUCAÇÃO INFANTIL COMO POSSIBILIDADES DE PROBLEMATIZAÇÃO DO CURRÍCULO POR PROJETOS

VITÓRIA 2008

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KELEN ANTUNES LYRIO

AS REDES DE SABERES, FAZERES E PODERES DOS SUJEITOS PRATICANTES DA EDUCAÇÃO INFANTIL COMO POSSIBILIDADES

DE PROBLEMATIZAÇÃO DO CURRÍCULO POR PROJETOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço.

VITÓRIA 2008

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Lyrio, Kelen Antunes, 1977- L992r As redes de saberes, fazeres e poderes dos sujeitos praticantes da

educação infantil como possibilidades de problematização do currículo por projetos / Kelen Antunes Lyrio. – 2008.

178 f. : il. Orientador: Carlos Eduardo Ferraço. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

Centro Pedagógico. 1. Projetos. 2. Currículos. 3. Educação de crianças. I. Ferraço, Carlos

Eduardo. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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Com Carlos Olympo, amor da minha vida,

aos meus pais Everton e

Maria Gertrudes (Tudinha),

amor incondicional, e

ao meu irmão J. Allan amigo,

companheiro de todas as horas.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer... Como tenho que agradecer.

Agradeço em primeiro lugar a Deus, pois é o Criador de todas as coisas e fonte de

todo conhecimento.

Ao professor Carlos Eduardo Ferraço pelo apoio, incentivo, paciência e pelos

ensinamentos acadêmicos durante a orientação deste trabalho.

Às professoras Janete Magalhães Carvalho e Regina Helena Simões pelos

importantes questionamentos e significativas contribuições desde o momento da

qualificação da dissertação.

A professora Carmen Lúcia Vidal Pérez pela disponibilidade em ler esse trabalho

com dedicação e pelas contribuições importantes e muito significativas no momento

da defesa dessa dissertação.

Com muito carinho, agradeço às amigas inseparáveis Kátia Feijó e Nicéa Souza que

compartilharam comigo esta caminhada acadêmica e, principalmente, pela

solidariedade nos momentos de dúvidas e angústias durante a escrita do trabalho.

À Margarete Maria Fiorin, à Euzimar Soeiro, à Rosa Hilda Loiola, à Vanusa Piumbini,

a todas as professoras e alunos do CMEI “Sonho meu” que me acolheram com

muito carinho, pelos saberesfazeres compartilhados neste momento da pesquisa.

Cada um a seu modo muito contribuiu com generosidade e atenção neste trabalho.

Aos amigos que fiz durante essa caminhada pela UFES e alguns não posso deixar

de citar: Rosiane, Andréia, Flavinha, Ângela, Kézia, Gustavo, Patrícia, Peu,

Iguatemi, Alex e tantos outros que de alguma forma estão impressos neste trabalho.

A todos os meus amigos e amigas para além da esfera acadêmica que foram

decisivos na manutenção da minha integridade física e emocional no momento de

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escrita, que como linhas de fuga me fizeram muitas vezes parar, para depois

continuar a escrita com mais entusiasmo.

De maneira muito especial, ao apoio da minha maravilhosa família com quem dividi

alegrias, angústias e aflições: meus pais que abriram mão de seus sonhos para

satisfazer os meus, que com muito amor e carinho me ensinaram que a coisa mais

importante quando nada mais existir é o conhecimento; ao meu marido maravilhoso,

pelo amor, paciência e ajuda fundamental para conclusão deste trabalho; ao meu

irmão querido que sempre me incentivou e me ouviu com paciência; às minhas

primas que tanto amo e que são minhas irmãs Cacá, Flor, Anamada, que torceram

muito pela minha vitória; à minha vovozinha pelas histórias de antigamente que me

distraíram em muitos momentos; aos meus tios e tias, que são muitos; à minha

sogra que me acolheu em sua casa e sempre me socorreu nos momentos que

precisei. Obrigada pelo amor, atenção, compreensão, valorização, sabedoria,

paciência, incentivo e pelas condições privilegiadas para que eu concluísse esta

dissertação. Amo todos vocês.

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Sou um guardador de rebanhos O rebanho é os meus pensamentos. E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos. E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la. E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso, quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto. E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade. Sei a verdade e sou feliz. (Caeiro, in Pessoa, 1981, p. 146/147)

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS LISTA DE QUADROS LISTA DE SIGLAS RESUMO ABSTRACT 1. APRESENTAÇÃO......................................................................................................... 15

1.1 ALGUNS CAMINHOS PERCORRIDOS ........................................................................... 15

2. CONTEXTUALIZANDO O ESPAÇOTEMPO DA PESQUISA ...................................... 26

2.1 O LOCAL DA PESQUISA ............................................................................................. 26

3. PISTAS DOS REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS .................................. 38

3.1 PESQUISA NO/DO/COM O COTIDIANO......................................................................... 44

3.2 CURRÍCULO COMO REDE DE SABERESFAZERES E PODERES....................................... 54

4. UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO DO COTIDIANO ESCOLAR: MAPEANDO ALGUNS PROJETOS E AS IMPRESSÕES DOS EDUCADORES ..................................... 62

4.1 COMO A SEME DEFINE ESSE CURRÍCULO POR PROJETOS? ....................................... 62

4.2 PROJETOS REALIZADOS NA ESCOLA.......................................................................... 66

4.2.1 Projeto institucional ............................................................................................ 67

4.2.2 Projeto Literário.................................................................................................. 76

4.2.3 Projeto de horário integral.................................................................................. 81

4.2.4 Proposta de formação continuada ..................................................................... 86

4.2.5 Projeto de Educação Especial ........................................................................... 92

4.2.6 Professor dinamizador de Arte e Educação Física ............................................ 98

5. UMA SEGUNDA APROXIMAÇÃO DO COTIDIANO ESCOLAR: FRAGMENTOS DAS PRÁTICAS E SABERES DOS SUJEITOS PRATICANTES DO COTIDIANO EM RELAÇÃO A ALGUNS DOS PROJETOS DESENVOLVIDOS............................................................. 103

5.1 O QUE ESTAMOS CHAMANDO DE CURRÍCULO POR PROJETOS?................................. 103

5.2 O QUE PENSAM E O QUE ACHAM OS SUJEITOS PRATICANTES SOBRE OS PROJETOS?. 108

5.2.1 Sobre os projetos da escola: institucional e literário ........................................ 113

5.2.2 Sobre os projetos da SEME: Projeto de horário integral, Projeto de Educação

Especial, Formação Continuada na Escola e Professor Dinamizador ........................ 138

6. AS PROFESSORAS NÃO SABEM MUITO O QUE FAZER ...................................... 167

7. REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 174

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Moradores e animais disputando o lixo.....................................................27

Figura 2 - Moradores em meio ao revôo dos urubus.................................................27

Figura 3 - Escola Força Popular................................................................................30

Figura 4 - Espaço antigo da Creche “Sonho meu” ....................................................30

Figura 5 - Espaço novo do CMEI “Sonho Meu” inaugurado em 2006 .......................31

Figura 6 - Cronograma interno 2008 .........................................................................36

Figura 7 - Formação em serviço com todos os funcionários .....................................71

Figura 8- Formulário de entrevista com os pais: (a) página 1; (b) página 2 ..............71

Figura 9 - Bairro São Pedro na época da ocupação .................................................72

Figura 10 - Bairro São Pedro hoje.............................................................................72

Figura 11 - Visita à prainha de Vila Velha – Pré A/B Vespertino ...............................75

Figura 12 - Apreciação das conchinhas coletadas na visita à praia de Camburi pelos

alunos do Maternal A/B – Vespertino ..............................................................75

Figura 13 - Visita ao parque Moscoso – turma do Jardim II Vespertino ....................76

Figura 14 - Atividade coletiva sobre a visita à Praça do Papa – Jardim II B vespertino

..................................................................................................................................76

Figura 15 - Processo de eleição dos livros a serem trabalhados nas turmas do Pré A

..................................................................................................................................77

Figura 16 - Processo de eleição dos livros a serem trabalhados na turma do Pré B 77

Figura 17 - Sugestões de atividades do livro “A escolinha do mar”...........................78

Figura 18 - Atividade do projeto literário realizado com a família ..............................79

Figura 19 - 1ª Formação continuada na escola: sensibilização e apresentação da

proposta do projeto institucional “Uma leitura infantil sobre a cidade de Vitória” ......87

Figura 20 - Formação continuada na escola. Tema: Inclusão...................................90

Figura 21 - Aula de Educação Física ......................................................................101

Figura 22 - Oficina de peteca com as famílias promovida pela professora de

Educação Física e pelo professor de Arte – Pré A/B vespertino .............................102

Figura 23 - Oficina de peteca com as famílias promovida pelas professoras de

Educação Física – Turma Pré A/B matutino............................................................102

Figura 24 - Cartaz dos combinados ........................................................................123

Figura 25 - Visita ao Convento da Penha em Vila Velha-ES: (a) alunos dentro da

igreja; (b) parte externa com vista para o Convento; (c) vista para a Terceira Ponte;

(d) ladeira que dá acesso ao Convento...................................................................125

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Figura 26 – Atividade sobre a visita ao convento da Penha....................................127

Figura 27 – Exemplos de atividades de escrita e leitura: (a) Palavras lacunadas; (b)

Texto coletivo ..........................................................................................................128

Figura 28 - Caderno de planejamento da professora do pré...................................129

Figura 29 - Atividade para a família.........................................................................132

Figura 30 - Entrada dos alunos do integral .............................................................142

Figura 31 - Atividade em sala dos alunos do integral..............................................142

Figura 32 – Almoço dos alunos do integral .............................................................143

Figura 33 – Descanso dos alunos do integral .........................................................143

Figura 34 - Crianças brincando no pátio com balões de festa ................................158

Figura 35 - Aula de Educação Física – trabalhando o movimento da peteca .........159

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Enfoques temáticos do projeto institucional “Tecendo nossa história afro-

descendente”.............................................................................................................70

Quadro 2 - Relato da família após assistir ao filme “São Pedro 20 anos depois”......73

Quadro 3 - Cronograma de visitas à cidade de Vitória – turno matutino e vespertino

..................................................................................................................................74

Quadro 4 - Cardápio do CMEI elaborado pela nutricionista ......................................83

Quadro 5 - Cronograma de formação continuada na escola para o ano de 2008.....87

Quadro 6 - Projeto a ser trabalhado em 2008: Uma leitura Infantil sobre a cidade de

Vitória ......................................................................................................................105

Quadro 7 - Reflexões dos alunos do Pré sobre o bairro São Pedro........................111

Quadro 8 - Horário do turno matutino......................................................................121

Quadro 9 - Relato dos alunos do Pré matutino .......................................................124

Quadro 10 – Horário de atendimento da professora especializada no CMEI..........150

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LISTAS DE SIGLAS

APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais

ATD – Assistente Técnico de Direção

ANPED – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação

CETDET – Centro de Desenvolvimento do Talento

CEB – Comunidades Eclesiais de Base

CMEI – Centro Municipal de Educação Infantil

CRAS – Centro de Referência de Assistência Social

CST – Companhia Siderúrgica de Tubarão

CTA – Corpo Técnico Administrativo

EMEF – Escola Municipal de Ensino Fundamental

GFDE – Gerência de Formação e Desenvolvimento em Educação

MEC – Ministério de Educação e Cultura

MUSP – Mulheres Unidas de São Pedro

NEE – Necessidades Educativas Especiais

NEPE – Núcleo de Estudo e Pesquisa em Educação

PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais

PL – Planejamento

PPP – Projeto Político Pedagógico

PMV – Prefeitura Municipal de Vitória

RCNEI – Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil

SEMAS – Secretaria Municipal de Assistência Social

SEME – Secretaria Municipal de Educação

SEMUS – Secretaria Municipal de Saúde

TCI – Tecnologia de Comunicação e Informação

TDAH – Transtorno no Déficit de Atenção – Hiperatividade

UFF – Universidade Federal Fluminense

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RESUMO

Os currículos por projetos vêm sendo trabalhados pelas professoras e alunos no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) pesquisado e são reinventados no cotidiano pelos sujeitos praticantes, através de negociações, traduções e burlas. No intuito de investigar e experimentar as redes de saberes, fazeres e poderes desses sujeitos, tentando entender como dão conta do emaranhado de projetos que vão sendo implementados no miudinho da escola pela Secretaria de Educação do Município de Vitória (SEME), propus-me a dar um mergulho nesse cotidiano. Para dar esse mergulho foi necessário usar a metodologia dos/nos/com os cotidianos, tendo Certeau como autor central, que possibilitou um entendimento do que se passa no espaçotempo do CMEI. Foi preciso pensar para além dos currículos por projetos e buscar um currículo que fale do vivido, daquilo que é sentido pelos sujeitos, ou seja, um currículo em redes de saberes, fazeres e poderes que supere a grafia da árvore impressa na escola e caminhe para a metáfora do rizoma, onde o cotidiano não é algo dado, pronto, linear e prescrito e sim imprevisibilidade, complexidade, multiplicidade. Mesmo com um número grande de projetos, referenciais e atividades para dar conta, as professoras e alunos fazem as coisas acontecerem e reinventam a cada dia a escola. Quando falam de suas vivências, de seus sentimentos e de suas práticas, as professoras expressam um saber para além dos documentos e projetos prescritos; falam de um saber vivido ao longo da experiência de profissão e de vida que precisa ser compartilhado e ouvido. Palavras-chave: Projetos; Currículo; Cotidiano, Educação Infantil.

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ABSTRACT The curriculums by project have been worked by teachers and students at the researched Municipal Center of Child Education and are reinvented on the quotidian by the people who practice them, through negotiations, translation and tricks. In order to investigate and experience the knowledge, duties and power nets of those people, trying to understand how they manage the projects that are being implemented on kindergarten schools by Vitoria Municipal Department of Education, I proposed to focus deeply on this quotidian. For this, it was necessary to use the methodology of quotidians, on quotidians and with quotidians, whose main author was Certeau and who made the understanding of space/time in the Municipal Center of Education possible. It was necessary to think beyond the curriculums by project and to reach curriculums that talk about the actual lived experience, subjects’ feelings, that is, a curriculum in knowledge, duties and power nets that exceed the written tree of the school and walk toward the rizoma metaphora, where quotidian is not anything already known, ready, linear and prescribed, but actually unpredictable, complex and multiple. Even with a huge number of projects, references and activities, the teachers and students make things happen and reinvent the school every day. When they talk about their experience, their feelings and practices, the teachers show knowledge to beyond documents and prescribed projects; they talk about a lived knowledge throughout their professional and life experience that needs to be shared and heard. Key-words: Project; Curriculum; Quotidian, Child Education

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1. APRESENTAÇÃO

1.1 Alguns caminhos percorridos Todo inicio é complicado e doloroso. Escrever um texto é um encontro consigo

mesmo, talvez solitário e clandestino, talvez uma descoberta e um acontecimento.

Solitário e clandestino porque “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”;

descoberta e acontecimento porque a cada palavra um pensamento, uma idéia, uma

história, um movimento de encontros e desencontros, um devir constante.

Ao falar de minha1 experiência docente, eu me emociono. Lembro-me de minha

mãe, professora primária saindo para trabalhar em uma escola do interior de

Anchieta/ES (cidade em que nasci); escola com turmas multisseriadas de 1ª a 4ª

série, onde ela era a única professora. Nessa escola, não tinha merendeira, diretor,

pedagogo, secretário e servente; era ela e seus alunos. Ela conta que não tinha

material didático e que às vezes quebrava o lápis para dividir com os alunos e usava

como borracha o conta gotas dos remédios. Cresci vendo minha mãe fazendo

planejamento, corrigindo provas e cadernos dos seus alunos, fazendo

lembrancinhas nas datas comemorativas – às vezes, eu ajudava na confecção.

Lembro-me de quando preparava bolos e sucos para levar no dia das crianças.

Puxando os fios de minha memória, recordo dos muitos momentos em que, após

sair dessa escola multisseriada e começar a dar aulas na cidade com turmas de 1ª a

4ª série em uma escola maior, minha mãe se preocupava com a aprendizagem

dando atenção àqueles alunos que não conseguiam acompanhar a turma. Acho que

foram esses momentos com minha mãe que me fizeram ser professora e entender

como

[...] a docência como um devir toma o cotidiano escolar como um espaço-tempo instituído-instituinte de novas práticas e de outras formas de pensar-fazer que fogem, escapam e subvertem regimes

1 Em alguns momentos do texto usarei a primeira pessoa por entender que é preciso assumir a

escrita para além da imparcialidade colocada, fruto da modernidade que trata a pesquisa com rigor e frieza que distância o sujeito do seu texto.

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de verdades e sobre a profissão, o trabalho e a vida (PEREZ, 2003, p. 48-49).

Não posso negar essa história, porque é minha, e isso me passou como um

acontecimento que tocou e ainda me toca pela vida afora. Minha escolha profissional

passa por tudo o que vi e vivi do serestar2 professora. Fiz o curso de magistério; logo

em seguida entrei para a faculdade de Pedagogia e depois fiz especialização em

Psicopedagogia, começando na prática profissional no ano de 1999 no município de

Guarapari/ES como professora de Educação Infantil. Mais tarde, trabalhei como

Pedagoga com essa mesma faixa etária e também como professora da sala de

recursos – lidando com alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEE).

No ano de 2005, deixei o município de Guarapari para trabalhar em Vitória, onde

atuo como pedagoga no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) “Sonho

Meu”3. Desde que iniciei meu trabalho no município de Vitória, percebo a força da

pedagogia de projetos muito presente nas escolas. A defesa da Secretaria Municipal

de Educação (SEME) de Vitória é de que os projetos são como linhas norteadoras

do trabalho pedagógico das professoras e alunos. As ações são direcionadas de

acordo com projetos específicos, e esses projetos são assumidos por todos,

portanto me atrevo a dizer que lidamos com um “currículo por projetos”.

Todos os conhecimentos, conteúdos e temas devem estar ligados aos projetos, por

essa razão a proposta curricular só acontece por meio dos projetos. Podemos dizer

que existe uma “escola de projetos” e não “projetos de escola”. O que me preocupa

e me instiga a discutir esse assunto passa pelos conhecimentos, os saberes, fazeres

e poderes dos sujeitos da educação infantil diante dessa metodologia, portanto

tenho como objetivo a problematização desse currículo por projetos.

2 Termo usado pela autora Nilda Alves com o intuito de superar dicotomias e hierarquias entre as

palavras (2002). 3 O nome do CMEI pesquisado e das professoras, alunos, diretora, pedagoga e demais sujeitos da

pesquisa são fictícios.

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O conhecimento está presente em todos os espaçostempos da nossa vida cotidiana.

Lidamos com ele o tempo todo. Nossas ações estão ligadas àquilo que vivemos.

Enfim, são nas redes de relações que estabelecemos com os outros que o

conhecimento acontece. São através das relações que estabelecemos com o mundo

a nossa volta que tecemos nossos conhecimentos, ao mesmo tempo em que

participamos dos processos de conhecimentos dos outros. Nesse sentido, somos ao

mesmo tempo sujeito e objeto de conhecimentos.

Entendo, a partir de Maturana e Varela (1995), que o conhecimento acontece a partir

de um processo que envolve a auto-organização, autopoiese, o que possibilita

pensarmos que saberes cognitivos e processos vitais são no fundo a mesma coisa,

pois “somos criadores do ‘nosso mundo’ inventores do nosso mundo, fabuladores e

sonhadores do nosso mundo [...] Não há mundo para nós a não ser mediante a

‘nossa leitura’ do mundo, corporalizada no sistema auto-organizativo que somos”

(ASSMANN, 1998, p. 61).

É através de processos auto-organizativos que aprendemos, e aprender é um

processo criativo que se auto-organiza, e tem uma inscrição corporal (ASSMANN,

1998).

[...] ora, parece-me que as pesquisas recentes tendem a demonstrar que o conhecimento não é um dado preexistente. Ao contrário, o conhecimento é algo que se constitui ao longo dos ciclos de percepções-ações, sejam individuais ou societais. Estes ciclos vão criando recorrências estáveis, que constituem o mundo dos conhecimentos (ASSMAN, 1998, p. 43).

O conhecimento não é algo dado, pré-existente, mas aquilo que é experienciado na

vida e fruto da atividade histórica de um sistema cognitivo. Nesse sentido,

buscamos:

[...] colocar em questão a idéia tradicional segundo a qual nós constituímos nossos conhecimentos a partir de representações. Isso tem conseqüências muito importantes para a ação. Pode-se dizer, esquematicamente, que a noção de “enaction” implica que o conhecimento não pré-existe ao conhecer, mas que o conhecimento das coisas é fruto da atividade histórica de um sistema cognitivo. (...) O conhecimento emerge da história da ação humana, das práticas humanas recorrentes. É a história das práticas humanas que dá um sentido ao mundo (ASSMANN, 1998, p. 43).

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Lefebvre (1983) também nos ajuda na defesa dessa visão quando critica a idéia de

conhecimento como “problema”. Para ele, o conhecimento é um fato que tem por

características ser prático, social e histórico, como defende o autor (1983, p. 49-50),

É inegável que o conhecimento põe certos problemas; todavia, o conhecimento em si mesmo não é um problema, mas um fato. Para que o conhecimento se torne um problema, é preciso que a análise separe e isole o que é dado efetivamente como indissoluvelmente ligado: os elementos do conhecimento, o sujeito e o objeto [...]. O conhecimento é um fato: desde a vida prática mais imediata e mais simples, nós conhecemos objetos, seres vivos, seres humanos.

Desse modo, ao superar a idéia de conhecimento como problema, Lefebvre (1983)

nos dá subsídios para assumir a metáfora das redes, afirmando a existência dos

múltiplos percursos que ela contempla entre seus nós e fios. Na esteira de suas

palavras (1983, p. 35-36), “A rede implica e permite uma racionalidade mais

aguçada, mais ‘complexa’. A noção de complexidade, ou melhor, de complexificação

sugere a idéia segundo a qual o pensamento vai do complexo ao mais complexo”.

Vygotsky (2007, p. 100) ratifica essa argumentação ao defender que pensamento

nasce do complexo de inter-relações entre a criança e as pessoas que a rodeiam. “O

aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo

através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que as cercam”.

Dessa forma, a maneira com que lidamos com os conhecimentos está ligada às

nossas vidas cotidianas e, por efeito, às trocas de experiências que realizamos.

A criança pequena é curiosa, tem uma maneira própria de entender o mundo; cria

conceitos e vive experiências diferentes de acordo com o contexto sociocultural em

que está inserida. Lidando diretamente com crianças em idade de seis meses a seis

anos, percebo o quanto essas crianças têm saberes, como pensam o mundo, como

lidam com conflitos, de que forma entendem ou vivem os conteúdos e os

conhecimentos que a escola de educação infantil apresenta para ela, a partir dos

projetos e da proposta curricular da escola.

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Tanto os alunos como as professoras são sujeitos praticantes (CERTEAU, 1994)

que vivem o cotidiano escolar, sujeitos que não estão alheios ao que se passa no

espaçotempo da escola e participam de diferentes contextos e práticas dentro e fora

da escola.

As professoras como sujeitos praticantes reinventam o cotidiano e ao narrarem suas

experiências falam da complexidade da vida, sujeitos encarnados (NAJMANOVICH,

2001) que têm problemas, que sofrem, que sentem e se emocionam.

Ao narrar suas experiências, crenças, expectativas, sonhos e desejos as professoras tornam-se capazes de perceber outras possibilidades que o vivido anuncia, o que do ponto de vista da pesquisa, evidencia a importância da narrativa como instrumento potencializador de novas práticas: assim como o relato da realidade produz a história, a narrativa produz novos sentidos para vida [...] (PÉREZ, 2003, p. 58).

O trabalho realizado na escola é diariamente atravessado por problemas,

discussões, políticas, experiências e realidades que desconstroem a visão de escola

pública como “lugar” de inoperância e homogeneidade. As professoras e alunos

como sujeitos praticantes, nos dão pistas daquilo que desejam e daquilo que não

acham interessante no interior da escola. Como escola, sofremos pressão externa,

dos pais e da Secretaria Municipal de Educação (SEME), e interna das professoras

e alunos.

A SEME, com os programas, projetos e propostas, e a família, com sua ansiedade e

visão que têm da escola de Educação Infantil, muitas vezes reforçam um olhar

assistencialista e paternalista. Ao mesmo tempo, as professoras colocam suas

limitações diante dos projetos e programas, conteúdos e atividades que

desenvolvem com os alunos, nos dando pistas de seus conhecimentos e saberes

para além do instituído.

Quando falo em pressão externa à escola, no caso da SEME, penso nos programas

e projetos instituídos que temos que dar conta e discutirmos no interior da escola.

Tais programas e projetos são políticas de governo implementadas na educação

infantil que nos faz repensar o nosso papel educativo enquanto instituição.

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Em conversa com algumas professoras das turmas do Berçário I e II, percebi a

insatisfação delas com a idéia que algumas pessoas e famílias fazem da educação

infantil. Elas me contaram que encontraram com a mãe de uma aluna no

supermercado e ouviram esta mãe falar para outra pessoa a seguinte frase: “Elas

que ficam com meu filho pra eu trabalhar” (referindo-se às duas professoras).

Nosso cuidado é fazer entender que não somos uma preparação para a escola de

ensino fundamental, mas temos especialidades próprias que apontam para a

necessidade de trabalharmos com conhecimentos e metodologias que assumam a

criança em suas necessidades, interesses, experiências com vistas à ampliação de

seus saberesfazeres.

Diante dessas questões, somos atravessados por programas e projetos indicados

pela SEME, entre os quais destaco: projeto de horário integral para crianças de seis

meses a três anos (creche); proposta curricular com suporte dos Referenciais

Curriculares Nacionais para Educação Infantil (RCNEIs) e o documento norteador da

Educação Infantil “Um outro olhar”; Plano de ação; Projeto Político Pedagógico;

Projeto Institucional; a Proposta de formação continuada na escola e a Proposta da

Educação especial com o professor especializado.

Além desses projetos que a SEME nos coloca, temos atravessada no currículo uma

proposta que, em 2005, veio como projeto piloto e, em 2007, foi instituída no

currículo da Educação Infantil, que são as disciplinas de Arte e Educação Física. E

há, ainda, o laboratório de Informática como recurso didático metodológico, que é

alvo de discussões e debates no interior da escola4.

4 Cumpre destacar os projetos enviados por outras secretarias, tais como: educação para o trânsito,

educação pela paz, e os próprios projetos elaborados pelos educadores do CMEI, alguns dos quais serão pontuados no presente texto.

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Dentre as condições e possibilidades colocadas no meu trabalho como pedagoga no

CMEI, esta pesquisa busca entender e problematizar algumas práticas relacionadas

com o que chamamos de “currículo por projetos” já naturalizados no cotidiano da

escola. E, nesse sentido, esta dissertação é um exercício de entendimento do meu

trabalho como pedagoga frente à pulverização dessas práticas, visando contribuir

para a tentativa de problematização da proposta de um currículo por projetos,

apostando muito mais na potência das relações do que na proposição de

outros/novos projetos.

Diante disso, minha preocupação diz respeito aos conhecimentos dos alunos e

alunas, e também à atuação das professoras diante do currículo por projetos e me

pergunto: Em que momento as professoras estão parando para pensar os

conhecimentos propostos em relação aos saberes dos alunos? De que forma isso

está colocado no cotidiano? Como se dão as histórias de vida, os fios das redes de

saberes, fazeres e poderes tecidos no cotidiano através e pelas trocas de

experiências/conhecimentos, os diferentes currículos, os múltiplos sentimentos,

valores e processos vividos pelos alunos e alunas na relação com as professoras?

Essas questões me impulsionam a pensar o currículo para além das políticas oficiais

e voltar minha preocupação para a necessidade de perceber como o currículo está

enredado por tantos conhecimentos dos alunos e alunas, das professoras, da

escola, da comunidade, da família.

Nesse sentido, interesso-me por saber como os sujeitos negociam em suas redes de

conhecimentos os assuntos trabalhados em sala de aula. Em que sentido essas

negociações desqualificam, ampliam, subvertem ou não as propostas e projetos.

Que outras possibilidades, necessidades, desejos, expectativas e conhecimentos

essas negociações potencializam ou não em termos de uma concepção de trabalho

na educação infantil que supere a lógica de um currículo sustentado pela pedagogia

de projetos e aponte para a idéia de currículo como redes de saberes, fazeres e

poderes.

Portanto, alguns projetos serão mais de perto analisados, discutidos e

problematizados com os sujeitos, como: projeto de horário integral, projeto de

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educação especial, proposta de formação continuada, professor dinamizador,

projeto institucional e projeto literário. Os quatro primeiros são elaborados pela

SEME e encaminhados para a escola, e os dois últimos são projetos elaborados

com os profissionais da escola e trabalhados mais diretamente com alunos e

famílias, abordando os conteúdos propostos pela escola.

Para que as questões de investigação aqui propostas possam ser de fato

problematizadas e discutidas foram necessárias análises do cotidiano escolar. Estar

e fazer parte desse cotidiano foram fundamentais para a pesquisa. O cotidiano é o

lugar de possibilidades e descobertas e onde as coisas acontecem e se reinventam

o tempo todo.

Para a compreensão dos aspectos teórico-metodológicos da pesquisa sobre o

cotidiano Alves e Garcia (1997) nos ajudaram nas discussões. Segundo essas

autoras,

Há um modo de fazer e de criar conhecimentos no cotidiano, diferente daquele aprendido na modernidade, especialmente, mas não só, com a ciência. Para poder estudar estes modos diferentes e variados de fazerpensar, nos quais se misturam agir, pensar, lembrar, criar e dizer, em um movimento a que podemos denominar práticateoriaprática, é preciso nos dedicarmos a questionar os caminhos já sabidos e a indicar a possibilidade de traçar novos caminhos (ALVES; GARCIA, 2002, p. 257).

Nos estudos nos/dos/com os cotidianos são necessários sentir o mundo e buscar

entender as lógicas do cotidiano e mergulhar nele, ver além daquilo que os outros já

viram. Dessa forma, entender o cotidiano só é possível se este for vivenciado,

participado, partilhado pelo pesquisador, ou seja, é preciso viver com o cotidiano,

conviver com suas experiências, buscar estar atento a tudo o que se passa em seu

interior.

Junto com Alves e Garcia (1997) uso Ferraço (2003) para entender um pouco a

lógica das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. É fundamental para este estudo

entender que somos esse cotidiano e que o fazer parte dele nos possibilita o

entendimento do outro, dos sujeitos e de tantos outros como a nós mesmos.

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Ser esse cotidiano, viver, sentir e estar nele nos remete à idéia de cotidiano como

lugar de possibilidades, cotidiano como espaço praticado, e Certeau (1994, p. 202)

traz essa discussão:

Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por sistemas de signos – um escrito.

A busca por entender o cotidiano como lugar praticado e cheio de possibilidades, de

conhecimentos, de saberesfazeres reporta-nos à perspectiva de Certeau (1994), sua

visão otimista do cotidiano e do sujeito, confiança no outro que é fundamental a esta

pesquisa.

Entendo a visão otimista da escola como lugar de invenção, que permite voltar

nossa atenção para as maneiras de fazer cotidianas e as práticas dos sujeitos,

atores desse cotidiano. A análise do cotidiano exige um olhar diferente, um olhar

investigativo que possibilite ver, indagar, interpretar e lidar com a complexidade

inerente a essa realidade.

Esse olhar otimista nos/dos/com os cotidianos escolares, essa confiança depositada

no outro e a crença no poder do mais fraco faz de Certeau (1994) um autor

importante para esta pesquisa, que pode ser confirmado ao visitarmos o texto de

Giard no livro de Certeau (1994, p. 19):

“Sempre é bom recordar que não se devem tomar os outros por idiotas”. Nesta confiança posta na inteligência e na inventividade do mais fraco, na atenção extrema à sua mobilidade tática, no respeito dado ao fraco, sem eira nem beira, móvel por ser assim desarmado em face das estratégias do forte, dono do teatro de operações, se esboça uma concepção política do agir e das relações não igualitárias entre um poder qualquer e seus súditos.

Assim como Certeau (1994), Ginzburg (1989), nos auxilia a compreender as pistas

desse cotidiano através do que chama de paradigma indiciário, o que será de

grande valia, pois é necessário analisar os dados, as pistas, os sintomas e os

indícios desse cotidiano.

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É claro que o grupo de disciplinas que chamamos de indiciárias (incluída a medicina) não entra absolutamente nos critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos, situações e documentos individuais, enquanto individuais, e justamente por isso alcançam resultados que têm uma margem ineliminável de causalidade (GINZBURG, 1989, p. 156).

Todas as ações do cotidiano só são possíveis porque são vividas por sujeitos que

reinventam e criam situações, que alteram as regras impostas e transformam em

outros produtos, sujeitos que instauram práticas plurais e criativas em face da

imprevisibilidade desse cotidiano.

No local em que a pesquisa aconteceu foi possível sentir, ver e ouvir as práticas dos

sujeitos e como elas modificam e ampliam o espaço vivido. O CMEI pesquisado fica

situado na região da Grande São Pedro/Vitória, que tem uma história de luta e

mobilização por melhores condições de vida, uma história que vem do lixo, da

pobreza, da fome, mas que a partir do que Certeau (1994) chama de Artes de fazer

foi possível entender como os sujeitos dessa comunidade reinventaram seu modo

de vida.

A partir da organização popular, foi possível transformar o espaço que antes era

depósito de lixo em uma comunidade participativa, que lutou e luta pela construção

de escolas, saúde de qualidade, infra-estrutura para os bairros e mais segurança.

Uma comunidade marcada pelo estereótipo da violência e da pobreza, mas que não

cansa de mostrar que vai além disso, e que o bairro cresce a partir do momento em

que seus moradores buscam através do estudo e da profissionalização uma maneira

de melhoria nas condições de vida.

Numa tentativa de aproximação do CMEI “Sonho meu”, que nasceu da história de

luta dessa comunidade, foi possível uma análise dos projetos realizados nesse

CMEI. A discussão desses projetos aconteceu a partir de uma escuta atenta dos

sujeitos do cotidiano: educadores e alunos.

Neste capítulo 1, falei um pouco de minha trajetória profissional, introduzo o tema

pesquisado, apresentei a justificativa do trabalho e seus objetivos.

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Portanto, partindo dessa idéia, no capítulo 2, a reflexão se pauta em uma

contextualização do espaçotempo do local da pesquisa, buscando compreender

melhor como o bairro São Pedro se constituiu, como aconteceu a participação

popular e a luta pela escolarização desse povo. Nesse sentido, minha discussão é

orientada pela problematização do contexto vivido pelos sujeitos praticantes e os

diversos usos que fazem dessa história.

No capítulo 3, volto para as pistas dos referenciais teórico-metodológicos com os

quais dialoguei durante a escrita do texto e a problematização dos dados, buscando

esclarecer como as pesquisas dos/nos/com os cotidianos me ajudaram nessa

caminhada e os usos que fiz de autores como Alves, Ferraço, Certeau, Bhabha,

Giszburg e outros para discutir conceitos importantes na pesquisa, como: cotidiano,

redes, negociação, tradução. E foram as pistas na escrita desses autores que

possibilitaram a constituição do texto.

No capítulo 4, a reflexão volta para uma primeira aproximação do cotidiano escolar,

identificando os projetos em estudo: projeto institucional, projeto literário, projeto de

horário integral, plano de trabalho para Educação Especial, Formação Continuada

na Escola e professor dinamizador. No sentido de perceber os objetivos e questões

mais gerais desses projetos, dialogo com alguns relatos de professoras e alunos que

me deram pistas de como os projetos são vividos no cotidiano.

No capítulo 5, ocorre uma segunda aproximação do cotidiano escolar, trazendo e

problematizando fragmentos das falas e das práticas dos sujeitos envolvidos nos

respectivos projetos propostos pela SEME e pelo CMEI.

No capítulo 6, além de buscar sintetizar o debate e recompor algumas questões

trabalhadas durante o texto, faço uma reflexão da lógica dos projetos no interior da

escola, tentando pontuar algumas inferências que o currículo por projetos tem

possibilitado e apontar para a idéia de pensarmos o currículo como redes de

saberes, fazeres e poderes.

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2. CONTEXTUALIZANDO O ESPAÇOTEMPO DA PESQUISA

2.1 O local da pesquisa

O CMEI “Sonho meu”, situado no bairro São Pedro, no município de Vitória-ES,

atende alunos dos bairros São Pedro I, II, e IV, estendendo o restante das vagas aos

bairros vizinhos. Essa comunidade viveu uma história de luta registrada em livros,

teses e artigos.

O bairro São Pedro nasceu da luta do povo pela “terra prometida” (ANDREATTA,

1987), pessoas que vinham do interior ou de outras cidades em busca de um

espaço, de trabalho, de novas oportunidades em Vitória. A grande atração da

década de 60 era a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a Companhia

Siderúrgica de Tubarão (CST), o que ocasionou a migração de muitos

trabalhadores. Porém, na ilha de Vitória faltava locais para expansão, promovendo

um crescimento do número de edifícios, fato este que impeliu a população de baixa

renda à ocupação dos morros, mangues e áreas periféricas (GURGEL; PESSALI,

2004).

Em 1977, a região de São Pedro teve sua fisionomia inteiramente modificada num curto tempo. Famílias ocuparam o manguezal pelo lado oeste da ilha e foram se ajeitando ao longo da Rodovia Serafim Derenzi, dando origem aos bairros São Pedro I, II, III, IV, V e VI. Essa região foi cenário de um dos mais significativos movimentos populares ocorridos no Estado do Espírito Santo: a luta pela moradia (GURGEL; PESSALI, 2004, p. 27)

A trajetória dessa comunidade tem na sua história de conquista o lixo como pano de

fundo, pois os moradores se viram obrigados a dividir o espaço com moscas,

baratas, ratos e outros transmissores de moléstias (Figura 1 e Figura 2). Mas a

população se organizou e conquistou benfeitorias através da própria mobilização. O

bairro nasceu da luta do povo por espaço, um lote, uma casa e por melhores

condições de vida. A comunidade não desistiu de lutar e uniu forças com outros

grupos, como as igrejas, na época as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

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Figura 1 - Moradores e animais disputando o lixo Fonte: Gurgel e Pessali (2004, p. 129)

Figura 2 - Moradores em meio ao revôo dos urubus Fonte: Dias (2001, p. 22)

As CEBs tiveram grande importância na formação do bairro, pois com a fundação de

cada Igreja, surgia uma comunidade, o que muito auxiliou na melhoria do bairro:

• Igreja São José (São Pedro III).

• Igreja Nossa Senhora das Graças (descida da curva da morte).

• Igreja Nossa Senhora Aparecida (São Pedro VI - Resistência).

• Igreja Santo André (São Pedro III).

• Igreja São José.

• Igreja Nossa Senhora das Graças (São Pedro V).

• Igreja São Pedro.

• Igreja São João Batista (São Pedro III).

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• Igreja Santos Reis (São Pedro IV).

• Igreja Nossa Senhora Aparecida (São Pedro VI).5

A história da formação do bairro São Pedro se inicia a partir de 1977, quando as

primeiras famílias chegaram atraídas pelos grandes projetos industriais. No início,

tudo era mangue; do mangue surgiram as primeiras casas sobre as palafitas, casas

de madeira. Essa ocupação, que deu origem ao bairro São Pedro, aconteceu devido

a vinda de pessoas "migrantes e necessitadas, que moravam de aluguel ou expulsas

do campo" (ANDREATTA, 1987, p.18). Muitos vinham para trabalhar na Companhia

Siderúrgica de Tubarão (CST).

Coube à força organizadora da comunidade o papel de transformar o espaço onde

se deu a criação de escolas que nasceram do idealismo, da coragem e da

persistência das lideranças. O primeiro espaço educativo do bairro iniciou-se em um

cômodo de madeira cedido por um morador, em 1977, onde começou a funcionar

uma escolinha “[...] num barraquinho do Toninho Tonini, com luz a velas”

(ANDREATTA, 1987, p. 20).

Com o aumento de alunos, a comunidade se mobilizou na organização de uma sala

reservada para as aulas, na sede do movimento comunitário, que incorporou o

movimento de luta para com as famílias que lá se instalaram, visando à formação

educacional de seus filhos, constituindo-se, assim, na primeira turma de Pré-escola.

No período da manhã, o espaço funcionava como Pré-escola e, à noite, era a vez

dos adultos ocuparem a sala para o curso de educação integrada (ANDREATTA,

1987).

Essa vontade e luta pela escola é relatada por Andreatta (1987, p. 79):

Em dezembro o povo começou a pressionar sobre a necessidade de escola. As idas à Secretaria Municipal de Educação para falar com o Secretário deu-nos um único resultado: “As crianças desse bairro só vão à escola para comer”. Isso dito a doze mães, fez-nos chorar e decidir não mais voltar a procurar esse senhor.

5 Dados registrados no Projeto Político Pedagógico da escola.

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As assembléias gerais aumentaram muito e todos queriam fazer escola por si só. As idéias eram as melhores. O Movimento Comunitário (MC), ainda muito pequeno, não abrigava todo mundo. Numa das assembléias me perguntaram: - Graça, você topa fazer uma escola? Nós fazemos os bancos, quadro e damos as coisas, e você dá aula.

O povo se mobilizou e a escola foi construída a partir da necessidade da

comunidade, com formação de uma comissão de Educação para estudar as normas

pedagógicas e apresentá-las no debate comunitário. O método Paulo Freire foi

adaptado à realidade social daquela comunidade. As professoras se reuniram para

planejar as ações para o trabalho com os alunos.

Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças de representações estabelecidas. Tem que “fazer com”. Nesses estratagemas de combatentes existe uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espaço opressor. Destreza tática e alegria de uma tenacidade (CERTEAU, 1994, p. 79).

Alguns anos depois, a escola, que recebeu o nome de “Força popular” foi

municipalizada e passou a sediar um novo prédio. Quando da entrega das chaves, a

escola já possuía 150 crianças na creche, 200 crianças na pré-escola, 1.500 alunos

no 1º grau e muitos moradores que trabalhavam como voluntários (Figura 3).

De acordo com Andreatta (1987), a partir de janeiro de 1984, quando a escola

“Força Popular” passa a ser incorporada à Rede Municipal de Ensino de Vitória,

perdeu-se a administração pela comunidade, além das características constitutivas

da escola: “Naquele dia nós enterrávamos a filosofia da escola, o sonho de ter uma

escola administrada pela comunidade, a partir de nossa realidade universal [...] Daí

em diante, foram rasgados todos os papéis que contavam a história do Grito desse

povo” (ANDREATTA, 1987, p. 94).

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Figura 3 - Escola Força Popular

Assim como a escola “Força Popular”, o CMEI pesquisado, que até então era

chamado de “Recanto do Amor” (Figura 4), recebeu outro nome e passou a ser

conhecido como CMEI “Sonho Meu”. Hoje com novas instalações e atendendo a

quase 600 crianças (Figura 5).

Figura 4 - Espaço antigo da Creche “Sonho meu”

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Figura 5 - Espaço novo do CMEI “Sonho Meu” inaugurado em 2006

Destacamos também a experiência pedagógica desenvolvida em São Pedro por ter

despertado o interesse de profissionais da rede pública e privada de educação no

desenvolvimento de estudos e pesquisas. Tal prática popular atraiu estudantes e

professores universitários e levou as lideranças populares para palestras e debates

no interior do espaço acadêmico.

A participação feminina na comunidade contribuiu para o surgimento de entidades

como o Movimento das Mulheres Unidas de São Pedro (MUSP).

O MUSP foi criado em 1986, merece destaque por manter-se forte e seguir ampliando sua atuação. Fundado com o objetivo de defender as mulheres da região e trabalhar para conscientizá-las de seus direitos e deveres, o movimento conta hoje com 200 sócios, e não apenas a participação feminina. Alguns homens já se filiaram à entidade (DIAS, 2001, p. 28).

Dias (2001) contabiliza, na região de São Pedro, seis movimentos comunitários e 26

associações de classe, como: Mulheres Unidades de São Pedro (MUSP), os Idosos

de Resistência, os Idosos de São Pedro I e o Centro de Treinamento. Espaços

organizados taticamente se referem a lugares praticados (CERTEAU, 1994) que

operam um movimento que procura fugir às operações do poder que tentam

controlar o espaço social.

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São Pedro é uma comunidade que se caracteriza com nível de escolaridade

variando entre ensino fundamental e ensino médio completo6. Sendo assim,

apresenta os mais variados tipos de profissões, uma vez que os dados anteriores

mostravam uma comunidade que vivia exclusivamente da pesca e de serviços

informais. Hoje, esse quadro está mais amplo com as seguintes profissões: Auxiliar

de Serviços Gerais, Diarista, Vendedor, Policial Militar, Motoboy, Cozinheira,

Cabeleireira, Comerciante, Costureira, Atendente, Auxiliar de obras e outras.

Em virtude do crescimento do nível de escolaridade, o bairro obteve também um

aumento da renda mensal das famílias, apresentando a média de 02 a 03 salários

mínimos. A partir desses dados, entendemos que a comunidade se mobilizou

buscando estudo e profissionalização a fim de superar a inferioridade que lhe foi

historicamente conferida. Entendo, como Certeau (1994), que essa foi uma tática

relevante para ampliar novas possibilidades de trabalho e aceitação social, “[...] não

se pode falar da região de São Pedro, de sua ocupação e das melhorias que vem

conquistando, sem relembrar a maneira como a população tem participado de todo o

processo” (GURGEL; PESSALI, 2004, p. 103).

Mas as conquistas do bairro São Pedro continuaram sempre marcadas por muita

luta e esperança, trazidas para o interior da escola pelos funcionários e pelas

famílias que participam das tomadas de decisões e da constituição do projeto

educativo que busca o desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico,

psicológico, intelectual e social. O CMEI “Sonho Meu”, que foi fruto da luta desse

povo, vem construindo uma proposta curricular em que no cuidar e no educar

reconhecemos o aluno como sujeito de direitos, ampliando suas experiências,

garantindo o afeto, sendo co-autores de um conhecimento necessário a sua

cidadania.

No ano de 2006, o CMEI “Sonho Meu” ganhou um novo espaço, com uma estrutura

privilegiada, de aproximadamente 2.000 m2, sendo 1.378 m2 de área construída. O

CMEI reserva um amplo espaço livre de aproximadamente 600 m2 para as crianças

e os profissionais, especialmente nos pátios que ainda não atendem ao idealizado

6 A metodologia usada para a obtenção desses dados foi um questionário feito com as famílias.

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pelas professoras, com um espaço coberto e a construção de um auditório. No ano

de 2008 elaboramos um projeto de revitalização dos pátios com espaço de areia,

campinho, horta e casinha de boneca.

Esse amplo espaço físico conta com secretaria, sala de professores, sala de

diretores, sala de pedagogos, doze salas de aula, um laboratório de informática,

uma sala de vídeo e biblioteca, um refeitório, cozinha, lavanderia, um vestiário para

as cozinheiras, seis banheiros para as crianças, um banheiro para os funcionários,

uma sala de material pedagógico, dispensa de alimentos, dispensa de produtos de

limpeza e cinco espaços de pátio.

As professoras e os alunos inventam o espaço escolar para atender suas

necessidades, já que a escola não dispõe de tudo o que precisa para que a

aprendizagem aconteça. As professoras, juntamente com os alunos, criam espaços

provisórios. O refeitório e o pátio viram palco de teatro no dia de apresentações

quinzenais, um trabalho realizado pelas pedagogas junto com as professoras. As

salas de aula também constituem um espaço inventado a todo o momento, sendo

usadas para reuniões de pais. A sala de professores não é utilizada somente para

os 20 minutos de lanche dos docentes, mas também para os momentos de estudo e

as reuniões. O refeitório muitas vezes vira cenário para as apresentações teatrais

dos alunos, lugar de reunião de pais e também para estudos.

Assim, pude entender que a escola é espaço de criações de invenções, e não um

lugar estanque, parado ou uma configuração instantânea de posições. É sim, um

espaço praticado, como nos coloca Certeau (1994, p. 201 - 202),

Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. O espaço estaria para o lugar como a palavra quando falada, isto é, quando é percebida na ambigüidade de uma efetuação, mudada em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo), e modificada pelas transformações devidas a proximidades

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sucessivas. Diversamente do lugar, não tem, portanto, nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”.

A permanência nos espaços está de acordo com a rotina do CMEI, determinando os

horários que cada turma ou funcionário deve permanecer em cada espaço. Porém,

ao mesmo tempo, esses espaços são reinventados de acordo com os usos que se

faz deles.

Nos horários de lanche do professor, cujo tempo é de 20 minutos, ocorre sempre um

prolongamento desse tempo por mais 10 minutos. O horário de pátio dos alunos,

que é determinado em um tempo de 50 minutos, sempre se estende. No entanto, o

horário do lanche dos alunos, o almoço e o jantar são tempos cronometrados, pois

se prolongar o horário de uma turma a outra fica prejudicada, ocasionando tumulto

no refeitório. Essas são algumas questões que permitem compreender os usos que

mobilizam astuciosamente o cotidiano escolar.

Para além dos espaços físicos e dos usos que se fazem deles estão as ações

desenvolvidas que dão visibilidade ao trabalho pedagógico do CMEI, como os

projetos e outras atividades. No ano em que iniciei nesse CMEI em 2005, o grupo de

professoras decidiu implantar um trabalho voltado para a paz, com o projeto

institucional “Construindo e Descobrindo os Caminhos para a Paz”. Assim, todas as

ações desenvolvidas com os alunos tinham como foco o tema paz. No ano de 2006,

com a chegada das Diretrizes curriculares para o estudo da História e Cultura afro-

descendente e africana – lei 10.639 – o projeto institucional passou a ser “Tecendo

Nossa História Afro-descendente”, que tinha como objetivo a construção de valores

e comportamentos que respeitassem as diferenças e as características próprias de

cada um.

No ano de 2006, o grupo de professoras construiu sua proposta curricular baseada

no Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI) e no Documento

Norteador do Município de Vitória – “Um outro olhar”. A proposta curricular foi

elaborada pelo grupo e devia permear todo o trabalho com essa faixa etária, tendo

que ser reformulada a cada ano.

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Procurando melhor atender à comunidade escolar, o CMEI organiza todos os anos

as normas de funcionamento da escola, e a comunidade participa no atendimento

aos alunos. Tais normas são apresentadas e discutidas com as famílias na primeira

reunião geral do ano letivo e elas também são entregues a cada família.

De acordo com o plano de ação de 2007, o CMEI, a cada ano, vem buscando seu

aperfeiçoamento apoiado na reflexão permanente sobre sua contribuição para o

desenvolvimento total da criança. Assim, a equipe de trabalho tem o

comprometimento de valorizar os aspectos culturais da clientela atendida,

viabilizando o trabalho com os eixos Identidade e Autonomia, Movimento,

Linguagem Oral e Escrita, Música, Natureza e Sociedade, Artes, Matemática e o

Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana7.

Os moradores dessa comunidade, a partir da sua própria história local, contam com

a escola para ajudá-los nos problemas que enfrentam no dia-a-dia, e vêem nos

professores uma esperança de continuar lutando por uma vida mais digna para seus

filhos. Esses pais entendem que a escola é necessária e constitui o único caminho

capaz de conduzir seus filhos para uma vida melhor, com mais conforto. Garcia

(2001) coloca o valor que os pais dão à escola e muitas vezes não são entendidos,

[...] como se o povo não fosse à escola porque não quer. Basta ver as filas nos dias de matrícula para compreender a luta do povo pelo direito à escola. Como se o povo não intuísse que na escola acontece algo que pode mudar as vidas das pessoas. Como se, no dia da matrícula, as mães pobres não tentassem que seus filhos ficassem numa turma em que a professora é considerada boa, pois com ela as crianças aprendem e passam de ano sabendo o que antes não sabiam. Como se os pobres não soubessem que só tem direitos quem freqüentou escola (GARCIA, 2001, p. 14)

Esse sentimento que os pais atribuem à escola nos ajuda a compreender porque

reclamam do que a escola propõe, quando os alunos saem cedo por algum motivo,

quando não têm aula porque tem reunião ou porque é ponto facultativo ou feriado.

Todos às vezes que não tem aula, os pais acham ruim e brigam, reclamam, gritam,

7 Esses eixos são propostos no Referencial Curricular da Educação Infantil (RCNEI). Quando fala em

questões étnico-raciais, diz respeito a um projeto desenvolvido no CMEI em 2006, que foi possível reformular todo o conteúdo e inserir os estudos afros, que devem permear todo o currículo.

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falam da escola, das professoras, da diretora e das pessoas que trabalham na

escola.

Tanto os pais como as professoras e os alunos fazem a escola acontecer, crescer e

aparecer. Eles procuram fazer com que o espaço da escola seja tratado por todos

com carinho, e a cada dia inventam o cotidiano da escola.

Mesmo com todos esses problemas e situações delicadas e difíceis de trabalho, as

professoras inventam o cotidiano da escola, promovem festas, realizam projetos,

criam teatros, danças e músicas. A escola tem sempre algo a oferecer aos alunos e

à comunidade, diferente do seu dia-a-dia8. Situações efêmeras que dão um brilho

diferente à escola, que fazem professores e alunos acreditarem na possibilidade de

mudanças através do fazer coletivo e da dedicação de todos, como podemos

observar no cronograma interno do CMEI (Figura 6).

Figura 6 - Cronograma interno 2008

8 Alguns eventos que a escola promove junto às famílias: caminhada da paz no mês de maio, festa

cultural no mês de setembro, mostra cultural no mês de novembro e quinzenalmente as apresentações culturais por turma.

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Assim, podemos falar da escola como espaço de criação, onde a história acontece e

as diferenças são vivenciadas a cada dia pelos alunos, professoras e funcionários.

Alves e Garcia (2000, p. 13) confirmam isso quando diz:

Estamos dedicadas a investigar os processos de criação dos processos escolares, investigando-os no próprio processo de fazer, no seu deslizar, em sua própria história, mas considerando suas tantas e necessárias diferenças. Isto porque já aprendemos que o cotidiano escolar tem uma história falada e escrita por seus diferentes sujeitos: professoras, alunas e alunos, funcionários e funcionárias, pais e mães. São estes tantos sujeitos os que criam e recriam o cotidiano escolar a cada novo dia.

Essa escola, a cada dia, inventa novas formas de fazer o cotidiano diferente; as

professoras inventam festas e comemorações, os alunos são estimulados a inventar

teatros, danças, brincadeiras e atividades nas salas de aula para modificar a rotina.

Nesse espaço de ensinoaprendizagem, as professoras e os alunos dão o melhor de

si, mesmo quando em alguns momentos parecem desanimados, como não poderia

deixar de ser. Essas professoras e alunos se mantêm presente na escola numa

atitude de quem ainda acredita e defende a educação pública de qualidade.

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3. PISTAS DOS REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Esta investigação buscou analisar e problematizar o cotidiano dos sujeitos escolares

e o currículo por projetos vivenciados no interior da escola. Para tanto, foi preciso

me debruçar em alguns referenciais teórico-metodológicos para melhor entender e

me apropriar do que vivi e senti no cotidiano escolar.

Para entender melhor as relações estabelecidas no interior do CMEI pesquisado, as

discussões das professoras e alunos e as práticas coletivas, foi preciso elaborar “[...]

uma maneira de caminhar para me apropriar das maneiras de fazer desse cotidiano

(CERTEAU, 1994, p. 35). Foi necessário acompanhar os saberesfazeres ds

professoras e alunos, participar do que acontecia na escola: reuniões, grupo de

estudos, conversas informais, enfim, foi preciso mergulhar no cotidiano e dar

atenção às práticateoriapráticas do trabalho das professoras (ALVES, 2002).

O estar nesse cotidiano em tempo integral me permitiu, para além do conhecer o

espaço e as pessoas, sentir as dificuldades, as angústias e as alegrias desse

cotidiano, com uma atenção voltada para as práticas sociais dos homens num

espaço que se movimenta e gera outros movimentos e que potencializa os saberes

dos sujeitos através de suas maneiras de fazer esse cotidiano diferente e belo.

Portanto, o sujeito cotidiano, ordinário, como nos coloca Certeau (1994), tem

saberes pouco valorizados pela sociedade, mas que está imerso nas práticas do dia-

a-dia e nas marcas deixadas pelas invenções/criações desse sujeito.

Trata-se de um saber não sabido. Há, nas práticas, um estatuto análogo àquele que se atribui às fábulas ou aos mitos, como os dizeres de conhecimentos que não se conhecem a si mesmos. Tanto num caso como no outro, trata-se de um saber sobre os quais os sujeitos não refletem. Dele dão testemunho sem poderem apropriar-se dele. São afinal os locatários e não os proprietários do seu próprio saber-fazer. A respeito deles não se pergunta se há saber (supõe-se que deva haver), mas este é sabido apenas por outros e não por seus portadores. Tal como o dos poetas ou pintores, o saber-fazer das práticas cotidianas não seria conhecido senão pelo intérprete que o esclarece no seu espelho discursivo, mas que não o possui tampouco. Portanto, não pertence a ninguém. Fica circulando entre a inconsciência dos praticantes e a reflexão dos não-praticantes, sem pertencer a nenhum. Trata-se de um saber anônimo e referencial,

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uma condição de possibilidade das práticas técnicas ou eruditas (CERTEAU, 1994, p. 143).

Dessa forma, escolho Certeau (1994) como autor para me ajudar a entender os

movimentos dos sujeitos “fracos”, que, controlados pelo poder dos dominantes,

conseguem propor outras lógicas ou criar lógicas próprias para resistirem ao que

muitas vezes lhes são impostos. Esses sujeitos, autores na escola, fazedores de sua

prática, utilizam táticas, astúcias e artimanhas para sobreviver em um terreno

controlado ou organizado para a submissão e a opressão dos fortes sobre os fracos,

dos dominados sobre os dominantes, dos ricos sobre os pobres.

Tento entender a problemática do conhecimento através da segunda ruptura

epistemológica, proposta de Santos (2002), que discute a reaproximação entre

ciência e senso comum. A primeira ruptura separou a ciência e o senso comum e

deu ênfase ao paradigma dominante que coloca a ciência acima de tudo e nega o

que não era ciência. De acordo com a ciência moderna, o conhecimento era linear e

enfatizava-se a razão em detrimento do afetivo, desconfiava-se das evidências que

eram consideradas conhecimento vulgar e ilusão (SANTOS, 2002).

Essa primeira ruptura inaugurou um discurso hegemônico na ciência moderna e

negou o senso comum, separando o que era conhecimento verdadeiro e o que foi

estigmatizado como senso comum. Nesse momento, temos a separação entre teoria

e prática e a transformação da relação eu/outro em uma relação sujeito e objeto. Ao

separar a teoria da prática e instituir um único conhecimento válido – o

conhecimento científico – foram desqualificadas as qualidades da prática, como

irrelevantes, e a capacidade dos práticos, como menor (GARCIA, 2001).

Com a idéia da ciência moderna que separa ciência e senso comum, a escola passa

a ser um lugar de se fazer ciência, onde o conhecimento deve ser transmitido como

está no livro didático; tem que ser provado; tem que ser representado; e reproduzido

para que haja aprendizagem. Dessa forma, fica difícil aceitar outro conhecimento, se

não o proposto pela ciência. E o conhecimento cotidiano que as crianças aprendem

com seus pais e seus avós? E o conhecimento popular passado de geração em

geração?

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Todas as culturas chamadas populares, todos os saberes do povo, todas as

evidências e todos os saberes e fazeres da classe popular foram desvalorizados em

nome da ciência. A reflexão que fazemos em relação ao conhecimento científico

está de acordo com Santos (2002, p. 72-73):

O segundo grande tema de reflexão epistemológica versa mais sobre o conteúdo do conhecimento científico do que sobre a sua forma. Sendo um conhecimento mínimo que fecha as portas a muitos outros saberes sobre o mundo, o conhecimento científico moderno é um conhecimento desencantado e triste que transforma a natureza num autômato, ou, como diz Prigogine, num interlocutor terrível estúpido.

Ainda segundo Santos (2002), entendo que o rigor científico é um rigor que

quantifica, porque é fundado pela ciência, e como quantifica, acaba desqualificando,

um rigor que ao objetivar os fenômenos os degrada, os caricaturiza. Esse rigor, ao

afirmar a personalidade do cientista, destrói a natureza. E, assim, o conhecimento

ganha em rigor o que perde em riqueza, e os êxitos da intervenção tecnológica

escondem os limites da nossa compreensão do mundo, reprimindo a pergunta sobre

o valor humano de um afã científico, assim concebido.

Mesmo com os traços da modernidade presentes na escola, percebemos as

mudanças na forma de pensar e de agir, presenciamos algumas atitudes que

rompem com as formas de pensar modernas, que nos faz acreditar na possibilidade

de uma segunda ruptura epistemológica, que, aproximando ciência e senso comum,

possa dar mais valor às vozes que não são ouvidas no interior da escola.

No interior da escola, pude observar os traços da modernidade: quando existe um

distanciamento entre sujeito e objeto de conhecimento; quando se valoriza uma

única verdade; quando os currículos são lineares; quando o tempo é controlado;

quando se impõem padrões rígidos em detrimento dos comportamentos atípicos das

crianças. A própria construção do prédio e as distribuições dos espaços são alguns

resquícios deixados pela modernidade, presentes no cotidiano escolar. Mesmo com

tentativas de pensar os currículos mais flexíveis, ainda se está preso à modernidade,

pois os traços da modernidade caminham lado a lado com essas tentativas.

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As relações entre o passado e o presente estão sempre em movimento, se

entrecruzam e nos fazem refletir sobre nossas certezas, nos fazem duvidar das

certezas que temos e mais ainda, nos fazem voltar o tempo todo às idéias ditas

ultrapassadas e nos fazem criar novas idéias em cima das velhas. É por isso, talvez,

que essa complexidade de idéias na escola, o novo com o velho, que na verdade

não é mais tão velho assim, é vista e percebida na sala de aula, nas atitudes das

professoras e nas falas dos pais.

Por isso, cito Santos (2002, p. 57), quando coloca que “todo o conhecimento

científico visa constituir-se em senso comum”, e nesta fase de transição que

estamos, duvidamos do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos o

presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos, fragmentados.

Tentamos os diversos caminhos e muitas vezes não sabemos aonde vamos chegar;

arriscamos, fazemos tentativas, erramos e acertamos muitas vezes, pois “afinal se

todo conhecimento é auto-conhecimento, também todo o desconhecimento é auto-

desconhecimento” (SANTOS, 2002, p. 58).

Recorro a essas idéias na tentativa de entender as redes de conhecimentos dos

sujeitos nos cotidianos das escolas, isto é, como as professoras e alunos lidam com

o currículo por projetos, como eles arriscam, inventam e criam formas de lidar com o

cotidiano da escola, através do que Certeau (1994) chama de estratégias e táticas.

Na escola, isso fica claro quando investigamos e observamos as relações das

professoras com os alunos, da direção da escola com os professores, da secretaria

de educação com a escola, e assim por diante. Dos mais fracos para os mais

poderosos e vice-versa, vemos cenas de táticas e estratégias. São essas pistas,

esses indícios (GINZBURG, 1989) dos saberes e fazeres das professoras e alunos

no interior da escola que nos possibilitam compreender os processos pedagógicos

cotidianos resultantes das diferentes vidas entrelaçadas na escola.

Posso falar, com propriedade, das experiências do fazer na escola e de partilhar

com as professoras e alunos o cotidiano escolar, pois a escola além de ser meu

espaçotempo da pesquisa é também o local em que trabalho. Sofro junto com as

professoras, pois conheço os problemas dos alunos, de suas famílias e da

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comunidade moradora do bairro. Além disso, conheço algumas necessidades da

escola, porque sou parte dela e nela trabalho há quatro anos. Por ela me apaixonei,

passei momentos difíceis e momentos maravilhosos. Também já me emocionei nas

comemorações, nas formaturas dos alunos e nas festas de fim de ano.

Todo dia na escola tem uma novidade, cada momento na escola é único, cada

discussão e cada escolha constituem um aprendizado diferente e nos ajudam a

tecer essas redes de relações, de convivência, de saberes, fazeres e poderes

presentes o tempo todo no ambiente escolar.

Quando estou com os alunos e professoras aprendo. Aprendo o quanto esses

alunos sabem, como sabem e o que sabem. Procuro deixar que eles mostrem seus

conhecimentos – o que aprenderam, falem de si, brinquem, conversem, leiam, tento

envolvê-los para ficarem à vontade. Muitas coisas não consigo perceber, pois não é

possível ver tudo ao mesmo tempo.

Nas reuniões ou na sala das professoras, até mesmo nos corredores da escola, na

porta da sala de aula, quando converso com as professoras sobre a aprendizagem

dos alunos, eles me fazem enxergar coisas que até então não tinha percebido,

coisas corriqueiras, que não dei conta de compreender. E aí fui percebendo que não

sei tudo, que cada um sabe um pouco e são esses saberes que me ajudarão a tecer

essa pesquisa, saberes entrelaçados, experiências compartilhadas, o fazer junto, e

para isso “é necessário dar um mergulhado com todos os sentidos no que

desejamos estudar” (ALVES; GARCIA, 2002, p. 259).

O cotidiano nos traz surpresas. A cada dia há uma situação desconhecida e

imprevista, que coloca em discussão as verdades absolutas construídas sobre a

escola, as professoras e os alunos. “Muito se fala sobre escola, de fora da escola,

de longe da escola, muitas vezes a partir de um absoluto desconhecimento em

relação ao que acontece dentro da escola a cada dia” (ALVES; GARCIA, 2000, p.

12).

É preciso estar na escola: sentir o cheiro da escola, os movimentos, ouvir as

professoras e os alunos, compartilhar de suas angústias e alegrias. Para isso, é

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preciso ter esse sentimento de mundo que nos fala Alves e Garcia (2002), “sentir o

mundo e não só olhá-lo, soberbamente, do alto ou de longe”. E ainda:

Buscar entender, de maneira diferente do aprendido (que já sabemos não dar conta do que buscamos), as atividades do cotidiano escolar ou do cotidiano de modo geral, exige que estejamos dispostos/as a ver além daquilo que outros já viram e muito mais: que sejamos capazes de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade, captando sutilezas sonoras, sentindo a variedade de sabores, tocando coisas e pessoas e nos deixando tocar por elas, cheirando os cheiros que estão em cada ponto de nosso caminho diário e aprendendo a ler o corpo, este desconhecido que tantos sinais incompreensíveis nos dá (ALVES; GARCIA, 2002, p. 261).

As professoras me ajudam a sentir/vivenciar os pormenores e as coisas belas

realizadas por seus alunos no dia-a-dia da escola, mesmo não compreendendo e

resistindo aos questionamentos que faço em relação à não-aprendizagem dos

alunos. As professoras me dão pistas e revelam fatos que possibilitam irmos mais

fundo nos interesses dos alunos e alunas vindos das classes populares.

Nessa busca de desvelar as diferentes maneiras de como o cotidiano se mostra e

vem sendo tecido, encontramos pessoas capazes de nos desafiar, que trazem

sempre cenas do cotidiano, conhecimentos produzidos na prática e argumentos tão

relevantes sobre os alunos que nos deixam sem chão. Como

professoraspesquisadores elas nunca estão satisfeitas com a escola e com os

alunos, exigem cada vez mais dos alunos e cobram da escola mais compromisso.

São professoras comprometidos com a aprendizagem de seus alunos e não se

deixam levar pela política de resistência do modelo hegemônico de pensar e tratar a

educação pública. Professoras que se envolvem com os problemas dos alunos, com

suas famílias, com a situação do bairro e da escola e tentam buscar soluções para

dar mais vida à escola.

Nesta pesquisa, uso relatos das imagens que tenho da escola, porque estão

entrelaçadas com a minha experiência de educadora, com aquilo em que acredito e

defendo, com as quais me envolvo e luto, e também com o que sinto e percebo do

cotidiano escolar que faz parte de minha vida, portanto do meu cotidiano também.

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Escolhi esta escola porque me identifico com ela, porque sei dos anseios das

professoras e porque conheço os alunos e trabalho diretamente com os seus

saberes, tentando mostrar o que sabem e o que ainda podem vir a saber se

acreditarmos em suas potencialidades.

A partir dos estudos de alguns autores e dialogando com eles, pretendo tecer um

trabalho que de pistas dos saberesfazeres dos sujeitos praticantes. Escolhi

caminhos que possam me apontar os conhecimentos que estão presentes e

emaranhados nos relatos dos atores da escola. A partir de estudos e pesquisas,

tentarei entender os espaços cotidianos, compreendendo que os conhecimentos aí

produzidos resultam das relações compartilhadas.

3.1 Pesquisa no/do/com o cotidiano

Para falar desse espaço efêmero que é a escola, escolhi a pesquisa dos/nos/com os

cotidianos, pois estou nesse espaço e sou parte dele. Na verdade, posso afirmar

que também sou sujeito da pesquisa, por estar na escola, por ser pedagoga da

escola, conviver, sentir e viver esse cotidiano como sujeito encarnado, de acordo

com Najmanovich (2001). Vejo esse cotidiano, como Certeau (1994): um lugar capaz

de nos revelar possibilidades e descobertas do novo, espaço onde as

transformações realmente acontecem. Nesse sentido, ao falar da escola também

falo de mim. Ao trazer para a discussão os projetos, falo de minhas impressões,

crenças e valores em relação à escola, aos sujeitos, ao currículo e a tudo o que

pulsa e que move esse lugar complexo (MORIN, 2002), porque tudo é tecido junto.

Quando me debruço na pesquisa, começo a entender como é possível e como está

presente para mim a questão dessa complexidade, desse sujeito que tenta

desconstruir a idéia de sujeito cartesiano e assumir a idéia de sujeito complexo

discutida por Najmanovich (2001). O que vem a ser esse sujeito complexo?

Esse sujeito complexo vê a si mesmo construir o mundo, se vê unido ao mundo, pertencente a ele e com autonomia relativa, inseparável e ao mesmo tempo distinguível. O sujeito complexo ocupa um lugar paradoxal: é ao mesmo tempo construído e construtor (NAJMANOVICH, 2001, p. 94).

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Vivo um momento de encontro e descoberta. Às vezes tenho a sensação de que

preciso desvendar algo na escola que está escondido para que minha pesquisa

tenha validade, quando na verdade a pesquisa é um pouco daquilo que sou como

sujeito, como profissional, como mulher e como companheira. A pesquisa não pode

ser voltada apenas para a análise dos dados, mas deve se constitui na relação do

pesquisador com o tema pesquisado.

Assim, me assumo como esse sujeito encarnado, complexo que é co-artífice do

mundo em que vivo, “um mundo que não é mera subjetividade, nem pura

objetividade”. Um mundo atravessado por emoções e criatividade, possibilidades

(NAJMANOVICH, 2001, p. 95). E a escola como é esse mundo também tem suas

limitações e atravessamentos.

Nos estudos dos/nos/com os cotidianos, são necessários sentir o mundo, buscar

entender as lógicas dos cotidianos e mergulhar neles; ver além daquilo que os

outros já viram. Dessa forma, entender os cotidianos só é possível se forem

vivenciados, participados, partilhados pelo pesquisador, ou seja, é preciso viver com

os cotidianos, conviver com suas experiências, buscar estar atento ao que se passa.

Diante disso, uso Ferraço (2003) para entender um pouco a lógica das pesquisas

dos/nos/com os cotidianos.

Assim, em nossos estudos “com” os cotidianos das escolas há sempre uma busca por nós mesmos. Apesar de pretendermos, nesses estudos, explicar os “outros”, no fundo estamos nos explicando. Buscamos nos entender fazendo de conta que estamos entendendo os outros. Mas nós somos também esses outros e outros “outros” (FERRAÇO, 2003, p. 160).

A pesquisa dos/nos/com os cotidianos é sempre uma busca que parte de uma

inquietação de quem vive os problemas e os dilemas dos cotidianos das escolas

públicas e tenta entender o que acontece nesses cotidianos que traz marcas das

histórias de alunos e professoras.

Não estou interessada em pesquisar sobre o cotidiano como se fosse algo

controlável, e como se objeto e sujeito fossem separados. Para mim, não existe

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essa separação, porque falo em processos híbridos, nômades, rizomáticos e plurais.

Portanto, as pesquisas com os cotidianos expressam o entremeado das relações

das redes cotidianas nos diferentes espaçostempos vividos pelos sujeitos cotidianos.

Acontecem nos processos de tessitura e contaminação dessas redes (FERRAÇO,

2003).

Nos Estudos com o cotidiano a complexidade só pode ser apreendida por um processo de dupla captura: a complexidade horizontal da vida social deve ser reconhecida e descrita na contextualização do vivido, que está intimamente implicada na complexidade vertical da vida social e na coexistência de relações sociais datadas em diferentes momentos históricos. Em Lefebvre, no vivido, os diferentes modos de produção de significados e interações e a experiência concreta das contradições são simultâneos e coexistem, o que possibilita a emergência dos momentos de criação que transformam o impossível no possível imediato. Na vida cotidiana o tempo é o tempo do possível, que se manifesta como impossível; é na e pela prática cotidiana do homem comum que se produzem as condições de (e se efetivam, muitas vezes de modo fragmentado e pontual, mas nem por isso menos importante) transformação do impossível no possível (PÉREZ; AZEVEDO, 2008, p. 39).

Outro ponto fundamental das pesquisas com os cotidianos está ligado às teorias. É

preciso conhecê-las e compreendê-las para poder negá-las, se necessário for;

contrapor o que está dado, pronto e acabado, para organizar os argumentos de

apoio à vida cotidiana e o universo da pesquisa.

É preciso ter um olhar voltado para o que acontece no cotidiano e perceber nos

detalhes (GINSBURG, 1989) e pormenores do que é contado, expresso pelos atores

da pesquisa, fotografar o que emociona, ver a criação e não apenas a repetição,

saber incorporar as diferenças, ver as astúcias das professoras e alunos, são

algumas das formas de pesquisar o cotidiano (ALVES; GARCIA, 2002).

Para Alves e Garcia (2002) é necessário ir além do que foi aprendido na

modernidade e mergulharmos no que desejamos pesquisar. Diante disso, destacam

alguns aspectos das pesquisas dos/nos/com os cotidianos.

O primeiro aspecto se refere ao modo de ver a realidade, ter um olhar voltado para

os detalhes do cotidiano, Alves (2001) chama esse movimento, a partir de

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Drummond, de “sentimento de mundo”. Para tanto é preciso incorporar o lugar da

pesquisa como espaçotempo de criação de conhecimento válido e vital para os

seres humanos, e isso exige do pesquisador e da pesquisadora que se ponha a

sentir o mundo e não só a olhá-lo do alto ou de longe.

Desta maneira, ao contrário da formação aprendida e desenvolvida em tantas pesquisas do campo educacional que, de maneira muito freqüente, têm assumido uma forma de pensar que vem negando o cotidiano como espaçotempo de saber e criação, vamos reafirmá-lo como sendo de prazer, inteligência, imaginação, memória e solidariedade, precisando ser entendido, também e sobretudo, como espaço-tempo de grande diversidade e de conhecimentos até então desconhecidos (ALVES; GARCIA, 2002, p. 260).

Nessa pesquisa, assumo esse aspecto, pois procuro falar do cotidiano vivido e dos

saberesfazeres dos alunos e alunas que são atores desse cotidiano, de suas

criações e invenções que se dão a cada dia na escola e na sala de aula. Tento sentir

com eles e elas as emoções: alegria, raiva, tristeza, angústia, sofrimento, paixão,

porque partilho com Ferraço (2003) que o cotidiano só é possível de ser entendido

se for vivenciado, participado e partilhado com os sujeitos que vivem e fazem esse

cotidiano acontecer, viver o cotidiano é conviver com suas experiências.

Sentir o mundo é trabalhar as astúcias, entender as maneiras como são usadas,

ouvir o outro no que o outro diz; ver e compreender o modo de fazer, usar e viver do

outro. Sentir o mundo é olhar além do que se vê e do que aprendemos a trabalhar.

Sentir o mundo é combater valores e preconceitos (ALVES; GARCIA, 2002).

O segundo movimento diz respeito a compreender as teorias, os conceitos, os

modelos, as categorias criadas e desenvolvidas pela ciência moderna como limites

ao que precisa ser tecido.

Trabalhar com o cotidiano e se preocupar como aí se tecem em redes ou pipocam como rizomas os conhecimentos, significa, ao contrário, escolher entre as várias teorias à disposição e muitas vezes usar várias, rompendo as fronteiras e transversalizando as teorias que no momento se mostram mais pertinentes, bem como entendê-las não como apoio e verdade, mas sobretudo como limites, pois permitem ir só até um ponto, que não havia sido atingido, até aqui pelo menos, afirmando a criatividade no cotidiano. Isso exige um processo de negação das próprias teorias e dos próprios limites

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anunciados, assumindo-os, no início mesmo do processo e não ao final, quando outra verdade as/os substituir. Ou seja, essas teorias precisam ser percebidas, desde o começo do trabalho, como meras hipóteses a serem possivelmente negadas, se não por nós, por outros ou outras que depois de nós virão, para nosso desespero, com a bagagem sobre teorias e as práticas de pesquisa que fomos/forem pela vida acumulado (ALVES; GARCIA, 2002, p. 265).

Assim, precisamos “virar de ponta a cabeça” para compreendermos as teorias como

limites ou meras hipóteses que podem ser negadas, e criar uma nova organização

do pensamento e novos processos a partir daquelas lógicas até então vistas como

inferiores ou pouco lógicas (ALVES; GARCIA, 2002).

Precisamos ser capazes de nos revoltarmos com o que está pronto e acabado, para

organizarmos os argumentos de apoio à vida cotidiana e perceber os

acontecimentos múltiplos do cotidiano em que vivemos. Teremos também que

enfrentar a questão da possibilidade de iniciar um trabalho dos/nos/com os

cotidianos, para pensar aí como seus sujeitos tecem conhecimentos, sem as

categorias, os conceitos, as noções e as idéias prévias, aos quais fomos

acostumados na academia (ALVES; GARCIA, 2002).

O terceiro aspecto ou movimento está ligado à formação do pensamento dominante,

que exige ver para crer, e isso levou à dificuldade de aceitar os múltiplos sentidos,

os múltiplos caminhos, os múltiplos aspectos, as múltiplas regras, as múltiplas fontes

que nos mostram o cotidiano (ALVES; GARCIA, 2002).

Assim, ao assumirmos a pesquisa com o cotidiano, precisamos buscar em múltiplas

fontes, pistas das tessituras dos saberes, fazeres e poderes. Dessa forma, “beber

em todas as fontes” é essencial quando pretendemos realizar esse tipo de pesquisa.

Para quem vai fazer uma pesquisa nos/dos/com os cotidianos é preciso arriscar

caminhos, seguir atalhos, e com os alunos e alunas, professores e professoras

entender os fazeres e saberes desses sujeitos.

Isso implica ampliar a complexidade para além do que pode ser grupado e contado.

O que vai nos interessar é aquilo que é contado pela memória (pela voz que

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enuncia), o que é documentado e guardado (cadernos, provas, exercícios, registros,

relatórios, documentos da escola), tantas vezes jogado fora porque não é

considerado importante; a fotografia que emociona quando olhada e faz lembrar

cenas que já se passaram (ALVES; GARCIA, 2002).

Esse olhar adiante do colocado, do instituído, nos permite entender, a partir das

diferenças, as expressões individuais dos sujeitos cotidianos. Seus modos de agir,

de falar, de se vestir, de andar se mostram a cada atitude, e é possível ver também

suas astúcias, artimanhas para lidarem com a pressão dos controladores desse

cotidiano. Nesse sentido, a observação participante e as conversas nos ajudarão,

pois com elas poderemos interagir com os sujeitos do processo.

Assim, procuro olhar/ver/sentir/tocar as diferentes expressões surgidas nas

inumeráveis ações dos alunos e alunas, professores e professoras que se mostram

e se traduzem em suas tantas maneiras de fazer (ALVES, 2001).

O quarto movimento, “narrar a vida e literaturizar a ciência”, coloca a possibilidade

de reaproximação entre ciência e arte. E com essa reaproximação, procuramos

outras imagens que expressem as múltiplas linguagens do cotidiano: sons, cheiros,

sabores. Outras maneiras de conceber a realidade que não a escrita, maneiras que

possa romper com,

[..] a linearidade de exposição, mas que teça uma rede de múltiplos e diferentes fios; aquela que pergunte mais, que dê respostas; aquela que duvide no próprio ato de afirmar, que diga e desdiga, que construa uma outra rede de comunicação, que indique, talvez, uma escritafala, uma falaescrita ou uma falaescritafala” (ALVES; GARCIA, 2002, p. 273).

Difícil conceber outra escritura, pois nos últimos três séculos, aprender a escrever

define a iniciação por excelência em uma sociedade capitalista e conquistadora.

Certeau (1994), então, sugere um discurso em histórias, uma narrativização das

práticas, usando as conversas, as histórias contadas pelos sujeitos ordinários

(ALVES; GARCIA, 2002).

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Alves e Garcia (2002, p. 275) nos dão pistas sobre o uso de narrativas.

É preciso, pois, que incorporemos a idéia que ao dizer uma história, somos narradores praticantes traçando/trançando as redes dos múltiplos relatos que chegaram/chegam até nós, neles inserindo, sempre, o fio de nosso modo próprio de contar. Exercemos, assim, a arte de contar histórias, tão importante para quem vive o cotidiano do aprenderensinar. Buscamos acrescentar ao grande prazer de contar histórias, o também prazeroso ato de pertinência do que é cientifico. É possível? Bem, se outros e outras fizeram antes de nós e continuam fazendo, por que não?

Os cotidianos escolares nos revelam inúmeras possibilidades, e, por isso, será

necessário mergulharmos em seu interior, buscando entender o que se passa com

os protagonistas dessa história em que a escola é o lugar central de nossa análise.

Escola como espaço (CERTEAU, 1994) complexo e emaranhado de elementos que

se articulam formando redes de saberes, fazeres e poderes. Escola como espaço

utópico e emancipatório, escola onde as táticas, os improvisos são constantes.

Escola espaço de coletividade, de vida, de fazeres, saberes e poderes.

São os sujeitos que praticam esse espaço que pretendo investigar, e, em particular,

a sala de aula, onde a teoria se atualiza, como nos fala Alves e Garcia (2000, p. 11):

Na sala de aula a teoria se atualiza, algumas vezes sendo confirmada, outras vezes não dando conta do que acontece e provocando a busca e criação de novas explicações teóricas e de novas soluções para o que acontece entre sujeitos empenhados em ensinar e aprender.

Nenhuma teoria é tão complexa ou completa a ponto de dar conta do que acontece

na sala de aula, por isso não dá conta de responder aos impasses diários e

cotidianos. Dessa forma, entendo que para falar da escola é preciso viver esse

cotidiano; precisamos fazer parte dele para entendermos o que se passa em seu

interior. Seria impossível, nos diria Certeau (1994, p. 135), “fazer uma reflexão

teórica se estivermos distante de seu lugar, de maneira que tenha de sair para

analisá-las”. Ou seja, a reflexão teórica não pode estar longe da prática, da vivência

e da convivência diária com as pessoas que fazem esse cotidiano existir.

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Ainda em Certeau (1994) será de grande valia a discussão acerca das táticas e das

estratégias. Nesse sentido, Certeau (1994, p. 99) diferencia esses dois conceitos:

Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e seu a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.).

Estratégicas, portanto, são as ações e concepções próprias de um poder instituído,

na gestão de suas relações com o seu “outro”, os sujeitos reais, a princípio

submetidos a este poder, mas potencialmente ameaçadores em suas ações

instituintes. As estratégias são atitudes de poder referentes a quem detém certo

poder sobre o outro; essas atitudes são pensadas, programadas com a intenção de

reafirmar o poder dos fortes sobre os fracos.

Com relação às táticas, Certeau (1994, p. 100-101) explica que são as ações

improvisadas pelo sujeito pela ausência de um poder.

A tática é movimento dentro do campo de ação do inimigo, como dizia von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ocasiões e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Criar ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia.

As táticas são, portanto, procedimentos que valem pela pertinência, pela insistência;

são circunstâncias que se dão num instante preciso e transformam em situação

favorável aquilo que parecia desfavorável. As táticas acontecem na rapidez de

movimentos que mudam a organização do espaço (CERTEAU, 1994).

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Na perspectiva de Certeau (1994), a visão e confiança no outro é sempre otimista,

como nos revela as palavras de Giard apud Certeau (1994, p. 18-20),

Em Michel de Certeau são sempre perceptíveis um elã otimista, uma generosidade da inteligência e uma confiança depositada no outro, de sorte que nenhuma situação lhe parece a priori fixa ou desesperadora. Dir-se-ia que, sob a realidade maciça dos poderes e das instituições e sem alimentar ilusões quanto a seu funcionamento, Certeau sempre discerne um movimento [...] de micro-resistências, as quais fundam por sua vez microliberdades, mobilizam recursos insuspeitos, e assim deslocam as fronteiras verdadeiras da dominação dos poderes sobre a multidão anônima. Certeau fala muitas vezes desta inversão e subversão pelos mais fracos. [Essa postura] se deve a uma convicção ética e política, alimenta-se de uma sensibilidade estética que se exprime em Certeau através da constante capacidade de se maravilhar. [...] Se Certeau vê por toda a parte essas maravilhas, é porque se acha preparado para vê-las. [...] Certeau resume sua posição em uma tirada que se deve levar sério.

A visão otimista da escola, entendendo-a como lugar de invenção, permite voltar

nossa atenção para as maneiras de fazer cotidianas e as práticas dos sujeitos,

atores desse cotidiano, e cito Certeau (1994, p. 41) para confirmar essa análise:

Essas maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural. (...) Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou preparar as refeições etc.) são do tipo táticas. E também, de modo mais geral, uma grande parte das maneiras de fazer: vitórias do fraco sobre o mais forte (os poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem etc.), pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias de caçadores, mobilidades da mão-de-obra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos quanto bélicos.

A análise do cotidiano exige um olhar diferente, um olhar mais investigativo, pois

precisamos buscar problematizar e compreender a realidade como ela se apresenta.

“A teoria estudada para a realização da pesquisa deve ajudar a olhar, a ver, a

indagar, a interpretar e a lidar com a complexidade inerente à realidade” (SAMPAIO,

2003, p. 25).

Entretanto, como nos adverte Certeau (1994), sempre enfrentamos limitações e

dificuldades nas análises da cultura ordinária dos sujeitos praticantes do cotidiano.

Para o autor (1994, p. 341-342),

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Conhecemos mal os tipos de operações em jogo nas práticas ordinárias, seus registros e suas combinações porque nossos instrumentos de análise, de modelização e de formalização foram constituídos para outros objetos e com outros objetivos. O essencial do trabalho de análise que deveria ser feito deverá inscrever-se na análise combinatória sutil, de tipos de operações e de registros, que coloca em cena e em ação um fazer-com, aqui e agora, que é um ato singular ligado a uma situação, circunstâncias e atores particulares [...]. Nossas categorias de saber ainda são muito rústicas e nossos modelos de análise por demais elaborados para permitir-nos imaginar a incrível abundância inventiva das práticas cotidianas. É lastimável constatá-lo: quanto nos falta ainda compreender dos inúmeros artifícios dos “obscuros heróis” do efêmero, andarilhos da cidade, moradores dos bairros, leitores e sonhadores, pessoas obscuras das cozinhas. Como tudo isso é admirável.

Para lidarmos com os dados que sinalizam a interpretação e compreensão da

realidade da escola, dos alunos e professoras, o paradigma indiciário (GINZBURG,

1989) se mostra o mais adequado, pois ele nos dá pistas, nos mostra sintomas e

nos remete a indícios quase imperceptíveis aos nossos olhos. Olhos dominantes,

repressores, capitalistas, indiferentes; olhos que julgam o tempo todo, que só

enxergam o fracasso, os erros e a repetição.

Esse paradigma indiciário do qual falamos é defendido por Ginzburg (1989) e

contribui de maneira efetiva na pesquisa, que tem como foco principal a análise do

cotidiano, pois ele nos dá pistas, talvez infindáveis, que permitem buscar entender

uma realidade profunda e inatingível a olhos nus (GINZBURG, 1989).

De acordo com Ginzburg (1989, p. 152),

O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente. [...] Por outro lado, se abandona o âmbito dos mitos e hipóteses pelo da história documentada, fica-se impressionado com as inegáveis analogias entre o paradigma venatório que delineamos e o paradigma implícito nos textos divinatórios mesopotâmicos [...]. Ambos pressupõem o minucioso reconhecimento de uma realidade talvez ínfima, para descobrir pistas de eventos não diretamente experimentáveis pelo observador.

Em minha pesquisa, esse paradigma será de grande valia, pois tenho como objetivo

investigar os saberes cotidianos dos sujeitos, o que pensam, o que vivem em

relação ao que chamo de currículo por projetos, as hipóteses que levantam sobre o

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mundo e o conhecimento tecido em sala de aula, e para isso, será preciso observar

suas produções na escola e suas vivências fora dela para encontrar pistas, indícios

que aponte seu sucesso. Pretendo estudar os sujeitos e os usos que fazem dos

projetos, com “uma atitude orientada para a análise de casos individuais,

reconstruíveis somente através de pistas, sintomas, indícios” (GINZBURG, 1989, p.

154).

Tudo o que foi dito volta nosso olhar para o cotidiano. É preciso fazer um recorte do

cotidiano a fim de tentar identificar os conhecimentos cotidianos e mergulhar

inteiramente em outras lógicas que ajudem na apreensão e compreensão do

cotidiano como espaço de vida. Entretanto, de acordo com Garcia (2003, p. 12),

Isso não significa desvalorizar a teoria. Muito ao contrário. Buscamos na boa teoria melhores explicações para a complexidade da realidade com a qual nos deparamos. Não apenas para compreendê-la, mas para podermos criar coletivamente com a teoria estratégias de intervenção transformadora numa perspectiva emancipatória. A prática, para nós, é portanto o critério de verdade: é ela que convalida a teoria. Assim, partimos da prática, vamos à teoria a fim de a compreendermos e à prática retornamos com a teoria ressignificada, atualizada, recriada, dela nos valendo para melhor interferirmos na prática.

3.2 Currículo como rede de saberes, fazeres e poderes

Esse olhar investigativo no cotidiano escolar será necessário para melhor

compreender como se articula o currículo em rede no interior da escola. Para tanto é

necessário fazer, junto com Lopes e Macedo (2002), uma retrospectiva que nos

aponte como as discussões do conhecimento em rede ganharam destaque.

No Rio de Janeiro, a partir da metade da década de 90, coordenados por Nilda Alves

e Regina Leite Garcia, cresceram os estudos com base na abordagem do cotidiano

e os estudos sobre currículo em rede, que dialogam com autores como Certeau,

Lefebvre, Morin, Guattari e Deleuze e, nos últimos anos com o autor português

Boaventura de Sousa Santos (LOPES; MACEDO, 2002).

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Essa abordagem vem com a idéia de superação do enfoque disciplinar no espaço

escolar e trata os eixos curriculares como espaços coletivos de discussão e ação

que atravessariam cada disciplina do currículo, viabilizando propostas coletivas.

Tais eixos eram vistos como criadores de campos de ação que permitiriam recuperar o conhecimento em sua totalidade. A análise dos eixos propostos para a formação de professores relação escola-sociedade, a construção do conhecimento, a escola pública, o cotidiano da escola e da sala de aula e o discurso das culturas vividas – traz novamente à baila a centralidade da prática social e a existência de vários espaços de formação articulados (LOPES; MACEDO, 2002, p. 33).

Alves e Garcia apresentam na reunião da Associação Nacional de Pós-graduação e

Pesquisa em Educação (ANPED) de 1992, um projeto de reformulação do curso de

Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF), em que o conhecimento

pudesse ser entendido como prático, social e histórico, negando a ordenação, a

linearidade e a hierarquização do conhecimento, defendendo a idéia de redes

referenciadas na prática social. Ao desenvolver teoricamente as bases do curso de formação de professores de Angra dos Reis, as autoras constroem a argumentação central, que passam a defender, de que os conhecimentos são tecidos em redes que correspondem a contextos cotidianos variados (LOPES; MACEDO, 2002, p. 35).

Deleuze e Guattari (1972) e Lefebvre (1983) questionam a disciplinarização do

conhecimento, expressa na metáfora da árvore de saberes, e que passa a ser

substituída pelo entendimento de que o conhecimento é tecido rizomaticamente

(LOPES; MACEDO, 2002).

O conhecimento na grafia da árvore pressupõe um caminho obrigatório, único, linear

e hierarquizado, e é esse o modelo de construção do conhecimento que se pode

pensar no campo do currículo. “A frondosa árvore que representa os saberes

apresenta-os de forma disciplinar: fragmentados (os galhos) e hierarquizados (os

galhos ramificam-se e não se comunicam entre si, a não ser que passe pelo tronco)”

(GALLO, 2002, p. 30).

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A metáfora do rizoma foi usada porque ela explica as redes de conhecimentos e

como elas são tecidas no cotidiano. As redes são como rizomas: rompem com a

hierarquia estanque porque possuem linhas de fuga e, portanto, múltiplas

possibilidades de conexão, aproximação, cortes e percepção. A incorporação das idéias de redes de conhecimento e de tessitura de conhecimentos em rede torna-se fundamental em face da multiplicidade e da complexidade de relações nas quais estamos permanentemente envolvidos e nas quais criamos conhecimentos e os tecendo com os conhecimentos de outros seres humanos. Nesse sentido, a tessitura de uma compreensão teórica do currículo envolve considerar os espaços cotidianos em que esses currículos acontecem, valorizando o fazer curricular como uma produção e sentido (LOPES; MACEDO, 2002, p. 36 - 37).

Os estudos do cotidiano escolar muito contribuíram para o campo do currículo e

“para a ampliação do nosso entendimento a respeito de alguns processos sociais

que foram negligenciados pelo fazer científico na modernidade” (ALVES; OLIVEIRA,

2002, p. 84). A partir dos estudos do cotidiano, começa-se a entender que o

pensamento dominante da modernidade precisa ser discutido e desconstruido.

Privilegiar elementos controláveis e quantificáveis da realidade, gerenciar e

universalizar idéias reduz a escola, as professoras e os alunos e coloca tudo no

mesmo bolo, numa balança onde tudo pode ser medido e controlado. Assim, os

estudos do cotidiano vão buscar recuperar a importância para redefinir o próprio

cotidiano (ALVES; OLIVEIRA, 2002).

Para tanto, é necessário entender o cotidiano para além da repetição, da norma, da

obviedade, como se pensou na modernidade, e ver nele a imprevisibilidade, a

complexidade (MORIN, 1996) e a diferenciação (SANTOS, 2002). Dar um mergulho

no cotidiano escolar “[...] aceitando a impossibilidade de obtermos ‘dados relevantes

gerais’ em meio à realidade caótica e à necessidade de considerar a relevância de

todos os seus elementos constitutivos, em suas infinitas relações e conseqüências”

(ALVES e OLIVEIRA, 2002, p. 89).

Mergulhar no cotidiano escolar para entender as práticas curriculares só é possível

se compreendermos

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[...] como os professores e professoras agem cotidianamente na busca de levar os seus alunos à aprendizagem, que elementos criam a partir de suas redes de saberes, de práticas e de subjetividades, como criam os seus fazeres e desenvolvem suas práticas em função do que são. Essa é, talvez, a questão central hoje dos estudos curriculares voltados para o cotidiano (ALVES; OLIVEIRA, 2002, p. 94).

Isso implica que as práticas cotidianas são tecidas pelas professoras a partir de suas

convicções e crenças, possibilidades e limites, regulação e emancipação. A partir do

que sabem e do que acreditam, definem a dinâmica da turma, os saberes dos

alunos e o dia-a-dia de trabalho. Junto com Alves e Oliveira (2002, p. 97) entendo

“[...] as práticas curriculares como multicoloridas, pois suas tonalidades vão

depender sempre das possibilidades daqueles que as fazem e das circunstâncias

nas quais estão envolvidos”.

O currículo escolar está para além dos conteúdos, que, muitas vezes, vem do órgão

central para a escola, ou que são definidos no início do ano pela escola. O currículo

escolar inclui práticas emancipatórias considerando a complexidade do que é vivido

na escola, das redes de saberesfazeres que estão situadas fora dos muros

escolares e que se fazem presentes nos cotidianos escolares (ALVES; OLIVEIRA,

2002).

Portanto, pensar em um currículo como redes de saberes, fazeres e poderes

cotidianos é romper com as distinções feitas entre currículo vivido ou praticado e

currículo prescrito. Trago a idéia de pensar em currículos a partir das redes de

saberes, fazeres e poderes cotidianos em que o currículo é tudo aquilo que vivemos

nas escolas é o que pulsa, o que nos toca e nos faz sentir as dores e prazeres de

ser e estar na escola todos os dias.

Entendo, a partir de Oliveira (2005), Ferraço (2005) e Alves (2002), que o currículo

constitui além dos documentos da escola, dos projetos, dos planos, do livro didático,

currículo então passa a ser tudo o que se passa no chão das escolas. Quando me

refiro a tudo, venho discutir aquilo que é vivido e sentido pelas professoras e alunos

e que, de certa forma está colocado seja em forma de documentos escritos, ou em

falas, ou em ações concretas, ou até em sentimentos explícitos pelos atores do

cotidiano.

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Sabemos que em nossas escolas temos relações de poder definidas e ora somos

sujeitos que burlamos as regras instituídas, ora somos sujeitos que impomos essas

regras e ora somos seguidores dessas regras. Nessa relação de poder, estão

colocadas negociações, desejos, criações e invenções dos sujeitos cotidianos que

atravessam a escola e nos fazem refletir sobre quem organiza a escola, quem

decide pela escola, o que pensam sobre a escola, que impressões têm sobre a

escola, o conhecimento, a vida, o ser criança, a infância e outras.

Alves e Garcia (2002) colocam essas idéias como processos dominantes que

permitem organizar a escola e o currículo. Citam quatro processos: a pedagogização

do conhecimento, a grupalização, a hierarquização e a centralização. Esses

processos nos dão pistas para falarmos do currículo na escola.

A pedagogização do conhecimento está ligada aos conteúdos pedagógicos que a

escola entende como importantes para a aprendizagem dos alunos. Estes

conteúdos são selecionados e escolhidos a partir de critérios que definem o que é

mais conveniente ou não para ser ensinado. Além da seleção, existe a fragmentação

dos saberes em disciplinas e a normalização de seqüências do que se deve

aprender primeiro e o que se deve aprender depois. Dessa forma, a escola acaba

por matar a curiosidade dos alunos ao tentar controlar os corpos e a mente,

acontecendo assim, o que Foucault chama de exercício de poder e controle (ALVES;

GARCIA, 2002).

A grupalização da sociedade traz a idéia da sociedade dividida em grupos. Com o

objetivo de ordená-la, cria grupos genéricos sempre ditos no singular: o operário, o

professor, o aluno, para dar a idéia geral de somas e divisões que permitem chegar

a médias. Assim, é preciso desligar cada indivíduo dos seus múltiplos contextos

cotidianos reais e diversos e criar outro espaçotempo abstrato. O espaço escolar foi

assim pensado, surgiram as turmas, as séries, os pelotões, as avaliações.

Outro processo recorrente é a hierarquização, que seleciona os conteúdos conforme

sua importância, ou seja, os que precisam ser aprendidos e aqueles que não são tão

importantes assim, e não precisam ser aprendidos.

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A centralização está ligada ao que as forças dominantes capitalistas proclamam: a

diminuição do tamanho do Estado, apresentado no projeto liberal como única

alternativa. Com esse discurso a importância dada a escola está ligada aos

currículos nacionais com diversos nomes e aqui cito os Parâmetros Curriculares

Nacionais (PCNs) que devem nortear todo trabalho pedagógico.

O currículo pensado assim não dá conta de entender o cotidiano escolar; o que se

passa na relação professor, aluno e conhecimento. É preciso assumir um currículo

para além do instituído; um currículo que se dá nas práticas vividas e compartilhadas

pelos sujeitos.

Ferraço (2005, p. 31) nos mostra algumas pistas de como pensarmos em um

currículo que parta do vivido. Ele nos fala que assumir o currículo realizado implica

em considerar as marcas dos sujeitos praticantes.

Queiramos ou não, as redes cotidianas estão atravessadas por diferentes contextos de vida e valores, o que, a nosso ver, proporciona a dimensão de complexidade para a educação que defendemos, ou seja, complexo por ser tecido junto no cotidiano.

O currículo, dessa forma, não pode negar a alteridade do outro (CARVALHO, 2005).

Assim é preciso considerar a diversidade de possibilidades, potencialidades que se

colocam no cotidiano da escola para o conhecimento e para o currículo. A

diversidade de possibilidades indica que é preciso tirar o foco dos indivíduos

isolados e pensar nas redes tecidas coletivamente (FERRAÇO, 2005).

Assumir o currículo realizado implica em considerar os conhecimentos dos alunos,

sua história de vida, pois a escola como organização complexa, heterogênea,

multidimensional apresenta um universo rico em criatividade, novidades,

improvisação. Na escola, os conhecimentos se processam nas/através/com redes e

por tantas outras das quais esses sujeitos possam participar (FERRAÇO, 2005).

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O cotidiano escolar é um lugar de negociações, traduções, mímicas, performances9,

o currículo é inventado o tempo todo pelas professoras e alunos e vivido no

espaçotempo da escola.

Com isso, qualquer pretensão de engessar sentidos ou de estabelecer trilhos de pensamentos a serem seguidos é, sumariamente e todo tempo, violada pelos movimentos das redes cotidianas de saberesfazeres, que produzem danças e deslizamentos de significados impossíveis de serem previstos ou controlados (FERRAÇO, 2005, p. 17).

Tentamos entender o currículo como tudo o que atravessa a escola, as vivências

dos sujeitos praticantes – professores e alunos, a comunidade, as conversas, as

Tecnologias de Comunicação e Informação (TCI), a história de cada sujeito, a

violência, o medo, os sonhos, a moda, as ideologias, as políticas, a religião, enfim, a

escola como espaço praticado (CERTEAU, 1994).

A escola como esse espaço praticado constitui-se espaço de formação continuada e

autoformação por meio dos processos de reflexão: formação continuada acontece

através de interação com colegas, obras e autores da área ou de cursos formais.

Autoformação acontece por meio de seus próprios processos de reflexão. A

formação se dá, também, no espaço de culturas vividas, experiência particular,

história de vida realidade local e saberes (OLIVEIRA, 2005).

Quando trago a reflexão sobre a escola como espaço praticado, onde nesse espaço

o professor e aluno se formam e se transformam enredados nas práticas cotidianas

– currículo e formação – entendo que o currículo que se pensa na escola se constitui

e é constituído por forças hegemônicas que tentam homogeneizar os saberes dos

alunos e das professoras, porém os alunos e as professoras como sujeitos

praticantes reinventam formas de burlar o instituído, negociam o dado e criam a

partir daquilo que está posto.

Pois, se existe o instituído, a normatização e a hierarquização existem as burlas, as

negociações e as traduções. Quantas vezes as professoras precisam criar uma

9 Ver BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo horizonte: UFMG, 1998. p. 20-21 - 130.

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outra rotina por não conseguirem terminar uma atividade proposta e planejada.

Quantas vezes os alunos criam situações e falas que fogem do planejado. Quantas

vezes na escola os pais nos apontam questões que não damos conta de responder.

Negociação, como nos coloca Bhabha (1998, p.51), não é negação.

Quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir uma temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios: uma dialética sem a emergência de uma História telealógica ou transcendente, situada além da forma preescritiva da leitura sintomática, em que os tiques nervosos a superfície da ideologia revelam a contradição materialista real que a história encarna. Em tal temporalidade discursiva, o evento da teoria torna-se negociação de instâncias contraditórias e antagônicas, que abrem lugares e objetivos híbridos de luta e destróem as polaridades negativas entre o saber e seus objetos e entre teoria e a razão prático-política.

Negociação passa pelo âmbito do vivido, daquilo que precisamos para sobreviver à

rotina já dada, os horários pré-fixados, as normas estabelecidas, os projetos já

pensados, as ações programadas. Nem tudo pode ser controlado o tempo todo e aí

as burlas, as negociações, as traduções acontecem no sentido de dar vida, colorir o

ambiente. É uma maneira de negociar aquilo que está posto, de assumir outra lógica

e fugir do instituído.

Ampliando a discussão do currículo como saberes, fazeres e poderes, as

negociações são relevantes para se pensar como os sujeitos cotidianos reinventam

as lógicas e criam formas de pensar e fazer a escola um lugar vivo, colorido e

múltiplo.

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4. UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO DO COTIDIANO ESCOLAR: MAPEANDO ALGUNS PROJETOS E AS IMPRESSÕES DOS EDUCADORES

4.1 Como a SEME define esse currículo por projetos?

Com o propósito de investigar as redes de saberes, fazeres e poderes dos sujeitos

que vivenciam o cotidiano da Educação Infantil em relação aos conteúdos

trabalhados a partir da pedagogia de projetos, parto do pressuposto de que esses

conteúdos estão vinculados e são pensados, na grande maioria, a partir da proposta

curricular e dos projetos e programas instituídos a despeito dos interesses,

expectativas e necessidades dos sujeitos e, inclusive, de sua participação na

definição deles. Existe um processo de seleção desses conteúdos pelas professoras

a partir de documentos e propostas já colocados pelos órgãos centrais e pela

escola; aqui incluo os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

(RCNEIs) e o documento norteador da Educação Infantil no município de Vitória “Um

outro olhar”.

Com a intenção de reformular a proposta curricular da Educação Infantil elaborada

no período de 1989 a 1992, uma vez que a partir de 1992 as creches deixaram de

ser subordinadas à Secretaria de Assistência Social e passaram para a Secretaria

de Educação, optou-se por elaborar um documento que caracterizasse melhor a

identidade política e pedagógica que se desejava imprimir, através de uma

metodologia em que todos pudessem participar. Para a escrita do documento

norteador da Educação Infantil no Município de Vitória três momentos distintos foram

necessários: reuniões com a Equipe Sistematizadora, fóruns com representantes

das diferentes categorias e fóruns municipais. Foram discutidos vários temas, como:

violência; religiosidade, sexualidade, Arte e Educação Física, avaliação, projeto

político pedagógico e brincadeiras. Nesses fóruns, foram ouvidas as experiências

dos funcionários dos CMEIs e seu modo de agir diante dos temas em questão.

O documento norteador para a educação infantil “Um outro olhar” foi construído a

partir das “experiências concretas” dos CMEIs da Rede Municipal de Vitória, através

de discussões e sistematização de idéias e criações dos Centros de Educação, que,

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através de fóruns dos vários segmentos, possibilitaram a realização do documento.

Hoje esse documento está nos CMEIs para nortear o trabalho com essa faixa etária.

Entretanto, apesar de o documento em questão ter sido construído a partir das

“experiências concretas”, ele acabou tornando-se uma referência a priori e comum a

todas as unidades, necessitando, de alguma forma, ser seguido por meio de

projetos.

A intenção inicial apresentada pela Secretaria Municipal de Educação, através da Divisão de Educação Infantil, era reformular a proposta curricular da Educação Infantil elaborada no período de 1989 a 199210. Embora fosse necessário analisar os princípios filosóficos, concepções e conteúdos explicitados na referida Proposta, novas discussões e reflexões precisavam ser colocadas em evidência em função das diferentes demandas existentes no contexto da Educação Infantil do município de Vitória (DOCUMENTO NORTEADOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM OUTRO OLHAR, 2006, p. 14).

A proposta apresentada no documento norteador foi de elaborar um Documento que

tivesse a identidade política e pedagógica no trabalho da Educação Infantil e

pudesse assegurar um processo de participação democrática em que todos os 44

CMEIs imprimindo sua marca como co-autores na construção de um trabalho

coletivo (DOCUMENTO NORTEADOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM OUTRO

OLHAR, 2006).

Para a elaboração do Documento Norteador da Educação Infantil “Um outro olhar”,

foram feitas discussões nos fóruns municipais e regionais, fórum de representantes

de merendeiras, auxiliares de serviços gerais e agentes de segurança, fórum de

representantes de pais, mães e/ou responsáveis das crianças e o fórum das

crianças.

A partir das discussões realizadas nos fóruns, a equipe sistematizadora acreditou

ser possível direcionar o trabalho na educação com a tentativa de organizar o

10 Por um longo período, o atendimento a crianças de zero a seis anos ficou subordinado à Secretaria

de Assistência Social. Com a transferência para a Secretaria de Educação no ano de 1992, deu-se início à elaboração da Proposta Curricular.

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currículo das escolas, levando em consideração a identidade cultural e as

dificuldades e desafios de cada instituição.

O documento propõe a efetivação de políticas públicas articuladas, a criança como

sujeito de direito e temas que devem fazer parte do currículo da Educação Infantil e

do trabalho pedagógico do professor, como: trabalho coletivo, formação continuada,

tempo e espaço, educação inclusiva, cuidar e educar. E outros temas que já fazem

parte do currículo da Educação Infantil, mas que precisam ser revisitados:

alfabetização, violência, sexualidade, religião, avaliação, brincar, Arte e Educação

Física e projeto político-pedagógico.

A escola tem projetos próprios pautados na leitura da realidade da comunidade, mas

muitas vezes não dá conta de ouvir, ver e sentir os problemas, relatos, saberes de

todos, por ter que atender aos projetos que vêm instituídos do órgão central (SEME).

Cito aqui alguns deles:

Projeto de horário integral: Este projeto tem como objetivo atender crianças de

seis meses a três anos na modalidade creche. As crianças atendidas dentro dessa

faixa etária são crianças que sofrem risco social e pessoal. Elas são atendidas no

turno matutino na sala referência e no turno vespertino em uma sala especial, com

dois professoras que têm a proposta de desenvolver um trabalho diferenciado com

essas crianças. Além do atendimento de crianças de seis meses a três anos na

própria unidade, temos o atendimento dos alunos de quatro a seis anos que

acontece em um espaço fora da unidade denominado de Brincarte. Brincarte é o

nome dado ao projeto de horário integral da Prefeitura Municipal de Vitória que

atente crianças de 4 a 6 anos, essas crianças estudam no CMEI em um horário

(matutino ou vespertino) e no contra turno ficam no Brincarte onde contam com um

atendimento diferenciado da escola regular, com professoras de música, educação

física, artes, dança e outros. O Brincarte funciona em espaços diferenciados

dependendo da localização de cada CMEI, no caso do CMEI “Sonho Meu” o

Brincarte funciona na Função Batista do bairro São Pedro.

Plano de ação: Diz respeito às ações, projetos, filosofia, metas da instituição para

cada ano letivo. Dessa forma, todo final de ano já é previsto em calendário. A escola

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deve avaliar as ações daquele ano colocando em debate as “disfunções” e

propostas para o próximo ano. Essa avaliação é feita por todos os segmentos da

escola.

Projeto Político Pedagógico: No ano de 2007, houve uma ampla discussão no

interior das escolas, nos encontros de pedagogos e nas formações para a

sistematização do Projeto Político Pedagógico (PPP). A SEME, na figura da

gerência de formação continuada, promoveu, em 2006, uma formação específica

para diretores, Assistente Técnico de Direção (ATDs), pedagogos e representantes

de professoras, com o objetivo de dar início às discussões do PPP no interior das

escolas.

Projeto institucional: O projeto institucional é uma forma de projeto de trabalho, em

que as escolas devem eleger, de acordo com suas necessidades, um projeto que irá

nortear os trabalhos durante todo o ano letivo. Esse projeto é desenvolvido com

ações direcionadas às crianças e às famílias, envolvendo os eixos de “trabalho” e

“conteúdos específicos” para cada faixa etária.

Proposta de formação continuada: No ano de 2007, a proposta de formação para

as escolas foi prevista em calendário. Foram sete formações durante o ano e ainda

um horário de 30 minutos por turno de trabalho que poderia ser organizado

conforme necessidades das escolas. A sugestão é que esse tempo de 30 min

diários fosse usado para formação, estudo, elaboração, discussão e sistematização

do PPP.

Professor especializado: A educação especial organizou, para o ano de 2007, uma

nova proposta de atendimento aos alunos com Necessidades Educacionais

Especializadas (NEE). Esses alunos, que eram atendidos em laboratórios

pedagógicos em horário contrário ao horário da escola regular, agora seriam

atendidos no mesmo horário por um profissional especializado, de acordo com as

necessidades das escolas e dos alunos. O profissional incumbido deste atendimento

estaria na escola uma ou duas vezes por semana e faria o atendimento na sala

referência do aluno. Quando houvesse necessidade, o atendimento poderia

acontecer individualmente.

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Professor dinamizador de Arte e Educação Física: Os CMEIs receberam, em

2005, professoras de Arte e Educação Física para a realização do projeto piloto. Em

2006, a partir do concurso público, vieram com o nome de “professor dinamizador”

para trabalhar “arte e movimento”. No ano de 2007, após longa discussão, voltaram

a ser chamados de professores de Arte e Educação Física com o objetivo de

trabalhar com suas disciplinas específicas para a faixa etária de seis meses a seis

anos.

Esses foram alguns programas e projetos implementados no interior dos CMEIs,

estando as discussões e os debates publicados no documento norteador da

educação infantil do município: “Um outro olhar”. Além dos programas citados que

atravessam os trabalhos e o cotidiano dos CMEIs, vivenciamos questões

importantes que não podem ser ignoradas: problemas comuns, dúvidas que surgem,

discussões que acontecem e que sinalizam idéias, pensamentos, concepções de

educação, enfim, o currículo que pulsa na escola.

4.2 Projetos realizados na escola

Ao falar dos projetos da escola, me lembrei de um artigo de Azevedo (2005) que traz

a discussão dos arquivos institucionais, que são todo o material produzido pela

escola e na escola: cadernos de registros, atas de reuniões e, com isso os projetos

institucional e literário, a proposta curricular e o projeto político pedagógico. Cada

projeto tem um material escrito, no qual as professoras devem registrar a justificativa

e as ações previstas, e depois essa escrita vai compor um projeto maior, no qual

também são anexadas as atividades trabalhadas durante o ano e as fotos tiradas.

Em relação ao PPP, as professoras escreveram textos coletivos sobre cada tema

proposto em formações continuadas: história do bairro, afetividade, sexualidade,

alfabetização, concepção de criança e infância; esses textos ajudaram na escrita

final do documento. No caso da proposta curricular, esta também é em forma de

documento e fica exposta na sala de pedagogo, onde são realizados os

planejamentos.

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Esses documentos11 da escola estão cheios de impressões dos sujeitos praticantes

que fazem a história daquela instituição. São fontes primárias que não podem ser

descartadas desta pesquisa, pois nos dão pistas sobre o que pensam e como agem

os sujeitos no cotidiano. Dessa forma, concordo com Azevedo (2005) quando ela diz

Como Ginzburg e Thompson, julgo que qualquer registro de um período, de um acontecimento seja uma evidência histórica, por mais fragmentário que se apresente, por quem quer que o preserve ou tenha sido seu autor ou autora. A arqueologia e a paleontologia não se alimentam exatamente desses registros fragmentários? (AZEVEDO, 2005, p. 168).

Para falar dos projetos, de como eles acontecem no espaço da escola, como são

entendidos, negociados e traduzidos pelos sujeitos e principalmente como se dá sua

elaboração, precisei ouvir os sujeitos, ler os documentos, viver o cotidiano da escola,

pois o “material arquivado narra histórias diferentes entre si, às vezes chegando ao

antagonismo” (AZEVEDO, 2005, p. 168).

4.2.1 Projeto institucional

O projeto institucional teve início com o professor de projeto, que era a figura

responsável pela realização dos projetos da escola. O professor de projetos

desenvolvia um projeto cujo tema era amplo e se estendia para todas as turmas da

escola. Hoje, sem a figura do professor de projetos, esse projeto é desenvolvido por

toda a escola e quem o direciona é o Corpo Técnico Administrativo (CTA) e as

professoras. No CMEI pesquisado, o projeto institucional acontece a partir de um

tema de interesse do grupo ou de um tema que os alunos ou a comunidade sinalizou

como importante.

No ano de 2005, ano em que comecei a trabalhar neste CMEI, o projeto institucional

foi “Construindo e descobrindo os caminhos para paz”. Esse tema foi pontuado pela

própria SEME como uma questão importante para o debate nas escolas, e o grupo

sentiu que seria interessante a abordagem para aquela região, que tinha muito

11 Embora não tenha analisado esses documentos nesta pesquisa, precisei deles para problematizar

e entender o cotidiano da instituição e os projetos desenvolvidos.

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presente a questão da violência. Falar da paz seria uma oportunidade de refletir com

a comunidade e os alunos a construção de uma cultura para a paz.

O CTA iniciou a discussão com o grupo de professoras que adotou o tema para

nortear os trabalhos. A partir da escolha do tema central do projeto cada turma

escolheu um enfoque para o trabalho com as crianças em sala de aula – direitos

humanos, paz no trânsito e paz na família foram alguns dos enfoques escolhidos

pelas professoras12.

No ano de 2006, o projeto apresentado e desenvolvido no CMEI foi “Tecendo nossa

história afro-descendente”, que nasceu após o censo escolar do ano anterior,

quando o CTA observou que a comunidade local era em sua maioria composta de

pessoas negras, portanto afro-descendentes, e no momento do censo, essas

pessoas não se declaravam conforme sua cor/raça. O CTA, então, baseado na lei

10.639, que obriga o estudo da cultura africana e afro-descendente nas escolas,

propôs ao grupo de professoras o estudo e trabalho do tema com alunos e a

comunidade.

Sendo a escola uma das responsáveis pela promoção do ser humano na sua integralidade cabe à mesma efetivar a implementação da lei nº 10.639/2003, que altera a LDB 9394/96 estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educação Básica. Dessa forma, objetivamos discutir no grupo escolar e na comunidade local como tem ocorrido o processo de socialização dessa geração de sujeitos sociais e que mundo está sendo posto como interiorizado, identificar como a dominação branca tem tomado parte nos currículos escolares, repensar os conceitos de raça, criar condições que possibilitem a convivência positiva entre as pessoas e observar como nossa criança lida com experiências multi-étnicas, como as pensa e as elabora desconstruindo idéias e valores preconceituosos. No CMEI “Sonho Meu”, atendemos a clientela de São Pedro I, II e IV com traços afro-descendentes bem significativos expressos em seu passado histórico e cultural. Apesar dessa proximidade, nossos alunos desconhecem sua história, suas tradições, sua comunidade, por esse motivo, percebido a partir do senso escolar feito no final do ano de 2005 em que as famílias dos alunos negavam sua identidade étnica, nos perguntamos: “Que processo identitário esses sujeitos passaram para negar sua etnia, sua cor, sua raça e portanto sua

12 Esses temas estão destacados e explicados no projeto original da escola, trabalhado no ano de

2005.

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história?”. Optamos, então, por desenvolver o projeto institucional de 2006 baseado na lei 10.639/2003, e em discussão com o grupo de funcionários e professores do CMEI surge o tema “Tecendo nossa história afro-descendente”13.

Com esse projeto, a diretora Cláudia da escola relatou a intensa participação da

comunidade e o trabalho coletivo das professoras e demais funcionários da escola:

Começamos a pensar em nossas formações, tínhamos dificuldade de relacionamento dentro do grupo e isso atrapalhava muito. Eu cheguei ao espaço muito acelerada e o grupo era mais lento e eu tive que me educar também enquanto diretora. A gente foi trabalhando algumas coisas básicas, esse grupo que está aqui é antigo na escola, mesmo que alguns tenham mudado, mas tem um fixo que está aqui, o avanço dele veio em 2006 com o projeto “Tecendo nossa história afro-descendente”, foi nesse projeto que o grupo começou a entender mais de que a criança pode produzir, e que a comunidade pode participar. Era uma escola que a comunidade não entrava no espaço da escola, entrava só quando era solicitada para fazer uma atividade, era difícil o professor aceitar. Esse projeto ajudou bastante os professores e funcionários a pensar o quanto que é importante estabelecer esse convívio essa relação e que o trabalho coletivo tem uma ação que o torna significativo14.

O grupo de professoras teve ação intensa no projeto. Cada turma ficou responsável

por um enfoque (Quadro 1), que foi trabalhado com os alunos e com um intenso

estudo e pesquisa do grupo em dias e formações e nos planejamentos com o

pedagogo, como representado na Figura 7.

No ano de 2007, a discussão e os trabalhos estavam direcionados à construção do

PPP, uma demanda do grupo do CMEI e uma imposição da SEME. A SEME, nesse

ano, iniciou um processo de formação continuada para os representantes da escola:

diretor, pedagogos e dois representantes do magistério. Essa formação teria como

objetivo a construção e sistematização do PPP nas escolas.

13 Parte do texto inicial do projeto “Tecendo nossa história afro-descendente” trabalhado no CMEI no

ano de 2006. 14 Trecho da entrevista com a diretora Cláudia do CMEI no dia 25/04/2008.

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Quadro 1 - Enfoques temáticos do projeto institucional “Tecendo nossa história afro-descendente”

Turma Enfoque temático /

conteúdos curriculares Objetivo

BI (Matutino)

BII (Vespertino) Identidade afro-descendente

Trabalhar a auto-estima, reconhecimento das

diferenças e o resgate de traços físicos e matrizes

afro-descendentes.

BII (Matutino) Culinária africana

Resgatar a cultura afro-descendente a partir da

culinária típica que mistura elementos vindos da

África com os do Brasil.

Maternal (Matutino) Artes plásticas Apresentar a cultura afro-descendente presente em

nossa sociedade, através das obras de artes.

Jardim I

Pré (Matutino) e

BI (Vespertino)

Música e movimento

Reconhecer e valorizar a influência dos diversos

ritmos musicais de origem africana, presentes em

nossa cultura.

JII (Matutino) e

Pré (Vespertino)

Personagens ilustres da

cultura afro-descendente

Auxiliar na construção da subjetividade do aluno a

partir do conhecimento de personagens ilustres

negras da nossa cultura.

Maternal (Vespertino) Lendas de origem afro-

descendentes

Desconstruir idéias e valores preconceituosos a

partir das lendas e histórias com personagens

negros, ampliando o respeito às diversas etnias

raciais.

Jardim I (Vespertino) Nossa terra, nossa gente Conhecer a história das pessoas que constituíram a

formação do povo brasileiro

Jardim II (vespertino) Fauna africana Identificar nas histórias africanas do Rogério

Andrade Barbosa os animais africanos.

No CMEI pesquisado, as atividades foram conduzidas pelo CTA, e o projeto

institucional do ano de 2007 foi intitulado “Desvelando nossa história através do

PPP”. Cada turma escolheu um enfoque15 para trabalhar, e com isso construir o PPP

do CMEI. Inicialmente, foram feitos questionários com a família (Figura 8) e com os

funcionários. Também foram realizadas várias atividades com os alunos para

reconhecimento da história do bairro São Pedro.

15 Enfoques escolhidos: relacionamento interpessoal, história do bairro, meio ambiente, espaço físico

do CMEI, família.

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Figura 7 - Formação em serviço com todos os funcionários

(a)

(b)

Figura 8- Formulário de entrevista com os pais: (a) página 1; (b) página 2

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As atividades realizadas com os alunos sinalizaram o histórico do bairro como era

antes, na época da ocupação, o lixo, as palafitas (Figura 9) e depois o aterro, as

casas, as escolas, o bairro (Figura 10). Os alunos começaram a entender o

processo de ocupação, e as famílias relembraram como eles viviam 30 anos atrás

naquele local (Quadro 2).

Figura 9 - Bairro São Pedro na época da ocupação

Figura 10 - Bairro São Pedro hoje

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Quadro 2 - Relato da família após assistir ao filme “São Pedro 20 anos depois”

Participação das Famílias dos alunos do Pré - 22/08/2007

Na tarde do dia 22/08/2007 os familiares das turmas do Pré vespertino assistiram o filme: "São Pedro

20 anos depois". Durante a sessão, os pais fizeram relatos emocionantes como o do Sr. Alcir e sua

esposa Keila, pais do aluno João Vitor. Em seus relatos, o Sr. Alcir muito emocionado falou que

reside no bairro há 29 anos e que acompanhou o desenvolvimento do bairro desde a invasão e a

ocupação dos terrenos. Expressando seu descontentamento disse: "As pessoas compravam os

terrenos muito barato, enquanto o pessoal da prefeitura colocava placas reservando os terrenos que

não pertenciam a eles. No início, a invasão foi feita por imigrantes, as pessoas eram nordestinas,

vindo especialmente da Bahia e trazia toda a família, isso foi em 1981.

No decorrer do filme, a família pode relembrar a liderança do Movimento Comunitário e

especialmente dos catadores de lixo que tinham uma forte representação naquele momento e que

graças ao esforço conjunto dessas pessoas, conquistaram aos poucos melhorias para o bairro,

começando com o aterro da Rua 4 de Setembro, onde o lixo chegou até seu início, concluindo o

aterro.

Mais adiante, os moradores foram se organizando, exigindo construções de creches, escolas, postos

de saúde, etc. Ele ainda ressalta a forte organização que as pessoas tinham naquela época, e que

conseguiam mobilizar para garantir o sustento de suas famílias. Hoje essa mesma comunidade de

São Pedro não se organiza mais, pois as pessoas com o tempo ficaram individualistas, não mais se

reunindo para obter conquistas, até mesmo para combater questões como a violência, que não

somente é um problema para a comunidade de São Pedro como de toda a sociedade brasileira.

Foi um ano de trabalho para a sistematização do PPP, que tem cerca de 100

páginas com relatos dos pais, dos alunos e dos funcionários, representando o

trabalho de todo o CMEI, o que deu veracidade ao projeto e possibilitou o

envolvimento de todos.

No ano de 2008, o projeto institucional deixa o bairro e vai para a cidade de Vitória,

conhecer mais este lugar, sua cultura, culinária, personalidades ilustres, sua história.

O trabalho com a cidade de Vitória foi o tema escolhido pelas professoras e

realizado com muita pesquisa e leitura tanto do CTA, quanto das professoras. Para a

realização desse projeto, o CMEI solicitou um número maior de ônibus para os

passeios e visitas das turmas de acordo com o enfoque escolhido (Quadro 3).

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Quadro 3 - Cronograma de visitas à cidade de Vitória – turno matutino e vespertino

TURNO MATUTINO MÊS / DIA TURMA DESTINO

14/04 Jardim II • Prainha de Vila Velha e Farol de Santa Luzia (Praia da Costa)

28/04 Jardim I • Praias de Camburi, Curva da Jurema e Parada na Ilha do Boi

12/05 Maternal • Praias de Camburi, Curva da Jurema e Parada na Ilha do Boi

26/05 Pré • Centro de Vitória (Palácio Anchieta, Catedral, Mercado da Vila Rubim)

09/06 Jardim II • Cidade Alta (Palácio Anchieta, Catedral, Escadarias e Capela de Santa Luzia)

23/06 Jardim I • Supermercado Carrefour 30/06 Pré • Ilha do Frade e Ilha do Boi 11/08 Maternal • Colônia de Pescadores / Praia de Itapuã 20/08 Jardim I • Feira livre de Santo Antônio 1º/09 Berçário II • Praias de Camburi e Curva da Jurema 22/09 Berçário I • Parque da Praça dos Namorados 13/10 Berçário II • Praia do Iate (Praça dos Namorados) 27/10 Berçário I • Praça de Jardim da Penha

TURNO VESPERTINO MÊS / DIA TURMA DESTINO

14/04 Jardim II • Centro de Vitória (Palácio Anchieta, Catedral, Mercado da Vila Rubim)

28/04 Jardim I • Prainha de Vila Velha, 38º Batalhão de Infantaria

12/05 Maternal • Praias de Camburi, Curva da Jurema e Parada na Ilha do Boi

26/05 Pré • Cidade Alta (Palácio Anchieta e Catedral) 09/06 Jardim II • Praça do Papa e Praça dos Namorados 23/06 Jardim I • PMV, Cidade Alta: Palácio Anchieta 30/06 Pré • Parque Moscoso 11/08 Maternal • Praias do Iate e Ilha do Frade 20/08 Integral • Pedra da Cebola 1º/09 Berçário II • Praia da Curva da Jurema 22/09 Berçário I • Parque Praça dos Namorados 13/10 Berçário II • Praia do Iate e Ilha do Frade 27/10 Berçário I • Praça de Jardim da Penha

Para além das visitas, estão as atividades em sala de aula e pesquisas com a

família, para que o projeto ganhe força e envolvimento dos alunos. Para iniciar a

conversa sobre a história de Vitória, o Pré A/B Vespertino visitou a prainha de Vila

Velha (Figura 11). As turmas do Maternal A e B Vespertino escolheram como foco

de trabalho as praias de Vitória, sendo a praia de Camburi a primeira visitada, onde

colheram conchinhas para trabalhar com artesanato (Figura 12). As turmas do

Jardim II A e B Vespertino escolheram como foco de trabalho os parques e as

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praças e visitaram o Parque Moscoso (Figura 13). Das visitas, as professoras

elaboram as atividades realizadas em sala de aula, que podem ser coletivas ou

individuais, e que mostram um pouco das impressões dos alunos em relação a

essas visitas (Figura 14).

Figura 11 - Visita à prainha de Vila Velha – Pré A/B Vespertino

Figura 12 - Apreciação das conchinhas coletadas na visita à praia de Camburi pelos alunos do Maternal A/B – Vespertino

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Figura 13 - Visita ao parque Moscoso – turma do Jardim II Vespertino

Figura 14 - Atividade coletiva sobre a visita à Praça do Papa – Jardim II B vespertino

4.2.2 Projeto Literário O projeto literário, intitulado “Certa vez li, aprendi.... e Cresci” teve início em 2006,

fruto da reivindicação do grupo de professoras e CTA. Nesse ano, as turmas

trabalharam por gênero literário. Cada professor escolheu um gênero, como: poesia,

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contos, lendas, fábulas e histórias. No ano de 2007, o trabalho aconteceu por autor:

cada turma escolheu um autor e quatro livros desse autor para trabalhar durante o

ano todo. Os autores e autoras foram Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo,

Tatiana Belinky, Os irmãos Grim e Maurício de Souza.

No ano de 2008, o projeto continua por autor, e cada professor novamente escolhe

um autor e quatro livros para desenvolver o projeto em sala de aula. Escolhidos o

autor e os livros, os alunos, juntamente com o professor, fazem uma eleição do livro

que irão começar a trabalhar (Figura 15 e Figura 16).

Figura 15 - Processo de eleição dos livros a serem trabalhados nas turmas do Pré A

Figura 16 - Processo de eleição dos livros a serem trabalhados na turma do Pré B

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Nos planejamentos semanais, as professoras elaboram atividades para o trabalho

com os livros, e os pedagogos também propõem sugestões (Figura 17) de

atividades para cada livro.

Para cada livro tem uma sugestão de atividades que as pedagogas elaboram junto

com as professoras. Essas sugestões podem ser entendidas como algo pronto, uma

vez que são as professoras que escolhem o autor, os livros e as atividades. Dentre

as ações com os alunos também são desenvolvidas ações com as famílias (Figura

18), que levam o livro para casa com uma atividade de registro a partir da leitura do

livro.

Figura 17 - Sugestões de atividades do livro “A escolinha do mar”

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Figura 18 - Atividade do projeto literário realizado com a família

O projeto vem contemplar a proposta curricular do CMEI, que pressupõe o trabalho

com os diferentes eixos do conhecimento, como linguagem oral e escrita,

matemática, natureza e sociedade, artes, movimento e música. Assim, os livros

escolhidos pelas professoras devem proporcionar o trabalho com esses eixos.

Porém, o projeto apresenta alguns pressupostos que devem ser levados em

consideração no momento do planejamento e desenvolvimento das ações com a

criança, como apresentado a seguir:

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Valorizar a literatura infantil como fenômeno significativo e de amplo alcance na formação das mentes infantis, bem como da vida cultural de uma comunidade. Vivenciar os princípios éticos colocados nos textos, na relação com o outro. Identificar a construção de textos visuais e escritos. Confeccionar livros artesanais. Retratar histórias de vidas da comunidade local. Trabalhar a linguagem oral e escrita. Possibilitar a interação com os meios e suportes das artes cênicas, plásticas e musicais (PROJETO LITERÁRIO, 2007, p,7).

A escrita do projeto foi elaborada pelo CTA com participação das professoras no

desenvolvimento: atividades, ações com as famílias, dramatizações, confecção de

materiais e textos coletivos. De modo geral o projeto ganha força no interior do

CMEI, pois os autores e livros escolhidos acabam despertando o interesse dos

alunos. São histórias lúdicas, com suspense, aventura e muita imaginação. Na fala

dos sujeitos, esse projeto tem uma importância, pois lida diretamente com a leitura e

escrita, que é uma preocupação central das professoras.

Do livro de literatura escolhido, as professoras reinventam as ações planejadas e

ampliam as atividades. No trabalho com “A Escolhinha do Mar” de Ruth Rocha, as

professoras planejaram assistir ao filme Procurando Nemo para ampliar os

trabalhos, e daí propor uma conversa com os alunos sobre animais marinhos, lixo e

pesca predatória.

Esse projeto também traz algumas orientações para as professoras, que, de certa

forma, direcionam o trabalho do professor ou pelo menos devem ser pensadas no

momento de planejamento. Cito algumas orientações:

Para o desenvolvimento de uma competência narrativa, é preciso desde cedo estimular os alunos a observar a caracterização dos personagens, a ver como eles são construídos, como agem, como teriam agido se não fossem como são. Aprender a reconhecer os ambientes onde se desenvolve uma história é parte do processo de aprender a criar histórias. Um lugar pode ser tão importante quanto um personagem: não haveria história sem a casa dos Sete Anões, sem a floresta de Robin Hood ou sem o fundo do mar onde mora a Sereiazinha (PROJETO LITERÁRIO, 2007, p. 8 e 9).

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Ao que me parece, os projetos têm a capacidade, ou a intenção de explicar tudo, ou

direcionar as ações sempre. No momento em que dá orientações, traz pressupostos

e propõe ações, ele vem reafirmar a lógica da ignorância de que o outro sempre

precisa de alguém que fale por ele ou que faça por ele, como coloca Rancière (2005,

p. 23),

[...] é preciso inverter a lógica do sistema explicador. A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender. É, ao contrário, essa incapacidade, a ficção estruturante da concepção explicadora do mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos.

4.2.3 Projeto de horário integral

O projeto de horário integral da PMV (Prefeitura Municipal de Vitória) tem como

objetivo primeiro atender às crianças com risco social e pessoal e também à

necessidade das famílias de trabalhar fora e não ter com quem deixar seus filhos.

Esse atendimento passa por um momento de discussão nos CMEIs, pois vários

questionamentos são colocados pelos sujeitos da escola, professoras e demais

funcionários: O horário integral deveria atender somente às crianças de risco social

e pessoal? O horário integral atende às famílias que trabalham e não têm com quem

deixar seus filhos? O horário integral acaba tirando a responsabilidade da família

pela criança, e jogando essa responsabilidade para a escola? A quem o horário

integral deve atender? Que tipo de atendimento é feito? Como deve ser o espaço de

atendimento a essas crianças? Que profissionais devem atendê-las? E a lista de

espera do CMEI para atender aos alunos de horário parcial?

Essas questões vêm sendo discutidas no interior do CMEI e trazem muitas

insatisfações para os profissionais e também para as famílias. De acordo com o

projeto inicial do horário integral, ele se faz urgente.

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Muitas crianças vivenciam situações de risco pessoal e/ou social, a maioria das mães e/ou responsáveis trabalham fora do lar, não tendo o cuidado de um adulto responsável fora do horário escolar, outras estão em situação de risco nutricional, necessitando de um atendimento qualificado para seus filhos, e ainda as crianças têm direito a viverem outras atividades para além do pedagógico, que são importantes para sua formação como: artes, esporte, danças, etc. Assim, o horário integral se faz necessário e, inicialmente atenderemos 15% dos alunos – 2006 e 2007. Em 2008 atenderemos 30% e posteriormente em 2009, o atendimento será de 50% (PROJETO DE HORÁRIO INTEGRAL, 2007, p. 5).

Para garantir esse atendimento, a escola disponibiliza uma sala de aula com duas

professoras e duas auxiliares de berçário, o que dá um total de 25 alunos no turno

matutino e 25 alunos no turno vespertino. Esses alunos freqüentam a sala de aula

referência em um turno e no outro turno freqüentam a sala do integral, com crianças

de 6 meses a 3 anos.

As atividades proporcionadas a esses alunos devem ser diferenciadas do outro

turno, com horário de repouso, banho e alimentação. As professoras planejam

atividades de arte, movimento, histórias e música com a metodologia de oficinas.

Também é feito um projeto para essas turmas. Esse projeto não tem ligação direta

com o projeto institucional da escola, pois os alunos já vivenciam o projeto literário e

institucional em outro horário.

No início do ano as famílias preenchem uma ficha com pedido de horário integral.

Nesta ficha devem constar: renda familiar e situação de risco da criança (se já sofreu

algum tipo de agressão física e moral, quadro de desnutrição, internação, doenças

graves, pais apenados e abuso sexual). Essa ficha é analisada pelo conselho de

escola juntamente com o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS),

Secretaria Municipal de Saúde (SEMUS), Secretaria Municipal de Assistência Social

(SEMAS) e Conselho tutelar num projeto interface com outras instituições que se

fizerem necessárias.

O CMEI, ao identificar uma criança que se enquadra em um dos critérios de elegibilidade deste projeto, promoverá uma reunião com a família e encaminhará para a equipe responsável pela averiguação do caso: SEME, SEMUS, SEMAS, em parceria com o CMEI e Conselho de Escola. Ao receber o encaminhamento do CMEI e a família não efetivar a matrícula, a equipe técnica responsável tomará

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as providências necessárias (PROJETO DE HORÁRIO INTEGRAL, 2007, p. 12).

Na escola, esse projeto atende crianças em situação de risco pessoal e social,

porém muitas questões são discutidas pelos profissionais do CMEI: a dúvida em

relação à real necessidade da família em deixar a criança em tempo integral, o

pouco tempo em que a criança passa no convívio de sua família, crianças que não

se alimentam bem na escola, crianças que ficam doentes com freqüência e

continuam freqüentando a escola.

São muitas as questões que perpassam o imaginário dos profissionais da educação

em relação ao horário integral e que acabam sendo resolvidas, ou pelo menos

amenizadas no cotidiano escolar. No turno matutino, contamos com duas

professoras: um auxiliar em carga horária completa e outro em carga horária

suplementar (que cumpre três horas no turno matutino e seis no turno vespertino).

No turno vespertino, contamos com duas professoras e dois auxiliares de berçário

(até o mês de junho só tínhamos no CMEI um auxiliar no turno vespertino para

atender aos alunos de horário integral) para dar conta da higienização de 25

crianças.

Mesmo com todas essas questões, as professoras e o CMEI fazem o melhor para

atender a essas crianças – planejam ações em que os alunos estarão vivenciando

situações de conforto e proteção. Também é objetivo do projeto oferecer uma

alimentação saudável e de qualidade, preparada pela nutricionista junto as

merendeiras (Quadro 4).

Quadro 4 - Cardápio do CMEI elaborado pela nutricionista

CARDÁPIO DO CMEI “SONHO MEU” - SEMANA DE 02/07/07 a 06/07/07

TURNO MATUTINO 2ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA

Achocolatado com biscoito

Farofa de ovos com legumes. Feijão e arroz

Fruta Carne em cubo com legumes. Feijão e arroz

Cuscuz Sopa de

legumes com macarrão

espaguete e feijão

Suco com biscoito

Purê de batata com carne

moída, feijão e arroz

Fruta

Feijão e risoto

TURNO VESPERTINO Macarrão, carne

moída com legumes e feijão

Ovos mexidos com legumes, feijão e arroz

Polenta, frango desfiado com

legumes e feijão.

Torta salgada de frango e suco Canjiquinha com carne em cubo

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O projeto de horário integral que vem da SEME diz respeito à parte legal e

burocrática desse atendimento. As professoras, juntamente com as pedagogas,

elaboram um projeto que possa atender ao aspecto pedagógico, que possibilite aos

alunos se desenvolverem cognitivamente e que atenda à proposta curricular da

Educação Infantil.

Além do horário integral de 6 meses a 3 anos (na modalidade creche), há o horário

integral de 4 a 6 anos (na modalidade pré-escola), que funciona em um espaço fora

do CMEI, na Fundação Batista, que foi uma parceria da igreja Batista com a SEME.

As crianças ficam em um horário no CMEI e no contra-turno vão para a Fundação

Batista, o que tem provocado muita insatisfação dos funcionários, professoras e

auxiliares de berçário – esse espaço é denominado pela SEME como Brincarte.

O procedimento para as famílias dos alunos conseguirem a vaga é o mesmo do

projeto de horário integral de 6 meses a 3 anos, porém percebe-se que a grande

maioria dos pais deixa a criança na Fundação Batista – Brincarte – por que

trabalham o dia todo e não têm quem cuide de seus filhos. Algumas professoras

ainda argumentam que outros pais ou responsáveis não trabalham e preferem

deixar o filho o dia todo para ficar mais tempo livre.

Há várias situações colocadas pelas professoras que acontecem de fato, mas

existem crianças em situação de risco social e pessoal que precisam muito desse

atendimento, por conta de correrem sérios perigos ficando em casa ou com irmãos

maiores. Vivenciamos situações em que os pais obrigam as crianças a pedirem

dinheiro nas ruas; outras que as crianças ficam em companhia dos irmãos maiores

na rua, outras ainda que presenciam o tráfico e consumo de drogas em suas casa.

Pensando nesses casos, a diretora do CMEI acha importante esse atendimento,

mas salienta a forma como está sendo realizado nas unidades de ensino:

Kelen – E o projeto de horário integral? Diretora Cláudia – A gente sabe que a escola acaba abarcando essas questões, por ser um programa de governo, isso foi um programa de governo instituído para o município de Vitória, estabelecer a questão do horário integral. Eu já critiquei muito enquanto professora, enquanto diretora, mas hoje eu vejo uma

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situação diferente, quando a gente lida com a comunidade que temos, com as famílias que temos, a gente acaba lidando com situações extremamente graves e a gravidade dessa situação pode levar a criança a óbito ou a violência física e emociona. Eu só penso que o horário integral que a gente vivencia aqui na escola, com esse monte de menino que temos, ele deve ser mais bem estruturado. Não dá para você ter duas salas de aula de horário integral, mas você tem que ter um profissional que seja diferente para o espaço, e para lidar com essa situação. Não dá para pensar que o risco social dessas crianças vai se resolver ficando no espaço da escola [...] O que vemos é que às vezes, no espaço da escola, a criança está melhor do que em casa correndo alguns riscos. Mesmo com o atendimento limitado em relação a funcionários, ele oferece alimentação, espaço para descanso, tenta entender que essa criança precisa de um atendimento diferenciado do outro e diferente da sala de aula.

Em alguns momentos a diretora Cláudia cogita a possibilidade da não existência do

horário integral, ao mesmo tempo defende que esta comunidade necessita desse

atendimento, chamando a atenção para a qualidade do mesmo. A gente tem processo de discussão de suporte, a gente faz indicativo do que é necessário para um bom atendimento, mas ainda não chegamos a isso. A gente discute com um aqui, discute com outro ali, mas hoje não discute o não ter o horário integral, essa discussão já está muito forte, tem que ter horário integral é projeto de governo. Estamos pecando em relação ao tamanho que esse horário integral vai ter e a qualidade desse atendimento. A gente está tentando fazer da melhor forma possível, mas não temos todos os suportes que deveríamos ter, até para pensar no trabalho diferenciado para 0 a 3 anos. Esse suporte que falo seria ter um profissional com área afim, para trabalhar algumas questões do movimento, da arte, da dança e outros. Ah, já tem Educação Física e Arte, esse é o discurso, mas o aluno de horário integral já vivencia isso no CMEI, na sala regular. Teria que estar fazendo um trabalho diferente [...]. Ter o estagiário não basta, é preciso alguém para coordenar esses estagiários e isso é difícil, nesse momento está muito difícil. E assim, tem toda uma divulgação do que está acontecendo no horário integral, ele está acontecendo com todas as defasagens. E a intenção é que esse horário integral fique dentro da escola, de 4 a 6 fique na escola e que se construa espaços na escola.

Outro ponto importante sinalizado pela diretora Cláudia é que a escola tem abarcado

muitas coisas e não tem pessoal (funcionários) suficiente para dar conta dos alunos

de horário parcial, mas tem que pensar no horário integral.

Não está amarrando o que tem de pessoal, de ação, é o que eu estava falando. Gente, nós temos que pensar no rumo dessas ações, não estamos conseguindo dar conta nem do que temos na escola hoje, não temos pessoal suficiente para atender os alunos de horário

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parcial, como vamos ter pessoal para atender o horário integral? Essa é uma demanda que para o município de Vitória está complicado, pode ter um salário que não é o melhor, mas não está sendo um atrativo, e isso tem dificultado muito as nossas ações e dificulta na ação do profissional que você está lidando, porque você lida com a insatisfação dele, com a má vontade, com a irritabilidade, com a problemática, falta de suporte, de ação do Planejamento (PL) e tem que estar costurando o que poderia estar resolvido e lidando com ações mais amplas, como a aprendizagem dos alunos.

A insatisfação com o horário integral se dá principalmente pela falta de pessoal e

estrutura física das unidades e do espaço onde funciona a Fundação Batista –

Brincarte – que atende crianças de 4 a 6 anos. O discurso da SEME é de que há

pretensão desse governo em ampliar o atendimento, porém sabemos que existe

uma série de fatores que impedem a realização, como coloca a diretora: tirar o foco

da educação da criança da família; não ter um coordenador na escola que direcione

as ações para com as crianças de 4 a 6 anos, no horário de 11h30 as 13h00 e,

assim, as crianças ficam com as auxiliares de berçário e com o próprio atendimento

pedagógico nesse outro espaço em que a criança se encontra.

4.2.4 Proposta de formação continuada

A proposta de uma política de formação surgiu a partir de discussões realizadas no

Comitê Gestor, no período de setembro de 2006 a janeiro de 2007, acerca da

proposta de formação continuada dos profissionais de Educação da SEME16. Nesse

documento elaborado pela SEME, é colocado que as unidades de ensino devem

seguir as formações previstas em calendário escolar anual, elaborar uma proposta

de formação da unidade, certificar os participantes e organizar um arquivo com

registros. Todas essas questões foram realizadas no CMEI pesquisado e são

executadas conforme proposta de formação. Para 2008, o quadro de formação

(Quadro 5) se apresentou com o seguinte formato:

16 Texto: Política de formação continuada para os profissionais da Educação do Sistema Municipal de

Ensino de Vitória – versão preliminar, 2007.

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Quadro 5 - Cronograma de formação continuada na escola para o ano de 2008

DIA/MÊS TEMÁTICA FORMADORES

11 e 12 de

fevereiro

Organização interna – reunião geral CTA

29 de fevereiro

(à noite) • Sensibilização ao Projeto Institucional "Uma leitura

infantil sobre a cidade de Vitória" (Figura 19) • Interação dos dois turnos para organização da sala.

CTA

02 de abril Fórum Municipal de Educação SEME

16 de abril Formação regionalizada na escola SEME

05 de maio Fórum Municipal de Educação SEME

15 de maio (à

noite)

Contação de histórias Convidada

25 de junho O diálogo entre o ensino e a aprendizagem - Telma Weiz CTA

23 de julho Formação regionalizada na escola SEME

05 de agosto Formação regionalizada na escola SEME

19 e 20 de agosto • Congresso estadual dos trabalhadores em educação pública.

• Questões étnicas raciais no currículo.

Sindiupes - Prof. Gustavo

H. Forde Mestrando em

Educação – UFES

23 de setembro • Construindo saberes a partir da matemática • Troca de saberes e práticas

CTA

22 de outubro Primeiros socorros no atendimento escolar Corpo de Bombeiros

17 de novembro Apresentação e análise do Projeto Político Pedagógico CTA e professoras

Figura 19 - 1ª Formação continuada na escola: sensibilização e apresentação da proposta do projeto institucional “Uma leitura infantil sobre a cidade de Vitória”

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Além das formações previstas em calendário, os profissionais participam dos

estudos diários de 30 minutos, que permitem a discussão de algum assunto

pertinente ao grupo ou tema proposto para estudo17. O horário das 11h30 às 12h no

turno matutino e 17h30 às 18h fica organizado com informes, discussão do grupo e

estudos. Esses estudos acontecem com leitura de textos selecionados pelo CTA e

que estão diretamente ligados com as principais dificuldades e dúvidas do grupo.

O CTA e as professoras utilizam o tempo de 30 minutos para estudos diários, o que

constituiu um espaço mínimo para socializar informações, discutir as questões

cotidianas da instituição, organizar as ações que não estavam previstas em

calendário escolar e outras questões pertinentes de acordo com cada semana.

Para aqueles que participam do cotidiano escolar, apesar do cansaço e do tempo

curto, avaliam como necessários. Mas apesar do esforço dos profissionais em

garantir esse tempo diário, é importante destacar as limitações. Por acontecer no

horário final do expediente de trabalho, no horário próximo ao almoço e num período

de transição dos profissionais de uma escola para outra, esse horário faz com que

as professoras não se dediquem às discussões e debates que acontecem.

Com relação aos encontros de Formação Continuada prevista em calendário, o CTA

faz um levantamento no início do ano letivo das preferências e necessidades do

grupo em estar discutindo e estudando durante o ano. Todas as formações são

conduzidas pelo CTA, que prepara o material bibliográfico com uma semana de

antecedência, para que o grupo participe mais ativamente das discussões. É

também preparado um lanche especial e coletivo com a colaboração das

professoras e das merendeiras. Quando se convida algum palestrante de fora

sempre tem um momento de exposição do convidado e um momento posterior de

debate onde o grupo é estimulado a participar com questões.

Como faço parte do CTA do CMEI, posso dizer que fazemos muito esforço para o

avanço do grupo nas discussões, porém percebo que as professoras esperam e

17 Essa prática tem sido chamada pelos educadores do Sistema Municipal de Ensino de Vitória de “se

vira nos 30”.

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cobram muito do CTA; ficam com receio de falar, de se manifestar, de colocar suas

idéias e opiniões, e isso é ruim, pois parece que impomos tudo a todo o tempo, o

que, na verdade, apenas temos a função de organizar e articular os trabalhos. Mas,

me pergunto, por que as professoras ficam calados nesses momentos? Por que não

participam como esperávamos que acontecesse? Daí vem o pressuposto da

hierarquia tão implantada em nossa escola: aquele que sabe e o outro que só

escuta, aquele que detém o saber e o outro que não possui esse saber científico.

A primeira formação do ano de 2008 aconteceu nos dias 11 e 12 de fevereiro, e foi

no espaço da escola, com o objetivo de se discutir o tema adaptação, momento em

que, após leitura de um texto sobre o assunto, as professoras propuseram como

deveria acontecer o período de adaptação no CMEI.

As turmas menores iniciaram o ano letivo primeiro, assim as demais professoras

puderam ajudar nesse período. Iniciaram, então, as turmas do Berçário I, Berçário II

e Maternal, assim as professoras das turmas do Jardim I, Jardim II e Pré ajudavam

as turmas do Berçário I, Berçário II e Maternal. Os pais dos alunos devem

acompanhar o filho nesse período, e as professoras devem propor aos pais

conhecer os espaços do CMEI, realizar atividades com fotos das crianças, receber

as crianças com músicas e permitir que as crianças trouxessem de casa um objeto

que tenha muito apego. Dessa forma, as professoras entendem que será mais fácil

conter a ansiedade dos pais e o choro das crianças.

Nessa formação, as professoras colocaram suas dificuldades no período de

adaptação e principalmente sobre o choro dos bebês. O período de adaptação durou

dois meses, sendo que para algumas crianças se estendeu mais um pouco,

principalmente devido à troca de professoras no início do ano18.

A formação continuada tem como foco a formação de professores/pesquisadores, sinaliza não apenas uma visão diferenciada do ato de educar, mas também a necessidade de condições estruturais que possibilitem uma reflexão constante, individual e coletiva, acerca do cotidiano vivido. A defesa de professores-pesquisadores implica que o sistema de ensino

18 O ano letivo para a turma do Berçário I iniciou com duas professoras e duas auxiliares e depois de

um mês, houve uma troca de professoras, o que dificultou um pouco a adaptação das crianças.

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compreenda o ato de pesquisa como parte inerente do trabalho dos professores e, como tal, passível de financiamento, visto que esta é uma dimensão necessária a uma perspectiva comprometida com a qualidade social do ensino 19.

A proposta de formação para o ano de 2007 diferenciou-se da proposta para 2008.

Em 2007, as formações aconteceram no espaço da escola, com os trabalhos

direcionados pelo CTA e escolhidos pelas professoras. Também havia a formação

por grupos de professores, organizadas pela SEME. No ano de 2008, as formações

previstas em calendário asseguraram alguns momentos que deveriam ser

organizados pela própria escola e outros organizadas pela SEME, sendo que a

própria SEME, na figura da assessora, é que desenvolveria a formação no espaço

da escola.

A diferença das formações organizadas pela escola e aquelas organizadas pela

SEME é que na escola nós, do CTA, elaboramos as formações de acordo com as

sugestões das professoras e demais funcionários. A primeira formação organizada

pela SEME foi sobre Educação Inclusiva, conduzida pela assessora do CMEI. Esse

tema trouxe muita polêmica no espaço do CMEI (Figura 20).

Figura 20 - Formação continuada na escola. Tema: Inclusão

19 Texto: Política de Formação Continuada para profissionais da educação do sistema municipal de

ensino de Vitória – versão preliminar. 2007, p. 13.

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No dia 16 de abril de 2008, a assessora Rosa20 veio até o CMEI para realizar a

formação com os funcionários, cujo tema debatido foi Inclusão. Ela apresentou o

histórico da Inclusão. O grupo discutiu a diferença entre Educação Especial e

Educação Inclusiva. As professoras colocaram que Inclusão é uma maneira de lidar

com a Educação Especial, portanto uma mudança de atitude e comportamento.

O grupo trouxe a discussão sobre as dicotomias presentes na sociedade:

inclusão/exclusão; certo/errado, etc. Outro ponto importante diz respeito ao

aprofundamento do atendimento a esses alunos de acordo com a especialidade e o

número de discentes atendidos. “Entender, ampliar e qualificar o atendimento é

fundamental para garantir a inclusão de fato” (fala da assessora Rosa).

A assessora falou das políticas de inclusão: professor especializado, estagiário e

número de alunos. Nesse momento, as professoras colocaram suas insatisfações

diante do atendimento do professor especializado, o não comprometimento desse

profissional e as muitas atribuições que tem e que não consegue cumprir devido ao

tempo pequeno no CMEI. São dois dias para atender a três alunos com

necessidades diferentes: um com microcefalia, outro com uma síndrome não

identificada e outro com suspeita de Transtorno no Déficit de Atenção –

Hiperatividade (TDAH), não comprovado.

Nessa formação as professoras colocaram suas insatisfações diante da falta de

profissional na escola: auxiliar de berçário, estagiário e professor dinamizador (Arte

e Educação Física). Questionaram que uma coisa é o que está no papel garantindo

quatro planejamentos de cinqüenta minutos por semana e outra coisa é o que está

acontecendo de fato. Como garantir os planejamentos sem aulas de Arte e

Educação Física e como garantir uma educação de qualidade sem estagiários e

auxiliar de berçário?21

20 Assessora da SEME que atende cinco CMEIs dentre eles o CMEI “Sonho Meu”. 21 Até esse momento não tínhamos professoras de Arte e Educação Física suficientes no CMEI para

garantir a carga horária do aluno e os Planejamentos das professoras.

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A preocupação do CTA está em garantir que as formações tenham sempre uma

parte teórica e uma prática22, pois entendem que isso garante a articulação com os

trabalhos realizados na escola, os projetos e outras atividades. Dessa forma, sempre

após uma formação, usam o tempo de 30 minutos diários para reforçar o que foi

estudado e discutido e, assim, refazem a proposta curricular e o PPP da escola.

4.2.5 Projeto de Educação Especial

O programa de Educação Especial tem como referência priorizar o atendimento dos

alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEE) na própria escola, contando

com um professor especializado para garantir o atendimento.

[...] o presente plano de trabalho vem apresentar as principais ações e/ou organização, voltadas à formação e acompanhamento à educação especial, em consonância com os demais setores da SEME/Central, contribuindo para que se estabeleçam, no contexto escolar e no espaço da sala de aula, práticas socioeducativas que atendam ao princípio da diversidade humana. Temos, nessas ações, um objetivo maior que é o de redimensionar o atendimento educacional especializado nas unidades de ensino do Sistema Municipal de Ensino de Vitória, a fim de aprimorar as práticas pedagógicas e a discussão acerca da educação inclusiva, no cotidiano das escolas (PROGRAMA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, 2007)

O atendimento aos alunos ditos especiais acontecia em laboratórios pedagógicos

nas escolas pólos. O aluno estudava na sala de aula regular e no contra-turno e

freqüentava o laboratório com atendimento de professores especializados. Após

avaliação com as unidades de ensino e da Gerência de Educação Especial, o

atendimento aos alunos com NEE passou a ser feito na própria escola com a figura

do professor especializado no espaço escolar. De acordo com a especificidade do

atendimento, o professor especializado é encaminhado para a escola e deve

desenvolver um trabalho colaborativo com o professor regente.

22 Embora nossa tentativa é de superar as dicotomias existente no interior da escola ainda nos

deparamos com um visão dicotômica entre a teoria e a prática, principalmente no que se referem as formações continuadas.

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O atendimento educacional especializado nas escolas da rede regular de ensino será realizado mediante:

• atuação colaborativa do professor especializado com os professores do ensino regular;

• atuação de professores-intérpretes das linguagens e códigos aplicáveis;

• atuação de professores itinerantes intra e interinstitucionais; • disponibilização de outros apoios necessários à

aprendizagem, à locomoção e à comunicação; • salas de apoio pedagógico, nas quais o professor

especializado possa realizar a complementação ou suplementação curricular, utilizando procedimentos, equipamentos e materiais específicos em período diverso ao da escolarização (PROGRAMA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, 2007).

Em relação ao atendimento ao aluno ser dentro da unidade de ensino indica um

ponto positivo nesse projeto, pois as professoras regentes e especializadas estarão

mais próximas para discutirem as questões referentes aos discentes. Por outro lado,

tem um complicador que é o tempo de permanência desse professor no espaço da

escola, o que acaba sendo motivo de discussão constante das professoras, como

pudemos observar na discussão anterior sobre a formação continuada na escola

com o tema inclusão.

O professor especializado tem sua carga horária organizada de acordo com o

número de alunos atendido. No caso do CMEI pesquisado, como a professora

atende a três alunos, ela vem à escola duas vezes por semana, nas segundas e

terças-feiras. Nesses dois dias, ela deve planejar com o Pedagogo, planejar com o

professor de sala e ter tempo para preparar seu material, tendo direito a 20 minutos

de lanche por dia, e deve atender ainda aos alunos garantindo pelo menos 50

minutos por dia de atendimento.

Dessa forma, o que vemos no plano de trabalho e na proposta de educação

inclusiva não acontece no cotidiano, como prova a fala da Professora Jaqueline:

Kelen – Existe na SEME uma Proposta de Educação Especial, um plano de trabalho. Você conhece essa proposta? Professora Jaqueline – A gente conheceu na primeira formação que tivemos na escola. No dia teve uma grande discussão sobre a professora que atende esses alunos aqui na escola, até o momento a professora especialista não atende essa proposta, vamos ver se ela vai dar conta até o final do ano. Kelen – A professora especialista planeja uma atividade toda vez que vai para sua sala de aula ou ela só acompanha sua aula?

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Professora Jaqueline – Eu acho que ela acompanha em um momento e depois ela aplica uma atividade. Kelen – Pelo que consta atende aos alunos dois dias por semana? Professora Jaqueline – Agora é um só, na terça, mas ela vem dois dias. Kelen – Você acha que esse tempo é suficiente? Professora Jaqueline – Eu acho que não, porque é muito pouco, ela vai lá, fica esse momento e tem outros momentos que ela poderia estar observando, como por exemplo: no almoço, no pátio, no momento que a gente está falando do projeto. Eu acho que não vale muito a pena ter esse profissional apenas dois dias para atender toda a escola, na verdade não atende.

Dessa forma, fica difícil organizar um trabalho que desenvolva no aluno

conhecimentos de acordo com suas necessidades. Outro agravante é o

comprometimento desse profissional, como consta na fala da Pedagoga Mara:

Nos já vivenciamos um ano com a mesma proposta, e o professor, na época, conseguiu executar essa proposta de trabalho, tanto a da SEME quanto a do CMEI, de forma construtiva. Mas a gente já viveu outra realidade, onde o profissional desconhece a proposta de Educação Especial da SEME e não consegue dar conta das ações planejadas. Eu acho que vai muito do profissional querer conhecer esse documento e de fazer esse documento ter efeito produtivo para esse aluno.

Muitas vezes o profissional da educação especial que está no CMEI não tem um

comprometimento com a proposta da educação especial, e o trabalho não alcança

os objetivos propostos no plano de trabalho. Sabemos que o fator tempo é o que

mais influencia o professor especializado, não ter um tempo específico para discutir

com o professor de sala estratégias e ações para desenvolver com o aluno.

Também não dispomos de professoras que atendam a todas as especificidades que

há no espaço escolar. Por exemplo, no turno vespertino existe um aluno com

comprometimento motor e cognitivo que faz acompanhamento na Associação de

Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), mas não temos o profissional para

acompanhá-lo na escola e nem podemos contar com estagiários para auxiliar a

professora.

[...] precisava de um tempo para a professora especializada estar sentando junto com a gente e planejando. Como ela é a especialista deve ter algum subsídio para passar para a gente, ela seria o apoio, só que não temos esse contato direto, um momento para sentar e conversar, para ela dar dicas e para saber como trabalhamos na sala de aula (Professora Jaqueline).

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Além do atendimento a esses alunos, no espaço da escola, com professor

especializado, também contamos com alguns convênios: APAE que oferece

avaliações multidisciplinares, apoio à escolarização, atendimentos clínicos e

terapêuticos, centro ocupacional, centro profissional e serviço de orientação aos

profissionais da educação; Projeto Integrartes que realiza um trabalho de atividades

artísticas numa abordagem sócio/artístico/cultural/educacional num único espaço e é

desenvolvido por profissionais especializados; um Projeto da SEME/PMV que é um

espaço organizado chamado Centro de Desenvolvimento do Talento (CETDET) em

parceria com a Associação Brasileira para Altas Habilidades/Superdotados que

recebe crianças com habilidades especiais; e um outro Projeto da SEME/PMV que é

o espaço de comunicação significativa da área da surdez, que funciona nas escolas

pólos e visa promover melhoria da interação entre família, escola e alunos com

surdez. Esses projetos e programas têm concepções muito diferentes, com objetivos

e interesses distintos e muitas vezes antagônicos para o aluno com NEE.

As discussões em torno do atendimento aos alunos com NEE são constantes tanto

no espaço da escola quanto na própria SEME. As professoras alegam o tempo todo

que não têm formação para lidar com esses alunos, e que a professora

especializada não dá conta por também não estar preparada para tal função. Nesse

caso, cada um (professor de sala regular, professor especializado) a seu modo, vai

construindo formas de lidar com o aluno com NEE e, na maioria das vezes,

consegue avanços em seu processo de aprendizagem, mesmo sem saber muito

bem como lidar com as situações vivenciadas e, ainda, sem ter formação específica.

Esteban (2003, p. 82-83) traz um pouco dessa discussão de como as professoras

atuam dentro de um campo em que seus saberes são colocados à prova o tempo

todo. No início vem o medo de lidar com o aluno com NEE, depois vem a conquista

desse aluno e a busca por ajuda, pesquisa de sua especialidade e como lidar com

ele e, por fim, percebe-se que é o professor e o aluno, que não têm manual, que

precisam dar conta dessa situação. O que vai ajudar esse professor são os saberes

cotidianos, que são construídos na relação com o outro, nas experiências pessoais,

na prática cotidiana. A relação pedagógica está marcada pelos saberes cotidianos, de senso comum, representação de verdades resultantes das experiências pessoais e parte significativa de todo o conhecimento

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futuro de cada sujeito. Os saberes cotidianos são contextualizados e coletivos, entranhados nas múltiplas ações escolares cotidianas, condutores do olhar, constituintes da compreensão, fios que costuram as práticas e estabelecem vínculos. A prática vai sendo configurada no diálogo entre diversos conhecimentos que circulam no espaço escolar. Não se pode pretender, portanto, uma formação docente que contraponha ciência e senso comum, o que fortalece nossa hipótese de que a dupla ruptura epistemológica indica um sentido importante para repensar a produção do conhecimento, incluindo o conhecimento escolar (ESTEBAN, 2003, p. 82-83).

Não se pode pensar que a formação continuada vai dar conta de ensinar a lidar com

os alunos ou que a presença de um professor especializado vai possibilitar o avanço

na aprendizagem dos alunos. O que é preciso e de fundamental importância é o

entendimento da especificidade desse aluno, do que vem a ser a inclusão e o

trabalho colaborativo. Essas discussões não estão acontecendo com profundidade

no espaço escolar, indo de encontro com a proposta da SEME para o trabalho com

a Educação Especial. Como relata a Professora Jaqueline:

[...] esse trabalho colaborativo não está acontecendo, eu faço o meu trabalho e ela faz do jeito dela. Teve um momento que depois do almoço ela chegou na porta da sala e queria saber o que eu estava trabalhando com as crianças, se estava trabalhando cores, números, uma pergunta que indica que ela não sabe como acontece a parte cognitiva na escola, porque a gente não trabalha separado, ah hoje vamos trabalhar cores, hoje a gente vai trabalhar isso, não é assim, a gente trabalha o projeto e vai puxando tudo na aula. Ela também não sabe o que está acontecendo na sala de aula. Eu me pergunto: Será que ela está trabalhando isso específico com o Matheus? Não sei.

Em relação ao trabalho colaborativo, não temos tempo disponível para o

planejamento dos dois professores. O que acontece são as conversas nos

corredores da escola, no momento de lanche do professor, no momento de pátio.

Saber a deficiência da criança não é tudo, pois não basta saber, não basta ter um

laudo específico, é necessário entender as possibilidades desse aluno e acreditar

em sua capacidade de desenvolvimento.

Entender o processo de inclusão implica leitura, debate, estudo e principalmente

práticas sócio-educacionais que atendam ao princípio da diversidade humana, como

colocada no Plano de Trabalho/2007, que pauta o trabalho com a Educação

Inclusiva nas escolas:

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Nesse sentido o plano de trabalho em pauta estará atendendo a três grandes objetivos, os quais são: Oportunizar a um maior número de unidades de ensino condições para reflexão e elaboração teórico-prática acerca da educação especial na perspectiva da inclusão; Facilitar o acesso dos alunos ao atendimento educacional especializado, visando descentralizar a concentração dos mesmos nas unidades de ensino com laboratórios pedagógicos; Aprimorar e estreitar as relações e as trocas de experiências das práticas pedagógicas realizadas, com os alunos, pelos professores especializados em educação especial e pelos professores de sala comum, diretores, pedagogos, coordenadores de turno e outros profissionais da escola.23

Essas questões colocadas no plano de trabalho da educação especial têm como

referência organizar o trabalho e direcionar as ações; porém, na fala das

professoras, a educação especial precisa de espaço físico adequado, professoras

mais qualificadas, estagiárias, atendimento fora da escola e acompanhamento da

família.

A escola dá conta desse aluno com NEE do seu jeito, cria estratégias para lidar com

ele, pede socorro a todos os funcionários e consegue desenvolver um trabalho com

resultado positivo. A criança avança em vários pontos, e seu avanço é visível, porém

as professoras não sabem dizer se fazem certo ou não, pois muitas vezes não

seguem a proposta estabelecida pelo órgão central, mas lidam com a situação no

cotidiano. A Professora Jaqueline fala disso com propriedade:

[...] a escola é tudo pra ele. Porque a gente vê como ele avançou. Eu não tinha visto o Matheus na escola no ano passado, comecei a observá-lo quando ele comeu o lanche das professoras, se pintou todo e sujou a sala da diretora Cláudia de tinta, aí eu passei a ver o Matheus na escola. Mas pelo que me contaram, de como o Matheus entrou aqui, a escola foi tudo pra ele, em relação ao desenvolvimento afetivo, à socialização. Até os vigias vieram me falar, “Professora, o Matheus é outra criança”. Então, o objetivo da escola foi alcançado.

A escola enfrenta dificuldades e desafios, e muitas vezes falta suporte, pessoal,

material, mas ela consegue dar conta; de alguma forma ela cumpre o seu papel de

ensinar e aprender. O conhecimento é pensado, discutido, e as ações são

realizadas. É na experiência do cotidiano que as coisas acontecem, e o

23 Texto: Plano de trabalho/2007. Vitória, 2007, p. 3.

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conhecimento mecanizado, científico e teórico se mistura a um conhecimento

dinâmico, prático e mais humano.

4.2.6 Professor dinamizador de Arte e Educação Física Na tentativa de falar de alguns projetos vivenciados na escola, deparei-me com as

aulas de Arte e Educação Física que são propostas para a Educação Infantil

implementadas pela SEME, tendo início com o projeto piloto em 2005. Nesse

projeto, os professores deveriam trabalhar junto com o professor regente. Em 2006,

a SEME, após ampla discussão com os professores chamados dinamizadores,

entendeu que esses professores deveriam fazer um trabalho voltado para arte e

movimento, sendo realizado individualmente, ou seja, sem a presença do professor

regente. Isso facilitou o movimento do CMEI em relação ao planejamento do

professor regente, que é pensado no horário das aulas de Arte e Educação Física.

Tanto no modelo do projeto piloto em 2005, quanto hoje com os professores

dinamizadores, não existe nenhum projeto central que venha da SEME, ou que foi

elaborado pela SEME de Educação Física ou Arte para a Educação Infantil. O que

temos são os registros dos professores dessas disciplinas que elaboraram os seus

trabalhos pautados em projetos. Podemos ver os registros das professoras de

Educação Física do ano de 200724 que, articuladas com o projeto da escola que foi

“Desvelando nossa história através do PPP”, elaboraram o projeto “Resgatando as

brincadeiras da infância de São Pedro”. Esse projeto permitiu uma aproximação com

as famílias através de pesquisa, realização de oficinas, visita aos espaços coletivos

do bairro e valorização do contexto em que vivem.

As professoras registraram os momentos das aulas através de fotos, filmagens e

desenho das crianças. Esses registros são essenciais na elaboração do projeto e

também para a Mostra Cultural25, que acontece no final de cada ano no CMEI. Mas

a Professora de Educação Física Karla relatou que no início, em 2007, quando

24 Neste ano não tivemos professoras de Artes. 25 A Mostra Cultural é um momento em que as professoras expõem os trabalhos realizados durante

todo o ano letivo.

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entrou na SEME e no CMEI como professora dinamizadora, não conhecia a

proposta do trabalho com projetos.

Kelen – Em relação aos projetos da escola, o que você acha? Professora de Educação Física Karla – Eu acho legal, acho que funciona, o projeto dá uma orientação e pode ser mudado, diferente do plano de ensino. Esse projeto é construído no decorrer do ano. Os projetos estão sempre dando prioridade às coisas do bairro, às necessidades das crianças. Kelen – Como é trabalhar com projetos? Que teorias você usa ou o CMEI usa para trabalhar com projetos? Tem alguma base teórica que vocês usam para trabalhar com projetos? Professora de Educação Física Karla – Na verdade a gente não aprendeu a trabalhar com projetos, projeto eu fui vivenciar aqui e o que eu li foi Fernandes Hernandez no ano passado, (se refere a 2007) com o projeto que a gente trabalhou. Mas, a minha experiência de projeto é só com Fernandes Hernandez. A gente não vê isso, quando cheguei aqui fiquei desorientada: O que é trabalhar com projetos, Laura? (outra professora de Educação Física) Cadê o projeto? E eu falava: – O projeto está em construção. Ela não entendia como que o projeto está em construção. Ela falava: Mas o projeto vai terminar no final do ano? Eu dizia: – É. Ela não entendia muito bem, muito menos eu. Aí no final do ano é que a gente teve um entendimento melhor. Kelen – Nesse projeto vocês dão conta dos conteúdos? Ou muita coisa fica fora dele? Professora de Educação Física Karla – Não dá. Nesse projeto a gente fez a pesquisa com a família, selecionou as brincadeiras e trabalhou com essas brincadeiras de acordo com cada faixa etária. Seria o que não dá conta? Kelen – O CMEI tem muitos projetos e às vezes não dá conta de todos, acaba virando um fazer só projetos? Professora de Educação Física Karla – Acho que a gente deu conta, no final do ano tivemos que correr, mas deu conta.

A professora também relata que na SEME não tem nenhuma orientação do trabalho

com Educação Física na Educação Infantil. Não sabia como iniciar o trabalho por

falta de experiência. Coloca que a visão que a SEME tem do professor de Educação

Física na Educação Infantil está um pouco ultrapassada.

Kelen – Vocês seguem algum currículo, algum conteúdo específico que vocês têm que desenvolver? Professora de Educação Física Karla – Na verdade, na SEME eles falam que temos que trabalhar com a psicomotricidade, mas a gente, da Educação Física, entende que isso já ficou pra traz há muito tempo. Quando eu cheguei, quando a Laura (professora de Educação Física que trabalhou no CMEI em 2007) chegou, eles falaram: – Não se preocupa, é a psicomotricidade que vocês têm que trabalhar. Então se você pegar um livro de psicomotricidade tem um monte de linha: de 0 a 1 você pode fazer isso aqui, de 0 a 2 isso, é determinado, então a gente não faz muito isso.

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Kelen – Você acha que isso está ultrapassado? Professora de Educação Física Karla – Acho que sim. O que deu certo foi trabalhar com projetos, antes tinha o plano de ensino que eu achava o fim da picada, porque você tinha que planejar uma coisa para o ano todo, mas só que ia acontecendo várias coisas que você tinha que modificar, às vezes o plano de ensino não estava bom para aquela comunidade, daquela escola só que você já tinha feito, era aquilo mesmo, e tinha que seguir. Aí quando vim pra cá comecei a trabalhar com projetos, aí eu me encantei, achei que meu trabalho apareceu, apareceu para nós, apareceu para crianças e foi muito legal. Kelen – E o trabalho com projetos, vocês que constroem ou vem da SEME? A SEME tem algum projeto específico para educação física? Professora de Educação Física Karla – Não, o que eles entregam para gente é o RCNEI com as orientações, só que fica muito solto. Mas projeto não tem, não.

As professoras de Educação Física e Artes, quando chegam aos Centros de

Educação Infantil têm que dar conta de sua especificidade através da elaboração e

realização de projetos de trabalho; têm que se impor enquanto professoras de uma

disciplina específica sem deixar a impressão de que estão ali para cobrir os

planejamentos das professoras regentes e mostrar um trabalho pautado no

conhecimento de sua área de atuação.

Por não ter um tempo específico com as professoras regentes, o trabalho dos

especialistas em Arte e Educação Física se configura em um campo desconhecido

para o CMEI, pois o professor regente não tem um sentimento de pertencimento

com essas professoras ou com as disciplinas. Por não entenderem ou não terem um

conhecimento do trabalho das professoras dinamizadoras, as professoras regentes

fazem comentários que provocam um mal-estar. Tudo é motivo de críticas e

discussões no espaço escolar: se o professor dinamizador deixa objetos fora do

lugar na sala de aula, se as crianças ficam agitadas após a aula de Educação Física

ou Arte, o conteúdo trabalhado pelo professor dinamizador, que muitas vezes o

professor regente considera inadequado; a forma como o professor dinamizador

conduz sua aula, se deixa as crianças em sala ou se leva para o pátio; quando some

algum objeto pessoal da criança na aula de Educação Física ou Artes. Essas e

outras são questões que impossibilitam uma aproximação dos professores regentes

com as disciplinas de Arte e Educação Física.

Mesmo com essas questões conflitantes que afastam os professores regentes e

dinamizadores, percebo que existe no CMEI uma valorização da dimensão lúdica e

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das práticas culturais contextualizadas com a realidade da comunidade escolar, o

que permite visualizar um trabalho de pesquisa e de envolvimento com os alunos e

as famílias, por parte das professoras dinamizadoras (Figura 21, Figura 22, Figura

23).

As professoras buscam entender o processo e saberes dos alunos em cada faixa

etária para, assim, planejarem suas aulas, e no término de cada aula, refletem sobre

a atividade trabalhada, num processo de avaliação constante e reflexão sobre a

própria prática como professoraspesquisadoras – estão sempre reinventado novas

formas de trabalho.

Foi possível perceber os processos utilizados pelos diferentes saberes que os/as profissionais fazem uso. Também vislumbramos aspectos antes não percebidos, com as crianças em diferentes momentos, situações, tempos e espaços: a linguagem corporal para além dos 50 minutos destinados para a aula de Educação Física, a espontaneidade das crianças para além dos momentos do pátio, as habilidades motoras finas para além da alfabetização, as necessidades de tempo e de espaço das crianças, de acordo com os saberes que podem ser articulados em temáticas trabalhadas por todos/as os/as profissionais. De forma coletiva, possibilidades temáticas eram construídas e exploradas de múltiplas maneiras, fomentadas pela análisereflexãorevisão dos objetivos propostos, das respostas das crianças, do que foi alcançado e do que seria ressignificado (NUNES, 2007, p. 150).

Figura 21 - Aula de Educação Física

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Figura 22 - Oficina de peteca com as famílias promovida pela professora de Educação Física e pelo professor de Arte – Pré A/B vespertino

Figura 23 - Oficina de peteca com as famílias promovida pelas professoras de Educação Física – Turma Pré A/B matutino

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5. UMA SEGUNDA APROXIMAÇÃO DO COTIDIANO ESCOLAR: FRAGMENTOS DAS PRÁTICAS E SABERES DOS SUJEITOS PRATICANTES DO COTIDIANO EM RELAÇÃO A ALGUNS DOS PROJETOS DESENVOLVIDOS

5.1 O que estamos chamando de currículo por projetos?

Quando iniciei meu trabalho no CMEI, em 2005, procurei, junto com o CTA do CMEI,

fazer um estudo inicial do que seria o trabalho com o projeto. Então o CTA sugeriu

um estudo que abordasse as idéias de Fernando Hernández a partir de sua obra “A

organização do currículo por projetos de trabalho: o conhecimento é um

caleidoscópio”, para que o grupo pudesse entender um pouco sobre o que vem a ser

um trabalho com projetos, embora essa política já fosse abordada e desenvolvida na

Prefeitura de Vitória, como consta no relato das professoras Cássia e Regina:

Kelen – Em relação aos projetos, vocês tiveram algumas formações ou estudos sobre projetos? Professora Regina – No CMEI em que eu trabalhava em 1999 começou o trabalho com projeto, o horário do professor era das 7h às 12h, então o CTA, das 12h às 13h, fazia o grupo de estudo. Era polêmico porque tinha aquele grupo que não podia ficar, por trabalhar em outro espaço, e era o horário de transição, mas tinha outros profissionais que ficavam. Então das 12h às 13h era feito todo o trabalho, o estudo do projeto, que era baseado nos textos de Fernando Hernández. Quando tinha estudo o pedagogo tinha a preocupação de estar discutindo o assunto. Então houve um estudo sobre projetos, pelo menos naquele CMEI em que eu trabalhava na época. Professora Cássia – Eu estou me lembrando que no ano que entrei na escola veio o pessoal da SEME, dar formação sobre como trabalhar com projeto, por que era novo e diferente do que trabalhávamos. Professora Regina – Eu me lembro que antes era dividido por áreas, tinha ciência, matemática, português e, querendo ou não, você trabalhava com os conteúdos da grade. Mas a gente trabalhava também temas que fugiam ao cotidiano do currículo, eu lembro que a gente fez um trabalho sobre o sistema solar, e fizemos estudos, não era aquela coisa de só dar o conteúdo, era também o trabalho com as crianças. Professora Cássia – Depois surgiram os professores de projetos, logo que eu entrei em 2002, e o professor de projeto desenvolvia o projeto institucional e tinha os projetos de sala, o institucional ficava com ele, mas tinha uma articulação com a gente. Kelen - Hoje vocês trabalham o projeto institucional, quem determinou isso? Professora Regina – Eu acho que vai da realidade de cada CMEI; no CMEI que trabalhei antes, no ano passado, tinha o projeto

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institucional que é o projeto literário que trabalhamos aqui, e tinha os projetos de sala, até 2005 eu trabalhei assim. Nos projetos de sala o professor decide o que vai trabalhar. Já aqui no CMEI “Sonho meu” não, há o projeto literário e o institucional, que querendo ou não tudo é um projeto institucional.

O trabalho com projeto é entendido como uma linha norteadora do trabalho para

todo o ano, pois é escolhido um tema chave que vai direcionar os trabalhos das

professoras e alunos, e de toda a escola. Nesse sentido, o projeto chamado

institucional é o que vai dar vida às atividades pedagógicas. O planejamento gira em

torno dele: as ações, os materiais a serem comprados e a relação família e escola.

O projeto institucional torna-se, então, um campo único, linear, obrigatório e

hierarquizado como na grafia da árvore (ALVES; OLIVEIRA, 2002) em que todos os

conhecimentos passam pelo tronco e se ramificam em temas ou disciplinas a serem

trabalhados. Comparo o projeto institucional desenvolvido na escola ou nas escolas

com a grafia da árvore, pois entendo que ele tem as mesmas características: é

hierarquizado, pois os conteúdos e assuntos passam por uma seleção do que é

mais importante e prioritário no trabalho em cada faixa etária; linear, porque tem um

ritmo a ser seguido, não podendo fugir desse norte; obrigatório, porque todos têm

que segui-lo, e a escola gira em torno dele. Não são os projetos que se articulam às

necessidades de aprendizagem dos alunos, mas o processo de aprendizagem, os

conteúdos que devem se adequar aos projetos.

Os projetos, tanto os da SEME como os da escola, seguem padrões semelhantes de

estruturação. Eles têm em sua formatação uma introdução, uma justificativa, depois

falam das ações práticas desenvolvidas, apresentam um cronograma definido e uma

conclusão ou resultados finais. Na verdade, o que existe de diferente entre os

projetos que são implementados pela SEME e os que a escola trabalha é a

participação das professoras na elaboração das atividades e conteúdos a serem

trabalhados com as crianças, quando se discute com o pedagogo nos momentos de

planejamentos semanais.

Os projetos que vêm da SEME vêm como pacotes fechados, com proposta de

trabalho já debatida e escrita, porém são ressignificados no cotidiano pelos sujeitos.

Os projetos da escola (Quadro 6) são discutidos com o grupo de professoras,

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escolhidos o tema central e os enfoques que cada turma vai priorizar. Ele é

construído no decorrer do ano letivo, nos planejamentos, nas formações e nos

outros temposespaços do CMEI. Porém, o tema já está determinado pelo grupo, e

os subtemas ou enfoques são divididos pelas turmas de acordo com a faixa etária.

Quadro 6 - Projeto a ser trabalhado em 2008: Uma leitura Infantil sobre a cidade de Vitória

Eixo norteador: A cidade de Vitória

Eixos temáticos da Educação Infantil

Nos planejamentos semanais, as professoras, junto com o pedagogo, discutem o

que pode ser ampliado, o que está legal e o que precisa ser mudado e repensado,

tanto para com os alunos, como para com as famílias e a comunidade. As

professoras escolhem o enfoque do projeto a ser trabalhado com os alunos e

também propõem etapas que servem de sugestões para o trabalho durante o ano

letivo. Essas etapas previstas se modificam, ampliam-se ou são suprimidas

conforme o interesse e necessidade que surgem.

Mesmo com a participação das professoras na elaboração e execução das

atividades, é sempre o CTA que direciona os projetos, começando pela sugestão do

tema, pela escrita das ações propostas, pelas sugestões de atividades e pela escrita

final dos projetos. As professoras e alunos que estão envolvidos nas ações

VITÓRIA

Pontos turísticos

Região litorânea

Culinária Aspectos

culturais

Personalidades

ilustres

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cotidianas, em que realmente os projetos ganham vida, participam com mais ênfase

na execução, no fazer cotidiano.

Dessa forma, os projetos da escola seguem uma linha hierárquica de execução e

ação, sendo primeiro o CTA que elege um tema e algumas sugestões de trabalho,

depois o grupo de professoras (os demais funcionários tem pouca participação)

compartilha sua sugestão, que se junta a do CTA para que aconteça uma votação;

em seguida, os alunos são “sensibilizados” para o trabalho com o tema proposto, e

este é apenas apresentado às famílias.

Estou falando de uma impressão inicial, mas durante o ano letivo as coisas vão

acontecendo, e os projetos ganham vida, as ações planejadas acontecem e ampliam

a aprendizagem dos alunos, as oficinas e pesquisas com a família garantem a

participação da comunidade, e as professoras inventam formas de ensinaraprender,

que vão além do que está no papel ou do que é prescrito no projeto.

Quando falo de uma proposta de currículo por projetos, penso nos projetos como

forma de organização do trabalho que pretende contemplar conteúdos eleitos como

importantes para essa faixa etária. Porém, os projetos não só organizam, eles

acabam direcionando o trabalho, hierarquizando as ações e padronizando o

currículo e, dessa forma, fica impossível um tempo para pensar o vivido no coletivo.

Essa é uma discussão que tem emergido com intensidade nos depoimentos dos educadores em nossas pesquisas: que tempo nos sobra para pensarmos sobre o vivido na escola? Como conciliar a overdose de demandas das Secretarias com as necessidades que decorrem do nosso coletivo? Se já não há tempo para dar conta do que é colocado como comum e obrigatório a todas as escolas, imagine o que sobra para podermos tratar do que nos é próprio (FERRAÇO; CARVALHO, 2008, p. 8).

O trabalho com projetos acaba assumindo uma lógica da competição entre as

professoras e entre as escolas fato que muitas vezes impede os educadores de

pensar no que realmente importa: as relações vivenciadas entre os sujeitos, os

saberesfazeres dos alunos, como o conhecimento se dá nos diferentes

espaçostempos e as negociações vividas na escola.

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Por fim, há que se sugerir questões decorrentes do título aqui proposto: como é possível conciliar uma política de educação pautada pela democratização em meio às lógicas de currículos e projetos que têm como meta assegurar o controle, a disputa e a classificação? Como defender uma proposta de emancipação na educação com projetos que destituem o outro dos processos de negociação e que se reduzem à mera busca por um produto final que possa ser contemplado e que acaba produzindo, ao mesmo tempo, sentimento de heroísmos e incompetências individuais? (FERRAÇO; CARVALHO, 2008, p. 9).

No CMEI pesquisado, o trabalho com projetos pretende ser negociado no coletivo

quando propõe a escolha de temas para o projeto institucional, quando discute com

as professoras os temas para as formações continuadas na escola, quando no

projeto literário solicita que as professoras dêem sugestões de autores infantis e

escolhem os livros para trabalhar com as crianças, quando o CTA discute com as

professoras atividades pertinentes aos projetos e faixa etária das turmas, quando

chama os pais e a comunidade a participar de alguma atividade.

Porém, essas questões que permeiam os projetos não dão conta de um currículo

que fale do cotidiano vivido e sentido, não ultrapassam as burocracias impostas na e

para a escola, não têm um escuta para além do que se quer e têm uma

preocupação muito grande com os resultados. Um projeto tem uma intenção: pensar

pelo outro.

Por fim, não podemos ter projetos nem para nem pelos outros, mas com os outros. Essa é uma dimensão fundamental de ser assegurada, sobretudo na educação. Por mais bem intencionados que os burocratas dos sistemas e mesmos os educadores que estão nas escolas possam ser, não há como propor projetos à revelia dos sujeitos que estarão, direta ou indiretamente, envolvidos nesses projetos. Assim, como não podemos viver pelo outro, também não podemos projetar por ele. Decorre dessa dimensão dos projetos a necessidade de ouvir o outro em suas necessidades, interesses, desejos e expectativas de vida. (FERRAÇO; CARVALHO, 2008, p. 5).

O que se pretende, então, é trabalhar um currículo para além do pensar pelo outro,

um currículo que perpasse os saberes, fazeres e poderes dos sujeitos, e entendo

que isso só é possível a partir das redes cotidianas, portanto de um currículo em

redes. Mas para pensar currículos em redes na relação com o projeto pedagógico é

preciso considerar alguns elementos, como:

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a) a negociação pedagógica: a negociação entre professores, alunos e o coletivo escolar é essencial, já que não há educação e pedagogia senão no âmbito relacional, na relação. Se a negociação sofre problemas, não estamos mais diante de currículos em redes, mas sim diante de um projeto do sistema, do professor ou de ensino. [...] b) o âmbito coletivo: os currículos em redes têm a particularidade de serem, em si mesmos, projetos coletivos, mas, para tanto, exigem articulação entre projetos individuais e grupais, visto que o fato de invocar os currículos em redes nos posiciona no âmbito de um processo de aprenderensinar resolutamente ativo com tudo que isso implica no nível dos projetos individuais de ensino, no caso dos professores, e de aprendizagem, no caso dos alunos, e para além deles; c) os currículos em redes são diferentes de currículos orientados por uma pedagogia dos objetivos, visto que a pedagogia dos objetivos, valorizando excessivamente os objetivos a serem alcançados, torna-se demasiadamente formal e operatória. [...] Tem-se que considerar, então, que, se a pedagogia dos objetivos é uma pedagogia da determinação, a pedagogia dos currículos em redes pretende ser uma pedagogia da incerteza; d) o horizonte do projeto e a ordenação do tempo de aprendizagem: nos currículos em redes, o horizonte do projeto remete a seu próprio envelhecimento, ao esgotamento das energias que mobiliza. Pode-se permanecer sempre em projeto? Essa parece ser uma questão relevante; e) a gestão do projeto de escola nos currículos em redes busca utilizar as capacidades de criação e de inovação tornadas possíveis pela autonomia concedida à instituição escolar e, para fazê-lo, integra de modo pragmático a política educacional e pedagógica que a escola escolhe conduzir, quando apresenta essa capacidade coletiva de escolha, organização e experimentação (FERRAÇO; CARVALHO, 2008, p 3).

5.2 O que pensam e o que acham os sujeitos praticantes sobre os projetos?

No dia-a-dia da sala de aula, nas ações cotidianas das escolas, no murmúrio dos

alunos, nas conversas das professoras e da comunidade algo fica no ar. É como se

ainda tivéssemos que seguir um manual de orientações. Como se não fossemos

capazes de nos guiarmos por nossas próprias pernas. Como se nossas falas não

pudessem ser escutadas e como se tivéssemos que silenciar nossos pensamentos

diante das prescrições e dos projetos propostos.

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No entanto, nas falas/narrativas das professoras26, alunos e alunas percebo um

pouco do que sabem, do que fazem, do que pensam e, nessas narrativas, considero

que há “um saber não sabido”, como nos coloca Certeau (1994, p. 141-142),

Aqui ainda subsiste um “saber”, mas sem o seu aparelho técnico (transformado em máquinas) ou cujas maneiras de fazer não têm legitimidade aos olhos de uma racionalidade produtivista (artes do dia-a-dia na cozinha, artes de limpeza, da costura etc.). Ao contrário, esse resto, abandonado pela colonização tecnológica, adquire valor de atividade privada, carrega-se com investimentos simbólicos relativos a vida cotidiana, funciona sob o signo das particularidades coletivas ou individuais, torna-se em suma a memória ao mesmo tempo legendária e ativa daquilo que se mantém à margem ou no interstício das ortopraxias científicas ou culturais. Enquanto indícios de singularidades – murmúrios poéticos ou trágicos do dia-a-dia – as maneiras de fazer se introduzem em massa no romance ou na ficção [...].

Em diferentes momentos as professoras falam da vida, do sentimento para com a

escola, da história daquele CMEI que se confunde com sua própria história de vida,

das lutas políticas pela conquista e ocupação do bairro para garantir escola e

trabalho; falam de como chegaram ali e de como se tornaram professoras. As

crianças trazem nas falas durante as atividades, nas entrevistas, um pouco de suas

histórias de vida, das histórias de suas famílias e de seus saberes, fazeres e

poderes.

As narrativas das professoras revelam saberes (que contam uma história de vida), construídos na prática da vida e da profissão, por isso mesmo, saberes essenciais à formação. Suas histórias formam um caleidoscópio de vidas que se entrelaçam e se misturam, na forma do que Le Grand chama de heurística implicacional, em que as histórias pessoais de pesquisadora e pesquisadas se interpenetram e se refletem mutuamente, como história de mulheres e de professoras que somos (PÉREZ, 2003, p. 44).

Algumas professoras também têm uma história de luta e coragem, porque se

constituíram junto com a constituição do bairro:

26 Opto, junto com Pérez e Azevedo, pela forma feminina uma vez que o contingente de mulheres em

nossas escolas é maior do que o dos homens principalmente na educação infantil. Peço aos professores do sexo masculino que se sintam incluídos (PEREZ; AZEVEDO, 2008).

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Nessas lutas conseguimos trazer para cá esta escola [...] em 1982 vim trabalhar aqui como ASG (Auxiliar de Serviços Gerais) por 3 meses fiquei como voluntária, depois assinaram a minha carteira de trabalho. No ano de 1984 fiz um curso de Atendente Infantil em creche promovido pelo SENAC, o que me deu base para conseguir esse emprego de berçarista, tive o direito de continuar sendo funcionária sem fazer concurso público pelo tempo que trabalhei, hoje sou efetiva da rede e trabalho nesta escola há 20 anos (Professora Joana). Logo que chegamos aqui, meu pai comprou uma dúzia de caranguejos e pediu que eu os fizesse, como não conhecia achei duro e coloquei para cozinhar na panela de pressão, estraguei todo o caranguejo. O tempo foi passando e cada vez mais as pessoas destruíam o mangue, construindo casas para sobreviver. Depois de um tempo, fui trabalhar como babá, e logo depois de ASG aqui na creche e também fazia parte do Movimento Comunitário. Continuei estudando, fiz magistério e passei a ser Professora, hoje me sinto grande como São Pedro (Professora Ana). Comprei um lote em São Pedro que eu mesmo aterrei e construí minha casa. No dia em que me mudei para cá, a pinguela quebrou quando os homens que estavam carregando minhas coisas passavam sobre elas, eles caíram no mangue com minha geladeira que afundou, perderam os chinelos que nunca mais ninguém achou. Me juntei ao Movimento Comunitário em busca de algumas melhorias para o bairro, como energia, água e aterro (Professora Rita).

A fim de exemplificar um pouco a história de vida dos sujeitos praticantes, trago uma

atividade pensada no projeto Institucional do CMEI no ano de 2007, “Desvelando

nossa história através do PPP”, quando os alunos do Pré Matutino assistiram ao

vídeo “Lugar de toda pobreza” e “São Pedro 20 anos depois”, que retrata uma pouco

da história do bairro e de sua própria historia também. Nessa atividade, os alunos

assistiram aos vídeos e observaram as mudanças ocorridas nesses 30 anos de

ocupação do bairro e fizeram um relato das reflexões discutidas com as professoras,

como podemos observar no Quadro 7.

Essas questões levantadas pelos alunos nos fizeram pensar nas possibilidades

trazidas pelos projetos para além da hierarquização e padronização e um currículo

pautado na certeza e na previsibilidade. Quando os alunos discutem sua forma de

vida, seu cotidiano, fazem reflexões sobre o bairro e as condições de vida em que se

encontram; expressando fragmentos das redes que estão sendo tecidas e

negociadas; como no relato das professoras Cássia e Regina:

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As turmas do Pré A e B matutino, dentro do projeto institucional, tiveram a oportunidade de assistir ao vídeo sobre o bairro São Pedro, e lembro que esse vídeo causou uma reação de compaixão e tristeza nos alunos. Durante a exibição do vídeo, muitos alunos ficaram surpresos com o que viram: o lixo, a precariedade das moradias, a falta de higiene, pessoas sujas catando coisas do lixo. Os alunos também ficaram surpresos quando assistiram ao vídeo “São Pedro 20 anos depois” e viram as mudanças ocorridas no bairro, que hoje tem energia elétrica e as casas são melhores, as ruas calçadas.

Quadro 7 - Reflexões dos alunos do Pré sobre o bairro São Pedro

REFLEXÕES CONSTRUÍDAS PELO PRÉ, APÓS ASSISTIR O VÍDEO: SÃO PEDRO - 20 ANOS DEPOIS.

MUDANÇAS:

• NÃO TEM MAIS CASAS EM CIMA DO MANGUE. • O LIXO FOI ATERRADO. • TEM ENERGIA ELÉTRICA, ÁGUA ENCANADA E ESGOTO. • FIZERAM RUAS NO LUGAR DAS PINGUELAS. • AS RUAS ESTÃO CALÇADAS E ASFALTADAS. • TEM SUPERMERCADOS, LOJAS, IGREJAS, FARMÁCIAS, PIZZARIAS, POLICLÍNICA, POSTO POLICIAL,

ESCOLAS, CASAS DE TIJOLOS, PRAÇAS, BANCO, CORREIO, POSTO DE SAÚDE, PADARIAS, FAESA, POSTO DE GASOLINA, RESTAURANTES.

• AS PESSOAS TRABALHAM EM LOJAS, RESTAURANTES, PIZZARIAS, SUPERMERCADOS, ESTUDAM, PESCAM, TEM UMA PROFISSÃO.

O QUE CONTINUA?

• A POBREZA EM MUITAS FAMÍLIAS. • A VIOLÊNCIA. • PESSOAS DESEMPREGADAS.

PRECISA MUDAR

• ASSALTOS. • ASSASSINATOS. • TIROTEIOS. • DROGA. • VIOLÊNCIA.

O QUE É PRECISO FAZER?

• TER MAIS POLICIAIS NO BAIRRO. • ACABAR COM AS DROGAS, NÃO USANDO. • FALAR SOBRE A PAZ COM AS PESSOAS. • RESPEITAR AS PESSOAS

Embora a tentativa do currículo por projeto seja a modelização do espaço e o

controle das ações, as negociações no cotidiano vivido permitem-nos pensar em

outro currículo, que burla o instituído e mostra que o cotidiano tem outras lógicas

diferentes da previsibilidade, das regras e das determinações que se colocam como

pré-requisito para o trabalho do professor e os saberes, fazeres e poderes dos

alunos. Enquanto pesquisadora, interessa-me, sempre que possível, desmistificar as

perspectivas de trabalho calcadas em dicotomias, hierarquias e nas medições

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muitas vezes confirmadas nos projetos e programas prontos, elaborados tanto pelos

técnicos da SEME quanto pelos educadores dos CMEIs.

Os sujeitos praticantes, professoras e alunos, estão o tempo todo reinventado o já

dado, o prescrito, e por isso o currículo que se pensa instituído através de uma

metodologia de projetos escapa à lógica dominante e cria outra lógica. Na atividade

citada no Quadro 7, os alunos sinalizam uma série de situações cotidianas que

estão para além do currículo prescrito, mas que são vividas por eles e que a escola

muitas vezes deixa de lado, como: a violência, as drogas, o desemprego, a pobreza;

tudo isso são questões que perpassam o vivido dos alunos e que é currículo, porque

estão na escola, mas não são contempladas na proposta curricular.

Assim, entendemos que é preciso pensar nos sujeitos praticantes da escola como

referência para a discussão do currículo. Como coloca Ferraço (2006, p. 10),

Pensar os currículos de uma escola pressupõe, então, viver seu cotidiano, que inclui, além do que é formal e tradicionalmente estudado, toda uma dinâmica das relações estabelecidas. Ou seja, para se poder falar dos currículos praticados nas escolas, é necessário estudar os hibridismos culturais vividos nos cotidiano.

É preciso, então, pensar para além do instituído, do texto do currículo prescrito, e

entender que aquilo que falamos, sentimos, pensamos e fazemos se tecem, se

enredam nos processos de produção curricular. Mas, ao mesmo tempo em que

entendemos a necessidade de atendermos aos projetos da SEME, os quais muitas

vezes partem de nossas próprias reivindicações, também entendemos e

defendemos a necessidade de irmos além deles e nos dedicarmos a pesquisar a

complexidade do cotidiano em que esses projetos são desenvolvidos.

Para falar dessa complexidade, cito Morin (1996, p. 188): Complexus é o que está junto; é o tecido formado por diferentes fios que se transformaram numa só coisa. Isto é, tudo isso se entrecruza, tudo se entrelaça para formar a unidade de complexidade; porém, a unidade do complexus não destrói a variedade e a diversidade das complexidades que o tecem. Neste ponto chegamos ao complexus do complexus, a essa espécie de núcleo da complexidade onde as complexidades se encontram.

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Ao pesquisar a complexidade do cotidiano, sabemos que não damos conta de tudo.

Surgem os imprevistos, outras necessidades, outras leituras da realidade que nos

levam para outros caminhos. Então, tecemos outros currículos priorizando os

saberesfazeres dos sujeitos praticantes do cotidiano. E, de modo geral, esses

“deslocamentos”, essas “outras” tessituras curriculares, não são tomados como

discussões importantes e necessárias à escola.

Muitas vezes, esquecemos que o conhecimento é algo mais do que o conhecimento

escolar sistematizado que aprendemos na escola e que está na proposta curricular,

nos livros didáticos e nos conteúdos que a escola acredita ser importante. O

conhecimento se dá na diversidade dos contextos e culturas vividas, nas

circunstâncias de sobrevivências do homem real, das histórias de vida e íntimas e

constantes relações estabelecidas entre conhecimento, ação, valores e emoção. O

conhecimento de que estamos falando é um conhecimento tecido nos

saberesfazeres cotidianos, nas relações que se estabelecem entre os indivíduos que

participam desse contexto e inventam novos horizontes de significados (FERRAÇO,

2000).

Para falar desse currículo instituído no CMEI, foi necessária uma escuta atenta aos

sujeitos praticantes: professoras, alunos, diretor, pedagogo, auxiliares de berçário e

tantos outros, que não dei conta de trazer todos para o debate. No entanto,

considero pertinente problematizar essas falas e discutir a partir delas os projetos e

o currículo para pensar em outras possibilidades.

5.2.1 Sobre os projetos da escola: institucional e literário

Fazendo uma retrospectiva histórica do trabalho com os projetos na Educação

Infantil no município de Vitória, a diretora do CMEI muito contribuiu com a pesquisa,

ao falar de como esse processo se deu nos espaçostempos escolares; ela fala em

particular no CMEI “Sonho Meu”. Essa constituição metodológica que permeia as

escolas do município teve início no ano de 2002 após ampla discussão do RCNEI e

uma mudança de postura na relação professor-aluno.

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Kelen – E nesse tempo trabalhando na rede municipal de Vitória, você lembra quando iniciou o trabalho de projetos? Diretora Cláudia – É, esse processo de trabalho com projetos foi construído devido à demanda de qualificar o ensino na educação infantil. Em 1999 a gente começa um processo de discussão nos espaços com temas geradores, passando para ação mais ampla, aí a gente começa com ação construtivista com a criança. A proposta era o construtivismo e não o sócio-interacionismo. Em 2002, começamos a pesquisar algumas teorias, pensando sempre na qualificação do ensino na educação infantil. A gente começou com os projetos de sala de aula, buscando o foco em uma problemática que a criança demonstrasse interesse e ampliando os conhecimentos em nível de pesquisa, relacionado a isso tinha o projeto institucional, onde todas as crianças passavam por esse projeto. No CMEI Georgina, onde trabalhei na época, era o projeto de “Horta” e “Fazendinha”. Eu acho que a proposta por projetos teve um ganho significativo para as discussões na Educação Infantil no Município de Vitória, por que deu para se perceber o envolvimento do profissional para com a criança e da criança para com a ação de pesquisa. Nessa ação de projeto, não era só desenvolver uma atividade que você chegava com ela mais ou menos pronta e executava naquele momento, sem ter uma seqüência, uma organização de trabalho. E isso ficou muito claro pra gente, pois, em nível de rede ele amarrou uma série de ações e com isso veio a proposta do governo federal que é o documento norteador da educação infantil, RCNEI, onde todos os eixos teriam que perpassar pelo trabalho com a educação infantil. [...] Para que o atendimento acontecesse de uma forma mais qualificada, organizamos grupos de estudos sobre os projetos, começamos as discussões na linha de Fernando Hernández, não sei se era a mais indicada, mas foi o suporte teórico que tivemos para começar os nossos trabalhos. A visão de cada um em cada unidade de ensino era diferente, a gente colocava o foco no que a criança demonstrasse maior interesse, partia para ação, trazia isso de forma mais ampla. Outras escolas escolhiam o tema e trabalhava em cima desse tema, foi se construindo uma prática diferenciada nos espaços escolares, mas sempre lembrando das legislações que permeavam a educação infantil. Mudou-se o ver a criança da educação infantil pela parte assistencialista e passou-se a construir uma ação mais produtiva, investigativa. O foco da educação infantil começou a mudar, existia a necessidade de se discutir mais com os profissionais, ter mais formações, preocupação com o PPP. Então, eu valorizo a questão do projeto por ter mudado várias práticas dos professores. Ele favoreceu essas mudanças, lógico que essa mudança não aconteceu sozinha, foi todo um trabalho de convencimento, mudança de postura, um olhar diferenciado para com a criança. Esse foi o processo construído, que não aconteceu de um dia pro outro na rede.

Nessa entrevista, a diretora Cláudia sinaliza várias questões que permeiam as

práticas dos projetos. Segundo ela, com os projetos os CMEIs deixam de lado a

questão assistencialista e passam a pensar e planejar ações que vão trabalhar o

conhecimento e os saberes dos alunos nessa faixa etária. Naquele momento, a

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contribuição do projeto foi dar um rumo à proposta curricular colocada para a

educação infantil, que veio junto com o RCNEI e com a idéia muito forte do

construtivismo piagetiano com as fases do desenvolvimento da criança.

Porém, os projetos têm como função organizar o trabalho das professoras e propor

uma ação mais coletiva no espaço escolar. Uma vez que antes o professor já

chegava com uma atividade pronta e aplicava essa atividade para aquela turma,

com o projeto as atividades passaram a ser planejadas, pensadas e pesquisadas

pelas professoras a fim de garantir conhecimentos propostos no RCNEI. A partir

dessa discussão, cada CMEI organiza sua forma de trabalhar os projetos, com

escolhas de temas e ações a serem desenvolvidas com os alunos.

A organização dos projetos passa por um processo muito parecido nos CMEIs:

primeiro, escolhe-se um tema que vai permear as ações e os trabalhos

desenvolvidos, depois, professoras e pedagogas planejam as ações a serem

trabalhadas com os alunos. Essas ações devem estar ligadas aos conteúdos da

Educação Infantil, propostos tanto no RCNEI, como no documento norteador da

Educação Infantil do município de Vitória.

Essa forma de trabalho é colocada pela pedagoga Mara:

Na educação infantil a gente tem um documento de prescrição, que é o RCNEI, e o documento norteador. Os dois documentos trazem os eixos norteadores dos projetos com o enfoque temático para aquele eixo norteador. Mas, não podemos esquecer o trabalho com a faixa etária, e os eixos que a faixa etária precisa. Então, a gente prioriza aqueles eixos que têm no referencial: natureza e sociedade, matemática, leitura e escrita, movimento, artes visuais, música, meio ambiente e relações étnico-raciais.

A pedagoga Mara coloca ainda que o projeto institucional não é uma determinação

da SEME e que a escola é que avaliou como importante ter os dois turnos

trabalhando o mesmo tema:

Kelen – E esse modelo de projeto institucional é a SEME que determina? Pedagoga Mara – Não, pelo menos nunca chegou isso escrito na escola, nem por meio de ofício, nem por meio de algo prescrito. A

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gente trabalha institucional porque assim a gente acredita que toda unidade de ensino, os dois turnos, matutino e vespertino, estarão desenvolvendo um processo de ensino aprendizagem sobre o mesmo tema. Acreditamos que dessa forma o tema vai ficar mais rico, não só para unidade de ensino, mas para toda a comunidade envolvida nessa descoberta. Kelen – Então as escolhas são feitas pelos professores? Pedagoga Mara – Pelo próprio grupo, pelo grupo juntando todos os segmentos da escola. Nesses três anos que trabalhamos com projetos na escola já tivemos várias questões: uma demanda que partiu da comunidade, quando trabalhamos com o projeto afro e o projeto construindo a paz, foi uma demanda e a gente percebeu na comunidade que a escola atende e hoje, e com o tema de Vitória que foi um olhar do magistério.

Na fala da professora Ana aparecem outras possibilidades sobre como as coisas

aconteceram e como se deu o trabalho com projetos nos espaços dos CMEIs Ela

relata que a SEME determinava ações para o trabalho educação infantil em um ano

e no outro ano já determinava outra coisa, o que fazia com que as professoras

ficassem inseguras em relação ao trabalho e ao que de fato deveriam ensinar aos

alunos.

Kelen – E essa proposta de projetos que vocês trabalham aqui no CMEI? Professora Ana – Antes nós não trabalhávamos com projetos, naquela época era tomar conta: comida, banho e brincadeira, era tomar conta mesmo. Depois as coisas foram mudando, um ano a prefeitura determinava uma coisa e depois tirava, a gente não sabia o que era certo e errado, você achava que podia alfabetizar a criança em uma época e depois no outro ano a prefeitura tirava e em outro ano cobrava. Depois colocaram gente da PMV dentro da escola, depois vieram com a conversa que a criança podia fazer tudo, o construtivismo, e a cabeça da gente ficava sem saber o que fazer. Depois a gente fazia os projetos e não sabíamos, ainda, colocar no papel, a gente elaborava trabalhar com as crianças na sala, mas não sabíamos colocar no papel. Tivemos que estudar para aprender o que era fazer projeto e começamos com projetos de 15 dias, de uma semana, aqueles projetinhos picados, cada sala tinha o seu, aí depois quando a diretora Cláudia entrou é que foi mudando, veio o projeto institucional que a gente não sabia o que era. Tivemos a professora de projetos que foi muito bom, mas ficou pouco tempo, trabalhou com todas as turmas, ela conseguiu avançar, alcançou toda a escola, foi muito bom, foi o primeiro projetão e depois começamos a trabalhar com o projeto institucional.

A professora Cássia, em entrevista, nos fala de como trabalham com a proposta de

currículo por projetos da escola:

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Kelen – Como que é o trabalho com os alunos? Professora Cássia – A gente trabalha com projeto institucional, que é um projeto maior, com o projeto literário e também com atividades sistematizadas ligadas ao projeto. Kelen – Em relação a esses projetos, vocês têm um currículo a ser seguido? Uma proposta? Professora Cássia – Nós seguimos o RCNEI, tentamos contemplar os eixos do RCNEI: natureza e sociedade, música, movimento, linguagem oral e escrita. A gente tenta estar contemplando esses eixos e os conteúdos também. Kelen – A escola tem alguma proposta em particular? Professora Cássia – A gente tem o Plano de Ação que tentamos seguir e tem a linha da prefeitura, que é sócio-interacionista. Kelen – Como são definidos esses conteúdos, que vocês têm que trabalhar? Você disse que tem o documento federal, o RCNEI, tem a SEME e na escola quem define aquilo que é mais importante? Professora Cássia – Nós chegamos a sentar por segmento para traçarmos os conteúdos que cada segmento deveria estar trabalhando durante o ano letivo, enfocando os eixos da educação infantil.

A professora fala dos documentos que deve seguir para fazer o seu trabalho

pedagógico com os alunos tais como: o projeto institucional, o projeto literário, o

RCNEI, o Documento Norteador e o plano de ação, devendo todos eles serem

pautados pela linha Construtivista Sócio-interacionista determinada pela Secretaria

de Educação.

As possibilidades teórico-metodológicas que permeiam tais documentos e os

cotidianos das professoras e dos alunos estão voltados para uma idéia de uma linha

norteadora capaz de organizar controlar e homogeneizar o trabalho das professoras,

como se isso fosse possível. Sabemos da impossibilidade de pensar uma teoria que

dê conta da diversidade do cotidiano escolar e das inúmeras relações que nele se

estabelecem, como coloca Oliveira (2005, p. 134),

Em primeiro lugar, percebemos que o espaço escolar indica muito mais do que apenas aquilo que aparenta, tanto no que se refere à sua organização quanto na sua forma de expressar os conteúdos escolares, os valores e os outros saberes que nele penetram, bem como as formas como são trabalhados, também percebidas em sua complexidade. Percebemos, ainda, nos registros de momentos do trabalho de um dia, valores transmitidos e valores questionados, contradições entre modelos pedagógicos e sociais que coabitam o espaço escolar e interferem nas relações entre os sujeitos sociais e, portanto, nos processos de aprendizagem e de formação das subjetividades de

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alunos e professores que criam novas interferências que possibilitam novas criações.

É preciso pensar se realmente essas variedades de enfoques estão contribuindo

para as práticas cotidianas voltadas para as realidades das escolas e se as

propostas curriculares realizadas a partir dessas diferenças estão adequadas às

possibilidades emancipatórias inscritas nas realidades nas quais se desenvolvem

(OLIVEIRA, 2005).

Em outro momento de entrevista com a professora Cássia, ela fala de como são

pensados os projetos e como são realizados.

Kelen – E o trabalho com os projetos: como que ele acontece? Como é desenvolvido? Professora Cássia – Nós planejamos com a Pedagoga, tem um planejamento semanal, a gente planeja as ações que vamos desenvolver com as crianças e as atividades escritas, tem as atividades extra-classe, os passeios que a gente faz de acordo com o que estamos trabalhando nos projetos. Depois a gente faz um retorno com as crianças, elas relatam o que viram, construímos maquete, tudo de acordo com o que foi trabalhado. Kelen – Você acha que os trabalhos com os projetos atendem às necessidades das crianças e da comunidade? Professora Cássia – Acho que atende. Às vezes a gente tenta contemplar tudo, mas o tempo curto, às vezes não dá para contemplar todos os conteúdos que deveríamos trabalhar, pois à demanda de atividades é grande. São dois projetos: o institucional e o literário, mas a gente tenta contemplar o máximo, sempre buscando o envolvimento da família, com atividades que mandamos para casa, reuniões, oficinas, então a gente está sempre buscando envolver a família e a comunidade. Kelen – Quem define o tema dos projetos? Professora Cássia – O grupo da escola que define. Kelen – E esses projetos vocês têm algum parâmetro para definir o tema? Como é a escolha do tema? Professora Cássia – O CTA acata as sugestões, aí a gente encaixa o tema que mais se enquadra nas necessidades, inclusive a gente está concluindo com o PPP, então, nos temas a gente engloba aquilo que pode estar trabalhando dentro do PPP, sempre com discussões no grupo.

Nesse momento da conversa pedi às professoras Cássia e Regina que falassem um

pouco da participação dos alunos e percebi que os alunos têm pouca participação

na elaboração dos projetos, eles apenas acatam o que foi decidido e pensado pelo

CTA e pelas professoras. As famílias participam de oficinas, pesquisas e atividades,

mas não aparecem como também participantes da definição dos projetos.

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Kelen – Como é a participação das crianças nos projetos? Professora Cássia – Elas participam bem, a maioria participa bem, fazem as atividades planejadas e gostam dos passeios que escolhemos para a turma, assim como as famílias, que também se envolvem. Kelen – Os pais participam da escolha do tema? Professora Regina – Não. A participação deles é dentro do tema já escolhido e que vamos trabalhar. Kelen – E as crianças? Professora Regina – Também não, nós que definimos tudo, no literário eles só participam da ordem em que vamos trabalhar com os livros. Kelen – O que você considera mais importante no trabalho com os projetos? Professora Cássia - Eu acho legal o envolvimento da família, o crescimento das crianças, na parte de leitura e escrita, na parte de socialização, isso é muito enriquecedor para gente. Kelen – Tem algum tema ou conteúdo que você considera importante para desenvolver e às vezes fica a desejar? Professora Cássia – A parte de leitura e escrita e a matemática, a gente tenta ao máximo, mas sempre fica alguma coisinha a desejar, devido às demandas dos projetos.

Em conversa com a Professora Ana, percebo a angústia quanto ao fato de ter que

dar conta dos projetos e ao mesmo tempo possibilitar a aprendizagem de conteúdos

básicos à essa faixa etária.

Kelen – Tudo o que é planejado no projeto institucional é aplicado? Vocês conseguem alcançar o conhecimento das crianças? Professora Ana – A gente faz tudo para alcançar, mas são muitas coisas para as crianças alcançarem, é muita informação para cabecinha delas. Porque você começa com o nome, e na outra semana já começa o projeto, passa para outra coisa e pára de mexer com aquilo. Eu como professora de vez em quando eu volto lá no início para ver como eles estão, para alcançar aquilo que eu quero que no final do ano eles consigam saber. Porque senão é muita informação, são todas boas, mas só que pra elas é muita coisa, uma hora eu estou ensinando uma coisa e outra hora já passo pra outra coisa, aquela ficou esquecida? Por exemplo: o alfabeto, em uma brechinha da aula a gente consegue continuar a mexer para não perder o fio, mas, querendo ou não acaba se perdendo, eu acho muita informação. Esta semana vou trabalhar isso e a outra vou trabalhar outra coisa, fica a sensação de não alcançar o objetivo, aí eu fico pensando será que eu não consegui alcançar?

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Nessa conversa, percebi o quanto é difícil para as professoras o trabalho com o

projeto e, ao mesmo tempo, alcançar os conhecimentos27 para aquela faixa etária,

como o alfabeto, o nome, as cores, os números, conhecimentos que são

considerados essenciais para a criança e que se perdem com o fato de ter que dar

conta dos projetos e de suas etapas estabelecidas nos planejamentos semanais.

Nesse diálogo com as professoras Cássia e Ana e em outras ações no CMEI,

percebi o grande esforço das professoras em vincular a proposta curricular apontada

no RCNEI e no documento norteador da SEME com os projetos a serem

trabalhados. Porém, como nos traz a professora Regina, a demanda da educação

infantil é muito intensa, com horários (Quadro 8) bem definidos (lanche da manhã,

pátio, almoço, horário de vídeo de informática), o que às vezes faz com que o que foi

planejado para o trabalho de sala e as ações do projeto, bem como atividades de

leitura e escrita e matemática, fiquem de lado.

Kelen – E a rotina da educação infantil? Com esses horários bem definidos, esse tempo que vocês têm com os alunos, você acha que é suficiente para atingir os objetivos? Professora Regina – Eu acho que o tempo é curto, pois o tempo voa, às vezes você começa uma atividade e já está na hora do almoço, na hora de ir para o pátio, a gente até ultrapassa o horário, então não dá tempo de terminar a atividade naquele dia, a gente deixa para o outro dia ou pega o horário de pátio. Eu acho importante a rotina, porque ela organiza o trabalho da gente, as crianças podem se organizar no tempo e espaço, sabendo que há hora para tudo. Eu acho importante para a organização do trabalho. Kelen – Como são as atividades com o projeto? Professora Regina – São coletivas, individuais, de pesquisa, para casa, visitas de acordo com o tema trabalhado.

Em todo o planejamento do professor com o pedagogo, ou em formações no próprio

CMEI, o CTA tenta, em seu discurso, reforçar ou reafirmar a importância de não se

perder de vista o trabalho com leitura e escrita e a matemática e que nos projetos

devemos contemplar essas disciplinas. Há também uma preocupação com a

participação da família nos projetos, com a preparação das atividades que devem

27 As professoras associam os conteúdos mínimos a serem ensinados com as informações

relacionadas ao tema do projeto. Uso Larrosa a fim de compreender que o ensinar está ligado as experiências cotidianas o que é diferente da informação (Larrosa, 2004).

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ser expostas na Mostra Cultural28. A preocupação em seguir as idéias da proposta

curricular do CMEI colocada no Plano de Ação29 é insistentemente debatida pelo

CTA com o grupo de professoras.

Quadro 8 - Horário do turno matutino.

B I INT. BII B MAT A MAT. B JD.I A JD. I B JD. II A JD. II B PRÉ A PRÉ BLanche 30 min.Pátio

50 min.Jussara Marlene

F. 8:30 a 8:50

Zezé Luiza Neide Lúcia Helena

Marlene G.

Lúcia Favoreto

Patrícia Sandra Rosangela

8:00 a 8:20

Mª Lúcia 8:50 a 9:10

8:20 a 8:40

7:50 a 8:10

8:10 a 8:30

8:50 a 9:10

8:30 a 8:50

9:30 a 9:50

9:30 a 9:50

9:30 a 9:50

9:50 a 10:10

Dora9:30 a 9:50

Almoço 20 min.

Vídeo 2ª feira 4ª feira 5ª feira 3ª feira 5ª feira 2ª feira 6ª feira 4ª feira 2ª feira 6ª feira 3ª feira

50 min.8:40 a 9:30

8:40 a 9:30

8:40 a 9:30

9:30 a 10:20

9:30 a 10:20

9:30 a 10:20

9:30 a 10:20

7:50 a 8:40

7:50 a 8:40

7:50 a 8:40

7:50 a 8:40

4ª feira 2ª feira 6ª feira 5ª feira 3ª feira 4ª feira 2ª feira 3ª feira 5ª feira 4ª feira 2ª feira

BII A

7:20 a 7:30 7:30 a 7:40 7:40 a 7:50

7:40 a 8:30 8:30 a 9:20 9:30 a 10:20

Lanche Prof. 20

min.

Luzia

8:00 a 8:20

10:00 a 10:20 10:20 a 10:40 10:40 a 11:00

Plan

eja-

men

to

3ª feira 4ª feira 2ª feira 5ª feira 6ª feira 5ª feira

• 7:40 a 8:30

8:30 a 9:20

• 7:40 a 8:30

8:30 a 9:20

• 7:40 a 8:30

8:30 a 9:20

• 9:15 a 10:05

10:05 a 10:55

7:40 a 8:30

• 8:30 a 9:20

• 7:15 a 8:05

8:05 a 8:55

6ª feira8:40 a 9:30

Informática 50 min.

3ª feira7:50 a 8:40

8:40 a 9:30

8:40 a 9:30

8:40 a 9:30

9:30 a 10:20

9:30 a 10:20

9:30 a 10:20

9:30 a 10:20

7:50 a 8:40

7:50 a 8:40

7:50 a 8:408:40 a 9:30

Nos planejamentos semanais, as professoras discutem aquilo que irão trabalhar

durante a semana, não podendo esquecer dos projetos desenvolvidos, em que

devem entrar os eixos da educação infantil, o trabalho com a família e as atividades

para a Mostra Cultural.

Dentro da proposta da SEME, as questões que intrigam as professoras estão

sempre ligadas à culpa de não dar conta de tudo: “[...] às vezes não dá tempo de dar

a atividade planejada e aí quebra a rotina” (Professora Regina). São algumas

questões que incomodam as professoras em suas ações diárias, frutos da

28 Mostra Cultural – evento realizado no final de cada ano, como culminância do trabalho realizado

durante o ano e ligado aos projetos. 29 Plano de Ação – documento elaborado pelo CMEI ao final de cada ano, no qual se contempla as

ações que devem ser seguidas no ano seguinte.

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miscelânea de referências, que, de certo modo, dicotomizou o trabalho pedagógico

com o certo e o errado.

Essa dicotomização do trabalho pedagógico traz marcas da modernidade que

pretende a separação teoria e prática, espaço e tempo, professor e aluno, ensino e

aprendizagem. A fim de superar tal dicotomia, Macedo e Lopes (2002, p. 37)

colocam a necessidade de introduzir um novo referencial básico: a prática social. A noção de conhecimento em rede introduz um novo referencial básico, a prática social, na qual o conhecimento praticado é tecido por contatos múltiplos. Propõe-se, dessa forma, a inversão da polarização moderna entre teoria e prática, passando-se a compreender o espaço praticado como aquele em que a teoria é tecida.

Os alunos, como sujeitos praticantes desse currículo, precisam ser ouvidos, e,

apesar de não entenderem muito bem quando falo nos projetos, nos dão pistas de

como o currículo por projetos é vivido no interior da escola. Para os alunos, os

projetos representam uma forma de ensinar algo, ensinar a ler, a escrever, a copiar,

com momentos de brincadeiras e passeios.

Em uma conversa com seis alunos do Pré-A matutino sobre o projeto institucional

“Uma leitura infantil sobre a cidade de Vitória”, especificamente sobre a visita que

fizeram ao convento da Penha, uma das ações do projeto, eles colocam suas

impressões:

Kelen – Por que vocês foram visitar o Convento da Penha? Marcelo – Para conhecer. Kelen – Faz parte do projeto que vocês vão trabalhar? Alunos – (Os alunos não respondem). Kelen – A professora não apresentou o mapa de Vitória? Raissa – Apresentou na sala de vídeo, a outra professora, da outra sala. Kelen – O que vocês aprendem na escola? Marcelo – A ler, a escrever. Breno – Eu já sei ler. Raissa – Eu sei mais ou menos. Kelen – Está aprendendo? Kelen – E o que vocês mais gostam de fazer aqui? Raissa – Fazer dever. Kelen – Que dever que a professora passa? Marcelo – A gente não sabe o nome não.

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Kelen – Não sabe? Para que o caderninho (me referi ao caderno que cada um tem)? Raissa – No caderno a gente só faz o dever que a tia escreve no quadro. Kelen – E vocês copiam? Marcelo – É. A gente copia o dever do ano que passou. Kelen – E aquele cartaz ali? (Referi-me a um cartaz dos combinados (Figura 24) que fica pregado na parede da sala). Raissa – É o que pode fazer e o que não pode fazer. Kelen – Os combinados? Alunos – É. Kelen – Vocês sabem o nome do projeto que estão trabalhando este ano? Alunos – (Não respondem, continuam desenhando).

Figura 24 - Cartaz dos combinados

Quando me referi ao projeto institucional da escola, os alunos não souberam

responder, mas sabiam exatamente o que deveriam fazer na escola: ler, escrever e

copiar. Para as crianças, essa é a função da escola. Na escola também se aprende

a se comportar, e o cartaz dos combinados feito na primeira semana de aula fala

disso, como os alunos devem agir na escola para aprender mais e melhor.

No planejamento realizado com as professoras do Pré, observei a preocupação

delas em garantir as atividades do projeto e direcionar mais as ações e o olhar dos

alunos. No momento do planejamento junto com a pedagoga Mara, as professoras

comentaram sobre o relato das crianças após a visita ao Convento da Penha, que foi

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uma das ações do projeto trabalhado30. Falaram que no relato as crianças contaram

o que viram no Convento da Penha, e o que mais comentaram foi sobre os bichos

que tem lá (aranha, macaco). Pouco relataram do Convento em si, de sua história,

que era o objetivo do trabalho naquele momento (Quadro 9). Após essa discussão,

as professoras decidiram por direcionar mais as ações a serem trabalhadas para a

história de Vitória e os pontos turísticos31.

Quadro 9 - Relato dos alunos do Pré matutino

TEXTO COLETIVO A PARTIR DA AULA-PASSEIO

A PRAINHA DE VILA VELHA (CONVENTO DA PENHA)

QUARTA-FEIRA. A TURMA DO PRÉ A MATUTINO FOI JUNTO COM O PRÉ B, VISITAR O CONVENTO

DA PENHA, LÁ NA PRAINHA DE VILA VELHA.

NA IDA, PASSAMOS PELA 2ª PONTE E VIMOS O MAR E MUITOS CARROS.

QUANDO CHEGAMOS À PRAINHA DE VILA VELHA, DESCEMOS DO ÔNIBUS E SUBIMOS O MORRO

DO CONVENTO DA PENHA. AÍ, VIMOS ARANHAS GRANDES, MACAQUINHOS, PASSARINHOS E

MUITAS ÁRVORES.

LÁ EM CIMA, VIMOS AS CIDADES DE VILA VELHA E VITÓRIA. VIMOS TAMBÉM O MAR, A PRAINHA,

ONDE VASCO FERNANDES COUTINHO CHEGOU NA CARAVELA, O QUARTEL, A 3ª PONTE, OS

PRÉDIOS DE VITÓRIA.

DEPOIS, ENTRAMOS NA IGREJA, TIRAMOS FOTOS, DESCEMOS O MORRO E VOLTAMOS PARA O

ÔNIBUS. ENTÃO VOLTAMOS PARA A ESCOLA.

NO CAMINHO, PASSAMOS PELA 3ª PONTE E VIMOS O CONVENTO DA PENHA DE LONGE, OS

PRÉDIOS, O MAR, AS CASAS E O SHOPPING VITÓRIA.

NÓS GOSTAMOS MUITO DO PASSEIO, PORQUE TINHA COISAS LEGAIS E INTERESSANTES.

Pré A - matutino

No momento da elaboração do relato citado no Quadro 9, as professoras tentaram

tirar o máximo dos alunos sobre o que viram. Direcionaram as perguntas para aquilo

que consideram mais importante no projeto, mesmo que seja aquilo que o aluno não

considerou importante, pois o que interessava naquele momento era mostrar para o

30 O projeto institucional: “Uma leitura infantil sobre a cidade de Vitória”. 31 Pontos turísticos – enfoque escolhido pelas professoras do Pré para o trabalho com os alunos

dentro do projeto institucional: “Uma leitura infantil sobre a cidade de Vitória”.

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aluno um pouco da história de Vitória, e a visita ao Convento da Penha foi um

instrumento para falar aos alunos sobre nossa cidade, ver do alto a ponte, a ilha, os

prédios, permitindo trazer elementos para a discussão no grupo (Figura 25).

(a) (b)

(c) (d)

Figura 25 - Visita ao Convento da Penha em Vila Velha-ES: (a) alunos dentro da igreja; (b) parte externa com vista para o Convento; (c) vista para a Terceira Ponte; (d) ladeira que dá acesso ao Convento.

Em conversa com os alunos, percebi o que ficou dessa ação para eles.

Breno – Lá tinha macaco, aranha, morro, escada, igreja, muita gente. É a Prainha que dá pra ver a cidade de Vitória. Na hora do lanche fomos para o refeitório, quando chegou à escola. Depois da igreja a gente foi para o ônibus e voltamos para o CMEI e lanchamos. Lá a gente só passeou. Raissa – Teve um montão de aranha lá. Ela tinha veneno. Eu já fui lá uma vez. A gente viu macaco. A gente foi pra ver. Eu fui pra brincar e ver macaco. A gente viu a bandeira do Brasil. Eu já fui lá um monte de vezes. Kelen – Por que o nome é Convento da Penha? Breno– Porque tem um monte de pedra. E uma Santa lá no alto. Kelen – Por que vocês foram lá?

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Aluna 2 – Pra conhecer. A tia apresentou o mapa. Kelen – Que mapa? Raissa – De Vitória.

As professoras direcionam o projeto, escolhem o que as crianças devem conhecer e

até o que devem olhar, mas as crianças vão para além do que é colocado e imposto,

negociam o tempo todo. A história de Vitória contada pelas professoras na sala de

vídeo com o mapa do Espírito Santo e figuras de Vitória não foi o que chamou a

atenção das crianças. A idéia de ir até à Prainha e ao Convento da Penha para

conhecer mais a história foi negociada pelas crianças e traduzida de outra forma.

Sua atenção estava voltada para os bichos que viram: se a aranha tinha veneno ou

não, a escada e o morro muito alto que subiram para chegar lá em cima. Na verdade

a chegada não foi o mais importante e sim o caminho, o que viram nessa trajetória.

Em sala, os alunos fazem suas atividades relacionadas ao projeto, como o mapa do

Espírito Santo, enfatizando a cidade de Vitória, e as atividades de escrita e registro

(Figura 26).

As crianças, quando ouvidas, nos falam o que mais gostam de fazer na escola, que

é brincar e desenhar. Para elas estar na escola é um momento tanto de brincar

como de aprender, e isso são duas coisas bem distintas em suas falas:

Kelen – O que você, mais gosta de fazer na escola? Marcelo – Eu gosto de brincar, de desenhar. Raissa – Eu brinco de carrinho, lá fora, no pátio de areia, jogo bola. Kelen – O que vocês aprendem aqui? Marcelo – Escrever, eu sei escrever o meu nome todinho. Kelen – Com a ficha ou sem a ficha? Marcelo – Sem a ficha. Kelen – Escreve o seu nome aqui, nesta folha. Marcelo – (O aluno escreve o nome sem a ficha). Kelen – E o que vocês mais gostam de fazer aqui na escola? (Referi-me a outro grupo de crianças). Breno – Fazer dever. Kelen – Que dever que a professora passa? Breno – A gente não sabe o nome não. Raissa – A gente copia o dever no caderno. Copia do quadro.

O conhecimento do nome é muito importante para os alunos. A maioria dos alunos

do Pré fala que já sabe fazer o seu nome e tem isso como algo primordial. Uns falam

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que já sabem fazer sem a ficha32, outros, segundo a professora, ainda precisam do

auxílio da ficha, e outros já escrevem o nome todo.

Figura 26 – Atividade sobre a visita ao convento da Penha

As atividades de escrita e leitura devem estar ligadas ao projeto: palavras lacunadas

(Figura 27a), completar palavras, texto coletivo (Figura 27b), painel de fotos, cartaz

do que viram no Convento.

32 Cada aluno tem uma ficha com seu nome, e à medida que vão aprendendo a escrever o nome

deixam a ficha de lado.

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Diante do planejamento, pude perceber a limitação da maneira como o projeto está

sendo realizado em relação aos conhecimentos tecidos pelos alunos durante a visita

ao Convento da Penha. As professoras têm uma preocupação extrema em

desenvolver as ações dos projetos, o que, às vezes, impede de ver as redes de

relações estabelecidas e vivenciadas durante as atividades entre os alunos.

(a) (b)

Figura 27 – Exemplos de atividades de escrita e leitura: (a) Palavras lacunadas; (b) Texto coletivo

Outro projeto trabalhado no espaço do CMEI é o projeto literário. Em conversa com

os alunos do Pré B – matutino, em sala de aula, no dia 25/04/2008, algumas

questões puderam ser pensadas e discutidas sobre o projeto literário. Nesse dia, a

aula abordava questões referentes ao projeto literário, conforme planejamento

semanal, que pode ser observado na folha do caderno de planejamento da

professora (Figura 28).

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Figura 28 - Caderno de planejamento da professora do pré

Nessa aula, os alunos desenhavam os personagens da história “A escolinha do Mar”

de Ruth Rocha, que faz parte do projeto Literário “Certa vez, li, aprendi... e Cresci”,

desenvolvido no CMEI. Nesse projeto, cada professora escolhe um autor infantil e

quatro livros desse autor para trabalhar durante o ano todo.

Nessa conversa com os alunos sobre o projeto literário, pude perceber as inúmeras

redes tecidas pelos alunos a partir da aula e dos livros trabalhados no projeto.

Kelen – O que você falou? Esse desenho faz parte de que história? Marcelo – Da Ruth Rocha – “A escolinha do mar”. Kelen – E esse livro vocês escolheram?

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Marcelo – É. Teve um sorteio. Kelen – Vocês sabem os outros livros que irão trabalhar? Marcelo – “O rato da cidade e o rato do campo”, “Como se fosse Dinheiro”, são quatro livros. Kelen – Esses livros fazem parte de quê? Raissa – Do projeto literário. Kelen – E mais o quê vocês estão aprendendo? Amanda – Muita coisa. Kelen – Do projeto literário, que atividades vocês aprenderam mais? Marcelo – Atividade da escolhinha do mar Kelen – Mas esse é do projeto literário. Marcelo – Seu apontador é igual o da creche. Kelen – O que você desenhou? Amanda – Tubarão, estrela do mar, casa do tubarão, planta, sol, borboleta, anjo, onda do mar quando sobe. Agora vou fazer um caranguejo. Kelen – Tinha caranguejo na história? Marcelo – Tinha, ele anda de lado. Kelen – Vocês já comeram caranguejo? Amanda – Eu já, eu amo caranguejo. Amanda – A mãe do tubaronete (personagem da história do livro “A escolhinha do mar” de Ruth Rocha) morreu. Amanda – Meu pai morreu. Kelen – Você o conheceu? Amanda – Conheci. Kelen – Faz tempo que ele morreu. Amanda – Eu tinha 3 anos. Kelen – Ele morreu de quê? Aluna – De tiro. Marcelo – O meu irmão morreu de maconha. Kelen – Você tinha irmão? Marcelo – O amigo dele matou ele. Kelen – Você tem irmão? Amanda – O meu pai não é o pai do meu irmão, meu pai morreu. Amanda – Meu pai só tem eu de filha. Kelen – Aí mora você e sua mãe? Amanda – E meu tio.

As falas dos alunos apontam para outras lógicas vividas em seus cotidianos: a

realidade dura do tráfico, da morte que muito cedo começa a direcionar a vida

dessas crianças, a exposição à violência, ao risco social, a estrutura familiar.

Questões que muitas vezes estão naturalizadas para essas crianças e que a escola

não sabe ao certo como lidar, questões que fazem parte do currículo da escola, mas

que não são discutidas, pensadas e trabalhadas.

A criança como sujeito de direito, como construtora de história é poupada de falar, a

escuta da criança se dá, segundo as professoras, no momento em que o projeto já

está escolhido, pois existe uma percepção prévia daquilo que eventualmente ela

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necessita aprender de acordo com sua faixa etária. Tanto no RCNEI, como na

proposta da SEME, na proposta curricular do CMEI e nos projetos institucional e

literário, a criança pouco fala, pois falam por ela, e o que se vê é uma forma única de

se pensar ensino e aprendizagem; o currículo para todas as crianças, uma proposta

linear, como se todas aprendessem igual e precisassem daqueles conteúdos para

avançar.

Participar, participar da elaboração e das escolhas do tema para os projetos as crianças não participam. No projeto literário, só escolhem as seqüências dos livros a serem trabalhados. Elas não escolhem os autores e nem os livros apenas o que querem ler primeiro e assim por diante (Professora de Educação Física Célia).

Questionamos também uma proposta curricular que fale para todas as crianças, em

que todas devem seguir um mesmo projeto, mesmo padrão, mesmo conteúdo, no

mesmo espaço de tempo. Embora existam tentativas de ouvir as crianças, como

muitas professoras fazem, usando uma investigação prévia do que as crianças já

sabem e o que gostariam de saber sobre o tema abordado no projeto (o projeto para

o ano de 2008 foi sobre a cidade de Vitória), quem determina o tema central, as

ações e os conteúdos, é o CTA e as professoras do CMEI, não podendo fugir da

proposta do RCNEI e do Documento Norteador da Educação Infantil “Um outro

olhar”.

Para além das crianças estão as famílias, os pais e a comunidade que pouco são

ouvidos no momento de decisão ou de escolha dos projetos. Na maioria das vezes

são informados do que os filhos vão estudar ou aprender naquele ano e quando

solicitados a participar, limitando se aos momentos das oficinas, reuniões e festas.

Os momentos de maior participação da família nas ações do CMEI são no período

de adaptação33, na caminhada da paz34, na festa cultural35, na Mostra Cultural, nas

33 O período de adaptação se inicia no começo do ano, quando os pais são convidados a ficarem no

espaço por um tempo de quinze a trinta dias com seus filhos. isso acontece nas turmas de berçário. 34 Momento de integração escola e comunidade, quando todos caminham pelo bairro pedindo paz. O

CMEI confecciona cartazes e faixas com as crianças e famílias. 35 A festa cultural acontece em setembro. Alunos e professoras apresentam uma atração cultural para

a família e a comunidade. Também são promovidas barracas de doces, salgados e bebidas para arrecadar dinheiro para o dia da criança e festa de funcionário.

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apresentações quinzenais36 e nas reuniões por turma ao final de cada semestre. “[...]

no mundo da escola, se entrecruzam experiências, saberes e idéias que tecem e se

articulam para além dos muros da escola, mesmo que não desempenhem papel

fundamental no viver cotidiano dos alunos” (OLIVEIRA, 2005, p. 114).

Uma das formas encontradas pela escola para a participação dos pais nas ações

ligadas aos projetos pode ser vista na atividade a seguir (Figura 29). As professoras

entendem que essa é uma maneira da família tomar conhecimento do que seus

filhos estão estudando.

Figura 29 - Atividade para a família

36 De quinze em quinze dias as turmas se organizam para apresentarem uma dancinha, dramatização

ou músicas para as famílias.

S

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A diretora Cláudia fala um pouco dessa dificuldade da participação da família na

elaboração dos projetos:

Kelen – Os pais participam da elaboração dos projetos institucional e literário? Diretora Cláudia – Na pré-escola é um pouco mais delicado. O processo de participação aconteceu a partir do momento que a gente abriu a escola para eles com as oficinas, para que eles pudessem entender a proposta da escola, entender em nível de reunião, em nível de ação com as crianças, acho que essa participação do pai começou a se dar ali. Hoje a gente não vê tanto os pais falarem para tomarmos conta de seus filhos, não tomamos conta do filho e sim, trabalhamos com o conhecimento. Existe uma relação que você estabelece quando abre o espaço de discussão com o professor, com o pedagogo e diretor, de chamar o pai para conversar sobre o desenvolvimento da criança, discutir isso no conselho de escola e nas reuniões de sala, tentar apresentar a proposta da escola, falar dessa proposta de aprendizagem. Hoje você fala de uma coisa que eles entendem melhor, eles já cobram politicamente a aprendizagem do menino, coisa que até 2003 a gente tinha que falar o tempo inteiro sobre nossa função, que não era só o cuidar, provar para eles das possibilidades das crianças. Há uma relação de confiar quando você abre um espaço de discussão, mesmo quando ele não tem uma formação política e educacional a contento do que a gente acredita que deva existir no processo de discussão. A partir do momento que você deixa o pai à vontade ele também começa a se desenvolver como cidadão e começa a se importar com as ações. O envolvimento dessa comunidade para discussão é muito bom só que às vezes não usam o espaço como deveriam usar. Eu acho que a gente está aprendendo essa ação de compartilhar mais nossa ação com a comunidade, mas não é uma coisa simples, porque eles são bastante arredios com algumas questões. A gente também tem alguns profissionais que têm medo de expor o que fazem na sala de aula, mas nós já mudamos muito.

Existe uma dificuldade em chamar a família e a comunidade para o debate, ora

porque a comunidade não aceita a participação, não tem tempo ou não se sente

pertencente àquele lugar, ora porque a escola e alguns profissionais têm medo de

se expor e de deixar a família opinar. As famílias participam de reuniões, de oficinas

para entender a proposta da escola, mas não falam dessa proposta, não discutem,

não falam o que desejam que a escola ensine ou trabalhe como projeto. Se falam, e

quando falam, são pouco ouvidos. Mesmo com uma participação boa nas reuniões e

nos eventos promovidos pelo CMEI, mesmo com tentativa de assegurar um espaço

de discussão aberto às famílias, estão longe de participar da elaboração dos

projetos institucional e literário, porque na maioria das vezes, são vistas com saber

insuficiente para tal participação.

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Nesse sentido, nossa preocupação vai ao encontro da idéia de currículo que

expresse o sujeito praticante e a escola como espaçotempo de diferentes saberes,

fazeres e poderes, dos alunos, professoras, famílias, comunidades e tantos outros

que por ali passam. Saberes, fazeres e poderes tão diversos que fica impossível

homogeneizar essas práticas nos projetos, como nos coloca em relato a professora

de Educação Física Camila37:

Eu acho que muitas vezes, a gente tende a não questionar, eu cheguei no CMEI com isso, e fui bombardeada no sentido de ter que fazer projeto, esse é o modo de fazer. São projetos que nem sempre nos convencem, a gente não tem nem tempo de se engajar neles. A SEME tenta fazer isso para dar uma unidade, mas isso não resolve, não garante a unidade de um CMEI para outro, por que cada CMEI tem um modo de fazer diferente. Talvez o que sirva pra um não sirva para outro. É a experiência de cada um que vai dizer. Eu sei que a gente está tentando.

Oliveira (2005, p. 52) coloca a impossibilidade de avaliarmos “as práticas

curriculares através de mecanismos que essencializam os fazeres, colocando-os em

lados opostos, sem considerar as “misturas” que fazemos entre normas,

circunstâncias, características dos grupos e outras”. Por isso, no cotidiano escolar

sentimos, ouvimos, vemos e saboreamos esse enredamento de conhecimentos dos

sujeitos.

A preocupação das professoras em cumprir as ações dos projetos e os diversos

referenciais – apresentados a partir desses projetos – faz com que elas deixem de

lado ações que consideram importantes para priorizar aquilo que nos projetos é

pertinente. Em planejamento com as professoras do Jardim I matutino, pude

perceber o desejo de trabalhar com o alfabeto, pois percebem que as crianças não

sabem as letras do alfabeto e apresentam pouco desenvolvimento no grafismo, o

que consideram essencial para desenvolver habilidades para a leitura e escrita.

Porém, sua preocupação se centra no que é construtivismo ou tradicional. Querem

trabalhar uma letra de cada vez, mais têm medo dessa prática parecer tradicional e

37 A professora Camila é efetiva em outro CMEI da PMV e faz extensão de carga horária no CMEI

pesquisado.

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decidiram trabalhar com as letras da palavra VITÓRIA, pois assim não fogem ao

projeto institucional: “Uma leitura infantil sobre a cidade de Vitória”, então vão

primeiro trabalhar com a letra V e o R (para não ficar muito repetitivo e não parecer

tradicional).

Em conversa com as professoras, percebo uma preocupação muito grande no que é

certo e/ou errado no trabalho com essa faixa etária, e várias questões de dúvidas

são discutidas entre elas. Em conversa informal no momento de planejamento, uma

professora me questionou se pode segurar na mão da criança para auxiliá-la na

escrita de seu nome. Outra me perguntou como trabalhar com cores uma vez que as

cores não podem ser trabalhadas isoladamente – “A cor sempre é cor de alguma

coisa, não posso trabalhar o verde, o amarelo, sem mostrar algum elemento que

tenha essas cores” (Professora Ana). Outra professora me indagou por que não

pode mais trabalhar com pontilhado para a criança cobrir e escrever seu nome,

colocando que, se a criança aprende por imitação, por que não pode desenhar para

ela copiar ou colorir?

Essas são algumas falas para além dos projetos, falas que mostram a preocupação

das professoras com a aprendizagem dos alunos e que muitas vezes os projetos

não dão conta. Daí a necessidade de um tempo para discutir a aprendizagem, o

conhecimento dos alunos e professoras, um tempo para falarem dos seus saberes e

do que os angustia; tempo para discutirem suas experiências e fazeres cotidianos.

Larrosa (2004) nos fala um pouco desse tempo que nos foi arrancado e da

experiência que precisa ser valorizada.

Larrosa (2004), ao falar de experiência, coloca em discussão os excessos: excesso

de informação, excesso de opinião, falta de tempo e excesso de trabalho. Esses

excessos estão presentes na escola, onde não podemos desperdiçar o tempo: ele

deve ser gasto com coisas “úteis” e com o trabalho que deve ser constante. Todos

têm que estar bem informados. Para isso, precisamos de formações constantes,

que, muitas vezes, impedem a experiência.

A experiência, segundo Larrosa (2004), requer um tempo para parar e pensar, olhar,

sentir, escutar, coisa que não temos feito nos dias atuais pela velocidade da vida

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que levamos. Na escola, será que todos esses projetos são tão necessários? Será

que eles promovem a experiência? A quem eles atendem?

A idéia de currículo que estou defendendo na presente pesquisa vai além dos

documentos e projetos instituídos. Coloco meu foco nas redes de saberes, fazeres e

poderes dos sujeitos, assumindo-os como protagonistas dos processos de tessitura

e partilha dos conhecimentos em suas maneiras de ser e de fazer nos cotidianos

escolares.

Para Certeau (1994, p. 41) “essas ‘maneiras de fazer’ constituem as mil práticas

pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da

produção sócio-cultural”, alterando o seu funcionamento. Ao procurar viver da

melhor forma possível, com astúcias anônimas das artes de fazer, o homem

ordinário (CERTEAU, 1994) vai criando, inventando o cotidiano, escapando

silenciosamente ao lugar que lhe é atribuído. Esse homem ordinário nos remete à

idéia de sujeitos praticantes, pessoas comuns. Nos espaçostempos escolares,

professoras e alunos fazem da escola um lugar praticado. São, de fato, co-criadores

desse “espaço”.

Os sujeitos praticantes (CERTEAU, 1994) deixam suas marcas no cotidiano, vivem e

fazem a vida acontecer. Sentem, sofrem, amam, se emocionam, se entristecem com

aquilo que acontece todos os dias e que, se para muitos parece igual, para nós é

sempre algo diferente.

As professoras por não terem explicação para as ações que lhes são impostas como

certas e erradas, agem conforme suas experiências. Muitas vêem importância nas

atividades consideradas tradicionais, como pegar na mão da criança, dar atividades

de pontilhar o nome, trabalhar cada letra do alfabeto, pois acreditam que naquele

momento é disso que a criança precisa para que a aprendizagem de fato aconteça.

Às vezes pego na mão do meu aluno mesmo, para que escreva o nome e depois de alguns dias ele já consegue fazer sozinho, se fosse esperar ia demorar muito e talvez ele nem conseguisse. Sei que isso é errado, mas acho que funciona e funcionou (Professora Ana).

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Existe uma preocupação muito grande por parte das professoras em saber o que é

certo e o que podem ou não fazer para que aquele aluno aprenda; pedem soluções

imediatas para os problemas que surgem, mas acreditam que existe um documento

capaz de nortear esse trabalho e que deve ser seguido.

Se é no cotidiano que as coisas acontecem, é ali que as experiências se dão, então

podemos falar junto com Ferraço (2005) no cotidiano como entre-lugar da cultura, na

medida em que as redes de sentidos são tecidas e que na sala de aula o currículo

prescrito toma forma e se transforma em outra coisa, isso implica em performances,

invenções e criações.

O performativo introduz a temporalidade do entre-lugar (BHABHA, 1998), ou seja,

ele interrompe a temporalidade hegemônica da sala de aula, provocando

bifurcações. O performativo burla o que classifica e nomeia. Ele inscreve a

impossibilidade de repetir igual ao modelo, produzindo diferenciações.

É preciso pensar para além das organizações do espaçotempo das salas de aula

que não são pensadas levando-se em consideração os sujeitos encarnados

(NAJMANOVICH, 2001) que vivem esse cotidiano. Toda a proposta curricular é

pensada fora da sala de aula pela SEME, pelos pedagogos, pelas professoras.

Mas se existe o instituído, a normatização e a hierarquização, existem as burlas as

negociações e as traduções. Quantas vezes as professoras precisam criar uma

outra rotina por não conseguirem terminar uma atividade proposta e planejada.

Quantas vezes os alunos criam situações e falas que fogem do planejado. Quantas

vezes na escola os pais nos apontam questões que não damos conta de responder.

Quantas vezes nós do CTA infringimos as próprias regras colocadas por não darmos

conta do que está proposto.

Negociação, como nos coloca Bhabha (1998, p. 51), não é negação,

Quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir uma temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios: uma dialética sem a emergência de uma História telealógica ou transcendente, situada

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além da forma prescritiva da leitura sintomática, em que os tiques nervosos à superfície da ideologia revelam a “contradição materialista real” que a História encarna. Em tal temporalidade discursiva, o evento da teoria torna-se negociação de instâncias contraditórias e antagônicas, que abrem lugares e objetivos híbridos de luta e destroem as polaridades negativas entre o saber e seus objetos e entre teoria e a razão prático-política.

Negociação passa pelo âmbito do vivido, daquilo que precisamos para sobreviver à

rotina já dada, aos horários pré-fixados, às normas estabelecidas, os projetos já

pensados, as ações programadas. Nem tudo pode ser controlado o tempo todo e aí,

as burlas, as negociações, as traduções acontecem no sentido de dar vida, colorir o

ambiente. É uma maneira de negar aquilo que está posto, de assumir outras lógicas

e fugir do instituído, muitas vezes produzindo outras lógicas que, do mesmo modo

que as anteriores, instituem lugares próprios38

5.2.2 Sobre os projetos da SEME: Projeto de horário integral, Projeto de Educação Especial, Formação Continuada na Escola e Professor Dinamizador

Estou chamando de projetos da SEME aqueles que vêm para a escola como uma

proposta de trabalho, e que os sujeitos desse cotidiano devem dar conta em seu

espaçotempo de aprendizagem. Projetos que, na maioria das vezes, não são

discutidos em sua elaboração, e, em outras, são reivindicação do próprio magistério.

Nesse sentido, nossa perspectiva se pauta em uma discussão que potencializa a

fala dos sujeitos praticantes em relação aos projetos citados. Ouvir esses sujeitos

legitima nossa ação e nos faz refletir como esses projetos são vividos, vivenciados e

negociados no cotidiano do CMEI pesquisado, e aí me pergunto,

[...] que processos de negociações, traduções e mímicas (BHABHA, 1998) são realizados no cotidiano escolar com as narrativas (ALVES e GARCIA, 2002) e os usos (CERTEAU, 1994) que os sujeitos praticantes do cotidiano produzem em relação ao currículo prescrito? Que possibilidades de problematizações esses processos apontam em termos das teorias, metodologias e conteúdos apresentados como prescrições? Como esses processos potencializam, no

38 Entendemos que os processos curriculares instituintes e instituídos acontecem tanto nos

espaçostempos da SEME quanto das escolas.

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cotidiano, práticas de resistência e criatividade em relação aos mecanismos homogeneizadores das prescrições? Que outros discursos (SILVA, 1999) sobre currículo estão sendo elaborados em meio a esses processos? Que pistas (GINZBURG, 1989) esses processos nos dão sobre outras possibilidades teórico-epistemológico-metodológicas em termos de questionamentos da política prescritiva e homogeneizadora da Secretaria de Educação e da proposição de políticas de currículo a partir das práticas instituintes do cotidiano escolar? (FERRAÇO, 2008, p. 1 - 2).

Busco ir para além do currículo prescrito nos projetos citados e pensar em

possibilidades de um currículo que aponte para as redes de saberes, fazeres e

poderes dos sujeitos, e isso só é possível a partir de suas falas e narrativas.

Nessas narrativas, as professoras colocam como é pertinente a discussão dos

projetos. Pertinente porque perpassa uma questão vivida e sentida no cotidiano que

elas têm que dar conta e esse dar conta, implica em fazer o projeto de fato

acontecer, com atividades, com ações, com avaliação e registro do cotidiano, porque

vão ser cobradas.

Em relação ao projeto de horário integral, conversei com a professora dessa turma.

Ela trabalha nos dois horários diretamente com essas crianças e traz a problemática

vivida, a rotina, a relação com as crianças e suas famílias, o risco social e os

recursos.

Kelen – Como é o trabalho com a turma do integral? Professora Rita – Já é o segundo ano que trabalho com o integral, eu acho que é um trabalho que tem que ser especial, são crianças com idades diferenciadas e que ficam longe da família o dia todo, o período que ficamos com eles a gente tenta suprir a ausência da família, não ocupando o lugar de mãe e pai, mas com afeto, atenção e um trabalho mais lúdico. Kelen – Fale um pouco da rotina e organização de trabalho com essa turma? Professora Rita – Entrada às 7h até 7h30m, vamos para o desjejum, após o desjejum vamos para o pátio, depois a gente retorna para a sala e desenvolve um trabalho pedagógico não pressionando muito, pois, as crianças tem o horário da sala referência que já trabalha mais direcionado, mas a gente trabalha com histórias, músicas. Kelen – Você conhece o projeto de horário integral da SEME? Professora Rita – Não. Teoricamente não, conheço mais na prática. Eu não conheço o projeto na teoria. Mas me preocupa, pois não sei se o município tem pernas para chegar a um atendimento em horário integral de 100% das crianças. O nosso CMEI atende 570 crianças e se a gente fosse atender um horário integral para todas as crianças teríamos a metade na escola e uma lista de espera enorme, eu acho

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que podem ter outros projetos para atender essas crianças, mas não na escola, talvez no bairro, mas com outra característica.

Aqui a professora traz algumas questões importantes para nossa discussão: o que é

esse projeto de horário integral? A quem ele atende? Como deve ser o trabalho com

essas crianças? Será que ele dá conta de suprir a ausência da família? Como

atender 100 % das crianças em horário integral?

Segundo a professora, o trabalho acontece com atividades lúdicas, planejadas, mas

que não devem “pressionar” a criança, pois no outro horário na sala referência39,

essa criança vai trabalhar com os projetos específicos: institucional e literário. No

momento em que estão na turma do horário integral, deve priorizar o trabalho com

música, movimento, pintura.

As professoras de Educação Física, apesar de certa resistência no trabalho com os

alunos de horário integral e de relatarem que não entendem o valor desse

atendimento, têm realizado atividades com o objetivo de potencializar o tempo e as

atividades com essas crianças, como consta no relato da professora de Educação

Física Camila.

Em relação ao tempo integral no CMEI, tenho muita dificuldade de entender o real valor do tempo integral, os meus alunos são alunos do integral. E eu me predispus a uma vez por mês fazer aula especial com crianças de horário integral, do integral que fica na escola, não do Brincarte. Todo mês eu realizo uma atividade, um piquenique, um cineminha, eu coordeno. Mas, por amar minhas crianças do integral, só por isso. Essas atividades constam na programação do integral do ano. Também por ver como as crianças do integral sofrem com o afastamento da família, por isso eu doei o tempo do meu PL, por entender que é uma necessidade da criança.

Apesar da professora que trabalha diretamente com os alunos de horário integral

não conhecer o projeto teoricamente, o CMEI é cobrado pela SEME a elaborar um

projeto mais amplo, com atividades ligadas à realidade e ao interesse dessa faixa

etária. Esse projeto é pensado e elaborado pelas professoras junto com as

pedagogas e desenvolvidos durante o ano.

39 Sala que a criança estuda no horário contrário. São as turmas especificas: Berçário I, Berçário II e

Maternal.

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Kelen – E na escola tem um projeto específico para lidar com essa faixa etária tão diversificada? Professora Rita – Tem o projeto interno da escola. Esse foi construído por nós e a gente trabalha mais em nível de grupo, da socialização, devido às diversas faixas etárias que temos na sala. Kelen – Que proposta curricular esse projeto atende? Professora Rita – A gente não trabalha com os dois projetos: literário e institucional, trabalhamos com um projeto mais lúdico e com trabalhos mais coletivos, não individuais.

Com essa turma específica são trabalhadas mais atividades coletivas, de

socialização, brincadeiras, atividades extra-classe em forma de oficinas. Em cada

dia é promovida uma oficina: de música, pintura, beleza, brincadeiras, histórias. Nos

planejamentos, as professoras, junto com a pedagoga, planejam atividades dentro

dessa proposta de oficina. No dia da oficina da beleza, as crianças se enfeitam no

cantinho da beleza, as meninas se maquiam, fazem penteados, e os meninos se

arrumam; as professoras fazem sessão de fotos.

A rotina das crianças é seguida pelos profissionais: horário de entrada (Figura 30),

desjejum, pátio, atividade em sala (Figura 31) ou extra-classe, almoço (Figura 32),

banho e descanso (Figura 33).

É a gente que faz um pouco de malabarismo, pois é uma sala só para os dois horários. Os alunos da manhã ficam até as 10h nessa sala depois é o almoço e eles vão para outra sala para fazer o repouso, é a hora que eles tomam banho e descansam até o horário da tarde, onde acordam e vão para a sala referência. Nesse período, a gente desocupa a sala para receber os alunos da manhã, que vêm da sala referência para a sala do horário integral. Eu acho que atende, porque temos espaço fora da sala para sair com eles, temos muito espaço fora da sala e trabalhamos muito no espaço livre (Relato da Professora Rita sobre a rotina do horário integral).

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Figura 30 - Entrada dos alunos do integral

Figura 31 - Atividade em sala dos alunos do integral

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Figura 32 – Almoço dos alunos do integral

Figura 33 – Descanso dos alunos do integral

As professoras tentam garantir uma educação de qualidade para essas crianças,

entendendo ser necessária a relação de afeto e de carinho, uma vez que ficam o dia

todo no CMEI, e muitas delas não têm uma família que garanta condições básicas

de vida, como alimentação, moradia e conforto.

Apesar das diferentes faixas etárias (Berçário I, II e Maternal) numa mesma sala de

aula e da relação inicial dos alunos ser um pouco difícil devido às diferenças de

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idade, as professoras conseguem garantir um trabalho de qualidade e atendimento a

essas crianças e suas famílias. O trabalho pedagógico é garantido, e apesar do

assistencialismo que o projeto se propõe, como o cuidar, a higiene, a alimentação,

percebo que tudo isso é feito sem deixar de lado as discussões do cuidar e do

educar. Kelen – Algumas falas de professores e demais funcionários apontam o projeto de horário integral proposto pela SEME como assistencialista. Você vê dessa forma? Professora Rita – Olha só, quando nós iniciamos na pré-escola ela fazia parte da ação social e realmente a gente só dava banho e alimentava – cuidavam – então era um trabalho assistencialista. Só que hoje mudou, evoluiu e apesar da criança ficar o dia todo na escola, eu não vejo como assistencialista, porque ele tem todo um trabalho pedagógico e favorece a mãe que trabalha e a própria criança de estar no convívio social de risco, de droga, de violência, na rua. Antes era assistencialista mesmo porque a criança só ia à escola para ser cuidada, alimentada e vigiada, hoje não, dentro disso tudo tem um trabalho pedagógico para a criança nos dois horários.

As professoras recriam o espaço que têm para atender às necessidades das

crianças e das famílias. Estão sempre conversando com os pais na porta da sala

sobre como a criança passou o dia. Perguntam aos pais sobre a saúde das crianças,

como passaram a noite; verificam nas mochilas as roupas e fraldas que atendam à

criança o dia todo. Também pesquisam atividades e ações para as diversas faixas

etárias que atendem; escolhem os livros de história que vão interessar às crianças;

criam situações de conforto e aconchego na sala de aula para que as crianças

fiquem bem o dia todo.

[...] em seus fazeres cotidianos, os professores estão não apenas modificando sua prática em virtude das circunstâncias de cada momento, mas também em processo de formação continuada, seja como “autoformação” por meio de seus próprios processos de reflexão, seja como formação continuada através da interação com colegas (FERRAÇO, 2005).

Esse processo de formação das professoras, em especial que trabalham com o

horário integral, vem acontecendo no cotidiano, através de estudos formais com o

grupo, nos planejamentos, nos momentos de conversa com outro professor sobre

seus alunos, no lidar com as famílias. Vão procurando mecanismos de lidar com as

diferentes situações que acontecem no espaçotempo da escola.

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Em conversa com a diretora Cláudia sobre o horário integral, ela coloca que o

projeto é muito recente e que a SEME, assim como a escola, estão se adaptando à

demanda do horário integral, e que os suportes são poucos em comparação com as

dificuldades que a escola enfrenta.

Em relação aos projetos da SEME, projetos que já vêm prontos e direcionados, tanto

a diretora Cláudia quanto a pedagoga Mara sinalizam suas preocupações da relação

entre esses projetos e o que acontece de fato no interior da escola: as dificuldades,

as inquietações, a falta de pessoal qualificado, a falta de suporte, a insatisfação do

grupo de trabalho e a cobrança da família.

Diretora Cláudia – O suporte que a SEME dá hoje é um suporte que é mais ou menos igual a todos. Existe uma intenção que a coisa aconteça de forma diferente. Ela tenta dar o transporte, alimentação, tenta não, ela já está fazendo isso, hoje ela propõe distribuição do uniforme, ela tenta nos dar um suporte em nível de formação. Nós profissionais ainda não estamos suficientemente entendidos com essa proposta de horário integral, é muito mais fácil você trabalhar com aluno de horário parcial, você tem menos problemas diários com esses alunos, a escola funciona bem mais tranqüila. Como o horário integral vem crescendo, a SEME tem que dar um suporte maior de pessoal e pensar que pessoal vai atuar nessa ação. [...] Teria que estar fazendo um trabalho diferente, e isso, eu estenderia para o Brincarte, que atende os alunos de 4 a 6 no espaço fora da escola.

A diretora Cláudia sinaliza indicativos da necessidade de pessoal que atenda ao

horário integral e que existe uma divulgação em torno desse atendimento, mas que

não dá conta da demanda da escola em relação ao atendimento aos alunos, às

famílias e à quantidade de pessoal para trabalhar com esse projeto. Ela fala do

horário integral de 4 a 6 anos, que funciona em um espaço fora da escola, na

Fundação Batista.

Nessa proposta de horário integral de 4 a 6 anos, as crianças ficam um período na

escola e no outro vão para a Fundação Batista. A SEME dá o nome de Brincarte,

que é o atendimento ao horário integral. Apesar de o projeto acontecer fora da

escola existe um problema de pessoal, pois esses alunos saem da escola às 11h30

e o transporte só passa para pegá-los e levá-los para o espaço do Brincarte às

12h20, e outro grupo de criança vem para o CMEI do Brincarte às 12h30 e só entra

na sala de aula às 13h. Esse tempo de 11h30 às 13h o CMEI só conta com as

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auxiliares de berçário para ficar com essas crianças, o que vem causando certo mal-

estar, pois o concurso que prestaram foi para trabalhar diretamente com crianças de

6 meses a 3 anos.

As auxiliares colocam sua insatisfação e dificuldade em ficar com essas crianças

nesse período, por não ter uma orientação melhor de como agir nas diferentes

situações.

O transporte traz as crianças que estão no Brincarte e levam as que estão no CMEI. As que vão pra lá são bem mais agitadas, as crianças que vem do Brincarte são mais calmas, pois vem de um espaço que não tem uma formalização, igual à escola. Elas vêm da bagunça, vamos dizer assim, de um lugar que não tem um professor específico, onde o trabalho é mais lúdico, mais brincadeiras. Elas têm dificuldade em entender que aqui é uma escola e não vão só brincar, tem uma rotina. Agora elas já têm entendido melhor disso, no começo do ano não, hoje está mais tranqüilo. Só que o grupo que está aqui pela manhã já sai da sala mais cansado, agitado, porque pensa que vai para um lugar que vai brincar, então querem brincar aqui. Sabemos que 4 a 6 anos não é mais brincadeira é mais atividade, dever o tempo todo, elas já saem da sala cansados, a gente já recebe elas do professor muito agitadas. Elas pensam – “Eu estou aqui e vou para um lugar que vou brincar, então eu vou brincar aqui”. Então quando se juntam querem bagunçar, e não entendem que tem um tempo de espera em que ficam com a gente, e aí o que fazer nesse tempo de espera? Foi tentada uma série de coisas: televisão, jogos. Hoje as meninas (referindo-se as outras auxiliares) colocam as crianças no pátio para queimar energia. Elas são muito agressivas, a criança é uma de manhã e de tarde é outra, é diferente (Relato da Auxiliar de Berçário Maria).

O carro chega para pegar os alunos da manhã, às 12h20, e os alunos são bem agitados e mais numerosos, a gente os deixa no pátio ou reveza com as colegas, porque a gente divide as crianças em vários grupos. Os da tarde são mais calmos, eu prefiro deixar os que chegam na sala, pois no pátio eles zoam. É um momento bem agitado. Nesse horário eles ficam bem, até que obedecem. A gente divide os alunos e quando precisa deixamos a criança no cantinho para pensar, essas coisas. Só que o difícil é que não temos atividades planejadas, pois não temos um momento para isso, nem uma direção, alguém para nos direcionar. Eu costumo dar folha para desenhar ou quando tem alguma colega que faz pedagogia elas trazem alguma atividade de pintar (Relato da Auxiliar de Berçário Nadir)

No relato, as auxiliares trazem elementos para pensarmos: Quem deveria ficar com

essas crianças nesse horário? O que elas deveriam fazer nesse tempo? O que

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fazem nesse outro espaço – Brincarte? Que atividades poderiam ser pensadas para

esses alunos? Será que precisam de atividades planejadas? Como conter essa

agitação das crianças?

Essas dúvidas também permeiam o imaginário das professoras como relata a

professora Regina:

Kelen – Fale um pouco do projeto de horário integral? Professora Regina – Você vê que é política de governo imposta para os CMEIs, é colocado que deve atender a crianças de risco social, mas tem crianças que a mãe fica em casa e deixa a criança no Brincarte. Tenho um aluno que a mãe colocou no Brincarte por que a criança pediu, e agora ela disse que vai tirar por que percebeu que ele está muito agitado. Quer dizer, tem mudado o comportamento das crianças, elas ficam mais agitadas. Ouve uma mudança de comportamento sim. Eles relatam que gostam, falam que cantam, que brincam, que tem muitos brinquedos, agora eu não sei se essas atividades preenchem todo o tempo. São educadoras sociais que atendem essas crianças.

Essas questões nos fazem pensar no currículo que está sendo vivenciado por essas

crianças nesse outro espaço e que emerge no espaço do CMEI de outra forma. As

dúvidas das auxiliares em lidar com a inquietação e agressividade desses alunos

trazem elementos importantes para pensarmos o currículo vivido por esses sujeitos,

em um espaço que llhes é permitido brincar e no outro não, onde as crianças devem

obedecer às regras impostas e onde precisam ocupar o tempo com alguma

atividade direcionada.

Na fala da Pedagoga Mara, percebo uma preocupação com as necessidades do dia-

a-dia em relação ao projeto de horário integral, as dificuldades com a demanda de

pessoal e a realização na prática do projeto:

Na verdade, pela leitura que a gente tem, dando exemplo do horário integral que veio da SEME, é ela traz a parte de fundamentação teórica e os objetivos que ela enquanto órgão espera que a instituição de ensino execute, mas a gente sabe que viver na prática o horário integral demanda uma série de ações no cotidiano, que a SEME desconhece. Então na verdade quem complementa e dá vida a esses projetos são as ações discutidas no grupo e acrescidas, porque são muitas necessidades do dia-a-dia que não vêm nesse projeto da SEME, é ali mesmo com a criança, com todas as dificuldades, com demanda de pessoal, com especificidade de cada

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comunidade. Porque de acordo com a comunidade e com suas necessidades que nós vamos dando vida a esses projetos.

É na escola que as coisas acontecem e são sentidas, discutidas, problematizadas.

Tentar compreender e aprender com esse cotidiano é o que fazemos o tempo todo.

A pedagoga Mara afirma que quem dá vida a esse projeto é o cotidiano da escola,

os sujeitos que participam dele, com todas as dificuldades e especificidades das

crianças, com todos os enfrentamentos com as famílias, com o pessoal de apoio.

São na escola que as coisas acontecem e que o projeto que veio do órgão central

(SEME) já se transforma em outra coisa, porque a realidade cotidiana tem outras

possibilidades.

Na busca por compreender, vamos aprendendo a captar a realidade com todos os sentidos, pois que a escola produz ruídos, sons graves, agudos, metálicos, agressivos, pungentes, gritos, sussurros e silêncios, e tem cheiros que falam de fome, de medo, de desejo, de pobreza, de ansiedade, de dor e de prazer. Tudo isso sem falar nos corpos que quando tocados falam de suas histórias, de como foram cuidados ou abandonados (GARCIA; LINHARES, 2001, p. 50).

Nesses diferentes contextos vividos, o currículo vai acontecendo, as redes são

tecidas para além da previsibilidade do projeto que pressupõe etapas, seqüências,

estágios e indica o que deve ter ou não na escola para dar conta desse atendimento

em horário integral. O cotidiano indica outros caminhos e possibilidades de pensar

esse currículo e compreender que os conhecimentos são tecidos em todos os

espaçostempos.

Assim, como no projeto de horário integral, o projeto de educação especial, segundo

a pedagoga Mara, acontece da mesma forma: o projeto vem da SEME e é

ressignificado no cotidiano da escola,

O projeto de Educação Especial eu acho que acontece da mesma forma, vem uma intenção de projetos para esses alunos, mas é dentro do CMEI que vamos determinando e percebendo as ações que precisam acontecer.

O projeto de Educação Especial vem da SEME para a escola como um Plano de

Trabalho que propõe o atendimento especializado nas escolas aos alunos de acordo

com sua necessidade, trabalho colaborativo com a professora regente e pedagogo e

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outros apoios necessários à aprendizagem, à locomoção e à comunicação,

conforme consta em Plano de Ação/200740.

O projeto se pauta no trabalho colaborativo da professora especializada e a

professora regente, o que pode ajudar a professora regente nos seus anseios e

amenizar os desafios da Educação Inclusiva. Porém, na fala da Professora Regina o

trabalho realizado nos anos anteriores com o estagiário e a sala de recursos é o que

atendia a demanda, esse trabalho colaborativo, que se pretende, não acontece

devido ao tempo pequeno que a professora especialista passa no espaço do CMEI e

em sala de aula.

Kelen – E o projeto de Educação especial? Professora Regina – O projeto hoje diferenciou muito de como era antes. Eu lembro que em minha sala tinha uma aluna cega e uma estagiária para acompanhar essa aluna, a assessora da SEME vinha na escola e me dava orientação das atividades que poderiam ser aplicadas com essa criança. Em outro horário essa aluna tinha atendimento psicológico e estimulação, eu acho que antes atendia mais. Em um horário ela estava na escola e em outro na sala de recursos, eu via que ela tinha atendimento com o psicólogo, com o fonoaudiólogo, atendimento da APAE e tínhamos apoio da estagiária. Depois, foi feito a unidade pólo e as crianças não tinham o atendimento exclusivo da estagiária, só crianças específicas que podiam ser atendidas pelas estagiárias: como: alunos com múltiplas deficiências. O assessor não vinha mais te dar orientação, era você ou você e hoje está novamente diferente, o professor especialista vem aqui dois dias e trabalha com o aluno. É complicado atender a criança sem apoio de estagiária, o professor não dá conta. Como hoje eu vejo que os encaminhamentos são mais difíceis, antes era mais rápido.

Para além das dificuldades em lidar com os alunos com NEE no espaço da escola

devido a falta de estagiário ou profissional de apoio, o trabalho colaborativo também

não acontece por falta de tempo das professoras planejarem juntas. A professora

regente planeja na quinta-feira, e a professora especializada vem nas segundas e

terças-feiras. As duas professoras só têm tempo de conversar na porta da sala ou

nos corredores. O fato de a professora especializada vir à escola dois dias na

semana e ter um horário bem fechado, impede esse diálogo (Quadro 10).

40 Plano de ação da Educação Especial/ 2007.

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Uma outra questão discutida com as professoras diz respeito ao projeto de

Educação Especial desenvolvido este ano. Antes, o projeto previa o atendimento

dessas crianças em escolas pólos, com professor especializado. Elas estudavam na

escola regular em um horário e no outro iam para as escolas pólos, tendo

atendimento de acordo com a necessidade de cada criança. Hoje, em vez de a

criança ir até a escola pólo, a professora especializada está na escola junto com a

professora regente. As duas professoras entrevistadas têm opiniões diferentes

quanto a esses dois tipos de atendimento.

Quadro 10 – Horário de atendimento da professora especializada no CMEI.

CMEI “SONHO MEU” HORÁRIO - EDUCAÇÃO ESPECIAL – MATUTINO

Aluno/Turma Segunda-feira Terça-feira

Josiane – Jardim I A - 7:00 – 8:15

Mateus – Maternal B - 8:15 – 9:30

Planejamento 9:50 – 11:05- -

Gabriel – Jardim II B 7:20 – 9:00

Carlos – Jardim I A 9:20 – 10:40

Lanche 9:30 – 9:50 9:00 – 9:20

Professora Jaqueline – Teve uma época que na PMV tinha as escolas pólos, a criança freqüentava a sala de aula normal e no horário contrário ela ia pra essa escola pólo, e lá os professores sabiam qual era a especialidade de cada criança e trabalhavam a questão cognitiva e motora com cada criança. Aquela escola pólo tinha uma sala pra isso, com materiais diversos para cada especialidade, eu acredito que assim seria melhor, pois do jeito que está não atende. Professora Kátia – Eu acho que a escola pólo não era válida, pois a criança ir para outro espaço reforça que ela é especial, e a gente está trabalhando a diferença na sala de aula. Hoje a sociedade vê a criança especial de outra forma, e nós profissionais devemos nos doar muito para entendermos essa especialidade. Eu não concordo acho que a inclusão deve acontecer dentro do espaço escolar e a família junto com a gente.

Mesmo com todas as dificuldades no atendimento a essas crianças, as professoras

conseguem um resultado positivo. Crianças que chegaram à escola sem andar e

falar, devido ao seu comprometimento, hoje falam e andam. Crianças que não

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davam conta de usar o banheiro sozinhas, hoje são capazes de fazê-lo. Isso é um

avanço muito grande para a escola, as professoras e os alunos.

É possível ver que, independente do que está prescrito no projeto, os alunos

conseguem sua autonomia para as coisas mínimas do cotidiano. O pouco suporte, o

não saber lidar com a especialidade desse aluno, o pouco tempo para discutir as

ações com a professora especialista, a dificuldade em lidar com o comprometimento

do aluno não impediram as professoras de terem sucesso e de ver a aprendizagem

de fato acontecer.

É no cotidiano, na vivência com esse aluno, na pesquisa sobre seu

comprometimento, no desafio de lidar com um aluno especial que as professoras se

formam:

É nesse processo em que mais aprendemos do que ensinamos, vamos melhor compreendendo o que nós próprias e outros autores, autoras estávamos dizendo com – a professora-pesquisadora. Vai ficando mais claro que a professora vai se tornando pesquisadora (e é sempre um vir a ser) quando se mostra inconformada com o fracasso escolar de seus alunos e alunas e insatisfeita com sua própria prática pedagógica e se põe a observar, tentando compreender o que acontece em sua sala de aula – por que alguns aprendem e outros não, por que alguns se interessam e outros não, por que algumas vezes dá certo e outras não, por que a teoria que traz de seu curso de formação não dá conta da realidade com a qual ela se depara por que as explicações de causa e efeito, na prática se misturam, nos confundem, se contradizem e muitas vezes o efeito precede a causa (LINHARES; GARCIA, 2001, p. 51).

Nesse processo de não saber ao certo como lidar com o aluno dito especial, de

querer respostas para as dúvidas e não encontrar, é que as professoras vêem a

necessidade de pesquisar e, muitas vezes, agir conforme sua intuição ou

experiência. Isso é formação, um processo de autoformação, e é nesse momento de

formação e autoformação que o currículo acontece, que as professoras buscam em

livros, teorias e autores alguma forma de lidar com a situação vivida, como relata a

professora de Educação Física Camila:

O projeto de inclusão não tem para onde a gente escapar, o meu CMEI é pólo em deficiência auditiva, eu tenho 4 alunos surdos, todo mundo estuda libras, por que essa é a política da SEME. Eu faço curso de libras e utilizo com meus alunos, me esforço para utilizar, eu

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poderia ficar só na leitura labial, mas não é essa a proposta de inclusão, talvez seja o projeto mais vigente no CMEI. Tenho alunos com Síndrome de Down e todos eles participam da aula, alunas com Síndrome de Rett41, é uma preocupação exclusiva da minha aula, no meu planejamento está assim: adequar a Gabriela. Agora não é prescritivo, mas é uma preocupação minha, a minha aula tem que atingir a todos os meus alunos. Sendo ou não projeto da SEME já estaria acontecendo.

A diversidade de referenciais teórico-metodológicos que são colocados pelas

professoras para entender a questão da Educação Inclusiva pelo órgão central –

SEME – muitas vezes não significa muito para a professora no momento da aula.

Ali, na sala de aula, a teoria é ressignificada na prática cotidiana, e a prática abre

questões importantes para discutir a teoria já dada.

Quando a professora regente coloca que não sabe o que a professora especialista

trabalha com o aluno, e pensa que ele pode estar trabalhando de uma forma que

não seja a mesma que ele, professor regente, eu me pergunto: Será que só existe

uma maneira de ensinaraprender? Será que o professor especializado precisa dar

conta da proposta curricular que o CMEI entende como verdade? Como será o

trabalho do professor regente para com o aluno com NEE? Como será o trabalho do

professor especialista com esse aluno?

São muitas as questões que permeiam o currículo e que um projeto ou uma

proposta curricular não dará conta de responder, mas que no cotidiano vivido elas

acontecem e são vividas e negociadas pelas professoras e alunos. Não estou aqui

contrapondo a proposta curricular prescrita com o currículo vivido, mas numa

tentativa de ampliar e problematizar as discussões no campo do currículo para

pensarmos em “outros elementos que se enredam nas redes tecidas no dia-a-dia

das escolas” (FERRAÇO, 2008, p. 2).

Mesmo considerando que as prescrições constituem elementos importantes do currículo, queremos problematizar essa visão com a intenção de tirar o foco da idéia de currículo como documento e colocá-lo na de currículo como redes de saberesfazeres, tecidas e compartilhadas no cotidiano escolar, cujos fios, com seus nós e

41 Anomalia genética que causa desordens de ordem neurológica, acometendo somente crianças do

sexo feminino.

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linhas de fuga, não se limitam a esse cotidiano, mas se prolongam para além dele enredando diferentes contextos vividos pelos sujeitos praticantes (FERRAÇO, 2008, p. 4-5).

As professoras sabem que independente da proposta curricular do CMEI ou de se

ter uma proposta para a educação especial, o aluno avança. Aprendizagem

acontece porque as professoras, no cotidiano, vão vendo e entendendo as

necessidades dos alunos; vão experimentando e criando formas de ensinar

aprender. As professoras falam desse avanço dos alunos com NEE, sentem que o

grupo percebe as mudanças e que de alguma forma seu conhecimento tem dado

certo.

Kelen – Fale um pouco do desenvolvimento de seu aluno de acordo com sua especialidade? Professora Kátia – Ele avançou bastante. Ele gosta de se ver no espelho, de estar inserido com os outros. Junto com os colegas, ele não fala, mas tenta se comunicar com gestos, que é uma forma de comunicação, o avanço na fala, no movimento. Tenta cortar com a tesoura, participa das atividades, o cognitivo dele está muito bom. Professora Jaqueline – O Mateus, pelo que a pedagoga Mara passou para mim, a gente tem que trabalhar mais a questão de regras, de limite, de convivência com as crianças, porque o cognitivo dele é muito comprometido, então tem algumas atividades que ele participa, por exemplo: bingo de letras, que a gente dá para todo mundo junto, ele participa, e consegue realmente brincar, consegue marcar, ele observa as letras, mas em uma atividade de escrita eu já não posso dar pra ele porque é só rabisco mesmo. Essa parte eu não posso cobrar muito, mas aí tem a questão da oralidade e dos limites, e a gente está conseguindo porque tem frases que ele fala que a gente até duvida que seja dele, e não é só a comunicação com as crianças na sala de aula, ele se comunica com todos da escola e não está nem aí para o que fala. Então, ele tem uma comunicação boa com os outros professores com a Vânia que cuida do banheiro do corredor, essa parte a gente está conseguindo, ele está incluído na sala de aula, não tem problema nenhum. No começo do ano ele dava tapas na cara dos colegas, aí conversei com ele e com a mãe, pronto ele não bate mais nos colegas, essa atitude era dele no ano passado. No ano passado a gente via o Mateus muito pelo corredor, mexendo nas coisas das outras pessoas, esse ano não tem mais esse problema, no pátio a gente pergunta cadê o Mateus: – Está no pátio junto com outros colegas. Então essa questão que a gente precisa trabalhar, a gente está dando conta.

A professora também sinaliza outros saberes que precisam ser pensados e

vivenciados pelos alunos para além do conhecimento sistematizado no projeto e na

proposta curricular: as diferentes formas de comunicação, o fato de ser aceito pelo

grupo, ser aceito pela professora. Todas essas questões permeiam o currículo e,

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dessa forma, outras redes são tecidas, são negociadas, são traduzidas. Daí a

necessidade de uma perspectiva política que atue nas brechas do cotidiano e

perceba os usos (CERTEAU, 1994), narrativas (CERTEAU, 1994), negociações

(BHABHA, 1998), traduções (BHABHA,1998), mímicas (BHABHA,1998) e

performances (BHABHA,1998) que se valem de diferentes lógicas, éticas e

estéticas. E entendendo que “os saberesfazeres dos sujeitos que praticam o

cotidiano das escolas são ambivalentes, deslizam o tempo todo, deslocam o

instituído, criam outras possibilidades ao mesmo tempo em que buscam conservar o

que está dado como referência prescritiva” (FERRAÇO, 2008, p. 9).

As redes tecidas no cotidiano, as negociações, as mímicas e as traduções se

configuram em espaços de dominação, espaços próprios em que os sujeitos

encontram brechas e fazem usos de sua potência de criação. Nesse sentido, foi

preciso ir em busca de pistas e, ao mesmo tempo produzir pistas sobre as práticas

pedagógicas das professoras. E, nessa busca, me deparei com professoras

especialistas de Arte e Educação Física, que também vêm com uma proposta do

órgão central – SEME –, para incorporar o corpo docente do CMEI e dinamizar o

espaço. [...] Não é professor dinamizador de Educação Física. Até quando eu cheguei brinquei com o professor José: – Ah! Professor, 40 horas é difícil, podia até trocar para EMEF. Ele disse: – Esquece, nem professora você é, você é dinamizadora. Pronto, agora que eu quero sumir daqui, não sei nem o que eu sou, então o que eles falam pra gente é dinamizador, não sei o que é dinamizador, o que eu acho que eles entendem é que você vem dar outra dinâmica ao CMEI, eu acho que é isso que eles entendem, mas eu não sei, na verdade é um cargo (Relato da professora de Educação Física Karla).

A dificuldade de entender a proposta do professor dinamizador é pertinente. Na

verdade nos perguntamos para que esse professor no espaço da educação infantil?

Como é essa proposta de professor dinamizador de Artes e Educação Física? Como

as professoras vêem esse professor? Que trabalho realizam com as crianças do

Berçário I ao Pré?

Para muitas professoras regentes, esse profissional veio para o espaço para garantir

o tempo de planejamento, que deve acontecer toda semana, com quatro tempos de

50min; para outros, esse professor veio para que as crianças pudessem vivenciar

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outras experiências para além da sala de aula. O trabalho realizado muitas vezes é

considerado, pelas professoras regentes, como o mesmo trabalho que fazem

durante suas aulas, e assim não precisariam de mais um professor.

Esses embates entre professor regente e professor dinamizador acontecem no

espaço do CMEI o que muitas vezes torna o trabalho difícil de ser realizado.

Kelen – Como é a sua relação com os professores regentes? Você acha que eles entendem a função de vocês, como professoras também, ou você não se vê nessa condição? Professora de Educação Física Karla – Mais ou menos, acho que elas olham pra gente e dizem: – Ah vou ter meu planejamento garantido. O que passa é que elas não estão preocupadas com o que eu faço com a turma, o que eu vou realizar de atividade. Eu entendo que elas têm o momento de planejamento para dar conta de tudo, que não tem tempo na sala de aula com as crianças. Professor de Artes Renato – Eu tento ser uma pessoa que tem uma relação boa, tento não tomar os espaços do outro, porque na Educação Infantil tem muito disso, parece que o egocentrismo que as crianças pequenas têm pegado no adulto: é minha sala, meu espaço, meu pátio, meu material, isso pega.

De fato as professoras regentes têm muito medo de perder seu espaço. Existe uma

dificuldade muito grande em dividir o espaço, o material, os horários. Se o horário de

pátio é da turma do Jardim I, as turmas que estão com o professor dinamizador não

podem usar. O material da sala só pode ser usado pelas professoras regentes, e o

dinamizador tem que levar o seu material para sua aula. Existe uma dificuldade

muito grande em dividir, em compartilhar o que é do coletivo, do aluno, da escola.

Os territórios são demarcados.

Professora de Educação Física Camila – Quando a gente chegou parecia que existia uma rivalidade muito clara, porque a gente estava falando de afeto, concorrência de afeto. Até então o professor regente estava sozinho com sua sala, não tinha divisão desse amor, dessa relação. E também influências no modo de educação. Algumas professoras nos receberam bem. Os colegas com formação mais recente tiveram uma receptividade maior e os colegas com formação mais antiga tiveram mais resistência. Mas hoje eu penso em uma parceria que tento mediar, antes era uma parceria no trabalho agora a parceria que a gente troca, são as conversas no corredor falando das características comportamentais do aluno, o que tem acontecido, e eu tento ouvir mais esse profissional que está a mais tempo na educação infantil, me tornar mais humilde, mais ouvinte.

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No relato das professoras existe uma questão nítida: o sentimento de disputa, uma

preocupação em ter que dividir tudo: o aluno, o espaço da sala de aula e até em

relação ao modo de educar ou de lidar com a criança e por isso um trabalho coletivo

tem que ser construído aos poucos com confiança e humildade, mas com lugares

bem demarcados.

As professoras dinamizadoras têm seus projetos próprios, porque precisam também

demarcar seu território. Precisam escrever o que é específico de sua disciplina, de

seu conteúdo, pois também têm a necessidade de criar um campo próprio para sua

disciplina, a fim de serem aceitas e reconhecidas pelo grupo.

Então, tanto para a disciplina de Educação Física, como para a de Artes, há projetos

próprios que devem permear ou integrar o projeto institucional de alguma forma.

Para o ano de 2008, o projeto de Educação Física diz respeito às brincadeiras e

brinquedos vivenciados pelas crianças do bairro, e o projeto de Artes tem como foco

a representação da cidade de Vitória pelas crianças.

Esses dois projetos são pensados pelas professoras dinamizadoras como uma

forma de organizar o trabalho com os alunos. Quem elabora o projeto são as

professoras junto com as pedagogas. No projeto de Educação Física, que traz como

tema “Resgatando as brincadeiras da infância de São Pedro”, a família teve

participação, pois as professoras fizeram uma pesquisa com as famílias sobre as

brincadeiras que vivenciaram quando crianças, e dessa pesquisa, as professoras

elegeram, junto com as crianças, aquelas que gostariam de vivenciar nas aulas de

Educação Física. [...] A idéia do projeto saiu do PPP que a escola estava pesquisando, estudando sobre o bairro, daí surgiu a idéia do projeto resgatando as brincadeiras de São Pedro. Esse ano eu estou com a idéia de outro projeto, não sei se posso continuar com o projeto do ano passado, isso ainda não foi definido (Relato da Professora de Educação Física Karla).

No projeto de Artes, fica evidente que nem as crianças, nem as famílias participaram

da elaboração. O projeto nasceu do projeto institucional sobre a cidade de Vitória,

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em que as crianças puderam vivenciar um conteúdo mais da parte histórica da

cidade, como consta no relato do professor de Artes Renato:

[...] Estou trabalhando o projeto Vitória, já que o CMEI tem uma leitura infantil sobre a cidade de Vitória eu tento encaixar o meu conteúdo mais na parte histórica. Esse conteúdo é construído junto com as pedagogas. Trabalho com a experiência, experiência de materiais, que vão trazer informações e técnicas para um melhor aprendizado em outros conteúdos. A idéia é a experimentação, aquela coisa da Gestalt, onde a criança vai adquirir bases teóricas para entender o mundo, a arte não é nada mais do que a representação do mundo. A criança dentro de sua faixa etária vai criando, aprendendo e ressignificando o mundo.

Na maioria das vezes, as professoras regentes não têm conhecimento dos projetos

ou do trabalho do professor dinamizador, talvez por não terem tempo de sentar para

discutir, talvez por não terem interesse em saber. O fato é que elas não têm esse

momento de troca de pensar junto, pois têm que dar conta do planejado, dos

projetos, das atividades com as crianças.

Kelen – E vocês não têm esse momento de troca? Professora de Educação Física Karla – Não, muito pouco, algumas professoras têm. Por exemplo: com a professora Lucilene, a gente vive trocando idéia. – O que você vai fazer hoje? Vamos preparar uma oficina? O que você está trabalhando? Com ela tem essa troca. No horário da manhã tem as meninas do Berçário I e Berçário II, mas com a maioria não tem. Parece que não tem muito interesse, e nem eu. Às vezes eu falo quando saio da sala, no Berçário I e Berçário II sempre falo com a professora – Pergunta para as crianças o que a gente fez hoje?

No projeto, as professoras dinamizadoras tentam articular os conteúdos que são

específicos da disciplina, porém, muitas vezes, não dão conta de envolver todas as

crianças nas atividades propostas.

Kelen – Que conteúdos são esses que você trabalha no projeto? Professora de Educação Física Karla – As atividades locomotoras, manipulativas e estabilizadoras. E de 0 a 6 a gente entende que é nessa faixa etária que a criança adquire os movimentos básicos, andar, correr, pular, saltitar e galopar. Para depois passar para os movimentos específicos, que vêm os esportes. Então nessas atividades procuramos trabalhar com essas habilidades, estamos trabalhando amarelinha, então trabalhamos o saltitar, o galopar, etc. Eu, por exemplo, trabalho dessa forma, dando prioridade aos movimentos que são de 0 a 6 anos. Às vezes passa até despercebido, eu estou trabalhando um pique e o pique está

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emocionante, mas a criança não tem noção que está correndo e está trabalhando essa questão do movimento, mas a gente tem que ter isso claro. [...] Quem não quer participar, costumo insistir, se não quer fica sentadinho olhando. Com os que não querem não dá muito para ficar: – Vamos lá, vem participar. Até porque a gente não dá conta, é muita criança. Você tem que ficar de olho nas crianças, dar a atividade e ainda insistir com as que não querem.

Os conteúdos são pensados para todas as crianças, acreditando-se que todas

devem participar e interagir na atividade, porém algumas não participam, e o que

podem fazer é ficar olhando o colega. Não existe outra forma de negociação, ou

participa das atividades programadas ou não. Mas as crianças não ficam só

olhando; observo as crianças correndo pelos pátios da escola. Muitas recriam as

suas atividades e criam brincadeiras próprias, com regras inventadas por elas, como

pode ser observado na Figura 34, onde as crianças brincam com balões de festa. As

meninas conversam sobre o cabelo, dizem que nas férias vão ao salão para alisar o

cabelo e perguntam se o meu é natural. Os meninos em sua maioria, brincam de

luta, jogam bola ou correm pelos corredores; crianças fogem da aula de artes para

ficar no pátio ou correndo pelo CMEI.

Figura 34 - Crianças brincando no pátio com balões de festa

Muitas redes são tecidas para além da proposta curricular de Artes e/ou Educação

Física: conversas paralelas entre as crianças, o imaginário da aula de Educação

Física, que está associada ao jogar bola (Figura 35), ao correr, e de Artes, da

pintura, ao desenho. As crianças não querem o que está sendo proposto e burlam o

instituído negociando outras formas de aprendizagem. Negociam o tempo da aula

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quando saem da sala e se misturam com outras crianças de outra turma. Na aula de

Educação Física, as crianças negociam as regras quando não querem fazer a

atividade dada e fazem outra, quando saem correndo pelo pátio e a professora

precisa pedir a outro profissional que a encontre.

Figura 35 - Aula de Educação Física – trabalhando o movimento da peteca

O desafio das professoras dinamizadoras é construir um currículo que dê conta da

especificidade da educação infantil, um currículo que fale do conhecimento dos

alunos, de sua cultura, e que, além disso, possibilite avaliar os saberes adquiridos

nas aulas.

Professora de Educação Física Camila – Nosso desafio é esse, nossa meta é tentar construir um trabalho que dê conta dessa especificidade. O que a gente percebe é que com a nossa entrada no CMEI, as pessoas se isentaram do movimento, chegou o profissional de Educação Física para trabalhar o movimento, então parece que tudo o que é feito, é muito bem vindo, aceito pelas crianças. Hoje eu estava pensando, eu disponibilizei bolas para uma atividade com as crianças. E embora o CMEI disponibilize de bolas, as bolas ficam guardadas, então é impossível as crianças não festejarem esse momento. E aí, eu estou falando em satisfação da criança, parece que isso está suprido. Agora a gente quer mais, a gente está falando de aprendizagem, ultrapassando a questão da satisfação e do prazer, tem a questão da aprendizagem. Eu acho que com 25 crianças, está posto o desafio de garantir a aprendizagem de todos, não diferente do que acontece na EMEF, mas ainda a minha dificuldade é mensurar o quanto de aprendizagem ocorreu, e se ocorreu. Então, isso pra mim é um grande desafio e eu fico pensando onde eu cheguei? Eu recreei. Brinquei. E o que ficou pra eles? Essa é uma inquietação minha, não posso falar de todos, mas eu não consigo mensurar, acho que não dou conta de fazer uma boa avaliação.

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As professoras tentam, de todas as formas, estabelecer uma relação com as

crianças. Por entrarem uma vez por semana em cada turma, sentem dificuldade em

criar um vínculo, pois são muitas crianças. Mas mesmo com essa dificuldade, no

Conselho de Classe observei o quanto conheciam as crianças, falavam com

propriedade de cada uma delas: as que participavam da aula, as que eram mais

tímidas, as que não gostavam de interagir com as outras crianças, e como estavam

se desenvolvendo.

Percebo que é por meio das experiências que as professoras vão construindo sua

prática pedagógica, fazem usos de diversos materiais e atividades para pôr em

prática os conhecimentos científicos que trazem da faculdade e traduzem esses

conhecimentos por meios de diferentes apropriações feitas e, assim, dão visibilidade

a sua aula e a sua postura enquanto professoras.

Uma outra questão de investigação diz respeito à formação continuada na escola,

que precisa ser pensada e discutida com os profissionais. Pode-se afirmar que a

SEME pensa na formação como a mola mestra que vai dar suporte à escola para

lidar com as questões do cotidiano: horário integral, educação especial, professor

dinamizador.

Existe uma política de formação para os profissionais da educação que tem como

proposta fundamental atender aos desejos e necessidades das unidades de ensino.

O projeto de formação pretende atender aos diversos espaçostempos: formações

nas Unidades de Ensino, Formações em espaços coletivos interescolares, núcleo de

estudo e pesquisa em Educação (NEPE).

As formações nas Unidades de Ensino são previstas em calendário, e o coletivo da

escola deve elaborar uma proposta de formação com os temas a estudar e

encaminhá-la à SEME. As formações em espaços coletivos interescolares são

garantidas pela SEME e terão um eixo temático central definido pela própria SEME a

partir de demandas identificadas no ano anterior pela Gerência de Formação e

Desenvolvimento em Educação (GFDE). Segundo o documento que trata da política

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de formação continuada para profissionais da Educação do Sistema Municipal de

ensino de Vitória, existe um núcleo de estudos e pesquisa em Educação que,

Propicia um espaço permanente de estudo e de pesquisa sobre a educação, visando a um processo contínuo de sistematização teórica, registro e circulação dos saberes produzidos tanto pelos profissionais da SEME quanto pelas instituições que têm como eixo de reflexão o campo educacional (POLÍTICA DE FORMAÇÃO CONTINUADA PARA OS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO DO SISTEMA MUNICIPAL DE ENSINO DE VITÓRIA – Versão preliminar, 2007, p. 12).

Vale analisar as formações que aconteceram e acontecem da/na escola durante o

ano de 2008. Nesse ano, o CTA fez um levantamento com os profissionais sobre os

temas que gostariam de estudar. Vários temas foram elencados, como educação

inclusiva; sexualidade; primeiros socorros; alfabetização, indisciplina e violência.

Em reunião, as professoras argumentaram a necessidade desses estudos. Em

relação à inclusão, entendem ser um tema que não se esgota, uma vez que nunca

sabem como lidar com os alunos com NEE, e precisam de formação. O tema

sexualidade é o mais polêmico e o que as professoras mais pedem. Por ser um

tabu, não sabem como agir diante de situações ocorridas na sala de aula. O tema

primeiros socorros acreditam ser importante pelo número de acidentes que ocorre

na escola e não sabem ao certo como proceder. A indisciplina foi colocada como

dificuldade de lidar com alunos que não têm apoio das famílias e não respeitam as

professoras, atrapalhando a aula. Em relação ao tema violência, acreditam que deve

ser discutido também com as famílias, e o tema alfabetização por ser uma discussão

que não se esgota.

As professoras acreditam que as formações promovem de fato o crescimento

profissional e avaliam como positivo para sua vida profissional e para qualificar o

ensino, mas poucos usam na prática cotidiana o que estudam na teoria. Alguns

relatam a importância das formações42:

42 Essas falas estão registradas nas avaliações que são realizadas após as formações.

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Professora Cássia – Cada tema estudado nas formações com certeza contribui muito para o meu crescimento pessoal e profissional. Professora Regina – Muito bom, havendo uma grande participação dos grupos tanto nas discussões, como nas apresentações dos pontos abordados. Professora Jaqueline – Percebi que apesar das horas trabalhadas durante o dia todos e todas se envolveram com muita criatividade. Professora Joana – Sempre crescemos quando nos permitimos ouvir o outro e interagir com ele e com o meio. Por isso, acho que é excelente a participação de todo o corpo da escola, só enriquece as discussões. Professora Ana – Sem dúvida a formação permite uma reflexão pessoal de nossos atos, o que vem a refletir no crescimento profissional43.

Embora as falas acima apontem para um pensamento positivo em relação às

formações, há também falas que nos mostram a insatisfação das professoras quanto

ao local da formação, ao tema escolhido, às discussões e ao tempo:

Professora Edir – Alguns temas são muito repetitivos, sempre ouvi falar desse assunto, sempre discutimos a inclusão e nada muda, o discurso é o mesmo e na prática não temos suporte para lidar com os alunos. Professora Kátia – O local é desconfortável, não temos um auditório para fazermos nossas formações, temos que ficar quatro horas sentadas nessas cadeiras de crianças, no final do dia não agüentamos a dor nas costas. Professora Arlete – Às vezes as discussões ficam muito longas e ninguém agüenta mais, muda todo o foco da formação, as pessoas não sabem separar as coisas. Professora Rita – O tempo da formação é de quatro horas, mas temos poucos dias no ano para parar e estudar um assunto, e no horário de trinta minutos a gente sabe que é enganação, já estamos cansados e querendo ir embora44.

Nessas falas, as professoras sinalizam as dificuldades e angústias em relação à

formação continuada. Entendem como importantes, mas ao mesmo tempo colocam

aquilo que as incomoda: os temas repetitivos, o desconforto, as discussões e o

tempo de 30 minutos no final de cada dia para formação e informes quando todos

querem ir embora, mas são obrigados a ficar.

43 Textos escritos por algumas professoras na avaliação das formações continuadas na escola. 44 Fala das professoras em conversa informal na sala dos professores após formações, quando

colocam suas insatisfações.

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Muitas questões incomodam as professoras no que diz respeito às formações. Sinto

que eles se sentem impotentes diante de tanta teoria que lhes são colocadas e que,

no momento da prática cotidiana, outras questões são tecidas, e tudo o que foi

falado e discutido cai por terra, porque cada situação é única e não há um manual

para seguir e nem teorias que dêem conta da imprevisibilidade da prática.

Professora de Educação Física Célia – As formações são muito direcionas pelo CTA, quando tem uma sugestão, essa não é ouvida. Se é formação então vamos dar voz aos professores. A gente faz o papel de ouvinte, a gente não se expõe, as pessoas não se expõem porque têm medo de serem julgadas pelo outro. Kelen – Por quem? Professora de Educação Física Célia – Por todos. Professora Educação Física Karla – Eu acho que é mais informação do que formação. Por exemplo: no dia em que nós da Educação Física demos a formação foi bom, mas por que não uma professora do Berçário I falar sobre o trabalho ou do Jardim I. Cada um pode conduzir e falar de sua especificidade. É como se elas precisassem saber do nosso trabalho e a gente não precisasse saber do delas. Eu sinto falta de entender o trabalho do outro, talvez o que estamos fazendo não tenha nada a ver com a proposta delas. Talvez sejamos um ET. Qual a particularidade do Berçário II e do Jardim I? É preciso ouvir.

O que se vê nas formações, se reduz a descaracterizar e desconsiderar o que as

professoras sabem, afirmando o tempo todo sua incapacidade ao lidar com assuntos

que só intelectuais, teóricos e estudiosos dominam. Fico me perguntando, o que as

formações têm representado para as professoras? No cotidiano, no calor da sala de

aula, na relação com alunos e colegas de profissão, como pensam na teoria

abordada em sua formação? Como agem com os alunos e alunas para lidar com a

sexualidade? Como alfabetizam seus alunos e alunas? Como lidam com a

indisciplina de seus alunos e com a disciplina também? Quando as crianças se

machucam ou passam mal, como procedem?

Essas questões deveriam permear as formações, pois é preciso parar de colocar a

professora na situação de incompetência e buscar valorizar e entender as diferentes

redes tecidas a partir de suas experiências, como nos coloca Alves (2003, p. 86):

O que percebo, em contrapartida, é que quando buscamos a memória das professoras, em circunstâncias variadas, percebemos que indicam experiências extremamente ricas, que são diferentes de geração a geração, mas que são sempre muito interessantes,

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permitindo a renovação da escola, o que não aparece nos relatos oficiais.

A política oficial de formação, de modo geral, acontece de cima para baixo. A SEME

e/ou o CTA da escola sugerem as formações, quando e como vão acontecer, fazem

a pauta e convidam alguém para falar.

Também, o fato de todas as formações acontecerem no espaço do CMEI tem

incomodado os profissionais, pois acreditam precisar de momentos de encontro com

outros profissionais e em outros espaços, como sinaliza a professora de Educação

Física Camila,

Kelen – Fale um pouco da Formação continuada. Professora de Educação Física Camila – Nós dinamizadores, de certo modo, queremos acreditar que quando a SEME nos separou não teve a intenção de dividir o conhecimento. Por que essa formação continuada separou as áreas, com quem eu quero trocar eu não posso, que são os meus pares, embora meus colegas do CMEI sejam parceiros nós já dispomos do tempo de 30 minutos no final do dia. Agora, formação continuada no local de trabalho como ela tem acontecido, ela me parece muito pobre. Primeiro por que embora possamos usufruir com as experiências umas das outras, temos outro espaço para fazer isso e a separação dos nossos pares tem nos empobrecido, pois quando estamos com eles discutimos não só as questões pedagógicas como as questões trabalhistas e operacionais que não deixam de ser fundamentais para nossa formação.

Aqui a professora traz como ponto fundamental a troca com seus pares fora do

espaço de trabalho que seja não somente para discutir questões pedagógicas, mas

para se encontrarem, falarem dos anseios, das vivências e das práticas em outros

espaçostempos que não os seus.

Existe uma dificuldade em ouvir o outro. A formação acaba sendo um momento de

informação no cotidiano, quando alguém fala verdades e certezas para um outro,

acreditando que dali em diante os problemas em relação àquele assunto se cessam.

Porém, no cotidiano escolar, na sala de aula, as coisas acontecem de outra forma e

é preciso apreender esse currículo realizado com suas representações e

significados.

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Segundo Carvalho (2005) o currículo escolar, concebido ou vivido faz da educação

um processo de diminuição do outro, o que nos faz questionar os aparatos

educacionais e educativos.

Nesse sentido, o currículo escolar e, nele, o livro didático, as preleções dos professores e professoras etc. podem funcionar produzindo um espaço do outro, sempre ocupado pela idéia fixa estereotipada (violento, sujo, desordenado, mal-educado, etc.), desconhecendo e desconsiderando a ambivalência das posições e dos entrelugares nos quais todos nós estamos situados (CARVALHO, 2005, p. 95).

Assim, vejo um processo de negação do outro, de seus desejos e suas angústias. O

outro, invisível, aquele que tem sua imagem moldada, que não pode fugir ao que

está posto. Bhabha (1998, p. 87) nos chama a atenção para o desejo do outro: “[...]

É somente pela compreensão da ambivalência e do antagonismo do desejo do

Outro que podemos evitar a adoção cada vez mais fácil da noção de um Outro

homogeneizado, para uma política celebratória, oposicional, das margens ou

minorias”.

O que se quer nas formações é garantir a proposta de trabalho defendida pela

Secretaria de Educação, homogeneizar as práticas, sendo que as professoras tem

que ter esclarecida a proposta da SEME, que é o construtivismo sócio-interacionista.

Na fala da assessora da SEME, em reunião com o CTA do CMEI, fica evidente que

nosso discurso tem que estar pautado em uma única linha de pensamento. “O que

me preocupa é essa fala dos profissionais de fazer um pouco o construtivismo e um

pouco o tradicional. Temos que deixar claro a linha que a rede municipal segue”

(Fala de Rosa, assessora da SEME).

O que me preocupa, diferente da assessora, é justamente esse seguir uma única

linha, ou se é possível homogeneizar as práticas, ou como é possível se pensar em

uma linha única se cada projeto ou proposta da própria rede apresenta uma

miscelânea de referenciais teórico-metodológicos que em nada ajudam as

professoras a pensar sua prática.

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Acredito mais nas conversas entre as professoras, em uma autoformação que

acontece no cotidiano da escola, no dia-a-dia, na própria prática, no calor dos

acontecimentos, na conversa na sala dos professores ou nos planejamentos.

[...] a arte de conversar: as retóricas da conversa ordinária são práticas transformadoras “de situações de palavra”, de produções verbais onde o entrelaçamento das posições locutoras instaura um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma comunicação que não pertence a ninguém. A arte de manipular “lugares comuns” e jogar com o inevitável dos acontecimentos para torná-los “habitáveis” (CERTEAU, 1994, p. 50).

A potência da formação continuada, acredito eu, não está na quantidade de

referenciais teórico-metodológicos que se propõem a tratar. Está no movimento que

ela é capaz de fazer no cotidiano, está nas problematizações que vão causar nos

profissionais, está nas inúmeras redes que são tecidas a partir de um tema, um

estudo.

Portanto, uma formação precisa ir além da estabilidade e do controle que se quer

previstos, muito pelo contrário deve provocar a interação entre todos e pensar não

só na cognição, na intelectualidade conceitual e nos conteúdos sistematizados, mas

nas variações de significados e conhecimentos do cotidiano escolar e no

entrelaçamento de ações nele realizados, isso implica em assumirmos diferentes

currículos-redes (FERRAÇO, 2002).

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6. AS PROFESSORAS NÃO SABEM MUITO O QUE FAZER

Trazer algumas narrativas dos sujeitos praticantes como foco de nossa análise nos

possibilita dialogar com o que cada um pensa sobre os projetos. Na fala das

professoras, da pedagoga e da diretora fica evidente que elas acham importante a

metodologia de projetos como o que vai direcionar e organizar as ações, fortalecer o

trabalho com o currículo da educação infantil e fazer o grupo pesquisar os assuntos

abordados nos projetos. Já os projetos da SEME, como Horário Integral, Educação

Especial e Formação Continuada na Escola, são projetos que beneficiam a

comunidade e os alunos, no caso do Horário Integral e da Educação Especial, mas

que trazem uma série de questões e dificuldades para a escola, como a falta de

pessoal qualificado.

Entender a lógica do trabalho com projetos pela fala dos sujeitos nos faz pensar que

currículo é este que vem sendo construído no interior da escola. Um currículo que

aponte para as necessidades dos sujeitos ou um currículo que segue as prescrições

do órgão central ou ainda um currículo que atenda às aparências do belo e do bom

no interior da escola? Um currículo para os alunos, com os alunos, ou um currículo

das professoras e para as professoras, e ainda pensar um currículo dos pedagogos

e do diretor? A quem serve esse currículo por projetos?

Em todas as ações das professoras, do CTA e das famílias, seja nos planejamentos,

nas aulas, nas formações, nas reuniões e conversas, vemos a preocupação

cotidiana na busca de levar os alunos à aprendizagem e à criação de elementos que

emergem a partir de suas redes de saberes, de práticas e de subjetividades

(OLIVEIRA, 2005).

No cotidiano da sala de aula, a proposta curricular, as formações e o planejamento

são negociados, e é na sala de aula que o currículo de fato acontece, nas ações e

interações dos sujeitos cotidianos, sujeitos encarnados, que não dão conta de tudo:

projetos, alunos, conhecimento, festas, família, disciplina, mas que reinventam

formas de ensinar e aprender, aquilo que coletivamente se propõem a fazer.

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Pensando na proposta de currículo por projetos da SEME, refaço a pergunta inicial

deste trabalho: Será que temos uma escola de projetos ou projetos de escola? Esse

emaranhado de projetos que a escola deve dar conta tem potencializado o

conhecimento emancipatório para todos e todas? Como os projetos vêm dando

conta, ou não, do currículo na educação infantil?

Essas questões permearam minha pesquisa e me fizeram refletir um pouco sobre o

papel da educação infantil. Embora a educação infantil seja uma especificidade, e a

discussão do que é cuidar e educar na educação infantil ganhe destaque no interior

da escola e nas discussões do currículo, o ideário dos pais e de alguns funcionários

do CMEI ainda é uma creche, e deve, como tal, trabalhar em função da higienização

e alimentação. Percebemos as propostas colocadas em cada projeto, planejamento

e formação, na fala das professoras e das pedagogas, em que há preocupação em

garantir uma proposta que mostre essa faixa etária como um lugar de

aprendizagem, de saberesfazeres.

A concepção teórico-metodológica colocada pela SEME está pautada no

construtivismo sócio-interacionista de Vygotsky, o que vai, em vários momentos, de

encontro com um construtivismo cognitivista de Piaget. A proposta do RCNEI

baseia-se em uma proposta piagetiana, em que primeiro é preciso considerar o

desenvolvimento do sujeito para depois garantir as experiências sociais e de

aprendizagem, ou seja, a criança só aprende de acordo com seu desenvolvimento.

Vygotsky acredita no desenvolvimento atrelado à experiência sociocultural do

sujeito. Para ele, primeiro devemos considerar a relação do sujeito com o mundo à

sua volta para depois determinar a aprendizagem e o desenvolvimento do sujeito.

Primeiro ele aprende e depois se desenvolve, ou melhor, o desenvolvimento

acontece se acontecer a aprendizagem.

Nessa perspectiva, o currículo que se propõe a ser sócio-interacionista deve fazer

uma reflexão do que representa a presença do RCNEI nas unidades de educação

infantil. Por outro lado, o documento norteador “Um outro olhar” também tem a

pretensão de direcionar o trabalho e colocar que se deve pensar em temas pré-

definidos. A proposta de projetos segue a idéia da grafia da árvore em que existe um

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tronco único e os galhos. O tronco são os temas centrais dos projetos e os galhos,

os subitens ou enfoques dos projetos.

Pensar em um currículo na Educação Infantil que traga a discussão das redes de

significados, dos saberes, fazeres e poderes cotidianos dos sujeitos praticantes é

desconstruir as dicotomias ainda impregnadas nos projetos, propostas e planos de

trabalho. Nos projetos, vemos algumas determinações de que todos devem seguir

um tema proposto; as ações são sugeridas pelo CTA a fim de organizar o trabalho;

existe o envolvimento das famílias, dos alunos e da comunidade; os eixos propostos

no RCNEI devem ser trabalhados nos projetos seguindo os subitens escolhidos

pelas turmas.

Na fala da diretora, da pedagoga e das professoras, os projetos do CMEI45 tentam

romper com um currículo rígido que separa o conhecimento por disciplinas, em

gavetinhas; um currículo que se pretende em uma grafia da árvore que tem como

características a separação, a hierarquização, a previsibilidade, a linearidade.

Segundo elas, o projeto é construído sempre no coletivo e não tem separação das

atividades de acordo com as disciplinas ou eixos da Educação Infantil, “Ah, isso é de

matemática, isso é de linguagem, porque a gente não trabalha separado. Ah, hoje

vamos trabalhar cores, hoje a gente vai trabalhar isso. Não é assim, a gente trabalha

o projeto e vai puxando tudo na aula” (Relato da Professora Joana).

Essa tentativa de trabalho com os projetos de forma a fugir de um currículo que

aponte para a grafia da árvore não acontece porque os projetos atendem a uma

hierarquia, pois são selecionados e decididos, na maioria das vezes, pelo CTA. As

atividades são selecionadas pelas professoras e pelas pedagogas sem a presença

dos alunos e das famílias. Existe uma previsibilidade, pois existem etapas e

seqüências das atividades, como vimos nas sugestões de atividades do projeto

literário, na escolha dos livros que devem ser trabalhados durante o ano e nos

conteúdos apresentados pelo CTA para o trabalho com o projeto institucional.

Assim, não existe trabalho coletivo, porque os projetos são sempre pensados pelo

outro para um outro, que pouco ou nada participa desse processo.

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A arrogância pedagógica de pensar o que é melhor para o outro sem considerá-lo como legítimo outro, capaz de pensar por si e de projetar sua vida, tem marcado grande parte dos projetos a que temos tido acessos em nossas pesquisas com os cotidianos das escolas. De fato, a tônica da pedagogia de projetos em vigência, no sistema municipal de ensino de Vitória/ES, tem tomado as escolas como espaçotempo apenas de execução do que está sendo proposto (FERRAÇO, 2008, p. 5).

Porém, seria preciso repensar essa metodologia numa tentativa de ouvir os alunos e

as professoras, suas experiências, saberesfazeres, o que realmente interessa para

eles, suas dificuldades e anseios. Saber o que ensinar ou ter pronto um projeto ou

uma proposta de ensino não garante que os conhecimentos sejam compartilhados e

nem tenham significado para os sujeitos. Será necessário ouvir mais e valorizar os

conhecimentos numa negociação coletiva.

Percebemos que por mais que se direcione a forma de ensinar e aprender, os

sujeitos praticantes criam suas formas próprias de lidar com as situações e de

caminhar com os projetos que atendam ao que se espera delem e propor questões

que envolvam os alunos e suas famílias. A escrita do Projeto Político Pedagógico do

CMEI mostra como no cotidiano o currículo é movimento e que não tem como

simplificar esse currículo na escrita de uma proposta, de um projeto ou de um plano

de ação, porque as redes são tecidas o tempo todo e o conhecimento acontece na

experiência, na experimentação. [...] A experiência é, neste sentido, mais forte do que o sujeito. Ela acontece quando sentimos um estranhamento e uma inquietação. Quando alguma coisa nos cutuca e sem querer nos colocamos a pensar [...] (FIORIO, 2006, p. 127). [...] A experiência quando nos toca dá a sensação de colocarmos a mão na consciência. Por força do costume achamos que pensamos de forma racional desligada da experiência. Como escreve Arnaldo Antunes, não é nada disso: tire a mão da consciência e ponha na consistência. Na consciência da experiência vivida é que são forjadas batalhas e as transformações. O valor estético e político disso tudo é a criação [...] (FIORIO, 2006, p. 127).

Tudo o que se vivencia no cotidiano do CMEI traz questões envolvendo o ensino-

aprendizagem. Um currículo para a educação infantil deve considerar as redes de

45 Falo do projeto literário e institucional.

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significados, as negociações, traduções e mímicas desse cotidiano. Não basta

propor ações com listas de conteúdos e objetivos de trabalho, é preciso mais, é

preciso ouvir os sujeitos, o que querem, o que pensam, como fazem no interior de

sua sala de aula, e isso é difícil.

Outra reflexão necessária é sobre qual escola estamos falando e o que entendemos

por currículo na educação infantil. Não existe um currículo para a educação infantil e

sim um currículo que fale da educação infantil, um currículo na educação infantil,

com a educação infantil, um currículo que fale da experiência dos sujeitos.

O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pôr-nos), nem a o-posição (nossa maneira de opor-nos), nem a im-posição (nossa maneira de impor-nos), nem a pré-posição (nossa maneira de propor-nos), mas a exposição, nossa maneira de ex-por-nos, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada lhe toca, nada lhe chega, nada lhe afeta, a quem nada lhe ameaça, a quem nada lhe fere (LARROSA, 2004, p. 161).

Então, o currículo na Educação Infantil fala da experiência dos sujeitos cotidianos,

das relações que se estabelecem na sala de aula entre os alunos, com as

professoras e suas famílias. É nessa experiência sentida e vivida que o currículo

acontece. Não são os projetos que vão dar conta de falar deles, não é o PPP da

escola e muito menos a proposta curricular, tudo isso são tentativas de

materialização do currículo. Na verdade, ele é experiência que vai se articulando e

ganhando vida nas relações cotidianas.

Um currículo que se propõe trazer o discurso dos saberes, fazeres e poderes

cotidianos deve ser um currículo emaranhado na ética e não só na técnica, um

currículo que fale da diferença, da heterogeneidade e não da homogeneidade. Um

currículo que alcance a dimensão da inclusão e não da exclusão, que avance na

discussão da cultura, não como intercâmbio entre culturas, mas na possibilidade de

potencialização de saberes históricos sociais.

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Nessa enxurrada de projetos que estão colocados hoje os CMEIs, destaco a

dificuldade das professoras que não sabem ao certo o que fazer, como fazer, por

que fazer e para quem fazer. Os projetos apresentam a diversidade de referenciais

teórico-metodológicos que impedem a visualização dos saberes, fazeres e poderes

dos sujeitos praticantes, porque se propõem a atender uma pré-determinação do

órgão central (SEME) ou do CTA da escola. Kelen – Em relação aos projetos, vocês acham que a escola acaba sendo um fazer projetos? Professora de Educação Física Célia – Eu vejo que é um fazer projetos, não por entender que esse projeto é importante, se faz um projeto pra dizer que tem, tem que ter, se bater a SEME, está documentado, está aqui. Se a escola tem um projeto ela está resguardada.

Acredito que muitas vezes o currículo por projetos posto no CMEI tem representado

no cotidiano uma mera execução, tudo é pensado em função dos projetos, dos

temposespaços e do ensinoaprendizagem. As professoras devem pensar sempre

em questões e atividades ligadas aos projetos. Nesse movimento de dar conta dos

projetos, entendo que a escola acaba sendo uma escola de projetos e não projetos

da escola.

Nessa diversidade de referencias as professoras não sabem ao certo o que fazer, o

que seguir, como agir. Tem o RCNEI como base para a constituição da proposta

curricular do CMEI, mas o RCNEI já não atende mais a proposta da SEME, que é

esboçada no documento norteador “Um outro olhar”. Esse documento pretende

seguir a linha construtivista sócio-interacionista e, por outro lado, tem que trabalhar

em uma metodologia de projetos que atenda à realidade do aluno e da comunidade.

Esses projetos devem atender aos eixos colocados no RCNEI, no documento

norteador, e seguir a linha sócio-interacionista.

No que se refere às práticas pedagógicas das professoras, mesmo no centro desse

bombardeio de projetos e referenciais, existe uma vontade muito grande de ver as

coisas acontecerem, uma preocupação com a aprendizagem do aluno, uma

preocupação em fazer a família participar das ações planejadas, uma tentativa de

que as ações coletivas aconteçam. Porém, essas ações estão permeadas de

julgamentos do que vem a ser certo e errado, dos referenciais que devem seguir e

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dos autores que devem ou não estudar. E isso tem sido mais valorizado do que os

saberesfazeres dos sujeitos praticantes.

O currículo vivido pelos sujeitos praticantes nos aponta para além da mera execução

dos projetos. Ele nos mostra que as professoras e alunos negociam e burlam o

instituído. No miudinho da sala de aula é possível visualizar as redes de

saberesfazeres produzindo danças e deslizamentos de significados impossíveis de

serem previstos ou controlados (FERRAÇO, 2005).

A potência do currículo não está nos inúmeros referenciais colocados diante dos

projetos; a potência do currículo está no vivido, naquilo que é sentido, que pulsa,

que causa a instabilidade e faz emergirem dúvidas sobre o já dado, o previsível.

O que me interessou na pesquisa foram os usos e negociações que os sujeitos

praticantes fazem dos documentos colocados na escola, as discussões, as

problematizações e invenções, o que me obrigou a mergulhar no cotidiano em busca

de pistas que apontassem possibilidades de tessitura de redes. Essas redes são

tecidas em diversos espaçostempos do cotidiano escolar que não dei conta de

acompanhar, pela complexidade desse cotidiano.

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