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ENTRANDO PELAS PORTAS DO FUNDO: A DANÇA CHEGA À EDUCAÇÃO FÍSICA
Roberto Rodrigues [email protected]
Centro de Estudos Avançados e Formação Integrada - CEAFI PÓS-GRADUAÇÃO
RESUMO O presente trabalho surge da necessidade de compreender as relações entre a Dança e a Educação Física a partir do confronto entre as concepções e visões presentes nessas áreas do conhecimento acerca do corpo e do movimento. Buscamos identificar como a Dança gera traços de ruptura em relação à Educação Física, partindo de suas feituras e especificidades enquanto manifestação artística.Trilhamos pelas esquinas, os cruzamentos e os (des) encontros entre essas áreas para chegarmos às portas do fundo pelas quais a Dança entra na Educação Física.
Palavras-Chave: Dança. Educação Física. Diálogos. Corpo. Movimento.
ABSTRACT This work arises from the need to understand the relationship between dance and physical education from the confrontation between the ideas and visions in those areas of knowledge about the body and movement. We seek to identify how dance creates traces of rupture in relation to physical education, starting with its making and specificity as artistic expression. Tread on street corners, intersections and the (mis) matches between these areas to get to the bottom of the doors through which enter the Dance in Physical Education.
Keywords: Dance. Physical Education. Dialogues. Body. Movement.
1. INTRODUÇÃO
Em sua trajetória histórica a dança esteve marcada por diversos tabus e
preconceitos que acabaram por reforçar algumas dicotomias tão conhecidas no mundo
ocidental como corpo-mente, corpo-espírito, pensar-agir que a distanciaram de sua real
identidade enquanto linguagem artística. Desde a era aristocrática do Balé Clássico a
dança foi vista como sinônimo de destreza, agilidade e virtuosismo.
Algumas rupturas, estabelecidas a partir do esforço de artistas/ personagens que
marcam a história da dança, possibilitaram uma ampliação dos olhares e práticas acerca
dos sentidos dados à própria dança, ao corpo e ao movimento, que passaram a ser
vistos como expressão do ser no mundo em suas várias manifestações. Essas rupturas
foram, mais especificamente disseminadas, a partir da Dança Moderna.
Desde então, a dança percorreu alguns caminhos que a levariam a se afirmar
como área autônoma e de grandes significados, até mesmo para a área da educação. A
Dança Moderna inaugurou um período de mudanças significativas que, mais tarde,
ganharia ainda mais força com as experiências no cenário da Dança Contemporânea.
Em um outro contexto, a Educação Física brasileira também percorreu caminhos
marcados por diversas contradições e períodos de críticas que a levariam a conquistar
vários espaços de discussão e formulação de novas teorias que questionavam o seu
caráter reducionista expresso pelo tecnicismo na década de 1970 que admitia o esporte
como sinônimo de educação física. Essas críticas se consubstanciaram em espaços
políticos de discussões acerca de sua verdadeira identidade e de seu papel enquanto
área de formação humana.
Percorrer esses dois caminhos nos leva a perceber as contradições e as
especificidades de cada uma dessas áreas, no intuito de identificar possíveis
cruzamentos entre elas para melhor compreender as relações que são estabelecidas
nos espaços de formação acadêmica. Assim, buscamos estabelecer conexões entre a
dança e a educação física para melhor compreender as rupturas e as mudanças geradas
em relação a padrões e concepções de corpo e movimento, em um contexto acadêmico/
artístico de uma instituição formadora de professores de Educação Física, a Escola
Superior de Educação Física e Fisioterapia do Estado de Goiás (ESEFFEGO).
2. DANÇA E EDUCAÇÃO FÍSICA: AS ESQUINAS DE SEUS CAMINHOS
Padrões de corpo e movimento estiveram fortemente presentes nessas áreas que
acabavam por anunciar e formatar aquilo que seria o conhecimento oficial e hegemônico.
Experiências/ práticas que fugissem a esses padrões eram vistas como inferiores ou
“erradas” e permaneciam à margem do processo. Os caminhos trilhados por essas áreas
do conhecimento são marcados por tabus e preconceitos que acabavam por impedir ou
repelir mudanças que, porventura, viessem romper com esses padrões.
É justamente na busca por aquilo que desestruturou (ou quis desestruturar) os
padrões e modelos fechados de ensino da educação física e da dança, que o presente
estudo se localiza enquanto possibilidade de investigação acerca das mudanças (ainda)
em curso, tanto na Dança quanto na Educação Física. Partimos em direção às
experiências que abalaram e, de certa forma, incomodaram os pensamentos e práticas
hegemônicas disseminadas nessas áreas do conhecimento.
2.1 AS ESQUINAS DA DANÇA
No começo do século XX, surgiram Isadora Duncan e Ruth Saint Denis, pioneiras
da Dança Moderna que, mais tarde influenciariam os trabalhos de diversos artistas como
Marta Graham, Doris Humprey, José Limon, Paul Taylor, Alvin Nikolais, entre outros.
Como nos mostra Silva (2005), essa nova geração buscou modificar a filosofia, métodos e
vocabulário de movimentos desenvolvendo muitas teorias e escritas sobre a dança,
instalando liberdade e criatividade nesse cenário, diferentes do balé.
Historicamente se observa que a passagem do século XIX ao śeculo XX trouxe para a dança uma transformação nada menos do que radical. A reação contra o academicismo, a afetação e artificialidade do balé clássico foi o ponto de partida para uma revisão total de valores, de técnicas corporais e de regras de composição. (SILVA, 2005, p.19).
A Dança Moderna buscou, assim, questionar os códigos do balé clássico criticando
principalmente a forma automatizada e artificializada dos movimentos corporais. A partir
de seus temas geradores o balé no século XIX parece fugir ou escapar da realidade
humana expressa naquele contexto histórico. Desta forma a Dança Moderna inaugura
uma expressividade para o corpo e o movimento a partir da compreensão da importância
da organicidade do corpo, o que confere a expressão ao movimento. A Dança Moderna
inaugurou um período de mudanças significativas que, mais tarde, ganharia ainda mais
força com as experiências no cenário da Dança Contemporânea.
2.2 AS ESQUINAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
No final da década de 1980, surge um período de intensas críticas e debates em
busca de uma identidade para área da Educação Física. Historicamente verificamos a
atuação de áreas como a medicina e a instituição militar que ditavam e legitimavam o
conhecimento científico da Educação Física sistematizando métodos fechados ancorados
em princípios higienistas e disciplinadores.
A partir dessas discussões inauguram-se algumas rupturas e a Educação Física
passa a ser entendida como área que estuda e atua sobre a cultura corporal. Nesse
sentido o corpo, nas diversas práticas corporais, começou a ser visto como fonte de
expressão do ser humano, dotado de construções históricas e culturais a partir da
realidade social na qual está inserido. Assim,
(...) o próprio corpo é considerado através de todas as suas manifestações e significações, não sendo apenas parte do homem, mas o próprio homem. Pode teorizar sobre os aspectos biológicos, psicológicos e sociais, mas age fundamentalmente sobre o todo.(MEDINA, 1986, p.81).
As relações entre o corpo, o sujeito e o mundo em que vive se complexificam.
Pretende-se, assim, romper com a visão dualista de sujeito-mundo. Esses novos olhares
inauguram rupturas em relação aos padrões e concepções de corpo e movimento que,
por hora, perduraram nessa área do conhecimento. São esses olhares que nos
possibilitam uma maior ampliação acerca da presença do corpo, seja na ciência ou na
arte.
3. DANÇA E EDUCAÇÃO FÍSICA-(DES) ENCONTROS
Para melhor identificar e confrontar os possíveis cruzamentos entre a Dança e a
Educação Física buscamos em um cenário específico algumas evidências dessas (in)
tensas relações. A partir de um estudo de campo de abordagem qualitativa buscamos
identificar e analisar a presença da Dança no cenário da Educação Física a partir das
experiências estéticas de alguns grupos na realidade de um espaço de formação de
professores de Educação Física: a Escola Superior de Educação Física e Fisioterapia do
Estado de Goiás (ESEFFEGO).
Existindo em um conturbado cenário, a Dança nem sempre acompanhou o
pensamento presente na Educação Física. Encontramos indícios de que as experiências
estéticas dos grupos de Dança da ESEFFEGO acabavam por realizar suas
experimentações à margem de um processo hegemônico de legitimação do
conhecimento científico-instrumental. Às vezes de maneira sutil, em outros momentos de
forma escancarada, ela permaneceu seguindo passos diferenciados da Educação Física.
A busca é por essas experiências que, muitas vezes de maneira inconsciente ou
não-intencional, acabavam por gerar pontos de ruptura em relação ao trato dado ao
corpo e ao movimento pela Educação Física. Essas experiências nos apontam reflexões
mais profundas nesse ambiente de formação. Entre encontros e desencontros,
percorremos essas trajetórias, enxergando-as com olhos sensíveis, olhos de poeta
apaixonado por todos os fenômenos ligados ao corpo e ao movimento, em especial ao
fenômeno DANÇA.
3.1 AS DANÇAS NA EDUCAÇÃO FÍSICA
Buscamos desenhar esse cenário a partir da análise de depoimentos de pessoas
que participaram dessas experiências a partir de entrevistas semi-estruturadas e de
publicações relacionadas a alguns desses grupos. Elegemos para a pesquisa quatro
grupos criados na ESEFFEGO: o GDU (Grupo de Dança Univérsica), o grupo “Pés de
Dança”, a “Companhia de Danças Circulares da ESEFFEGO” e o “¿por quá? grupo
experimental de dança”. Desses grupos, entrevistamos três pessoas, sendo uma delas
criadora de um dos grupos (Companhia de Danças Circulares da ESEFFEGO) e as
demais, ex-integrantes do grupo “Pés de Dança” e da “Companhia de Danças Circulares
da ESEFFEGO”. O GDU será abordado a partir da utilização de alguns trechos da
publicação de um dossiê que registra as experiências desse grupo e o ¿por quá? a partir
da análise de trechos do trabalho de mestrado de um de seus criadores, a professora
Ms. Luciana Gomes Ribeiro.
A partir desses dados buscamos confrontar as visões de corpo e movimento
presentes na área da Dança e da Educação Física e a maneira pela qual a Dança chega
ao cenário da Educação Física na instituição pesquisada. Assim, os relatos e trechos de
publicações aqui utilizados não serão abordados de forma linear com o intuito de traçar
uma trajetória dos grupos, mas sim na tentativa de analisar as experiências da dança a
partir desses confrontos.
No início dos anos 1970 chega à Educação Física uma disciplina chamada
Rítmica. A professora Lenir Miguel de Lima, conhecida por seu pioneirismo na dança no
cenário da cidade de Goiânia, foi uma das primeiras professoras dessa disciplina. O
trabalho realizado era influenciado pelos princípios básicos de Euritmia de Dalcroze, na
Dança Educativa de Rudolf Laban e no movimento revolucionário de Isadora Duncan
(FÁTIMA et all. 2004).
Logo que começou a ministrar essa disciplina, Lenir cria o primeiro grupo de
dança na ESEFFEGO, o GDU (Grupo de Dança Univérsica). Com uma linguagem
bastante original o grupo se desenvolvia a partir de experimentações próximas à dança
moderna e outras manifestações artísticas como o teatro, a música e a poesia.
Descontruindo a estética que, até então, reinava no cenário da dança em Goiânia, o balé
clássico, o grupo seguia dançando de pés descalços e realizando feituras outras,
diferentes do que vinha sendo disseminado nesse contexto. “(...) por isso, a busca de
viver novos valores, experimentar novos padrões, alcançar níveis de consciência,
agregava nesse movimento um grande número de pessoas, na sua maioria jovens que,
do sonho à realidade, da utopia à realidade, funcionou efetivamente e afetivamente”.
(FÁTIMA et all. 2004).
Essas experiências partiam, então, de um lugar diferenciado do contexto da
Educação Física. Começava-se um novo movimento, um bailado que extrapolava os
limites da instrumentalização do corpo e do movimento pela ousadia e diálogo com
diversas manifestações artísticas. O grupo se apresentou em vários locais fora da
ESEFEGO e era sempre convidado a participar de muitos eventos. Em meados dos
anos 1980 surge outro grupo criado pela professora Regina que também ministrou a
disciplina Rítmica, era o ARTDANÇA
1. Nos anos de 1990 surgem mais dois grupos: nos primeiros anos dessa década,
o grupo “Pés de Dança” criado pelo professor Wanderley Cavalcante e, mais tarde, a
“Companhia de Danças Circulares da ESEFFEGO” criado pela professora Maria Cristina
de Freitas Bonetti.
O “Pés de Dança” era um grupo formado predominantemente por acadêmicos do
curso de Educação Física. Com um trabalho com bases no jazz e na dança afro, o grupo
seguiu criando espetáculos contando com uma grande quantidade de pessoas.
Apresentava-se na própria ESEFFEGO e em muitos outros locais fora da instituição.
A “Companhia de Danças Circulares da ESEFFEGO” era, também, um grupo
formado por acadêmicos do curso de Educação Física. “(...) Estudava as celebrações e
colocava as danças nas celebrações” (BONETTI, 2010)2. O grupo trabalhava com as
questões que envolviam o “sagrado” como “(...) reconexão com a natureza, com aquilo
que é sagrado”, diz sua criadora.
No ano de 2000 a professora Ms. Luciana Gomes Ribeiro (professora do curso de
Educação Física) e o professor Ms. Adriano Bittar (professor do curso de Fisioterapia)
criam o ¿por quá? grupo experimental de dança. O grupo em sua origem formado por
acadêmicos do curso de Educação Física busca convidar as pessoas para uma
investigação e experimentação da dança a partir da descoberta das potencialidades,
individualidades e particularidades de cada sujeito que dança, “(...) a identidade de
dança do ¿por quá? é a construção das identidades de dança de seus integrantes”
(RIBEIRO, 2003, p.72). Seguindo uma estética contemporânea o grupo investe na
pesquisa científica e artística como metodologia de ensino com o intuito de propiciar aos
seus participantes, experiências com finalidades cênicas.
E os grupos seguiram cada qual com suas especificidades proporcionando,
principalmente aos acadêmicos do curso de Educação Física, experiências artísticas
com linguagens bastante originais, diferentes dos padrões estéticos de uma dança
oficial, hegemônica que talvez marque um cenário mais amplo da trajetória histórica da
dança na nossa sociedade e na cidade de Goiânia.
3.2 A ENTRADA PELAS PORTAS DO FUNDO
As diversas maneiras pelas quais a Dança chega à Educação Física nos apontam
questões fundamentais para pensarmos nas relações entre essas áreas do
conhecimento. A abertura propiciada pela Educação Física à dança talvez se dê pelo
convencimento que perpassa na área de que as práticas corporais são importantes
como integrantes de alguma formação do indivíduo. E é justamente no entendimento do
que compreende a formação humana, ou a educação, é que se estabelece ou surgem
várias contradições. Desta forma, a Dança está presente nos campos de atuação dessa
área do conhecimento ganhando várias dimensões, sendo inserida em diversos espaços
sociais com diferentes finalidades e funções.
Podemos identificá-la como fenômeno de socialização, como atividade terapêutica, inserida na educação e como experimentação artística. E assim, temos a dança vivenciada de várias formas, em espaços sociais que ampliam sua essência criadora e em espaços que minimizam e até destroem por completo esta especificidade. (RIBEIRO, 2004, p.132).
Identificamos, então, alguns indícios de que muitas vezes a dança é inserida na
Educação Física com outros objetivos diferentes de seu caráter criativo. Essa inserção
em determinados contextos acompanha a legitimação do conhecimento científico-
instrumental que reduz a dança à experiência prática distanciada da experiência
estética3.
Nesse sentido, visualizamos possibilidades distintas de compreensão acerca da
dança no contexto da Educação Física: ela acompanha os preceitos racionalistas de
objetividade e funcionalidade ou ela se distancia desse pensamento para aparecer e nos
apresentar suas feituras enquanto atividade de criação, fruição e experimentação
estética. No segundo caso, dizemos que a dança entra por vias não convencionais das
da Educação Física Brasileira historicamente enraizada e sistematizada.
Essa entrada por vias não convencionais nos faz refletir sobre a possibilidade de
abertura e de ampliação dos olhares acerca das práticas corporais na própria Educação
Física. Essas percepções outras, de corpo e movimento, geradas pela Dança (ainda)
não ocupam um lugar efetivo nos debates, reflexões e ações no campo da Educação
Física. A Educação Física abre a possibilidade de vivência e experimentação estética da
Dança, mas renega essas experiências até hoje.
No contexto específico da instituição pesquisada (ESEFFEGO), essa entrada
parece se dar desta mesma maneira. A inserção da disciplina Rítmica no currículo de
formação da Educação Física é o primeiro apontamento de que a Dança chega e ocupa
um lugar diferenciado do que, até então, era tido como importante e predominante. As
questões concernentes à expressão corporal, ao ritmo, à harmonia do movimento, vêm
de um lugar artístico, ainda que de maneira difusa. Destacamos, aqui, uma das primeiras
experiências de dança na ESEFFEGO a partir do GDU. Essas experiências talvez
marquem o início de algumas rupturas na Educação Física. Em um cenário fortemente
expresso pelo tecnicismo, a dança começava a realizar feituras diferentes do que vinha
sendo disseminado.
(...) o que me pôs muito feliz era me sentir livre com esse grupo (...) de trabalhar ali o corpo, um grupo de dança, mas a dança no sentido de estar libertando o corpo, as pessoas se liberando de uma época em que o medo batia em todo intelectual, em todo mundo (...) Então, nessa época, os rapazes estarem sem camisa dançando era politicamente incorreto(...). (CUNHA apud FÁTIMA et all. 2004, p.24)
4
Temos aqui o entendimento de que a dança nesse contexto gera traços de
ruptura não só em relação à Educação Física, mas atinge, também, um cenário mais
amplo que marca a sociedade brasileira. Em uma época de constantes repressões, a
dança podia existir de maneira livre e aberta às experimentações mais ousadas e
vinculadas às questões estéticas, políticas e sociais.
Podemos identificar nesses grupos alguns pontos em comum. Primeiro a questão
de esses grupos serem criados em uma faculdade de Educação Física e terem como
público-alvo os acadêmicos desse curso. Esse fato nos faz refletir sobre o lugar da
Dança no contexto mais amplo da Educação Física. Como já foi citado no presente
trabalho, acreditamos que a Educação Física abre a possibilidade de se vivenciar e
experimentar a dança fora de um espaço instituído de arte, e aqui localizamos a
ESEFFEGO nesse contexto e acreditamos que:
A dança na Educação Física (...) não perde, nem se distancia do seu caráter estético-expressivo, pelo contrário parte dessa especificidade como existência plena da mesma. A diferença fundamental aqui apresentada é o reconhecimento de tal especificidade não somente nas danças pré-estabelecidas nos espaços instituídos de arte, mas também nos espaços instituídos de não-arte, à margem, não oficiais. (RIBEIRO, 2004, p.133)
Esse espaço de formação e de existência da Dança permanece à margem de
muitos espaços oficiais de vivência e profissionalização desse fenômeno artístico e essa
talvez seja a questão fundamental e interessante a ser problematizada. A Dança na
Educação Física não é inserida com o intuito de profissionalizar artistas. Ela existe
enquanto possibilidade de vivência, experimentação, problematização e compreensão
acerca dos seus vários lugares de inserção social e assumindo distintos papéis. Não que
ela perca seu caráter artístico, mas esse caráter assume uma dimensão diferenciada,
com outros objetivos e finalidades.
Outro traço comum aos grupos de dança da ESEFFEGO é o acesso
democratizado à experimentação e vivência dessa manifestação artística. Nos grupos
pesquisados não há padrões ou pré-requisitos para a admissão de participantes: “o que
era necessário para entrar no grupo? – Querer dançar!” (C.S, 2010)5. Esse acesso
possibilitado a qualquer pessoa que quisesse dançar gera questões interessantes para a
análise dessas experiências, pois há uma certa dificuldade no trabalho de preparação e
criação artística frente às especificidades de cada corpo, de cada sujeito-dançarino com
todas as suas histórias e sua cultura.
Talvez o diálogo com a arte, por ser ela uma forma de conhecimento do mundo, de apropriação diferenciada da realidade, revele a evidência dos muitos corpos existentes (...) A arte sempre foi capaz de mostrar as ambigüidades, os paradoxos, a diversidade. (SOARES & SILVA apud SOARES & MADUREIRA, 2005, pp. 84-85)
No entanto, esse desafio que os grupos enfrentavam e, ainda enfrentam nos faz
vislumbrar a ousadia de seus proponentes/ criadores quando da proposição desses
trabalhos. E aqui já encontramos um primeiro (des) encontro entre a Dança e a
Educação Física. Mesmo com as mudanças ocorridas no pensamento da Educação
Física brasileira, ainda encontramos a dificuldade desta área do conhecimento em lidar
com os paradoxos, as diversidades corporais dos sujeitos.
Quando a Dança se propõe nesse lugar de atuação ela abre espaço para as
ambigüidades, para as contradições, e vai além, no sentido de inventar, criar formas de
atuação e de intervenção na realidade social. Encontrar formas de possibilitar às
pessoas essas experiências artísticas, independentemente da linguagem desenvolvida
na criação da dança requer sensibilidade e abertura para o novo, para o inusitado, o
desconhecido. E talvez essa seja uma das qualidades primordiais desses grupos de
dança, pois mesmo sem uma formação tão específica em dança, como em casos de
alguns dos professores que criaram esses grupos, eles encontravam maneiras de
possibilitar o acesso à dança a pessoas “comuns”. “(...) Tem-se aqui a compreensão de
que a apropriação da dança não depende do ‘talento’ ou habilidade física pré-
estabelecida e, sim, da consciência das possibilidades e limitações de cada um diante do
trabalho (...)” (RIBEIRO, 2003, p.37).
Nesse sentido compreendemos as experiências dos grupos de dança da
ESEFFEGO como impulsionadoras e propiciadoras de vivências estéticas, de
apropriação da dança às pessoas que, talvez, não tivessem essa oportunidade em
outros espaços. A realidade dos acadêmicos de Educação Física, pessoas comuns,
muitas vezes fora dos padrões de corpo que algumas escolas de dança exigem, é
respeitada e potencializada na forma de experimentações mais autênticas que podem
gerar tanto descobertas individuais como coletivas das possibilidades de se-movimentar
com seu corpo. No entanto é preciso que tenhamos a consciência que nem sempre as
pessoas se identificam com o trabalho artístico, o que pode, também, gerar outras
contradições nesse processo democrático de acesso à dança.
Essa compreensão da democratização da dança possibilitada pelos grupos
pesquisados somente se faz presente a partir das reflexões atuais que propomos para o
presente estudo. Talvez em suas origens essa questão nem fosse debatida ou
vislumbrada de maneira direta, intencional. Contudo, analisamos frente à
contemporaneidade a importância e relevância com que essas experiências foram
geradas nesse cenário da Educação Física. A Dança inserida nesse contexto específico
dessa instituição de formação de professores de Educação Física tem ampliado as
possibilidades de vivência e compreensão tanto dela mesma, quanto das práticas
corporais de maneira mais ampla.
A Educação Física como área que atua e teoriza sobre a cultura corporal através
das práticas corporais historicamente produzidas e sistematizadas deveria se atentar
para essas mesmas relações. Encontrar meios, formas outras de convidar, incentivar e
propiciar uma maior acessibilidade aos sujeitos para experimentarem as diversas
manifestações e práticas pertencentes ao universo da cultura corporal.
3.3 RACIONALIDADE X SENSIBILIDADE
Percebemos na realidade dos grupos em questão maneiras diferenciadas de trato
dado ao corpo e o movimento. Esses grupos, ainda que de maneiras distintas, nos
apontam dimensões sensíveis e poéticas dadas ao trabalho com dança, que escapam a
uma lógica cientificista e instrumental que, por hora, perdura nos vários campos de
intervenção da Educação Física. Temos assistido nesse contexto uma legitimação do
conhecimento a partir de parâmetros ditados pelas ciências biológicas que reduzem o
corpo às dimensões anatômica e fisiológica. Esses parâmetros servem de base para
uma sustentação de conceitos esvaziados de criticidade acerca das práticas corporais,
mais especificamente do esporte.
Todo esse aparato científico pelo qual a Educação Física vem sendo legitimada e
sustentada atinge não só o esporte como as diversas práticas corporais em muitos
espaços de inserção das atividades físicas em geral. Nesse contexto a dança muita
vezes é tratada de forma reducionista quando é vista apenas como atividade do físico,
perdendo seu caráter estético-expressivo assumindo outras formas, que não as de
manifestação artística.
Esta era outra dificuldade apresentada na realidade que gostaria de superar: a percepção da dança só como uma atividade física. A dança aqui é compreendida como uma área de conhecimento e como uma forma de se relacionar com o mundo. (...) ela deixa de ser somente uma prática corporal destituída de memória para ser um fenômeno cultural, uma atividade criadora que acontece de várias formas de acordo com a sociedade e a época em que ela está inserida. (RIBEIRO, 2003, p.38).
Contudo, sabemos das mudanças de paradigmas sofridas pela Educação Física
como foi enunciado em capítulos anteriores. Também já foi apontado que mesmo sendo
estabelecidas essas quebras, ainda está por se fazer uma nova Educação Física que
consiga dialogar com as diversas ciências, sejam elas humanas ou biológicas, no próprio
“fazer” das práticas corporais, pois muitas vezes o diálogo com áreas exteriores ao
campo da Educação Física tem ficado apenas no discurso teórico.
E a dança neste contexto, nestas experiências, constitui-se como um lugar
concreto de transformações e rupturas já anunciadas, mais ainda não efetivadas pela
Educação Física. Olhar mais atentamente para estas experiências nos faz reconhecer
um lugar outro dado a crítica. Confronto justamente na não submissão a este
pensamento predominante e crítica-reflexão desdobrada em uma ação, em um feito
neste outro lugar foragido da hegemonia.
O que procuramos aqui debater é a exacerbada racionalidade científica (ainda)
presente na Educação Física que acaba por impedir ou silenciar as possibilidades de
atuação com as práticas corporais, de outras maneiras, dentre elas a de maneira
sensível e poética e, por que não dizer, artística. As tentativas de romper com os
padrões, com os conhecimentos oficiais e hegemônicos presentes nessa área do
conhecimento são muitas vezes repelidas e vistas como erradas ou tidas como
invenção, utilizada no seu sentido pejorativo, ou seja, sem consistência.
E aqui utilizamos esse termo para apontarmos o cerne da questão: a Educação
Física, legitimada à luz do conhecimento científico-racional, compreende o verdadeiro
significado da invenção e da criação? Ela assimila as mudanças de percepção que a
arte/ dança geram na maneira de atuar com/ no/ através do corpo e do movimento?
Esses questionamentos estabelecem nosso pano de fundo para analisarmos as
experiências dos grupos de dança em questão.
A Dança realiza uma feitura diferente da simples atividade física com fins
previamente estabelecidos. Ela se realiza no corpo a partir da expressividade gerada
pelo movimento, expressividade essa que pode ser entendida como as ações que esse
movimento gera. Essas ações, por sua vez, são geradas intencionalmente e
conscientemente por quem se move. A intencionalidade permite a transformação de um
simples movimento em movimento de dança, que podemos chamar de movimento
poético. E assim concordamos com Beardsley (1982, p.8) que “quando um movimento
ou seqüência de movimento é expressiva em virtude de qualidades intencionais, eles
configuram-se como dança”. Desta forma, compreendemos que o movimento na dança
assume características, ou talvez possamos dizer que ele assume fisionomias distintas
do simples exercício físico.
Essa característica definidora da dança parece não ser apreendida e nem
compreendida pela Educação Física e seu lugar ainda preponderante. Se o movimento
assume finalidades instrumentais pré-estabelecidas, distanciamo-nos da compreensão
estética, sensível e poética inerente ao fenômeno DANÇA. Esse distanciamento pode
nos apontar reflexões importantes nas relações entre a Dança e a Educação Física, pois
a não compreensão dessa sensibilidade e deste feito poético, pode gerar um
esvaziamento do verdadeiro sentido da Dança enquanto arte. “(...) se não ver como arte,
com olhar de poeta, não consegue enxergar (...)” (BONETTI, 2010). Talvez seja essa
uma das grandes problemáticas no reconhecimento e permanência das experiências
estéticas da Dança no contexto da Educação Física.
A existência dos grupos de dança na Educação Física, particularmente na
ESEFFEGO, se dá sem dúvidas pela abertura que essa área do conhecimento propicia
para que essas experiências aconteçam. A Educação Física, como área de
conhecimento, contorna diversas práticas corporais, dentre elas a Dança. Entretanto,
reconhecê-la como parte da Educação Física não garante a sua plena compreensão.
Porém essa existência e certamente e permanência desses grupos nessa instituição se
dão à margem do processo hegemônico de construção do conhecimento na Educação
Física pela própria maneira como o trabalho é desenvolvido. O trato dado ao corpo e ao
movimento pela dança se distingue, e muito, da maneira convencional como a Educação
Física atuava e tem atuado. Então a dança sempre trouxe um estranhamento no jeito de
se vivenciar o movimento e este diferente, este outro, trazido pela dança geralmente era
marginalizado e visto com desconfiança e pouco crédito.
É preciso reconhecer suas capacidades criativas, inventivas e de (trans) formação
da realidade. A forma como nos relacionamos com nosso corpo e o movimento no
cotidiano é diferente da maneira como esses aparecem na dança, pois se tornam
veículos de criação e invenção de várias outras realidades a partir da imaginação e da
transformação daquilo que é comum em atitude poética, expressiva.
Essas mesmas relações podem se dar na Educação Física se a visualizamos
como um espaço de composição entre diversas áreas que atuam sobre o corpo. Todavia
essa composição deve ser gerada no próprio “fazer” corporal. O trato sensível suscitado
pela arte e pela dança à Educação Física pode ecoar de maneira efetiva nas
experimentações corporais dessa área do conhecimento. Da mesma forma que as
problematizações levantadas pela Educação Física acerca de sua própria trajetória
histórica podem ecoar e contribuir para o desenvolvimento da Dança. Assim podemos
pensar na resistência a um esvaziamento de sentidos dados às práticas corporais e em
como isto se efetivou através do diálogo da Dança com a Educação Física. O fruto deste
diálogo pode ser visto no surgimento destes grupos, mas principalmente no isolamento
em que estes trabalharam e, conseqüentemente, na sua passageira existência.
Estas experiências estéticas a partir destes grupos apontam explicitamente como
este diálogo vem se dando no interior da Educação Física: com muito preconceito,
descaso e incompreensão. A Dança aqui é solidão, esquizofrenia e utopia. E assim
mesmo é desejosa, é singular, é nossa!
REFERENCIAL TEÓRICO
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localizar a referida professora no tempo hábil da pesquisa. Entretanto, isto não prejudicou o trabalho pois o objetivo principal não é a trajetória histórica dos grupos que existiram na instituição e sim identificar traços de ruptura em experiências de dança ocorridas lá. 2 Depoimento retirado de uma entrevista concedida no mês de Abril de 2010.
3 Os conceitos de experiência prática e experiência estética aqui utilizados são apontados por João Francisco Duarte Jr. em sua
obra “ O que é beleza”. Ele admite a experiência prática como sendo a relação com o mundo onde nos interessa a função das coisas e a experiência estética como sendo a experiência da beleza, a experiência que temos frente a um objeto ao senti-lo como belo, interessando-nos a forma e a aparência. 4 Depoimento retirado de uma entrevista concedida por um participante do GDU inserida no Dossiê que registra as experiências
desse grupo. 5 C.S: Sigla de identificação do (a) entrevistado (a) 2 da pesquisa de campo. Entrevista realizada no mês de Abril de 2010. Ex-
integrante do “Pés de Dança”.